Ide, 43(71), 114-125. 2021
A OdIsseIa
trAvESSiA E COnStitUiçãO dO SUjEitO
Adélia Bezerra de Meneses1
adeliabm@terra.com.br
Resumo: À luz da interpretação feita por Adorno, da Odisseia como a viagem metafórica
do homem ocidental em busca da constituição do sujeito, são abordadas narrativas
que constituem o “miolo folclórico” da épica, que mostram Odisseu contracenando
com seres míticos, arcaicos e primitivos, que ele vence por meio da razão (e à custa de
autorrepressão). A esses episódios, acrescenta-se a viagem ao Hades, importante para a
travessia de Odisseu, e onde se confrontam dois tipos polares de heroísmo: o da “bela
morte” (Aquiles) e o da “fidelidade à vida” (Odisseu). Apontando a passagem do mundo
da natureza para o da cultura, vê-se aí um trajeto que o sujeito empreende em confronto
com as potências míticas e através do qual ele se individua; trata-se de um percurso do
mythos ao logos.
Palavras-chave: Odissseia, Adorno, Viagem, Mythos/Logos
Odyssey: Crossing over and the constitution of the subject
Abstract: In the light of Adorno’s interpretation of the Odyssey as the metaphorical
journey of Western man in pursuit of the constitution of the subject, we address certain
narratives that constitute the folkloric nucleus of that epic and reveal Odysseus playing
opposite various mythical, archaic and primitive beings, whom he vanquishes through the
use of reason (and at the price of self-repression). In addition to these episodes, there is the
journey to Hades, important for Odysseus’ crossing over, and where two polar types of
heroism are confronted: that of “beautiful death” (Achilles) and that of “fidelity to life”
(Odysseus). By pointing to the passage from the world of nature to that of culture, one can
see the path the subject undertakes when confronting mythical powers and through which
he or she becomes an individual; it is the journey from mythos to logos.
Keywords: Odyssey, Adorno, Travel, Mythos/Logos
Ítaca
Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
Ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões, nem Ciclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
1
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Pesquisadora do CNPq, foi professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na Unicamp (onde
se aposentou) e na USP (onde continua atuando como professora colaboradora junto ao DTLLC). Também
lecionou Literatura Brasileira na Technische Universität de Berlim. Autora de diversos livros.
A Odisseia: TrAvessIA e consTITuIção do sujeITo | AdélIA BezerrA de Meneses
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.
Roga que a tua rota seja longa,
que, múltiplas, se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades –
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
Que aportes velho, finalmente, à ilha,
Rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
Sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
(Konstantinos Kavafis)
Ao abordarmos a Odisseia, urge a consciência de estarmos diante de um
texto que tem 30 séculos, uma obra fundadora de uma cultura. A civilização grega
e a civilização judaica formam uma esquina de onde se engendrou a nossa civilização ocidental. (Importa dizer que, no caso do Brasil, mesclam-se também
a contribuição indígena e a africana – infelizmente menos reconhecidas do que
seria de esperar.) Tanto a helênica quanto a judaica são civilizações logocêntricas,
centradas no logos, na palavra. O estatuto da épica homérica (Ilíada/Odisseia)
para os gregos não é exatamente o mesmo que o do texto bíblico para os judeus,
uma vez que a Bíblia fundamenta doutrina e rito, e a Odisseia não tem um cunho
religioso, mas ambas podem ser equiparadas enquanto referência aglutinadora de
um povo, e por seu caráter formador.
A gente sabe, pelos textos de Platão, que, na escola, as crianças estudavam basicamente Homero. A educação clássica estava baseada na ginástica e na
música – “ginástica” para o corpo e “música” (= arte das Musas, e, neste caso,
fundamentalmente os textos épicos) para a alma. A educação grega fundava-se na
Ilíada e na Odisseia.
Mais do que com qualquer outra produção literária, em face da Odisseia
estamos diante de um clássico; e “clássico”, para Calvino (2007, p. 11), “é um
livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha que ser dito”.
