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Arte e governo da vida

MATRIZes

O artigo discorre sobre o trabalho artístico a partir dos conceitos de invenção de si e governamentalidade, analisados por Foucault, Veyne e Bennett. Nas racionalidades liberais, a vida é tomada como campo de governo e como capital. O artista investe sua vida, suas percepções e afetos na criação das obras. Mas esse interesse também pode conduzir a políticas identitárias. Para evitar que o campo se fragmente, as artes devem ser compreendidas, em suas relações de força e contingências históricas, como bens públicos e comuns, que manifestam, mais do que um capital, a potência humana de invenção. Contudo, transformar hábitos culturais é tarefa de longo prazo, que envolve o Estado, a iniciativa privada e a sociedade civil.

205 Arte e governo da vida: capital humano e invenção de si nos circuitos artísticos e culturais Art and government of life: human capital and self-invention within artistic and cultural fields SHARINE MACHADO CABRAL MELOa Fundação Nacional de Artes. São Paulo – SP, Brasil RESUMO O artigo discorre sobre o trabalho artístico a partir dos conceitos de invenção de si e governamentalidade, analisados por Foucault, Veyne e Bennett. Nas racionalidades liberais, a vida é tomada como campo de governo e como capital. O artista investe sua vida, suas percepções e afetos na criação das obras. Mas esse interesse também pode conduzir a políticas identitárias. Para evitar que o campo se fragmente, as artes devem ser compreendidas, em suas relações de força e contingências históricas, como bens públicos e comuns, que manifestam, mais do que um capital, a potência humana de invenção. Contudo, transformar hábitos culturais é tarefa de longo prazo, que envolve o Estado, a iniciativa privada e a sociedade civil. Palavras-chave: Arte, cultura, invenção de si, biopolítica a Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Administradora cultural da Fundação Nacional de Artes (Funarte) em São Paulo. Orcid: http://orcid.org/00000003-3160-1151. E-mail: sharinemelo@gmail.com ABSTRACT This article discusses artistic work, based on the concepts of self-invention and governmentality analyzed by Foucault, Veyne and Bennett. Life, in liberal rationalities, is understood as a field of government and as a capital. Artists invest their lives, perceptions and feelings in their artworks. Such interest, however, may conduct to identity politics. To avoid the fragmentation of the cultural field, the arts must be considered in their power relations and historical contingencies; understood as public and common goods that manifest more than mere capital but human power of invention. However, the transformation of cultural habits is a long-term task that involves the State, the private initiative and civil society. Keywords: Art, culture, self-invention, biopolitics DOI:http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v13i3p205-228 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 205 Arte e governo da vida A MARCA DE REMBRANDT E M 1641, O inglês John Evelyn (2015) registrou em seu diário as impressões de uma viagem por Roterdã, na Holanda. O primeiro fato memorável foi seu passeio por um mercado repleto de pinturas (especialmente de paisagens) e de representações de palhaços ou bufões. O autor relata que os quadros à venda eram baratos e que havia grande demanda pelos bens, que ele chama de “commodities”: era comum encontrar nas casas dos fazendeiros uma enorme quantidade de pinturas, e os artistas alcançavam um lucro considerável com a venda de suas obras. Pouco tempo depois, em 1662, o historiador francês Jean-Nicolas de Parival (como citado em Zumthor, 1989) escreveu, em Les délices de la Hollande, que talvez não houvesse em “nenhum país do mundo . . . tantos nem tão excelentes quadros” (p. 238). De fato, uma importante geração de pintores viveu nessa época e nesse lugar: Van Goyen, Rembrandt, Van Ostade, Vermeer, entre outros. As telas eram, para os holandeses, como móveis que cobriam as paredes vazias das casas, e o preço acessível das obras permitia que qualquer pessoa, até mesmo os camponeses, as adquirisse. Para Zumthor (1989), aos olhos da burguesia do país, o pintor era um fornecedor como qualquer outro. Por isso, o mecenato não era comum: as telas eram encomendadas e pagas ou vendidas em feiras e quermesses por comerciantes e intermediários. Os pintores integravam-se, sem grandes conflitos, à ordem social, de modo que a imagem do artista incompreendido ou obstinado pela originalidade não fazia sentido: Os pintores formam uma guilda, a que chegam pelos degraus habituais: foram aprendizes de um mestre que os fez lavar os pinceis e varrer o ateliê; montaram os cenários para as telas do mestre; pintaram uma figura acessória no quadro no qual o mestre se reservava o principal; trabalharam sobre seus esboços. Quando se tornam mestre, afinal, vão abastecer um mercado com cotações regidas pelas leis gerais do comércio. O trabalho não merece, como tal, nem considerações nem honra particulares. (Zumthor, 1989, p. 240) Em meio a esse cenário, um artista se destacava: Rembrandt. Para a historiadora de arte Svetlana Alpers (2010), o pintor soube aproveitar como poucos as características do sistema capitalista, que já despontava no país. Em vez da venda direta de suas obras, ele fazia circular papéis que as representassem, trabalhando como em um sistema de crédito e obtendo recursos por meio de empréstimos, assim como o mercado financeiro funciona atualmente. Porém, seu maior segredo residia na técnica: em vez do acabamento liso dos quadros da época, ele preferia deixar visíveis as pinceladas. Mais do que uma questão de estilo, para 206 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO Alpers, essa era uma forma de transferir para o próprio pintor a decisão sobre o acabamento do trabalho. Como na época era comum calcular o preço dos quadros sobre o tempo necessário para produzi-los, se o acabamento ficasse a critério do artista, era ele quem definia o valor da obra. A partir do tratamento peculiar da tinta e do uso da assinatura como uma marca, Rembrandt distinguia seus quadros das mercadorias feitas em série e criava um objeto especial, com uma aura de individualidade e, por isso mesmo, com alto valor1. Essa tendência apontava para um problema ainda atual: a fusão entre obra e artista. Para escrever seu livro, Alpers (2010) partiu de uma notícia que se espalhou pelos jornais em 1985: especialistas haviam concluído que o quadro Homem com elmo dourado não havia sido pintado pelo próprio Rembrandt, mas por um de seus alunos ou assistentes. A obra, que durante séculos havia sido canônica do mestre holandês, de repente não podia mais ser atribuída a nenhum pintor. Certamente, isso não diminui suas qualidades artísticas, mas causa um grande embaraço: como definir o valor de uma obra sem autor conhecido? Alpers (2010) se pergunta, então, se haveria realmente algo de especial em Rembrandt que o diferenciasse dos artistas de seu tempo. A resposta é positiva, mas não se restringe à genialidade do pintor. Afinal, a história por trás de Homem com elmo dourado já havia mostrado que outros artistas eram igualmente talentosos. Contudo, a pesquisadora não desconsidera a importância de Rembrandt. Com estudos cada vez mais aprofundados em história da arte, deparamos com um número crescente de obras que seriam inconcebíveis sem ele. Ocorre que Rembrandt dotava a pintura de um caráter individual, levando outros artistas a desejarem se passar por ele. Como Picasso faria alguns séculos mais tarde, o pintor holandês “abandonou, progressivamente, a descrição das ações para nos oferecer o ato de pintar como objeto de contemplação”. Ambos procuravam “apreender a essência dos modelos” que tinham “diante dos olhos” (Alpers, 2010, p. 89): 1 Walter Benjamin (2008) foi