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Desaparição e Fantasmas

In: No Coração do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012

O desejo de desaparecer é menos como fuga da dor e mais um desejo de leveza, de ser outro. Por mais belo que tenha sido o vivido, sua lembrança, é preciso esquecer. Por mais difícil e desejado, é preciso esquecer. Buscar outras companhias, para poder lembrar um dia (quem sabe?) de outra forma, totalmente inusitada, inesperada. A Stella Manhattan, Dulce Veiga, Caio F., aos personagens de Shinji Aoyama, Hirokazu Koreeda e Tsai Ming Liang se junta um outro fantasma, o de Paulo Leminski, que resmunga pelas ruas de Curitiba ou no romance Fantasma (2001), de José Castello. Talvez não seja de todo um mal. “Um dia sobre nós também/vai cair o esquecimento/como a chuva no telhado/e sermos esquecidos/será quase a felicidade” (LEMINSKI, 1991, p. 91). Quase.

Desaparição e Fantasmas Atravessado por tantas imagens, sons, informações, pessoas, o que resta desse constante processo de desaparição? Do risco de se perder a qualquer momento? Perder no mundo, perder de si, daqueles que amamos e nos amaram, daqueles que se importam. Perdido na procura, imerso no desejo. Música da indiferença Coração tempo ar fogo areia Silêncio avalanche de amores Cobre suas vozes e que Eu não me escute mais Me calar Samuel Beckett “Musique de l’ indifference/ coeur temps air feu sable/du silence éboulement d’amours/couvre leurs voix et que/je ne m’entende plus/me taire” (Samuel Beckett). Me calar, mas antes e por alguns momentos muito breves, ainda falar mais um pouco. Falar do morto, do que morre constantemente. Afetos. Fantasmas. Afinal, não seria a morte apenas e tão só a última desaparição? Nossa busca começa por Stella Manhattan, romance de Silviano Santiago (1985), que se passa em 1969, enquanto a ditadura militar tornava-se mais e mais selvagem no Brasil, entre um grupo de brasileiros em Nova Iorque. Uma ilha brasileira na ilha de Manhattan. “É à, na margem colonial que a cultura do Ocidente revela sua ‘diferença’, seu texto-limite, assim como sua prática de autoridade” (H. Bhabha apud HOLLANDA, 1991, p. 177). Tais margens não se restringem mais a uma divisão Norte/Sul, centro/periferia, elas podem estar no fim do bairro, nos limites do corpo. Nesse espaço, onde o olhar impera, os personagens são também verdadeiras ilhas em movimento, talvez fosse melhor dizer, fluxos em constante (des)encontro. Estes personagens-dobradiças se constituem em verdadeiras metáforas da realidade midiática, cotidiana, onde cada pessoa quer brilhar ainda que por um breve momento, como uma star. “Personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade” (SÜSSEKIND, 1993, p. 240). Nova Iorque se constitui em labirinto multicultural para personagens não mais individualizados, mas fantasmas periclitantes. História e imaginário se fundem indissoluvelmente, questionando mesmo a dimensão do referencial. O jogo de máscaras atinge seu cume de complexidade no protagonista. Três máscaras: Stella Manhattan, o funcionário do consulado brasileiro em Nova Iorque, Eduardo Costa e Silva, e a empregada Bastiana. Não se trata de heterônimos ou duplos resultantes de uma fratura interior do personagem, mas máscaras móveis, em diálogo, representadas pela fala, mais do que por uma caracterização psicológica. Sexos diferentes, comportamentos diferentes num só, fluxos em curto-circuito. O drama do protagonista se explicita à medida que seu sentimental apego se contrapõe à lógica dura de Marcelo (SANTIAGO, 1985, p. 184-185), este representa diferentes papéis sem que um interfira no outro. Já Eduardo é um sentimental numa época em que os sentimentos são racionalizados, mortos com uma velocidade estonteante. O confronto entre memória e olhar, central para a obra de Silviano Santiago e para repensar as possibilidades da narrativa contemporânea, é encenado uma vez mais: o personagem que lembra/o mundo que o esquece. Stella é um personagem entre a melancolia e um jogo de máscaras. A consciência se torna olhar em crise em face de um mundo simulacral. O drama do efêmero se completa com o da