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Luiz Nazario - As narrativas pioneiras do Holocausto (2008)

As narrativas pioneiras do Holocausto Luiz Nazario* O primeiro filme narrativo antinazista de que se tem notícia é The Wandering Jew / Der Vandernder Yid (O judeu errante, EUA, 1933, 35mm, 66’), de George Roland. Foi o primeiro filme norte‑americano – e o único falado em iídiche – a abordar a perseguição dos judeus na Alemanha nazista, produzido pelo Jewish American Film Arts no Atlas Studio em Long Island, no verão de 1933, apenas alguns meses após a tomada do poder por Hitler. Na trama, um artista judeu sofre na carne o anti‑semitismo alemão ao ver sua obra‑prima rejeitada pela Academia de Arte de Berlim. Mais tarde, a figura pintada aparece‑lhe viva, contando a história do anti‑semitismo. O filme termina com cenas reais de uma manifestação contra Hitler na Madison Square Garden de Nova York. Segundo o The New York Times, o filme arrepiava os espectadores nas seqüências em que descrevia as tribulações do povo judeu, sendo difícil imaginar denúncia mais contundente do nazismo. Dois pioneiros filmes russos denunciaram o anti‑semitismo nazista: Professor Mamlok (Professor Mamlok, URSS, 1938), de Adolf Minkin e Gerbert Rappaport (ex‑asistente de Georg Pabst), rodado em Leningrado, baseado na peça A saída do Doutor Mamlock, de Friedrich Wolf, proibida na Alemanha, mas montada em Moscou; e Semya Oppengeym (Os Oppenheimer, URSS, 1938, 97’), de Grigori Rochal, baseado no conto de Lion Feuchtwanger, com judeus alemães perseguidos apesar de terem sido sempre patriotas, fiéis à Alemanha. Depois do pacto germano‑soviético os dois filmes foram banidos. Com a guerra, um único filme foi produzido na URSS denunciando as ações nazistas contra os judeus: Nepokoryonnye (Os indomáveis, 1945), de Marc Donskoy, sobre Kiev ocupada e o massacre de Babi‑Yar. Nos EUA, diversos filmes antinazistas foram produzidos no período de 1939‑1945, com menções aos campos de concentração e ao assassinato dos judeus, entre os quais The Great Dictator (O grande ditador, 1939), de Charles Chaplin; Confessions of a Nazi Spy (Confissões de um espião nazista, 1939), de Anatole Litvak; The Mortal Storm (Tempestades d’alma, 1940), de Frank Borzage; Foreign Correspondent (Correspondente internacional, 1940), de Alfred Hitchcock; The Pied Piper (Os abandonados, 1942), de Irving Pichel; To Be or Not to Be (Ser ou não ser, 1942), de Ernest Lubitsch; Watch on the Rhine (Horas de tormenta, 1943), de Hermann Shumlin; Education for Death (Educação para a morte, 1943), de Clyde Geronimi; Hitler’s Children (Os filhos de Hitler, 1943), de Edward Dmytryk; Hangmen Also Die (Os carrascos também morrem, 1943), Hitler’s Madman (O homem que quis matar Hitler, 1943) e Ministry of Fear (Ministério do medo, 1944), de Fritz Lang; The Seventh Cross (A sétima cruz, 1944), de Fred Zinemann; e None Shall Escape (Ninguém escapará ao castigo, 1944), de André De Toth. Apesar das impressionantes intuições dos artistas que se engajaram corajosamente na realização destes filmes, ainda muito pouco se sabia sobre a real dimensão do Holocausto. Somente no imediato pós‑guerra, com a abertura dos campos e seus registros fotográficos e cinematográficos, reportagens e testemunhos, é que se pode perceber todo o abismo que os nazistas haviam cavado. E antes mesmo de o Holocausto tornar‑se objeto de estudo, alguns raros filmes foram realizados por diretores americanos sensíveis à questão judaica, e por judeus sobreviventes que viveram os horrores do nazismo. Eles ousaram tratar de um tema inédito no cinema por não possuir precedentes na História. Pela representação pioneira de uma realidade que permanecerá irrepresentável por décadas, este filmes tiveram repercussão em seu lançamento, mas foram, por razões políticas, banidos e esquecidos. Hoje se encontram entre os mais importantes documentos visuais sobre a Shoah. 1 The Stranger (O estranho, 1946) Sem poder descuidar de sua função primordial de entretenimento, de seu compromisso com o sucesso de público e as receitas da bilheteria, o cinema industrial americano começou a abordar o Holocausto Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. de uma forma ambígua, que o inseria numa narrativa tradicionalmente mais popular. As atrocidades de guerra foram mostradas, no princípio, de uma maneira indireta, mesclada à narrativa dos filmes noir. Orson Welles, que havia declarado que “todo filme policial é um filme político”, foi o primeiro cineasta a abordar o tema do Holocausto em The Stranger (O estranho, EUA, 1946, p&b, 95’). Foi o primeiro filme narrativo a mostrar registros do extermínio em massa nas câmaras de gás dos campos nazistas. O anti‑semitismo é abordado num diálogo‑chave que permitirá que o criminoso nazista seja identificado pelo “caçador de nazistas”. O Holocausto, contudo, não é o tema principal do filme, mais voltado para o drama psicológico da ingênua esposa americana que se recusa, quase até o desfecho fatal, a acreditar que se casou com um carrasco nazista. Loretta Young é Mary Longstreet, filha de um juiz, apaixonada pelo marido, o pacato professor universitário suíço Charles Rankin, cujo hobby é consertar relógios antigos. O acadêmico não hesita, contudo, em matar a sangue frio o ex‑amigo Meinike, em visita a Connecticut. O camarada era, na verdade, seu assistente num campo de concentração. Sob o disfarce do professor imigrado, escondia‑ se o