um dos principais autores a abordar o tema da “aura” da obra de arte. No conhecido ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, o autor associa o termo ao “aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra” (p. 167). Ainda segundo Benjamin, nas reproduções esse elemento está ausente. A despeito da idiossincrasia da pintura de Rembrandt, a conclusão de que ele foi um artista incompreendido não corresponde à verdade. A propagação de seu estilo – evidenciada no número de obras que lhe foram atribuídas e que hoje sabemos terem sido feitas por outros artistas sob a influência do mestre – é uma prova considerável do contrário. Se a maneira de pintar de Rembrandt não sobreviveu, o artista solitário que ele inventou na tela persistiu por muito mais tempo. O aspecto característico do tratamento da tinta na obra de Rembrandt . . . impôs ao pintor a necessidade de distinguir-se, de isolar-se, de ser fiel a si mesmo e, em suas obras de maturidade, de construir um eu. Não um eu imposto pelo mundo exterior – como supõe a visão romântica do artista solitário e rejeitado –, mas um eu que ele mesmo inventou. V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 207 Arte e governo da vida Para Alpers, o processo de invenção de Rembrandt por ele mesmo foi encenado em seu ateliê. O pintor preparava os modelos que posariam para suas pinturas como se montasse, cuidadosamente, uma cena teatral com personagens. Embora fosse um grande observador da vida e captasse com maestria os afetos e as relações humanas, Rembrandt transformava o ateliê em seu mundo, como se buscasse isolar sua arte. Mas isso não fazia dele um gênio solitário, pois era justamente por meio do ateliê que ele se relacionava com o público e com o mercado. A insistência em criar a própria imagem, sua técnica característica, a encenação cuidadosa de suas pinturas, tudo isso contribuía para as obras de Rembrandt serem percebidas como singulares. Por outro lado, assim como uma marca comercial pode ser falsificada sem perder sua particularidade, o estilo do mestre holandês podia ser imitado por seus discípulos e por outros artistas que o admiravam (muitos de seus autorretratos foram pintados, paradoxalmente, por alunos ou assistentes), sem perder sua singularidade. Alpers (2010) associa essa tendência ao problema da representação no sistema capitalista. Afinal, a dimensão mais importante de um produto ou serviço é sua imagem, justamente aquilo que o diferencia dos concorrentes e cria um valor. No limiar entre mecenato e mercado de artes, como um contraponto à vitalidade anônima dos artistas holandeses, Rembrandt se esforçava para construir para si mesmo uma personalidade, um talento ou um gênio particular. Muito se passou desde então. As guildas deram lugar às academias de arte; grandes museus, teatros e galerias foram construídos; as feiras livres e o mecenato ainda existem, mas o comércio de obras de alto valor passou a ser regido por grandes instituições financeiras; pinturas e esculturas chegam a preços exorbitantes no mercado internacional, enquanto muitos artistas emergentes se esforçam para trabalhar com poucos recursos. Nada disso é novidade. Mas há, na história de Rembrandt narrada por Alpers (2010), um elemento que se destaca: a construção do artista por ele mesmo, o modo como investe em si próprio, buscando uma imagem que o diferencie dos demais, a transformação de sua marca particular em um capital. A INVENÇÃO DE SI A Holanda onde Rembrandt viveu estava imersa em um capitalismo bastante desenvolvido, ancorado na exportação de bens de consumo, no controle dos portos e no mercado financeiro. É precisamente o modo como o pintor aproveitou esse contexto, na leitura de Alpers (2010), que aponta para o nosso presente. A autora concentra sua análise em um elemento fundamental para 208 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO o sistema capitalista: a imagem construída por técnicas de comunicação, que diferencia uma marca comercial, um candidato político, uma ideologia ou uma celebridade, entre outros exemplos. Mas a maneira como Rembrandt compôs a própria imagem, sempre em relação ao mercado e à arte de seu tempo, também nos incita a pensar nas ações dos indivíduos sobre si mesmos, nos modos como conduzem suas vidas e como se constituem a partir dos discursos e das relações de poder de uma época. Como se sabe, Foucault (2008) foi um dos grandes pensadores a se debruçar sobre esses temas. O pesquisador de políticas culturais Tony Bennett (1998), inspirado por sua obra, afirma que há muitos Foucaults e que talvez não seja possível unificá-los sob um único “efeito de autor”. Bennett opta por seguir não o preferido dos “pensadores libertários”, mas aquele que aponta para mecanismos cada vez mais sofisticados de governo da vida. Antes de chegar a essa leitura, no entanto, partimos do Foucault apresentado por Paul Veyne (2014) como um grande historiador, que busca encontrar em cada época o que há de singular: A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários, no sentido de Mauss, não são óbvios, no entanto parecem tão evidentes aos olhos dos contemporâneos e mesmo de seus historiadores que nem uns nem outros sequer os percebem. (p. 239) Para Foucault, assim como para Veyne (2011), os discursos e as práticas de determinada época não são mais do que fruto do acaso, de séries de acontecimentos que se encontram e se concatenam, sem existir necessariamente uma continuidade, uma evolução ou um sentido linear. Ainda de acordo com Veyne, Foucault não nega a objetividade dos fatos históricos – ao contrário, ele dedica especial atenção à nossa realidade, a tudo aquilo que os seres humanos produzem, às positividades de cada época. Por esse mesmo caráter contingente, o filósofo se esforça em mostrar a arbitrariedade das estruturas políticas e sociais, dos padrões de comportamento e das condutas morais. Veyne (2011) também dá especial atenção ao conceito de discurso. Para o autor, Foucault não nos revela algo oculto, mas nos convida a ouvir exatamente aquilo que é dito e que, de tão imersos em nosso tempo, já não somos capazes de perceber. Embora a realidade seja objetiva, os discursos nos fazem vê-la de maneira singular em cada época. Contudo, não se trata apenas de diferentes modos de interpretar os objetos aos quais os signos se referem. Ao lado de outros V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 209 Arte e governo da vida dispositivos (como leis, medidas administrativas ou criações arquitetônicas), os discursos delimitam campos de saber e poder, ao mesmo tempo que constituem os próprios objetos (como a loucura, a criminalidade e a economia, nos exemplos de Foucault). Isso não significa que cada época apresente um único paradigma geral. Há uma permanente disputa por sentidos, evidente nos meios de comunicação, nas opiniões divergentes de especialistas, no campo político, em obras literárias e correntes filosóficas, entre outros. De fato, para Foucault, o discurso é, em si mesmo, motivo de disputa, desejo e poder. Porém, como ressalta Veyne (2011), não são os sujeitos soberanos que os produzem e enunciam. Ao contrário, assim como os objetos, os sujeitos são engendrados pelos dispositivos e pelos discursos de seu próprio tempo – processo chamado de subjetivação: A constituição do sujeito corresponde à de suas maneiras: ele se comporta e se vê como vassalo fiel, súdito leal, bom cidadão etc. Um mesmo dispositivo que constitui esses objetos, loucura, carne, sexo, ciências físicas, governamentalidade, faz do eu de cada um certo sujeito. A física faz o físico. Assim como, sem um discurso, não haveria para nós objeto conhecido, não existiria o sujeito humano sem uma subjetivação. Engendrado pelo dispositivo de sua época, o sujeito não é soberano, mas filho do seu tempo; não é possível tornar-se qualquer sujeito em qualquer época. (p. 