Academia.eduAcademia.edu

Leituras Psicanaliticas sobre os Desafios da Atualidade

2022, Editora Bagai

O sujeito, constituído por meio do discurso do Outro, encontra-se atravessado pelas questões do seu tempo e pelas formas de laço social – o que leva os psicanalistas a se defrontarem com desafios específicos em cada época. Em resposta a esses desafios, este livro representa um esforço de leitura e elaboração teórica sobre a subjetividade de nosso tempo, reunindo vinte e dois capítulos divididos em cinco eixos temáticos: 1) Pandemia, luto e angústia; 2) Capitalismo, racismo e clínica; 3)Psicanálise, política e mídias sociais; 4) Gênero, Sexualidade e Sexuação; 5) A clínica dos transtornos alimentares

Flavia Gaze Bonfim Organizadora LEITURAS PSICANALÍTICAS SOBRE OS DESAFIOS DA ATUALIDADE AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES Os textos que compõem esta obra foram avaliados por pares e indicados para publicação. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 L547 1.ed. Leituras psicanalíticas sobre os desafios da atualidade [livro eletrônico] / organizadora Flavia Gaze Bonfim. – Curitiba-PR: Editora Bagai, 2022. 313 p. E-Book Bibliografia. ISBN: 978-65-5368-052-4 1. Psicanálise clínica. I. Bonfim, Flavia Gaze. 04-2022/09 CDD 150.195 Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise clínica: Psicologia 150.195 R https://doi.org/10.37008/978-65-5368-052-4.06.04.22 ISBN 978-65-5368-052-4 9 786553 680524 > Este livro foi composto pela Editora Bagai. www.editorabagai.com.br /editorabagai /editorabagai contato@editorabagai.com.br 1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Bagai. O conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) respectivo(s) autor(es). As normas ortográficas, questões gramaticais, sistema de citações e referencial bibliográfico são prerrogativas de cada autor(es). Editor-Chefe Cleber Bianchessi Revisão Os autores Projeto Gráfico Lucas Augusto Markovicz Imagem da Capa https://bit.ly/3EdHmxx Conselho Editorial Dr. Adilson Tadeu Basquerote – UNIDAVI Dr. Anderson Luiz Tedesco – UNOCHAPECÓ Dra. Andréa Cristina Marques de Araújo - CESUPA Dra. Andréia de Bem Machado – UFSC Dra. Andressa Graziele Brandt – IFC - UFSC Dr. Antonio Xavier Tomo - UPM - MOÇAMBIQUE Dra. Camila Cunico – UFPB Dr. Carlos Luís Pereira – UFES Dr. Claudino Borges – UNIPIAGET - CV Dr. Cledione Jacinto de Freitas – UFMS Dra. Clélia Peretti - PUCPR Dra. Daniela Mendes V da Silva – SEEDUCRJ Dra. Denise Rocha – UFC Dra. Elnora Maria Gondim Machado Lima - UFPI Dra. Elisângela Rosemeri Martins – UESC Dr. Ernane Rosa Martins – IFG Dr. Helio Rosa Camilo – UFAC Dra. Helisamara Mota Guedes – UFVJM Dr. Humberto Costa – UFPR Dr. Jorge Henrique Gualandi - IFES Dr. Juan Eligio López García – UCF-CUBA Dr. Juan Martín Ceballos Almeraya - CUIM-MÉXICO Dra. Karina de Araújo Dias – SME/PMF Dra. Larissa Warnavin – UNINTER Dr. Luciano Luz Gonzaga – SEEDUCRJ Dr. Luiz M B Rocha Menezes – IFTM Dr. Magno Alexon Bezerra Seabra - UFPB Dr. Marciel Lohmann – UEL Dr. Márcio de Oliveira – UFAM Dr. Marcos A. da Silveira – UFPR Dr. Marcos Pereira dos Santos - SITG/FAQ Dra. María Caridad Bestard González - UCF-CUBA Dra. Nadja Regina Sousa Magalhães – FOPPE-UFSC/UFPel Dra. Patricia de Oliveira - IF BAIANO Dr. Porfirio Pinto – CIDH - PORTUGAL Dr. Rogério Makino – UNEMAT Dr. Reginaldo Peixoto – UEMS Dr. Ricardo Cauica Ferreira - UNITEL - ANGOLA Dr. Ronaldo Ferreira Maganhotto – UNICENTRO Dra. Rozane Zaionz - SME/SEED Dra. Sueli da Silva Aquino - FIPAR Dr. Tiago Tendai Chingore - UNILICUNGO – MOÇAMBIQUE Dr. Thiago Perez Bernardes de Moraes – UNIANDRADE/UK-ARGENTINA Dr. Tomás Raúl Gómez Hernández – UCLV e CUM - CUBA Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS Flavia Gaze Bonfim organizadora LEITURAS PSICANALÍTICAS SOBRE OS DESAFIOS DA ATUALIDADE SUMÁRIO PARTE I – PANDEMIA, LUTO E ANGÚSTIA SOBRE AQUILO QUE EM MIM, EU MESMO DESCONHEÇO: A DIREÇÃO DO TRATAMENTO ANALÍTICO FRENTE AO REAL DA PANDEMIA ....................... 11 Fernanda Louzada Sampaio | Simone Ravizzini | Talita Baldin NOTAS SOBRE O LUTO EM FREUD E LACAN .................................................. 26 Flavia Gaze Bonfim O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E PÂNICO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 ................................................ 38 Ana Beatriz Ferreira de Souza | Talita Baldin A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: LUTOS E PERDAS NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO .................................................. 52 Lidiane Bernardo Gomes | Francisco Francinete Leite Junior SE ESSA RUA FOSSE MINHA: DO LUGAR DE OBJETO À TRILHA DO DESEJO ... 67 Ana Carolina Nunes Vianna | Simone Ravizzini | Ana Lúcia C. Garcia de Freitas LUTO: ASSUNTO DE FAMÍLIA OU DE DOMÍNIO PÚBLICO? ............................ 81 Danuza Effegem de Souza | Giselle Falbo Kosovski IMPACTOS DA GESTÃO NEOLIBERAL NA PANDEMIA DE COVID-19: O TESTEMUNHO MELANCÓLICO DO SUJEITO NEOLIBERAL ................................................... 96 Flávia Laís Machado Moura | Claudia Henschel de Lima | Lilian Faustino da Cruz | David Miqueias de Oliveira Costa PARTE II – CAPITALISMO, RACISMO E CLÍNICA A ARTE DE UM BOM VENDEDOR ESTÁ EM VENDER... A FELICIDADE .......... 112 Pâmela Mizurini | Paulo Eduardo Viana Vidal CONSUMO E MÍDIAS DIGITAIS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE ........................................................................................ 123 Camila de Paula Caldeira | Simone Ravizzini FUTURO DE MERCADOS COMUNS: EFICÁCIA E DOCILIDADE .................... 138 Marcos Vinicius Brunhari DISCURSO DO CAPITALISTA, SEGREGAÇÃO E RACISMO............................. 149 Flavia Gaze Bonfim A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO DO ANALISTA À LUZ DE FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO ................................................................................ 164 Rogério Paes Henriques O RACISMO E A RECUSA DA TRANSFERÊNCIA: RESISTÊNCIAS DO PSICANALISTA ........................................................................................... 175 Mariana Mollica da Costa Ribeiro | Fabio Santos Bispo PARTE III – PSICANÁLISE, POLÍTICA E MÍDIAS SOCIAIS SOBRE O TECNOPOPULISMO E A “SERVIDÃO APAIXONADA” ....................... 191 Raul Max Lucas da Costa UMA LEITURA PSICANALÍTICA SOBRE PÓS-VERDADE ............................... 201 Alexandre Dias Rosa Torres | Maycon Rodrigo da Silveira Torres | Paula de Oliveira Santarossa PARTE IV – GÊNERO, SEXUALIDADE E SEXUAÇÃO A SEXUALIDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS: NOTAS SOBRE O GOZO E O AMOR................................................................................................... 217 Renata Sales Martins | Luciana Ribeiro Marques ADOLESCÊNCIA, INTERSEXO E SEXUAÇÃO. QUESTÕES QUE SE COLOCAM À PSICANÁLISE ............................................................................................. 233 Heloene Ferreira da Silva | Sonia Alberti MASCULINIDADE E FEMINILIDADE COMO MODOS DE GOZO: SEXUAÇÃO, DIFERENÇA SEXUAL E MAIS ALÉM ............................................................. 244 Vinícius Moreira Lima A INDIVIDUALIZAÇÃO DO RITO NA ERA DO OUTRO QUE NÃO EXISTE EM UM CARTAZ DE SITE PORNOGRÁFICO............................................................. 261 Hugo Bento ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E FEMINISMO: REFLEXÕES SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA A PARTIR DE TEXTOS FREUDIANOS ....................................... 270 Bárbara Breder Machado PARTE V – A CLÍNICA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES MAUS HÁBITOS: SINTOMAS ALIMENTARES NO CORPO EM CENA ................ 286 Carolina Carvalho Dutra | Bianca Bulcão Lucena NOTAS SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA DA OBESIDADE: O CORPO GORDO, O GOZO E O FEMININO .............................................................................. 296 Daiana Macharet Soares | Maycon Rodrigo da Silveira Torres | Júlia Reis da Silva Mendonça SOBRE A ORGANIZADORA ......................................................................... 310 ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................... 311 APRESENTAÇÃO As teorizações psicanalíticas se propõem realizar uma leitura sobre a constituição do sujeito, seu desejo e seus modos de sofrimento. O sujeito, imerso na linguagem e constituído por meio do discurso do Outro, sempre se encontra atravessado pelas questões do seu tempo e pelas formas de laço social – o que leva os psicanalistas a se defrontarem com desafios específicos em cada época. Em resposta a esses desafios, este livro representa um esforço de elaboração teórica sobre a subjetividade de nosso tempo, compondo cinco eixos temáticos: O primeiro deles é Pandemia, luto e angústia. Fernanda Louzada Sampaio, Simone Ravizzini e Talita Baldin, em Sobre aquilo que em mim, eu mesmo desconheço: a direção do tratamento analítico frente ao real da pandemia, indicam as possibilidades da psicanálise operar com esse real, destacando o que há de mais radical na clínica: a “ousadia de inventar... apesar do absurdo.” Já no segundo capítulo, intitulado Notas sobre o luto em Freud e Lacan, eu trago a minha contribuição ao fomentar uma discussão que acompanhe uma clínica em tempos pandêmicos, onde a experiência do luto passou a ser um tema tão recorrente entre os pacientes. O capítulo seguinte, O olhar da psicanálise para os transtornos de ansiedade e pânico no contexto da pandemia de COVID-19, das autoras Ana Beatriz Ferreira de Souza e Talita Baldin, busca refletir sobre estes transtornos recorrendo à noção de angústia e desamparo, além de propor uma direção de tratamento que vá além da classificação dos manuais de DSM. Dedicando-se a pensar sobre os efeitos da pandemia sobre as crianças, o texto A clínica psicanalítica com crianças em tempos de pandemia: lutos e perdas na constituição do sujeito, de Lidiane Bernardo Gomes e Francisco Francinete Leite Junior, apresenta uma perspectiva winnicottiana e kleiniana sobre os efeitos das várias perdas e lutos vivenciados nesse período, que não se esgotam no confronto com a 7 morte. Já Ana Carolina Nunes Vianna, Simone Ravizzini e Ana Lúcia C. Garcia de Freitas, em Se essa rua fosse minha: do lugar de objeto à trilha do desejo, discutem sobre os problemas vividos pelas crianças e sua possibilidade de estar no laço social, propriamente na escola, após a impactante experiência de isolamento social na pandemia. Os capítulos que se seguem refletem sobre o aspecto político da pandemia. Em Luto: assunto de família ou de domínio público?, Danuza Effegem de Souza e Giselle Falbo Kosovski apresentam a dimensão pública do luto, lembrando que no centro do debate político sobre a morte também operam as relações de poder. Já o capítulo Impactos da gestão neoliberal na pandemia de COVID-19: o testemunho melancólico do sujeito neoliberal, proposto por Flávia Laís Machado Moura, Claudia Henschel de Lima, Lilian Faustino da Cruz e David Miqueias de Oliveira Costa, traz a hipótese de que o “neoliberalismo constitui uma racionalidade cujo pathos é a melancolização”, bem como problematiza que a defesa da liberdade acima da saúde da população teve impacto sobre o manejo das ações humanitárias na pandemia. O segundo eixo temático é Capitalismo, racismo e clínica. O texto que abre esse ciclo é A arte de um bom vendedor está em vender... a felicidade, de Pâmela Mizurini e Paulo Eduardo Viana Vidal. Nele, os autores discutem como o capitalismo conseguiu aprisionar a lógica do desejo a partir da oferta massificada de objetos de consumo, prometendo o alcance da felicidade. Seguindo essa linha, Camila de Paula Caldeira e Simone Ravizzini, em Consumo e mídias digitais no mundo contemporâneo: contribuições da psicanálise, tratam dos efeitos do capitalismo sobre o sujeito, que se reflete, inclusive, no uso das mídias sociais, onde não há espaço para falta e para o desejo. Marcos Vinicius Brunhari, no capítulo seguinte: Futuro de mercados comuns: eficácia e docilidade, apresenta o problema da segregação atrelado ao neoliberalismo, extraindo que as massas humanas universalizam a empresa-de-si como agente eficaz e dócil, cuja consequência é rechaço da singularidade. Em seguida, eu apresento outra contribuição: 8 Discurso do capitalista, segregação e racismo, no qual busco abordar a relação entre essas três noções, interpretando o ensino lacaniano de forma geopoliticamente demarcada a partir de coordenadas decoloniais. Ainda sobre a temática do racismo, mas sob o viés da clínica, Rogério Paes Henriques, em A segregação e seu furo: o discurso do analista à luz de fragmentos de um caso clínico, aponta como o discurso do analista pode fazer furo ao possibilitar advir um saber próprio do sujeito e promover uma substituição do “universalismo pelas soluções singulares.” Encerrando esse eixo, Mariana Mollica da Costa Ribeiro e Fabio Santos Bispo, em O racismo e a recusa da transferência: resistências do psicanalista, discutem como as relações raciais comparecem nos fenômenos transferenciais, indicando a necessidade dos analistas brancos se interrogarem sobre sua própria denegação e resistência de levar em conta os efeitos do racismo em uma experiência analítica. O terceiro eixo temático versa sobre Psicanálise, política e mídias sociais. Raul Max Lucas da Costa, no texto Sobre o tecnopopulismo e a “servidão apaixonada”, discute sobre a posição de servidão na relação entre as massas e os líderes populistas de extrema-direita, no qual as mídias digitais tiveram um papel crucial nas últimas eleições. Compondo essa discussão, Alexandre Dias Rosa Torres, Maycon Rodrigo da Silveira Torres e Paula de Oliveira Santarossa, em Uma leitura psicanalítica sobre pós-verdade, abordam o tema da pós-verdade e do uso da fake news como instrumento político de manipulação das massas, cuja consequência é a ameaça do regime democrático. O quarto eixo é Gênero, Sexualidade e Sexuação. Com o texto A sexualidade e suas manifestações clínicas: notas sobre o gozo e o amor, Renata Sales Martins e Luciana Ribeiro Marques trabalham o tema da toxicomania e do mal-estar nas parcerias amorosas, tecendo articulações entre a sexualidade, o gozo e o amor. No capítulo seguinte Adolescência, intersexo e sexuação. Questões que se colocam à psicanálise, Heloene Ferreira da Silva e Sonia Alberti refletem sobre a sexuação dos sujeitos intersexo e os impasses que atravessam uma clinica feita na 9 modalidade multidisciplinar. Já em Sexuação, diferença sexual e mais além, Vinícius Moreira Lima aborda a dimensão subversiva da psicanálise para analisar os trânsitos de masculinidade e feminilidade indo mais além de sua redução normativa à cisgeneridade e à heterossexualidade. Finalizando esse eixo, Hugo Bento, em A individualização do rito na era do Outro que não existe em um cartaz de site pornográfico, procura pensar o uso da pornografia na internet articulada a era do Outro que não existe, para assim indicar a transformação dos ritos de passagem. Em seguida, Bárbara Breder Machado, com o trabalho Ensaio sobre psicanálise e feminismo: reflexões sobre a dominação masculina a partir de textos freudianos, problematiza o lugar de subalternização das mulheres oferecido pela lógica patriarcal e capitalista, sinalizando, com isso, seus efeitos sobre a subjetividade feminina. O quinto e último eixo tem como tema: A clínica dos transtornos alimentares. Com o texto “Maus hábitos”: sintomas alimentares no corpo em cena, Carolina Carvalho Dutra e Bianca Bulcão Lucena trabalham a partir de um filme os impasses do sujeito com o corpo, a comida, a demanda do Outro e as imposições culturais. Já Daiana Macharet Soares, Maycon Rodrigo da Silveira Torres e Júlia Reis da Silva Mendonça, em Notas sobre a clínica psicanalítica da obesidade: o corpo gordo, o gozo e o feminino, abordam a questão da obesidade, levando em conta a separação do Outro, a dimensão do gozo e, no caso das mulheres, a feminilidade. Assim, essa obra se encerra com uma coletânea diversificada de vinte e dois capítulos reunidos em torno de única proposta: colocar a psicanálise na pólis. Meu profundo agradecimento às autoras e aos autores por terem aderido a esse projeto! Desejo, então, que esse livro – como uma carta – encontre seu destino: a leitora, o leitor. E que estes se permitam contagiar por uma psicanálise implicada com as questões sociais, políticas e econômicas, justamente por entender seus efeitos sobre o sujeito. Boa leitura! Flavia Bonfim (Organizadora) 10 SOBRE AQUILO QUE EM MIM, EU MESMO DESCONHEÇO: A DIREÇÃO DO TRATAMENTO ANALÍTICO FRENTE AO REAL DA PANDEMIA Fernanda Louzada Sampaio1 Simone Ravizzini2 Talita Baldin3 INTRODUÇÃO O enfrentamento da pandemia de Covid-19 trouxe consigo um tempo de desafio e ressignificação. Tempo caracterizado por tentativas muito particulares de apreensão da nova lógica de vida instaurada, assim também como busca incessante por alternativas possíveis para sua travessia. Tomando tal acepção como ponto disparador, este estudo tem por objetivo discutir a possibilidade de operação da clínica psicanalítica diante do sofrimento, tão vividamente sentido no contexto da pandemia, causado pelo encontro com um Real traumático, delineado pelo não saber dizer sobre isso que se apresenta de forma perturbadora e definitiva. Cabe-nos indagar como essa experiência, sem precedentes para as últimas gerações, pode ser balizada pelo discurso analítico e sua proposta clínica, que aponta para uma direção de tratamento onde o conceito de Real e sua operação se fazem imprescindíveis. Como operar clinicamente com o Real que nos toma de arroubo e nos coloca em situação de tamanho desamparo, tamanha angústia? 1 Especialização em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade (UNILASALLE). Psicanalista. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9770-8990 2 Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079 3 Doutorado em Psicologia (UFF). Docente. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/9656843819889888 11 Leituras Psicanalíticas SOBRE O SUJEITO EM QUESTÃO PARA A PSICANÁLISE Atravessar a pandemia de Covid-19 significou experimentar um tempo de desafios, no qual cada sujeito se viu confrontado a buscar alternativas para ressignificar seu discurso e seu lugar no mundo, diante da nova lógica de vida que se apresentava. Fomos tomados pela perplexidade, pelo estranhamento, pelo luto, pela percepção inquietante de uma nova vida que se impunha inclemente. Vida que fazia sua marca em cada sujeito de forma particular, única, sentida naquilo que toca, a cada um, de maneira mais íntima e revela a fragilidade e escassez de recursos simbólicos diante das contingências extremas impostas pela nova realidade. Trata-se, aqui, do conceito de Real construído por Lacan, um Real distinto da realidade observável e chancelado por ser desprovido de sentido, não correspondendo a nenhum querer dizer. Como descrito em dissertação conhecida como A Terceira, para Lacan (1974, p. 5), “o real, justamente, é o que não caminha, é o que atravessa o caminho dessa carruagem, bem mais do que isso, o que não cessa de se repetir para entravar essa marcha. Eu disse isso antes: é o que volta sempre ao mesmo lugar”. Mas, se a clínica opera pela palavra, como trabalhar com esse Real clinicamente? No período de enfrentamento da pandemia, observamos um aumento expressivo no número de atendimentos em psicanálise, psicologia e psiquiatria. Destaca-se dos discursos dos pacientes, o sofrimento trazido por inúmeras limitações físicas e emocionais, lutos precoces, ausência de despedidas, queixas de ansiedade e muita angústia. Angústia que tomou lugar na fala de muitos pacientes e que tem sua verdadeira substância em ser “aquilo que não engana” (LACAN, 1962-3/2005, p. 88). Não engana porque nos coloca diante do sem- palavras do Real, que aponta para a impossibilidade estrutural do sujeito em fazer-se expressar totalmente pelas representações. 