genocida SS Franz Kindler. Alertada pelo investigador Mr. Wilson (Edward G. Robinson), da Comissão de Crimes de Guerra, a boa mulher recusa‑se a acreditar que o marido seja um nazista. Welles mostra o carrasco SS como homem charmoso (o próprio diretor o interpreta), quebrando o estereótipo, mas sem deixar de considerá‑lo verdadeiro, do nazista sádico de bota e chicote de alguns filmes de propaganda. E induz pela primeira vez o grande público do cinema de entretenimento a encarar a realidade dos campos, em cenas chocantes projetadas pelo caçador de nazistas como prova dos crimes contra a humanidade, cometidos por Kindler. No clímax final, de extraordinário suspense, o nazista é acuado no alto da torre do relógio, recebendo a devida punição. Embora Welles preferisse que o personagem do caçador de nazistas fosse uma agente feminina interpretada por Agnes Moorehead; e ainda que o filme tenha sido remontado pelo produtor Sam Spiegel, suprimindo cenas que o diretor considerava essenciais, O estranho foi um dos únicos filmes de Welles a obter sucesso comercial, permanecendo um forte drama, encenado com grande elegância. Não merecia o esquecimento em que caiu nas décadas seguintes, por conta de críticos mal informados ou maldosos. Pode‑se medir, por exemplo, a difamação sofrida pelo filme, valioso sob vários pontos de vista, numa entrevista concedida por Rogério Sganzerla ao jornal O Pasquim de 5 de fevereiro de 1970. O cineasta brasileiro, grande fã de Welles, diretor a quem dedicaria diversos artigos e filmes, denigre a obra sem tê‑la visto, afirmando com segurança: “[Orson Welles] fez alguns filmecos como, por exemplo, um filme chamado O estranho, que eu não vi, mas dizem que é horroroso”. Helena Ignez intervém com precaução: “Você está dizendo como produção, não é?”, mas Sganzerla prossegue com uma convicção adquirida: “Como produção e como criação. É um filme que em vez de estar baseado no luxo e no equilíbrio do Cidadão Kane, está baseado na miséria, na escrotidão dos atores, na diferença de qualidade, de técnica e de negativo”. Por muito tempo desprezado como uma “obra menor” ou “artisticamente fracassada” na filmografia do cineasta, O estranho foi relançado mundialmente em DVD em 2007, em cópia restaurada pela MGM, revelando suas surpreendentes qualidades, até recentemente menosprezadas. Entre outros méritos, o filme de Welles tem o de ter sido o primeiro filme narrativo a conseguir integrar, em sua trama policial e psicológica, de fundo sutilmente político, cenas reais dos registros dos campos de concentração nazistas, trazendo o Holocausto para o centro das atenções do grande público. 2 Adamah (Terra, 1947) Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. Hoje desaparecido, Adamah (Terra, Palestina/EUA, 1947, p&b, 75’) foi o primeiro filme sobre o Holocausto realizado em Israel, antes mesmo de sua independência. Foi Dr. Siegfried Lehmann, diretor da Vila Ben Shemen para as Crianças e os Jovens, na Palestina, quem teve a idéia do filme. Pediatra nascido em Berlim, em 1892, preocupado nos anos de 1920 com o destino das crianças de Kovno, Lituânia, após os pogroms, ele acolhera os menores numa casa. Em 1927, imigrou com todas elas para a Palestina, aí fundando a Vila Ben Shemen, onde desenvolveu suas idéias de máxima responsabilidade assumida por cada um, autogoverno e liberdade intelectual, imersão em cultura e agricultura, e treinamento vocacional. O número de crianças cresceu rapidamente e, em 1931, a Vila tornou‑se a maior cidade de crianças do mundo, abrigando 220 mil menores. Durante e logo após a Segunda Guerra, Ben Shemen desempenhou um papel relevante acolhendo crianças e jovens refugiados. Em 1940, armas ilegais foram encontradas na Vila, e membros da Ben Shemen foram presos. Em 1947, Dr. Lehmann teve a idéia de realizar um filme sobre sua escola, onde viviam muitas crianças sobreviventes, ainda traumatizadas pelo Holocausto. O grande diretor e fotógrafo Helmar Lerski foi encarregado de levar a visão do Dr. Siegfried Lehmann às telas. Nascido em Strassbourg, em 1871, como Israel Schmuklerski, ele imigrara para os EUA em 1893, iniciando uma carreira de ator em teatro de língua alemã. Em 1910, abriu um estúdio de fotografia em Milwaukee. Retornou à Europa em 1915, e nos anos seguintes trabalhou no cinema, em Berlim. Participou como fotógrafo de importantes filmes do período expressionista, incluindo O gabinete das figuras de cera, de Paul Leni, e Metropolis, de Fritz Lang. Era o chefe da Deutsche Spiegeltechnik. Mas como muitos consideravam sua fotografia “estética” demais, poucos trabalhos eram‑lhe oferecidos no cinema. Em 1928, ele retornou à fotografia com o álbum Köpfe des Alltags (Cabeças do cotidiano). Em 1931, Lerski foi à Palestina e passou a contribuir com a indústria cinematográfica local. Em 1936, ele realizou outra importante série de fotografias: Verwandlungen durch Licht (Metamorfoses através da luz), com 175 retratos expressivamente diferentes de um mesmo rosto. Seu estilo caracterizava‑se por efeitos de luz inusitados e uma tendência ao extremo close‑up. Em seu trabalho cinematográfico este estilo traduziu‑se por seqüências compostas quase exclusivamente de closes. Rodado entre abril e julho de 1947, Adamah foi financiado parcialmente pela Aliá da Juventude e a Wizo dos EUA. Hazel Greenwald, durante muito tempo autoridade dos filmes da Hadassah, a Organização das Mulheres Sionistas da América, que representava a Jovem