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Pois bem: uma das mais instigantes interpretações da Odisseia a nosso
alcance é a de Adorno, em sua Dialética do esclarecimento, e que pode ser sintetizada como a viagem metafórica do homem ocidental em busca da constituição do
eu. (Adorno & Horkheimer, 1986). E talvez seja esse significado que a Odisseia
faz ressoar na psique que lança luzes sobre os motivos pelos quais esse texto épico
tenha sua sobrevivência assegurada há 30 séculos e seja tão universalmente conhecido, exercendo um extraordinário fascínio. Percebe-se aí algo que nos concerne,
a nós também, mulheres e homens do século
XXI:
trata-se de um texto mítico
vivo, com o qual interagimos. Aqui se lida com o mito, e o mito tem sua eficácia
própria, ele atua.
Mas, antes de mergulharmos nessa leitura adorniana, que fornece uma
chave para a interpretação em bloco das aventuras de Odisseu, eu gostaria de
me deter muito rapidamente no tópos da viagem. É de se observar que na literatura há inúmeras ocorrências do tema da Vita/Via, da vida enquanto caminho,
habitando o imaginário de todos os povos, e presente nos livros fundadores de
várias culturas. A viagem é elemento fundamental da mais antiga obra literária
da humanidade, de origem mesopotâmica, a Épica de Gilgamesh, de mais de 40
séculos, e que abriga vários topoi retomados pelas demais epopeias, bem como
pelo Gênesis bíblico. Efetivamente ela patenteia laços culturais com a Bíblia e com
a Grécia. Posteriormente à Odisseia, no mundo greco-latino aparece a Eneida de
Virgílio, epopeia latina, que é a viagem de Eneias, herói da Guerra de Troia que,
na derrota diante dos aqueus, foge com mulher, o filho e o pai. (Aliás, a cena é
carregada de simbologia: Eneias parte de Troia trazendo o filho pela mão, tendo a
mulher a seu lado e o velho pai nos ombros. De fato, ao lado da companheira, ele
carregava a tradição nas costas, e conduzia a nova geração para o futuro – que,
no caso, será a fundação de Roma.) A Divina comédia, de Dante, também trata de
uma viagem, pelos três reinos, Inferno, Purgatório e Paraíso, empreendida por um
personagem que é o próprio poeta Dante; Os lusíadas são, fundamentalmente, a
viagem de Vasco da Gama, em meio às navegações dos descobrimentos realizadas
pelos nautas portugueses. E na contemporaneidade, pinçada entre tantas, em
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, temos a errância de Riobaldo: a vida
enquanto travessia. Desdobra-se então aqui, reitero, o tópos da Vita/Via, da vida
enquanto caminho.
No entanto, a viagem por excelência, a viagem prototípica, é para nós a
Odisseia. Os versos inaugurais dessa epopeia falam logo no início do “herói que
muito perambulou”. Transcrevo seu parágrafo inaugural:
Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso que, após
saquear a sagrada fortaleza de Troia, errou por tantíssimos lugares
vendo as cidades e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no
mar, sofreu tantas angústias no coração, tentando preservar a sua
vida e o repatriamento de seus companheiros… (Homero, 1993, p. 9)
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Aí está o vetor de toda ação de Odisseu: a preservação da vida e o projeto
do retorno a Ítaca.
É muito significativo que as epopeias antigas comportem, em sua rota,
uma “outra viagem”,2 uma descida ao Hades, o “Inferno” – morada dos mortos,
o mundo inferior (etimologicamente, “inferior” é o comparativo do adjetivo
“baixo”); mundo subterrâneo, lugar das sombras e também, inescapavelmente,
figuração do inconsciente. E a pergunta que se impõe é: não teria havido uma passagem do épico ao psicológico? É interessantíssimo: o Inferno da épica é o lugar
onde se abriga o passado e onde se gesta o futuro, o lugar onde moram os sonhos,
onde se encontram os medos e as paixões, o lugar onde habitam as figuras afetivas
da vida do herói, e onde se “prediz” o futuro… É na viagem ao Hades que Odisseu
vai deparar com a mãe, com as demais numerosas mulheres, figuras matriarcais,
com os companheiros tombados; e vai encontrar o adivinho Tirésias, que lhe dará
as fundamentais diretivas para o retorno à pátria.
Voltemos a Adorno, para quem a viagem de Odisseu, em seu todo, configura um itinerário do mythos ao logos, em que o herói se defrontará com seres
míticos, arcaicos, primitivos, na sua trabalhosa volta à pátria, família e poder.
