TRABALHO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLES
Organização do espaço urbano e expansão
do calazar
The organization of urban areas and
expansion of kala-azar
Eduarda Ângela Pessoa Cesse 1
Eduardo Freese de Carvalho 2
Paulo Paes Andrade 3
Walter Massa Ramalho 4
Luciano Luna 5
Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Saúde Coletiva,
Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz.
Rua dos Coelhos, 450, 1º andar, Coelhos, Recife, Pernambuco,
Brasil. CEP: 50.070-550. e-mail: ecesse@elogica.com.br;
educesse@cpqam.fiocruz.br
2 Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Saúde Coletiva,
Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz e
Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de
Pernambuco
3,5 Departamento de Genética da Universidade Federal de
Pernambuco
4 Centro Nacional de Epidemiologia
1
Abstract
Resumo
Objectives: the aim of this study was to verify certain processes that are related to the occupation of urban areas and which contribute to the occurrence and
expansion of kala-azar in a medium-sized town undergoing economic growth with a high influx of migrants.
Methods: the study is an epidemiological crosssection, in which house-to-house investigation was
conducted concerning cases registered in 8 districts
and their respective census areas, all in the municipality of Petrolina, Pernambuco state, Brazil, from
1992 to 1997. The study was backed up by laboratory
research, taking into consideration both the transmitter and animal reservoir. An explanatory social determination model for the health-illness process of this
endemic-epidemic situation was used.
Results: a concentration of kala-azar cases was
observed in the urban periphery of the town of
Petrolina, in areas of squatter settlement and growth,
where basic sanitation was precarious, in which animals and the vector were present around the household and the population had a low level of schooling.
Males and the 0-4 age group were the most affected.
Conclusions: the findings suggest the establishment of a new epidemiological pattern for kala-azar
in Petrolina, where this endemic occurs in areas that
have been highly modified by the population. Such a
situation characterises the ruralisation process of the
urban peripheries endemic in large cities.
Key words Visceral leishmaniasis, Endemic diseases, Epidemiology
Objetivos: verificar determinados processos que
estão relacionados com a ocupação do espaço urbano
e que contribuem para a ocorrência e expansão do
calazar em um município de médio porte com acentuado fluxo migratório e em expansão econômica.
Métodos: trata-se de um estudo epidemiológico,
de corte transversal, no qual se realizou a investigação domiciliar dos casos registrados em 8 bairros
e respectivos setores censitários, no município de
Petrolina, Pernambuco, no período de 1992 a 1997.
Está subsidiado por elementos da pesquisa laboratorial, considerando o transmissor e o reservatório.
Utilizamos o modelo explicativo da determinação social do processo saúde-doença a esta situação
endêmica-epidêmica.
Resultados: observa-se uma concentração de casos de calazar na periferia da zona urbana do município de Petrolina, em áreas de invasão e expansão,
onde o saneamento básico é precário, há a presença
de animais e do vetor no peridomicílio e a população
apresenta um baixo grau de instrução. O sexo masculino e a faixa etária de 0-4 anos são os mais
acometidos.
Conclusões: os achados sugerem o estabelecimento de um novo padrão epidemiológico para o
calazar em Petrolina, onde a ocorrência dessa endemia se dá em um espaço altamente modificado pela
população. Tal situação caracteriza um processo de
ruralização das áreas periurbanas endêmicas nas
grandes cidades.
Palavras-chave Leishmaniose visceral, Doenças
endêmicas, Epidemiologia
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Cesse EAP et al.
Introdução
Com a crescente urbanização que ocorre em diferentes países após a II Guerra Mundial, amplia-se o
interesse pela compreensão da relação entre urbanização e processos endêmicos. Ao longo das últimas décadas, verifica-se que a utilização de estratégias para controle e a erradicação de doenças,
baseadas na teoria dos focos naturais das doenças
transmissíveis, proposta na década de 30, torna-se
insuficiente, na medida em que as doenças se incorporam ao espaço organizado pelo homem. Nesse
sentido, os epidemiologistas buscam na Geografia
Médica e nas Ciências Sociais, os modelos teóricos
de explicação para o novo contexto epidemiológico
verificado em todo o mundo.1,2
Principalmente a partir da década de 80, destacam-se alguns modelos explicativos da ocorrência
dos fenômenos de saúde-doença que buscam contemplar a complexidade e a hierarquização dos diferentes níveis de seus determinantes. Nestes modelos
as condições de vida se constituem num determinante explicativo fundamental, representando, para
Castellanos,3-5 uma expressão particular do processo
geral de reprodução da sociedade, onde os grupos
populacionais apresentam um perfil de necessidades
e riscos associados a tais condições.