Aliá nos EUA, e ajudara com fundos o término da produção deficitária de Adamah, obtendo em troca os direitos de sua distribuição nos EUA. Uma versão modificada foi preparada em 1948. Lehmann exigiu que não se tocasse no negativo e que a cópia modificada circulasse apenas na América. A nova versão, finalizada em julho de 1948, foi intitulada Tomorrow’s a Wonderful Day (Amanhã é um dia maravilhoso, EUA, 1948, p&b, 48’), com roteiro de Mina Brownstone e adaptação de Hazel Greenwald. Expurgavam‑se as cenas mais dramáticas de Adamah, que ganhava uma narração em off por um jovem americano, Jimmie Lipton, contando a história do ponto de vista de Benjamin. Tomorrow’s a Wonderful Day foi apresentado a 8 de julho de 1948 no 3? Festival Internacional do Filme de Locarno. Lerski ficou furioso com as mutilações, que eliminavam completamente cenas que ele considerava essenciais. A estréia israelense deu‑se em outubro de 1948 em Tel Aviv, no cinema Esther, onde o filme permaneceu três semanas em cartaz. Havia apenas uma cópia do filme em Israel, por isso o filme foi pouco visto. O filme foi exibido em Nova York em abril de 1949 e foi elogiado no Festival e Edimburgo deste ano. Todos os negativos em nitrato de Adamah foram depositados na Vila Bem Shemen, onde, em 1960, queimaram num incêndio. Buscas por novas cópias resultaram num achado: uma última cópia de Adamah foi encontrada num escritório da organização Keren Kayemet, na França. O cônsul israelense deste país, Walter Eytan, cujo filho visitava Ben Shemen, enviou o filme para Israel em 1965. Por segurança, programou‑se uma nova cópia de Adamah. A última cópia conhecida foi levada ao National Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. Film Laboratory, em Tel Aviv. Antes que o filme fosse ali copiado, foi realizado um teste de cópia de 5 minutos em 16mm. A qualidade era ruim, e enquanto, nos dias seguintes, se decidia o que fazer, um incêndio irrompeu no banco Kupat Am Bank, que ficava sobre o laboratório. A água usada para extinguir o fogo destruiu a última cópia de Adamah. O teste de cinco minutos em 16mm tornou‑se a única relíquia que restou do filme original. Esse fragmento testemunha, apesar da baixa qualidade fotográfica, a força do poder combinado das visões de Siegfried Lehmann e Helmar Lerski. Ironicamente, a versão mutilada, Tomorrow’s a wonderful Day, sobreviveu à tragédia. Adamah contava a história do pequeno sobrevivente Benjamin, de quinze anos, oito dos quais passados em campos de concentração. Ele é interpretado por Benjamin Hildesheim, cuja história de vida confundia‑se com a do personagem, assim como a da maioria das crianças e jovens do filme. Inadaptado à Vila Bem Shemen e ainda traumatizado pela experiência dos campos, ele é assaltado pelas imagens dos horrores que vivenciou. Vê os brinquedos das crianças que foram mortas, entre os quais uma grande boneca. Ao “despertar” de suas lembranças, tem diante de si duas garotinhas sorridentes aguando flores com regadores de plástico. A festa de Chanukkah, com as crianças carregando flores e frutos, traz‑lhe à mente a miséria de Auschwitz; ele afasta as imagens do campo e volta a assistir à cerimônia com excitação. No dramático final, diante da cerca da Vila, que ressuscita em Benjamin as imagens dos arames farpados do campo, ele revê os corpos enterrados em valas. As imagens do trauma – o filme recorre às cenas reais dos registros de Auschwitz – retornam sempre, e as crianças da Vila precisam de toda ajuda de seus professores para conseguir afastá‑las e encontrar novamente força para viver. Finalmente, Benjamin consegue exorcizar as lembranças do mal, afastando‑as com as mãos como quem desperta de um pesadelo. De volta à escola, assiste a um filme mostrando o desenvolvimento da Vila (com cenas de um antigo curta‑metragem, hoje perdido, que o pioneiro cineasta israelense Ya’acov Ben Dov havia realizado sobre Ben Shemen). Dois anos mais tarde, Benjamin tornou‑se líder de um grupo, e deixa a Vila para estabelecer um novo assentamento. A emocionante trilha musical do filme era assinada por Paul Dessau; a canção “Adamah” foi composta por Chanan Eisenstaedt; e as músicas folclóricas tiveram arranjos de S. Petrushka. O cartaz original de Adamah foi criado por Richard Levy. Em 1948, a Vila Bem Shemen foi evacuada para um campo militar britânico perto de Netanya, depois para Kfar Vitkin, perto de Caesarea. Em 1997, comemorando os 50 anos da produção de Adamah, o Steven Spielberg Jewish Film Archiv montou a exibição “Adamah. A Vanished Film”, que traçou o contexto da produção, exibição e destino deste filme mítico. A maior parte da documentação foi reunida durante décadas, incluindo fragmentos da película, por Richard Lewinsohn, membro da Ben Shemen, que fez os stills do filme. Muitos ex‑alunos da Vila Ben Shemen destacaram‑se na vida política e cultural de Israel: entre eles, Shimon Peres. 