Ítaca é a terra da civilização, da cultura, onde estão sua mulher, seu pai e seu
filho (e o casamento monogâmico, poderosamente iconizado pelo leito conjugal
inamovível, construído no tronco de uma grande oliveira). Por outro lado, Ítaca é
a ilha onde o amor não fenece, após 20 anos de ausência.
As aventuras de Odisseu com esses seres arcaicos e fantásticos constituirão
o núcleo da épica. Grandes helenistas (Carpenter, 1974; Germain, 1954; Page,
1973/1988; Hansen, 1997) debruçaram-se sobre esse miolo folclórico da Odisseia,
apontando o caráter de oralidade da epopeia – que a irmanará à poesia oral de
outros povos. Explica-se: uma vez que os poemas homéricos são, em sua origem,
poesia oral, é lícito deduzir que a Odisseia apresenta determinantes também encontráveis na literatura da oralidade de outras culturas, distantes no espaço e no
tempo. Efetivamente, há um “núcleo folclórico” da Odisseia que se abriga entre os
Cantos
IX
e
XII:
narrativas que ocupam cerca de 2.200 versos – mais de um sexto
do poema inteiro. É assim que Page, por exemplo, nelas aponta o “gênero” de narrativas populares encontradiças em outras civilizações, da bacia do Mediterrâneo
à Índia, à África, à Nova Zelândia, ao Japão (Page, 1973/1988). As aventuras que
Odisseu conta ao rei dos feácios têm origem na tradição popular.
Efetivamente, Odisseu vai contracenar com gigantes canibais de um olho
só; com seres que se alimentam da flor do lótus, que faz perder a memória; com
a maga Circe, que com sua varinha de condão transforma em porcos os companheiros de Odisseu (o que para Adorno representa o risco da reconversão ao
2
“Uma outra viagem”: é com esses termos, que Circe, no Canto X, participará a Odisseu a necessidade
de ele ir ao Hades. Diz ela: “Filho de Laertes, progênie de Zeus, engenhoso Odisseu, se assim vos praz,
não fiqueis mais tempo em minha casa; antes, porém, é necessária outra viagem: deveis ir à morada de
Hades e da terrível Perséfone, a fim de consultardes a alma do tebano Tirésias, o adivinho cego, cuja
mente continua viva. A ele Perséfone concedeu inteligência ainda após a morte, para que só ele fosse
inspirado, enquanto os outros adejam como sombras” (p. 124).
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estado animal); com o rei dos ventos, Éolo, que presenteia o herói com um odre
cheio de ventos, que seus companheiros abrem no navio, por curiosidade, provocando uma tempestade que comprometerá a volta a Ítaca; com as sereias, cujo
canto sedutor leva à destruição; com monstros híbridos, terríveis na sua voraz
brutalidade, como Cila e Caribdis; com as vacas que pertenciam ao deus Hélio, e
que acabam comidas pelos companheiros de Odisseu, causando-lhes o naufrágio.
Efetivamente, Odisseu se torna nesses relatos protagonista de narrativas antiquíssimas que, com pequenas alterações, fazem parte do patrimônio lendário de povos
e civilizações diferentes.
Algumas dessas narrativas são encontradiças até entre os nossos índios, à
margem de qualquer influência colonizadora europeia, como na lenda da iara ou
ipupiara – ser feminino tenebroso que habita as águas e leva os homens à perdição
–; ou no conto da curiosidade castigada, que põe a perder uma missão, na narrativa do curumim que abre o coco de tucumã que ele deveria levar intato na sua
canoa até a outra tribo, um coco contendo os seres da noite com seus barulhinhos,
e cujo orifício tinha sido fechado com cera. Por curiosidade, o curumim o abre, e
aí a noite se espalha no mundo.
Pois bem: foi baseado nos enfrentamentos de Odisseu com esses seres “folclóricos”, de narrativas do gênero “maravilhoso”, que Adorno tece suas doutas
considerações sobre a constituição do eu, aí vendo um trajeto que o sujeito empreende em confronto com potências míticas e através do qual ele se individua: “Nos
perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria
vida e à identidade da pessoa” (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 43). E ainda: “A
viagem errante de Troia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um
eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar
na consciência de si” (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 56).
Sendo mais fraco que seus oponentes, o protagonista só pode sobreviver
usando a inteligência – não por acaso, seu epíteto na épica é “o astuto Odisseu”,
tornando-se assim o protótipo dos heróis que vencem pela astúcia, a velha arma
dos fracos contra os fortes.