12 Flavia Gaze Bonfim (org.) Para tratar disso que nos escapa, faz-se necessário estabelecer sobre que sujeito estamos falando. Isto é, compreender a torção estabelecida pela descoberta analítica sobre o próprio conceito de sujeito, que marca uma diferença radical para com as demais teorias científicas ou mesmo psicológicas, na medida em que afirma a existência de uma economia psíquica fundada pelo conceito de inconsciente. Inconsciente, este, [...] cuja verdadeira função é estar em relação profunda, inicial, inaugural, com a do conceito de Unbergiff - ou de Begriff do Un original, isto é, o corte. Esse corte, eu o liguei profundamente a função do sujeito como tal, do sujeito em sua relação constituinte ao próprio significante (LACAN, 1964/1988, p. 46). Vejamos a elaboração do conceito de sujeito e sua constituição, ao longo da própria história de construção da experiência analítica. A observação cautelosa de Freud, desde o início de seus trabalhos com Charcot, em 1885, nos revela que o sujeito em questão para a Psicanálise é subjetivo. Freud, em sua escuta, vai além. Compreende não ser este o ponto fundamental para o entendimento dos processos psíquicos envolvidos na formação das neuroses. Pelo contrário, esse sujeito da razão da ciência, essa porção não observável e comprometida pelos afetos, isso não só o interessava, como teria lugar privilegiado em sua aposta clínica. Em sua experiência pioneira na Salpêtrière, Freud escuta que, na histeria, as mulheres falavam para além do que estava disposto nos discursos científicos. Elas falavam através de seus corpos, de suas contraturas e sintomas apontando para uma lógica de funcionamento daquele sujeito com seu modo de estar no mundo, com sua sexualidade. As histéricas pediam espaço para a fala, num movimento que, mais tarde, revelaria esse lugar privilegiado como via de acesso à experiência do inconsciente. Uma descoberta que, segundo Freud nos declara, traz à megalomania humana “seu terceiro golpe, o mais 13 Leituras Psicanalíticas violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar ao ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa” (FREUD, 1917/1969, p. 336). Segundo Dor (1994), essa investigação do inconsciente como fundador da economia psíquica acarreta um embaraço técnico inevitável para Freud, pois ao buscar estabelecer algo que se propusesse como diagnóstico nesse campo subjetivo, assim também como para manejar a técnica adequada diante do que se apresentava no discurso de seus pacientes, teria que abandonar tudo aquilo que, até então, bem caracterizava o ato médico: causalidade entre sintoma e diagnóstico, observação direta, classificação, prognóstico e etc. Tudo isso se fazia inoperante para o que se descortinava com a clínica analítica, visto que o que emergia do discurso do sujeito tomava proporção para além de uma lógica moral ou biológica. O que emergia do discurso dos pacientes apontava para algo de uma enunciação para além do dito, algo que para o próprio paciente se apresentava como surpresa, ao que o analista precisaria também responder de um lugar diferenciado da postura e intencionalidade médica. Desde em seus artigos sobre a técnica, Freud (1912/1969) adverte os futuros analistas quanto à especificidade da lógica de funcionamento da psicanálise e seu sujeito em questão. Reforça a importância do posicionamento ético do analista e direciona várias recomendações sobre o manejo clínico, marcando de forma definitiva a diferença entre o trato médico e a singularidade da construção em análise. Esses artigos iniciais refletem seu desejo não somente de conceituação dos conteúdos que se apresentavam a sua escuta, mas também de uma certa forma de organização operacional deste manejo fino e singular para com o campo do inconsciente, onde o sujeito se apresentava a partir de sua fala, em transferência, não estando isento daquilo que produz nas entrelinhas do que diz. Freud, percebe a implicação do sujeito em seu sintoma, sua participação em seu próprio mal-estar, fazendo-o confrontar-se com seu não saber e estabelecendo a ideia 14 Flavia Gaze Bonfim (org.) de um posicionamento subjetivo na construção neurótica, mesmo que disso não se queira saber ou não se consiga representação direta e completa (FREUD, 1912/1969). Esse estranhamento de posição ética da psicanálise em relação ao arranjo proposto pelo campo da saúde mental também é trabalhado por Miller (1999/2010) no texto Saúde Mental e Ordem Pública, onde se apresenta como pano de fundo a ideia da não existência, para o sujeito da psicanálise, de uma essência de correspondência natural que opere numa dinâmica de funcionamento pré-estabelecida. Um sujeito do desenvolvimento, da ordem pública, que pressupõe um possível equilíbrio físico, mental e social, o encontramos na abordagem das ciências naturais ou nas vertentes da psicologia do ego pós-freudianas. Mas não é esse o sujeito em questão para a psicanálise, considerando aquilo que se apresenta de mais genuíno no trabalho de Freud, a saber, a operação do campo inconsciente. Operação que, segundo nos recorda Miller (1999/2010), Lacan (1964/1988) relaciona diretamente com a divisão subjetiva produzida no sujeito a partir da ação perturbadora da linguagem. Para Lacan (1964/1988), somos sujeitos divididos em nossa própria condição de existir, a partir do corte que se opera ao falante, quanto da nossa inserção no campo simbólico: Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei de função do corte, e que se articula agora, no desenvolvimento de meu discurso, como função topológica da borda… A psicanálise, então, nos lembra que os fatos da psicologia humana não se poderiam conceber na ausência da função do sujeito definido como efeito do significante (LACAN, 1964/1988, p. 196). Assim, ao falarmos do que está em jogo no trabalho analítico, para além de sintomas observáveis e classificações antecipadas sobre um sujeito uniformemente construído por um saber médico, trata-se da enunciação daquele que fala a partir de sua falta, endereçando ao analista suas demandas, sua impossibilidade, aquilo que o provoca 15 Leituras Psicanalíticas e o faz operar. Institui-se, na relação transferencial, um compromisso com o para além do dito, para além dos significantes que fazem parte da história daquele sujeito que não se representa completamente, pois sempre algo lhe escapa. O REAL NA CLÍNICA ANALÍTICA Apesar da tríade R-S-I (Real, Simbólico, Imaginário) somente ser formalizada por Lacan na década de 1970, em seu O Seminário Livro 22: R.S.I (LACAN, 1974-5), a clínica do Real parece germinar durante todo o percurso de construção da teoria psicanalítica. Embora este seja um conceito originalmente lacaniano, em Freud, uma certa face de real se faz presente desde o seu Projeto para uma Psicologia Científica, em 1895. Esse algo da ordem do impossível persiste em sua escuta, e perpassa conceitos como o desamparo primordial, em 1895; a imposição traumática da operação do complexo de Édipo e suas consequências para a vida sexual do sujeito, em 1901-1905; a pulsão de morte que aponta para um mais além do princípio do prazer, em 1920; até um de seus últimos trabalhos, o texto Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1937/1969), onde se questiona sobre a possibilidade de cura e o final de uma análise. A formalização do registro do Real na obra lacaniana, da mesma forma, se faz de maneira gradual e não excludente, num percurso que vai do entendimento do Real como resto simbólico ao Real que acomete o corpo; um Real impossível (LACAN, 1974-75). Num primeiro momento de seu trabalho, Lacan (1957/1998), se apropria daquilo que, em Freud, se apresentava como inconsciente a partir da fala, numa dinâmica onde a não representação se expunha como resto não simbolizado. Revela-se, aqui, o campo do Real como limite de simbolização ou, dito de outra forma, como resto simbólico. Partamos do começo. Inconsciente e linguagem. Lacan (1957/1998) inaugura, na década de 1950, a ideia de um privilégio da função do registro simbólico na constituição do sujeito, 16 Flavia Gaze Bonfim (org.) apontando que se refere a “toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (LACAN, 1957/1998, p. 496). Em seu empenho de ratificação da invenção freudiana, quanto ao que de mais original lhe pertencia, Lacan recorre ao campo de estudos da linguística, na tentativa de contornar com maior consistência a ideia, já presente em Freud, de um aparelho psíquico estruturado como um aparelho de linguagem. As consequências dessa interlocução com a linguística são abordadas por Jorge (2008). Subvertendo a dialética de entendimento linguístico em Saussure, onde um signo é resultado da associação de um determinado conceito/significado com uma imagem acústica/significante, Lacan dá um passo à frente e inclui o sujeito na experiência do signo, fazendo uma torção onde o significante ganha primazia sobre o significado. Dessa forma, se para Saussure, a barra no signo linguístico fazia laço, possibilitando o surgimento do sentido, para Lacan essa mesma barra expressa nada menos do que a resistência à significação, trazendo como consequência a polissemia do significante, ou seja, a multiplicidade de sentidos que um mesmo significante pode adquirir ( JORGE, 2008). O que Lacan destaca é o modo pelo qual o inconsciente opera, como Freud já pudera salientar, seja produzindo condensações e deslocamentos ao longo das palavras ‘sem levar em conta o significado ou os limites acústicos das sílabas’, seja manifestando ‘realmente uma preferência por palavras cujo som exprima diferentes significados’. É digno de nota o fato de que a pesquisa freudiana sobre o inconsciente o leva a abordar uma série de fenômenos limítrofes: ora aqueles que até então haviam sido relegados as abordagens obscurantistas, como os sonhos; ora aqueles desprovidos de interesse para o discurso da ciência, como os chistes, os atos falhos, lapsos de linguagem e esquecimento de nomes; ora ainda aqueles fenômenos incompreendidos pelo discurso médico, como os sintomas neuróticos, as alu17 Leituras Psicanalíticas cinações e delírios psicóticos e as chamadas perversões sexuais ( JORGE, 2008, p. 65). Podemos dizer, então, que esta releitura freudiana realizada por Lacan (1957/1998) revela e reforça o estatuto mesmo do inconsciente, a saber, “que ele não é nem ser nem não ser, mas é algo de não realizado” (LACAN, 1957/1998, p. 34). Estabelece-se aqui o corte sob a fala do sujeito e sua experiência, pois marca uma diferença entre o dizer e o dito, entre enunciado e enunciação. Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud Lacan (1957/1998) afirma este sujeito efeito de linguagem, advindo do encontro traumático com o simbólico, posto em jogo pela barra do recalque que incide sobre o sujeito, quando da entrada neste campo da fala. É deste encontro constitutivo com o Outro, que lhe serão oferecidos os significantes primeiros, com os quais o sujeito irá operar e responder. Este é um encontro que se faz condição de possibilidade para este sujeito, sendo, no entanto, faltoso, visto que também algo escapa à simbolização, algo não se inscreve. Há um resto, o qual sempre diz respeito ao Real. Em seu O seminário, Livro 7: a ética da psicanálise Lacan (195960/1988) inicia uma virada clínica, marcando um lugar preponderante para o registro Real tanto na estruturação psíquica quanto para a ética da psicanálise. No entanto, é a partir de O Seminário, Livro 10: a angústia (LACAN, 1962-63/2005) que a vertente real da clínica analítica começa a ser privilegiadamente trabalhada por Lacan e encontra sua formalização sedimentada a partir da conceituação do objeto a como objeto da angústia. Neste sentido, Lacan (1962-63/2005, p. 89) apresenta a angústia como sinal do real, como “aquilo que não engana, o que está fora de dúvida”, porque traz à tona o que há de mais legítimo no sujeito, a saber, sua constituição a partir do engodo simbólico, que aponta o Real para além do dito, diante do qual o sujeito se angustia. Um real que traz consigo um lugar de não representação pelo simbólico nem pela imagem. Que traz em si esse traço de estranho, de 18 Flavia Gaze Bonfim (org.) Unheimlichkeit, que se apresenta na suspensão do desejo do sujeito. Diz Lacan (1962-63/2005, p. 52): A Unheimlichkeit é aquilo que se aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi. Aquilo que de tudo parte, com efeito, é a castração imaginária, porque não existe, por bons motivos, imagem da falta. Quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar. Num último momento de seu ensino, período que abrange mais precisamente os Seminários 19 ao 24, Lacan avança numa perspectiva de trabalho a partir da leitura dos modelos dos nós entre os registros de estrutura psíquica: Real, Simbólico e Imaginário. Esses registros que vinham sendo formalizados ao longo de todo o seu trabalho, aqui, fazem-se entrelaçados numa amarração que abole qualquer hierarquia entre eles, tendo como ponto de interseção exatamente o objeto a, deflagrando aquilo que não se inscreve para nenhum dos três e, exatamente por se encontrar como índice daquilo que não se captura, opera como causa de desejo. Em O Seminário, Livro 20: Mais, ainda, Lacan (1972-73/1985, p. 125) define: “O real só se poderia inscrever por um impasse da formalização (le réel ne saurait s’inscrire que d’une impasse de la formalisation)”. Nessa definição, Lacan (1972-73/1985) nos remete ao impasse existente no interior mesmo da associação livre, da cadeia significante, um intervalo que aparece como aquilo que não se pode representar. Mais que isso, que se impõe repetidamente como furo, no tropeço do discurso. Trata-se desse campo pulsional que não se cifra, que não cessa de não comparecer. Trata-se, portanto, de um real que apesar de estar articulado no simbólico é diferente dele, que opera a partir de uma intimidade estranha, uma extimidade, numa dinâmica onde se faz fora, enquanto dentro e dentro enquanto fora. Trata-se aqui, do que Lacan traduziu por ex-sistência (LACAN, 1974-75). A ex-sistência traduz esse ponto 19 Leituras Psicanalíticas de impossível, que se faz impasse, mas ao mesmo tempo condiciona a própria formalização, impossível que ex-siste como estranho a mim. Não é o que resta, mas o que não existe, que é impossível se fazer representar pela cadeia significante, mas que também só nela se circunscreve e também dela é condição de possibilidade. Miller (2014), em O Real no século XXI, aborda esse real desprovido de sentido, que rompe com a relação de causa efeito tratada pelos discursos científicos, dizendo que esta relação não cabe no nível de um Real em desordem, que se apresenta “a partir do choque inicial do corpo com lalíngua, que constitui um real sem lei, sem regra lógica. A lógica se introduz somente depois, com a elucubração, com a fantasia, o sujeito suposto saber e a psicanálise” (MILLER, 2014, s./p.). Aqui, situamos o aforismo: ‘o real é desprovido de sentido’. Não ter sentido é um critério do real, na medida em que, quando alguém chega ao fora de sentido é que se pode pensar que ele saiu das ficções produzidas por um querer dizer. O sentido lhe escapa. Há doação de sentido através da elucubração da fantasia… O real, entendido assim, não é um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento sistemático porque separado do saber ficcional produzido a partir desse encontro. E esse encontro de lalíngua e do corpo não responde a nenhuma lei prévia; é contingente e sempre perverso (MILLER, 2014, s./p.). Nesse sentido, evidencia-se da fala de Miller (2014, s./p.), para quem “o real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. É um furo no saber incluído no real”. Para Lacan, não há instância superior que nos dê garantia de uma verdade. Lacan (1974, p. 11) expõe: “Digo sempre a verdade. Não toda. Porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real”. 20 Flavia Gaze Bonfim (org.) Esta vem sendo a marca desse tempo, pandêmico. A experiência de um Real sem freios, que nos traz a realidade de uma verdade incapaz de garantir o mundo. Uma verdade não toda, como nos diz Lacan, fraturada, e que nos coloca diante desse real desprovido de sentido, absolutamente desafiador e nos impele a vivenciar a necessidade de novos enlaces, de novos começos, aos tropeços… O REAL NA PANDEMIA: COMO OPERAR? Estamos numa travessia. O cenário pandêmico nos lançou diante de uma realidade sem palavras, sem precedentes para as últimas gerações. Um real avassalador, contingente, que nos coloca cara a cara com nossa impossibilidade quanto ao domínio de nós mesmos, quiçá da realidade à nossa volta. Nos foi exigido enfrentar a fragilidade da vida a partir de nossa própria condição de sujeitos divididos, exatamente aí, onde o Real toma a frente, no hiato da fala, naquilo que em mim não reconheço, no ponto mesmo onde não posso dizer. O Real, em sua face mais crua, emerge na precariedade de nosso discurso, no vacilo de nossa fantasia como suporte simbólico-imaginário. Nesse sentido, presenciamos desde março de 2020, uma realidade completamente alheia à equanimidade desejada sobre a vida. Experimentamos, ao contrário, uma realidade fragmentada, cindida em seu próprio interior, tal qual nos revela a psicanálise, naquilo em que toca o campo do Real. Se, como nos revela Lacan (1957/1998), os laços sociais, assim como a nossa própria constituição, se dão a partir de algo que não se inscreve, a saber, em torno da impossibilidade estrutural e seu desejo de tamponá-la, sobre isso, o que vimos despontar na experiência pandêmica foi a indisfarçável face distópica das relações. O Real compareceu massivo, trazendo com ele a exigência de ressignificação desses laços no cotidiano, de novos posicionamentos diante desse disruptivo aparentemente sem saída. Christian Dunker (2020) discute aspectos importantes sobre os efeitos psíquicos envolvidos no enfrentamento do Real da pandemia, 21 Leituras Psicanalíticas que exigiu que muitos saíssem de um movimento caracterizado por ocupar-se em tempo integral para deslocar-se ao vazio. Ocupar-se desse tempo “morto”, tão demonizado no discurso capitalista, que visa, a qualquer preço, colapsar a castração do sujeito através do imperativo do gozo, da busca incessante de satisfação. A pandemia nos impôs o limite, o vazio substancial, como se a vida nos devolvesse à verdade que tanto gostaríamos de velar. Diz Dunker em sua entrevista: Se por um lado a saída do fluxo de ocupação nos retira do sentido, por outro houve quem pudesse perceber que o vazio não é o horror, que para além da solidão existe a solitude...Dentro de você mora um vaso. Um vaso que pode ecoar um pequeno alfinete que ali cai (DUNKER, 2020). Muitas foram as perguntas que ecoaram nessa travessia. Quem é esta pessoa ao meu lado? Isso tudo está mesmo acontecendo? O que realmente desejo fazer, caso sobreviva? Parece que estamos num filme. Segundo Dunker (2020) estas foram questões expressivamente presentes na clínica, a partir das reformulações impostas pela privação traumática de ordem do mundo. Casais se separaram ou se uniram impositivamente pelo confinamento, mães perplexas com seus filhos, especulações financeiras sobre o futuro, violência doméstica, fome, luto, enfim, tudo parecia compulsório diante de uma rotina onde o hiato, o intervalo temporário e saudável que naturalmente acontecia numa rotina de vida anterior, estava suspenso. O que também nos trouxe a incômoda experiência de privação da intimidade. Marcações foram retiradas do dia a dia. Não conseguíamos acompanhar o calendário, ou cumprir tarefas com exatidão de planejamento. Uma desafiadora suspensão do tempo, onde o olhar, a voz, o encontro dos corpos que possuem tamanha importância para a constituição de nossa subjetividade e nossa relação com o mundo, ficou em posição de fragilidade. Tornou-se necessário investir no reposicionamento com seus objetos, com as relações desejantes, a fim 22 Flavia Gaze Bonfim (org.) de encontrar amarrações possíveis diante do desamparo, da angústia, do estreitamento no peito que aponta para esse impossível do real. Para Dunker (2020, entrevista): Como a espécie humana já enfrentou situações parecidas e como nessas situações se tem um trajeto de verticalização da tua relação com a existência, você vai vendo do que você é feito. O que tem aí? Tirando a funcionalidade, a ocupação, a demanda, a lista que você tem que resolver, o que sobra? Sobra esse ponto em que você tem que se confrontar com coisas que não são bonitas só. É o desespero, é a mesquinhez, a pequenez, o ódio, as ilusões, as conspirações que a gente cria… a gente não aguenta a falta de sentido. A gente vai criando sentidos mórbidos… tem que ter uma razão, alguém por trás disso, um sentido… É o que Camus, em A Peste, diz que isso é feito de angústia. É a vida no Edge. Você olha no abismo e descobre do que somos feitos. Sendo assim, se nos encontramos constituídos e organizados a partir de um não saber estrutural, de um Real que aponta para o não haver da relação sexual, como nos revela a clínica psicanalítica, como operar com este Real, se ele é, exatamente, aquilo que resiste ao sentido? Que caminho clínico a psicanálise poderia oferecer a um sujeito que, enodado na relação com a sua fantasia produz a tragicomédia humana fadada à inexatidão, ao não todo, quando de seus modos de inscrição para a suposta satisfação com a sexualidade? Num último momento de seu ensino, Lacan (1975-76/2004) afirma que toda análise levada até seu fim precisa sustentar um ponto de saber fazer com o seu gozo. Este saber fazer está articulado com o que descreve como sinthoma. Conceito que instaura a condição de um gozo possível, considerando a articulação do sujeito com seu desejo e que, segundo Tudanca (2014), trata-se de uma invenção. Invenção como resposta do ser de fala ao furo de sua própria estrutura. 23 Leituras Psicanalíticas CONSIDERAÇÕES Ao psicanalista cabe, de seu lugar ético, além de sustentá-lo também acolher a divisão subjetiva naquilo que lhe é mais próprio. Ao oferecer-se como objeto vazio para o discurso de seu paciente, o analista dá lugar a este infamiliar, este estranho que nos habita, para que, a partir daí, do seu lugar de fala, o sujeito busque alternativas de convivência com isso que lhe determina cindido, faltante, desejante. O Real não será extirpado, nem o gozo deixará de exercer sua força operatória, mas o sujeito poderá aprender o que fazer com isso que o determina e o fixa num certo posicionamento perante o mundo. Como vai viver a partir disso? A construção é singular. Uma invenção necessária, diante do que não só está perdido, mas de fato, não existe. Numa análise, o que está em questão é essa paixão pela verdade não toda, tal qual se apresenta para a escuta da clínica analítica. Um amor que, enquanto laço, se enlaça ao sujeito apostando nas palavras, que vai ao encontro dessa verdade e da tentativa de bordear, nomear o inominável. A experiência analítica, em sua face de ato poético, nos transporta pela crueza das experiências de um Real sem lei e a beleza de se poder, apesar de tudo, sentir o pulso do desejo presente na intenção corajosa de reconstruir a vida. Linha tênue e efêmera pertencente ao mais íntimo de cada um de nós, em nossa ousadia de inventar o que é viver, apesar do absurdo. REFERÊNCIAS DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1994. DUNKER, C. A pandemia no divã. Canal Inconsciente Coletivo, em 1º de abril 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TBGRg8bTwWs&t=121s Acesso em: 08 dez. 2021. FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. (1912). In: Obras completas de Sigmund Freud. V. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969. FREUD, S. Conferência XVIII. Fixação em traumas – O Inconsciente. (1917). In: Obras completas de Sigmund Freud. V. XVI. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969. 24 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, S. Análise terminável e interminável. (1937). In: Obras completas de Sigmund Freud. V. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969. JORGE, M. A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 1: As bases conceituais. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. LACAN, J. A instância da letra ou a razão desde Freud. (1957). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1998. LACAN, J. A terceira. In: VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, nos dias 31 de outubro, 1, 2 e 3 de novembro, 1974. Disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2019/04/a-terceira-jacques-lacan-1974.html Acesso em: 8 dez. 2021. LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988. LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2005. LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988. LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1985. LACAN, J. O seminário, livro 22: R. S. I. (1974-75). Inédito. Disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2017/03/o-seminario-22-rsi-jacques-lacan.html Acesso em: 08 dez. 2021. LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2004. MILLER, J. A. Saúde Mental e Ordem Pública. (1999). Curinga, Belo Horizonte, n. 13, 2010. MILLER, J. A. O real no século XXI. In: IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Buenos Aires, 27 de abril de 2014. Disponível em: https://www.wapol.org/ pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=38&intEdicion=13&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2493&intIdiomaArticulo=9. Acesso em: 21 nov. 2021. TUDANCA, L. Sinthoma/Passe. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. (orgs). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. 25 NOTAS SOBRE O LUTO EM FREUD E LACAN Flavia Gaze Bonfim4 A pandemia por COVID-19 nos empurrou para um cenário desconhecido de adoecimento, desamparo, incerteza e morte, que associado a uma falta de interesse do parte do Estado em mediar adequadamente tal situação (seja pelo atraso das vacinas, pelas fake news ou por discursos que impediam uma união coletiva em termos preventivos contra o coronavírus) produziu efeitos ainda mais catastróficos. São mais de 620 mil mortos5 – o que nos faz pensar sobre as inúmeras vidas perdidas e também sobre as vidas que ficaram, mas que precisam agora enfrentar a perda de uma pessoa amada, um familiar ou várias delas. É, nesse sentido, que o tema do luto bate à porta dos analistas – ou à tela, com os tratamentos online. Por outro lado, se esse tema tem se feito tão presente, constata-se o pouco destaque que ele teve entre os debates psicanalíticos até então. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é justamente retomar as construções teóricas de Freud e Lacan a respeito dessa temática de modo a fomentar uma discussão que acompanhe uma clínica em tempos pandêmicos, onde a experiência do luto passou a ser um tema tão recorrente entre os pacientes. PERDA, LUTO E DESEJO Sem dúvidas, um dos textos mais conhecidos no meio psicanalítico sobre a questão da perda é o artigo “Luto e Melancolia”. Nele, Freud (1996 [1917]) nos fala de uma dor presente na perda – a dor da separação, a dor do rompimento do laço que se mantinha com o objeto amado. Uma dor que implicará em um intenso e doloroso trabalho psíquico, que é o luto. Para Freud, conseguir realizar um luto requer Psicanalista. Doutora em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576 Dados colhidos no site do G1. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/coronavirus/noticia/2022/02/02/brasil-registra-946-mortes-por-covid-em-24-horas-media-movel-e-a-maior-desde-agosto.ghtml. Acesso em: 02 fev. 2022. 4 5 26 Leituras Psicanalíticas grande dispêndio de tempo e energia catexial. Nesse período, ocorre uma hipercatexia das representações vinculadas ao objeto perdido de modo que ele permanece “vivo” no psiquismo. (ibid.) Tal hipercatexia é verificável a partir de uma espécie de ativação das lembranças que remetem o objeto perdido, de modo que basta um mínimo detalhe para que o sujeito as rememore. Como muitos dizem: Tudo faz lembrar! É, nesse sentido, que podemos compreender a insistência e a repetição do paciente em falar sobre quem perdeu e o que perdeu, cujo caráter repetitivo é necessário e intrínseco ao processo de elaboração. Peça por peça precisa aqui ser colocada em jogo; não para recompor uma unidade, mas para produzir um esgotamento que leve ao consentimento de que o objeto não existe mais. Vale ainda dizer que esse processo não é linear; ele é ao mesmo tempo uma continuidade e uma descontinuidade, com um aspecto sofrido e longo. Convém, contudo, sinalizar que o sujeito, ao enfrentar a perda do objeto amado, não está lidando com uma única perda, mas com um vazio, que, segundo Marcus André Vieira (2008), é impossível de se esgotar em uma nomeação, ainda que tal tentativa faça parte do processo de elaboração do luto. Então, nunca se trata da perda em si da mãe, do pai, do filho, do companheiro, da esposa... mas do lugar que o objeto amado tinha para o sujeito e do lugar que o sujeito imaginava ocupar junto a quem perdeu. Para Freud (1996 [1917]), o trabalho de luto, estaria em reconhecer que o objeto perdido não existe mais, podendo desinvestir desse objeto, retirando as ligações libidinais com o mesmo para reinvestir no mundo externo. Romildo Barros (2011) assinala que a explicação freudiana pressupõe a redução do objeto perdido a um objeto comum, entre tantos outros, de modo que o investimento que o outrora o objeto amado tinha, deveria ser destinado a um novo objeto que seria, portanto, um substituto. Proposição um tanto problemática ao se teorizar em termos de “substituição” – o que leva a Barros a escrever que: “Seria mais simples pensar que o trabalho de luto busca transformar 27 Flavia Gaze Bonfim (org.) em um vazio aquilo que surgiu para o sujeito como um buraco no real, o que possibilitará retomar a série das equivalências eróticas entre os objetos do mundo.” (2011, p. 234) Assim, Barros (ibid.) continua essa discussão apontando para o fato que no trabalho de luto não só o objeto saí do processo transformado, mas o sujeito também. Pois o luto transforma o estatuto da perda, visto que ele não implica somente em retirar a libido do objeto perdido, para em seguida direcioná-lo a um outro, mas requer um trabalho de interpretação do próprio luto e da experiência subjetiva da perda. É preciso também considerar que tem algo de irrecuperável no que foi perdido e que o luto implica numa travessia em torno de um acontecimento que remete à castração. É digno de nota que a maneira utilizada por Freud para explicar o processo de luto foi, de acordo com Marcus André Vieira (2008), através de uma “metáfora energética” de investimento-desinvestimento de objeto. Lacan, contudo, avança nessa discussão a partir de um conceito que lhe permitiu uma série de viradas teóricas em seu ensino, a saber: o objeto pequeno a. Ao falar sobre o luto, em O Seminário, livro 10 – A angústia (2005 [1962-63]), Lacan aponta que Freud delimitou o trabalho de luto através da tarefa de consumar pela segunda vez a perda do objeto amado, comportando um “aspecto detalhado, minucioso, da rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o objeto amado.” (p. 263) Após apresentar tal característica do processo de luto em Freud, Lacan segue dizendo que sua visão é idêntica e contrária ao que podemos encontrar na obra freudiana. Nos termos lacanianos, o trabalho de tentar manter viva a representação psíquica do objeto amado, corresponde a uma tentativa de restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto: o objeto causa de desejo. Assim, através do ensino lacaniano, podemos situar o luto como um trabalho de se enlaçar novamente com o objeto a – o que levaria o sujeito a se reposicionar outra vez como desejante. Mais ainda, Lacan 28 Leituras Psicanalíticas nos ensina a delimitar na função do luto “uma estrutura fundamental do desejo” (2005 [1962-63], p. 361) Dizendo de outra forma: Esgotado o trabalho de luto, o objeto freudiano é herdeiro do objeto perdido, enquanto o objeto lacaniano [objeto a] é o que restou do apagamento do brilho fálico: é nesse sentido que se trata de um novo objeto e não de uma metáfora daquele que foi. Se é para Freud objeto de investimento, será para Lacan causa de desejo, o que se dá como mudança de registro e não como simples sucessão. (BARROS, 2011, p. 235) A relação entre luto e desejo foi, sobretudo, trabalhada por Lacan em O Seminário, livro 6 – A ética da psicanálise, ao fazer referência a Hamlet6, peça de William Shakespeare. Lacan (2016 [1958-59]) toma Hamlet como uma “tragédia do desejo”, situando que a peça de uma ponta a outra só se fala de luto. Ele ainda identifica a procrastinação e a precipitação como uma das dimensões essenciais dessa peça, além dos inúmeros lutos não realizados, por seus ritos abreviados ou clandestinos. Sobre a tragédia, a pergunta que Lacan introduz diz respeito ao motivo que levou Hamlet a não realizar seu ato, mesmo quando a situação lhe era favorável. Ato este que, segundo Lacan (2005 [1962-1963]), ele foi feito para praticar. Seu desejo ficou obstruído, inibido, na medida em que não conseguiu realizar o luto do seu pai e de Ofélia – mulher que Hamlet não pôde sustentar como sua amada por seus impasses com o desejo, precisando depreciá-la. Segundo Lacan, Ofélia “tornou o próprio símbolo do rechaço do seu desejo” (2016 [1958-59], p. 359). Lacan (ibid.) observa também que o ciúme de Hamlet pelo luto de Laertes em função da perda de sua irmã, Ofélia, é um dos pontos mais destacados da tragédia. Hamlet não consegue suportar a 6 A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca narra a história dos impasses do Príncipe Hamlet em vingar a morte de seu pai. Este foi envenenado por seu irmão Cláudio, que em seguida tomou o trono, casando-se com a mãe de Hamlet. Em forma de fantasma, o pai de Hamlet aparece para ele e pede vingança. Como um destino traçado, Hamlet deveria executar seu tio, mas a hesitação de concluir tal ato a sangue-frio é um dos pontos centrais da peça. A obra é permeada por conflitos de família e questões morais. Além disso, ela aborda também o tema do amor, da morte, da loucura e do poder, culminando em uma tragédia que envolve todos os personagens principais da peça. 29 Flavia Gaze Bonfim (org.) exibição da dor de Laertes. Não estamos habituados a pensar no luto como podendo ser alvo de ciúme, contudo, no caso de Hamlet, isso comparece na medida em que realizar um luto adquire intenso valor, visto que ele comporta as possibilidades desejantes para o sujeito. Seguindo em sua discussão, Lacan descreve qual seria a experiência do luto do qual Hamlet é tomado por ciúme. O sujeito mergulha na vertigem da dor e se encontra numa certa relação com o objeto desaparecido que, de certa forma, nos é ilustrada pelo que acontece na cena do cemitério. Laertes pula na cova e, fora de si, beija o objeto cujo desaparecimento é a causa dessa dor. É evidente que o objeto tem, então, uma existência ainda mais absoluta pelo fato de não corresponder a mais nada que exista. (ibid., p. 360) A cena do cemitério nos leva então à função dos ritos fúnebres. Para Lacan (ibid.), tais ritos desempenham um papel para o processo de elaboração do luto, na medida em que introduz uma mediação frente a hiância que se instaurou a partir de uma perda. Aqui, inclusive poderíamos nos perguntar sobre os efeitos nos sujeitos frente às dificuldades quem tem sido na pandemia realizar esses ritos, tendo em vista as restrições por medidas sanitárias de isolamento social e limitação do números de pessoas nos sepultamentos. Essa “mediação” diante da hiância da perda também sofreu impacto neste período pandêmico – o que caberia analisar suas consequências para cada sujeito. Ainda sobre o processo de luto, Lacan o situa como “uma satisfação dada à desordem que se produz em razão da insuficiência de todos os elementos significantes em fazer frente ao buraco criado na existência. É todo o sistema significante que é posto em jogo em torno do menor luto que seja.” (ibid., p. 361) Nesse sentido, Rangel (2015) aponta que a perda no real precisa passar pela operação significante. Ou seja, pela palavra. 30 Leituras Psicanalíticas Se com Lacan podemos ressituar a questão do trabalho de luto, não convém desprezar a precisão de Freud ao enumerar os fenômenos clínicos apresentados pelo sujeito frente a uma perda. Sendo assim, voltamos mais uma vez a Freud. Ele caracteriza o processo do luto através de um estado de tristeza, de profundo desânimo, falta de interesse pelo mundo externo, pela perda da capacidade de amar (investir em novos objetos), pela inibição por toda e qualquer atividade e, consequentemente, pelo afastamento da vida normal e habitual do sujeito. Freud muito bem observa que durante o luto, o mundo externo torna-se pobre e vazio de modo que só a representação do objeto amado e perdido é que tem valor. Durante o trabalho de luto, o eu assume uma posição inibida e limitada, tendo em vista que se encontra absorvido por esse processo. (FREUD, 1996 [1917]) Reconhecer esses fenômenos apontados por Freud tem como função nos orientar clinicamente, distanciando-nos da recorrente confusão entre tristeza e estados depressivos. Seguindo o caminho de Freud, é possível afirmar que os sinais de entristecimento, angústia, recolhimento em torno de si próprio e apatia dos enlutados não equivalem a um quadro patológico. Pelo contrário, constitui uma resposta “natural” ao sofrimento diante da perda sofrida, no qual o psiquismo se encontra absorvido. Contrapondo a esse contínuo esforço do psiquismo de elaboração, a depressão seria a resposta do sujeito que se recusa referenciar-se na falta e na castração. A linha fronteiriça está em consentir ou não com a perda. Nesse sentido, Jimenez (1997) propõe que a depressão é o contrário do luto, na medida em que este é um trabalho espontâneo do simbólico. Na depressão, lidamos com um luto congelado, eternizado, pela falta de trabalho de elaboração. No que se refere à dificuldade de realizar um trabalho de luto, é preciso levar em conta dois pontos: 1) a relação com a pessoa perdida e 2) os efeitos de nossa época na produção de subjetividade. Florencia Dassen (2008) observa que há diferentes graus de dificuldades ao 31 Flavia Gaze Bonfim (org.) lidar com a perda e consequentemente em se realizar um trabalho de luto – o que leva a psicanalista a considerar a dimensão implícita no luto da distância subjetiva quanto ao objeto, visto que tal distância influenciará a separação deste ao final do processo. Outro ponto a se considerar é como os sujeitos são afetados pelas marcas da cultura e de que modo elas produzem impacto na forma como ele lê e interpreta as experiências da vida. Nesse sentido, Vera Besset (2007) aponta que nos encontramo em uma cultura que valoriza a imagem e não o significante, a palavra, onde se promove a oferta do gozo imediato, sem limites, de modo que a resposta ao mal-estar do sujeito é mais buscada nos objetos de consumo do que no convite à renúncia e à elaboração inerente ao trabalho de luto. Não é a toa que essa precariedade quanto à possibilidade de elaboração se expressa no crescente número de “depressivos” na contemporaneidade. Ou seja, é necessário pensar o luto em sua dimensão singular, mas também articulado as condições de nossa cultura. Esgarçando ainda mais essa discussão, Carla Rodrigues (2021), seguindo o pensamento da filósofa Judith Butler, destaca ainda a necessidade de pensar o luto em sua dimensão política, no sentido de refletir sobre o modo como um país, um governo, enfrenta uma perda coletiva ou, mais atualmente, várias delas. Tomando o caso do Brasil, foi possível ouvir do presidente Jair Bolsonaro frente às mortes causadas por COVID-19, frases do tipo: “É uma gripezinha”, “Eu não sou coveiro” ao ser perguntado sobre o número de mortos; “E daí, quer que eu faça o que?” quanto questionado sobre o recordes de mortes; “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, comentário após uma apoiadora pedir uma palavra de conforto para as famílias dos mortos pela COVID-19.7 Ao mesmo tempo, o atual presidente da República soube oferecer suas condolências publicamente à família do Olavo Carvalho, ao escrever: “Nos deixa hoje um dos maiores pensadores da história do nosso país, o Filósofo e Professor Olavo Luiz Pimentel de Fonte extraída do site Poder 360°. Disponível em: https://www.poder360.com.br/ governo/251-mil-mortes-por-covid-relembre-as-falas-de-bolsonaro-sobre-a-pandemia/ 7 32 Leituras Psicanalíticas Carvalho. [...] Que Deus o receba na sua infinita bondade e misericórdia, bem como conforte sua família”.8 Além disso, decretou luto oficial. Não é necessário dar mais exemplos. Eles são suficientes para assinalar que perante a figura do representante maior do Estado, “nem todos os mortos têm o mesmo direito de ser enlutados” e “nem todos os vivos têm o direito de reconhecer seus mortos” (RODRIGUES, 2021, p. 70), tal como podemos extrair da peça Antígona9. Notadamente, Bolsonaro faz eco para uma questão que nos assola e ficou evidente na pandemia: o modo como muitas vidas nas sociedades capitalistas se tornaram elimináveis e desprezadas. Como sugere Rodrigues (2021), trata-se de pensar para além da categoria clínica do luto, sua dimensão ético-política, localizando assim o que enquadra e também mantêm certas vidas como enlutáveis e outras não. Isso, portanto, nos remete a um debate que coloca em jogo a violência de Estado e sua política de quem pode ou não morrer, cujo gênero, raça, classe, moradia e etc. se constituem como marcadores para a manutenção de determinados sujeitos como vidas precárias. Enfim, foge ao escopo desse trabalho adentrar mais profundamente nesta discussão, pois ela é mais ampla do que isso, por outro lado, é impossível não mencioná-la tendo em vista nosso contexto pandêmico atual. POR UMA DIREÇÃO DE TRATAMENTO EM TEMPO DE LUTOS Freud (2015) muito bem destacou que o luto não é um estado patológico e que por isso não havia necessidade do enlutado se submeter a um tratamento analítico. Se isso é uma orientação clínica importante, não raro escutamos pacientes que nos procuram por outras questões, mas que também colocam em trabalho a necessidade de atravessar Fonte extraída do site Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/01/25/interna_politica,1339927/bolsonaro-homenageia-olavo-de-carvalho-um-dos-maiores-do-pais.shtml 9 Antígona se inscreve na Trilogia Tebana de Sófocles e retoma o drama vivido por Antígona ao ser impedida por Creonte, representante do Estado, de sepultar seu irmão Polinices, considerado um inimigo por ter invadido Tebas. 