3 Morituri (Morituri, 1947/1948) Morituri (Morituri, Alemanha, 1947/1948, 16mm, p&b, 88’), de Eugen York, foi produzido por Artur Brauner, que chegou em Berlim em 1946 com a intenção de realizar um filme sobre as experiências que ele e outros judeus haviam vivido na Segunda Guerra, os anos em que passaram se escondendo dos nazistas, na maioria das vezes sem sucesso. Adquiriu uma antiga fábrica de munição e gás venenoso e ali criou sua produtora, a Central Cinema Company: “Eu queria transformar a fábrica de gás venenoso numa fábrica de sonhos”. Em Morituri, Dr. Broneck, médico de um campo de concentração na Polônia, escolhe aleatoriamente um grupo de prisioneiros oriundos de diversos países, entre os quais um holandês (Klaus Kinski) e os ajuda a escapar. Os fugitivos escondem‑se numa gruta e vivem sob o pânico de serem descobertos por uma patrulha alemã. Quando um jovem oficial nazista é capturado por eles, os fugitivos, depois de muita ponderação, decidem libertá‑lo, pois concluem que seu sofrimento não é obra de um homem só. Quando já estão morrendo à míngua, eles são salvos pelo jovcem oficial, que fora encarregado da Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. retirada do exército alemão da região. O filme foi um grande fracasso de bilheteria. O público alemão o vaiava a cada sessão e ex‑nazistas acabaram depredando o cinema em que estava sendo exibido em Hamburgo. Depois disso, nenhum outro cinema quis exibi‑lo e Brauner quase foi à falência. O fracasso financeiro acabou transformando Artur Brauner no mais bem‑sucedido produtor da Alemanha, pois, para pagar suas dívidas, começou a lançar comédias e faroestes baratos, mas de alto retorno comercial. Com o lucro obtido com seus filmes escapistas, ele pôde trazer de volta cineastas exilados como Fritz Lang e Rolf Thiele e retornar à sua missão de dar voz às vítimas do nazismo. Dos cerca de 230 filmes que produziu 20 foram sobre o Holocausto, entre os quais O Jardim dos Finzi‑ Contini, de Vittorio de Sica; Um Amor na Alemanha, de Andrzej Wajda; Europa, Europa, de Agnieszka Holand; e Babi Yar, seu último filme, que narra o massacre de 33.771 judeus – incluindo doze membros de sua família – pelos SS numa floresta perto de Kiev. A trama central – uma ucraniana que denuncia uma judia vizinha, amiga há vinte anos, para ficar com sua casa, é baseada em cartas de seus parentes. Por ocasião do lançamento do filme, Brauner declarou: “Carrego este filme há cinqüenta anos. Agora, posso finalmente dormir algumas noites em paz. É como se eu tivesse enterrado alguém.” Aos 85 anos Artur Brauner recebeu o prêmio Berlinale Kamera no Festival de Berlim de 2003. 4 Lang ist der Weg (Longo é o caminho, 1948) Com versões em iídiche, alemão e polonês, Lang ist der Weg (Longo é o caminho, Alemanha, 1948, 35mm, 77’), de Herbert Fredersdorf e Marek Goldstein, concebido e escrito por Israel Becker, um dos fundadores da primeira companhia profissional de teatro iídiche na Alemanha do pós‑guerra, representou o Holocausto segundo uma perspectiva judaica. Realizado por judeus então considerados DP ‑ Displaced Persons, egressos dos campos de concentração e destituídos de seus lares, o filme foi rodado em locações em Landsberg, o maior campo DP na zona de ocupação americana na Alemanha. Mesclando neorealismo e expressionismo, os realizadores descreveram sua própria situação. O fio narrativo segue um judeu polonês (Israel Becker) e sua família desde a vida que levavam na comunidade judaica da Varsóvia de antes da guerra, passando pelos horrores de Auschwitz, até as frustrações e instabilidade da vida dos refugiados nos campos DP, culminando com a emergência da esperança de renascimento numa futura vida renovada em Israel. 5 Unzere Kinder (Nossas crianças, 1948) Unzere Kinder (Nossas crianças, Polônia, 1948, p&b, 70’), de Natan Gross, Shaul Goskind, Shimen Dzigan e Ysrael Szumacher, foi o último filme iídiche realizado na Polônia, com roteiro de Rachel Auerbach, Bronislaw Brok, Jean Farge e Natan Grosse. Segundo J. Hoberman, este é não apenas um dos primeiros filmes sobre o Holocausto como também o primeiro a criticar sua representação. Dois comediantes, Dzigan e Shumacher, interpretam todos os papéis numa peça de Sholem Aleichem para um público de crianças sobreviventes do Holocausto – crianças da colônia Helenowek, mantida pelo American Jewish Joint Distribution Committee (JDC). Mas ao trocarem de papel, interpretando os personagens, as crianças ultrapassam os atores. O filme procura demonstrar os poderes curativos e libertadores da canção, da dança e da narrativa, num momento em que tantas crianças judias precisavam superar suas perdas e seus traumas. Produzido na Polônia em 1948, o filme foi banido pela nova censura do regime comunista. Não existem cópias disponíveis do filme nem em VHS, nem em DVD. 6 Ostatni Etap (A última etapa, 1948) Ainda não lançado em DVD e disponível apenas em VHS, lançado pela distribuidora americana de filmes poloneses Polart, Ostatni Etap (A última etapa /The Last Stage, Polônia, 1948, p&b, 110’), de Wanda Jakubowska, é a crônica do horror vivido por um grupo de prisioneiras em Auschwitz. Rodado em locação neste que foi o maior de todos os campos nazistas de extermínio, o filme foi Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. baseado nas experiências da própria diretora, ex‑interna em Auschwitz, segundo um roteiro da cineasta Edguerda Schineideir. Anette Insdorf descreveu Ostatni Etap como um dos raros testemunhos sobre o Holocausto realizado, logo após a guerra, por uma mulher, e um dos filmes mais poderosos e autênticos sobre Auschwitz, rodado em suas línguas de origem (os poloneses falam polonês; os russos, russo; os alemães, alemão; os franceses, francês), nos locais mesmos dos acontecimentos pelas pessoas e com as pessoas que os viverem, incluindo a diretora. O filme pinta um retrato implacável da brutalidade dos nazistas e de alguns Kapos e ressalta a solidariedade salvadora das prisioneiras. Logo no início, o filme mostra