Adorno abordará as aventuras de Odisseu mostrando uma unidade “extraída das lendas difusas” (p. 55). Ele analisa os episódios em que Odisseu, nesse
retorno, tem um embate com entidades primitivas, arcaicas e mágicas, que a ele
se opõem, e que ele vence por meio da razão, sabendo renunciar num primeiro
momento, para poder ao fim afirmar-se plenamente. Em todas suas aventuras
aponta-se esse mesmo movimento de repressão instintual, condição para se firmar
como um eu.3
Vejamos à guisa de exemplo alguns episódios (todos analisados por Adorno),
começando pelo dos comedores de lótus, os lotófagos. Passo a palavra ao próprio
Odisseu, que, depois do combate com os cícones, dos quais seus homens, batidos,
3
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Jeanne Marie Gagnebin (2009) apresenta, num instigante ensaio, uma outra visão da Odisseia,
margeando a de Adorno & Horkheimer.
A Odisseia: TrAvessIA e consTITuIção do sujeITo | AdélIA BezerrA de Meneses
têm de fugir, incumbira alguns destes de descer do barco para investigar a nova
região na qual tinham aportado:
No décimo, abicamos à terra dos lotófagos, que se nutrem de flores. …. Os lotófagos não pensaram em matar nossos companheiros, deram-lhes a comer do loto
e quem, dentre eles, comia o fruto do loto, doce como o mel, já não queria trazer
notícias nem regressar, mas sim ficar ali com os lotófagos, sustentando-se de loto,
sem pensar no regresso. Eu os trouxe à força para bordo, desfeitos em pranto;
amarrei-os nos bojudos barcos, debaixo dos bancos. Aos outros leais companheiros
mandei que embarcassem à pressa nos ligeiros barcos, para que nenhum, comendo
loto, viesse a esquecer o regresso. (Homero, 1993, p. 103)
É esse um dos raros episódios em que, na refrega, não há perdas de companheiros, perdas físicas; mas aqueles que aceitaram essa comida, “doce como
o mel” (e que alguns autores interpretam como drogas alucinógenas), perderam
a memória. E, como sabemos, a memória é suporte da identidade pessoal. Sem
memória, os companheiros de Odisseu abandonariam seu projeto, a vontade do
regresso: nessa citação acima, curta, de poucas linhas, comparecem três vezes os
termos regresso/regressar. Diz Adorno que os lotófagos representariam, em termos
civilizacionais, uma “regressão, à fase da coleta dos frutos da terra e do mar,
anterior à agricultura, pecuária e mesmo à caça, em suma, a toda a produção”
(Adorno & Horkheimer, 1986, p. 68). Odisseu tem que obrigar os companheiros
deslembrados a continuarem com seu objetivo rumo à terra da civilização e da
cultura, e os traz à força, amarrados.
Logo após, os aqueus aportam no país dos ciclopes, gigantes de um olho
só. Neles, Adorno vê um vestígio do mundo pré-histórico: eles não têm a bidimensionalidade dos seres de dois olhos, que propiciam a percepção da distância, a
visão periférica e globalizante. Esse primitivismo não é só físico, mas de seu jeito
de viver: são canibais, de enorme força física, e, na apresentação que deles faz
Odisseu ao rei dos feácios, definem-se pela negativa:4
Chegamos ao país dos arrogantes e iníquos Cíclopes. Confiantes nos deuses imortais, eles não plantam com suas mãos uma planta, nem aram; tudo nasce sem sementeira nem aração – trigo, cevada, vinhas que produzem vinho com suas grossas
bagas – e as chuvas de Zeus tudo fazem crescer. Não têm praças de assembleia, nem
leis estabelecidas: moram na crista de altas montanhas, no seio de cavernas, e cada
qual dita leis aos filhos e esposas, sem se preocuparem uns com os outros. … Vivem
ali cabras selvagens inumeráveis; não as afasta o trânsito de pessoas, nem penetram
ali caçadores, habituados ao desconforto quando percorrem os cumes das montanhas. Não a ocupam rebanhos nem aradas; está o tempo todo vazia e sem gente,
sem semeaduras nem lavra, criando cabras berrantes. Não possuem os Cíclopes
4
Assinalei as negativas em itálico.