experiência sexual, na voz de Marcelo: “a principal característica da bicha hoje [entendamos 1969] é a de uma constante busca de estilo próprio” (ibidem, p. 212). A falta de identidade leva à procura de uma subjetividade via espetacularização de si mesmo, sempre, no entanto, precária, posto que mutante. Acentua-se a fragilidade do protagonista pelo desafio do deslocamento entre as malhas da repressão cotidiana. Não devemos esquecer que ele foi “exilado” em Nova Iorque pela família e nem dos ecos vindos da ditadura militar no Brasil. Stella/Eduardo memoriosa, sentimental, confirma sua diferença frente à maioria silenciosa e à minoria inserida numa prática política de esquerda tradicional. Jogado no cotidiano, cada dia é cada dia, “passado e história são coisas que só interessam aos heterossexuais” (ibidem, p. 231). Não há mais tempo para lembrar. Stella Manhattan representa o predomínio da fantasia, da ficcionalização do real em contraste com escleroses políticas e sexuais, que assumem posições rígidas, imobilizadoras. Stella está livre da prisão de outros olhares, mas sofre num mundo de fugacidades Seu corpo se quer anti-histórico, só deseja o agora concreto. O imagético contra o discursivo. No decorrer da narrativa, Eduardo desaparece gradualmente. Corpo de neon. Os vínculos com outros personagens vão se rompendo. A perda completa das referências vêm simbolicamente com o telefonema do Cel. Vianna, adido militar no consulado brasileiro, mais conhecido como Viúva Negra, que afirma o fato de Sérgio não ser pai de Eduardo. Aí se dá a ruptura definitiva da comunicação entre Eduardo e o mundo. No desenraizamento, na última perda do vínculo com a família, a leveza da solidão mais plena. Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado. Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. (...) O doce prazer de deixar o nada existir. A pluma ao vento não quer saber dos quatro pontos cardeais, e se quisesse, de nada adiantaria (ibidem, p. 231). O fim de Eduardo é o vazio, a rarefação. No entanto, o mistério de Stella não é o de seu simples desaparecimento, em suas várias versões, mas de como o visível se torna opaco, uma máscara na frente do nada. O desaparecimento de Stella revela a dificuldade da encenação social e do simulacro na sociedade de massas, em que a intimidade se vê invadida e o espaço público, desvalorizado. As possibilidades do jogo que vivificam a subjetividade pelo uso de máscaras reside na compreensão da natureza imagética da sociedade contemporânea. A máscara não é disfarce de um vazio existencial, mas uma tática de coexistir na qual o primado é o da velocidade. Há um confronto permanente entre o desejo de pertencimento e a deriva, entre narcisismo e tribalismo. Seu centramento na vida pessoal é difícil de ser mantido frente às mudanças do mundo exterior. Stella Manhattan é uma Mme. Bovary contemporânea. Em Nova Iorque, deseja a praia, o sol do Rio de Janeiro, e Ricky, em quem ela vê um James Dean reencarnado, a possibilidade de uma grande paixão, e não um mero michê. Stella Manhattan é um romance de ilusões perdidas, de uma formação (Bildung) frustrada, ou talvez de uma impossibilidade contemporânea em articular satisfatoriamente o efêmero e o durável nas relações intersubjetivas. Stella, no fim, pode dizer “agora sou uma estrela”, ainda que ela tivesse morrido numa prisão norte-americana, violentada pelos presos (uma das versões do fim). Stella, de fato, não morre, ela desaparece nas palavras dos outros personagens. Seu corpo se dispersa. “Viado não morre, vira purpurina” (Laura de Vison). Seu desaparecimento pode nos oferecer, se não um caminho, pelo menos uma pista para reavaliar a invisibilidade. Se a invisibilidade comumente tem um sentido negativo num primeiro momento de uma política de identidades, talvez agora ela possa significar algo diferente. Ser invisível numa sociedade consumista pode ser uma maneira de fazer uma diferença pela pausa e sutileza. Numa sociedade em que tudo, todos devem ser visíveis a qualquer custo, incluindo mais e mais diversos grupos minoritários, mesmo a transgressão e a diferença são apenas estratégias de