como as mulheres deviam suportar de pé, no frio, mudas, os insultos e golpes da blochowa, a prisioneira responsável pela manutenção da ordem em sua barraca. As blochowas gozavam de privilégios especiais em recompensa de sua atitude severa em relação às outras prisioneiras. Quando uma mulher desmaia, uma blochowa tenta punir o grupo inteiro, mas as mulheres, solidárias, fazem de tudo para reconfortar aquela, que estava grávida. O nascimento do bebê conta com a ajuda da digna e decidida doutora russa. Mas o médico‑chefe alemão confisca a criança e submete‑a a uma “inoculação”. A condição partilhada de mulheres sem crianças parece ter sido uma fonte de amizade mútua de numerosas prisioneiras dos campos: as mães que perdiam seus filhos e as mulheres que pensavam que jamais poderiam ter filhos porque não tinham mais regras compensavam a maternidade frustrada com uma intensa afeição pelas companheiras de prisão. A mãe que pede seu bebê junta‑se a um grupo de mulheres engajadas que trabalham no hospital, lugar privilegiado que guardou o contato com o mundo exterior. Elas tentam passar informações para fora do campo, enquanto os oficias alemães procuram reduzir o tempo e o custo do gaseamento. Um homem sugere usar os prisioneiros como mão‑de‑obra; mas uma mulher insiste que o objetivo do campo é destruir os “elementos racialmente indesejáveis”: com sangue frio imperturbável, eles estabelecem a meta de eliminar 50 mil pessoas por dia. Um trem chega à noite em Auschwitz. O comandante falando apenas alemão e seus soldados armados separam brutalmente os 2500 judeus poloneses uns dos outros e tomam suas bagagens. O SS percebe Marta Draviska, uma jovem do comboio que traduz suas ordens para o polonês, e faz dela sua intérprete, poupando‑lhe a vida. O resto do grupo é conduzido como rebanho. No espaço agora deserto, permanece apenas uma boneca abandonada por uma criança. O grande plano de uma bota alemã pisando sobre a boneca simboliza o destino da criança que a possuía. Cada mulher é metodicamente despossuída de seus pertences, roupas, cabelos e tatuadas no braço esquerdo. Marta interroga perplexa outra prisioneira a propósito de um corpo que apodrece no arame farpado e toma consciência dos “muçulmanos”, expressão dada aos prisioneiros esqueléticos que desistem de viver. Marta também aprende que a fumaça que sai da chaminé provém dos corpos queimados do comboio em que estava. Marta torna‑se um membro da resistência. Um grupo de mulheres elegantes, ainda vestindo casacos de peles, chega a Auschwitz. No plano seguinte, vestidas como prisioneiras, elas tentam conquistar favores da blochowa através de pequenos presentes. Uma delas, Lalunia, esposa de um farmacêutico, tenta passar‑se por médica e substituir Eugenia, que foi torturada até a morte por ter dito a verdade à comissão dos países neutros, que viera investigar Auschwitz. Enquanto Lalunia rouba objetos do hospital para presentear a blochowa e obter privilégios dos opressores, a resistência consegue fazer evadir Marta e Tadek, um prisioneiro polonês, com o objetivo de informar os aliados sobre os planos dos nazistas para Auschwitz. Eles conseguem divulgar a estratégia alemã de dissimulação dos traços daquela indústria de morte, mas são capturados. Marta será executada. Mas através de um prisioneiro uma faca chega até sua mão e ela consegue matar‑se antes de ser enforcada em público, declarando enquanto agoniza: “Os libertadores Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. estão chegando”. Subitamente, aparecem aviões no céu. A agonizante ainda declara à mulher que a segura nos braços: “Não se pode permitir que haja um novo Auschwitz”. O filme apresenta toda uma série de acontecimentos dramáticos com simplicidade eficaz. Quando um caminhão carregado de judeus franceses parte para as câmaras de gás, uma mulher grita a uma jovem que escapou da seleção: “Você deve viver para dizer a todo mundo o que nos aconteceu!”. O alemão que vigia o carregamento, sabendo francês, ordena à jovem que suba com as outras. Ela obedece, mas começa a cantar a Marselhesa. A utilização do hino francês é comovente por que, como observou Annette Insdorf, estas mulheres (e o público) sabem que é a última canção que entoarão. A diretora Wanda Jakubowska também utiliza a música como contraponto irônico: quando batem nos prisioneiros para forçá‑los a entrar nas câmaras de gás, a orquestra das mulheres interpreta Beethoven e Brahms; e quando Eugênia é torturada, o oficial alemão coloca um disco que toca uma canção russa. 7 Ulica Graniczna(Rua da Fronteira, 1948) Outro importante documento fílmico sobre o Holocausto é Ulica Graniczna (Rua da Fronteira / Border Street, Polônia, 1948, p&b, 115’), de Aleksander Ford, com Maria Broniewska, Mieczyslawa Cwiklinska e Tadeusz Fijewski. Lançado em DVD nos EUA pela Polart / Facets Video, Ulica Graniczna revela o racismo nas classes médias e altas da sociedade polonesa que dividiam a cultura como polonesa ou judaica. Este anti‑semitismo polonês facilitou a implementação das leis raciais nazistas quando os alemães invadiram o país: o saque aos judeus e a tomada de suas propriedades foi realizada com entusiasmo e sem qualquer constrangimento. Adotando um estilo semidocumentário e ao mesmo tempo uma narrativa expressionista, Ford acompanha a trajetória de um grupo de amigos adolescentes e seus familiares em meio às medidas legais que os arrastam para o Gueto. O filme recria com dramático realismo