Sabroza6 e Paim7 consideram que a categoria espaço é um recurso potencialmente capaz de apreender processos relativos à reprodução social, na medida em que o conceito de território ou de espaço transcende a sua condição física ou natural e recupera o
seu caráter histórico e social, sendo esta categoria
suficientemente adequada para explicar a ocorrência
e distribuição das endemias.
O espaço, considerado por Santos (1988: 26) 8
como " .... um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e de outro, a
vida que os preenche e os anima, ou seja a sociedade
em movimento", incorpora os determinantes naturais e
sociais numa visão de totalidade, que muitas vezes
falta à análise epidemiológica. Desta forma, nós o empregamos, no sentido de buscar entender as relações
sociais como definidoras do padrão social de uma
cidade, decorrente do modo de produção econômica
que se expressa em processos sociais de urbanização,
de industrialização e de migrações internas.
Consideramos, ainda, que além do fenômeno da
urbanização, considerado avassalador nos países do
Terceiro Mundo, 8 o processo migratório, ultimamente associado ao próprio modelo de desenvolvimento econômico, altera a estrutura epidemiológica
tanto das áreas de evasão, quanto das de recepção de
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migrantes, conduzindo a modificações dos perfis
epidemiológicos das classes sociais ou frações destas
classes, com reflexos imediatos sobre os riscos individuais da doença.9
Apoiados nestas considerações, destacamos a
leishmaniose visceral ou calazar, agravo de ampla
distribuição geográfica, que nas últimas décadas tem
mostrado uma forte tendência à urbanização, com a
ocorrência de surtos epidêmicos em várias capitais,
se constituindo em um sério problema de saúde
pública.10
O perfil epidemiológico do calazar se apresenta
diferente do observado anos atrás, quando sua transmissão ocorria predominantemente na zona rural.
Casas de barro e outras habitações precárias, ocupando de forma desorganizada o espaço situado no
limite da cidade com a mata, com quintais onde se
abrigam animais domésticos e de criação, favorecem
o contato reservatório-vetor-homem e, por conseguinte, o surgimento de casos, contribuindo, portanto, para o aumento da incidência da doença.11-15
Destaca-se, no entanto, que a principal condição
de transmissibilidade do calazar nesse novo ambiente está na adaptação do vetor, Lutzomyia longipalpis, ao peridomicílio, favorecida por fatores ainda não suficientemente estudados, e na presença de
fontes de infecção ali introduzidas, sendo o cão
doméstico considerado o principal reservatório da endemia, seguido do homem.16 Neste sentido, partimos
do entendimento de que a ocupação do espaço não
ocorre ao acaso dos indivíduos, e sim tendendo a conformar conglomerados relativamente homogêneos do
ponto de vista de suas condições de vida, onde a
unidade espaço-população passa a ser uma unidade
onde operam os processos determinantes das
condições de vida e onde se expressam os problemas
de saúde-doença, conforme destaca Castellanos.5
A investigação da transmissão do calazar em
áreas urbanas bem estabelecidas, é portanto, oportuno. Desde que no município de Petrolina, no estado de Pernambuco, vem se observando nos últimos
anos a expansão do calazar, com um aumento preocupante do número de casos da doença na área urbana, 17 consideramos fundamental realizar o presente trabalho com os seguintes objetivos: verificar a
expansão do calazar, no município de Petrolina, Pernambuco, buscando identificar a presença de transmissão ativa em áreas urbanas e caracterizando os
possíveis fatores determinantes deste processo, considerando os casos humanos, o reservatório e o transmissor. Em relação à população humana, estudar os
casos autóctones da área urbana do município, considerando a distribuição temporal e espacial dos casos por bairro e setor censitário. Em relação ao trans-
Organização do espaço urbano e expansão do calazar
missor, verificar a existência de vetores em pontos
de coleta selecionados, e, em relação ao reservatório,
verificar a distribuição espacial dos cães com diagnóstico de calazar.