179) Mas a ideia do processo de subjetivação, segundo Veyne (2011), não faz de Foucault um autor determinista: Em parte alguma podemos escapar às relações de poder: em compensação, sempre podemos, e em toda parte, modificá-las; pois o poder é uma relação bilateral; ele faz parte com a obediência, que somos livres (sim, livres) para conceder com mais ou menos resistência. Contudo, bem entendido, essa liberdade não flutua no vazio e não pode querer qualquer coisa em qualquer época; a liberdade pode ultrapassar o dispositivo do momento presente, mas é esse dispositivo mental e social que ela ultrapassa; não se pode exigir do cristianismo antigo que ele tivesse pensado em abolir a escravidão. (pp. 168-169) Conforme a metáfora usada por Deleuze (2005), grande comentador da obra de Foucault, é como se os dispositivos provocassem uma dobra, um trabalho de si sobre si, que certamente inclina os sujeitos a pensarem e a agirem de acordo com sua época. No entanto, essa dobra também pode levar a um processo que Veyne (2011) distingue da subjetivação: a estetização. Esse termo é compreendido pelo autor não como a vida de um dândi, mas no sentido do trabalho do artista 210 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO que, na cultura grega, se confunde com o artesão. Foucault (como citado em Veyne, 2011) não acredita em problemas universais ou que “atravessam séculos” (p. 182). Por isso, Veyne esclarece que a afinidade do filósofo com a cultura grega limita-se à “transformação de si por si próprio” (p. 183), ao estilo. Assim como a insubmissão ou a revolta, a estetização é um exercício de liberdade, que não se resume a modos de ser totalmente impostos pelos dispositivos, mas conduz a escolhas individuais, a invenções. O sujeito toma a si mesmo como obra a ser trabalhada. Não foi dessa maneira que Rembrandt compôs a própria imagem e deu a suas pinturas um tom singular? A VIDA, UM CAPITAL Ocorre que, para Foucault (2008), alguns objetos – tais como a sexualidade, a loucura e a violência – são mais iluminados em certos períodos históricos, tornando-se focos de interesse. Até mesmo a figura do artista que, como Rembrandt, faz de seu gênio (mais do que da técnica) a expressão máxima de sua obra, emergiu da confluência de diversos fatores, entre eles a aproximação entre os circuitos artísticos e o mercado. Outra grande percepção de Foucault (2008) foi a de que a vida em si mesma se tornou um foco de interesse pelo menos desde o final do século XVIII. Para o autor, mudanças sociais, como o crescimento das cidades, a industrialização e a decadência dos regimes absolutistas trouxeram à tona um novo problema de governo: a vida da população, não somente do ponto de vista estatístico, que envolve taxas de nascimento, doenças e morte, mas principalmente no que se refere ao comportamento ou às condutas individuais – à dobra sobre si da qual fala Deleuze (2005). Essa análise leva ao conceito de biopolítica, que, segundo Thomas Lemke (2011), Foucault emprega de maneiras distintas ao longo de sua obra: como ruptura com o poder soberano; como elemento central no crescimento do racismo; e, finalmente, como uma arte de governar que emerge com o liberalismo e volta-se ao governo das condutas ou de si. Este último sentido – empregado neste artigo – inspira os estudos sobre governamentalidade, propostos inicialmente por um grupo de pesquisadores britânicos, entre eles Nikolas Rose (Miller & Rose, 2012) e o já citado Bennett (1998), com o objetivo de analisar racionalidades de governo que buscam produzir formas específicas de liberdade guiada. Foucault (2008) não entende o liberalismo como doutrina ou ideologia, mas como uma prática, como modos de fazer orientados por objetivos e constantemente críticos ao próprio ato de governar. Governa-se em função da sociedade, de modo a garantir, entre outros aspectos, o sujeito de direito e as liberdades individuais. Esses princípios gerais tomam formas diversas – como no liberalismo V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 211 Arte e governo da vida britânico do final do século XVIII, ou no alemão de meados do século XX – e muitas vezes são alcançados por meio de intervenções econômicas ou políticas sociais, a exemplo dos Estados de bem-estar social. Contudo, Foucault (2008) ressalta que é o neoliberalismo norte-americano que surge como “toda uma maneira de ser e de pensar”, até mesmo como certa utopia, com “ancoragem à direita e à esquerda” (p. 301), pois nesse regime a relação entre governantes e governados é fundada não sobre os serviços oferecidos pelo Estado aos cidadãos, mas sobre o problema das liberdades formais (de propriedade privada, mercado, emprego, entre outras). Uma das decorrências desse modo de entender o neoliberalismo – vinculado, entre outros, à Escola de Chicago, na segunda metade do século XX – é a expansão do pensamento econômico para os mais diversos aspectos da vida: do nascimento dos filhos a tratamentos de saúde, da educação às escolhas profissionais. Contudo, Foucault (2008) aponta uma questão fundamental: o padrão econômico nas racionalidades neoliberais não é o das mercadorias, com produção em série e consumo nivelado pelas massas, mas o da concorrência entre empresas, que busca justamente o diferencial entre alternativas possíveis. Miller e Rose (2012) ressaltam que as técnicas de governo das condutas e os processos de subjetivação que acompanham esse discurso conduzem à ideia de um sujeito dotado de autonomia, liberdade e capacidade de escolha e autorrealização. Em grande parte das vezes, a intervenção no comportamento dos indivíduos não é direta, mas constituída por mecanismos sutis de governo à distância, como propagandas, falas de especialistas, punições ou incentivos financeiros. As iniciativas também não partem somente do Estado, mas envolvem diversos grupos de interesse, apoiados por profissionais como jornalistas, publicitários, educadores, médicos, gestores culturais, entre outros. Neste ponto, a relação entre o governo de si e dos outros apresenta-se com grande nitidez. Guardadas as especificidades locais e as diferenças históricas, nas racionalidades neoliberais a ênfase não recai sobre um poder soberano, que atua sobre vidas subjugadas, apesar de situações de violência, extrema pobreza e preconceito, infelizmente comuns no mundo contemporâneo. O que os valores neoliberais preconizam, de acordo com o filósofo Peter Pál Pelbart (2013), é o governo de vidas capazes de conduta. Essas ideias parecem abstratas, mas se tornam evidentes no campo produtivo, em que tiveram origem. Cada vez mais a linguagem empresarial reforça características como proatividade, empreendedorismo, criatividade, liderança, sociabilidade e formação de redes. Outro conceito importante é o de capital humano, proposto por Gary Becker nos anos 1970 (como citado em Foucault, 2008) e amplamente adotado por gestores, empresários e economistas. De acordo com a teoria, o investimento 212 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO em si mesmo (em educação, saúde e cultura) passa a ser uma fonte de rendas e um recurso a oferecer no mercado, ou seja, um capital. Vale ressaltar que autores como Adam Smith e Karl Marx (também citados em Foucault, 2008) já mediam o trabalho pelo tempo socialmente necessário à produção das mercadorias. Mas, com o desenvolvimento das indústrias voltadas à comunicação, ao conhecimento, à cultura ou à tecnologia, como as que formam a economia criativa, os saberes e competências dos empregados passaram a ser mais destacados nas relações profissionais. Para Foucault (2008), mais do que uma abordagem de gestão empresarial, o conceito de capital humano aponta para a tendência de interpretar em termos econômicos todo um campo considerado não econômico e, nesse sentido, compõe uma política da vida. Segundo o pesquisador Rogério da Costa (2008), a ênfase no capital