marketing. Por certo, invisibilidade não significa se esconder, fugir da realidade, mas simplesmente uma forma de enfrentar o poder corrosivo do simulacro, o excesso de imagens e signos, cada vez mais desprovidos de sentido. A desaparição em Stella Manhattan pode ser melhor compreendida não tanto por razões políticas relacionadas aos regimes autoritários latino-americanos. É algo mais comum. As pessoas desaparecem todo dia, se perdem, não voltam pra casa. Basta ler os jornais. A desaparição seria, então, uma outra maneira de viver, de se reinventar. A desaparição está sempre em constante tensão com a visibilidade, nos seus vários sentidos, seja político, cultural, comercial ou existencial. Como então desaparecer? Não é só uma questão de saber como lidar com a imagem pública como no caso de pop stars e politicos. É algo mais amplo. A invisibilidade tem menos a ver com o fascínio romântico por outsiders do que por apontar para uma subjetividade-paisagem formada pelos fluxos do mundo, sem, contudo, aderir rapidamente às superteorizações dos sujeitos nômades e pós-humanos. É só uma questão de deixar o mundo exterior ser o interior, a superficialidade ser a profundidade. Desaparecer para reaparecer. Aparecer para desaparecer. Uma brincadeira de pique e esconde. Esta busca, iniciada com Stella Manhattan, é uma busca por fantasmas, por invisibilidade. Agora o silêncio não significa mais morte. Clamar por uma nova invisibilidade não significa autorrepressão, voltar a um momento anterior a uma política de identidades necessária e eficiente na conquista de direitos, mas pensar para além, para o futuro. Trata-se de buscar menos confronto e mais sutileza diante do crescente uso conservador das políticas de representação por movimentos religiosos e étnicos fundamentalistas, uma estratégia que privilegie e amplie o necessário diálogo com outros sujeitos na esfera pública, onde é esperado um confronto, uma luta, uma mudança de posição. Onde é esperado o grito, baixar a voz. Desaparecer é o que vai perseguir a ficção de Caio Fernando Abreu, nos seus últimos anos, à sombra da AIDS, até sua morte em 1996. Sobrevivente dos anos de 1970, ele se reinventa. Ao invés da mitificação da margem, celebração da diferença, armadilha da confissão, algo mais sutil e delicado. A invisibilidade seria um sinal de modéstia, como o protagonista de Onde andará Dulce Veiga? (1990) descobre. No início do romance, ele vive sua invisibilidade social como mediocridade e fracasso. Quando ele consegue um emprego num jornal de quinta categoria, sua primeira grande matéria foi a de procurar por Dulce Veiga, cantora que desaparecera muito tempo atrás, nos anos de 1970 talvez. Ela some quando iria se apresentar no show que a consagraria como um dos grandes nomes da música popular brasileira. Ela não aparece e nunca mais se teve notícia dela. Subitamente Dulce Veiga, que tinha sido entrevistada pelo jornalista ainda jovem numa de suas primeiras reportagens, começa a aparecer em vários lugares na cidade de São Paulo. Estas aparições não só o fizeram compreender melhor a si mesmo, o passado, mas conquistar uma outra invisibilidade, um outro desaparecimento. Quando finalmente ele, que sempre fora apenas o fã, o que falava de outros, encontra Dulce Veiga numa pequena cidade no centro do Brasil, ele canta pela primeira vez, encontra sua voz apenas para que possa desaparecer melhor, sem mágoas nem ressentimento. Desaparecer para o protagonista que até o fim do livro não tem um nome é encontrar-se diferentemente num outro tempo e lugar. Não se trata mais de fracasso nem de ser devorado pelo mundo da velocidade e da fugacidade. Coisas que pareciam tão importantes ficam sem sentido. Por ora, talvez seja razoável falar menos quando os vencedores não param de falar. É difícil competir com eles no mesmo campo. Não precisamos discutir, mas mudar de jogo. Aprender novamente coisas básicas como ouvir e prestar atenção antes de falar. Não ter medo do nada e do vazio nem procurar tão desesperadamente por uma identidade. Talvez o outro e também nós mesmos só apareçamos, por estranho que possa parecer, pelo desaparecimento. A rarefação