Métodos
Realizamos um estudo epidemiológico descritivo, de
corte transversal, na área urbana do município de
Petrolina, a partir da investigação domiciliar dos casos de calazar registrados no período de 1992 a
1997, onde consideramos um conjunto de informações relacionadas ao espaço de ocorrência da
doença. O estudo é subsidiado, ainda, por elementos
de pesquisa laboratorial, considerando o transmissor
e o reservatório.
O município de Petrolina está localizado no
Sertão pernambucano, mesoregião do São Francisco,
e é caracterizado como de médio porte, estando o seu
crescimento populacional relacionado a intensos
processos migratórios.
O estudo de campo compreende os 8 bairros e respectivos setores censitários da zona urbana de
Petrolina onde estão registrados 51 casos autóctones
de calazar no período considerado no estudo os quais
foram investigados através de questionário fechado,
previamente elaborado.
Os bairros/setores censitários são carentes de infra-estrutura básica social (saneamento básico,
calçamento de ruas, postos de saúde e creche). Possuem energia elétrica e água encanada, porém essa
última não é fornecida com regularidade. Possuem,
ainda, famílias vivendo em casa de taipa, papelão e
lona plástica e os quais foram, na sua maioria, fundados na década de 80 e 90, com exceção de Vila
Eduardo18 (Quadro 1).
Quadro 1
Perfil sócioeconômico e geográfico dos bairros e setores censitários onde se localizam os casos investigados de calazar humano na zona
urbana de Petrolina, Pernambuco, 1992-1997.
Bairro Setor
Censitário
São Gonçalo
Número de
Região de
Ano de
casos
localização dos
fundação do
investigados
bairros
bairro
21
Oeste
1989
População do
bairro
9.659 hab.
18
Oeste
1989
4.090 hab.
03
Norte
1988
1.840 hab.
01
Norte
1980
15.660 hab.
92
Dom Avelar
ridade. Possuem famílias vivendo em casas de
Localizados na periferia da zona urbana com
exceção dos bairros José e Maria e Pedro Rai-
03
Norte
1987
11.113 hab.
02
Norte
1982
5.034 hab.
02
Oeste
1994
7.496 hab.
01
Leste
1960
80, 84, 85
Pedro Raimundo
Possuem energia elétrica e água encanada, po-
taipa, papelão e lona plástica.
76
João de Deus
saúde, policiamento, posto telefônico e creche).
rém esta última não é fornecida com regula-
86, 88
José e Maria
Carentes de infra-estrutura básica social (saneamento básico, calçamento de ruas, postos de
79sb,89sb,90sb,91sb
Cosme e Damião
Principais características dos bairros
mundo que são próximos à região central do
município.
63
Cohab São Francisco
79sb
Vila Eduardo
37
7.428 hab.
Habitado há muitos anos. Possui uma comunidade
mista onde convivem pessoas de classe média e
pessoas de baixo poder aquisitivo. Bairro carente
de policiamento e com precário serviço de limpeza
pública. Saneamento básico não concluído.
Localizado próximo à região central do município.
hab. = habitantes
sb = sub-normal
Fontes: Secretaria de Planejamento Estratégico da Prefeitura de Petrolina. 19
IBGE. X Recenseamento geral brasileiro. 20
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Os critérios adotados para inclusão/definição de
caso de calazar humano foram: residencia na área selecionada; ambos os sexos; todas as idades; diagnostico de portador de calazar no período de janeiro de
1992 a dezembro de 1997; registro em uma das
fontes notificadoras consideradas no estudo. Pacientes identificados através de busca ativa, também
foram incluídos.
Com o objetivo de complementar o diagnóstico
dos casos humanos buscamos verificar a presença do
vetor transmissor e do reservatório do calazar. Desta
forma, realizamos sessões noturnas de coleta de flebótomos em três bairros, correspondentes a quatro
setores censitários, utilizando capturadores manuais
e armadilhas luminosas tipo CDC. Os flebótomos
capturados foram identificados no laboratório de
genética da Universidade Federal de Pernambuco.
