ATILIO CATOSSO SALLES
FERNANDA LUZIA LUNKES
LUIZA CASTELLO BRANCO
ORGANIZADORES
AFETO(S) E(M) DISCURSO:
MOVIMENTOS DOS SUJEITOS E DOS SENTIDOS
NA HISTÓRIA
1
Copyright © Autoras e autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.
Atilio Catosso Salles; Fernanda Luzia Lunkes; Luiza Castello Branco [Orgs.]
Afeto(s) e(m) discurso: movimentos dos sujeitos e dos sentidos na história.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. 333 p. 16 x 23 cm.
ISBN: 978-65-5869-698-8 [Digital]
1. Análise do Discurso. 2. Estudos do Sujeito. 3. Sujeitos e sentidos. I. Título.
CDD – 410
Capa: Petricor Design
Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).
Pedro & João Editores
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2022
2
POR UMA ESCUTA DA DOR
Rogério Luid Modesto, Liliane Anjos, Flavio Benayon
Escutar a voz dos mortos
“Nossos mortos têm voz”. É assim que Bruna da Silva, mãe de
Marcos Vinícius, jovem de 14 anos assassinado pela polícia
enquanto ia para a escola, produz sentido a respeito de sua dor
transformada em militância. O estranhamento semântico
provocado por uma formulação que alinha “estar morto” e “ter
voz” fala-nos de uma morte presente, de uma morte ainda sem paz,
da impossibilidade de um “silêncio sepulcral”. É preciso falar dos
mortos, falar pelos mortos, ser a voz dos mortos. Não se trata de
“dar voz” aos mortos, mas ser a voz deles. Os mortos morreram,
mas seus nomes ecoam como gritos de guerra: “Marcos Vinícius,
presente!”.
Essa voz-presença revive a vida e a morte daqueles que já
foram. Ela deixa as feridas abertas. Uma forma de denúncia que
funciona “como ferida aberta esperando outros modos de
cicatrização e que deixa o sangue fluir por precisão e não porque se
gosta da dor” (MODESTO, 2019, p. 143). Ser a voz dos mortos, a
presença deles entre nós, mobiliza a dor, o luto, a tristeza, a
desesperança e a quebra dos sonhos, mas também, em alguma
medida, a felicidade, o soerguimento, a luta. Tudo isso em favor de
uma militância que (re)significa o(s) afeto(s) colocando-o(s) na
tensão entre o social e o político.
É assim, então, que escolhemos falar do afeto em sua relação
com o social. Um afeto contraditoriamente marcado pela dor1 e pela
Tal como Farge (2015), consideramos a dor, enquanto sensação físico-emocional
que não se separa da mágoa, como uma forma de relação com o mundo. Nesses
termos, "a dor não é uma invariante, uma consequência inevitável de situações
dadas; é um modo de ser no mundo que varia segundo os tempos e as
1
237
força, pelo luto e pela luta2. Concordando com Frantz Fanon,
compreendemos ser possível percorrer pelos sentidos da dor, da
miséria, do luto e da luta de modo “táctil e afetivamente” (FANON,
2008, p. 86). Ressaltamos, nesse sentido, os efeitos do político e do
social no afeto e na dor-luto-luta (ou na dor-luto-luta como afeto),
para marcarmos outra posição diferente daquela para a qual tanto
a dor quanto o afeto configurariam como alegorias entre o
privilégio e o sentimento de culpa humanista e burguesa.
Aqui, borrando as fronteiras entre dor e afeto, luto e luta, lemos
tais significantes dentro de uma mesma cadeia parafrástica a qual,
para nós, toma parte da e na história, do e no social e do e no político.
Se a dor faz história, como nos alerta Farge (2015), ela o faz
produzindo sentidos em certas condições de produção: se a história
é a história da luta de classes, a dor, como forma de fazer a história,
é a dor da história da desigualdade social e da necropolítica
(MBEMBE, 2018), um estado de exceção permanente (AGAMBEN,
2004) que insiste em tomar a morte como objeto de desejo.
Defendendo que a dor é um afeto legítimo e, em certas
condições históricas, um gatilho de (des)continuidades entre luto e
luta, nossa posição analítica discursiva toma como pressuposto o
fato de que a dor-afeto movimenta e (des)organiza o social. Cabe,
nessa perspectiva, tomar a dor e o afeto enquanto “lugares para
história” (FARGE, 2015).
Compreender a dor como um acontecimento histórico e
discursivo estabelece certa paradoxalidade, pois ao mesmo tempo
em que o sofrimento se mostra visivelmente, tornando-se um lugar
circunstâncias e que, por essa razão, pode se exprimir ou, ao contrário, se recalcar,
se expulsar ou se gritar, se negar ou arrastar outrem para ela" (FARGE, 2015, p.
19). Mas à frente, partindo de Freud ([1926] 2014), tomaremos a dor em sua relação
com a linguagem, compreendendo sua inscrição no social.
2 Tomamos o par luto-luta não num sentido dicotômico, mas numa relação
estabelecida entre continuidades e descontinuidades. Com Baldini (2018, p. 33),
pensamos "o luto como um acontecimento, um acontecimento que convoca o
sujeito para um ato, um ato que proporciona abertura para que algo se encerre,
'pois um luto, como uma psicanálise, por essência, tem um fim'".
238
para a história, ele é incompreendido ou, por vezes, não trabalhado,
na medida em que a história “guarda seu ritmo sem o dizer, sem o
enunciar, sem trabalhar sobre as palavras que o exprimem e
aquelas que o rodeiam” (FARGE, 2015, p. 14). Disso deriva a
pertinência de uma reflexão que demanda um posicionamento
ético no exercício de análise, pois cabe não mais considerar o
sofrimento como evidente consequência de fatos ou decisões
políticas, nem simplesmente como um bloco ou uma entidade
sobre a qual não se busca refletir.
Dessa demanda, urge a necessidade de investir em outra
forma de lidar com o sofrimento e com o afeto a propósito de uma
ética intelectual que não pode reduzir a dor a um espetáculo da teoria.
