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Por uma escuta da dor

2022, Afeto(s) e(m) discurso: movimentos dos sujeitos e dos sentidos na história

“Nossos mortos têm voz”. É assim que Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, jovem de 14 anos assassinado pela polícia enquanto ia para a escola, produz sentido a respeito de sua dor transformada em militância. O estranhamento semântico provocado por uma formulação que alinha “estar morto” e “ter voz” fala-nos de uma morte presente, de uma morte ainda sem paz, da impossibilidade e um “silêncio sepulcral”. É preciso falar dos mortos, falar pelos mortos, ser a voz dos mortos. Não se trata de “dar voz” aos mortos, mas ser a voz deles. Os mortos morreram, mas seus nomes ecoam como gritos de guerra: “Marcos Vinícius, presente!”. Essa voz-presença revive a vida e a morte daqueles que já foram. Ela deixa as feridas abertas. Uma forma de denúncia que funciona “como ferida aberta esperando outros modos de cicatrização e que deixa o sangue fluir por precisão e não porque se gosta da dor” (MODESTO, 2019, p. 143). Ser a voz dos mortos, a presença deles entre nós, mobiliza a dor, o luto, a tristeza, a desesperança e a quebra dos sonhos, mas também, em alguma medida, a felicidade, o soerguimento, a luta. Tudo isso em favor de uma militância que (re)significa o(s) afeto(s) colocando-o(s) na tensão entre o social e o político. É assim, então, que escolhemos falar do afeto em sua relação com o social. Um afeto contraditoriamente marcado pela dor e pela força, pelo luto e pela luta. Concordando com Frantz Fanon, compreendemos ser possível percorrer pelos sentidos da dor, da miséria, do luto e da luta de modo “táctil e afetivamente” (FANON, 2008, p. 86). Ressaltamos, nesse sentido, os efeitos do político e do social no afeto e na dor-luto-luta (ou na dor-luto-luta como afeto), para marcarmos outra posição diferente daquela para a qual tanto a dor quanto o afeto configurariam como alegorias entre o privilégio e o sentimento de culpa humanista e burguesa.

ATILIO CATOSSO SALLES FERNANDA LUZIA LUNKES LUIZA CASTELLO BRANCO ORGANIZADORES AFETO(S) E(M) DISCURSO: MOVIMENTOS DOS SUJEITOS E DOS SENTIDOS NA HISTÓRIA 1 Copyright © Autoras e autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos autores. Atilio Catosso Salles; Fernanda Luzia Lunkes; Luiza Castello Branco [Orgs.] Afeto(s) e(m) discurso: movimentos dos sujeitos e dos sentidos na história. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. 333 p. 16 x 23 cm. ISBN: 978-65-5869-698-8 [Digital] 1. Análise do Discurso. 2. Estudos do Sujeito. 3. Sujeitos e sentidos. I. Título. CDD – 410 Capa: Petricor Design Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828 Diagramação: Diany Akiko Lee Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin (USP/Brasil). Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 – São Carlos – SP 2022 2 POR UMA ESCUTA DA DOR Rogério Luid Modesto, Liliane Anjos, Flavio Benayon Escutar a voz dos mortos “Nossos mortos têm voz”. É assim que Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, jovem de 14 anos assassinado pela polícia enquanto ia para a escola, produz sentido a respeito de sua dor transformada em militância. O estranhamento semântico provocado por uma formulação que alinha “estar morto” e “ter voz” fala-nos de uma morte presente, de uma morte ainda sem paz, da impossibilidade de um “silêncio sepulcral”. É preciso falar dos mortos, falar pelos mortos, ser a voz dos mortos. Não se trata de “dar voz” aos mortos, mas ser a voz deles. Os mortos morreram, mas seus nomes ecoam como gritos de guerra: “Marcos Vinícius, presente!”. Essa voz-presença revive a vida e a morte daqueles que já foram. Ela deixa as feridas abertas. Uma forma de denúncia que funciona “como ferida aberta esperando outros modos de cicatrização e que deixa o sangue fluir por precisão e não porque se gosta da dor” (MODESTO, 2019, p. 143). Ser a voz dos mortos, a presença deles entre nós, mobiliza a dor, o luto, a tristeza, a desesperança e a quebra dos sonhos, mas também, em alguma medida, a felicidade, o soerguimento, a luta. Tudo isso em favor de uma militância que (re)significa o(s) afeto(s) colocando-o(s) na tensão entre o social e o político. É assim, então, que escolhemos falar do afeto em sua relação com o social. Um afeto contraditoriamente marcado pela dor1 e pela Tal como Farge (2015), consideramos a dor, enquanto sensação físico-emocional que não se separa da mágoa, como uma forma de relação com o mundo. Nesses termos, "a dor não é uma invariante, uma consequência inevitável de situações dadas; é um modo de ser no mundo que varia segundo os tempos e as 1 237 força, pelo luto e pela luta2. Concordando com Frantz Fanon, compreendemos ser possível percorrer pelos sentidos da dor, da miséria, do luto e da luta de modo “táctil e afetivamente” (FANON, 2008, p. 86). Ressaltamos, nesse sentido, os efeitos do político e do social no afeto e na dor-luto-luta (ou na dor-luto-luta como afeto), para marcarmos outra posição diferente daquela para a qual tanto a dor quanto o afeto configurariam como alegorias entre o privilégio e o sentimento de culpa humanista e burguesa. Aqui, borrando as fronteiras entre dor e afeto, luto e luta, lemos tais significantes dentro de uma mesma cadeia parafrástica a qual, para nós, toma parte da e na história, do e no social e do e no político. Se a dor faz história, como nos alerta Farge (2015), ela o faz produzindo sentidos em certas condições de produção: se a história é a história da luta de classes, a dor, como forma de fazer a história, é a dor da história da desigualdade social e da necropolítica (MBEMBE, 2018), um estado de exceção permanente (AGAMBEN, 2004) que insiste em tomar a morte como objeto de desejo. Defendendo que a dor é um afeto legítimo e, em certas condições históricas, um gatilho de (des)continuidades entre luto e luta, nossa posição analítica discursiva toma como pressuposto o fato de que a dor-afeto movimenta e (des)organiza o social. Cabe, nessa perspectiva, tomar a dor e o afeto enquanto “lugares para história” (FARGE, 2015). Compreender a dor como um acontecimento histórico e discursivo estabelece certa paradoxalidade, pois ao mesmo tempo em que o sofrimento se mostra visivelmente, tornando-se um lugar circunstâncias e que, por essa razão, pode se exprimir ou, ao contrário, se recalcar, se expulsar ou se gritar, se negar ou arrastar outrem para ela" (FARGE, 2015, p. 19). Mas à frente, partindo de Freud ([1926] 2014), tomaremos a dor em sua relação com a linguagem, compreendendo sua inscrição no social. 