Os critérios utilizados para a definição dos bairros/setores censitários onde realizamos a coleta
foram: a existência de registros de casos humanos, a
proximidade da área com a caatinga, além de uma
série de questões consideradas de risco, tais como a
presença de animais no peridomicílio e de condições
sócioeconômicas e sanitárias precárias.
No mesmo sentido, realizamos o estudo da positividade canina, a partir de dados secundários do Programa de Controle das Leishmanioses, Operações de
Figura 1
Localização de Petrolina em Pernambuco e no Brasil.
Nota: no detalhe município de Petrolina
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Controle do Reservatório Canino, Distrito de Salgueiro, da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA),
considerando a pesquisa sorológica, por imunofluorescência indireta, realizada no ano de 1997.
Digitalizamos os setores censitários a partir da
malha do censo de 199120 e bairros da zona urbana de
Petrolina, a partir de uma carta municipal de escala
1:10.000 e posteriormente lançamos as coordenadas
em um software de geoprocessamento (MAPINFO),
onde localizamos os casos humanos, os locais onde
estão registrados cães com diagnóstico de calazar e os
locais de coleta de flebótomos.
Resultados
A delimitação do Brasil, do Estado de Pernambuco e
do município de Petrolina pode ser observada na
Figura 1. Na Figura 2 observamos a distribuição dos
casos investigados no perímetro urbano, no período
de 1992 a 1997, onde a maior concentração ocorre
na periferia dos bairros localizados no lado oeste.
Destacamos que durante as investigações em campo
podemos constatar a permanência de uma cobertura
vegetal, do tipo caatinga, principalmente nas regiões
mais periféricas do perímetro urbano, a qual denominamos "franja".
Organização do espaço urbano e expansão do calazar
Figura 2
Distribuição dos casos humanos de calazar investigados na zona urbana de Petrolina, Pernambuco, 1992-1997.
j
Casos humanos 1992 a 1997
A distribuição temporal (Figura 3) revela que os
anos de 1992, 1993 e 1994 foram aqueles que apresentaram os menores registros de casos. Em 1995,
observa-se uma importante elevação do número de
casos, caracterizando um pico epidêmico. Nos anos
seguintes do estudo, o número de casos regride e se
mantêm constante.
Quanto à distribuição por sexo e faixa etária observamos que o maior percentual de casos ocorre no
sexo masculino e na faixa etária de 0 a 4 anos (Figura 4).
Figura 3
Casos de calazar investigados por ano na zona urbana de Petrolina, Pernambuco, 1992-1997.
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Figura 4
Casos investigados por sexo e faixa etária na zona urbana de Petrolina, Pernambuco, 1992-1997.
No que se refere às condições de moradia, observamos um conjunto de situações desfavoráveis, onde
16% das residências dos casos possuem menos de 2
cômodos, 12% não têm energia elétrica (mesmo em
se tratando de área urbana), cerca de 30% das
residências são de taipa, 8% apresentam cobertura
de material diferente de telha cerâmica, 33% apresentam piso de terra batida, 14% não possuem água
encanada e 41% abrigam de 5 a 9 moradores.
Quanto à renda familiar, 47% dos casos entrevistados relatam que, na época em que adoeceram, tinham renda menor que o equivalente ao salário mínimo fixado em R$120,00 no ano de 1997, e apenas
6% recebem mais de R$500,00. A escolaridade dos
casos é precária, cerca de 70% estão no primeiro
grau e outros 22% são analfabetos.
Observamos uma alta concentração de animais
no domicílio e peridomicílio dos casos. Desta forma,
cerca de 67% dos casos investigados relatam que
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possuíam animais em casa quando adoeceram, sendo
freqüente a presença de cães e de animais de médio
e grande porte.
Quanto à proximidade das residências com a mata, 76% dos casos relatam este fato, demonstrando
que os indivíduos acometidos, em sua maioria,
moravam na periferia dos bairros, no limite com a
caatinga, na época em que adoeceram.
No que se refere ao reservatório canino, encontramos registros de sorologias positivas para calazar,
realizadas pelo Distrito de Salgueiro da FUNASA
em grande parte dos bairros/setores censitários estudados. Procedemos a coleta de flebótomos, onde
capturamos espécimes de Lutzomyia longipalpis nos
bairros/setores censitários localizados no lado oeste
e norte da área urbana do município. Este inseto foi
encontrado em maior número no peridomicílio das
residências em locais onde há a presença de animais.