Caberia, pois, o empreendimento de um outro olhar, ou, para
retomarmos o ponto por onde começamos, uma outra escuta a
essas vozes presentes nas suas ausências marcadas pela dor, já que
“há sistemas relacionais e culturais que fazem das palavras de
sofrimento um mundo a compreender, e não um dado inevitável”
(FARGE, 2015, p. 14-15).
“A dor significa, e a maneira como a sociedade a capta ou a
recusa é extremamente importante” (FARGE, 2015, p. 19). Captar a
dor ou, em termos propriamente discursivos, fazer da dor uma voz
que demanda e precisa de escuta torna-se um trabalho que deve
buscar atribuir sentido para a dor, compreendendo-a como um
afeto que se relaciona com os acontecimentos, sendo, portanto, um
gesto social e político. Nesses termos, importa lutar por uma
perspectiva teórica a partir da qual seja possível refutar a produção
de um conhecimento insensível ao sofrimento, do mesmo modo
que é preciso refutar uma postura que tenta explorar a dor e o afeto
a ponto de torná-los exóticos. Novamente recorremos a Farge
(2015, p. 21):
Quando se trabalha sobre os grupos sociais mais desfavorecidos e
desapossados, o sofrimento dos pobres é um tema forte. A narração
desse sofrimento exige certo número de preocupações: podemos
rapidamente nos deixar arrastar para a descrição fascinada de uma
239
espécie de “exotismo” da pobreza, desviar insensivelmente para um
olhar que inferioriza aqueles mesmos que estudamos. Desde então a
escritura deve manter essa tensão extrema que faz da fala sofrida do
mais pobre uma alteridade a um só tempo igual e separada; fruto de
uma condição singular e partilhada que busca a todo custo seu
arranjamento no interior da comunidade dos seres falantes. Visível,
afastada, a fala sofrida, restituída pelo historiador à sua história e a
outrem, é um êxodo de que a escritura historiadora deve traçar a
viagem. A terra do sofrimento dos pobres não é uma terra exótica ou
selvagem a visitar; é a matriz de uma comunidade social, por vezes
mesmo sua terra de origem.
Se Farge fala ao historiador, tomamos aqui suas palavras como
direção para nós, analistas de discurso. De nossa posição, tentamos
apresentar uma reflexão cientes de que seu cerne tem como base o
sofrimento. Teorizamos sobre as relações entre a dor e o afeto de
um ponto de vista discursivo, lançando uma escuta para a voz e a
presença de Marcos Vinícius na voz e na presença de sua mãe,
Bruna. E, ao fazermos isso, sabemos que é do sofrimento que
estamos falando. Nesses termos, se o sofrimento é essa matriz de
uma comunidade social, ou seja, um ponto de sustentação que
mantém em funcionamento uma gama de discursividades,
queremos ressaltar o caráter social e político do sofrimento, a fim
de compreender como essa matriz funciona não como origem de si,
mas como ponto de ancoragem para determinados sujeitos.
O uniforme de Marcos Vinícius
Nós compreendemos os discursos como acontecimento que não
se erigem sem sujeitos e sem condições de produção. Descrever
seriamente tais condições, nomear aqueles e aquelas cujas vidas se
envolvem aos acontecimentos e analisar as posições-sujeito a partir
das quais elas enunciam é um primeiro passo para tirar o
sofrimento do nível da abstração, mostrando que ele é fundamental
para os processos de significação das tensões sociais e políticas.
240
Falamos, então: que a polícia matou Marcos Vinícius, que sua
camisa escolar ensanguentada é uma marca de memória e
presença; falamos de um projeto genocida de Estado que produz
um luto coletivo e uma dor em série que se atualiza em outros casos
iguais, mas particulares; falamos de Bruna da Silva, uma mãe,
moradora da favela que teve seu filho morto pela polícia e que
significou sua dor na luta e na militância; falamos da construção de
um discurso estruturado a partir de um antagonismo ao Estado,
ainda que, nos termos de uma ideologia jurídica que é também a
ideologia do Estado, tal antagonismo ratifique a luta por direitos.
Outro aspecto que nos permite retirar a dor do âmbito da
abstração é compreendê-la como gesto e prática material. Na sua
teorização sobre o gesto como ato no nível do simbólico, Pêcheux
nos alerta sobre o funcionamento de um “sistema de signos não
linguísticos” (PÊCHEUX, 2010, p. 77) que comparecem
sobredeterminados
por
diferentes
práticas
discursivas.
Tematizando o discurso parlamentar, por exemplo, ele ressalta o
funcionamento dos aplausos, dos risos, dos tumultos e dos
assobios.
Nesse momento, nós nos debruçamos sobre um gesto forte em
emoção que diz muito bem do discurso do afeto pautado pela dor
materializada no luto e na luta, discurso a partir do qual a posiçãosujeito ocupada por Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius,
produz sentidos em torno de uma negociação do conflito entre
memória e esquecimento.
No dia do enterro de seu filho, o ornamento escolhido por
Bruna para cobrir o caixão ao centro da sala é a camisa escolar, suja
de sangue, que o menino usava quando de sua morte. O uniforme
branco com duas listras azuis (uma mais grossa e outra mais fina),
uniforme escolar carioca, está cortado e passa a ser relativamente
longo como uma bandeira mediana. A grande marca de sangue
está concentrada logo abaixo da linha mais fina do uniforme,
aquela com o tom em azul claro, fato que revela que o local do tiro
que ceifou a vida de Marcos Vinícius teria sido no final de seu tórax.
A camisa permanece lá, como ornamento, durante todo o tempo do
241
velório. Pouco antes da retirada do caixão da sala para que o rito
do enterro prossiga, Bruna se posiciona ao lado do corpo de seu
filho estendido em um caixão branco. Ela retira a camisa de onde
estava e, erguendo-a com as duas mãos como quem segura um
cartaz num protesto, Bruna faz um longo desabafo e diz “eu vou
fazer dessa camisa um instrumento de justiça”3. A dor de mãe não
passa despercebida pelas lentes das câmeras jornalísticas de
fotografia e televisão. Depois do enterro, fotos e mais fotos dos
diferentes ângulos de Bruna junto ao caixão e do uniforme
ensanguentado de Marcos Vinícius viralizam nas redes sociais e
nas mídias.