2 Tomamos o par luto-luta não num sentido dicotômico, mas numa relação estabelecida entre continuidades e descontinuidades. Com Baldini (2018, p. 33), pensamos "o luto como um acontecimento, um acontecimento que convoca o sujeito para um ato, um ato que proporciona abertura para que algo se encerre, 'pois um luto, como uma psicanálise, por essência, tem um fim'". 238 para a história, ele é incompreendido ou, por vezes, não trabalhado, na medida em que a história “guarda seu ritmo sem o dizer, sem o enunciar, sem trabalhar sobre as palavras que o exprimem e aquelas que o rodeiam” (FARGE, 2015, p. 14). Disso deriva a pertinência de uma reflexão que demanda um posicionamento ético no exercício de análise, pois cabe não mais considerar o sofrimento como evidente consequência de fatos ou decisões políticas, nem simplesmente como um bloco ou uma entidade sobre a qual não se busca refletir. Dessa demanda, urge a necessidade de investir em outra forma de lidar com o sofrimento e com o afeto a propósito de uma ética intelectual que não pode reduzir a dor a um espetáculo da teoria. Caberia, pois, o empreendimento de um outro olhar, ou, para retomarmos o ponto por onde começamos, uma outra escuta a essas vozes presentes nas suas ausências marcadas pela dor, já que “há sistemas relacionais e culturais que fazem das palavras de sofrimento um mundo a compreender, e não um dado inevitável” (FARGE, 2015, p. 14-15). “A dor significa, e a maneira como a sociedade a capta ou a recusa é extremamente importante” (FARGE, 2015, p. 19). Captar a dor ou, em termos propriamente discursivos, fazer da dor uma voz que demanda e precisa de escuta torna-se um trabalho que deve buscar atribuir sentido para a dor, compreendendo-a como um afeto que se relaciona com os acontecimentos, sendo, portanto, um gesto social e político. Nesses termos, importa lutar por uma perspectiva teórica a partir da qual seja possível refutar a produção de um conhecimento insensível ao sofrimento, do mesmo modo que é preciso refutar uma postura que tenta explorar a dor e o afeto a ponto de torná-los exóticos. Novamente recorremos a Farge (2015, p. 21): Quando se trabalha sobre os grupos sociais mais desfavorecidos e desapossados, o sofrimento dos pobres é um tema forte. A narração desse sofrimento exige certo número de preocupações: podemos rapidamente nos deixar arrastar para a descrição fascinada de uma 239 espécie de “exotismo” da pobreza, desviar insensivelmente para um olhar que inferioriza aqueles mesmos que estudamos. Desde então a escritura deve manter essa tensão extrema que faz da fala sofrida do mais pobre uma alteridade a um só tempo igual e separada; fruto de uma condição singular e partilhada que busca a todo custo seu arranjamento no interior da comunidade dos seres falantes. Visível, afastada, a fala sofrida, restituída pelo historiador à sua história e a outrem, é um êxodo de que a escritura historiadora deve traçar a viagem. A terra do sofrimento dos pobres não é uma terra exótica ou selvagem a visitar; é a matriz de uma comunidade social, por vezes mesmo sua terra de origem. Se Farge fala ao historiador, tomamos aqui suas palavras como direção para nós, analistas de discurso. De nossa posição, tentamos apresentar uma reflexão cientes de que seu cerne tem como base o sofrimento. Teorizamos sobre as relações entre a dor e o afeto de um ponto de vista discursivo, lançando uma escuta para a voz e a presença de Marcos Vinícius na voz e na presença de sua mãe, Bruna. E, ao fazermos isso, sabemos que é do sofrimento que estamos falando. Nesses termos, se o sofrimento é essa matriz de uma comunidade social, ou seja, um ponto de sustentação que mantém em funcionamento uma gama de discursividades, queremos ressaltar o caráter social e político do sofrimento, a fim de compreender como essa matriz funciona não como origem de si, mas como ponto de ancoragem para determinados sujeitos. O uniforme de Marcos Vinícius Nós compreendemos os discursos como acontecimento que não se erigem sem sujeitos e sem condições de produção. Descrever seriamente tais condições, nomear aqueles e aquelas cujas vidas se envolvem aos acontecimentos e analisar as posições-sujeito a partir das quais elas enunciam é um primeiro passo para tirar o sofrimento do nível da abstração, mostrando que ele é fundamental para os processos de significação das tensões sociais e políticas. 240 Falamos, então: que a polícia matou Marcos Vinícius, que sua camisa escolar ensanguentada é uma marca de memória e presença; falamos de um projeto genocida de Estado que produz um luto coletivo e uma dor em série que se atualiza em outros casos iguais, mas particulares; falamos de Bruna da Silva, uma mãe, moradora da favela que teve seu filho morto pela polícia e que significou sua dor na luta e na militância; falamos da construção de um discurso estruturado a partir de um antagonismo ao Estado, ainda que, nos termos de uma ideologia jurídica que é também a ideologia do Estado, tal antagonismo ratifique a luta por direitos. Outro aspecto que nos permite retirar a dor do âmbito da abstração é compreendê-la como gesto e prática material. Na sua teorização sobre o gesto como ato no nível do simbólico, Pêcheux nos alerta sobre o funcionamento de um “sistema de signos não linguísticos” (PÊCHEUX, 2010, p. 77) que comparecem sobredeterminados por diferentes práticas discursivas. Tematizando o discurso parlamentar, por exemplo, ele ressalta o funcionamento dos aplausos, dos risos, dos tumultos e dos assobios. Nesse momento, nós nos debruçamos sobre um gesto forte em emoção que diz muito bem do discurso do afeto pautado pela dor materializada no luto e na luta, discurso a partir do qual a posiçãosujeito ocupada por Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, produz sentidos em torno de uma negociação do conflito entre memória e esquecimento. No dia do enterro de seu filho, o ornamento escolhido por Bruna para cobrir o caixão ao centro da sala é a camisa escolar, suja de sangue, que o menino usava quando de sua morte. O uniforme branco