humano indica que, para a produção econômica funcionar, já não é suficiente “escavar da terra seus recursos naturais” ou “extrair energia do corpo humano” (p. 64). É preciso buscar recursos na própria subjetividade. Para o autor, a existência do trabalhador está inteiramente implicada na atividade que exerce, o que envolve não somente suas habilidades motoras, mas principalmente sua cognição e afeto. O problema é que nem sempre o capital humano é aproveitado de modo a ampliar as possibilidades da invenção de si, como sugere Veyne (2011), contribuindo para a expansão da potência humana e para a prática da liberdade, em seu sentido mais amplo. Muitas vezes o que se observa é a vida se transformando em mais uma fonte de recursos convertidos em ganhos meramente econômicos. Há, ainda, uma diferença importante: enquanto os recursos naturais e a energia do corpo são finitos, as capacidades de pensar, imaginar ou se relacionar com os outros parecem não ter limites bem definidos. Essa situação se intensifica com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e digitais. Aparelhos móveis constantemente conectados à internet borram os limites entre momentos de trabalho, descanso, educação e lazer, levando a uma condição que Costa (2008) chama de “abuso de si” – no extremo, essa condição pode levar até mesmo a situações de esgotamento, estresse e depressão. De todo modo, a vida acaba se transformando em uma fonte praticamente inesgotável de recursos e, portanto, em um constante objeto de governo. Não é por acaso que essas questões atravessam o campo artístico. Afinal, de modo talvez mais intenso do que o de tantos profissionais, não é a própria vida que um artista investe em seu trabalho? Não são suas percepções sobre o mundo, seus afetos, sua inventividade e fabulação, sua técnica ou virtuosismo, quando não o próprio corpo, que são usados na composição ou na apresentação de uma obra? Na visão de Alpers (2010), não foi justamente a maneira particular de fundir sua vida ao estilo singular de seus quadros que fez de Rembrandt V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 213 Arte e governo da vida um grande pintor? Guardadas as diferenças, em ambientes capitalistas – como a Holanda do século XVII ou os países ocidentais contemporâneos – muitas dessas obras não são transformadas em fontes de recursos financeiros? Não é essa a essência de conceitos como economia criativa ou economia da cultura? Mas seria superficial manter o debate somente no plano econômico. Diversos movimentos, como Arts and Crafts e Bauhaus, e vários autores, entre eles Ruskin (2004) e Schiller (2011), já propuseram, cada um a seu modo, a fusão entre vida e arte. De Fernando Pessoa (com sua profusão de heterônimos) a Sterlac (em performances que levam ao limite a própria vida), incontáveis artistas inventam a si mesmos diariamente. Porém, com intensidade ainda maior, é possível perceber, em algumas tendências do cenário artístico contemporâneo, que aspectos cruciais da vida são vigorosamente investidos na arte: o corpo, questões sociorraciais, discussões sobre gênero, identidades múltiplas, economia e política. Quando um artista negro denuncia o racismo em seus trabalhos, quando uma mulher fala sobre feminismo em suas obras ou quando alunos fazem uma peça de teatro sobre ocupações de escolas públicas, no hip-hop, no grafite, entre tantos outros exemplos, não é a vida mesma, em toda a sua materialidade, em seus lutas e afetos cotidianos, que irrompe e compõe novas estéticas? Canclini (2012) sugere que, em vez de buscar consenso, muitos artistas contemporâneos ouvem as diversas vozes que se elevam na sociedade e imaginam os desacordos. Por isso, mesmo quando parece estar distante das prioridades do governo e da sociedade em geral, é no campo artístico que os anseios e conflitos de nosso tempo se expressam com mais força e nitidez. Em algumas situações, isso é evidente. Em 2017, o artista Wagner Schwartz foi envolvido em uma polêmica após uma criança tocar em seu corpo durante a performance La Bête, em que atuava nu. O episódio levou a um debate tenso sobre corpo, liberdade de expressão e direitos de crianças e adolescentes. No ano anterior, a violência sobre pessoas negras motivara a performance Em legítima defesa (Lima, 2016), que tomou os corredores do Centro Cultural São Paulo após a apresentação dos espetáculos da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Já as questões de gênero são o tema da peça Manifesto inapropriado (Mercadante, 2018), da companhia de teatro Histriônica. Discussões semelhantes permeiam editais e leis de incentivo fiscal, ações de arte-educação, entre outros exemplos. É claro que a produção artística é muito diversa e não pode ser reduzida a uma linguagem e a alguns temas predominantes. No entanto, mesmo nos circuitos mais tradicionais, na dança clássica ou na música de concerto, por exemplo, a vida está investida em ensaios exaustivos, na experiência necessária para certa interpretação de um texto ou partitura, nos estudos e na pesquisa de linguagem. Mais do que isso, investe-se vida nas relações de trabalho, tantas 214 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO vezes precárias, na escolha pelos modos de financiamento, na luta por recursos públicos e privados e na própria decisão de seguir uma carreira. O movimento Profissão artista, realizado no Brasil em 2018 contra a Ação de Descumprimento do Preceito Fundamental 293, a qual propunha a extinção do registro profissional de artista (DRT), ilustra o engajamento da classe e a relevância desses debates (Recaldes, 2018). Afinal, mesmo entendendo que a cultura é tecida de forma coletiva (como na Holanda do tempo de Rembrandt), mesmo discutindo a função do autor (tema tão caro a Foucault), não se pode deixar de notar que, na prática, são suas experiências particulares, suas relações sociais, seus afetos, sua singularidade – essa vida transformada em capital – que um artista investe na criação de suas obras. BENS PÚBLICOS E COMUNS A abordagem do capital humano e da invenção de si aponta para a singularidade de cada artista e para o investimento da própria vida na atividade exercida, seja de forma amadora ou profissional. Por isso, autores como Pierre-Michel Menger (2002) sugerem que os artistas se tornaram uma espécie de modelo para outras categorias profissionais que exigem características como autonomia e criatividade. Esse é um sentido bastante restrito para a ideia de invenção de si. Contudo, não é possível desconsiderar seus desdobramentos, tanto nos conceitos de economia criativa ou economia da cultura (que apostam no trabalho cultural ou criativo para a geração de riquezas) quanto no movimento de profissionalização do campo artístico, que ainda hoje sofre resistência. Kate Oakley (2009) ressalta que apenas em meados do século XX a atividade artística passou a ser tratada como um trabalho propriamente dito, tanto por pesquisadores quanto por gestores e políticos. No Brasil, por exemplo, a Lei 3.857, que cria a Ordem dos Músicos e regulamenta a profissão, foi decretada em 1960. Já a Lei 6.533, conhecida como lei do artista, que regulamenta a profissão de artistas e técnicos em espetáculos e diversões, foi decretada somente em 1978, principalmente como resposta à exploração do trabalho em estúdios de rádio e televisão. No entanto, ainda predomina o trabalho informal, muitas vezes realizado em condições precárias, e persiste a ambivalência entre relações profissionais e vocação ou atividade exercida por prazer. Entender um artista como profissional, que investe em sua potência de invenção e, portanto, em seu capital humano, é um passo importante para criar condições dignas de trabalho e estratégias de sustentabilidade no campo artístico e cultural. Contudo, a ideia de profissionalização do campo artístico – atrelada, por um lado, ao investimento em