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naus de rostros vermelhos, nem vivem ali carpinteiros navais, que fabriquem barcos
bem providos de bancos, para lhes irem buscar todas as utilidades, aportando a
cidades de outros povos, como é frequente os homens cruzarem o mar em navios,
visitando-se uns aos outros … (Odisseia, p. 103)
Essas negativas metaforizam a ausência de cultura (no duplo sentido: ausência de civilização e ausência de cultivo agrícola). Mais adiante saberemos que eles
também não reverenciam os deuses, são “iníquos” e não praticam o fundamental
dever da hospitalidade, caracterizador dos humanos. Cair nas mãos dos ciclopes
seria regredir no nível civilizacional – mas os aqueus se verão prisioneiros de um
deles, Polifemo, que vai devorar alguns dos companheiros do herói. Odisseu o
vencerá com o estratagema de embebedá-lo e depois o cegar, mas sua astúcia
suprema será renunciar a declarar ao inimigo seu próprio nome de vencedor,
quando perguntado por Polifemo. Odisseu lhe responderá dizendo chamar-se
“Ninguém” (o que impediu que os demais ciclopes o atacassem, ao virem socorrer o companheiro ferido, atraídos pelos seus gritos: quando os outros gigantes
perguntaram a Polifemo quem o ferira, a resposta do ciclope cego foi: “Ninguém
me feriu!” Diz Adorno: “Ele [Odisseu] faz profissão de si mesmo negando-se
como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer” (Adorno &
Horkheimer, 1986, p. 65).
E há o episódio paradigmático das sereias, o mais conhecido da épica.
Vejamos, no Canto XII, as advertências de Circe a Odisseu, relativamente às sereias:
Primeiro encontrarás as duas Sereias: elas fascinam todos os homens que se aproximam. Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das Sereias, adeus regresso! Não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres a seu lado,
porque, com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina em meio
a montões de ossos de corpos em decomposição cobertos de peles amarfanhadas.
Toca para diante: amassa cera doce de mel e veda os ouvidos de teus tripulantes
para que mais ninguém as ouça. Se tu próprio as quiseres ouvir, que eles te amarrem
de pés e mãos, de pé na carlinga do barco veloz, e que as pontas das cordas pendam
fora de teu alcance, para te deleitares ouvindo o canto das Sereias; se insistires com
teus companheiros para te soltarem, que eles te prendam com laços ainda mais
numerosos. … (Homero, 1993, p. 142)
Aqui vemos, com uma clareza inequívoca, a sedução5 encenada em seu viés
etimológico: se-ducere significa conduzir para o lado, levar à parte, afastar, desviar
(do latim se = à parte + ducere = conduzir). Diz Adorno:
As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são perigosas seduções que desviam o eu da
trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução, experimenta-a como
5
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Tratei do tópos das sereias no ensaio “Sereias: sedução e saber” (Meneses, 2020).
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um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por uma tola curiosidade… (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 56)
Mas contra a sedução atua a repressão, que é aqui iconizada: o herói vence
a atração das sereias fazendo-se, muito sugestivamente, amarrar ao mastro do
navio (atando-se ao seu próprio eixo?), o que o impediria de atirar-se aos braços
das cantoras, ao mesmo tempo em que coloca cera nos ouvidos da tripulação, para
que não ouvisse o canto e continuasse a remar, sem desviar o barco de sua rota.
De fato, Adorno aponta nos embates de Ulisses com as sereias, com o
ciclope, com os lotófagos etc., etc. uma constante: a necessidade de se constituir
como sujeito passa pela necessidade de se dominar (“Ulisses, o eu que está sempre
a se refrear”, diz o filósofo) (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 61). O que pode
significar, num primeiro momento, perder-se: “Ulisses por assim dizer se perde a
fim de se ganhar” (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 56).
Por outro lado, há episódios que mostram os companheiros do herói sendo
incapazes de exercer essa, digamos, repressão instintual: comem da flor de lótus,
que lhes é oferecida, e se quedam desmemoriados; sucumbem à curiosidade
abrindo no barco o odre do rei Éolo, enquanto Odisseu dormia, provocando o
tufão desencadeado pelos ventos desatados em fúria; comem das vacas proibidas
do deus Hélio, também enquanto Odisseu dorme, e, desta vez, perecerão todos no
mar, com o navio estilhaçado por um raio de Zeus; com exceção de Odisseu, que
consegue, náufrago solitário, aportar na ilha de Calipso.