com duas listras azuis (uma mais grossa e outra mais fina), uniforme escolar carioca, está cortado e passa a ser relativamente longo como uma bandeira mediana. A grande marca de sangue está concentrada logo abaixo da linha mais fina do uniforme, aquela com o tom em azul claro, fato que revela que o local do tiro que ceifou a vida de Marcos Vinícius teria sido no final de seu tórax. A camisa permanece lá, como ornamento, durante todo o tempo do 241 velório. Pouco antes da retirada do caixão da sala para que o rito do enterro prossiga, Bruna se posiciona ao lado do corpo de seu filho estendido em um caixão branco. Ela retira a camisa de onde estava e, erguendo-a com as duas mãos como quem segura um cartaz num protesto, Bruna faz um longo desabafo e diz “eu vou fazer dessa camisa um instrumento de justiça”3. A dor de mãe não passa despercebida pelas lentes das câmeras jornalísticas de fotografia e televisão. Depois do enterro, fotos e mais fotos dos diferentes ângulos de Bruna junto ao caixão e do uniforme ensanguentado de Marcos Vinícius viralizam nas redes sociais e nas mídias. Como prometido por Bruna, essa camisa passa a ser usada por ela como instrumento de justiça e a acompanha em diferentes protestos contra o genocídio da população negra e de periferia e demais ações de militância. Mais fotos podem ser encontradas na web como registros desses outros momentos. Na matéria a partir da qual recolhemos boa parte dos enunciados de Bruna que aqui analisamos, ela comparece com a camisa ensanguentada de Marcos Vinícius na cabeça como se fosse um véu. Uma de suas mãos está pousada na altura da base do pescoço e, ao servir de peso para que as pontas da camisa fiquem juntas, faz esse gesto lembrar o gesto de pôr a mão sobre o peito quando cantamos o hino nacional. Sem nenhuma dificuldade, qualquer leitor relativamente experiente consegue associar essa fotografia que acompanha a reportagem com as imagens dos diferentes títulos de Nossa Senhora. A camisa configura-se como um signo não linguístico que estabelece um jogo entre presença e ausência, mas não de um jeito disjuntivo (presença contra ausência) e sim de uma maneira contraditória (presença na ausência)4. Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/corpo-doadolescente-marcus-vinicius-da-silvae-velado-no-palacio-da-cidade.ghtml>. Acesso em 18 nov. 2020. 4 Entendemos que há a necessidade de uma reflexão séria no campo da análise de discurso em torno do uso ético das imagens com as quais temos trabalhado. Se advogamos aqui que a dor merece ser escutada, não nos esquecemos, porém, de 3 242 Stallybrass (2008), no livro O casaco de Marx, apresenta uma reflexão fina acerca da vida social das coisas, estabelecendo pontos de contato entre roupas, memórias e dor. Nessa reflexão, ele nos lembra que, quando a morte alcança aqueles que nos são próximos, as roupas ainda ficam, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos. Isso porque, ao contrário de outros objetos como as joias, por exemplo, as roupas recebem a marca humana. Mesmo que uma joia seja mais resistente ao tempo, ela, em geral, tende a, ao contrário das roupas, resistir à história dos nossos corpos, afinal, são as roupas que guardam nossos cheiros, nossos moldes, nossas marcas de uso. Se somos uma "sociedade da roupa" (STALLYBRASS, 2008, p. 13), como sugere o autor, nota-se que a roupa tende a estar associada de maneira poderosa com a memória, sendo ela mesma um tipo de memória. Assim, "quando a pessoa está ausente ou morre, a roupa absorve sua presença ausente" (STALLYBRASS, 2008, p. 14). A partir dessas ponderações, perguntamo-nos: e quando a roupa traz o traço da morte? E quando ela, para além de ser memória da presença ausente, é também memória do ato da morte? Ou ainda: "o que nós temos a ver com as roupas dos mortos?" (STALLYBRASS, 2008, p. 17), pergunta com a qual Bruna que muitos dos materiais que dão a escutar e ver a dor são produzidos, muitas vezes, à revelia daqueles que vivem o acontecimento da dor. Nesses casos em que a dor toma corpo pelos gestos da humilhação, por exemplo, ainda que exploremos esses acontecimentos (inclusive como forma de denúncia), acreditamos ser mais pertinente um gesto de descrição da imagem sem a necessidade de sua reprodução. Este, porém, não é o nosso caso aqui. Nossa opção por não reproduzir a imagem de Bruna da Silva com a camisa ensanguentada de seu filho em forma de véu se dá apenas por uma questão de espaço textual. Entendemos que Bruna decide pela exposição de sua imagem e da imagem do uniforme ensanguentado de Marcos Vinícius. Levando às consequências a sua luta para tornar aquele objeto um “instrumento de justiça”, sua imagem não lhe é roubada, já que em muitas ocasiões sua resistência a leva à frente das câmeras portando o objeto que faz memória à vida e à morte de seu filho. Apesar de não reproduzirmos essa imagem aqui (ou qualquer outra em torno desse objeto de memória), acreditamos que essa imagem incômoda e, de muitos modos, inquietante deve ser vista e deve mesmo produzir resistência e revolta. 243 da Silva parece nos confrontar em seus usos bandeira e véu que atualizam a memória da forma da morte de Marcos Vinícius. Uma atualização de memória que, da posição de dor transformada em militância, parece estabelecer uma negação antagônica ao esquecimento enquanto marca desse país acostumado a se dizer como tendo uma "memória curta". Sem deixar de olhar para os sentidos dos antagonismos, trabalhamos o jogo contraditório que produz a tensão entre memória e esquecimento de que falávamos. Ao tratar desse aspecto relacional, Courtine (1999) recorre a uma anedota de Milan Kundera que também traz e traça na imagem e no figurino a problemática da memória e do esquecimento: Fevereiro de 1948. O dirigente comunista Klement Gottwald, da sacada de um palácio barroco de Praga, discursa para uma multidão aglomerada na praça da velha cidade. É nessa sacada que começa a história da Boêmia comunista... “Gottwald estava cercado por seus camaradas e, a seu lado, bem próximo, estava Clémentis. Nevava, estava frio e Gottwald estava com a cabeça descoberta. Clémentis, muito atencioso, tirou o seu chapéu de pele e o colocou na cabeça de Gottwald. O departamento de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da fotografia da sacada, de onde Gottwald, com um