da subjetividade e do espaço aparecem encenados em Outro (2010), dirigido por Enrique Diaz e Cristina Moura, a partir de constantes jogos de máscaras em que não há personagens construídos psicologicamente. Eles são aparições, presenças, como nas performances, mas também são vozes à procura de corpos e narrativas num delicado e sensível caleidoscópio de sensações e situações que encena materialmente nossos afetos sem cair em raciocínios fáceis dos encantos ou desencantos do individualismo. Desaparecer cada dia o melhor possível, talvez ecoe como um desafio ético quando todos querem ser visíveis, presentes, intensos cada vez mais e a todo momento para provarmos que existimos, para conquistarmos algo, alguém, um lugar. Desaparecer é se tornar fantasma. Fantasmas não são apenas traumas, podem ser apenas memórias persistentes que assombram a própria condição precária do presente, a fragilidade do real e da imagem. Também são na sua discrição – que não é confundida como recusa do mundo, seja pela solidão ou pela morte – uma encarnação do homem comum na sua difícil busca de singularidade e sobrevivência em meio ao mundo de hoje, na sua fragilidade subjetiva e afetiva. “O eu nunca foi o sujeito da experiência, o eu jamais o consegue, nem o indivíduo que sou, essa partícula de pó” (BLANCHOT, 2007, p. 193), como traduz a jovem Yumiko (Makiko Esumi), que perdeu seu marido em Maborosi (1995), de Hirokazu Koreeda, e aparentemente leva uma vida normal, se casa de novo, vai para uma outra cidade. De repente, uma explosão, plano geral, ela perdida em meio à paisagem, sua dor se desfazendo.Uma gota de sangue no oceano. Ela não é o centro do mundo. Em Eureka (2000), de Shinji Ayoama, dois jovens e um motorista, únicos sobreviventes ao sequestro de um ônibus, aos poucos e penosamente encontram sua forma de sobreviver. Os jovens restam silenciosos e veem sua mãe partir e seu pai morrer, recusam sua família, isolados na sua casa, de onde não saem nem para ir à escola, e acabam por serem cuidados pelo motorista do ônibus durante o sequestro. Este também se afasta de sua família, ao se ver suspeito de ser o assassino que mata jovens na pequena cidade. Por fim, como forma de purgação, eles fazem de um pequeno ônibus uma casa, passam pelo lugar do sequestro e caminham um pouco ao acaso, em voltas, até atingir o mar. Mar que os ameaçava dissolver, na primeira frase da menina no filme (“A tidal wave is coming. It will sweep us away”), como num prenúncio apocalíptico. E seguir além, até uma montanha, onde ela fala pela primeira vez e a imagem deixa de ter o tom cinzento, que parece dissolver a paisagem e passa a ganhar cores novamente. Só então o motorista e a menina voltam para casa. Mais para além da experiência de sobreviver a uma perda, a uma dor, os fantasmas nos dizem que “tudo está na arte de desaparecer. Mesmo assim, essa desaparição deixa vestígios, seja ela o lugar de aparição do Outro, do mundo, ou do objeto.” O outro, paradoxalmente, só aparece pelo seu desaparecimento (BAUDRILLARD, 1997, p. 34). Mesmo o mundo também aparece como fantasmagoria, como já prenunciava John Ruskin: “A sensação é tudo. O fantasma tornou-se realidade e a realidade, um fantasma” (apud ECKSTEIN, 1991, p. 21). Longe de serem apenas presentes nos filmes de terror, os fantasmas constituem-se em metáforas da subjetividade contemporânea (ver FELINTO, 2008), são personagens que, deslocados nos planos por espaços e objetos, fogem, caminham, transitam e desaparecem, aproximando-se por vezes de figuras do inumano, do pós-humano, que requerem outras formas de atuação distintas do Naturalismo e do melodrama para os atores desde pelo menos o paradigmático Eclipse (1962), de Antonioni. Os personagens de Antonioni são passageiros. E por passarem incessantemente vão se perdendo e perdendo sua consistência, são entregues aos fluxos da cidade e do tempo. Como se fossem deixando pedaços como animais lentamente feridos, pedaços abocanhados por uma fera invisível e sem rosto. A fera é o tempo, a vida. E, a cada retirada de pedaço, parece que não se vai sobreviver a cada desilusão, a cada dor, mas se vai até com um sorriso. Se