8 33 Flavia Gaze Bonfim (org.) um luto – o que nos impõe a pensar sobre a direção de tratamento nesses casos. Falar em direção do tratamento aqui é apostar em um processo de elaboração em torno da perda sofrida, da separação do objeto amado, de modo que o analisando, enganchado pela transferência, possa ser relançado como desejante. Assumir um processo de elaboração é, contudo, segundo Freud (1914), sustentar uma “tarefa árdua” para o analisando e uma “prova de paciência para o analista”. Por outro lado, garante ele: “trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquer tipo de tratamento por sugestão.” (ibid., p. 171) Angela Bernardes (2003) salienta que a noção de elaboração não é um conceito de destaque na obra freudiana, entretanto, é a partir desta noção que Freud delimita propriamente o tratamento psicanalítico enquanto práxis, na medida que por meio dela é possível tratar o real traumático pelo simbólico, nos termos lacanianos. Nesse sentido, uma análise constitui-se como uma modalidade de tratamento do impossível de dizer. (ibid.) Falar, nomear, colocar em palavras o que exatamente foi perdido revela um impossível, ao mesmo tempo em que se mostra um trabalho altamente fundamental para os pacientes que se encontram diante de uma experiência de perda. De maneira mais radical, Alessandra Rocha (2010) propõe pensar a análise enquanto um trabalho de luto, tendo em vista que toda análise se trata da elaboração de uma falta. A psicanalista diz ainda que, de um modo geral, uma análise se opera enquanto “tempo de elaborar”, que se situa entre o “instante de ver” (expresso pela angústia ou tristeza frente a falta, a dor ou a perda) e o “momento de concluir” (que seria o encontro com a causa de desejo). Nesse sentido, essa característica inerente à própria experiência analítica – a elaboração da falta – já comporta em si o que pode ser considerado fundamental no trabalho do analisando que traz a temática da perda de um objeto amado. Ao realizar uma discussão terminológica da palavra alemã Durcharbeiten – no qual estamos habituados a empregar como “elaboração” 34 Leituras Psicanalíticas e “trabalho analítico” numa indicação que recolhemos do ensino lacaniano –, Bernardes (2003) explica que esse termo é bastante empregado na língua alemã e que seu uso corrente significa “trabalhar sem parar, trabalhar com esforço físico ou intelectual, trabalhar qualquer coisa a fundo, até o fim, de um lado a outro, examinar a fundo.” (ibid., p. 38) Portanto, um trabalho exaustivo, expresso na experiência cotidiana da análise de voltar ao mesmo ponto no qual está localizado a dificuldade do paciente, implicando, com isso, ao seu final “uma mudança de posição do sujeito em relação ao algo do real que não sai do lugar.” (ibid., p. 40) Para que ocorra essa mudança, é preciso dar tempo ao paciente – conselho dado por Freud (1914). Com Bernardes (2003), extraímos que o tempo de uma análise vai além do tempo necessário para o sujeito recordar, preencher as lacunas da memória; “vai além do tempo necessário para trazer à tona os significantes de sua história.” (ibid., 65) Um tempo no qual se produz um saber, que se difere do conhecimento, do saber intelectual, tendo maior relevância o uso que o sujeito faz desse saber. “Esse tempo para compreender é um tempo de re-significação, de reposicionamento subjetivo.” (ibid., p. 75) Nesse tempo de compreender, detectamos a ação do simbólico sobre o real – o real da morte. Um real que pode em alguns casos fazer romper com a sensação de estabilidade do sujeito, provocando uma ruptura que escapa à possibilidade de representação psíquica, um fora-de-sentido. Diante desse real da morte, aposta-se aqui na psicanálise como uma práxis ética que pode colaborar para que o sem sentido encontre um lugar na trama discursiva, promovendo efeitos de elaboração e, consequentemente, produzindo repercussões no processo de luto. PARA CONCLUIR... Com Freud, aprendemos que diante da perda, o psiquismo é convocado a realizar um penoso trabalho de elaboração do luto. Lacan, por sua vez, nos ensina a tomá-lo como um novo enlaçamento com o 35 Flavia Gaze Bonfim (org.) objeto a. De qualquer modo, o luto trata-se de um trabalho de fazer o real passar pela operação significante, pela palavra, promovendo um “luto de verdade” tal como Lacan reconheceu faltar em Hamlet. Sem realizá-lo, o sujeito impede que a dimensão desejante reencontre sua rota, pois o luto é “uma estrutura fundamental do desejo”. Se admitimos com Freud que a experiência de luto não é motivo para que uma pessoa empreenda uma análise, por outro lado, é possível reconhecer que tratamento analítico é um trabalho de luto, que promove o confronto o sujeito com a castração, ao mesmo tempo que conduz a uma elaboração, um tempo de compreender, para re-significar sua história e favorecer o reposicionamento subjetivo diante do mal-estar que lhe acomete. Assim, nesse tempo de compreender, que consiste propriamente o trabalho de luto, a ação do simbólico incide sobre o real e possibilita que ao seu final, no tempo de concluir, o sujeito possa se encontrar com a causa de seu desejo – o que nos casos dos enlutados implica em fazê-los também se encontrar com sua vida e não somente com a morte. REFERÊNCIAS BARROS, Romildo. (2011) Luto. In: Scilicet: A ordem simbólica no século XXI - Associação Mundial de Psicanálise, Belo Horizonte: Scriptum livros. BERNARDES, Angela. Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. BESSET, Vera. Luto e angústia: questões em torno do objeto. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology on line. São Paulo, v.4, nov. 2007. Disponível em: http:// pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-03582007000200006. Acesso em: 14 mar. 2018. DASSEN, Florencia. Luto. In: Scilicet: Os objetos a na experiência analítica – Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. FREUD. Sigmund. Luto e Melancolia (1917) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira, v. XIV. Rio de janeiro: Imago Ed, 1996. FREUD. Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira, v. XII. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996. 36 Leituras Psicanalíticas JIMENEZ, Stella. Depressão e Melancolia. In: ALMEIDA & MOURA (orgs.) A dor de existir e suas formas de expressão clínica: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 6 – O desejo e sua interpretação. (1958-59), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10 – A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. RANGEL, Maria. Desejo e luto: uma referência a Hamlet. In: Agente – Revista de Psicanálise, n. 10, ano 4, dezembro de 2015. Disponível em: http://www.ebpbahia.com.br/agente/ site/2016/07/14/desejo-e-luto-uma-referencia-a-hamlet/ Acesso em: 10 mar. 2021. ROCHA, Alessandra. O trabalho de luto enquanto tempo de elaborar. In: Curinga – Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, v. 30, 2010. RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. VIEIRA, Marcus André. O trauma subjetivo. Psico (PUCRS), v. 39, n. 4. Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/revistapsico/ojs/index.php/ revistapsico/article/view/2045/3842. Acesso em: 14 fev. 2022. 37 O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E PÂNICO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 Ana Beatriz Ferreira de Souza10 Talita Baldin11 INTRODUÇÃO Este estudo faz uma reflexão acerca dos transtornos de ansiedade e pânico levando em consideração o contexto atual da pandemia de COVID-19 e utiliza-se do olhar da psicanálise para a compreensão de tais fenômenos. A investigação parte do interesse da primeira autora em investigar o tema em seu trabalho de conclusão da graduação em Psicologia, a partir do reconhecimento de estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2017, que apresentavam dados indicando o Brasil enquanto o país mais ansioso do mundo, cujas estatísticas mostraram que cerca de 18,6 milhões de brasileiros, o que corresponde a 9,3% da população, sofria com algum transtorno de ansiedade (WHO, 2017). Sendo estes dados anteriores ao contexto da pandemia, e com base em publicações recentes na área da psicologia, psiquiatria e afins, e na experiência clínica, temos como objetivo investigar de que forma a psicanálise compreende os sintomas modernos de transtorno de ansiedade e pânico, bem como os possíveis agravos destes sintomas a partir da pandemia de COVID-19 que emergiu no país em março de 2020. Psicóloga (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/8427043089348990 Doutorado em Psicologia (UFF). Docente (FAMATH). Atriz. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/9656843819889888 10 11 38 Leituras Psicanalíticas DESENVOLVIMENTO O Dicionário Online de Português descreve o conceito de ansiedade como um desconforto físico e psíquico; agonia, aflição, angústia (DICIO, 2021). Ou seja: algo que produz desconforto e causa sintomas físicos e psíquicos. Esses são conceitos amplamente utilizados no contexto social, muitas vezes atrelados aos transtornos mentais. Com a emergência da pandemia mundial de COVID-19, foi possível observar nos jornais e também nas falas informais como tais sintomas ganharam maiores contornos, o que nos aponta que não se tratam de conceitos próprios da psicologia, ou da psiquiatria, mas também apropriados pelo senso comum e por isso compreendidos sob diversos olhares. Do ponto de vista neurobiológico, temos o estudo de Eduardo Ferreira de Carvalho-Netto (2009) que apresenta a ansiedade e o medo como estados emocionais correlacionados e considerados normais na vida dos seres vivos. Para o autor, a ansiedade é uma resposta desencadeada pelo organismo frente a um perigo apenas potencial, vago e incerto, algo que ainda não é possível prever. A exemplo citamos situações cotidianas como provas, exigências de metas a cumprir, entrevistas de emprego, e etc. O medo, por sua vez, surgiria a partir de situações claras, nas quais o perigo é real e evidente, como sob situação de ameaça, vivência de uma doença, e etc. Considerado isso, a ansiedade é um fenômeno que precede a conclusão de algum evento, podendo ser lida inclusive como um fator positivo, ao nos preparar para o que está por vir. Assim sendo, uma certa dose de ansiedade impulsionaria o sujeito à ação e seria considerada “normal”. Mas qual é o limite deste “normal”? A partir de que momento a ansiedade passa a ser patológica? O OLHAR DOS MANUAIS DE DIAGNÓSTICO PARA OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E DE PÂNICO Ao fazermos essas perguntas, nos deparamos com um limite da ansiedade enquanto processo normal e avançamos para um estado con39 Leituras Psicanalíticas siderado patológico, sendo apropriado pela medicina, mas também pelo contexto social, quando a ansiedade é tomada como um transtorno mental. Segundo consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a ansiedade só é considerada um transtorno quando ultrapassa esse limiar. Conforme o manual, a ansiedade emerge como transtorno a partir do momento em que causa prejuízos ao sujeito, tendo uma duração prolongada dos sintomas e não permitindo que a vida siga o fluxo considerado esperado, como antes da chegada do transtorno (APA, 2014). O DSM-5 nomeia a ansiedade como Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e o caracteriza por apresentar sintomas excessivos e persistentes que vão para além de vivências comuns e em momentos localizados. Conforme o manual, As características principais do transtorno de ansiedade generalizada são ansiedade e preocupação persistentes e excessivas acerca de vários domínios, incluindo desempenho no trabalho e escolar, que o indivíduo encontra dificuldade em controlar. Além disso, são experimentados sintomas físicos, incluindo inquietação ou sensação de “nervos à flor da pele”; fatigabilidade; dificuldade de concentração ou “ter brancos”; irritabilidade; tensão muscular; e perturbação do sono (APA, 2014, p. 190). Os ataques de pânico se destacam dentro do TAG como um tipo particular de resposta ao medo e pode ser compreendido como uma variante da ansiedade, mas que não é particular dela, pois os ataques de pânico também podem ser desenvolvidos dentro de outros transtornos mentais. “Os ataques de pânico são ataques abruptos de medo intenso ou desconforto intenso que atingem um pico em poucos minutos, acompanhados de sintomas físicos e/ou cognitivos” (APA, 2014, p. 190). 40 Leituras Psicanalíticas O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E DE PÂNICO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 A psicanálise, entretanto, possui outra forma de olhar para o que o DSM-5 denomina transtornos de ansiedade e de pânico. Se o lugar que a psicanálise busca é o do sujeito, pois é ele quem possui as respostas sobre si, o que nos interessa é a singularidade do inconsciente de cada um, a qual traz à cena o lugar do não saber, não cabendo aqui especialismos, tampouco o saber médico (COIMBRA; LEITÃO, 2003). Assim, para muito além do nome que se dá a um certo quadro descritivo de sintomas, o que importa no campo analítico é o sujeito do inconsciente e não o diagnóstico que ele carrega (MILLER, 1997). Para tal, a única técnica de investigação que detém o analista é sua a escuta: “permanece essencialmente verbal o material clínico fornecido pelo paciente. Será, então, de imediato na dimensão do dizer e do dito que se delimitará o campo de investigação clínica” (DOR, 1991, p. 14), ou seja, a investigação clínica pautada na psicanálise se dá de forma essencialmente subjetiva, uma vez que se pauta exclusivamente na palavra do sujeito. Com isso, concluímos que no campo da psicanálise não se objetiva localizar o sujeito em uma categoria nosológica, descrevendo e classificando seus sintomas, mas partir da palavra e das representações inconscientes do sujeito para compreender suas vivências. Desta forma, no que diz respeito à visão psicanalítica acerca dos sintomas de ansiedade e pânico, vale primeiramente caracterizar o sintoma na psicanálise. Freud (1926/2014), em Inibição, Sintoma e Angústia, distingue sintoma e inibição. Sobre a inibição, Freud (1926/2014) aponta que possui uma relação especial com a função, podendo ser demarcada como uma restrição normal da função, não necessariamente patológica. Por outro lado, o sintoma indica um processo patológico. Essa seria a primeira distinção entre sintoma e inibição. Em seguida, entretanto, Freud (1926/2014) considera que inibição pode ser um sintoma, 41 Leituras Psicanalíticas uma vez que o sintoma pode representar a alteração de uma função, ou uma nova manifestação dela. Avançando um pouco, Freud (1926/2014) apresenta uma relação entre inibição e angústia e nos leva a compreender que em alguns momentos a inibição pode aparecer como renúncia à função, porque o exercício desta função poderia causar angústia, então o sujeito renuncia a ela na tentativa de se proteger do desprazer. Ele faz isso a partir de mecanismos de defesa, com os quais tenta fugir do que causa angústia ou dor. Para se referir às funções, Freud aborda as funções básicas do sujeito: sexual, de trabalho, nutrição e locomoção (FREUD, 1926/2014). A respeito do sintoma, uma vez que se caracteriza por ser o indício e substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu, é consequência do processo de recalcamento. Ou seja, o sintoma aparece quando o sujeito recalca essa pulsão, que é uma força constante, um impulso energético que busca satisfazer-se permanentemente. Assim, o sintoma se origina do impulso energético, pulsão, prejudicada pelo recalcamento. Sobre isso, Freud (1926/2014) nos aponta que existe uma tendência de acharmos que o Eu é impotente contra os impulsos Id. Mas, ao se opor a essa pulsão que emerge no Id, é necessário apenas a liberação de um sinal de desprazer para que o sintoma emerja, com o auxílio do princípio do prazer. Chegamos então à angústia – um conceito que, no texto Inibições, sintomas e angústia, Freud (1926/2014) está em processo de revisão. Ao longo do livro, Freud aponta para a angústia como sintoma da neurose, uma vez que compreende o Eu como sede real da angústia, e assim constituinte da estrutura neurótica. Além disso, ele revê sua tese de que a angústia proveria do recalque, apontando-a neste momento como a produtora dele, mesmo que toda a formação dos sintomas seja realizada com objetivo de evitá-la. Freud (1926/2014) conclui: “os sintomas atam a energia psíquica que de outro modo seria descarregada como angústia, de maneira que a angústia seria o fenômeno básico e problema principal da neurose” (FREUD, 1926/2014, p. 87). 42 Leituras Psicanalíticas Mais adiante no texto, Freud (1926/2014) atenta que o sintoma se forma para que o Eu seja subtraído à situação de perigo: “sendo impedida a formação de sintomas, o perigo realmente aparece, ou seja, produz-se aquela situação análoga ao nascimento, em que o Eu se encontra desamparado ante exigências instintuais cada vez maiores” (FREUD, 1926/2014, p. 88). Diante disso, a angústia estaria ligada diretamente com a noção de desamparo, vivenciado desde a infância, sendo justamente esta compreensão que nos interessa ao analisarmos experiências relacionadas à pandemia. Podemos compreender a partir disso que sintoma e angústia se aproximam pelo fato de existir uma situação de perigo ao Eu, sendo que, para Freud (1926/2014), a angústia é preliminar à formação de sintomas, pois “se o Eu não despertasse a instância prazer-desprazer pela geração de angústia não adquiriria o poder para sustar o ameaçador processo gestado no Id” (FREUD, 1926, p. 88). A angústia é, então, o que Freud (1926/2014) chama de reação ao perigo, sendo impossível ao Eu afastar-se dela. Ele aponta ainda que o perigo é algo que está posto ao sujeito e possui uma dimensão universal. O que varia nesta relação é o modo como cada sujeito lida com o fenômeno de forma singular, a partir de suas próprias experiências. Conforme Freud: A angustia é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer que se criam sintomas de modo a evitar a geração de angustia. Mas isto não atinge uma profundidade suficiente. Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de angustia. Nos casos que examinamos, o perigo em causa foi o de castração ou de algo remontável à castração (FREUD, 1926/2014, p. 128). 43 Leituras Psicanalíticas O PERIGO IMINENTE QUE A COVID-19 DESPERTOU E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL: O DESAMPARO COMO EVIDÊNCIA CLÍNICA FRENTE A PANDEMIA A disseminação do Coronavírus, que teve um alcance mundial e trouxe consigo o indicador de perigo, teve como consequência grandes prejuízos na saúde mental. Com isso, sintomas como os de ansiedade e pânico, entre tantos outros, bem como efeitos econômicos, sociais e educacionais sobressalentes à emergência da Covid-19, passaram a emergir em grandes proporções, frutos da angústia e do perigo iminente, a princípio sem solução imediata, trazido por todo esse cenário. A SARS-Cov-2, nome da doença respiratória ocasionada pelo novo Coronavírus, teve seu primeiro caso detectado na cidade de Wuhan, China, em novembro de 2019. Em seguida espalhou-se gradativamente por vários países, incluindo o Brasil, que registrou o primeiro caso em 26 de fevereiro de 2020. Com os casos aumentando em todo o mundo devido a transmissibilidade da infecção, o índice de mortalidade crescente, e a falta de conhecimento sobre o vírus, a OMS decretou pandemia mundial em março de 2020 (WHO, 2020). Por ser uma doença de conteúdo nunca visto antes, diversas notícias tomaram conta das mídias sociais e jornais televisivos. A incerteza, a falta de informação, a necessidade de manter o distanciamento social, a privação da rotina habitual pelos decretos de lockdown em todo o mundo, a impossibilidade de planejar e programar, o medo de contrair a doença e o consequente medo da morte, foram fatores que influenciaram prejudicialmente a saúde mental de muitas pessoas. Conforme supracitado, vamos analisar esses fenômenos pela leitura psicanalítica, considerando que o olhar do analista para os sintomas de ansiedade e pânico partem da experiência do desamparo, o que vamos nomear de uma clínica da angústia. 44 Leituras Psicanalíticas Em O mal-estar na civilização Freud (1930/2010) aponta que a ansiedade se relaciona com o próprio nascimento do sujeito, pois a partir do momento em que o bebê apresenta necessidades básicas para a sobrevivência também se instaura o desejo. Com isso, inicia-se uma busca constante por satisfação. Sigmund Freud salienta que a ansiedade é consequência de traumas da infância que foram rechaçados pelo Ego como um mecanismo de defesa para a evitação da dor. O autor também salienta a relação entre desamparo e a angústia de castração, onde a privação ou perda do objeto equivale à separação da mãe, fazendo com que o indivíduo vivencie a sensação do desamparo devido à sua necessidade pulsional, como no nascimento (OLIVEIRA; SANTOS, 2019, p. 34). A respeito do desamparo, Resstel (2015) discorre que a criança logo em seu nascimento vivencia o sentimento de desamparo. Ele aponta que o desamparo evidencia o sentimento de abandono a partir do momento em que a criança se percebe como um eu no mundo. Em complemento, Campos e Silva (2020) consideram o desamparo “condição originária da subjetividade humana e também seu horizonte contínuo, na medida em que toda a dinâmica defensiva e a mobilização da angústia é, em última instância, uma tentativa de prevenção de sua repetição” (p. 68). Com base no supracitado, compreendemos que o desamparo se relaciona à angústia, uma vez que ao emergir no sujeito o sentimento de possível abandono - visto que temos a necessidade de estar sempre amparados pelo nosso objeto de amor, desde a infância – surge também a angústia. Assim, a constituição do aparelho psíquico evidencia o desamparo, o qual se expressa como uma experiência de angústia. Nesse quadro, a angústia aponta para a situação de perigo, de modo a atualizar a condição estrutural de desamparo, aquela vivência primordial de perda do objeto, que o bebê vivenciou ao se separar da mãe (CAMPOS; SILVA, 2020). 45 Leituras Psicanalíticas Como já visto anteriormente, o pânico é uma das formas de manifestação da ansiedade, ou uma das afecções apresentadas pelo sujeito relacionadas ao desamparo. Menezes (2006) analisa o pânico enquanto “resposta psíquica frente à desilusão provocada pela perda de um ideal protetor que até então, de maneira onipotente, assegurava ao sujeito sua estabilidade” (p. 192). À luz do DSM-5 e do discurso socializado pelo senso comum, que é efeito deste, o pânico apresenta uma relação íntima com o que na psicanálise compreendemos por desamparo. Conforme o autor, “o pânico é, nesta perspectiva, a experiência de uma expressão máxima de angústia e uma evidência clínica do desamparo” (MENEZES, 2006, p. 192). Com a emergência da COVID-19, foi possível observar, tanto pela perspectiva da literatura quanto em nossa experiência clínica, que houve um aumento significativo nas queixas de ansiedade e pânico. A pandemia trouxe a necessidade do isolamento social, momento em que as pessoas tiveram que se afastar dos seus contextos sociais para que o vírus pudesse ser contido ou ao menos minimizado. No início, em março de 2020, foram decretados 15 dias de lockdown, que duraram muito mais que isso, prolongando-se por meses, causando diversos prejuízos econômicos e sociais, incluindo a saúde mental do sujeito. Seus efeitos ainda são vividos no início de 2022. O que vivemos trata-se, portanto, de um momento histórico e gerador de sofrimento intenso, pois ser retirado do contexto social trouxe e continua trazendo para muitas pessoas o sentimento de solidão, a qual gera a sensação de desamparo que, como vimos, faz emergir a angústia (FREUD, 1926/2014). Estudos recentes (ASMUNDSON; TAYLOR, 2020; CARVALHO et al., 2020; WANG et al., 2020) revelam que a pandemia tem afetado a vida psíquica das pessoas. Os autores desses estudos discutem que a experiência do isolamento social, o medo de ser infectado pela doença e o medo da morte estão entre os fatores que afetam a saúde mental. Eles aparecem em sintomas como depressão, ansiedade e estresse na população geral (WANG et al., 2020). 