Estes achados podem ser observados na Figura 5.
Organização do espaço urbano e expansão do calazar
Figura 5
Áreas urbanas com a presença de sorologias caninas positivas identificadas pelo Distrito de Salgueiro, Coordenação
Regional da FUNASA, em Petrolina, Pernambuco, 1997.
Discussão
Petrolina vem se constituindo, nos últimos anos, em
um importante pólo de exportação que tem como
base a agricultura irrigada.21
Percebe-se, no município, um processo caracterizado pelo estabelecimento de um circuito espacial
de produção, a exemplo do que assinala Santos,8 que
é acompanhado de um crescimento populacional fruto da migração atraída pelas transformações advindas da irrigação. Porém, o incentivo ao processo de
industrialização e a modernização da agricultura, desempregando o homem do campo e, paralelamente,
expulsando-o para a cidade, foram responsáveis pelo
crescimento desordenado do centro urbano, sem que
estes tivessem correspondente oferta de empregos.
Desta forma, uma parcela da população de Petrolina
passa a ocupar áreas da cidade onde os investimentos em infra-estrutura não acompanham o crescimen-
to verificado. Como conseqüência, verifica-se uma
busca desenfreada de condições de sobrevivência
que se traduz numa grande mobilidade interna.
Baseados nos estudos de Castellanos3-5 buscamos
explicações para a ocorrência de doenças a partir dos
níveis de determinação, onde as condições de vida
são consideradas resultantes da forma como o grupo
se insere no processo de reprodução da sociedade.
Neste sentido, verificamos que as transformações e
acumulações ocorridas no espaço territorial de
Petrolina expressam as condições históricas de vida
de seu povo. A cultura irrigada, o clima, a vegetação,
o circuito econômico estabelecido nas últimas décadas revelam uma forma de organização social que
evidencia as desigualdades entre o centro e a periferia.21,22
É neste contexto que ocorre, no período de 1992
a 1997, um aumento do registro e da distribuição espacial do calazar em bairros urbanos de Petrolina,
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onde 76% dos casos de calazar investigados estão na
periferia destes bairros, no limite com a mata local,
denominada "franja". No ano de 1995 é verificada
uma importante elevação no número de casos, o que
sugere um pico epidêmico.
A periferia dos bairros se caracteriza por apresentar condições precárias de sobrevivência e situação ideal de transmissão de doenças. A precariedade
verificada é apontada como condicionante para o estabelecimento do calazar: pobreza, desnutrição,
grande número de cães infectados, oferta de fontes
alimentares humanas e animais, arborização abundante em quintais, potenciais criadouros de insetos e
acúmulos de lixo, presença de abrigos de animais silvestres no perímetro urbano, revelando que esta é
uma doença de íntimas relações com as condições
sociais às quais os indivíduos estão submetidos.12,16
Quanto à faixa etária, o padrão verificado corresponde àquele encontrado na literatura.13,14 Portanto,
a faixa etária de 0 a 4 anos é a mais acometida, o que
pode ser explicado pela condição de imunodepressão, causada pela desnutrição, geralmente observada na população dessa faixa etária, em áreas
endêmicas. Quanto ao sexo, observa-se que a maior
prevalência ocorre no masculino.
No que diz respeito às condições de moradia, a
situação verificada é favorável ao estabelecimento
do calazar, uma vez que são observadas residências
bastante precárias.
Quanto ao reservatório animal que integra a
cadeia de transmissão do calazar, evidenciamos a
existência de uma grande quantidade de cães no
domicílio e peridomicílio dos casos, além de outros
animais que se constituem em fonte de alimentação
para a fêmea do inseto vetor do calazar, o flebótomo.
A captura de flebótomos em alguns bairros/setores
censitários da área estudada mostra que, tanto nos
bairros localizados no lado oeste da zona urbana de
Petrolina, quanto naqueles localizados no lado norte,
ocorre a presença da Lutzomyia longipalpis, espécie
responsável pela transmissão do calazar. Os espécimes capturados estão localizados no peridomicílio de residências, geralmente próximos a animais domésticos e de criação. Para Marzochi e Marzochi 16 a principal condição de transmissibilidade
do calazar em ambientes novos está na adaptação do
vetor, Lutzomyia longipalpis, ao peridomicílio. O
conhecimento da dinâmica do vetor é essencial para
o adequado controle de sua população, uma vez que,
sendo ele bem adaptável ao peridomicílio humano, o
seu controle é muito importante para a interrupção
da doença.