vai. Ospersonagens parecem sempre à beira do suicídio, da extinção, mas persistem até com certa dignidade, em meio a um grande cansaço, que torna seus gestos lentos. Autômatos que fossem a qualquer momento parar. Se o desaparecimento em Antonioni ainda pôde ser lido numa chave existencialista em diálogo com Pavese ou mesmo com Camus (ver MOURE, 2001, p. 6), mais recentemente, o desparecimento é cada vez mais uma encenação do vazio como experiência concreta, material. Assim como o silêncio para Cage era cheio de sons que não percebíamos como música, também o vazio é cheio de objetos que não consideramos importantes. Talvez não se trate de um efeito Antonioni, mas por onde nossos corações seguem nas paisagens desumanas, nos desertos que podem ser lugares de encontros, onde o dia a dia como o espaço podem ser um peso às vezes insustentável. Dos clássicos filmes de Antonioni dos anos de 1960 até hoje, os fluxos de informação e velocidade se acentuaram. Se a cidade de Antonioni enfatiza os vastos espaços vazios, em Vive l´amour (1996), de Tsai Ming Laing, a cidade aparece no seu dia a dia, definida pelo constante fluxo de carros que cede lugar ao vazio noturno. Vazios também estão os apartamentos por onde os três protagonistas transitam. A casa, também pouco habitável em Antonioni, transforma-se de um não lugar num lugar de encontros, onde os personagens masculinos parecem fantasmas, para não serem percebidos, sobretudo o personagen de Hsiao Kang, interpretado pelo ator-fetiche de Tsai Ming Liang, Kang Sheng Lee. Mas todos os três, jovens e celibatários, pouco falam, anônimos na cidade e na casa que habitam. Podem desaparecer, sair de cena, que talvez ninguém note. Já em Good by dragon inn (2003), que se passa num velho e outrora suntuoso e grande cinema em vias de ser fechado, o fantasma, para Tsai Ming Liang, parece ser a condição do espectador de cinema. Dos poucos personagens que transitam pelo cinema, talvez a maioria esteja menos interessada no cinema e mais em encontrar parceiros, realizar encontros no espaço do cinema. Como não vemos o projecionista e o filme parece passar para quase ninguém, este parece ser predestinado a uma indiferença, não fosse por dois velhos espectadores. Depois sabemos eles serem atores do velho filme de artes marciais que está sendo apresentado. Se o que vimos foi uma única sessão, como entender a sala cheia no início do filme? Se o início do filme aconteceu num tempo em que ainda as grandes salas de cinema tinham público, então todo o filme se dá como num salto temporal, conjugando o apogeu e fechamento da sala? Por fim, a sala de cinema, como um mundo habitável, tanto por espectadores, voyeurs, como pela bilheteira manca, faz de todos figuras um pouco do passado, destinadas a desaparecer. Quando a bilheteira (Chen Shiang-chyi) sai da sala, é meio uma despedida do cinema, numa cena que lembra um musical, só que ninguém dança nem canta, apenas o velho cinema é visto de fora como uma ruína que muito lembra a abertura de O fim de um longo dia, de Terence Davies, quando ouvimos uma música de cinema em meio à rua tomada pela chuva sem ninguém, neste caso, iniciando uma viagem de memória e nostalgia rumo aos anos de 1960. Em Good bye dragon inn, menos que a infância, o que temos são os vestígios do passado no presente, como o personagem japonês (Mitamura Kiyonobu) que parece ser o único fantasma real, o único que fala sobre a existência de fantasmas no lugar, mas em nada diferente dos personagens que estão no cinema, que desaparecem da sala. Também o personagem mais visivelmente gay poderia ecoar, como um fantasma, apenas uma encenação de invisibilidade muito típica antes dos anos de 1960, uma figura da invisibilidade, próxima ao mundo da monstruosidade, destinado a habitar as sombras, em grande parte só ou com encontros fortuitos, por não ter lugar entre os vivos ou nos modelos da heteronormatividade compulsória. Este despertencimento e aproximação entre fantasma e homossexualidade também é encenado em Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues, em que o protagonista, lixeiro, transita pela noite no seu trabalho, bem como