a vida no Gueto de Varsóvia até o Levante organizado por um pequeno grupo de judeus que preferiram morrer lutando a serem deportados para os campos de morte; uma resistência desesperada, que afirmou, na situação mais extrema, a dignidade de um povo perseguido como nenhum outro em milênios de História. São impressionantes as cenas documentais das ruínas de Varsóvia e a perfeita reconstituição, nos estúdios Barrandov, em Praga, das fábricas judaicas do Gueto, além da perseguição e fuga pelos esgotos que, mais estilizadas, tornarão famoso, quase uma década depois, o clássico Kanal (Canal, 1957), de Andrej Wajda. Todo o drama se concentra num grupo de crianças, que manifestam, entre elas, as mesmas divisões que ocorrem no mundo dos adultos: os pequenos colaboradores, a menina que se descobre judia, o jovem polonês que adere à Resistência, o pequeno e aparentemente frágil neto de um judeu ortodoxo, que no final do filme transformou‑se num adulto precoce, assumindo com coragem e fatalismo todo o peso da Resistência judaica. Ulica Graniczna foi proibido na Polônia comunista por mostrar que o movimento de resistência judeu – a despeito de sua impossibilidade de vitória e da penúria de seus membros – foi o primeiro em toda a Europa a enfrentar as forças nazistas de Ocupação. O regime comunista não admitia que um filme abordasse a luta contra o nazismo de uma perspectiva judaica, e colocasse os comunistas num segundo plano na luta de Resistência. 8 The Search (Perdidos na tormenta, 1948) Inspirado nas imagens do livro Europe’s Children, da fotógrafa Therese Bonney, que documentara os órfãos da guerra; e com um roteiro de Richard Schweizer, com base no argumento de Richard Schweizer e David Wechsler, The Search (Perdidos na tormenta, EUA, 1948, p&B, 105’), de Fred Zinnemann, foi o primeiro filme de um grande estúdio americano a receber licença para ser rodado em locações nas zonas administradas pelo exército americano. O filme revelava ao grande público as ruínas da Alemanha (nomeadamente das cidades de Nuremberg e Berlim) no imediato pós‑guerra. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. As ruínas de Berlim também serão vistas nas cenas iniciais de A Foreign Affair (A mundana, 1948), de Billy Wilder, quando a congressista americana que acompanha os processos de desnazificação olha pela janela do avião que a leva a Berlim; as cenas haviam sido rodadas por Wilder com uma câmara 16 mm ao sobrevoar aquela cidade logo depois da guerra; ele as reaproveitou inserindo‑as incidentalmente na narrativa do filme. Já em Pedidos na tormenta, as pontes, estradas, casas e monumentos destruídos em Nuremberg são os cenários reais por onde perambulam os personagens do drama, à maneira dos filmes do “cinema de ruínas” alemão e do neorealismo italiano: como Die Mörder sind unter uns (Os assassinos estão entre nós, 1946), de Wolfgang Satudte, o primeiro filme alemão produzido na Berlim dividida em quatro setores – americano, inglês, francês e soviético; ou Germania anno zero (Alemanha, ano zero, 1948), de Roberto Rossellini, que abordava a destruição da infância pela arregimentação nazista, produzindo crianças divididas entre uma fantasia inocente e uma amoralidade assassina. Recolhido num abrigo de crianças refugiadas, Karel (Ivan Jandl) é um garoto traumatizado pela experiência de Auschwitz. Ele fora um feliz menino tcheco, filho de um médico, até que os nazistas ocuparam o país. Karel foi deportado com a mãe para Auschwitz, enquanto o pai e a irmã eram assassinados. No campo, Karel foi separado da mãe, que viu pela última vez através da cerca de arame farpado. Após a guerra, nos abrigos da UNRRA (The United Nations Relief and Rehabilitation Administration, criada através de proposta do Presidente Roosevelt ao Congresso em 1943 e que financiará a reabilitação de 8 milhões de refugiados), crianças de diferentes nacionalidades, órfãs ou separadas das famílias, esperam ser adotadas por estranhos, ou encontradas pelos pais. A senhora Murray (Aline MacMahon) tenta ajudar Karel, que só sabe dizer “Eu não sei”. Na verdade, ele perdeu o desejo de falar, sua voz foi calada pelo trauma da experiência no campo. Quando as crianças são transportadas em ambulâncias para outro local, Karel e um amigo recordam‑se dos furgões nazistas com gás no escapamento voltado para dentro: entram em pânico e fogem do veículo. Tentam atravessar um rio, mas o amigo de Karel afoga‑se na tentativa. Karel consegue esconder‑se, mas é dado como morto. Paralelamente, sua mãe, Hannah Malik (Jarmila Novotna), atravessa a Alemanha em ruínas à procura do filho. Ela percorre todos os campos de refugiados, e não desiste após cada tentativa frustrada. Ao chegar ao campo da senhora Murray, é informada da suposta morte da criança que correspondia à sua descrição. Atendendo ao apelo da senhora Murray, Hannah decide ficar no campo para ajudar as crianças judias sobreviventes do Holocausto a imigrarem para a Palestina, sem deixar de esperar encontrar Karel. Entrementes, o jovem engenheiro e soldado americano Steve (Montgomery Clift), encontrou Karel perambulando pelas ruas e conseguiu aproximar‑se dele oferecendo um sanduíche, ao qual o menino, faminto, não resistiu. Ele adota o garoto e tenta arrancar dele informações sobre sua vida passada. Ganhando lentamente a confiança do menino, que chama de “Jim”, Steve ensina‑lhe inglês, a “língua universal”, com a qual poderá sobreviver em qualquer lugar. Quando um