Como prometido por Bruna, essa camisa passa a ser usada por
ela como instrumento de justiça e a acompanha em diferentes
protestos contra o genocídio da população negra e de periferia e
demais ações de militância. Mais fotos podem ser encontradas na
web como registros desses outros momentos. Na matéria a partir
da qual recolhemos boa parte dos enunciados de Bruna que aqui
analisamos, ela comparece com a camisa ensanguentada de Marcos
Vinícius na cabeça como se fosse um véu. Uma de suas mãos está
pousada na altura da base do pescoço e, ao servir de peso para que
as pontas da camisa fiquem juntas, faz esse gesto lembrar o gesto
de pôr a mão sobre o peito quando cantamos o hino nacional. Sem
nenhuma dificuldade, qualquer leitor relativamente experiente
consegue associar essa fotografia que acompanha a reportagem
com as imagens dos diferentes títulos de Nossa Senhora. A camisa
configura-se como um signo não linguístico que estabelece um jogo
entre presença e ausência, mas não de um jeito disjuntivo (presença
contra ausência) e sim de uma maneira contraditória (presença na
ausência)4.
Disponível
em
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/corpo-doadolescente-marcus-vinicius-da-silvae-velado-no-palacio-da-cidade.ghtml>.
Acesso em 18 nov. 2020.
4 Entendemos que há a necessidade de uma reflexão séria no campo da análise de
discurso em torno do uso ético das imagens com as quais temos trabalhado. Se
advogamos aqui que a dor merece ser escutada, não nos esquecemos, porém, de
3
242
Stallybrass (2008), no livro O casaco de Marx, apresenta uma
reflexão fina acerca da vida social das coisas, estabelecendo pontos
de contato entre roupas, memórias e dor. Nessa reflexão, ele nos
lembra que, quando a morte alcança aqueles que nos são próximos,
as roupas ainda ficam, sustentando seus gestos ao mesmo tempo
confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos. Isso
porque, ao contrário de outros objetos como as joias, por exemplo,
as roupas recebem a marca humana. Mesmo que uma joia seja mais
resistente ao tempo, ela, em geral, tende a, ao contrário das roupas,
resistir à história dos nossos corpos, afinal, são as roupas que
guardam nossos cheiros, nossos moldes, nossas marcas de uso.
Se somos uma "sociedade da roupa" (STALLYBRASS, 2008, p.
13), como sugere o autor, nota-se que a roupa tende a estar
associada de maneira poderosa com a memória, sendo ela mesma
um tipo de memória. Assim, "quando a pessoa está ausente ou
morre, a roupa absorve sua presença ausente" (STALLYBRASS,
2008, p. 14). A partir dessas ponderações, perguntamo-nos: e
quando a roupa traz o traço da morte? E quando ela, para além de
ser memória da presença ausente, é também memória do ato da
morte? Ou ainda: "o que nós temos a ver com as roupas dos
mortos?" (STALLYBRASS, 2008, p. 17), pergunta com a qual Bruna
que muitos dos materiais que dão a escutar e ver a dor são produzidos, muitas
vezes, à revelia daqueles que vivem o acontecimento da dor. Nesses casos em que
a dor toma corpo pelos gestos da humilhação, por exemplo, ainda que exploremos
esses acontecimentos (inclusive como forma de denúncia), acreditamos ser mais
pertinente um gesto de descrição da imagem sem a necessidade de sua
reprodução. Este, porém, não é o nosso caso aqui. Nossa opção por não reproduzir
a imagem de Bruna da Silva com a camisa ensanguentada de seu filho em forma
de véu se dá apenas por uma questão de espaço textual. Entendemos que Bruna
decide pela exposição de sua imagem e da imagem do uniforme ensanguentado
de Marcos Vinícius. Levando às consequências a sua luta para tornar aquele objeto
um “instrumento de justiça”, sua imagem não lhe é roubada, já que em muitas
ocasiões sua resistência a leva à frente das câmeras portando o objeto que faz
memória à vida e à morte de seu filho. Apesar de não reproduzirmos essa imagem
aqui (ou qualquer outra em torno desse objeto de memória), acreditamos que essa
imagem incômoda e, de muitos modos, inquietante deve ser vista e deve mesmo
produzir resistência e revolta.
243
da Silva parece nos confrontar em seus usos bandeira e véu que
atualizam a memória da forma da morte de Marcos Vinícius. Uma
atualização de memória que, da posição de dor transformada em
militância, parece estabelecer uma negação antagônica ao
esquecimento enquanto marca desse país acostumado a se dizer
como tendo uma "memória curta".
Sem deixar de olhar para os sentidos dos antagonismos,
trabalhamos o jogo contraditório que produz a tensão entre
memória e esquecimento de que falávamos. Ao tratar desse aspecto
relacional, Courtine (1999) recorre a uma anedota de Milan
Kundera que também traz e traça na imagem e no figurino a
problemática da memória e do esquecimento:
Fevereiro de 1948. O dirigente comunista Klement Gottwald, da
sacada de um palácio barroco de Praga, discursa para uma multidão
aglomerada na praça da velha cidade. É nessa sacada que começa a
história da Boêmia comunista...
“Gottwald estava cercado por seus camaradas e, a seu lado, bem
próximo, estava Clémentis. Nevava, estava frio e Gottwald estava
com a cabeça descoberta. Clémentis, muito atencioso, tirou o seu
chapéu de pele e o colocou na cabeça de Gottwald. O departamento
de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da
fotografia da sacada, de onde Gottwald, com um chapéu de pele e
rodeado por seus camaradas, falava ao povo. (...) Todas as crianças
conheciam essa fotografia de tê-la visto em cartazes, nos manuais ou
nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clémentis foi acusado de traição e
enforcado. O departamento de propaganda fê-lo imediatamente
desaparecer da história e certamente de todas as fotografias. Desde
então, Gottwald está sozinho na sacada. Ali, onde estava Clémentis,
há somente o muro vazio do palácio. De Clémentis, restou apenas o
chapéu de pele na cabeça de Gottwald” (COURTINE, 1999, p. 15).