chapéu de pele e rodeado por seus camaradas, falava ao povo. (...) Todas as crianças conheciam essa fotografia de tê-la visto em cartazes, nos manuais ou nos museus. Quatro anos mais tarde, Clémentis foi acusado de traição e enforcado. O departamento de propaganda fê-lo imediatamente desaparecer da história e certamente de todas as fotografias. Desde então, Gottwald está sozinho na sacada. Ali, onde estava Clémentis, há somente o muro vazio do palácio. De Clémentis, restou apenas o chapéu de pele na cabeça de Gottwald” (COURTINE, 1999, p. 15). Após a anedota, Courtine (1999, p. 15-16) pondera que “esse processo de anulação de Clémentis, de perda referencial, recalque, apagamento da memória histórica que deixa, como uma estreita lacuna, a marca de seu desaparecimento [...] é antes de tudo na ordem 244 do discurso que ele se é produzido”. De Clémentis, restou apenas o chapéu de pele na cabeça de Gottwald. De Marcos Vinícius, restou a camisa ensanguentada do seu uniforme escolar, hoje usada ora como bandeira ora como véu. Malgrado a mobilização e uso da camiseta enquanto objeto, é na ordem do discurso que ela funciona para contornar os efeitos do desaparecimento da vida ceifada de Marcos Vinícius. É na ordem do discurso que a materialidade significante – uma composição contraditória entre uniforme escolar e mancha de sangue e o "gesto" de colocar sobre a cabeça o uniforme – convoca uma interpretação que aciona uma memória discursiva capaz de produzir afetiva sensibilização frente ao objeto de dor. A dor, enquanto afeto que mobiliza luto e luta, comparece na ordem do discurso autorizando leituras possíveis de consternação e de revolta frente ao absurdo provocado pelo cruzamento entre a inocência que representa um uniforme escolar e uma mancha de sangue provocada por um tiro de fuzil. Se, de um lado, a camisa ensanguentada coloca em pauta a particularidade da morte de Marcos Vinícius; de outro lado, seu uso como “objeto de justiça” atualiza a memória da barbárie a que as populações de periferias estão submetidas. Mostra-se, então, que nem mesmo um uniforme escolar é respeitado quando quem o utiliza é um jovem da favela. A dor de Bruna transforma esse objeto simbólico em bandeira que, ao flamejar em suas mãos, grita um “é preciso que se olhe para isso”. Uma forma de denúncia que enreda inequivocamente dor e laço social. Essa é uma dor particular, mas não só. É uma dor de Bruna, mas também de outras mães; a camisa ensanguentada é a de Marcos Vinícius, mas poderia ser de quaisquer outros estudantes na periferia, porque esse uniforme não lhes confere segurança. A inscrição da dor no social Escrever sobre a dor de uma perspectiva discursiva nos faz questionar como esse afeto sofrido por mães faveladas e periféricas que perderam seus filhos para a violência policial é produzido em 245 relação à brutalidade do Aparelho Repressivo de Estado. Nessa direção, é insuficiente compreender a dor apenas como um estímulo instintual constante produzido sobre um ponto do corpo, como quando nos machucamos com um corte, já que não há relação com a dor sofrida ao se perder um filho, a menos que a entendamos de modo semelhante. Uma indistinção é apontada por Freud ([1926] 2014, p.91) ao observar um exemplo do cotidiano: “não desprovido de sentido que a linguagem tenha criado o conceito de dor interna, psíquica, e que compare à dor física o sentimento da perda de objeto”. Apesar da indistinção cotidiana que marca a palavra dor, Freud ([1926] 2014, p.91-92) traça diferenciações entre dor física e psíquica ao comentar sobre ambas, mesmo que suas condições econômicas de produção sejam semelhantes: O forte investimento com anseio no objeto que faz falta (perdido), sempre crescente porque não pode ser acalmado, cria as mesmas condições econômicas que o investimento no local ferido do corpo e torna possível ignorar o pré-requisito da origem periférica da dor física! A passagem de dor física para dor psíquica corresponde à mudança de investimento narcísico para objetal. A dor sofre uma diferenciação a partir de sua dupla determinação: a física, resultante do investimento no próprio Eu; e a psíquica, constituída pelo contínuo investimento libidinal no objeto perdido, impossibilitado de ser concretizado. Esses apontamentos de Freud nos permitem tomar a dor como objeto de uma análise discursiva ao considerarmos o funcionamento do investimento libidinal em um objeto perdido, pois esse objeto (desde sempre) perdido pode ser atualizado na morte de um filho, tendo um potencial desorganizador para o sujeito. Ao pensar na produção da dor psíquica, questionamos sua constituição histórica lançando uma escuta sobre o sofrimento de Bruna. A dor deve ser pensada em relação à história, enquanto fenômeno que acontece em determinadas condições de produção, atualizando uma memória discursiva. Em face do imaginário de 246 violência nas favelas, as operações de segurança pública regularmente significam vidas negras e pobres como matáveis. Essa memória reiteradamente atualizada no social, legitimando práticas institucionais de invasão das favelas pela polícia, concorre para a produção da dor das mães que perderam seus filhos. A compreensão de Pêcheux (2015, p.46) por memória discursiva como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ [...] de que sua leitura necessita” viabiliza pensar a dor a partir da história. Os agentes policiais restabelecem os “implícitos” institucionalizados ao lerem o social quando executam suas práticas de segurança pública. Entre as memórias atualizadas está aquela que sustenta a viabilidade das tropas subirem nas favelas e trocarem tiros independente do risco que causam às vidas dos moradores. Foi em uma dessas incursões, realizada no Complexo da Maré, que Marcos Vinícius foi morto. Sobre esse episódio, analisamos um depoimento dado por Bruna da Silva a Gustavo Goulart e publicado em 17 de janeiro de 2020 na revista Época: A dor da perda de um filho, ainda mais como se deu comigo, é algo sem dimensão. Era como se minha vida tivesse acabado naquele 20 de junho de 2018, uma quarta-feira. Foi o dia em que policiais civis da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) fizeram uma operação chamada de vingança aqui no Complexo da Maré, com foco na Vila dos Pinheiros, onde moro com minha família. Um inspetor da polícia (o chefe de investigações da Delegacia de Combate às Drogas, Ellery de Ramos Lemos) tinha sido morto dias antes na Favela de Acari. Foram até lá, mas receberam uma informação de que um grupo de criminosos de Acari estava dormindo numa casa na Vila dos Pinheiros. Executaram seis homens que estavam dormindo na casa depois de darem o tiro mortal em meu filho, um estudante do sétimo ano do ensino fundamental. (Bruna da Silva em depoimento a Gustavo Goulart, Revista Época, 17 de janeiro de 2020). O dia da morte de Marcos Vinícius, 20 de junho de 2018, encontra o dia que “policiais civis da Core (Coordenadoria de 247 Recursos Especiais) fizeram uma operação chamada de vingança aqui no Complexo da Maré”. A operação de policiais civis é equivocamente nomeada como “vingança”, colocando em tensão o imaginário de impessoalidade esperado de uma operação de segurança pública e o investimento subjetivo envolvido em uma vingança. Uma operação de Estado organizada para vingar um inspetor de polícia leva à morte “seis homens” e um menino de quatorze anos com uniforme escolar. O equívoco de uma “operação chamada de vingança” tensiona os limites de atuação do Aparelho Repressivo, que encontra espaço para perpetuar práticas de represália em nome de interesses corporativos, mesmo que para isso mate crianças. A forma de contar a dor da perda do filho, na entrevista de Bruna da Silva, é constituída em relação indissociável da ação repressiva do Estado. Os policiais civis da Core, em nome da operação conhecida como vingança, mataram Marcos Vinícius. A dor aí não é produzida por uma contingência ou um acidente que dificilmente se repete nas favelas e regiões periféricas do Brasil. Quase dois anos após a morte do menino, podemos ler a forma como um social fortemente dividido se inscreve no fio do dizer: A 100 metros de casa, meu filho e o amigo viram policiais entrando na comunidade com um blindado. Mesmo de uniforme e mochila escolar meu filho foi alvo de um policial que estava de touca ninja e sem a identificação no uniforme. Ele apontou um fuzil para o Marcos Vinícius e disparou. A bala entrou pela região lombar e atravessou o corpinho dele, que era bem alto para sua idade, com 1,70 metro. (Bruna da Silva em depoimento a Gustavo Goulart, Revista Época, 17 de janeiro de 2020). A descrição da violência e insensibilidade policial contrapõe os modos de dizer sobre Marcos Vinícius, caracterizando um social marcado pela contradição entre o afeto maternal e a brutalidade que significa o Estado. A mãe diz sobre o “corpinho” de seu filho, “que era bem alto para sua idade”. Inscrições de uma relação afetuosa, interrompida pela frieza da descrição da entrada de um 248 blindado na comunidade, que fez do menino de quatorze anos “alvo de um policial que estava de touca ninja e sem a identificação no uniforme” e que “apontou um fuzil para o Marcos Vinícius e disparou”, de modo que a “bala entrou pela região lombar”. A tensão entre frieza e afeto no intradiscurso é uma forma de simbolizar a história de uma dor causada pela polícia. Entre a descrição formulada friamente para a instituição repressiva e afetuosamente para o filho, comparece no dizer de Bruna: “Mesmo de uniforme e mochila escolar meu filho foi alvo de um policial que estava de touca ninja e sem a identificação no uniforme”. A relação concessiva explicitada no intradiscurso a partir da oposição da oração subordinada à oração principal expõe o crime injustificável. Mesmo que o uniforme e a mochila escolar mobilizem o imaginário de que uma pessoa é estudante, ou seja, é reconhecida por uma instituição estatal, e que muitas vezes é uma criança demandando proteção, o filho de Bruna foi morto por um policial. O modo como o discurso configura as relações sintáticas dá visibilidade para a presença da violência repressiva na favela, ainda que se atenda àquilo que socialmente se espera. A polícia está no cerne da produção da dor da mãe que perdeu o filho, comparecendo até mesmo no modo de contar sobre o episódio. A inscrição do Aparelho Repressivo no fio do dizer configura essa instituição como estruturante desse afeto, possibilitando, portanto, sua análise a partir de uma perspectiva histórica, pois as condições de produção constitutivas da perda lacerante atualizam sentidos sobre vidas matáveis que retornam no social. A dimensão histórica da dor experienciada singularmente pela mãe do menino concorre para o encontro ao sofrimento vivenciado por diferentes pessoas em semelhante condição de desamparo. Em seu depoimento, Bruna da Silva coloca sua dor em ressonância à de outras mães cujos filhos também foram assassinados: Eu não aceito que a polícia tenha matado meu filho. Mas a militância tem mudado minha vida. Eu me juntei ao coletivo dessas mães que tiveram seus filhos vitimados pelo Estado. E hoje fico feliz porque 249 não busco justiça só para o meu (filho). Eu busco justiça para todos os que foram tombados. Todos. Maria Eduarda (aluna da Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Fazenda Botafogo, morta em março de 2017 alvejada por um policial militar), por exemplo. Eu fico feliz quando tem justiça. A Ágatha (Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta por um tiro disparado por um PM na Fazendinha, Complexo do Alemão, no dia 20 de setembro de 2019) morreu há pouco tempo, e fiquei feliz porque acharam o autor daquele tiro. (Bruna da Silva em depoimento a Gustavo Goulart, Revista Época, 17 de janeiro de 2020). O sofrimento perante o assassinato do filho cometido pela polícia possibilita o surgimento de um espaço de encontro: a “militância”, o “coletivo dessas mães que tiveram seus filhos vitimados pelo Estado”. A militância é o espaço constituído a partir de uma dor cujas condições de produção retornam no social, fazendo com que mães não necessariamente identificadas às mesmas práticas cotidianas e aos mesmos rituais se reconheçam no desamparo, chorando por seus filhos assassinados e lutando por “justiça”. O afeto sofrido em sua dimensão singular converte-se em demanda coletiva por “justiça” para todos os filhos tombados. A luta se amplifica, engajando a busca pela condenação dos assassinos. No entanto, “justiça” significa como incerta, de modo que para ser cumprida, deve ser buscada, porém, mesmo a luta por sua realização não a garante, como comparece na formulação “Eu fico feliz quando tem justiça”. A conjunção “quando” inscreve no intradiscurso a incerteza da aplicação da devida penalidade aos assassinos, já que o Estado possibilita a seus servidores fardados matar moradores da favela sem garantir a certeza de sua punição. Além da luta incerta por justiça, a militância funciona como modo de expor a precariedade de determinados corpos no social e de se opor a ela.5 Ao pensar o ato de fala em relação a alguns tipos A precariedade fragiliza determinadas vidas, expondo-as à violência e à morte. Butler (2019a, p. 40) afirma que: “A ‘precariedade’ designa a situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as 5 250 de representações corporais em assembleia, Judith Butler (2019a, p.24-25) afirma: [...] os corpos reunidos “dizem” não somos descartáveis, mesmo quando permanecem em silêncio. Essa possibilidade de expressão é parte da performatividade plural e corpórea que devemos compreender como marcada por dependência e resistência. Criaturas em assembleia como essas dependem de um conjunto de processos institucionais e de vida, de condições de infraestruturas, para persistir e fazer valer juntas o direito às condições de sua persistência. Esse direito é parte de um apelo mais amplo por justiça, um apelo que pode muito bem ser articulado por um posicionamento silencioso e coletivo. Butler trabalha a performatividade, isto é, a palavra compreendida como ação, para além da verbalização ao pensar os corpos reunidos em assembleia. A reunião de corpos precarizados, por seu gesto mesmo de agrupamento, é um modo de dizer “não somos descartáveis”. A militância das mães cujos filhos foram mortos pela polícia significa por sua existência como coletividade, expondo a precarização dos corpos executados regularmente pela política de segurança pública. A exposição dessa precarização é um modo de se opor ao Estado, que reafirma por suas práticas que a vida dos filhos da favela é descartável. A existência em assembleia resulta do encontro entre mães marcadas pela dor causada pela perda de seus filhos, assassinados pela polícia. O agrupamento desses corpos não é apenas um modo de lidar com a terrível perda que as afeta, mas de também lutar por condições de vida menos precárias e por políticas públicas que não signifiquem essas vidas como descartáveis. A militância surge para as mães como possibilidade, como afirma Butler, “para persistir e fazer valer juntas o direito às condições de sua persistência”. A partir desse direito às condições de persistência, apela-se não consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”. 251 somente para que a justiça seja feita pela punição dos policiais criminosos, mas também para que a luta converta-se em militância por condições de vida menos precárias. O caráter singular da dor psíquica, vivenciada por cada sujeito, encontra a história pela regularidade das condições de sua produção e a partir de sua inscrição no social. Assim como Marcos Vinícius, outras crianças moradoras da favela e de áreas periféricas, como Maria Eduarda, Ágatha Félix e muitas outras, foram assassinadas pelas forças repressivas, atualizando determinada memória discursiva, convertida em política de Estado, que reafirma que vidas precárias são matáveis. A dor singular produzida pela morte do filho de Bruna inscreve-se no social, encontrando a dor de outras mães. Esse encontro possibilita a formação de uma assembleia, de uma militância, que busca por justiça para as várias crianças tombadas, a despeito da incerteza de sua conquista. Além disso, a reunião das mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado produz como efeito a tentativa de produção de uma vida cujos corpos da favela não sejam descartáveis. Dor e desejo por justiça Além do depoimento de que falávamos anteriormente, trazemos outros recortes retirados de uma segunda entrevista concedida por Bruna, dessa vez, retirados da matéria assinada por Felipe Belin do Jornal El País, publicada em 25 de junho de 2018. Procuramos, com isso, descrever o modo como esses dizeres produzem interpretações sobre a violência que interrompeu a vida de Marcos Vinícius e engendram expectativas a respeito do modo pelo qual o Estado atua no social. Veremos, a partir de agora, como, ao promovermos uma escuta discursiva da dor, funciona discursivamente o desejo por justiça que comparece como regularidade nas diferentes matérias sobre as quais nos debruçamos. 252 O enunciado “é um Estado doente que mata criança com roupa de escola” traz uma oração relativa de um modo bem específico. Ela trabalha o significante Estado, reportando-o a uma forma linguística que comparece por anterioridade na oração, embora não esteja presente na organização sintática. As reformulações, a seguir, nos ajudam a observar tal funcionamento: Ø é um Estado doente que mata crianças com roupa de escola X é um Y que é Estado e está doente X é um Y que é Estado e mata crianças Antes mesmo de desenvolver os efeitos ligados à relativa, queremos destacar a inscrição da ausência como marca dessas paráfrases. Há, no intradiscurso, rastros de um significante ausente na sintaxe, uma omissão notada por uma estrutura definidora formulada pelo esquema clássico X é Y (NUNES, 2006 apud NASCIMENTO, 2019). Se nem mesmo o funcionamento da definição, que parece deixar pouca abertura para o equívoco (dado sua tentativa de equalizar os termos X e Y por uma estrutura lógica ligada pelo verbo ser conjugado no presente) é capaz de evitar a intrusão do outro no movimento dos sentidos (NASCIMENTO, 2019), o que dizer, então, de uma estrutura de definição marcada pela ausência de um dos elementos linguísticos? Temos aqui a própria ilusão de conceituação posta em xeque, o que nos impõe questões para o que está e não está sendo enunciado. A posição-sujeito em jogo, ainda que, evidentemente, não se trate do lugar de um lexicógrafo, determina a (tentativa de) definição, a partir de condições sócio-históricas que constituem a produção desse dizer. A posição-sujeito, como é sabido, refere-se ao lugar discursivo constituído em um processo de identificação amparado na história e que se dá a partir de modos de individuação em relação ao Estado e suas instituições (ORLANDI, 2012). É nesse movimento complexo e contraditório que a mãe de Marcos Vinícius, da posição-sujeito de vítima da