Este conjunto de fatos, aliado à migração e à forma de organização social do espaço urbano são ex-
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tremamente relevantes para a compreensão da expansão da endemia estudada em Petrolina, bem como para entender algumas das principais características da transmissão no município.
Por fim, no que se refere ao controle desta endemia, verificamos, durante os trabalhos de campo e
a partir dos dados coletados, que as ações realizadas
no Programa de Controle das Leishmanioses enfrentam atualmente dificuldades de ordem técnica e
financeira, acarretando a não cobertura, por parte
desta etapa do Programa de Controle, de todos os
bairros que apresentam os critérios para a sua realização.22
Desta forma, constatamos a ausência de um conjunto de ações necessárias para o enfrentamento da
doença no município, como também o despreparo do
sistema de saúde na resolução do processo de expansão da doença, uma vez que ignora como esta emergente endemia vem se incorporando ao espaço periurbano de Petrolina socialmente organizado pela
população que nesta área se assenta. Esta última situação se encontra respaldada em estudos de Silva1,2 e
Sabroza.23
Considerações finais
Os achados deste estudo sugerem o estabelecimento
de um novo padrão epidemiológico para o calazar
em Petrolina. Este novo padrão se caracteriza pela
ocorrência e distribuição dessa endemia na periferia
da zona urbana do município, no limite com a caatinga, que denominamos de "franja". Essa "franja" se
apresenta como um espaço altamente modificado
pela população que para ali se dirige e passa a conviver com um conjunto de fatores que condicionam
o estabelecimento do calazar nestas áreas. Para
Oliveira Filho e Melo,24 tal situação caracteriza um
processo de ruralização de áreas periurbanas
endêmicas nas grandes cidades.
Reportando-nos ao modelo explicativo de Castellanos3-5 (Quadro 2), adaptado por Albuquerque25
às endemias de transmissão vetorial, verificamos que
no nível do modo e processo de produção e reprodução social (geral), a estrutura econômica e política
de Petrolina está baseada num desenvolvimento capitalista de produção, caracterizado pela exclusão e
segregação de uma considerável parcela de sua população.
No que se refere ao nível da organização social
do espaço urbano e produção de endemias (particular), verificamos que o grande fluxo migratório interno, a forma precária de organização da população
nas áreas periurbanas do município, o baixo grau de
Organização do espaço urbano e expansão do calazar
instrução, a inserção na economia informal, a falta
de saneamento, a presença de animais no peridomicílio, como também do vetor do calazar, aliados,
possivelmente, à perda de capacidade operacional da
FUNASA, responsável pelo controle no município,
se traduzem na expansão do calazar.
Por fim, no nível onde ocorre o ciclo infeccioso
básico (singular), verificamos o estabelecimento de
um ciclo de transmissão ativa, com a presença de casos humanos, cães sorologicamente positivos e Lutzomyia longipalpis em pontos das áreas estudadas.
Quadro 2
Modelo para compreensão da transmissão do calazar urbano*
Nível geral
Nível particular
Nível singular
Modo do processo de produ-
Organização social do espa-
ção e reprodução social
ço urbano e produção de
Ciclo infeccioso básico
endemias
Estrutura econômica e política ba-
Ocupação desorganizada do espaço
Grupos de indivíduos infectados e
seada num desenvolvimento capi-
urbano/favelização com insuficiên-
doentes.
talista de produção, com exclusão e
cia de programas de habitação
Alta densidade vetorial da Lutzo-
segregação da população e ausência
Condições sanitárias precárias
de políticas públicas eficazes
Baixo grau de instrução
myia longipalpis na área periurbana.
Reservatório de cães sorologica-
Predominância de casos no sexo
mente positivos no peridomicílio.
masculino e na faixa-etária de 0 a 4
anos
Estratégias de sobrevivência popular com inserção na economia informal
* Baseado no modelo explicativo de Castellanos 3-5 aplicado às endemias de transmissão vetorial.
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Cesse EAP et al.
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