Após a anedota, Courtine (1999, p. 15-16) pondera que “esse
processo de anulação de Clémentis, de perda referencial, recalque,
apagamento da memória histórica que deixa, como uma estreita
lacuna, a marca de seu desaparecimento [...] é antes de tudo na ordem
244
do discurso que ele se é produzido”. De Clémentis, restou apenas o
chapéu de pele na cabeça de Gottwald. De Marcos Vinícius, restou a
camisa ensanguentada do seu uniforme escolar, hoje usada ora como
bandeira ora como véu. Malgrado a mobilização e uso da camiseta
enquanto objeto, é na ordem do discurso que ela funciona para
contornar os efeitos do desaparecimento da vida ceifada de Marcos
Vinícius. É na ordem do discurso que a materialidade significante –
uma composição contraditória entre uniforme escolar e mancha de
sangue e o "gesto" de colocar sobre a cabeça o uniforme – convoca
uma interpretação que aciona uma memória discursiva capaz de
produzir afetiva sensibilização frente ao objeto de dor. A dor,
enquanto afeto que mobiliza luto e luta, comparece na ordem do
discurso autorizando leituras possíveis de consternação e de revolta
frente ao absurdo provocado pelo cruzamento entre a inocência que
representa um uniforme escolar e uma mancha de sangue provocada
por um tiro de fuzil.
Se, de um lado, a camisa ensanguentada coloca em pauta a
particularidade da morte de Marcos Vinícius; de outro lado, seu
uso como “objeto de justiça” atualiza a memória da barbárie a que
as populações de periferias estão submetidas. Mostra-se, então, que
nem mesmo um uniforme escolar é respeitado quando quem o
utiliza é um jovem da favela. A dor de Bruna transforma esse objeto
simbólico em bandeira que, ao flamejar em suas mãos, grita um “é
preciso que se olhe para isso”. Uma forma de denúncia que enreda
inequivocamente dor e laço social. Essa é uma dor particular, mas
não só. É uma dor de Bruna, mas também de outras mães; a camisa
ensanguentada é a de Marcos Vinícius, mas poderia ser de
quaisquer outros estudantes na periferia, porque esse uniforme não
lhes confere segurança.
A inscrição da dor no social
Escrever sobre a dor de uma perspectiva discursiva nos faz
questionar como esse afeto sofrido por mães faveladas e periféricas
que perderam seus filhos para a violência policial é produzido em
245
relação à brutalidade do Aparelho Repressivo de Estado. Nessa
direção, é insuficiente compreender a dor apenas como um estímulo
instintual constante produzido sobre um ponto do corpo, como
quando nos machucamos com um corte, já que não há relação com a
dor sofrida ao se perder um filho, a menos que a entendamos de modo
semelhante. Uma indistinção é apontada por Freud ([1926] 2014, p.91)
ao observar um exemplo do cotidiano: “não desprovido de sentido
que a linguagem tenha criado o conceito de dor interna, psíquica, e
que compare à dor física o sentimento da perda de objeto”.
Apesar da indistinção cotidiana que marca a palavra dor,
Freud ([1926] 2014, p.91-92) traça diferenciações entre dor física e
psíquica ao comentar sobre ambas, mesmo que suas condições
econômicas de produção sejam semelhantes:
O forte investimento com anseio no objeto que faz falta (perdido),
sempre crescente porque não pode ser acalmado, cria as mesmas
condições econômicas que o investimento no local ferido do corpo e
torna possível ignorar o pré-requisito da origem periférica da dor
física! A passagem de dor física para dor psíquica corresponde à
mudança de investimento narcísico para objetal.
A dor sofre uma diferenciação a partir de sua dupla
determinação: a física, resultante do investimento no próprio Eu; e
a psíquica, constituída pelo contínuo investimento libidinal no
objeto perdido, impossibilitado de ser concretizado. Esses
apontamentos de Freud nos permitem tomar a dor como objeto de
uma análise discursiva ao considerarmos o funcionamento do
investimento libidinal em um objeto perdido, pois esse objeto
(desde sempre) perdido pode ser atualizado na morte de um filho,
tendo um potencial desorganizador para o sujeito. Ao pensar na
produção da dor psíquica, questionamos sua constituição histórica
lançando uma escuta sobre o sofrimento de Bruna.
A dor deve ser pensada em relação à história, enquanto
fenômeno que acontece em determinadas condições de produção,
atualizando uma memória discursiva. Em face do imaginário de
246
violência nas favelas, as operações de segurança pública
regularmente significam vidas negras e pobres como matáveis.
Essa memória reiteradamente atualizada no social, legitimando
práticas institucionais de invasão das favelas pela polícia, concorre
para a produção da dor das mães que perderam seus filhos.
A compreensão de Pêcheux (2015, p.46) por memória discursiva
como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento
a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ [...] de que sua leitura
necessita” viabiliza pensar a dor a partir da história. Os agentes
policiais restabelecem os “implícitos” institucionalizados ao lerem
o social quando executam suas práticas de segurança pública. Entre
as memórias atualizadas está aquela que sustenta a viabilidade das
tropas subirem nas favelas e trocarem tiros independente do risco
que causam às vidas dos moradores.
Foi em uma dessas incursões, realizada no Complexo da Maré,
que Marcos Vinícius foi morto. Sobre esse episódio, analisamos um
depoimento dado por Bruna da Silva a Gustavo Goulart e
publicado em 17 de janeiro de 2020 na revista Época:
A dor da perda de um filho, ainda mais como se deu comigo, é algo
sem dimensão. Era como se minha vida tivesse acabado naquele 20
de junho de 2018, uma quarta-feira. Foi o dia em que policiais civis
da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) fizeram uma
operação chamada de vingança aqui no Complexo da Maré, com foco
na Vila dos Pinheiros, onde moro com minha família. Um inspetor
da polícia (o chefe de investigações da Delegacia de Combate às
Drogas, Ellery de Ramos Lemos) tinha sido morto dias antes na
Favela de Acari. Foram até lá, mas receberam uma informação de que
um grupo de criminosos de Acari estava dormindo numa casa na
Vila dos Pinheiros. Executaram seis homens que estavam dormindo
na casa depois de darem o tiro mortal em meu filho, um estudante
do sétimo ano do ensino fundamental. (Bruna da Silva em
depoimento a Gustavo Goulart, Revista Época, 17 de janeiro de 2020).