capital humano e, por outro, à precarização do V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 215 Arte e governo da vida trabalho e às diversas formas de abuso de si – não deve encobrir uma característica fundamental das artes, em particular, e da cultura em geral: seu caráter de bens comuns, que emergem da cooperação entre as pessoas e não se esgotam ao serem consumidos, como quadros ou peças teatrais. Além disso, as artes e a cultura podem ser consideradas bens públicos, que, na linguagem econômica, são não rivais (o uso por uma pessoa não impede o uso por outras) e não exclusivos (não pertencem a ninguém em particular) (Lazzarato, 2006). Essas características fazem da cultura e das artes um direito de todos, que deve ser assegurado pelo Estado assim como saúde e educação, e também uma responsabilidade a ser compartilhada pela iniciativa privada e pela sociedade civil. O Estado pode, por exemplo, realizar ações de fomento para impulsionar artistas emergentes; atuar na regulamentação profissional; reduzir impostos que incidem sobre a área; incentivar a formação de público, em conjunto com o campo da educação; e insistir nas parcerias entre governo federal, estados e municípios. Cabe à iniciativa privada investir em artistas e equipamentos culturais, por meio de doações, fundos patrimoniais e outras ações. Já o público pode colaborar frequentando os espaços culturais de sua região, pagando ingressos ou comprando obras a preços justos, acompanhando e cobrando ações da iniciativa pública e privada. Também é papel dos artistas e produtores lutar por políticas públicas e financiamentos para a área. É preciso, ainda, tomar cuidado para essas ideias não levarem a iniciativas de democratização cultural que, embora efetivas, acabam impondo exclusivamente alguns padrões estéticos, como a música de concerto ou a pintura clássica. É fundamental que todos possam ter acesso a essas linguagens artísticas, não como um padrão hegemônico ou ideal, mas como fruto da potência de criação humana, tal qual as descobertas científicas e invenções tecnológicas. Ou seja, é preciso compreender as artes e a cultura como bens públicos e comuns, que se expandem a partir do compartilhamento, compõem-se em invenções e criam comunidades ou redes que ultrapassam limites espaciais e temporais (Lazzarato, 2006) – e, nesse sentido, almejam a universalidade. Mas para chegar a esse entendimento é imprescindível que a produção local e contemporânea não seja somente tomada como fonte de riquezas (como capital), mas também apropriada pelos diversos grupos que compõem a sociedade, fazendo parte de suas práticas e discursos cotidianos. Afinal, a arte contemporânea emerge dos afetos e percepções de nosso próprio tempo e lugar; por isso, está diretamente implicada na vida de cada um. A ênfase na produção artística e cultural contemporânea não pode deixar de considerar, ainda, as diferentes linguagens, a singularidade de cada artista ou coletivo e as disputas encerradas por essas questões. Tais temas são especialmente 216 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO visíveis quando o trabalho artístico é entendido como um investimento na própria vida, como capital humano ou invenção de si, conforme propõe este artigo. No entanto, o interesse pela vida pode levar a uma situação que muitas vezes conflita com a proposta dos bens públicos e comuns: o reforço das questões identitárias, quando os dispositivos de poder e saber produzem sujeitos excessivamente atrelados a características sociorraciais, biológicas, de gênero, entre outras (Costa, 2014). No caso das artes e da cultura, essas identificações podem levar, ainda, à concorrência exacerbada entre linguagens artísticas, diversos estilos e correntes de atuação. Miller e Rose (2012) sugerem que, no neoliberalismo, as redes formadas a partir de interesses compartilhados substituem uma sociabilidade baseada em direitos e deveres coletivos. Por isso, há o risco de o padrão competitivo adotado por muitos grupos identitários acabar impedindo a construção de uma base comum de linguagens, percepções e afetos – fundamental para o fomento às artes se tornar uma das prioridades das políticas públicas e figurar entre os principais interesses da população, não como uma proposta hegemônica, mas em um ambiente de convivência e trocas, que abra espaço para a invenção de si e para a afirmação das diferenças. Essas questões tangenciam muitas pesquisas empreendidas pelos estudos culturais, que apresentam pontos de convergência e divergência com as ideias de Foucault. O debate também leva, mais uma vez, aos conceitos de biopolítica e governamentalidade, adotados por Bennett (1998). Se, em geral, os estudos culturais enfatizam o caráter de resistência das linguagens artísticas e dos diversos modos de vida perante uma cultura hegemônica, Bennett (1998, 2018) sugere que as próprias tecnologias de governo, em grande parte, produzem o campo cultural. UM CAMPO DE GOVERNO No artigo “Cultural Studies: Two paradigms”, Stuart Hall (1980) chega a considerar a obra de Foucault, ao lado das correntes culturalista e estruturalista, uma das principais fontes de influência para os estudos culturais. De fato, essa linha de pesquisa fragmentada e multidisciplinar deslocou o olhar da tradição estética, entendida como um ideal de perfeição, para temas como representações, identidades, subjetividades e autoridades, presentes nos múltiplos grupos sociais. Esses interesses certamente encontram ressonância em algumas ideias de Foucault. De todo modo, Hall parte de um contexto bastante específico: o debate sobre as noções marxistas de infraestrutura e superestrutura. O conhecido conceito de “cultura” como “modo de vida” (whole way of life), proposto por Raymond Williams (1967), por exemplo, deriva de uma visão antropológica V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 217 Arte e governo da vida 2 No original: “specific activities of men in real social and economic relationships . . .”. Esta e demais traduções da autora. 3 No original: “its own internal structures are highly complex”. 4 5 No original: “have continually to be renewed, recreated and defended”. No original: “a central system of practices, meanings and values, which we can properly call dominant and effective”. 6 No original: “deeply saturating the consciousness of a society”. 218 que o autor pôde compatibilizar com o marxismo justamente em razão de seu posicionamento crítico em relação a essas noções. Contrário à visão reducionista da obra de Marx que afirma que as relações de produção determinam as práticas culturais, Williams (1973) sugere uma releitura. Para o autor, a base ou infraestrutura não deve ser entendida como uma abstração econômica ou tecnológica invariável, mas como um conjunto de “atividades específicas do ser humano em relações sociais e econômicas reais”2 (p. 6), que estão sempre em estado dinâmico e, portanto, são sujeitas a todo tipo de contradições. Embora as relações produtivas ou econômicas exerçam pressão e definam alguns limites, a superestrutura não deve ser vista como mero reflexo da infraestrutura. Portanto, cultura não é apenas uma prática entre tantas outras ou simplesmente o conjunto de usos e costumes de uma sociedade, mas algo que perpassa todas as práticas sociais, a soma de suas inter-relações. Porém, como ressalta Hall (1980), a noção de cultura sugerida por Williams não pode ser corretamente compreendida sem que se leve em conta a luta entre os diferentes modos de vida em uma sociedade. Essa abordagem se estrutura e adquire densidade principalmente a partir do conceito de hegemonia, que Williams extrai da obra de Antonio Gramsci (1982), mas o desdobra, levando-o às últimas potencialidades. No ensaio “Base and superestructure in Marxist cultural theory”, escrito em 1973, essas ideias são apresentadas com maior clareza. Embora reconheça