entre parceiros que encontra até achar uma roupa de couro preto que usa, escondendo seu rosto, numa fantasia que o mistura à noite e o afasta do cotidiano comum. A falta de amor, a falta do amor, o amor possível, aquele que pode salvar. A salvação, a destruição, o ser outro, não ser nada, a morte, a vida, ausência plena. Não, nenhuma escrita, nenhum filme, ninguém pode nos dar isso. O que resta neste momento de quase desespero que sobe e cresce numa onda gigantesca é apenas colocar letra após letra, palavra após palavra, na ilusão de que ele passe, que alguém nos salve, que eu me salve, que o tempo salve. Só preciso de um momento mais. É o que me digo. Na esperança. Também começo a me perder, a desaparecer em meio a tantas imagens. E “escrever agora (ou era então para Caio Fernando Abreu e ainda é para este ensaísta soterrado e seduzido pelas imagens) é recolher (estes) vestígios do impossível” (1996, p. 39). Me despeço. “Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu e alguns dizem que há castelos pelo caminho” (Ibidem, p. 42). O desejo de desaparecer é menos como fuga da dor e mais um desejo de leveza, de ser outro. Por mais belo que tenha sido o vivido, sua lembrança, é preciso esquecer. Por mais difícil e desejado, é preciso esquecer. Buscar outras companhias, para poder lembrar um dia (quem sabe?) de outra forma, totalmente inusitada, inesperada. A Stella Manhattan, Dulce Veiga, Caio F., aos personagens de Shinji Aoyama, Hirokazu Koreeda e Tsai Ming Liang se junta um outro fantasma, o de Paulo Leminski, que resmunga pelas ruas de Curitiba ou no romance Fantasma (2001), de José Castello. Talvez não seja de todo um mal. “Um dia sobre nós também/vai cair o esquecimento/como a chuva no telhado/e sermos esquecidos/será quase a felicidade” (LEMINSKI, 1991, p. 91). Quase. Todo um mundo se dissolve. Ou quase. Busco as “paisagens efêmeras” marcadas por “motivos irregulares e leves: ar, nuvem, gás, bruma” (GLUCKSMANN, 2003, p. 64), ou a chuva, o rio, que traduzem toda uma sutileza de afetos. Por mais que tudo tenha passado rápido demais, foi este o momento, e não outro. Há uma salvação pelas fragilidades e precariedades, não por verdades acabadas, sistemas fechados, pesados. Haveria uma leveza no efêmero (GLUCKSMANN, 2003, p. 16). Se há um “efêmero melancólico, constitutivo do Barroco histórico ou do moderno (Baudelaire, Benjamin, Pessoa etc.)” (GLUCKSMANN, 2003, p. 27), “que revive e reatualiza sem fim o passado e seus traços” (Ibidem, p. 61), há, “de outra parte, um efêmero positivo, mais explicitamente cósmico, que atravessa já a história do olhar na França do século XIX (cf. Monet) e que parece servir de ‘ponto’ teórico e estético entre a Ásia e o Ocidente” inserido em paisagens transculturais (Ibidem, p. 27), “que integra, aceita e transforma a ‘fluidez’ dos fluxos eletrônicos, mudando seus efeitos e criando imagens-fluxo que tentam ignorar a ‘urgência-simulacro’ do mercado” (Ibidem, p. 61). “Um efêmero sem melancolia, que retrabalharia, no precário e no frágil, os extratos do tempo, suas paisagens, suas feições e seus imaginários” (Ibidem, p. 73). Esta leveza no efêmero é o antídoto que procurava para a melancolia, para a nostalgia, para os fantasmas que não nos deixam, para os mitos do passado que nos pesam. Frente à dor suave, do passado que não passa, uma “modesta alegria” (ABREU, 1988, p. 157). Não resistir ao apequenenamento das coisas e pessoas. O retrato embaçado. A água saindo pelo ralo. A poça onde antes era um mar. Um momento onde antes era toda a vida, o que importava. A leveza da deriva, a libertação do peso da orfandade, dos que desapareceram. Vestígios de desejos tardiamente percebidos. Encanto ao conseguir lembrar, feliz, as perdas. Suave delicadeza de um ocaso. O vento nas árvores visto pela vidraça não tem barulho. Os galhos, as folhas suaves se movem. Uma onda verde cruza o ar. Não me pertencem. Estou do outro lado, em outra margem. Referências ABBAS, Ackbar. Hong Kong. Culture and Politcs of Disappearance. 3. ed. Minneapolis: Minnesotta University Press, 2002. ABREU, Caio Fernando. 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