O dia da morte de Marcos Vinícius, 20 de junho de 2018,
encontra o dia que “policiais civis da Core (Coordenadoria de
247
Recursos Especiais) fizeram uma operação chamada de vingança
aqui no Complexo da Maré”. A operação de policiais civis é
equivocamente nomeada como “vingança”, colocando em tensão o
imaginário de impessoalidade esperado de uma operação de
segurança pública e o investimento subjetivo envolvido em uma
vingança. Uma operação de Estado organizada para vingar um
inspetor de polícia leva à morte “seis homens” e um menino de
quatorze anos com uniforme escolar. O equívoco de uma “operação
chamada de vingança” tensiona os limites de atuação do Aparelho
Repressivo, que encontra espaço para perpetuar práticas de
represália em nome de interesses corporativos, mesmo que para
isso mate crianças.
A forma de contar a dor da perda do filho, na entrevista de
Bruna da Silva, é constituída em relação indissociável da ação
repressiva do Estado. Os policiais civis da Core, em nome da
operação conhecida como vingança, mataram Marcos Vinícius. A
dor aí não é produzida por uma contingência ou um acidente que
dificilmente se repete nas favelas e regiões periféricas do Brasil.
Quase dois anos após a morte do menino, podemos ler a forma
como um social fortemente dividido se inscreve no fio do dizer:
A 100 metros de casa, meu filho e o amigo viram policiais entrando
na comunidade com um blindado. Mesmo de uniforme e mochila
escolar meu filho foi alvo de um policial que estava de touca ninja e
sem a identificação no uniforme. Ele apontou um fuzil para o Marcos
Vinícius e disparou. A bala entrou pela região lombar e atravessou o
corpinho dele, que era bem alto para sua idade, com 1,70 metro.
(Bruna da Silva em depoimento a Gustavo Goulart, Revista Época, 17
de janeiro de 2020).
A descrição da violência e insensibilidade policial contrapõe
os modos de dizer sobre Marcos Vinícius, caracterizando um social
marcado pela contradição entre o afeto maternal e a brutalidade
que significa o Estado. A mãe diz sobre o “corpinho” de seu filho,
“que era bem alto para sua idade”. Inscrições de uma relação
afetuosa, interrompida pela frieza da descrição da entrada de um
248
blindado na comunidade, que fez do menino de quatorze anos
“alvo de um policial que estava de touca ninja e sem a identificação
no uniforme” e que “apontou um fuzil para o Marcos Vinícius e
disparou”, de modo que a “bala entrou pela região lombar”. A
tensão entre frieza e afeto no intradiscurso é uma forma de
simbolizar a história de uma dor causada pela polícia.
Entre a descrição formulada friamente para a instituição
repressiva e afetuosamente para o filho, comparece no dizer de
Bruna: “Mesmo de uniforme e mochila escolar meu filho foi alvo
de um policial que estava de touca ninja e sem a identificação no
uniforme”. A relação concessiva explicitada no intradiscurso a
partir da oposição da oração subordinada à oração principal expõe
o crime injustificável. Mesmo que o uniforme e a mochila escolar
mobilizem o imaginário de que uma pessoa é estudante, ou seja, é
reconhecida por uma instituição estatal, e que muitas vezes é uma
criança demandando proteção, o filho de Bruna foi morto por um
policial. O modo como o discurso configura as relações sintáticas
dá visibilidade para a presença da violência repressiva na favela,
ainda que se atenda àquilo que socialmente se espera.
A polícia está no cerne da produção da dor da mãe que perdeu o
filho, comparecendo até mesmo no modo de contar sobre o episódio.
A inscrição do Aparelho Repressivo no fio do dizer configura essa
instituição como estruturante desse afeto, possibilitando, portanto,
sua análise a partir de uma perspectiva histórica, pois as condições de
produção constitutivas da perda lacerante atualizam sentidos sobre
vidas matáveis que retornam no social.
A dimensão histórica da dor experienciada singularmente pela
mãe do menino concorre para o encontro ao sofrimento vivenciado
por diferentes pessoas em semelhante condição de desamparo. Em
seu depoimento, Bruna da Silva coloca sua dor em ressonância à de
outras mães cujos filhos também foram assassinados:
Eu não aceito que a polícia tenha matado meu filho. Mas a militância
tem mudado minha vida. Eu me juntei ao coletivo dessas mães que
tiveram seus filhos vitimados pelo Estado. E hoje fico feliz porque
249
não busco justiça só para o meu (filho). Eu busco justiça para todos
os que foram tombados. Todos. Maria Eduarda (aluna da Escola
Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Fazenda Botafogo,
morta em março de 2017 alvejada por um policial militar), por
exemplo. Eu fico feliz quando tem justiça. A Ágatha (Vitória Sales
Félix, de 8 anos, morta por um tiro disparado por um PM na
Fazendinha, Complexo do Alemão, no dia 20 de setembro de 2019)
morreu há pouco tempo, e fiquei feliz porque acharam o autor
daquele tiro. (Bruna da Silva em depoimento a Gustavo Goulart,
Revista Época, 17 de janeiro de 2020).
O sofrimento perante o assassinato do filho cometido pela
polícia possibilita o surgimento de um espaço de encontro: a
“militância”, o “coletivo dessas mães que tiveram seus filhos
vitimados pelo Estado”. A militância é o espaço constituído a partir
de uma dor cujas condições de produção retornam no social, fazendo
com que mães não necessariamente identificadas às mesmas práticas
cotidianas e aos mesmos rituais se reconheçam no desamparo,
chorando por seus filhos assassinados e lutando por “justiça”.