Desdobrando o prestigioso tópos da necessidade da repressão para a passagem da natureza à cultura – Freud não seria mais didático! –, o filósofo frankfurtiano transforma Odisseu no protótipo do ser humano:
A Humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu,
o caráter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa
forma a repetição disso. O esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas
as suas fases, e a tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação
cega de conservá-lo. (Adorno & Horkheimer, 1986, p. 44).
No entanto, ao longo da Odisseia, nem sempre se tratará de vencer monstros ou mesmo de driblá-los, às vezes o inimigo é interno. Na consulta que
Odisseu faz a Tirésias, no reino dos mortos (na primeira Nekya) no Canto XI da
Odisseia, a volta à casa é posta na dependência da sua capacidade de “domar
o coração”. Se, nas aventuras do núcleo folclórico da épica vemos Odisseu às
voltas com seres sobrenaturais, monstros híbridos, feiticeiras, gigantes, semideuses, seres com poderes mágicos, descida à Morada dos Mortos etc., na sua
volta ao Palácio de Ítaca sua luta será muito humana, ele contracenará com seres
“reais”, semelhantes a si. Não apenas ele tem a tarefa complicada de se fazer reconhecer pela mulher, filho e pai, mas terá que se desvencilhar dos pretendentes
à mão de Penélope – que disputavam, junto com a mão da rainha, o poder da
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ilha. E terá de lutar para “conter sua sofreguidão”. É assim que, mal chegado
a Ítaca, ainda incógnito (disfarçado em mendigo, e envelhecido pela deusa
Atena), terá que suportar calado as injúrias dos pretendentes e os maus-tratos de
Melântios, sem revidar para não se trair, antes de chegar o momento oportuno
de revelar sua identidade. A receita continua a mesma: refrear seus ímpetos, se
conter. Haverá necessidade não mais de domínio da natureza exterior, das forças
de um mundo externo hostil, mas urge um domínio interior. O herói terá de se
confrontar consigo próprio, com seu mundo interno, que ele perceberá como
dividido. Paradigmático é o episódio do Canto
XX,
em que o recém-chegado
Odisseu observa como as servas do palácio se esgueiravam de noite para ir ao
encontro dos pretendentes. Ele se enfurece, quer castigá-las, mas não pode agir,
sob pena de pôr em risco sua estratégia: Diz o texto:
O coração se agitou no peito de Odisseu, mas ele hesitou muito, em seu espírito
e seu coração, entre saltar-lhes no encalço e dar cabo de uma por uma, ou tolerar
que se reunissem com os desabusados pretendentes a última e derradeira vez, por
mais que ladrasse no peito o coração. … Contudo, esmurrando o peito, dirigiu ao
coração esta dura exortação: “Aguenta, coração! Já aguentaste açulamento pior, no
dia em que os Cíclopes de força invencível devoravam meus bravos companheiros
e tu aturaste até seres tirados da caverna pela astúcia, quando cuidavas que ias
morrer”. Assim falou, punindo o coração no peito; este descansou em profunda
calma e resistiu com bravura. (Homero, 1993, Canto XX, p. 236)
Adorno vê aqui um processo de questionamento da unidade do próprio ser:
“o sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos, seu
ânimo e seu coração excitam-se independentemente dele” (Adorno & Horkheimer,
1986, p. 243).
Essa passagem da Odisseia, extremamente famosa desde a época clássica,
suscitou reflexões posteriores, como as de Platão, que a comenta no Phédon e n’A
República. “Aguenta coração!”: Jacqueline Romilly (1991) utiliza essa expressão
como título de um livro seu, Patience, mon cœur, em que estuda o esboço de uma
psicologia no mundo grego.
Com efeito, a literatura é testemunha do desenvolvimento espiritual do ser
humano. Assim como a tragédia grega mostra a formação do homem como sujeito
responsável, estando então os gregos do século V a.C. às voltas com a categoria da
“vontade” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977, pp. 35-62), nos tempos homéricos,
recuados de quatro séculos (por volta do século
IX
a.C.), lida-se com algo ainda
mais primordial: a questão do in-divíduo no sentido etimológico, do não-dividido.