violência do Estado, tenta definir esse Estado, em um funcionamento no qual 253 restam também suspensos os sentidos ligados às condições para a morte de seu filho. Uma tentativa frustrada de compreender as razões pelas quais o Estado, na figura de seu Aparelho Repressor, o matou. A estrutura definidora, então, marcada pela ausência do primeiro elemento linguístico (X), diz da crueldade que atravessa as condições de produção desse enunciado, impondo para a nossa análise a escuta daquilo que falta. Ernst-Pereira e Mutti (2011, p. 829) sublinham a importância de se considerar a falta na análise discursiva. As autoras levam em conta a omissão de significantes na linearidade linguística como um “lugar em que são criadas zonas de obscuridade e incompletude na cadeia significante com fins ideológicos determinados”. Consideramos que há algo que parece não caber no fio do dizer de Bruna e que diz de uma zona de obscuridade na qual evidências sobre esse agressor são reconhecidas e desconhecidas ao mesmo tempo. Se, como sabemos por Pêcheux (1991, p. 8), “a ausência está estruturalmente inscrita nas formas linguísticas [...] das diferentes modalidades que expressam um ‘desejo’”, podemos dizer que se trata de uma ausência sintática projetando a inscrição de um desejo por justiça, talhado no não fechamento de sentidos para a morte que acabara de acontecer, produzindo expectativas sobre o Estado, essa entidade jurídica que, em tese, funcionaria como afiançadora da paz e reguladora do social. Além daquilo que não foi nomeado, o desejo por justiça mostra-se igualmente pelas determinações apresentadas no encadeamento da relativa “que mata crianças com roupa de escola”. Juntamente com o qualificativo doente, a relativa divide espaço na tentativa de determinar o Estado. Apresentando a estrutura (N que), o enunciado é composto por um SN (um Estado doente), sujeito da relativa, retomado a partir de sua ação, matar crianças. No lugar de infanticida, paráfrase possível para a oração adjetiva, enuncia-se o Estado trazendo à sintaxe a ação verbal (matar), o objeto da ação verbal (crianças) e a incisa (com roupa de escola), como forma de designar o sujeito por aquilo que ele faz e não por aquilo que ele é, afinal, o aspecto ontológico ficou apagado 254 juntamente com o termo omitido na estrutura definidora. Dado que o verbo se encontra no presente, focaliza-se, ainda, que o atributo de matar crianças permanece na linha do tempo, produzindo um gesto de denúncia (MODESTO, 2018). O assassino estaria solto e continuaria a fazer suas vítimas. Esse atributo perverso, porém, coloca-se como condicionado a uma determinação doentia. Fundamentamos essa interpretação pelo efeito de pré-construído que se observa na própria apresentação do SN (um Estado doente). Com isso, explicita-se uma condição, uma possibilidade de bem-estar para o Estado que, uma vez preservada, evitaria a morte de inocentes. Tal interpretação é reiterada quando a mãe de Marcos Vinícius diz: “Porque esse Estado tem que melhorar. Ele não pode matar inocente e criança". As melhorias esperadas para o Estado sustentam-se em expectativas pelas quais tal condição perversa seria provisória. Desse modo, articular o determinante doente ao Estado faz sentido em uma conjuntura política democrática que apregoa um estado de normalidade jurídica como garantidora de direitos e deveres para todos (inclusive o direito de segurança), independentemente de sua classe, gênero ou faixa etária. Há um efeito de anterioridade que ampararia o exercício das funções estatais em um funcionamento jurídico possível de alcançar sua plenitude. Tem-se aí um ponto que gostaríamos de investir: a materialização de um desejo por justiça, amparado no desejo de não violência de um sujeito capturado por um imaginário que supõe um Estado afiançador de paz social para todos. Encontramos em Butler (2019b), em sua obra Quadros de Guerra, uma reflexão que acolhe a temática da não violência enquanto reivindicação. A autora destaca que a não violência não é uma virtude, tão pouco um conjunto de princípios que possa ser aplicado universalmente. Antes, retrata uma “posição imersa e conflituosa de um sujeito que está ferido, cheio de raiva, disposto a uma retaliação violenta, e, não obstante, luta contra essa ação” (BUTLER, 2019b, p. 242). Por isso mesmo, Butler afirma que se trata de uma posição conflituosa, na qual há uma luta contra a violência 255 no contexto em que a violência, como possibilidade, ainda estaria ao alcance da vítima. Como prática, e não como princípio, a não violência se engaja, permanentemente, no âmbito da contestação do poder de agir violentamente. Vemos, nos dizeres de Bruna, que o desejo por justiça, o qual assume a forma de um desejo de não violência, se inscreve em uma contradição marcada linguisticamente. Ao mesmo tempo em que há o desconhecimento de sentidos ligados à definição de Estado, há, também, o reconhecimento de sua violência amparado em seu gesto de denúncia – vide a adjetivação, relativa e incisa –, assim como há a perpetuação da evidência de que a violência não lhe é constitutiva. Essa suposta personalidade pacífica do Estado, pertencente a uma formação social capitalista, é um efeito imaginário que não corresponde à sua organização política e seu modo de controle social. Isso porque, o Estado, com seus mecanismos específicos de violência, forja uma prática que se supõe democrática, mas que se baseia em relações de poder desigualmente situadas (QUIJANO, 2005). Mesmo denunciando seus feitos violentos, Bruna ainda deposita suas expectativas nesse ente jurídico que, caso estivesse em um certo grau de saúde/normalidade, poderia proteger seus cidadãos. Os dizeres da mãe de Marcos Vinícius reproduzem a evidência de que o Estado capitalista-jurídico garantiria segurança como um direito de todos, e protegeria as crianças de abusos e violências como a que alcançou o seu filho. Um para todos que não passa de um engodo jurídico (LAGAZZI, 1988) capaz de supor que a viabilidade por justiça estaria contemplada pelo logicismo da lei. Lagazzi (1988), em O desafio de dizer não, desenvolve uma reflexão acurada a esse respeito. A autora descreve como, no capitalismo, a noção histórica do Estado vincula-se à de sujeito-dedireito, tendo surgido ambas concomitantemente à fundamentação do poder jurídico. Em dado momento, tomando por base os pressupostos teóricos de Mialle e Condorcet, a autora descreve, nos seguintes termos, como o imaginário jurídico pauta as relações sociais: 256 A formação ideológica-jurídica nos leva, no entanto, a acreditar na viabilidade da justiça e, mais do que isso, a reivindicar os mesmo direitos (deveres) para todos, sem nos deixar perceber que ocorre aí uma inversão: ao lutarmos por direitos e deveres iguais, não estamos lutando pelo fim dos privilégios de uns em detrimento de outros, mas por uma igualdade que nos conduz, através do não reconhecimento das singularidades do sujeito [...], à intercambialidade [...]