46 Leituras Psicanalíticas Acreditamos que isso se deve ao fato de que, para lidar com as demandas que surgem na vida, o sujeito precisa construir algumas certezas, fantasias e formas de enfrentamento, as quais, quando insuficientes para lidar com o sofrimento, surgem como angústia. Nesse sentido, alguns determinantes histórico-culturais, provocados por mudanças políticas, econômicas ou sociais, impactam a vida do sujeito, causando “perda de garantias constituídas na estabilidade do mundo subjetivo” (CAMPOS; SILVA, 2020, p. 70). O sujeito busca nas relações sociais identificações para tentar preencher com algo de fora, inclusive com o outro, algo que lhe falta. Quando essa construção subjetiva se rompe, advém a angústia, uma vez que o que se buscava satisfazer não foi realizado. Compreendemos a COVID-19 como algo que, ao exigir isolamento social e muitas outras medidas de proteção incomuns até o momento, rompe com o que construímos subjetivamente, aparece como algo que desconstrói o que havia no cotidiano (CAMPOS; SILVA, 2020), por isso nossa aproximação entre o que encontramos na teoria psicanalítica sobre o desamparo e o que vivemos atualmente. Nesse sentido, Campos e Silva (2020) concluem que “essa angústia da liberdade, por assim dizer, é o horizonte ético que começa a se indicar na aurora da modernidade e que, a partir de sua crise, coloca o sujeito sob o signo do mal-estar e também do desamparo” (CAMPOS; SILVA, 2020, p. 70). Mesmo que os autores não abordem a pandemia da COVID-19 especificamente, suas articulações nos possibilitam fazer uma comparação entre o que é exposto no texto e o que desenvolvemos neste trabalho, bem como vivenciamos na atualidade. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO PANDÊMICO: UMA ESCUTA QUE DÁ LUGAR AO SUJEITO Compreendemos que a experiência da pandemia é única, uma vez que nunca vivemos algo similar, mas não podemos descartar que 47 Leituras Psicanalíticas a mesma emerge atualizando em nós a experiência do desamparo, a qual está marcada em nosso psiquismo desde a infância. Sendo assim, podemos nunca ter vivenciado uma pandemia, mas o sentimento emergente com ela pode ser lido como uma atualização cada vez que nos deparamos com o que representa uma perda significativa. Uma evidência disso são os lutos que perpassam nossas vidas e que não necessariamente dizem respeito apenas à morte de uma pessoa, mas também às passagens que fazemos, seja da infância para adolescência, seja do término de uma faculdade para a inserção no mercado de trabalho, e mesmo um término de relacionamento. Sendo assim, muitos foram os lutos que esse momento nos trouxe: a perda da liberdade, a perda da estabilidade financeira e as perdas para a morte propriamente dita, que aumentavam a cada dia, desde a primeira contaminação pelo vírus. São muitas as contribuições da clínica psicanalítica neste cenário, uma vez que desde os primórdios da psicanálise Freud já entendia que em uma análise se lida com a falta do sujeito. Ao analisarmos o contexto pandêmico e suas consequências, por sua vez, verificamos que essa falta foi atualizada, tanto pelo isolamento social, quanto pelas perdas no sentido mais amplo da palavra, pelo medo da doença e da morte. Quanto à falta, Freud (1919/2010) nos orienta que se deve conduzir o tratamento analítico na privação e na abstinência, ou seja, o tratamento deve ser conduzido de forma que o paciente consiga se haver com a falta. Não tamponá-la, nem negá-la. Ao contrário, oferecer algum trato às demandas infinitas e nunca supridas. De nada adianta suprir a falta com substituições, mesmo que o sujeito busque fazê-las (FREUD, 1919/2010), uma vez que quando se tampona um sintoma, por exemplo oferecendo ao sujeito uma nomeação de Transtorno de Ansiedade Generalizada para explicar o que sente, o que fazemos é apenas reforçar o sintoma, de modo que o sujeito repita modelos, ao invés de elaborá-los. Sem nomeações próprias, sem espaço para as manifestações inconscientes, é impossível caminhar em direção à cura, tal como a entendemos na psicanálise. Cura esta, vale 48 Leituras Psicanalíticas lembrar, que não diz respeito à eliminação dos sintomas (facilmente substituídos por outros), mas oferecer um direcionamento para eles, permitindo que o sujeito consiga lidar com seus sintomas. Sendo assim, à medida que passamos pela experiência do tratamento analítico, compreendemos que não devemos extinguir o que nos causa dor e sofrimento, até porque não sofrer não é uma possibilidade na vida, mas aprender a lidar com o sofrimento nos possibilita caminhar em direção à cura. Quanto a isso, o próprio Freud (1937/2017) nos diz que “é desejável diminuir a duração de um tratamento, mas o caminho para executar a nossa intenção terapêutica só passa pelo reforço da capacidade analítica auxiliar que queremos levar ao Eu” (p. 224). A direção da cura só emerge a partir do momento que o sujeito consegue lidar com os fantasmas inconscientes, encontrando caminhos possíveis a partir do que a sua fala vai abrindo em análise. Nesse sentido, o que surge a partir da fala do paciente não dá um fechamento, uma solução pronta, mas abre possibilidades. Evidentemente, trabalhar com a angústia em um processo analítico não se trata de um tratamento rápido, nem fácil: lidar com os fantasmas requer um esforço de cada um. Retomando a pandemia de COVID-19, concluímos que ela trouxe muitos impactos para a saúde mental e que os sintomas de ansiedade e pânico emergiram de modo intenso, uma vez que o contexto pandêmico atualizou em nós a noção de desamparo vivenciado na infância. Muitas pessoas não souberam lidar com o isolamento social, as mortes acontecendo a todo momento, as vivências do luto por todas as perdas que surgiram como consequência deste acontecimento, e por conta disso, adoeceram. Resta-nos indagar, portanto, o que a vivência do desamparo hoje grita em cada um de nós, o que desperta de nossa singularidade. REFERÊNCIAS AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 [Recurso eletrônico]. 5. Ed. Nascimento, Trad. Porto Alegre, RS: Artmed, 2014. 49 Leituras Psicanalíticas ANSIEDADE. In: DICIO. Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível em:https://www.dicio.com.br/ansiedade/>. Acesso em: 15 jun. 2021. ASMUNDSON, Gordon; TAYLOR, Steven. Coronaphobia: fear and the 2019nCoV outbreak. Journal of Anxiety Disorders. v. 70, 102-196. March, 2020. Disponível em: » https://doi.org/10.1016/j.janxdis.2020.102196 Acesso em: 25 out. 2021. CAMPOS, E. B.; SILVA, A; O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico. São Paulo: Revista de psicologia da UNESP. Agosto, 2020. CARVALHO-NETTO, Eduardo. Medo e ansiedade: Aspectos comportamentais e neuroanatômicos. Arquivos Médicos, São Paulo, n. 52, v. 2, pp. 62-5, 2009. Disponível em: http://arquivosmedicos.fcmsantacasasp.edu.br/index.php/AMSCSP/article/view/371/404 Acesso em: 22 jun. 2021. CARVALHO, P, M, M; MOREIRA, M, M; OLIVEIRA, M, N, A; LANDIM, J, M, M; ROLIM N, M, L; The psychiatric impact of the novel coronavirus outbreak. Psychiatry Research, 286(112902), 1-2. 2020. Disponível em: » https://doi.org/10.1016/j. psychres.2020.112902 Acesso em: 25 out. 2021 COIMBRA, Cecília.; LEITÃO, Maria Beatriz. Das essências às multiplicidades: especialismos psi e produções de subjetividade. Psicologia & sociedade, Universidade Federal Fluminense, v.15, n.2, p. 6-17, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/KQVv6zCyD6pkPGN3mxdjNcR/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 08 nov. 2021. DOR, Joel. Estruturas e Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre Editores, 1991. FREUD, Sigmund. A análise finita e a infinita (1937). Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras incompletas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. FREUD, Sigmund. Caminhos da terapia psicanalítica (1919). História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos. Obras completas. Volume 14. São Paulo: Companhia das letras, 2010. FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia e outros textos (1926). Volume 17. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros textos (1930). Obras completas. Volume 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MENEZES, Lucianne Sant’Anna de. Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade – Um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, FAPESP, 2006. MILLER, Jacques Alain. Lacan elucidado: palestras no Brasil. Corpo Freudiano do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. OLIVEIRA, Karina; SANTOS, José Wellington; Transtorno de ansiedade generalizada em adultos - Uma visão psicanalítica. Revista Científica Eletrônica de Psicologia. 33ª Ed. Garça-SP: FAEF, v. 33, n. 01, p. 33-46, 2019. Disponível em: <http://faef.revista.inf. 50 Leituras Psicanalíticas br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/FYY6Zr6VVlSRzo9_2020-1-18-8-48-55.pdf>. Acesso em: 06 out. 2021. RESSTEL, Cizina Célia. Desamparo psíquico. In: Desamparo psíquico nos filhos de dekasseguis no retorno ao Brasil [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/xky8j/pdf/resstel-9788579836749-07. pdf>. Acesso em: 19 out. 2021. WANG, C; PAN, R; WAN, X; TAN, Y; XU, L; HO, C. S; HO, R. C. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 coronavirus disease (COVID-19) epidemic among the general population in china. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. 2020. Disponível em: » https:// doi.org/10.3390/ijerph17051729 Acesso em: 25 out. 2021. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): Situation Report – 78. [Recurso eletrônico]. 2020. Disponível em: https://www.who.int/ docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200407-sitrep-78-covid-19.pdf?sfvrsn=bc43e1b_2/>. Acesso em: 04 out. 2021. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Depression and other common mental disorders: global health estimates. [Recurso eletrônico]. 2017. Disponível em: https://apps.who. int/iris/handle/10665/254610/>. Acesso em: 21 jun. 2021. 51 A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: LUTOS E PERDAS NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO Lidiane Bernardo Gomes12 Francisco Francinete Leite Junior13 INTRODUÇÃO Em face do cenário atual, desde 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu um surto de pneumonia causada pelo SARS-COV-2 levando à declaração de uma pandemia em 11 de março de 2020 pelo diretor-geral da OMS. O mundo tem enfrentado grandes transformações, econômicas, de convivência e diversos outros contextos especialmente na saúde, ocasionadas pela pandemia do novo Coronavírus. No Brasil, o primeiro caso confirmado data de 26 de fevereiro de 2020 e, até o dia 3 de março de 2022, o país contabilizava 650.000 mortes em decorrência da infecção causada pelo coronavírus (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2022; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2022). Em virtude das diversas mudanças decorrentes da situação pandêmica, alguns rituais familiares passaram por processos de ressignificação. O luto, por exemplo, e todos os rituais que perpassam a morte têm enfrentado momentos de reestruturação, produzindo impactos sobre os modos de vida. A pandemia implicou na ausência do velório, desencadeou um luto coletivo e mortes em domicílios. “Os óbitos por COVID-19 têm ocorrido não somente nos hospitais, mas também nos domicílios (INGRAVALLO, 2020; KUNZ & MINDER, 2020 apud CREPALDI et al, 2020, p. 4) 12 13 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4314-1121 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8431-0513 52 Leituras Psicanalíticas Neste momento insólito, por causa de um vírus transmissível pelo ar, os rituais se transformaram e devem ser diminutos. Assim, temos que fazer também o luto do luto. Ou elaborar a perda dos rituais sociais e amplos do luto que, em alguma medida, nos sustentavam. Eis então mais um desafio: a invenção de outras formas de luto social. Luto pelo zoom? Empresas especializadas em lutos remotos? Rituais à distância? Como discutimos antes, o mundo online talvez venha a nos ensinar outras formas de sentir, e de elaborar afetos e perdas. (HOMEM, 2020, p. 74) Além disso, o isolamento social modificou os ritos de despedidas, sobretudo, por causa das normas de biossegurança que a todo o momento intensificavam a limitação de contato entre as pessoas. “Os rituais a que estamos acostumados, como velório, não serão realizados ou serão modificados para atenderem à nova situação”. (MIYAZAKI E TEODORO, 2020, p. 1) Falar sobre a morte é um tabu e a partir de meados do século XX esse fato ganhou força e intensificou-se, especialmente, nas sociedades ocidentais. Com o advento do capitalismo, o avanço da medicina e o desenvolvimento industrial, a morte passou a ser vista como algo sujo, passível de ser evitada. As transformações ocorridas em torno dessa temática evidenciaram a dificuldade de falar desse assunto com criança e cada vez mais foi se desenvolvendo a prática de não envolvê-la no processo de luto, estabelecendo conflitos em torno da morte e em suas dimensões com a intenção de defendê-la do contato com esse tema. Freud deu o nome de mecanismos de defesa às muitas tentativas do ego de solucionar esses dilemas. Repetidamente, ele disse que os mecanismos de defesa eram a pedra fundamental da teoria psicanalítica (...). Esses mecanismos só se tornam um problema ao serem utilizados pelo ego de modo excessivo ou inflexível. (KAHN, 2003, p. 160) A criança, assim como os demais integrantes da família, estão inseridos nesse processo. Segundo Kovács (1992, p. 49) “ao não falar, o 53 Flavia Gaze Bonfim (org.) adulto crê estar protegendo a criança, como se essa proteção aliviasse a dor e mudasse magicamente a realidade...”. A literatura tem cada vez mais apresentado estudos em defesa da necessidade de falar sobre a morte, o morrer e o luto sem tabus com as crianças no sentido de prepará-la para um acontecimento que circundará todas as fases da vida. Franco e Polido (2014, p. 45) – citando as ideias de Parkes sobre o processo de luto – afirmam que “todos os acontecimentos que provocam mudanças na vida, sobretudo os inesperados, desafiam o mundo presumido e provocam uma crise”. Isso significa dizer que é preciso estar preparado emocionalmente para os eventos esperados e também os inesperados. A morte em algum momento acontecerá na vida de todos. E no contexto da atual pandemia acontece o que Kovàcs, (2021, p. 97) classifica como “morte escancarada”, ou seja, [...] é o nome que atribuímos à morte que invade, penetra e ocupa espaço a qualquer hora. Sua característica invasiva dificulta a proteção e o controle de suas consequências, e as pessoas ficam expostas, sem defesas... ela é brusca, repentina, invasiva e involuntária. Ainda de acordo com Franco e Polido (2014, p. 46), “a evolução do processo da criança será, por conseguinte, diretamente influenciado pela dinâmica familiar, ou seja, vai depender dos recursos de enfrentamento das pessoas que cuidarão dela a partir de então”. Em meio a pandemia, as situações de perdas se intensificaram e as crianças tiveram que se adaptar a ausência do toque nas brincadeiras, e até mesmo, ausência de brincadeiras em grupos devido ao isolamento social. Elas também experimentaram os desdobramentos provocados pela infecção, por exemplo, da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) que, de acordo com o Ministério da Saúde (2020), indica uma infecção grave associada a COVID-19. Em situação de contaminação grave, a criança é submetida a atendimento hospitalar com internação e distanciamento da família. Outro fator inerente a 54 Leituras Psicanalíticas essa situação diz respeito à vivência de várias perdas consecutivas e/ ou concomitantes no núcleo familiar. No entanto, a pandemia apresentou diversos caminhos de mudanças na vida das pessoas, que indicou a necessidade de cuidados holísticos, assim como, intervenções adequadas para cada caso de sofrimento com suas singularidades. Dentre as possibilidades de intervenção para lidar com todo esse processo de perdas e luto, a psicanálise surge como uma abordagem possível para auxiliar o sujeito na passagem por essa situação, em especial, para a criança que vivencia esse processo. De acordo Bromberg (2000, p.60), “o luto infantil é frequentemente considerado um fator de vulnerabilidade a muitos distúrbios psicológicos na vida adulta”. O trabalho psicanalítico com crianças demonstra que elas percebem fatos que lhe são ocultados e, embora possam não expressá-los verbalmente, os seus conhecimentos aparecem em seus jogos, desenhos ou outras formas de expressão. Entre os jogos infantis onde ocorre a simbolização da morte estão os jogos de esconde-esconde, mocinho e bandido. (KOVÁCS, 1992, p. 49) Desse modo, a psicanálise é incumbida à função de desarrumar, desconstruir, arrumar, construir e renovar conceitos. De acordo com Backes et al, (2007), no que concerne à clínica psicanalítica com crianças, a atual pandemia se apresentou com um momento de consequências importantes para as quais exigiu-se constantes adaptações para esse público desde rotinas de trabalho, escola, espaço de lazer, família e amigos. Nota-se que em todos esses aspectos houveram rompimentos significativos para algumas pessoas. Destarte, experimentou-se uma relação mais próxima com a tecnologia, obviamente, que não foi igual para todos os sujeitos. A humanidade ao longo da história enfrentou guerras, doenças, vírus, endemias e pandemias. Cada evento desses em seu tempo produziu impactos, especialmente para a ciência, e com a psicanálise não foi diferente, visto que esses acontecimentos deixam traumas na vida daqueles que os vivenciam direto ou indiretamente. 55 Flavia Gaze Bonfim (org.) Em eventos como endemias e pandemias, vive-se a estranha certeza de lutar contra um inimigo invisível, fato que torna a luta desigual, pois o fundamental em uma batalha é conhecer com quem se luta. A pandemia do coronavírus afetou a vida humana em seus diversos contextos, provocando distanciamentos impostos e em contrapartida obrigando algumas pessoas a permanecerem mais tempo em seus lares. No entanto, o fato que mais esteve presente foi a vivência da morte pública e diversas perdas cotidianas que marcaram diariamente a vida das pessoas deixando vários traumas. Para além dos critérios diagnósticos nosológicos, os traumas são características de experiências extremas de sofrimentos que permeiam as lembranças dos sujeitos. Os efeitos de um trauma – quando ignorado – se converte em sinais e sintomas que afetam de maneira efetiva uma vida. O corpo fala para além do orgânico, como mencionou o próprio Freud. Em consonância com Viola et al (2011, p. 57), “exposições prolongadas a experiências traumáticas durante a infância ainda comportam uma preocupante realidade e podem produzir profundo impacto em diferentes áreas funcionais”. Existem períodos críticos no desenvolvimento infantil que podem emanar uma carga de experiências traumáticas ao longo da vida desempenhando um papel negativo nos diversos aspectos de relacionamentos interpessoais e pessoais. De acordo com Costa (2010, p. 20), foi entre 1920 e 1940 que a psicanálise com criança nasceu e se desenvolveu “a partir das pesquisas das primeiras analistas: Hermine von Hug-Hellmuth, Anna Freud e Melanie Klein”. Além disso, para a autora: A psicanálise diz respeito ao sujeito, não importa se criança ou adulto, no entanto não podemos esquecer que a psicanálise com crianças tem uma especificidade em relação à clínica com adultos, já que a criança, por características comportamentais que lhe são próprias, não pode cumprir com a regra fundamental da análise, 56 Leituras Psicanalíticas ou seja, a regra da associação livre. Em outras palavras, não podemos esperar que uma criança se deite no divã e fale sobre suas dificuldades durante 30 ou 40 minutos. Por outro lado, percebemos que, se deixarmos a criança livre, ela brinca com o que encontrar à sua frente, sendo esse o modo natural de se expressar. (2010, p. 19-20) Nesse sentido, para a psicanálise, a maneira como a criança compreende e interpreta a morte está ligada ao seu psiquismo e também às relações afetivas e aos aspectos cognitivos para elaboração de perdas. Outras questões estão envolvidas nesse movimento, por exemplo, a própria fase de desenvolvimento que envolve a compreensão de termos como “irreversibilidade, não funcionalidade e universalidade”(VENDRUSCOLO, 2005, p. 27). Dessa forma, a relevância deste estudo implica em abordar um assunto tabu para a sociedade ocidental buscando apresentar mecanismos propícios que auxiliem no rompimento de barreiras no sentido de inserir tal temática nos espaços de convivência social desde a infância. Assim, indica-se a necessidade de que os meios de comunicação, os espaços educativos, a família e a sociedade encontrem, através do diálogo e das informações condizentes, meios adequados para se falar sobre as perdas e luto que são realidades vividas ao longo do processo de constituição do sujeito. Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em analisar como a clínica psicanalítica lida com as perdas e os lutos na infância, buscando caracterizar como o cenário da pandemia do coronavírus afetou a vivência desses processos. DESENVOLVIMENTO Sobre a clínica psicanalítica com criança, têm-se indícios de que o seu início tenha sido a partir das teorizações de Freud em seus estudos sobre a sexualidade infantil na escuta sobre suas pacientes histéricas. A teoria da sedução foi o ponto inicial para o desenvolvimento de várias teorias em torno do infantil na perspectiva freudiana. 