a grande contribuição de Gramsci e a profundidade com que tratou do tema, Williams lamenta que as discussões em torno da ideia de hegemonia tenham reduzido a noção a algo simples, uniforme e estático, como havia ocorrido com o conceito de superestrutura. Ele também enfatiza que a cultura hegemônica não é singular, pois suas “estruturas internas são bastante complexas”3, devendo ser constantemente “renovadas, recriadas e defendidas”4 (Williams, 1973, p. 8). Seu modelo teórico prevê, então, um “sistema central de práticas, significados e valores, que podem ser apropriadamente chamados de dominantes ou efetivos”5 (pp. 8-9). A rede educacional, os equipamentos culturais, os meios de comunicação, entre outros recursos, contribuem para transmiti-los amplamente. Valores e sentidos alternativos podem ser acomodados e tolerados na sociedade, desde que não ultrapassem certos limites. Por sua vez, a possibilidade de uma efetiva oposição depende da articulação de forças políticas e sociais. Há uma constante reafirmação da cultura hegemônica, de modo a alcançar uma espécie de “profunda saturação da consciência social”6 (p. 8), a formação de um consenso. Para Bennett (1998), em alguns pontos o pensamento de Foucault apresenta similaridades com essas ideias. A ênfase em práticas cotidianas e interações sociais é comum a ambas as abordagens. Por sua vez, as leituras sobre o regime V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO liberal teriam afinidade com a noção de hegemonia, uma vez que repousam sobre a necessidade de os indivíduos seguirem voluntariamente normas de ação e pensamento por meio do governo de si. O autor refere-se ao conceito proposto inicialmente por Gramsci (1982), mas a comparação fica mais precisa considerando a formulação de Williams (1973), que desloca o debate para o interior do próprio sujeito: segundo o autor, a cultura hegemônica “constitui um sentido de realidade para a maioria das pessoas”7, além do qual se torna “muito difícil mover-se”8 (p. 9). Era precisamente no interior desse debate que Hall (1980) se referia ao trabalho de Foucault, cujo efeito sobre os estudos culturais foi tomado como “positivo”: “suspendendo o problema quase insolúvel da determinação, Foucault tornou possível um retorno à análise concreta de formações ideológicas e discursivas particulares e dos lugares de sua elaboração”9 (p. 71). Mas a abordagem de Foucault também trouxe novas questões: ao abandonar a centralidade da luta entre classes sociais e investigar os modos como as relações de poder se espalham pela sociedade, o filósofo afastou-se do marxismo, apontando caminhos para as pesquisas sobre identidades, diversidade cultural, comunidades, entre outros temas que permeiam o trabalho das novas gerações dos estudos culturais. Por outro lado, essa mesma tendência marca uma ruptura com os pioneiros da área, que não chegaram a abandonar por completo a noção de determinação. Para Hall (1980), este era um ponto crítico: Foucault suspendeu o julgamento de modo tão resoluto e adotou um ceticismo sobre qualquer determinação ou relação entre práticas, entendidas como totalmente contingentes, que o vemos não como agnóstico, mas como profundamente engajado com a necessária não correspondência entre as práticas. Desse ponto de vista, nem a formação social nem o Estado podem ser adequadamente pensados10. (p. 71) Bennett (1998) concorda que, apesar do paralelo possível, há um ponto crucial no qual cessam as semelhanças entre o pensamento de Foucault e as ideias de Gramsci que inspiraram gerações de pesquisadores em estudos culturais: o entendimento sobre o Estado e a formação social. Se Gramsci insiste na criação de um consenso nas sociedades democráticas, cujo objetivo seria reforçar o poder dos grupos dominantes, Foucault enfatiza o desenvolvimento de formas de governo que “vão além do problema da obediência política para substituí-la por conhecimentos, regulamentações e mudanças nas condições de vida da população”11 (como citado em Bennett, 1998, p. 70). Os objetivos dessas técnicas de governo podem ou não convergir, assim como podem ou não corresponder a interesses de classes, uma vez que envolvem múltiplos atores V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 7 No original: “constitutes a sense of reality for most people”. 8 No original: “beyond which it is very difficult for most members of the society to move”. 9 No original: “in suspending the nearly insoluble problems of determination Foucault has made possible a welcome return to the concrete analysis of particular ideological and discursive formations, and the sites of their elaboration”. 10 No original: “Foucault so resolutely suspends judgment, and adopts so thoroughgoing a scepticism about any determinacy or relationship between practices, other than the largely contingent, that we are entitled to see him, not as an agnostic on these questions, but as deeply committed to the necessary non correspondence of all practices to one another”. 11 No original: “goes beyond the problematic of political obedience to replace it with a concern with knowing, regulating and changing the conditions of the population”. 219 Arte e governo da vida 12 No original: “the ways in which the relations between persons and cultural resources are organised within the context of particular cultural technologies, and the variable forms of work on the self, or practices of subjectification, which such relations support”. 220 sociais. No campo artístico, por exemplo, entram em cena interesses – muitas vezes divergentes – de governos, organizações não governamentais, fundações, centros culturais, cooperativas, associações, movimentos organizados, entre outros. São instituições e profissionais que criam estratégias com propósitos distintos, buscando influenciar as condutas dos artistas e do público em geral. Segundo Bennett (1998), essas diferenças teóricas deslocam o debate, afastando-se da perspectiva de resistência cultural em relação a um domínio hegemônico e aproximando-se de análises concretas de um campo “altamente governamentalizado”. A influência exercida pelo livro The Foucault effect: Studies in governmentality (Burchell, Gordon & Miller, 1991) é considerada um marco da nova abordagem, que volta a atenção “aos modos como as relações entre pessoas e recursos culturais são organizados no contexto de tecnologias culturais particulares e às formas variáveis de trabalho sobre si, ou práticas de subjetivação, suportadas por essas relações”12 (Bennett, 1998, p. 71). Partindo da ideia sustentada por Foucault de que a história emerge de uma rede de acontecimentos contingentes, Bennett sugere que a cultura deve ser estudada não somente pelo viés ideológico, mas principalmente em suas questões cotidianas, densamente históricas, e relações de poder particulares. Em uma coletânea mais recente, Bennett (2018) apresenta uma série de exemplos. O autor analisa o papel que alguns museus, como o South Kensington, na Inglaterra, exerceram no século XIX, ao mesmo tempo como dispositivos disciplinares e complexos exibicionistas. Para ele, esses e outros equipamentos culturais, como teatros e bibliotecas, eram pensados como “maquinações cívicas” e buscavam moldar as condutas das classes mais baixas da população de acordo com padrões de comportamento vigiados por todos os visitantes desses espaços: permanecer sóbrio, andar devagar, contemplar as obras, entre outros. Bennett também cita locais vistos como “máquinas de modernidade”, a exemplo do Musée de l’Homme, em Paris. Construídos para que seus visitantes percebessem a teoria evolucionista, em voga no início do século XX, esses museus reforçavam a distinção biopolítica entre sociedades primitivas e modernas (as últimas sendo vistas como as mais avançadas, como um ideal a ser alcançado pelas demais). Outras leituras do autor adotam os conceitos de