O afeto sofrido em sua dimensão singular converte-se em
demanda coletiva por “justiça” para todos os filhos tombados. A
luta se amplifica, engajando a busca pela condenação dos
assassinos. No entanto, “justiça” significa como incerta, de modo
que para ser cumprida, deve ser buscada, porém, mesmo a luta por
sua realização não a garante, como comparece na formulação “Eu
fico feliz quando tem justiça”. A conjunção “quando” inscreve no
intradiscurso a incerteza da aplicação da devida penalidade aos
assassinos, já que o Estado possibilita a seus servidores fardados
matar moradores da favela sem garantir a certeza de sua punição.
Além da luta incerta por justiça, a militância funciona como
modo de expor a precariedade de determinados corpos no social e
de se opor a ela.5 Ao pensar o ato de fala em relação a alguns tipos
A precariedade fragiliza determinadas vidas, expondo-as à violência e à morte.
Butler (2019a, p. 40) afirma que: “A ‘precariedade’ designa a situação
politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as
5
250
de representações corporais em assembleia, Judith Butler (2019a,
p.24-25) afirma:
[...] os corpos reunidos “dizem” não somos descartáveis, mesmo
quando permanecem em silêncio. Essa possibilidade de expressão é
parte da performatividade plural e corpórea que devemos
compreender como marcada por dependência e resistência. Criaturas
em assembleia como essas dependem de um conjunto de processos
institucionais e de vida, de condições de infraestruturas, para
persistir e fazer valer juntas o direito às condições de sua persistência.
Esse direito é parte de um apelo mais amplo por justiça, um apelo
que pode muito bem ser articulado por um posicionamento
silencioso e coletivo.
Butler trabalha a performatividade, isto é, a palavra
compreendida como ação, para além da verbalização ao pensar os
corpos reunidos em assembleia. A reunião de corpos precarizados,
por seu gesto mesmo de agrupamento, é um modo de dizer “não
somos descartáveis”. A militância das mães cujos filhos foram
mortos pela polícia significa por sua existência como coletividade,
expondo a precarização dos corpos executados regularmente pela
política de segurança pública. A exposição dessa precarização é um
modo de se opor ao Estado, que reafirma por suas práticas que a
vida dos filhos da favela é descartável.
A existência em assembleia resulta do encontro entre mães
marcadas pela dor causada pela perda de seus filhos, assassinados
pela polícia. O agrupamento desses corpos não é apenas um modo
de lidar com a terrível perda que as afeta, mas de também lutar por
condições de vida menos precárias e por políticas públicas que não
signifiquem essas vidas como descartáveis. A militância surge para
as mães como possibilidade, como afirma Butler, “para persistir e
fazer valer juntas o direito às condições de sua persistência”. A
partir desse direito às condições de persistência, apela-se não
consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que
outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”.
251
somente para que a justiça seja feita pela punição dos policiais
criminosos, mas também para que a luta converta-se em militância
por condições de vida menos precárias.
O caráter singular da dor psíquica, vivenciada por cada
sujeito, encontra a história pela regularidade das condições de sua
produção e a partir de sua inscrição no social. Assim como Marcos
Vinícius, outras crianças moradoras da favela e de áreas periféricas,
como Maria Eduarda, Ágatha Félix e muitas outras, foram
assassinadas pelas forças repressivas, atualizando determinada
memória discursiva, convertida em política de Estado, que
reafirma que vidas precárias são matáveis.
A dor singular produzida pela morte do filho de Bruna
inscreve-se no social, encontrando a dor de outras mães. Esse
encontro possibilita a formação de uma assembleia, de uma
militância, que busca por justiça para as várias crianças tombadas,
a despeito da incerteza de sua conquista. Além disso, a reunião das
mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado produz
como efeito a tentativa de produção de uma vida cujos corpos da
favela não sejam descartáveis.
Dor e desejo por justiça
Além do depoimento de que falávamos anteriormente,
trazemos outros recortes retirados de uma segunda entrevista
concedida por Bruna, dessa vez, retirados da matéria assinada por
Felipe Belin do Jornal El País, publicada em 25 de junho de 2018.
Procuramos, com isso, descrever o modo como esses dizeres
produzem interpretações sobre a violência que interrompeu a vida
de Marcos Vinícius e engendram expectativas a respeito do modo
pelo qual o Estado atua no social. Veremos, a partir de agora, como,
ao promovermos uma escuta discursiva da dor, funciona
discursivamente o desejo por justiça que comparece como
regularidade nas diferentes matérias sobre as quais nos
debruçamos.
252
O enunciado “é um Estado doente que mata criança com
roupa de escola” traz uma oração relativa de um modo bem
específico. Ela trabalha o significante Estado, reportando-o a uma
forma linguística que comparece por anterioridade na oração,
embora não esteja presente na organização sintática. As
reformulações, a seguir, nos ajudam a observar tal funcionamento:
Ø é um Estado doente que mata crianças com roupa de escola
X é um Y que é Estado e está doente
X é um Y que é Estado e mata crianças
Antes mesmo de desenvolver os efeitos ligados à relativa,
queremos destacar a inscrição da ausência como marca dessas
paráfrases. Há, no intradiscurso, rastros de um significante ausente
na sintaxe, uma omissão notada por uma estrutura definidora
formulada pelo esquema clássico X é Y (NUNES, 2006 apud
NASCIMENTO, 2019). Se nem mesmo o funcionamento da
definição, que parece deixar pouca abertura para o equívoco (dado
sua tentativa de equalizar os termos X e Y por uma estrutura lógica
ligada pelo verbo ser conjugado no presente) é capaz de evitar a
intrusão do outro no movimento dos sentidos (NASCIMENTO,
2019), o que dizer, então, de uma estrutura de definição marcada
pela ausência de um dos elementos linguísticos? Temos aqui a
própria ilusão de conceituação posta em xeque, o que nos impõe
questões para o que está e não está sendo enunciado.