57 Flavia Gaze Bonfim (org.) Esse foi um momento teórico muito importante no desenvolvimento da teoria psicanalítica, no qual o relevante não são mais os fatos da infância, mas a realidade psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a ela vinculadas, tendo como pano de fundo a sexualidade infantil. Ocorre também uma modificação no conceito de infância, que deixa de ser vista a partir de um registro genético e cronológico para ser abordada pela lógica do inconsciente. (COSTA, 2010 p. 14) Depreende-se que a partir desse momento torna-se importante analisar a realidade psíquica da criança que tenha vivenciado as experiências de perdas simbólicas ou concretas. De acordo com Kovács (apud COMBINATO e QUEIROZ, 2006), ao longo do desenvolvimento, a pessoa passa por várias “mortes”, para as quais a autora usa a terminologia “mortes simbólicas ou mortes em vida” (p. 212). Algumas experiências vivenciadas ao longo do desenvolvimento humano apresentam analogia com a idéia de morte: separação, desemprego, doença e, até mesmo, acontecimentos que trazem alegria, mas que provocam algum tipo de ruptura. A separação pode ser vivenciada através de vários tipos de experiências, desde a separação com a figura materna até a separação de namorados e de casais. Ela envolve aspectos semelhantes ao luto; a diferença é que, na situação de luto, houve a morte concreta de alguém, enquanto, na separação, não. (COMBINATO & QUEIROZ, 2006, p. 212) Desse modo, ao longo da vida, a criança enfrenta perdas cotidianas que para sua idade ou para sua faixa etária podem ser reversíveis como a saída da mãe diariamente para o trabalho, mas que em certas fases gera um desamparo que pode estar ligado a falta de compreensão da reversibilidade. Essa falta e desamparo ocasionados pelas perdas se relacionam com o vínculo que a criança tem com a pessoa que pode ser o pai, a mãe ou qualquer outro cuidador direto dela. 58 Leituras Psicanalíticas Quando pensamos em perda, pensamos na morte das pessoas que amamos. Mas a perda é muito mais abrangente em nossa vida. Pois perdemos não só pela morte, mas também por abandonar e ser abandonado, por mudar e deixar coisas para trás e seguir nosso caminho. E nossas perdas incluem não apenas separações e partidas dos que amamos, mas também a perda consciente ou inconsciente de sonhos românticos, expectativas impossíveis, ilusões de liberdade e poder, ilusões de segurança — e a perda do nosso próprio eu jovem, o eu que se julgava para sempre imune às rugas, invulnerável e imortal. (VIORST, 2005, p. 13-14) Assim, para Zavaroni e Viana (2015) essas pequenas perdas “naturais” ao longo processo de constituição do sujeito representam situações “potencialmente traumáticas”: De modo genérico, definimos como potencialmente traumática uma situação composta de circunstâncias impactantes, geradoras de pesar, que coloca a criança frente a perdas importantes e que exige ou desencadeia (re)arranjos vivenciais significativos. Tais como acontece nas situações que envolvem a perda inesperada de alguém significativo, a agressão física ou psíquica, os acidentes familiares e pessoais com consequências graves, dentre tantos outros. No entanto, situações que não contemplam tanta visibilidade também podem constituir-se como situações potencialmente traumáticas, como por exemplo, a perda de um pequeno brinquedo. Mas nosso interesse volta-se principalmente para aquelas situações que, a revelia do sujeito, possuem um forte atributo traumático que lhe é conferido pelo próprio sujeito, pela família ou pelo seu contexto cultural. A ideia de situação potencialmente traumática contempla a compreensão freudiana sobre o trauma e problematiza a eficácia traumática do acontecimento vivido. (ZAVARONI E VIANA, 2015, p. 331) 59 Flavia Gaze Bonfim (org.) Dessa maneira, essas perdas representam pequenos lutos que não necessariamente se tornarão potencialmente traumáticos, considerando que passam por processos contínuos de ressignificação e elaboração quando há uma discriminação adequado do fenômeno ocorrido. O processo de luto é um outro exemplo de morte em vida que se caracteriza por um conjunto de reações diante de uma perda. Falar de perda significa falar de vínculo que se rompe, ou seja, uma parte de si é perdida; por isso, fala-se da morte em vida. (COMBINATO & QUEIROZ, 2006, p. 212) Para Freud (1971), o luto “não implica uma condição patológica” quando superado depois de percorrido um tempo da perda. O luto é uma reação defensiva natural ao processo de perda, perdas em todos os sentidos, simbólica, concreta, material e afetiva. “O processo de luto infantil tem uma duração subjetiva mais extensa, uma vez que sua noção de tempo está se organizando” (PRISZKULNIK, 1992, p. 493). Nota-se que a atual pandemia colocou a criança em contato com situações que são distanciadas da vivência infantil. A partir da metade do século XIX a morte passou a ser algo estranho à condição humana ganhando um teor de interdição, algo que pode ser evitado pela medicina. “A modernidade transferiu a morte do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar de poder.” (ALVES, 2002, p. 16). Nesse sentido, estabelece-se uma romantização da morte, criando termos inadequados para tratar do assunto com crianças, tais como, “virou estrelinha”, “foi morar no céu”, entre outros. Não se falar adequadamente sobre a morte pode gerar consequência na vida adulta. Segundo Paiva (2011, p. 42), “a perda na infância pode tornar a pessoa mais vulnerável e mais propensa a distúrbios afetivos.” Normalmente evitamos que as crianças participem da morte e do morrer, julgando que as estamos protegendo desse mal. Mas é claro que as estamos prejudicando ao privá-las dessa experiência. Ao fazer da morte e do mor60 Leituras Psicanalíticas rer um tabu e ao afastar as crianças das pessoas que estão morrendo ou já morreram, estamos incutindo nelas um medo desnecessário (KÜBLER-ROSS,1996, p. 33) A morte vem à tona diariamente com a situação pandêmica vivenciada desde dezembro de 2019, sem escolher idade, cor, sexo ou qualquer outra característica, acarretando perdas em todos os aspectos e contextos da vida. Como explicar a falta de alimento pela perda do emprego do pai ou da mãe que sustentava a família? Como justificar o afastamento dos coleguinhas da escola? O que dizer da ausência do avô, da avó, do tio, da tia, de tantos outros parentes e conhecidos da vivência da criança? Falar sobre a morte com crianças não significa entrar em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas nem em detalhes assustadores e macabros. Refiro-me a simplesmente colocar o assunto em pauta. Que ele esteja presente, através de textos e imagens, simbolicamente, na vida da criança. Que não seja mais ignorado. Isso nada tem a ver com depressão, morbidez ou falta de esperança. Ao contrário, a morte pode ser vista, e é isso o que ela é, como uma referência concreta e fundamental para a construção do significado da vida. (AZEVEDO, 2003, p. 58). De modo geral, a psicanálise se vale de dois princípios que a norteia: o princípio da iniciativa e o princípio de solidariedade. O princípio de iniciativa é o que cada um pode fazer em relação ao bem público e quanto ao mal-estar na civilização. E o princípio de solidariedade é o que nos faz estar todos no mesmo barco do padecimento de que sofremos atualmente. A psicanálise é um sintoma do mal-estar na civilização desde que ela existe. Enquanto houver mal-estar na civilização, deve existir a psicanálise como uma forma de tratamento do mal-estar do sujeito e da civilização. (FÓRUM DO CAMPO LACANIANO, 2020 p. 13) 61 Flavia Gaze Bonfim (org.) Para a psicanálise, é essencial manter os dispositivos da análise, ou seja, o divã, a livre associação, a transferência do Real para a figura do analista, registro do simbólico. Desse modo, para Freud não era possível fazer análise sem que o analista estivesse presente, ou seja, ele não aceitava realizar análise por carta. Essa condição sine qua non não está ausente na análise durante a pandemia, pois mesmo de forma on-line há o encontro de dois seres, condição necessária para que haja a análise. A clínica psicanalítica com a criança tem suas particularidades, pois existe um sujeito com demandas incongruentes entre ser adulto “naquilo que lhe é antecipado desde o Outro” e ser criança “a partir de sua condição infantil”. (BACKES et al., 2007, p. 301). Backes et al, (2007) aponta ainda para a necessidade do cuidado com o manejo da transferência e do brincar, visto que, para Freud nesses dois aspectos está presente o desejo de ser adulto. “Em relação às indagações da criança a respeito da morte, é importante deixá-la fazer perguntas ou manifestar-se por meio de gestos ou brincadeiras.” (PAIVA, 2011, p. 41). Além dessa possibilidade de liberdade para falar, é possível usar a brincadeira como forma de instrumento para que a criança possa expressar e ressignificar o processo de perdas e luto. Levando em consideração o pensamento winnicottiano: [...] o brincar é o portão de entrada para o inconsciente, sendo este essencialmente criativo e um meio que a criança e o analista encontram como acesso ao inconsciente. O faz-de-conta funciona como estímulo para elaborar a fase de transição das fantasias do mundo interno e subjetivo da criança para o mundo objetivo e externo, sendo muito importante para o desenvolvimento emocional infantil. O aspecto sadio do brincar pode acompanhar o adulto a vida inteira. (SEI & CINTRA, 2013, p. 6) Em relação ao uso da ludicidade no processo de intervenção nas perdas e luto, temos os estudos de Melanie Klein. Segundo Costa 62 Leituras Psicanalíticas (2010), Klein em 1919 “começou a participar das atividades da Sociedade Psicanalítica de Budapeste e, onde, apresentou seu primeiro caso clínico, que versava sobre a análise de seu filho Erich, a quem atribuiu o pseudônimo de Fritz”. (p. 29). Portanto, Melanie Klein fundou a técnica da análise pela atividade lúdica com crianças. Brincar — atividade natural das crianças — foi considerado por ela a expressão simbólica da fantasia inconsciente. Ela afirmou que pelas brincadeiras a criança traduz de modo simbólico suas fantasias, seus desejos e suas experiências vividas. O elemento organizador essencial do pensamento de Melanie Klein é a prevalência da fantasia e dos “objetos internos” sobre as experiências desenvolvidas no contato com a realidade externa. (COSTA, 2010, p. 30) Melanie Klein observa que a criança “ao brincar ela age ao invés de falar” (1981, p.32), ou seja, através da brincadeira a criança tem a possibilidade de representar seus sentimentos que por não possuir um vocabulário abrangente, a depender da idade, não consegue expressar através da linguagem. O significado dado à morte pela criança variará de acordo com alguns fatores. Entre quais o primeiro a ser considerado é a idade ou melhor o momento de seu desenvolvimento psicológico. Os outros fatores são a forma com que, adultos lidam com a perda e a binômia quantidade/qualidade de relação tida pela criança com a pessoa falecida. Assim que a criança tem idade suficiente para estar vinculada, pode ter consciência da possibilidade de perder essa pessoa. O medo da morte é originado no medo de perder a pessoa, amada de romper vínculos. (BROMBERG, 2000, p. 58) Com a pandemia, os processos de luto ocorreram de forma mais intensa e frequente. Na intervenção profissional do manejo do luto cabe reconhecer as particularidades das perdas enfrentadas pela criança que além das expressões físicas e emoções podem também ter 63 Flavia Gaze Bonfim (org.) vivenciado em meio ao isolamento processos de transição de fases – da infância para adolescência – que são consideradas perdas naturais ao longo da sua constituição enquanto sujeito. Nesse contexto, faz-se necessário considerar na intervenção todos os aspectos que contribuem para a possível dificuldade da criança de enfrentar esse luto. “Cada um de nós, em diferentes momentos da vida, tenta de algum jeito conviver com essa ambiguidade, procurando integrar a realidade da morte ao desejo de nunca morrer.” (GUARNIERI, 2010, p. 19). Entende-se por “desejo de nunca morrer” desejo de nunca perder um objeto ou pessoa amada. CONSIDERAÇÕES Este estudo focalizou uma análise sobre a clínica psicanalítica com a criança em situação de perdas e lutos. Além disso, foi possível detectar as particularidades da clínica psicanalítica infantil a partir das recomendações de Melanie Klein e Winnicott. Os mesmos consideram o lúdico um importante instrumento para lidar com situações de crianças que passam pelo processo de perdas e lutos. Outra questão que foi discutida neste estudo diz respeito aos efeitos que a atual pandemia e seus desdobramentos provocaram na relação da criança com esse processo. Desse modo, depreende-se que por ser uma fase da constituição do sujeito que ainda não se tem formada algumas percepções, é notório que a criança foi imposta a viver processos constantes de perdas (a ausência da escola, a falta da brincadeira em grupo, entre outras) e lutos pelas mortes escancaradas que se viveu cotidianamente e até as mortes repetidas de seus familiares. Isto permite argumentar que a clínica psicanalítica atua com criança a partir da brincadeira para que ela possa expressar no agir aquilo que seu vocabulário não lhe permite fazer através da linguagem. Também é possível denotar que a pandemia acarretou consequências em diversos contextos da vida da criança se considerarmos aquilo que fora exposto ao longo do texto, visto que as perdas ocorrem das mais 64 Leituras Psicanalíticas diversas maneiras. Diante disso, supõe-se que durante esse período pandêmico é possível que tenha ocorrido o processo de transição de uma fase para outra na vida das crianças, tal como a passagem da vida infantil para a adolescência que é considerada pelos autores apresentados neste estudo como mortes em vida. Por fim, conclui-se que a atual pandemia ocasionou muitos rompimentos para a vida das crianças como mortes simbólicas, concretas, afetivas, entre outras e em contrapartida apresentou grandes desafios para a psicanálise, colocando-a diante de uma nova possibilidade de atendimento que talvez em tempos das práticas de Freud não fosse possível devido suas considerações a respeito dos elementos necessários para a análise, tendo como o mais importante a presença física de ambos os envolvidos na análise. REFERÊNCIAS ALVES, R. O médico. Campinas, SP: Papirus, 2002. AZEVEDO, R. Contos de Enganar a Morte. São Paulo: Ática, 2003. BACKES, C.et al. A clínica psicanalítica na contemporaneidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2007. Edição do Kindle. BROMBERG, M. H. P. F. A psicoterapia em situações de perdas e lutos. Campinas- SP. Editora livro pleno, 1° tiragem – 2000. COSTA, T. Psicanálise com crianças — 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. COMBINATO, D. S., & QUEIROZ, M. de S. Morte: Uma Visão Psicossocial. Estudos de Psicologia, 11, n. 2, p. 209-216, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/ PfSWjx6JP7NQBWhcMBXmnyq/abstract/?lang=pt. Acesso em: 04 mar. 2022. CREPALDI, M. A. et al. Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 37, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/LRmfcnxMXwrbCtWSxJKwBkm/?format=html. Acesso em: 02 mar. 2022. FRANCO, M.H.P e POLIDO, K.K. Atendimento psicoterapêutico no luto; coordenação Isabel Cristina Gomes. - 1. ed. – São Paulo: Zagodoni; 2014. FREUD, S. Luto e melancolia (Freud Essencial). Lebooks Editora. Edição do Kindle, 1971. GUARNIERI, M. C. M. Do fim ao começo: falando sobre perdas e luto. (Coleção adolescer), 2. ed., São Paulo: Paulista, 2010. 65 Flavia Gaze Bonfim (org.) HOMEM, M. Lupa da alma (Coleção 2020) São Paulo: Todavia Ed. Edição do Kindle, 2020. KAHN, M. Freud básico: pensamentos psicanalíticos para o século XXI. Tradução de Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. KLEIN, M. Psicanálise da criança. 3. ed., São Paulo: Mestre Jou. 1981. KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1992. KOVÁCS, M. J Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora, 2021. KÜBLER-ROSS, E. Morte — Estágio final da evolução. 2ª ed. Trad. A. M. Coelho. Rio de Janeiro: Record, 1996. MINISTÉRIO DA SAÚDE, M. S. (2022). Painel Coronavírus. Coronavírus Brasil. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 28 fev. 2022. MIYAZAKI, M. e TEODORO, M. São muitos os lutos na situação da Covid-19. In: Grupo de Trabalho (GT) de enfrentamento da Pandemia SBP COVID-19, tópico 6. 2020. Disponível em: http://www.sbponline.org.br/enfrentamentocovid19. Acesso em: 03 mar. 2022. PAIVA, L. E. A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2011. PSICANÁLISE E PANDEMIA. Organizado por Fórum do Campo Lacaniano – MSSão Paulo: Aller Editora. Edição do Kindle, 2020. PRISZKULNIK, L. Criança diante da morte. Pediatria Moderna, v. 28, n. 6, p. 490-496, 1992. SEI, M. B, & M. F. V. Psicanálise de crianças: histórico e reflexões atuais Revista da Universidade Ibirapuera. São Paulo, v. 5, p. 1-8, jan/jun. 2013. Disponível em: https://www. ibirapuera.br/seer/index.php/rev/article/view/27. Acesso em: 28 fev. 2022. VENDRUSCOLO J. Visão da criança sobre a morte. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; v. 38, n. 1, p. 26-33. Resumo: Modelo de Estudo: Relato de casos. Disponível em: https://www. revistas.usp.br/rmrp/article/view/420. Acesso em: 02 mar. 2022. VIOLA, T. W.; SCHIAVON, B. K.; RENNER, A. M.; OLIVEIRA, R. Trauma complexo e suas implicações diagnósticas. Revista de psiquiatria do Rio Grande do Sul. v. 33 n.1 55-62, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rprs/a/z7vqbpPRD8ZPwsX9MKp6KJw/?lang=pt. Acesso: 01. mar. 2022. VIORST, J. Perdas necessárias. [Tradução Aulyde Soares Rodrigues]. - 4. ed. - São Paulo: Editora Melhoramentos. 2005. ZAVARONI, D. M. L; VIANA, T. C. Trauma e infância: considerações sobre a vivência de situações potencialmente traumáticas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 31, n. 3, p. 331-338, jul./set. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01037722015000300331&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03 mar. 2022 66 SE ESSA RUA FOSSE MINHA: DO LUGAR DE OBJETO À TRILHA DO DESEJO Ana Carolina Nunes Vianna14 Simone Ravizzini15 Ana Lúcia C. Garcia de Freitas16 INTRODUÇÃO É preciso um esforço de elaboração psíquica para que a criança saia da posição de objeto, operando a separação decisiva para saber o que se é para além do Outro, este enquanto lugar simbólico que, anterior e exterior ao sujeito, o determina. Saber de si. Nessa perspectiva pretende-se, com este trabalho, fazer uma reflexão sobre a direção do tratamento analítico com crianças e como ajudá-las a sair de uma posição alienada, destino inevitável ao ser que entra no campo da linguagem, possibilitando o encontro com a sua verdade (sempre parcial), a fim de se colocar na vida segundo o seu desejo. Passaremos a estudar as operações da alienação e da separação, concernentes à constituição do sujeito, tal como caracterizadas pela psicanálise lacaniana, entendendo-se a primeira como um processo essencial à constituição do ser falante, quando o Outro, geralmente representado pela figura materna, ensina-lhe a servir-se de uma linguagem que o precede, enquanto a separação aponta para um processo de descolamento do Outro, em que o sujeito se coloca no mundo como faltoso e, portanto, desejante. A entrada de uma criança na escola suscita esses processos psíquicos de alienação e separação, na medida em que aquela, neste Especialista em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade (UNILASALLE). Psicanalista. Advogada. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1143-7921 15 Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079 16 Mestrado em Psicologia Clínica (PUC-RJ). Docente (FAMATH). Psicanalista. Membro Aderente da EBP-Rio. CV: http://lattes.cnpq.br/8827838892813072 14 67 Leituras Psicanalíticas momento, é convocada a ampliar as redes simbólicas de trocas, com sua inserção em um Outro social diferente da sua família. O QUE FALA O TEMPO DA INFÂNCIA De acordo com Lacan (1960/1998), em seu texto “Posição do Inconsciente”, o movimento da alienação é intrínseco à entrada do sujeito no campo do Outro, quando se vê uma condição de dependência em relação aos significantes que vêm do Outro, aos quais se enlaça para entrar no circuito da linguagem. Desta forma, a criança é convocada a ingressar na rede simbólica de trocas, momento inaugural do sujeito barrado. O sujeito, assim, é causado pelo Outro enquanto tesouro dos significantes, que preexiste ao seu nascimento. É este oferecimento dos primeiros significantes, geralmente pelo agente materno, que implica na alienação ao Outro, fundamental à constituição do sujeito. À luz da Psicanálise, significante é o apoio material, o som, que conduz à produção de sentido e às significações. Lacan (1964/2008) ressalta ainda que o significante está sempre remetido a outro significante e é nesta cadeia de significantes que o sentido insiste, emergindo destes intervalos. Para entrar em cena a segunda operação que marca a constituição do sujeito é necessário um querer, requer a vontade de se separar do lugar de ser objeto do Outro, comumente representado pela mãe. A separação se perfaz em ato, quando se percebe que o Outro é faltoso, ou seja, a criança descobre que não satisfaz o desejo da mãe por completo, pois esta deseja para além do filho, viabilizando para a criança a abertura de uma pergunta sobre o próprio desejo. Mas, ao se deparar com a falta no Outro, a criança também se encontra com a sua falta-a-ser e esta equação resulta em um resto, que precisa ser elaborado para não fazer presença como dejeto. Este resíduo, produto do encontro com a falta, que nos constitui, tal como explica Freud, está no domínio do enigmático, pois a palavra não dá conta de traduzi-lo. Será preciso trabalhar com o que 68 Flavia Gaze Bonfim (org.) fica como enigma para que a criança possa dar um destino melhor ao resto, tornando-a capaz de fazer escolhas e de assumir uma posição desejante na vida. Nosso destino enquanto ser humano é estarmos submetidos à linguagem, e esta, enquanto código coletivo, traz consigo uma lei do código, à qual é preciso consentir para que haja a entrada na linguagem e, por conseguinte, na cultura. Ao nascer, o sujeito é estruturalmente desamparado, ainda não banhado pela linguagem e quando recebe o alimento do Outro, é marcado pela primeira experiência de satisfação, que deixa um traço mnêmico e instaura o S1. Este é o significante mestre, irrepresentável isoladamente, estando sempre situado em referência a S2, o qual é um significante denominado saber do Outro, que comporta todos os significantes que vêm após S1, em linha de substituição infinita. A dificuldade de lidar com o resto que fica do encontro com a falta aparece na forma de sintoma, que “se define, nesse contexto, como representante da verdade” (LACAN, 1969/2003, p. 369). Nesse viés, Lacan (1969/2003) pontua a existência de duas maneiras de a criança expressar o que existe de sintomático na estrutura familiar, seja como sintoma do casal parental ou como objeto da fantasia materna, quando a criança faz parceria de gozo com a mãe. Quando Lacan (1969/2003) estabelece como modalidade de resposta da criança, que o seu sintoma ocupe o lugar do sintoma do casal parental, ele coloca o sintoma da criança como representante da verdade da estrutura familiar. Entretanto, como a verdade nunca pode ser toda dita, então a criança revela alguma coisa que não vai bem na parceria amorosa, algo que de tão íntimo, a eles escapa e nunca poderá ser completamente decifrado. Outra possibilidade de resposta é vista quando o sintoma da criança está atrelado à fantasia materna, hipótese em que o manejo clínico encontra menor margem de articulação. Isso porque é mais difícil barrar a parceria de gozo com a mãe, gozo enquanto prazer não-sem sofrimento, pois a criança está no lugar de 69 Leituras Psicanalíticas objeto da fantasia materna, sem ou com pouca mediação entre os corpos, que precisam descolar para que a operação da separação advenha. É na brincadeira que a criança expõe a sua posição psíquica e a sua verdade, através do recorte que ela opera sobre o mundo. Transforma a passividade de uma vivência que a afetou em atividade, tal como no exemplo trabalhado por Freud, no jogo do Fort-Da (FREUD, 1920/2020), quando observou por algumas semanas o seu neto de um ano e meio que, embora bastante ligado à mãe, não chorava quando esta se ausentava por várias horas, mantendo uma atitude passiva, em aparente conformidade. Ocorre que este menino passou a apresentar o hábito de arremessar objetos, dentre eles um carretel sobre o qual estava enrolado um fio. Era o jogo de fazer desaparecer e aparecer que estava sendo realizado pela criança, agora em uma posição nitidamente ativa. Ao atirar o carretel, ela produzia um som prolongado [o-o-o-o], que significava “fort” (desaparecer) e quando o puxava de volta, emitia o prazeroso “da” (está aqui), em uma alternância de significantes. Encenava, dessa forma, as partidas e chegadas da mãe, obtendo prazer ao controlar o objeto ausente, desatrelando-se dos caprichos do Outro. Neste caso, a criança tentava simbolizar a ausência e a presença da mãe, em um jogo de substituição no qual se vê um deslocamento pulsional da posição passiva para a de “senhor da situação”. Assim, através do brincar a criança elabora a sua posição subjetiva, deixando escapar um dizer. Contribui para a essencial tarefa de sair do lugar de objeto do desejo do Outro para ascender como sujeito desejante. Dessa forma, é no brincar que ela poderá construir significações para o que experimentou, encontrando a sua forma singular de ser no mundo, distante do capricho materno ou da, por vezes complexa, relação do casal familiar. O ato de brincar é a principal expressão, portanto, do tempo da infância, quando a criança transforma em brincadeira aquilo que ela colheu do mundo – o barulho do mar ou de um grito que a assusta, um olhar ainda difícil de compreender, uma pedra rolando ao encon70 Flavia Gaze Bonfim (org.) tro de um rio, uma folha avermelhada caída no chão – são estes os fios com os quais ela vai tecendo a ficção que a sustentará ao longo da vida. Sobre o tempo da infância, o escritor moçambicano Mia Couto (2007/2009, p. 55) escreveu: A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo. A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós. Portanto, é na medida em que a criança se ocupa da brincadeira, não como o oposto da seriedade, mas da realidade, como nos ensina Freud (1908/2015) no texto “O Escritor e a Fantasia”, que ela poderá construir um singular arranjo para as suas vivências, levando bastante a sério o investimento de afeto dirigido ao brincar. COMPOSITOR DE DESTINOS: OS TEMPOS NÃO CRONOLÓGICOS DO COMPLEXO DE ÉDIPO Em seus seminários, Lacan (1971/2009) recorre por diversas vezes ao dito “no começo, era o verbo” (p. 45). Para que a criança possa se constituir como sujeito desejante, é preciso que ela renuncie ao lugar de objeto do desejo materno, desatrelando-se do Outro, o que demanda um esforço de elaboração psíquica, um agir. Desde que haja a lei, o sujeito se divide em um antes e um depois. Nos capítulos X e XI de O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente, Lacan (1958-59/1999) nos ensina sobre essa operação estrutural simbólica da lei a partir da sua leitura sobre os três tempos do Édipo e a sua importância para a constituição do sujeito. Este é dividido pelo mundo simbólico, sendo 71 Leituras Psicanalíticas assujeitado mais do que sujeito, fase em que estamos diante do “pai velado”, correspondente ao primeiro tempo do complexo de Édipo. Este tempo versa sobre a relação entre a mãe e a criança, encontrando-se o bebê em uma relação especular, alienado ao desejo materno. Em seguida, passa-se ao “pai privador”, que irá barrar a mãe de incorporar o filho como objeto do seu gozo, ao mesmo tempo em que a convoca ao lugar de ser causa do seu desejo. O pai como privador vai desvelar a divisão entre mãe e mulher, apontando a castração materna, para que ela consiga desviar o seu olhar para além do filho, permitindo que ela possa desejar em outros campos. Após se inscrever que a mãe é não-toda, isto é, que ela deseja algo para além da criança, entra em cena, no terceiro tempo, o “pai revelado”, que se apresenta como a lei e não mais submetido à palavra materna. No campo da psicanálise com crianças, é possível concluir um diagnóstico diferencial tal como em outras fases da vida? Como sujeito em constituição, a criança ainda não passou por todos os desdobramentos do Complexo de Édipo, não se sabendo como irá se posicionar em relação ao Nome-do-Pai, tampouco de que modo vai gerir o seu desejo. Dessa forma, ao invés da direção do tratamento com crianças ser pautada, de início, em determinado diagnóstico, que poderia engessá-las em uma posição, é preciso que o analista se lembre da plasticidade psíquica da criança e se atente para a forma como a amarração dos três registros vem sendo feita, o que se apresenta através do discurso e da linguagem corporal. Portanto, ao escutar a particularidade subjetiva da criança, seu tempo lógico e cronológico, pode ser interessante que o diagnóstico estrutural seja deixado em aberto ou como um indicador para o tratamento, que é sempre movido pela insistência na demanda de análise, baseada na ética do um-a-um. É a metáfora paterna que introduz uma certa mediação para a criança, consistente em uma operação lógica do Nome-do-Pai através do discurso da mãe. Ou seja, a função paterna é inicialmente introduzida pelo discurso da mãe, que inclui o pai, enquanto significante que barra 72 Flavia Gaze Bonfim (org.) a mãe, na vida da criança e o autoriza. Lugar simbólico por excelência será essa função, que dará à criança a possibilidade de se separar do Outro materno, ao mesmo tempo em que perfaz o operador simbólico do falo. O falo é o significante da falta, simbolizando a perda, aquilo que não está lá. E o que não está lá? O objeto perdido, para Freud; o objeto a, causa de desejo, para Lacan. O significante falo implica a presença de uma ausência, ele vela, ao mesmo tempo que desvela... (re)vela. A posição alienada pode ser vista em casos de angústia de separação, sendo um exemplo contemporâneo o retorno às atividades escolares durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, em que algumas crianças, demasiadamente enlaçadas à figura dos pais, depararam-se com a angústia que o real suscita, exigindo a realização de um trabalho psíquico que pode se servir da brincadeira do Ford-Da. Através do brincar a criança poderá encontrar uma forma de lidar com o real que apareceu de forma maciça durante a pandemia, propiciando uma elaboração simbólica sobre a falta, que se torna menos enigmática quando a criança assume as rédeas da situação, possibilitando a emergência do sujeito, diante de uma cena agora reinventada. Após situarmos as nuances que permeiam a constituição do sujeito e o movimento que a criança precisa realizar para se assenhorar do próprio corpo, renunciando ao lugar de objeto de desejo do Outro, passa-se a investigar sobre o afeto da angústia, a fim de recortar a sua incidência no campo do retorno às aulas presenciais durante o cenário pandêmico provocado pelo novo Coronavírus (COVID-19). O QUE CHORA A CRIANÇA AO ENTRAR PARA A ESCOLA? Freud estabeleceu ao longo da sua obra, três concepções sobre a angústia. A primeira é a impossibilidade de se traduzir a emoção em palavras. Nessa época, Freud pensava que o excesso ou o acúmulo de excitação seria causador da angústia. No texto “Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada neu73 Leituras Psicanalíticas rose de angústia” (FREUD, 1894-95), ele descreve com riqueza de detalhe clínica vários sintomas relacionados à neurose de angústia, a exemplo da irritabilidade geral; expectativa angustiante; distúrbios da atividade cardíaca; distúrbios respiratórios; ataques de suor; tremores e calafrios; fome devoradora; e vertigem. A segunda concepção de Freud é que é o recalque que funda a angústia. Diante das consequências traumáticas na vida do sujeito, diante da insuportabilidade do excesso ruidoso de ideias da neurose obsessiva ou da conversão somática na histeria, o mecanismo de defesa agiria recalcando o material desprazeroso para o inconsciente. Do retorno do recalcado surgiria a angústia. Porém, a terceira e última teoria sobre a angústia, que podemos encontrar em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud (1926/2014) vai inverter esta lógica para dizer que é a angústia que funda o recalque e não o contrário. Se a angústia é sinal, ela é sinal de uma falta ou de uma presença ausente, por isso ela não engana (LACAN, 1962-63/2005). É um índice de que algo em nossa fantasia vacilou. Portanto, o que é que engana na angústia? É a localização do objeto, que o sujeito sente no corpo, mas ela está em outro lugar: $ <> a. No grafo do desejo, encontra-se esta fórmula da fantasia, na articulação direta com o desejo do Outro e a pergunta que daí se extrai: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu? É assim que Lacan define que o desejo do homem é o desejo do Outro. A angústia está aí como enigma do desejo do Outro, irrompendo quando o lugar que supomos ter no desejo do Outro sai de cena. Na clínica cotidiana, deparamo-nos com os impasses e os enigmas do sujeito frente à sua vida. Diante de um afeto e, para Lacan, a angústia é da ordem do afeto, o sujeito não sabe o que fazer com o seu desejo. A análise põe o sujeito a dizer sobre o seu desejo, a dizer de um impossível de se dizer. É deste impasse que surge a angústia, pelo sujeito não conseguir dizer sobre o seu desejo. Nesse sentido, junto à angústia, surge um estranhamento, como algo familiar que, em algum 74 Flavia Gaze Bonfim (org.) momento, traz um infamiliar. E como a angústia não é sem objeto, este é o próprio objeto a, que deixa o sujeito sem saber dizer de si próprio. No tratamento com crianças, o efeito da angústia é sentido mais diretamente pela precariedade do simbólico em tenra idade. Lacan (1962-63/2005, p. 64) ressalta que A angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que devemos conceber num nível duplicado, por ser a falta de apoio dada pela falta (...) A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença. O que há de mais angustiante para a criança é, justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta. Será a partir da brincadeira que a criança poderá colocar a angústia a trabalho, ou seja, a angústia que o real suscita precisará se converter em uma cena marcada pela fantasia, quando a criança poderá fantasiar que detém o controle dos acontecimentos, a fim de ir se instaurando uma separação entre o eu e o Outro, em um processo de elaboração simbólica que conduza à possibilidade da ausência. No mês de março de 2020, a COVID-19, que apresentou os primeiros casos no final do ano de 2019 na República Popular da China, foi caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma pandemia, uma vez que se alastrou por vários países e regiões do mundo. Diante deste cenário, buscou-se medidas visando prevenir e reduzir a propagação do vírus, dentre elas o isolamento social. Escolas, universidades, estabelecimentos comerciais e grandes empresas se esvaziaram, passando todos a se relacionarem remotamente. Uma reinvenção do modo de viver. No aspecto pertinente a este trabalho, cabe observar uma consequência provocada em parte das crianças, após passarem longo período restritas à convivência de seus genitores e familiares próximos: a expressiva dificuldade de se separarem do seu núcleo familiar. 75 Leituras Psicanalíticas Com a reabertura gradual da vida extramuros, o retorno das crianças à escola foi experimentado em uma diversidade de apreensões por todos que integram o universo escolar – escola, família, alunos. Por parte das crianças, observamos uma intensificação no laço com a família, trazendo efeitos como a angústia de separar-se e dificuldades em inserir-se no laço social escolar. As escolas tiveram papel de destaque neste processo, recebendo crianças, adolescentes e profissionais de educação com as medidas de segurança recomendadas, recolocando-os neste valioso espaço de aprendizagem. Mas o que faz chorar a criança ao entrar para a escola? O que ela sente perder? É preciso deixar claro que a dificuldade de adaptação de algumas crianças ao ingressar na vida escolar não é, em si, uma novidade, entretanto, o excessivo enlaçamento aos pais provocado pela situação de isolamento contribuiu para agravar o sentimento de angústia em alguns casos. Além disso, é preciso que nos perguntemos até que ponto a insegurança dos pais e da escola diante da reabertura dos estabelecimentos de ensino geraram reflexos negativos nessas crianças mais acometidas pelo distanciamento, uma vez que os medos e incertezas estavam para todos. É importante que as famílias de fato autorizem a entrada dos seus filhos, especialmente os pequenos, e para isso o acolhimento realizado pela escola também faz diferença, pois o conforto dos pais muitas vezes advém da possibilidade de haver uma mediação nesta entrada, com o corpo físico dentro do ambiente escolar e o contato direto com o professor. Se é verdade que as famílias tentam proteger suas crianças das dores, havendo um ideal contemporâneo de subtraí-las do conhecimento de situações desconfortáveis ou difíceis, a fim de não as traumatizar, também se evidencia que esta prática retira da criança a potencialidade de elaboração psíquica, deixando-as sem recursos simbólicos para os enfrentamentos que a vida nos traz. Dessa forma, transmitir a informação sobre o cenário da pandemia à criança, de modo proporcional 76 Flavia Gaze Bonfim (org.) à idade, as convoca ao trabalho, a um tempo de compreender que poderá ajudá-la a arrefecer o sofrimento emergente daquele momento. No texto “Nota sobre a criança”, Lacan (1969/2003) concentra em poucas linhas a base teórica do seu ensino sobre o tratamento psicanalítico com crianças. Dele se extrai a importância da elaboração, pela criança, do encontro com a diferença sexual, com a castração, com o real, que deixam um resto, transmitido pela família conjugal. A análise contribui para a construção do lugar desse real impossível de ser colocado em palavras, real como marca que o simbólico não dá conta de eliminar. Diante da dificuldade de dizer sobre este resíduo, pode emergir o sintoma, como representante da verdade, a qual tem estrutura de ficção, somente podendo ser semi-dita dentro do universo simbólico de cada sujeito. Na análise com crianças, o real está muito presente pela prematuração do simbólico. A constituição da verdade vai sendo forjada à medida que o simbólico vai ganhando consistência imaginária através do brincar e do que disso escapa do seu jogo com o mundo. De início, ela pensa que o Outro sabe tudo sobre ela, mas conforme o tempo passa, a criança vai constituindo a sua própria verdade. São pedaços de verdade, mas que ela crê ser toda a verdade. Essa crença na verdade é a constituição própria do seu sintoma. Em O Ego e o Id, Freud (1923/2011) compreendeu que o eu no qual o sintoma se aloja é a projeção de uma superfície do corpo. Assim é que a criança supõe que ela é toda no desejo do casal parental, quando, o que de fato acontece, é que há sempre a falta-a-ser em relação ao desejo. Nesse sentido, ela é não-toda também para os pais, o que a livra do aprisionamento alienante. CONSIDERAÇÕES A relação da criança com o mundo é de espanto e surpresa a cada dia. Todos os dias ela se surpreende com o que chega do mundo exterior e surpreende os que estão ao seu redor com suas imprevisíveis respostas. É essa imprevisibilidade que muitas vezes os pais erronea77 Leituras Psicanalíticas mente tentam conter, mas a dimensão do imprevisto é fundamental para indicar que a vida não é toda apreensível pela linguagem. O que escapa é também sintoma, que tem sua cota de imprevisibilidade e outra de monotonia de gozo. Ou seja, aquilo que não se submete à lei ou ao desejo. Aquilo que, como resto, é da ordem da compulsão à repetição. Se a repetição é da ordem da diferença, é neste ponto de gozo que uma certa improvisação deve acontecer para barrá-lo. A improvisação, do lado da escola, tem a ver com o saber fazer com o imprevisto, no sentido de que o professor tenha a sensibilidade de usar o inesperado para se aproximar da criança, inventando brincadeiras, acolhendo um objeto transicional, de modo a ajudá-la no processo de renúncia da própria casa. Já do lado da criança, é preciso que os pais ousem improvisar quando lhes faltam um saber, abrindo os trilhos para o filho seguir com as cores por ele escolhidas. O corriqueiro apelo dos pais a um saber outro, que lhes é entregue sem as marcas do ambiente familiar, como por exemplo oriundo dos meios digitais, dificulta a transmissão de subjetividade, que é uma função da família. Não há como não desafinar entre aquilo que se fala e o que se escuta, na relação mãe e criança, embora o que essa mãe fala seja único e é isso que Jean-Michel Vives (2016) chama de “sonata materna”. Essa modulação de voz é transmitida para além da linguagem e retira o bebê da situação de desamparo em que nasce. Essa transmissão permite que o filho possa improvisar quando é surpreendido, diante de um não saber, favorecendo o movimento da separação, a fim de que a criança possa construir seu próprio estilo. Tomemos a palavra de Vives (2016, p. 2-3): Para dar uma interpretação e, portanto, poder responder de uma maneira “suficientemente boa” às manifestações frequentemente enigmáticas do infans, a mãe deve improvisar, no sentido musical do termo que acabamos de dar. Quer dizer que a resposta, proposta pelo ambiente materno, não tem a ver com o imprevisto, mas repousa sobre a relação que ele entretém com a língua 78 Flavia Gaze Bonfim (org.) e a lei, como na música o improvisador se executa em função de regras musicais interiorizadas. Apenas um ambiente capaz de improvisar, quer dizer, de reinventar com e para o infans o dom da fala, pode introduzir a criança na ordem simbólica, nas leis da linguagem, sem que esta lei não seja uma lei louca. Isto supõe que o ambiente da criança seja não somente apto a ouvir um grito e a interpretá-lo como demanda, mas que possa trazer aí uma resposta singular na qual pode-se ler surpresa e prazer (...) é o interesse que a criança dirige ao timbre materno, ao grão da sua voz, que a conduz a se alienar na linguagem. Este é o macete: atraída pela isca (aqui a vocalização materna), a criança morde no anzol da linguagem e ei-la fisgada. Talvez, a infância seja a fase em que estamos mais disponíveis para nos surpreendermos e receber como “herança” a possibilidade de criar com o que não se sabe, abre um imenso repertório para a criança elaborar as suas respostas com maior leveza, imprimindo a sua nota frente às vicissitudes da vida. Neste aspecto, é importante, também, que a escola possa ser este espaço para o despertar da curiosidade, tanto no que oferece, quanto na abertura para receber uma surpresa vinda de um aluno, abraçando o processo de entrada de cada criança neste outro laço social: o ambiente escolar. Desse modo, pode-se apreender que por meio do empenho psíquico realizado pela criança na brincadeira, ela arranja o mundo à sua forma, de modo a obter alguma satisfação ao se apropriar das realidades da vida. É assim que ela poderá ir se separando das amarras do Outro, indispensável para a entrada na linguagem e saída da situação de desamparo fundamental em que nascemos, para entrar em uma trilha na qual o seu desejo não cesse de insistir. 