territorialização e desterritorialização, de Deleuze e Guattari, para verificar o papel das técnicas de governo em contextos coloniais. Um exemplo são as negociações que foram necessárias para formar a coleção de museus coloniais na Nova Zelândia. Mais do que relações de hegemonia ou ações de resistência, o que se observa são técnicas biopolíticas e de governo que não somente se relacionam com a multiplicidade de identidades e culturas, mas também contribuem para produzi-las. Muitas dessas técnicas são baseadas em questões sociais, outras apostam V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO na estética como técnica de si. De todo modo, o importante é perceber que elas sempre são fruto do entrecruzamento de interesses diversos, de negociações constantes e das disputas por sentidos. Certamente há setores mais fortes da sociedade com interesses econômicos ou políticos que se opõem aos grupos minoritários, muitas vezes tornando o jogo de forças profundamente desigual. No entanto, as relações de poder nunca são unilaterais – o que, por outro lado, permite aos setores menos favorecidos manifestarem também a sua potência13. Além disso, vale repetir, há uma rede de instituições e de profissionais, com interesses muitas vezes divergentes, que buscam governar as condutas, assim como há várias comunidades que se formam a partir de fatores os mais diversos, como modos de vida, hábitos culturais, questões sociais e econômicas, aspectos profissionais, condições de saúde, entre outros14. Especificamente no campo artístico e cultural, essas forças se articulam para produzir tanto as próprias obras e linguagens quanto condições profissionais de trabalho e políticas públicas para a área. 13 Aqui é possível propor uma relação com as obras de Gramsci (1982) e Williams (1973). 14 Também é possível traçar um paralelo com o conceito de intelectual abordado por Gramsci (1982). MOVIMENTOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS NO BRASIL Tendo em vista a discussão empreendida até aqui, é possível afirmar que as políticas culturais brasileiras não refletem somente inclinações ideológicas e político-partidárias, por um lado, ou princípios de gestão cultural, por outro. Embora esses fatores sejam fundamentais, eles se misturam às conjunturas internacionais, às condições econômicas, ao mercado e aos movimentos da sociedade civil. Em suas articulações, todos esses elementos concorrem para a constituição de campos de governo, os quais envolvem interesses ora convergentes, ora divergentes. Em alguns períodos históricos, a cultura alcança protagonismo, como no início dos anos 2000, marcados pela aposta em ideias como economia criativa e economia da cultura. Em outros tempos, especialmente nos de recessão, parece que essas questões ficam em segundo plano. Mas, de uma forma ou de outra, elas estão presentes na sociedade e fazem parte do emaranhado de estratégias e técnicas de governo da vida, as quais incidem diretamente sobre os artistas e trabalhadores da cultura e, em um segundo momento, sobre o público e a sociedade em geral. A propósito, após um período de crescimento, os investimentos em artes e cultura caíram no Brasil, especialmente a partir de 2016. A Medida Provisória 870, publicada em 2 de janeiro de 2019, extinguiu o Ministério da Cultura, transformado em uma secretaria especial do Ministério da Cidadania, que abrange também programas nas áreas sociais e de esportes. Em 2018, a disputa presidencial que elegeu um governo conservador despertou uma visão crítica sobre a Lei V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 221 Arte e governo da vida 15 No Brasil, a economia criativa responde por aproximadamente 2,6% do produto interno bruto, segundo a Firjan (2016). 222 8.313, de 23 de dezembro de 1991, principal mecanismo de financiamento de projetos artísticos no país, baseado em renúncia fiscal. Investimentos públicos e privados na área cultural sofreram cortes, e muitos artistas consagrados ou em início de carreira tiveram seu trabalho contestado. Contudo, em decorrência da exposição do tema nos meios de comunicação e nas redes sociais, muitos grupos artísticos e culturais (alguns de viés mais progressista e outros de caráter conservador) se articularam, formularam novos enunciados e propuseram novas ações. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, a frequência aos museus aumentou 61% (Matos, 2019). Entre os principais motivos estão justamente a reação aos cortes de orçamento e as exposições que destacam minorias e grupos pouco representados. O retorno ao discurso sobre a economia criativa ou da cultura também foi em grande parte alavancado pela recessão iniciada em 2016. Um exemplo é a campanha federal Cultura gera futuro, lançada em 2018, certamente inspirada nas políticas britânicas e australianas do final da década de 1990 e dos anos 2000 (Torres, 2018). O objetivo da campanha era mostrar como os setores culturais e criativos podem gerar ganhos econômicos. Na mesma linha, eventos como o Mercado das Indústrias Criativas do Sul (MIC Sul), criado em 2014 e realizado a cada dois anos por gestores culturais da América Latina (IMS, 2018), também reforçam a circulação de bens culturais entre os países com o objetivo de promover desenvolvimento econômico e social15. Essa tendência contribui para a produção de um campo artístico pautado, em diversos aspectos, pela linguagem empresarial e financeira, que vê no artista a figura do empreendedor de si. Como dito anteriormente, embora seja uma característica importante das artes e da cultura no mundo contemporâneo, esse modo de olhar deixa pouco espaço para a potência de invenção, para a multiplicidade e para as diferenças. Misturam-se nesse cenário movimentos sociais e artísticos que ganharam força nos anos 1990 e que contribuíram para o desenvolvimento de muitos modelos de fomento em vigor até hoje no país. O movimento Arte contra a Barbárie, por exemplo, lançado em 1999, reuniu grupos teatrais de São Paulo que se opunham aos critérios de seleção de projetos artísticos adotados pela Lei de Incentivo (Lei 8.313/1991). A proposta levou à criação de novos mecanismos, como o Programa Municipal para Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo (Lei 13.278, de 8 de janeiro de 2002) e o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) (Lei 13.540, de 24 de março de 2003), também da prefeitura de São Paulo. A articulação de profissionais da dança, ainda em São Paulo, levou à Lei de Fomento à Dança (Lei 14.071, de 18 de outubro de 2005), da Secretaria Municipal de Cultura. Em âmbito nacional, movimentos civis contribuíram para a elaboração de editais de ocupação dos espaços culturais V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO da Fundação Nacional de Artes (Funarte) no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte e em Brasília. Desde o final dos anos 1990 também se intensificaram movimentos artísticos ligados a questões sociorraciais ou de gênero. Em um artigo no qual mistura fundamentações acadêmicas à sua própria vivência, o artista e pesquisador Salloma Salomão (2016-2017) cita movimentos periféricos que ganham força em grandes cidades brasileiras, como saraus artísticos-literários (entre eles, o Sarau do Binho, na região de Campo Limpo, São Paulo), a literatura negra (que tem entre seus expoentes o escritor Paulo Lins), a música e o teatro de matrizes africanas (como os produzidos pela Capulanas Companhia de Artes Negras). Salomão cita, ainda, outros grupos e artistas que se destacam no país, como Racionais, Pedro Vaz e Chico Science. A afirmação dessas linguagens não se dá sem conflitos, como ressalta o autor. Mas os movimentos em si são fundamentais para a constituição de um campo político e cultural que contribui para o debate público e leva a ações de governo, como o financiamento de projetos voltados a mulheres, negros, membros