. O reverso da desigualdade não é, pois, a igualdade que massifica, mas a possibilidade da diferença (LAGAZZI, 1988, p. 42, grifo da autora). Ainda nesse sentido, o filósofo marxista Poulantzas (1980) nos ajuda a entender como a máxima todos os sujeitos são iguais perante a lei registra um quadro de homogeneidade partindo da inscrição da diferença. Para ele, a axiomática jurídica contribuiria para a dissimulação das lutas de classes ao erigir-se como sistema de coesão. Pelo efeito de homogeneização, a lei intervém em um processo que separa os sujeitos de suas classes, criando a ilusão de que a sociedade é isenta de relações conflituosas. Nota-se, com isso, que a violência cometida pelo Estado, na forma específica de seus aparelhos repressores, alcança materialmente os sujeitos perpetuando em suas vítimas o efeito ideológico que os prende em um imaginário de expectativas em relação ao seu próprio funcionamento social. Com isso, apagam-se as contingências históricas de uma violência que devasta vidas interpretadas como passíveis de violação. Vidas que circulam em espaços específicos, que pertencem a determinadas classes sociais, que se inscrevem em corpos cuja cor da pele é marcada imaginariamente. Trata-se de uma violência brutal ocorrida de forma não recíproca, uma vez que as mãos que seguram as armas representam a figura de um sujeito soberano (BUTLER, 2019b). O Estado, segundo Butler (2019b, p. 250), “se configura precisamente não como aquele que é afetado pelos outros, não como aquele cuja violência permanente e irreversível representa a condição e o horizonte de suas ações”. Sua posição soberana é constitutivamente inviolável, isso confere a ele a capacidade de, ao praticar a 257 violência, tentar realocar a violação no outro, e sob a alcunha da legitimidade6 expor seu peso ameaçador. Ao situar no outro a violência, constituindo-o como seu repositório permanente, o Estado nega sua capacidade de promovê-la (BUTLER, 2019b). E nesse sentido, as mortes de crianças como Marcos Vinícius, moradoras de favelas e periferias, soam como efeito colateral em prol do combate ao inimigo (afinal, a violência está sempre em outro lugar). Mas, enquanto o Estado nega, há quem devolva a ele sua responsabilidade. Afinal, ainda é possível ouvir o clamor: a culpa é do Estado doente que mata crianças com roupa de escola 7. Nessa formulação, a ausência de um artigo (em que mata crianças), ou outra determinação, focaliza a dor como uma regularidade na vida de outras mães e a reivindicação da não violência como elo que, não custa reiterar, une cada membro das famílias atingidas pela dor, pelo luto, pela luta. Considerações finais No âmago do sofrimento, há algo que não pode ser nomeado. Apesar desse impossível, permanece sendo constantemente elaborado em tentativas de inscrição subjetiva no simbólico, a partir de materialidades significantes diversas, disponíveis ao sujeito em condições materiais oferecidas pela história. Esse algo que assume, como foi possível demonstrar, o espaço de tensão entre dor, luto, luta - foi colocado em pauta como forma de restituir o histórico a isso que singulariza o sujeito, não deixando de inscrever o político e de se inscrever no social brasileiro. O monopólio da violência legítima (SOARES, 2019) é um aspecto relativo ao Estado que demanda atenção. Esse atributo diz da violência unilateral do Estado que recebe legitimidade jurídica para praticar suas ações a partir de todo um aparato institucional ligado à segurança pública. Trata-se, ainda segundo Soares (2019, p. 87), de uma acepção positiva da violência, “definida como potencial emprego dos meios de coerção (armas, polícias, força organizada)”. 7 Relato de Bruna Silva, em matéria do jornal “Esquerda Diário”, publicada em 22 de junho de 2018 e assinada por Lucas Barreto. 6 258 No cerne das questões levantadas, dispomos da teoria e da prática discursiva. Lançamo-nos, para isso, à escuta não somente da voz, mas do gesto de Bruna Silva, mulher, mãe, favelada que tornou sua experiência de luto uma demanda política urgente, pela qual tem sido possível dar vazão não somente à voz de seu filho Marcos Vinícius, mas de tantos outros cujas vozes foram eternamente sufocadas. A dimensão sócio-histórica de sua dor; os diferentes processos de significação de seu sofrimento, a partir de diferentes materialidades significantes; a injunção da não violência como desejo por justiça materializado, na militância, em ação política; a luta por sentidos que não cabem na axiomática da lei foram pontos que atravessaram a nossa reflexão. Em cada um desses pontos analisados, foi possível demonstrar que há uma dor projetada em uma parcela específica da população. Há um sofrimento que se estabiliza na memória de um genocídio negro vivenciado no Brasil (NASCIMENTO, 2016), escancarando as condições materiais de uma não-homogeneidade incompatível com as injunções de nossa formação social capitalista. Referências AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. BALDINI, Lauro. Luto, discurso, história. In: GRIGOLETTO, Evandra; DE NARDI, Fabiele Stockmans; SILVA SOBRINHO, Helson Flávio (Orgs). Imaginário, sujeito, representações. Recife: EdUFPE, 2018, p.26-34. BARRETO, Lucas. Mãe de adolescente morto na Maré afirma: “A culpa é do Estado doente que mata crianças com roupa de escola”. Esquerda Diário. Disponível em: < https://www.esquerdadiario. com.br/Mae-de-adolescente-morto-na-Mare-afirma-A-culpa-e-doEstado-doente-que-mata-criancas-com-roupa-de > Acesso em: 10 nov. 2020. 259 BETIN, Felipe. Mãe de jovem morto no Rio: “É um Estado doente que mata criança com roupa de escola”. El País. 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