Resta um último item, fundamental, a ser ao menos aflorado. Volto a tratar
da viagem ao Hades, que se situa no meio das aventuras de Odisseu. Trata-se de
um episódio que não mereceu muitas considerações de Adorno, mas que é fundamental na épica, constituindo uma outra qualidade de viagem, imprescindível para
o processo de individuação do herói. No Canto X, a preparação para essa viagem
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é feita com rituais, com libações (de leite e mel, e vinho e farinha) e o sacrifício de
animais – tudo emprestando ao rito um intenso cunho iniciático e confirmando, a
meu ver, seu caráter inarredável de espaço de transformação do indivíduo –, e nele
uma grande reflexão sobre a mortalidade dos humanos vai ser posta.
No Hades Odisseu encontra Aquiles, o personagem que, mais do que qualquer outro, encarna a “bela morte” dos gregos – a morte heroica por excelência,
que colhe o herói na juventude, no auge da sua força e beleza e lhe propiciará posteridade na memória dos homens. Transcrevo o diálogo dos dois companheiros de
guerra, que se prezavam e admiravam, encontrando-se no mundo dos mortos. Diz
Odisseu à sombra de Aquiles:
Mais feliz do que tu, Aquiles, nenhum homem foi no passado nem será no futuro;
outrora, quando vivias, nós, os argivos, te honrávamos tanto quanto aos deuses e
agora, que te encontras aqui, exerces grande autoridade sobre os mortos; por isso,
Aquiles, não te pese de estares morto. (Homero, 1993, p. 137)
Mas a resposta de Aquiles é absolutamente desconcertante: ele renega
surpreendentemente a “bela morte” e declara que preferiria uma vida obscura e
humilde entre os vivos a um status glorioso na morte:
Ah! Não tentes consolar-me da morte, glorioso Odisseu; eu preferiria lavrar a terra
a serviço de outrem, de um amo pobre, de subsistência minguada, a reinar sobre as
sombras de todos os extintos. (Homero, 1993, p. 137)
Não existe maior exaltação da vida, mesmo tendo como contrapartida uma
morte que garantisse fama eterna junto aos pósteros.
É significativo que esse tópos ecoa algo da epopeia de Gilgamesh, em que
o grande herói mesopotâmico, ao perder seu inseparável companheiro Enkidu,
fica totalmente transtornado. A sombra de Enkidu volta do mundo dos mortos
somente para conversar com o grande amigo Gilgamesh, e estabelece-se um
diálogo que não poderia ser mais desesperador: no mundo dos mortos só há pó e
desolação. Gilgamesh, obcecado pela ideia da mortalidade humana, parte, então,
numa busca insofrida para interrogar o herói Utnapishtim (o equivalente mesopotâmico ao Noé bíblico), que fora divinizado e ganhara dos deuses a imortalidade
por ter conseguido salvar a humanidade e os animais da extinção, no Dilúvio.
Mas, quando o encontra, ouve de sua boca que o homem foi criado mortal, sendo
a imortalidade reservada só aos deuses.
Voltemos à Odisseia, e ao encontro de Odisseu com a sombra de Aquiles.
Para Gabriel Germain, que ressalta a importância da Epopeia de Gilgamesh na
gênese da Odisseia, o sentido da descida ao Hades em Homero se ampliaria se
tivesse como motivação não a busca das predições de Tirésias a respeito da volta
a Ítaca, mas exatamente por esse diálogo de Odisseu com Aquiles, que acima
transcrevi. Essa viagem às bordas obscuras do Reino dos Mortos, diz o helenista, é
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Ide, 43(71), 114-125. 2021
que propiciaria ao personagem “seu acabamento espiritual, depois do qual o herói
nada mais teria a aprender” (Germain, 1954, p. 344).
É extremamente interessante o confronto entre os dois heróis. Aquiles e
Odisseu vivenciam respectivamente o heroísmo da morte em combate, gloriosa
e eternizadora do nome; e o heroísmo da vida humana, precária e desgastável, à
beira da finitude, vida vivida na resiliência.
Diz Vernant (2009, p. 79) que esse encontro dos dois heróis no Inferno dará
também mais significação ao episódio do Canto V, em que Calipso, que é uma
deusa imortal, oferece a Odisseu a imortalidade e a juventude eternas, se ficassem
juntos; mas ele vai preferir voltar para Ítaca e para Penélope, como um ser humano
comum, sujeito aos sofrimentos e à morte. E ao envelhecimento, claro. É aqui um
dos momentos em que se verifica uma certa perda de “epicidade” do protagonista.