colega de quarto de Steve, Fisher (Wendell Corey), recebe a família, Karel entra em crise, pois se lembra da mãe, sendo ainda por cima informado de que ela provavelmente morrera num campo de concentração. Mas o drama prossegue com as buscas de lado a lado, até um final de grande impacto emocional. Mesmo não abordando diretamente o Holocausto, apenas o evocando através do eloqüente silêncio do menino com a tatuagem de Auschwitz no braço, seu pânico diante do gás do escapamento, sua recusa em adaptar‑se a um mundo ainda não desnazificado, Fred Zinnemann realizou um drama sóbrio, denso, engajado. Com sua crispada fotografia em preto e branco e seu cenário de ruínas, em estilo de semidocumentário, o filme traz interpretações emocionantes, tanto dos atores profissionais quanto do menino Jand (morto em meados dos anos de 1980 aos 50 anos de idade), que ganhou um Oscar especial por este seu único filme. É imperdoável que o filme não tenha sido relançado em DVD pela Praesens‑Film/MGM e só possa ser visto na TNT em cópias colorizadas. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. 9 Daleká Cesta (Distante jornada, 1949) A Facets Video lançou em DVD, nos EUA, Daleká Cesta (Distante jornada / Distant Jorney, Tchecoslováquia, 1949, p&b, 108’), de Alfred Radok, também um dos primeiros, e talvez o mais estupendo dos filmes realizados sobre o Holocausto. Do começo ao fim, Radok trata da perseguição dos judeus sem recorrer a nenhum disfarce ou subterfúgio, pelo que ficou banido por décadas pelo regime comunista. Ele ressurgiu recentemente dos arquivos de cinema numa cópia inteiramente restaurada, apresentada pela primeira vez numa sessão no Imperial War Museum de Londres, durante uma conferência sobre Holocausto e Imagem em Movimento, em abril de 2001. Como observou o crítico Jiri Cieslar, mesmo banido por quarenta anos na Tchecoslováquia, devido ao seu vigoroso estilo expressionista, considerado “decadente” pela crítica marxista, Daleká Cesta permanecia um clássico incontornável na memória dos que puderam vê‑lo à época do lançamento. Assim, Vaclav Havel elogiou nos anos de 1960 a obra de Radok, referência para o “novo cinema tcheco” ao ousar novamente abordar o Holocausto. O cinema tcheco renovava‑se com filmes como em Demanty Noci (Diamantes da noite, 1964), de Jan Nemec; Obchod Na Korze (A pequena loja da Rua Principal, 1965), de Ján Kadár e Elmar Klos; ...a páty jezdec je Strach... (E o Quinto Cavaleiro era o Medo, 1965), de Zynek Brynych. Mais tarde, quando Radok morreu, em 1976, Havel dedicou‑lhe um emocionante obituário. Nascido em 1917, filho de pai judeu e mãe católica, Radok era um homem de teatro, encenando peças em estilo expressionista, quando foi preso no fim da guerra no campo de Klettendorf, perto de Cracóvia, do qual conseguiu escapar. Seu pai e avô foram internados em Theresienstadt, gueto “modelo” estabelecido pelos nazistas em 1941 na antiga fortaleza da pequena cidade de Therezin, a 60 quilômetros de Praga, na Tchecoslováquia. As deportações para Therezin, chamado de “asilo do Reich”, começaram em outubro de 1941, e logo o campo abrigava 42.000 judeus da Alemanha e outros tantos provenientes de diversos países. Apenas três anos após a Libertação, Radok, cuja família morreu quase toda nos campos nazistas, começou a rodar seu filme em 1948, nos estúdios Barrandov, em Praga; mas também em locações em Terezin, que, como notou Jiri Cieslar, devem ter sido particularmente dolorosas para ele, já que seu pai fora torturado até a morte na “Pequena Fortaleza” – uma prisão da Gestapo dentro do campo. O filme foi concluído pouco tempo depois da tomada do poder pelo Partido Comunista, em fevereiro de 1948, quando ainda vigorava uma liberdade de expressão que desapareceria com a nova censura do regime, que limitaria a arte à estética do “realismo socialista”. Sob a influência marcante de Citizen Kane (Cidadão Kane, 1941), de Orson Welles, Radok criou para seu Daleká Cesta uma estrutura narrativa complexa, com cenas “reais” de propaganda do nazismo, extraídas de Triumph des Willens (O triunfo da vontade, 1935), de Leni Riefenstahl; e de cinejornais da época, interrompendo a narrativa em pontos‑chaves. Mas ao contrário do que o diretor imaginou, essas inserções pouco acrescentaram à trama. A força de Daleka Cesta reside nas imagens poderosas de sua narrativa sombria, truncada, marcada pela estética do teatro iídiche e da cena expressionista. O filme é de uma modernidade estarrecedora ao evoluir através de seqüências que Jiri Cieslar chamou de “cerimoniais”, como o suicídio do Professor Reiter, sugerido apenas por inusitados movimentos de câmara e closes de objetos carregados de carga simbólica. É de modo estilizado que Radok reconstitui a degradação da família da médica judia Hana Kaufmannova, casada com um médico não‑judeu. Com angústia acompanhamos as diversas estações que levam os personagens ao horror do gueto nazista – cuja representação um sobrevivente de Terezin recusou pelo seu caráter alucinante, infiel à realidade cotidiana do campo “onde havia ordem” e não o caos mostrado. É que Radok condensa, em imagens‑ Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. choque, uma situação complexa, revelando em instantes, através da linguagem da câmara, não a realidade de Terezin, mas sua essência, isto é, uma visão da loucura e do horror dos campos nazistas. A cena em que o antiquário judeu enlouquece em seu depósito repleto de mercadorias