A posição-sujeito em jogo, ainda que, evidentemente, não se
trate do lugar de um lexicógrafo, determina a (tentativa de)
definição, a partir de condições sócio-históricas que constituem a
produção desse dizer. A posição-sujeito, como é sabido, refere-se
ao lugar discursivo constituído em um processo de identificação
amparado na história e que se dá a partir de modos de
individuação em relação ao Estado e suas instituições (ORLANDI,
2012). É nesse movimento complexo e contraditório que a mãe de
Marcos Vinícius, da posição-sujeito de vítima da violência do
Estado, tenta definir esse Estado, em um funcionamento no qual
253
restam também suspensos os sentidos ligados às condições para a
morte de seu filho. Uma tentativa frustrada de compreender as
razões pelas quais o Estado, na figura de seu Aparelho Repressor,
o matou. A estrutura definidora, então, marcada pela ausência do
primeiro elemento linguístico (X), diz da crueldade que atravessa
as condições de produção desse enunciado, impondo para a nossa
análise a escuta daquilo que falta.
Ernst-Pereira e Mutti (2011, p. 829) sublinham a importância
de se considerar a falta na análise discursiva. As autoras levam em
conta a omissão de significantes na linearidade linguística como
um “lugar em que são criadas zonas de obscuridade e
incompletude na cadeia significante com fins ideológicos
determinados”. Consideramos que há algo que parece não caber no
fio do dizer de Bruna e que diz de uma zona de obscuridade na qual
evidências sobre esse agressor são reconhecidas e desconhecidas ao
mesmo tempo. Se, como sabemos por Pêcheux (1991, p. 8), “a
ausência está estruturalmente inscrita nas formas linguísticas [...]
das diferentes modalidades que expressam um ‘desejo’”, podemos
dizer que se trata de uma ausência sintática projetando a inscrição
de um desejo por justiça, talhado no não fechamento de sentidos
para a morte que acabara de acontecer, produzindo expectativas
sobre o Estado, essa entidade jurídica que, em tese, funcionaria
como afiançadora da paz e reguladora do social.
Além daquilo que não foi nomeado, o desejo por justiça
mostra-se igualmente pelas determinações apresentadas no
encadeamento da relativa “que mata crianças com roupa de
escola”. Juntamente com o qualificativo doente, a relativa divide
espaço na tentativa de determinar o Estado. Apresentando a
estrutura (N que), o enunciado é composto por um SN (um Estado
doente), sujeito da relativa, retomado a partir de sua ação, matar
crianças. No lugar de infanticida, paráfrase possível para a oração
adjetiva, enuncia-se o Estado trazendo à sintaxe a ação verbal
(matar), o objeto da ação verbal (crianças) e a incisa (com roupa de
escola), como forma de designar o sujeito por aquilo que ele faz e
não por aquilo que ele é, afinal, o aspecto ontológico ficou apagado
254
juntamente com o termo omitido na estrutura definidora. Dado que
o verbo se encontra no presente, focaliza-se, ainda, que o atributo
de matar crianças permanece na linha do tempo, produzindo um
gesto de denúncia (MODESTO, 2018). O assassino estaria solto e
continuaria a fazer suas vítimas.
Esse atributo perverso, porém, coloca-se como condicionado a
uma determinação doentia. Fundamentamos essa interpretação
pelo efeito de pré-construído que se observa na própria
apresentação do SN (um Estado doente). Com isso, explicita-se
uma condição, uma possibilidade de bem-estar para o Estado que,
uma vez preservada, evitaria a morte de inocentes. Tal
interpretação é reiterada quando a mãe de Marcos Vinícius diz:
“Porque esse Estado tem que melhorar. Ele não pode matar
inocente e criança". As melhorias esperadas para o Estado
sustentam-se em expectativas pelas quais tal condição perversa
seria provisória. Desse modo, articular o determinante doente ao
Estado faz sentido em uma conjuntura política democrática que
apregoa um estado de normalidade jurídica como garantidora de
direitos e deveres para todos (inclusive o direito de segurança),
independentemente de sua classe, gênero ou faixa etária. Há um
efeito de anterioridade que ampararia o exercício das funções
estatais em um funcionamento jurídico possível de alcançar sua
plenitude. Tem-se aí um ponto que gostaríamos de investir: a
materialização de um desejo por justiça, amparado no desejo de
não violência de um sujeito capturado por um imaginário que
supõe um Estado afiançador de paz social para todos.
Encontramos em Butler (2019b), em sua obra Quadros de
Guerra, uma reflexão que acolhe a temática da não violência
enquanto reivindicação. A autora destaca que a não violência não
é uma virtude, tão pouco um conjunto de princípios que possa ser
aplicado universalmente. Antes, retrata uma “posição imersa e
conflituosa de um sujeito que está ferido, cheio de raiva, disposto a
uma retaliação violenta, e, não obstante, luta contra essa ação”
(BUTLER, 2019b, p. 242). Por isso mesmo, Butler afirma que se trata
de uma posição conflituosa, na qual há uma luta contra a violência
255
no contexto em que a violência, como possibilidade, ainda estaria
ao alcance da vítima. Como prática, e não como princípio, a não
violência se engaja, permanentemente, no âmbito da contestação
do poder de agir violentamente.
Vemos, nos dizeres de Bruna, que o desejo por justiça, o qual
assume a forma de um desejo de não violência, se inscreve em uma
contradição marcada linguisticamente. Ao mesmo tempo em que
há o desconhecimento de sentidos ligados à definição de Estado,
há, também, o reconhecimento de sua violência amparado em seu
gesto de denúncia – vide a adjetivação, relativa e incisa –, assim
como há a perpetuação da evidência de que a violência não lhe é
constitutiva. Essa suposta personalidade pacífica do Estado,
pertencente a uma formação social capitalista, é um efeito
imaginário que não corresponde à sua organização política e seu
modo de controle social. Isso porque, o Estado, com seus
mecanismos específicos de violência, forja uma prática que se
supõe democrática, mas que se baseia em relações de poder
desigualmente situadas (QUIJANO, 2005).
Mesmo denunciando seus feitos violentos, Bruna ainda
deposita suas expectativas nesse ente jurídico que, caso estivesse
em um certo grau de saúde/normalidade, poderia proteger seus
cidadãos. Os dizeres da mãe de Marcos Vinícius reproduzem a
evidência de que o Estado capitalista-jurídico garantiria segurança
como um direito de todos, e protegeria as crianças de abusos e
violências como a que alcançou o seu filho. Um para todos que não
passa de um engodo jurídico (LAGAZZI, 1988) capaz de supor que
a viabilidade por justiça estaria contemplada pelo logicismo da lei.