Com efeito, depois de sete anos retido pela deusa, literalmente escondido (kaliptô
= esconder) na ilha de Calipso, Odisseu se ressente duramente da impossibilidade
do retorno. Diz o texto do Canto
V
que a deusa o procura e o encontra sentado
na praia, “a chorar pelo regresso” (p. 63). E quando entram para cear, Calipso
(advertida por Hermes, a mando de Zeus, de que devia deixá-lo partir) participa
a ele sua decisão, e o propósito de ajudá-lo a construir uma embarcação em que
possa finalmente retornar. E lamenta:
Se ao menos compreendesses em teu coração por quantas provações estás destinado
a passar antes de chegares à terra pátria, deixar-te-ias ficar comigo, a guardar este
palácio, e serias imortal, por mais que desejasse ver a tua esposa, por quem suspiras
sempre dia após dia. (Homero, 1993)
Em mais de uma passagem alude-se na Odisseia a essa recusada oferta de
imortalidade, por parte de Odisseu, à luz dos embates que o retorno lhe imporia.
Diz Vernant (2009, p. 79) que “Há um heroísmo do retorno, que é exatamente
o inverso do heroísmo que consiste em aceitar de antemão que não se voltará…”
Para ele, Odisseu é o contrário de Aquiles: Aquiles é o herói da vida breve e
da morte gloriosa, Odisseu é o homem da fidelidade à vida. Sua resiliência, sua
inteligência e seus enormes recursos são acionados “tentando preservar a sua vida
e o repatriamento de seus companheiros”. O que quer dizer: tentando voltar à
pátria, à família, ao poder; e a tudo que Ítaca significa em termos de passagem do
mundo da natureza para o da cultura, do mundo do mito ao do logos, do estado
de desagregação ao da individuação. Travessia.
E o termo “Odisseia” passou do plano particular para o do geral: de algo
que se referia à viagem de um herói, Odisseu, à viagem de todos nós.
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A Odisseia: TrAvessIA e consTITuIção do sujeITo | AdélIA BezerrA de Meneses
Poderíamos finalizar a leitura da Odisseia, reafirmando a interpelação do
poeta grego moderno, Kavafis, a Odisseu, no poema Ítaca, com que abri este texto:
não busques apressar tua viagem
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
Que aportes velho, finalmente, à ilha,
Rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
Sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
referências
Adorno, T. W. & Horkheimer, M. (1986). Dialética do esclarecimento. Zahar. Ver sobretudo
os capítulos “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou mito e esclarecimento”.
Calvino, I. (2007). Por que ler os clássicos. Companhia das Letras.
Carpenter, R. (1946). Folk tale, fiction and saga in the Homeric epics. University of California
Press.
Epopeia de Gilgamesh. Martins Fontes, 2011 (obra datada originalmente do século XX a.C.).
Gagnebin, J. M. (2009). “A memória dos mortais: Notas para uma definição de cultura a
partir de uma leitura da Odisseia”. In J. M. Gagnebin, Lembrar escrever esquecer. Editora
34.
Germain, G. (1954). Genèse de l’Odyssée. Le fantastique et le sacré. Presses Universitaires de
France.
Hansen, W. (1997). “Homer and the folktale”. In: I. Morris & B. Powell (orgs.), A new
companion to Homer. Bril.
Homero (1993). Odisseia. Cultrix (texto de literatura oral, produzido por volta do séc. XII
a.C., e publicado por volta do séc. VI a.C.).
Meneses, A. B. de (2020): Sereias: sedução e saber. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
n. 75, pp. 71-93, abr. 2020. USP, São Paulo. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/
rieb/article/view/169168.
Page, D. (1988). Racconti popolari nell’Odissea. Trad. R. Velardi. [S. l.], Liguore Editore.
[Original: Folktales in Homer’s Odyssey. Cambridge (Massachusetts), Harvard University
Press, 1973].
Romilly, J. (1991): Patience, mon cœur. L’essor de la psychologie dans la littérature grecque
classique. Les Belles Lettres.
Vernant, J.-P. (2009). A travessia das fronteiras. entre mito e política II. Edusp.
Vernant, J.-P. & Vidal-Naquet, P. (1977). Mito e tragédia na Grécia antiga. Duas Cidades.
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