empoeiradas, e oferece à venda, para outro judeu, um tecido novo, que acabou de chegar – todo de estrelas amarelas para serem recortadas e pregadas nas roupas – dançando enrolado no pano, em meio ao som dos pingentes de cristal dos lustres que balançam, inspirou certamente as impressivas cenas do antiquário em E o quinto cavaleiro era o medo... Também a cena em que o marido da médica, ao saber que será internada em Theresienstadt, vai encontrá‑la no consultório, encontrando‑a logo após sua falhada tentativa de matar‑se com injeção de veneno, explora ao máximo os parcos recursos da produção com efeitos de câmara simples, mas visualmente impactantes. Já as seqüências passadas em Theresienstadt são dignas dos piores pesadelos de Kafka e do universo claustrofóbico que Orson Welles criou em sua adaptação d’O processo para a era atômica. A reconstituição dramática da chegada ao campo, em que, ainda carregando suas malas, os judeus são enfileirados ante quatro mesas formando um quadrado; quadrado dentro do qual reina um demente SS, que obriga a todos a dar voltas ao seu redor, projeta um sentimento do desmantelamento do mundo que aproxima nossa imaginação da realidade então vivida pelos judeus. Tremenda é a cena em que, dentro da fortaleza, o SS grita para que tirem uma lata do caminho: uma pobre senhora apressa‑se a carregar o balde para longe, mas colocando‑o entre os dentes, e afastando‑se de quatro, como um cachorro. O impacto da cena vem de que o comportamento assim representado indica que aquela mulher já foi acostumada à humilhação extrema, o que nos remete a Salò (Saló, 1975), tornando claro como Pasolini estava bem informado sobre os horrores do Holocausto ao rodar seu filme insuportável. Igualmente chocante é a cena em que operários constroem algo que não sabem o que é; as crianças que acabaram de chegar são levadas a tirar suas roupas para tomar banho e, ao verem as janelas sendo vedadas, gritam instintivamente: “Gás!”, correndo para todos os lados, fazendo os operários descobrirem que o estranho duto que eles estavam construindo no banheiro era uma câmara de gás. Outra cena notável é aquela em que as mulheres são obrigadas a esfregar as pedras da calçada da fortaleza de Terezin enquanto jovens bailarinas ensaiam uma coreografia, vestidas em tutu: a todos foi anunciada uma próxima visita da Cruz Vermelha, para a qual os judeus deveriam deixar o campo apresentável e encenar um espetáculo. A imagem evoca uma das mais sinistras propagandas produzidas pelo cinema nazista: Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer doa uma cidade aos judeus, 1944‑1945), único filme – curta‑metragem de 23 minutos – realizado e exibido num campo de concentração, com “embelezamentos” nele produzidos para dar ao mundo a impressão da “vida opulenta” que os judeus levariam nos campos: em 1945, quando já quatro milhões deles haviam sido exterminados, o filme foi projetado para a Cruz Vermelha Internacional em visita a Theresienstadt. Quando os contaminados pelo tifo chegam num último transporte e são colocados num longo corredor, a imagem deles deixa‑nos uma sensação quase física de morte próxima e inevitável. Na cena final, uma jovem sobe nos muros da fortaleza e descobre que os nazistas foram derrotados. Ela corre até o centro do campo, que à noite encontra‑se deserto, chamando a todos com pancadas nas cordas de um piano destroçado que havia sido ali dependurado. E ela grita: “Liberdade! Estamos livres!”, em meio aos acordes dissonantes das cordas arrebentadas, enquanto o pátio se enche de prisioneiros semimortos, que pouco a pouco se reanimam, e revivem, com uma bandeira feita de trapos, um violinista no telhado, em efusões de alegria desenfreada. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982‑3053. Esta seqüência final é um dos momentos maiores da história do cinema, elevando Daleka Cesta a um nível de dramaticidade que só será encontrado, bem mais tarde, na cena‑título de Sophie’s choice (A escolha de Sofia, 1982), de Alan Pakula; na cena da morte da menina de casaco vermelho e do banho das prisioneiras em The Schindler’s List (A lista de Schindler, EUA, 1993), de Steven Spielberg; e das cenas finais da solidão do sobrevivente em meio às ruínas do gueto de Le Pianiste (O pianista, 2002), de Roman Polanski. ‑‑‑‑‑ * Luiz Nazario é Professor de História do Cinema na Escola de Belas Artes da UFMG. Publicou, entre outros títulos: Da natureza dos monstros, 1999; As sombras móveis, 1999; Todos os corpos de Pasolini, de 2007. Referências CANUTO, Roberto (Org.). Rogério Sganzerla – Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007. CIESLAR, Jiri. Living with the Long Journey: Alfred Radok’s Distant Journey. Distant Journey. Facets Cine‑Notes. In: DVD Distant Journey. Sarasota: Polart /Chicago: Facets Video, 2005. DVD Border Street. Sarasota: Polart /Chicago: Facets Video, 2005. DVD Distant Journey. Sarasota: Polart /Chicago: Facets Video, 2005. GOLDMANN, Annie; HENNEBELLE, Guy (org.). CinémAction: Cinema e judéité. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986. HOBERMAN, J. Bridge of Light: Yiddish Film Between Two Worlds. Philadelphia: Temple University Press, 1995. INSDORF, Annette. “La dernière étape”. In: INSDORF, Annette (org.). CinémAction: L’Holocauste au cinema. Paris: Les Éditions Du Cerf, 1985, p. 117‑119. INSDORF, Annette. “Un combat avec l’héritage”. In: INSDORF, Annette (org.). 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