da comunidade LGBTQUIA, entre outros grupos de interesse, seja por meio de editais, prêmios ou mecanismos de renúncia fiscal. Uma iniciativa que busca ampliar essa potência é a Política Nacional de Cultura Viva (Lei 13.018, de 22 de julho de 2014). Seu carro-chefe são os pontos de cultura, entidades e coletivos que desenvolvem atividades em suas comunidades e redes, sendo certificados pelo governo federal. Além de garantir uma chancela institucional, esse reconhecimento permite que os pontos de cultura participem de editais municipais, estaduais e federais para a obtenção de recursos financeiros. A base dessa política não é a democratização cultural, porque não parte da proposta de dar acesso aos grandes cânones da arte e da cultura universal. Ao contrário, a ação valoriza os fazeres artísticos e culturais próprios das comunidades, a estética e as linguagens que dizem respeito à vida dos diversos grupos sociais. Retomando as ideias de Bennett (1998), as políticas culturais, assim como a configuração do campo artístico, são fruto de relações de poder, de ferramentas e técnicas de governo, que podem ou não resultar em leis, editais e outros mecanismos de fomento. Embora as dificuldades financeiras e sociais persistam, essa dinâmica tem sido fundamental para a criação de trabalhos com grande qualidade estética, como lembra Salomão (2016-2017), e para a afirmação de grupos minoritários, que encontram oportunidades para produzir e difundir suas obras. Este artigo avança no debate, sugerindo que artistas e outros profissionais da cultura investem nessas ações todo o seu capital humano, sua potência de invenção e, portanto, a própria vida. De fato, nos últimos anos as políticas públicas brasileiras privilegiaram o fomento à produção artística e V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 223 Arte e governo da vida cultural, contribuindo para fortalecer os movimentos civis, especialmente em São Paulo. Porém, esse mesmo cenário muitas vezes se apresenta como um ambiente fragmentado em que as correntes artísticas concorrem por financiamento e acabam se fechando em seus próprios circuitos. O problema é que nem sempre as parcelas da população que não estão diretamente envolvidas com essas redes atribuem sentido à sua produção artística e cultural, o que acaba provocando um grande distanciamento do público. De acordo com a pesquisa Cultura nas capitais: Como 33 milhões de brasileiros consomem diversão e arte (Leiva & Meireles, 2018), 30% da população das capitais brasileiras nunca foram a um museu e 37% nunca frequentaram teatro. Cerca de um quinto dos entrevistados nunca entrou em uma biblioteca e a maioria nunca foi a saraus ou concertos. Para ultrapassar essas barreiras, fomentar o trabalho artístico não é suficiente. Se os hábitos culturais da população não forem ativos e consistentes, a produção artística perde sua sustentabilidade e acaba entrando em um ciclo negativo de falta de investimentos e baixos retornos sociais e financeiros, como vem ocorrendo nos últimos anos. Contudo, transformar os hábitos da população não é uma tarefa fácil e envolve diversos fatores, da educação formal às questões socioculturais. É certamente um trabalho de longo prazo, que exige grande investimento em políticas públicas, o que não será discutido aqui. Para os propósitos deste artigo, é suficiente reforçar que as artes só farão parte dos hábitos da população quando as percepções e os afetos que elas carregam, as forças que mobilizam e as disputas que acionam forem compartilhados e estiverem implicados não somente na vida de artistas e trabalhadores do setor cultural, mas principalmente no cotidiano do público, dos políticos e dos gestores. Assim como os artistas investem em si mesmos para criar obras, é preciso investir no capital humano e cultural para formar o público – e esse é um dos grandes papéis da educação. Porém, mais do que isso, é preciso mapear esse campo de governo e a realidade que ele produz. Somente quando os diversos grupos sociais estiverem de fato incluídos nos circuitos da arte e souberem atribuir sentidos a essa realidade, a produção artística e cultural será tomada verdadeiramente como um bem público e comum. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se Veyne (2011) ressalta que os sujeitos são constituídos pelos dispositivos de cada época, não é para reforçar uma leitura determinista da obra de Foucault, mas para mostrar que as verdades podem ser compreendidas e – por que não? – desfeitas, se soubermos nos afastar por alguns instantes dos discursos em 224 V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 SHARINE MACHADO CABRAL MELO EM PAUTA NAS PESQUISAS DE COMUNICAÇÃO que estamos imersos e olhar para a trama de acontecimentos contingentes da história, que compõem nosso presente. Do mesmo modo, as artes e a cultura de nosso tempo só serão valorizadas se governos, instituições, profissionais e os diversos grupos sociais souberem ao menos mapear os jogos de forças que atravessam o campo ou, como sustenta Bennett (1998), os problemas cotidianos de uma área profundamente governamentalizada. Mas o que, de fato, é objeto de governo no campo artístico atual, especialmente no Brasil? Em meio a um emaranhado de práticas e discursos os mais diversos (das galerias com visibilidade internacional às ações locais de arte-educação), um sentido se destaca: a vida que, com tanta intensidade, é investida na arte. É essa vida que transforma em obras o dia a dia das periferias e dos centros, expõe questões de gênero e sociorraciais, organiza movimentos políticos, luta por recursos públicos e privados e – o mais importante – inventa a si mesma, amplificando as vozes, tantas vezes dissonantes, da sociedade. É possível listar uma série de motivos pelos quais o fomento às artes e à cultura é importante: educação, transformação social, geração de emprego e renda, direito à fruição estética e ao lazer, formação de comunidades, entre tantos outros. Mas Veyne (2011), quando se refere a Foucault, remete a algo mais: uma profunda curiosidade, certo fascínio por tudo o que o ser humano produz, sempre em meio às contingências da história e às condições de possibilidades que emergem de seu próprio tempo. Se, para Foucault, tudo o que existe foi feito e pode ser desfeito, há sempre uma possibilidade de invenção, a qual se manifesta em construções arquitetônicas, conceitos filosóficos, técnicas de governo e no próprio sujeito. Ora, as artes e a cultura, o trabalho com as linguagens, são uma bela expressão dessa potência humana, como mostram as obras de grandes artistas, entre eles Rembrandt. Por isso, os atos de criar e difundir signos estão presentes nas mais diversas sociedades, contribuindo de diferentes modos para dar sentido à vida. Por si só, esse é um motivo fundamental para estarem entre as principais responsabilidades tanto do poder público quanto da iniciativa privada. Mas, para isso, é necessária uma base comum de percepções e afetos que faça as artes e a cultura serem entendidas como bens públicos, pertencentes a todos e que, em suas diferenças, dizem respeito à vida de cada um. Talvez o melhor caminho para isso ainda seja o investimento integrado em cultura e educação, capaz de criar possibilidades para além do capital humano – essencialmente econômico – e de abrir espaço, dentro das condições de nossa época, para a invenção consciente de si e de uma parte do mundo à nossa volta. M V.13 - Nº 3 set./dez. 2019 São Paulo - Brasil SHARINE MACHADO CABRAL MELO p. 205-228 225 Arte e governo da vida REFERÊNCIAS Alpers, S. (2010). O projeto de Rembrandt: O ateliê e o mercado (V. Pereira, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Benjamin, W. (2008). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad.). São Paulo, SP: Brasiliense. Bennett, T. (1998). 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