Lagazzi (1988), em O desafio de dizer não, desenvolve uma
reflexão acurada a esse respeito. A autora descreve como, no
capitalismo, a noção histórica do Estado vincula-se à de sujeito-dedireito, tendo surgido ambas concomitantemente à fundamentação
do poder jurídico. Em dado momento, tomando por base os
pressupostos teóricos de Mialle e Condorcet, a autora descreve, nos
seguintes termos, como o imaginário jurídico pauta as relações
sociais:
256
A formação ideológica-jurídica nos leva, no entanto, a acreditar na
viabilidade da justiça e, mais do que isso, a reivindicar os mesmo
direitos (deveres) para todos, sem nos deixar perceber que ocorre aí
uma inversão: ao lutarmos por direitos e deveres iguais, não estamos
lutando pelo fim dos privilégios de uns em detrimento de outros,
mas por uma igualdade que nos conduz, através do não
reconhecimento das singularidades do sujeito [...], à
intercambialidade [...]. O reverso da desigualdade não é, pois, a
igualdade que massifica, mas a possibilidade da diferença (LAGAZZI,
1988, p. 42, grifo da autora).
Ainda nesse sentido, o filósofo marxista Poulantzas (1980) nos
ajuda a entender como a máxima todos os sujeitos são iguais perante a
lei registra um quadro de homogeneidade partindo da inscrição da
diferença. Para ele, a axiomática jurídica contribuiria para a
dissimulação das lutas de classes ao erigir-se como sistema de
coesão. Pelo efeito de homogeneização, a lei intervém em um
processo que separa os sujeitos de suas classes, criando a ilusão de
que a sociedade é isenta de relações conflituosas.
Nota-se, com isso, que a violência cometida pelo Estado, na
forma específica de seus aparelhos repressores, alcança
materialmente os sujeitos perpetuando em suas vítimas o efeito
ideológico que os prende em um imaginário de expectativas em
relação ao seu próprio funcionamento social. Com isso, apagam-se
as contingências históricas de uma violência que devasta vidas
interpretadas como passíveis de violação. Vidas que circulam em
espaços específicos, que pertencem a determinadas classes sociais,
que se inscrevem em corpos cuja cor da pele é marcada
imaginariamente. Trata-se de uma violência brutal ocorrida de
forma não recíproca, uma vez que as mãos que seguram as armas
representam a figura de um sujeito soberano (BUTLER, 2019b). O
Estado, segundo Butler (2019b, p. 250), “se configura precisamente
não como aquele que é afetado pelos outros, não como aquele cuja
violência permanente e irreversível representa a condição e o
horizonte de suas ações”. Sua posição soberana é constitutivamente
inviolável, isso confere a ele a capacidade de, ao praticar a
257
violência, tentar realocar a violação no outro, e sob a alcunha da
legitimidade6 expor seu peso ameaçador.
Ao situar no outro a violência, constituindo-o como seu
repositório permanente, o Estado nega sua capacidade de
promovê-la (BUTLER, 2019b). E nesse sentido, as mortes de
crianças como Marcos Vinícius, moradoras de favelas e periferias,
soam como efeito colateral em prol do combate ao inimigo (afinal,
a violência está sempre em outro lugar). Mas, enquanto o Estado
nega, há quem devolva a ele sua responsabilidade. Afinal, ainda é
possível ouvir o clamor: a culpa é do Estado doente que mata crianças
com roupa de escola 7. Nessa formulação, a ausência de um artigo (em
que mata crianças), ou outra determinação, focaliza a dor como uma
regularidade na vida de outras mães e a reivindicação da não
violência como elo que, não custa reiterar, une cada membro das
famílias atingidas pela dor, pelo luto, pela luta.
Considerações finais
No âmago do sofrimento, há algo que não pode ser nomeado.
Apesar desse impossível, permanece sendo constantemente
elaborado em tentativas de inscrição subjetiva no simbólico, a
partir de materialidades significantes diversas, disponíveis ao
sujeito em condições materiais oferecidas pela história. Esse algo que assume, como foi possível demonstrar, o espaço de tensão
entre dor, luto, luta - foi colocado em pauta como forma de restituir
o histórico a isso que singulariza o sujeito, não deixando de
inscrever o político e de se inscrever no social brasileiro.
O monopólio da violência legítima (SOARES, 2019) é um aspecto relativo ao Estado
que demanda atenção. Esse atributo diz da violência unilateral do Estado que
recebe legitimidade jurídica para praticar suas ações a partir de todo um aparato
institucional ligado à segurança pública. Trata-se, ainda segundo Soares (2019, p.
87), de uma acepção positiva da violência, “definida como potencial emprego dos
meios de coerção (armas, polícias, força organizada)”.
7 Relato de Bruna Silva, em matéria do jornal “Esquerda Diário”, publicada em 22
de junho de 2018 e assinada por Lucas Barreto.
6
258
No cerne das questões levantadas, dispomos da teoria e da
prática discursiva. Lançamo-nos, para isso, à escuta não somente
da voz, mas do gesto de Bruna Silva, mulher, mãe, favelada que
tornou sua experiência de luto uma demanda política urgente, pela
qual tem sido possível dar vazão não somente à voz de seu filho
Marcos Vinícius, mas de tantos outros cujas vozes foram
eternamente sufocadas. A dimensão sócio-histórica de sua dor; os
diferentes processos de significação de seu sofrimento, a partir de
diferentes materialidades significantes; a injunção da não violência
como desejo por justiça materializado, na militância, em ação
política; a luta por sentidos que não cabem na axiomática da lei
foram pontos que atravessaram a nossa reflexão.
Em cada um desses pontos analisados, foi possível demonstrar
que há uma dor projetada em uma parcela específica da população.
Há um sofrimento que se estabiliza na memória de um genocídio
negro vivenciado no Brasil (NASCIMENTO, 2016), escancarando as
condições materiais de uma não-homogeneidade incompatível
com as injunções de nossa formação social capitalista.
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