79 Leituras Psicanalíticas REFERÊNCIAS COUTO, Mia. E se Obama fosse africano: Quebrar armadilhas. (2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. FREUD, Sigmund. Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada neurose de angústia. (1894-95). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976. FREUD, Sigmund. O Escritor e a Fantasia. (1908). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. (1920). Belo Horizonte: Autêntica, 2020. FREUD, Sigmund. O ego e o id. (1923). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos. (1926). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente. (1957-58). Rio de Janeiro, Zahar, 1999. LACAN, Jacques. Posição do Inconsciente. (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 10: A angústia. (1962-63). Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008. LACAN, Jacques. Notas sobre a criança. (1969). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 18: De um discurso que não fosse semblante. (1971). Rio de Janeiro: Zahar, 2009. VIVES, Jean-Michel. A improvisação materna. São Paulo: Biblioteca Virtual do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, 2016. 80 LUTO: ASSUNTO DE FAMÍLIA OU DE DOMÍNIO PÚBLICO? Danuza Effegem de Souza17 Giselle Falbo Kosovski18 Na hora de por a mesa, éramos cinco: O meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha irmã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na hora de por a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho, mas irão estar sempre aqui. na hora de por a mesa, seremos sempre cinco. Enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco. José Luís Peixoto Tempos de crise como guerras e pandemias são dotados de uma dimensão paradoxal de destruição e criação que deixa marcas na história: devastam o mundo, mas desencadeiam expressivo desenvolvimento, também. O caos que provocam funciona como motor de criação e reformulação das formas de viver e explorar o mundo, deixando entre os destroços também preciosidades que o saber humano pode produzir, tanto nas técnicas quanto nas áreas humanas. Desde 2019, o mundo invadido pela contaminação incontrolável pelo Novo 17 18 Doutoranda em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/5231853178177141 Doutora em Psicologia. Professora (UFF). 81 Leituras Psicanalíticas Coronavírus entrou numa outra frequência em busca de produção de tecnologia e ciência que dê conta do controle, tratamento e prevenção dessa infecção cujas consequências já contabilizam quase 6 milhões de mortes em todo o globo. As ciências humanas também vêm marchando num intenso novo ritmo, dedicadas ao trabalho de catalogar e historicizar as marcas dessa nova realidade sobre as vidas e a subjetividade. A psicologia, ciência jovem, assim reconhecida no final do século XIX, abraça um imenso desafio na área do cuidado, administrando o sofrimento e o desamparo que as duras estatísticas, se não deixam mentir, tampouco encerram em seus cálculos e gráficos. Livros e artigos produzidos com urgência analisam e documentam os desafios impostos, os quais sacolejam as teorias da subjetividade, colocando-as à prova do “terremoto” que fez estremecer as certezas de um mundo que nos parecia presumido e previsível. A psicanálise, método de pesquisa e tratamento fundado por Sigmund Freud no século XIX, contribuindo com seus fundamentos para uma escuta da subjetividade e do inconsciente em diversos espaços em nossa sociedade, também experiencia uma certa crise, primeiramente em sua práxis, dadas as limitações impostas pelos protocolos de segurança e distanciamento social, assim como em sua produção teórica, abrindo-se cada vez mais para a interlocução com a política. Intenso exercício de leitura e debate, à luz do que chega ao psicanalista pela clínica e pela cultura, animam esse campo que já se orienta no sentido de acolher de cada época seu mal-estar; afinal, estar à altura da subjetividade de sua época é a exigência feita por Lacan aos psicanalistas. Com o crescimento radical dos índices de óbitos, a morte – questão crucial para a humanidade e indissociável do mal-estar na cultura, mas atenuada por um mecanismo de negação que rouba da consciência o “terror da morte”, termo proposto por Ernest Becker –, veio para o primeiro plano da clínica, com nuances desconhecidas e muitos tons de desamparo. 82 Flavia Gaze Bonfim (org.) Esse contexto nos levou a reconhecer a prevalência e grande importância do texto de Freud para a leitura teórica do processo de elaboração de perdas, que ele chamou de trabalho de luto. Lacan, ao resgatar a pergunta de Freud sobre a dinâmica desse trabalho, indica que “a questão permanece num estado vago, o que explica a interrupção de toda especulação numa via não obstante aberta por Freud em “Luto e Melancolia” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 360). Apesar desse apontamento, ainda hoje constatamos que “Luto e Melancolia” (1915) permaneceu, em certa medida, um escrito solitário, pouco articulado aos avanços e reformulações que a psicanálise agregou, permanecendo aquém do ponto crítico de virada na teoria freudiana com a introdução da segunda tópica em Além do Princípio do Prazer (1920). Esse descompasso nos desperta para uma releitura do luto articulada também à complexa dimensão política que permeia a clínica e a experiência do sujeito contemporâneo. É possível que, por ser um texto essencialmente metapsicológico, este escrito freudiano restrinja-se ao aspecto mais privado do luto ao colocar o acento na relação particular do sujeito enlutado com o seu objeto perdido. Por esta razão, tal abordagem pode ser lida em certos aspectos, conforme pontuam alguns críticos como Jean Allouch, como individualizante. Opondo-se à Freud, o autor afirma que o luto não é um problema de casal entre o sujeito e o seu objeto perdido, destacando que o texto “não se pronuncia sobre a função do público no luto” (ALLOUCH, 2004, p. 48). Essa impressão é relevante, tendo em vista que o modelo freudiano do luto deixa vacante a dimensão do laço social, também muito cara à psicanálise. Contudo, é compreensível, considerando a natureza do texto, que o recorte freudiano contemple o esforço de interrogar e descrever os processos mentais inconscientes, objetivo maior do autor naquele momento crucial de sua teorização. 83 Leituras Psicanalíticas O LUTO NA METAPSICOLOGIA FREUDIANA “Luto e Melancolia” faz parte de um pequeno conjunto de artigos dedicados a estabelecer as bases do saber psicanalítico acerca dos processos psíquicos inconscientes. Seu lugar na obra de Freud indica o potencial que a experiência de perda tem de mobilizar (ou imobilizar pelo mecanismo de inibição que a caracteriza) a dinâmica dos processos subjetivos mentais, tangenciando momentos estruturais da constituição e demandando uma atenção a esse processo, ainda que Freud o tenha descrito como normal e finito, sem necessidade de intervenção clínica. As considerações feitas nesse texto sobre o afeto do luto e o mecanismo de elaboração da perda precisam ser olhadas como coadjuvantes em um trabalho que centralizava a melancolia – quadro psiquiátrico – como objeto de estudo. Assim, “Luto e Melancolia” parece ter alcançado um destino diferente do que Freud inicialmente pretendera: “uma reflexão, a partir dos métodos de pesquisa disponíveis à época, sem pretensão de alcançar conclusões gerais” (FREUD, 1915, p. 249). Todavia, seu valor testemunha a importância de observar a linha de raciocínio preservada por Freud em sua obra, que abraça torções, desvios e reformulações, e ainda a refinada sensibilidade do autor na aproximação do que se passa na vivência ordinária da perda com o quadro da melancolia. Um aspecto metodológico a ser observado é que o autor recorre à comparação como método neste trabalho, assim como em outros momentos, pois Freud acreditava que processos patológicos poderiam lançar luz sobre processos normais, ajudando em sua compreensão. Como exemplo podemos citar a relação estabelecida a partir da parafrenia, tomada como paradigma em “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914) para explicar o narcisismo. Entretanto, há uma distinção no que diz respeito ao modo como a comparação opera em “Luto e Melancolia”, escrito no ano seguinte. Nesta ocasião, para pensar o quadro patológico, Freud toma como referência o processo do luto, considerado normal, para conquistar a melancolia. Nesta abordagem ele parte das considerações do senso comum em direção 84 Flavia Gaze Bonfim (org.) a uma certa generalização na construção de um saber sobre o luto, ao se colocar em consonância com a concepção amplamente aceita de que “o luto é uma reação universal a uma perda, tendo ocorrido ao longo de toda a história e em diferentes culturas” (FRANCO,2021, p. 54). Sobre este aspecto Freud afirmou: É fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, é só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica. (FREUD, 1915, p. 250) O ponto convergente entre os dois estados – melancolia e luto – é precisamente o afastamento da atitude normal para com a vida e a perda de interesse por tudo o que não esteja ligado ao objeto perdido, suas memórias e lembranças. Deste modo, é bastante nítida a intenção de aproximação estabelecida entre o estado patológico observado na melancolia da atitude que pode ser observada no sujeito enlutado – devotado ao objeto perdido e desligado de sua relação com o mundo externo. Ainda assim, o texto encaminha o leitor a um questionamento quanto a uma possível continuidade entre o luto, reação esperada à perda, e a melancolia, pensada como quadro patológico. O traço diferencial estabelecido, e demarcado por Freud como ausente no luto e sempre presente na melancolia, é a perturbação da autoestima. Não obstante, ele vai além nessa distinção, chegando a sugerir que a melancolia estaria relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, enquanto no luto, “nada haveria de inconsciente a respeito da perda” (ibid, p. 250). Consideramos que essa leitura de Freud é consonante com o momento de sua teorização anterior à introdução do conceito de pulsão de morte e da formulação sobre a segunda tópica, quando sua aposta ainda estava centrada na interpretação e na emergência do material recalcado como alvo da cura 85 Leituras Psicanalíticas psicanalítica – o recalcamento estava associado a processos patológicos e a análise buscava o desvelamento do material inconsciente. Esta formulação de Freud pode abrir para a interpretação de que, na perda em jogo no luto – a dita não patológica – não haveria questões inconscientes. Entretanto, nos pautando nas teses sobre o inconsciente freudiano – que não é adjetivo – não há como saber, com exata consciência, o lugar ocupado por um objeto de amor para o sujeito em sua dimensão fantasmática. Ao sinalizar que a perda em questão na melancolia parece estar além do que o sujeito pode acessar, talvez Freud nos indique um caminho para pensar o trabalho de luto como um percurso em que a realização da perda contemple alguma elaboração sobre o que foi perdido, para além do objeto de amor. Assim, verificamos que na psicanálise, o trabalho de luto, seus meios, dinâmica e os termos de sua conclusão ainda derivam dessa divisão conceitual estabelecida em 1915, o que, de certa forma, constitui um desvio do estudo direto sobre o luto em si, enquanto perpetua a comparação diferencial com a melancolia. O psiquiatra inglês, Colin Parkes, estudando o luto ao longo de décadas, nos deixou a seguinte fórmula para pensá-lo: “A dor do luto é tanto parte da vida quanto a alegria de viver; é talvez, o preço que pagamos pelo amor, o preço do compromisso”. (PARKES, 1998, p. 23). Nela está resumida a ideia de que o sofrimento no luto é um saldo da condição social do sujeito que se constitui entre as duas operações lógicas, alienação e separação do semelhante, como descreve Lacan. De todo modo, sabemos que a pergunta sobre o estatuto do luto – como normal ou patológico – precisa permanecer viva, pois a linha que separa a patologia e a normalidade é um frágil limite, sempre submetido aos valores e discursos de uma época. Porém, a clínica atual, sobretudo, nesse contexto de tão numerosas perdas, tanto físicas quanto abstratas, nos ensina que acolher o sofrimento que elas desencadeiam revela-se mais urgente do que seguir com o histórico dualismo, que pode até mesmo cair no maniqueísmo excludente. 86 Flavia Gaze Bonfim (org.) A partir do entendimento do trabalho realizado pelos sonhos nas neuroses, Freud formula a questão em torno do luto servindo-se da mesma lógica de trabalho em jogo na exigência imposta ao psiquismo pelas pulsões: “Em que consiste o trabalho que o luto realiza?” (FREUD, 2015, p. 250). Essa é uma pergunta crucial na direção do tratamento psicanalítico de um modo geral, e respondê-la é tarefa incontornável para o psicanalista em nossos dias, frente às numerosas perdas vivenciadas em circunstâncias adversas, atravessadas por sérias questões políticas que situam o fim da vida como uma questão mediada por fatores sociais, muito além da finitude inexorável, à qual todos estamos igualmente submetidos. A resposta de Freud a essa questão, à época, tem embasamento na teoria da libido, que nutre também o texto de 1914 sobre o narcisismo, oferecendo uma explanação intermediária entre a biologia e a psicologia, típica de uma psicanálise ainda em trânsito, caminhando da medicina para fundar um novo campo. A libido é pensada como quantum de energia que faria caminhos migratórios do ego para os objetos, e vice-versa. Como consequência, quando um objeto deixasse de existir seria necessário que ele também fosse aniquilado ou neutralizado no psiquismo. Pensar o trabalho de separação ou expulsão de um objeto dessa natureza nos leva a questionar o processo inverso, de ligação, da construção de vínculos, e podemos entender o lugar do luto na psicanálise, de mãos dadas com o trabalho sobre o narcisismo, que descreve o mecanismo segundo o qual um sujeito desloca a libido do eu para outros objetos de amor, adentrando numa vida relacional com o mundo e com o semelhante. Nesta perspectiva, o trabalho de luto é pensado como uma espécie de prova contínua imposta ao sujeito para readequar a realidade psíquica ao mundo externo, registrando quedas e perdas, implicando em trabalho psíquico, tendo em vista as resistências do sujeito em abandonar um objeto amado. Assim, o modelo freudiano do trabalho 87 Leituras Psicanalíticas de luto preconizaria um fim: essa ideia estruturada e finita do processo, de modo semelhante às tentativas de descrever e aprisionar o luto em fases, seria uma espécie de “Terra Prometida emocional” (HALL apud FRANCO, 2021, p. 75) ou, em outros termos, a reprodução do projeto de cura psicanalítica, à época submetido apenas ao princípio do prazer. Assim Freud o descrevera: [...] ainda verificamos que até mesmo a atividade do aparelho mental mais desenvolvido está sujeita ao princípio do prazer, isto é, que ela é automaticamente regulada por sentimentos pertencentes à série prazer-desprazer (FREUD, 1915, p. 126). Embora Freud se depare, ao longo de seu percurso, com impasses e paradoxos em relação à proposição do prazer como princípio, podemos dizer, de maneira abreviada que, em 1915, ele considerava a oscilação na apresentação do estímulo, como fonte de prazer/ desprazer, sem ainda compreender “que espécie de relação existe entre prazer e desprazer” (ibid, p. 126). Nesse contexto, ele pensava o luto condicionado ao triunfo do teste da realidade, nos seguintes termos: “O teste da realidade revelou que o objeto não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto.” (ibid, p. 250). A ideia de que recuperada a libido o sujeito poderia substituir o objeto perdido divide opiniões, inclusive a do próprio Freud, por igualar todas as relações objetais e, portanto, todas as separações. Não nos parece exato descartar a singularidade das relações, deduzindo que todos os objetos ou abstrações são igualmente e integralmente substituíveis. Butler interroga esse ponto em seus estudos sobre o luto, numa interessante interlocução com Freud, questionando o que seria um luto bem-sucedido, ou quando estaria terminado o trabalho de luto: A esperança inicial de Freud de que uma ligação pudesse ser retirada e, em seguida, refeita implicava uma certa substituição dos objetos como um sinal de esperança, como se a perspectiva de recomeçar na vida se utilizasse 88 Flavia Gaze Bonfim (org.) de uma espécie de promiscuidade do objeto libidinal. (BUTLER, 2020 p. 41) Acompanhando Freud, Butler se opõe à concepção de luto condicionada ao esquecimento total ou substituição do ente querido, “como se a possibilidade de substituição fosse algo que poderíamos nos esforçar para alcançar” (ibid, p. 41). Como a autora indica, essa não parece ser a aposta de Freud quando tomamos sua obra como um todo. Cabe lembrar que uma das formas como Freud definiu a libido foi como capacidade de amar; e, por esse prisma, não seria apropriado falar em “promiscuidade” – mas na possibilidade de recuperar a capacidade de amar após uma perda. Nem mesmo seria necessário encerrar a relação com aquele que partira, mas, flexioná-la de modo que não represente obstáculo ao início de novas relações e a continuidade do investimento libidinal em outros objetos amorosos. Seguindo, Butler sugere que o trabalho de luto consiste em submeter-se a uma transformação aceitando que a perda mudará o sujeito para sempre. Ela reafirma a perda, mas também seu poder transformador, que não pode ser mapeado ou planejado (BUTLER, 2020). Retomando o poema epígrafe como analogia para o trabalho de luto, teríamos que manter aberta a possibilidade de trazermos mais pessoas à “mesa” ao longo da vida, sem a imposição de retirar os entes perdidos dos lugares ocupados um dia. Se pudermos pensar a partilha amorosa através dessa cena em volta da mesa, o trabalho de luto nos permitiria sempre convidar mais alguém para o banquete, sem precisar necessariamente retirar alguém. Problematizando, então, a ideia de substituição de objeto como o caminho do trabalho de luto bem-sucedido, recolhemos o apontamento de Jean Allouch (2004) de que em “Luto e Melancolia”, Freud tentou resolver o problema da perda do objeto amado tomando-o enquanto objeto substitutivo (ibid). Não obstante, a obra de Freud testemunha que sua clínica não era restitutiva, havendo discordância entre a concepção do objeto, tal como aparece em “Luto e Melancolia”, e o 89 Leituras Psicanalíticas objeto freudiano, fundamentalmente perdido, sublinhado por Lacan (ibid). Assim, entre as inúmeras abordagens que o texto de Freud admite, como a interrogação acerca da finitude do trabalho de luto e da relação com o objeto, da oposição luto e melancolia, do estatuto do luto como um trabalho, elegemos debater aqui a dimensão social dessa experiência. Para tanto, acompanharemos Butler nesse esforço (tão necessário, nesses tempos) de confrontar uma tradição que pensa o luto como um problema individual ou familiar. A autora coloca em análise a violência, o luto e a política considerando uma dimensão da vida política que expõe nossa vulnerabilidade à perda e ao trabalho de luto que se segue, buscando uma base para a comunidade. (BUTLER, 2020). Reabrir esse tema dialogando com a pesquisa de Butler é unir a tradição – o pensamento clássico de Freud – ao contemporâneo, em sua dimensão crítica. Para tanto, é preciso deixar a certeza leiga e precipitada de um saber sobre o luto, que parece ter sido apenas um ponto de partida para Freud em “Luto e Melancolia” para na sequência de suas teorizações abraçar o enigma que ele mesmo indica em “Sobre a Transitoriedade”: O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si só não são explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras coisas obscuras. (FREUD, 1916, p. 318). LUTO E POLÍTICA Consideramos essa retomada uma aposta que Freud deixou inscritas nesse trabalho, apenas introdutório sobre o tema do luto, marcações dotadas de grande força conceitual em estado bruto, convidando seus leitores a explorá-las à luz do que a psicanálise produziu 90 Flavia Gaze Bonfim (org.) subsequentemente. O cenário atual torna evidente a necessidade de uma abordagem do luto que articule os aspectos público e privado no processo de elaboração de perda: o contexto pandêmico nos proíbe tratar o luto apenas como uma questão de foro íntimo, e nos ensina que este tampouco é apenas “um assunto de família” (FRANCO, 2021, p. 95) e não pode ser apartado de sua inserção cultural e histórica. Para Lacan, o trabalho de luto coloca em jogo todo o sistema significante e se realiza no nível do logos, que tem como suportes o grupo e a comunidade, como culturalmente organizados (LACAN, 1958-1959). Ele afirma que o trabalho de luto é uma satisfação dada à desordem que se produz com a insuficiência de todos os significantes em fazer frente ao buraco criado na existência (ibid). Neste capítulo, desenvolvido à luz das demandas contemporâneas, desejamos contribuir para o avanço das pesquisas com o tema do luto afirmando o fino entrelace entre a experiência pública e privada quanto à vivência do pesar e à elaboração de perdas, considerando as evidências clínicas de que as vicissitudes trazidas pela pandemia interferem no processo de elaboração, visto como uma experiência de cunho pessoal. Destacamos o impedimento (total ou parcial) de desempenhar os rituais e cerimônias públicas, e a percepção de que socialmente as vidas importam de maneira diferente, de modo que os esforços para impedir a morte são desigualmente distribuídos, e o direito de sofrê-la também é uma função que depende de certas variáveis sociopolíticas. A análise de Byung-Chul Han sobre os rituais como “ações simbólicas que geram comunidade sem comunicação” (HAN, 2021, p. 9) e cumprem a tarefa de estabilizar a vida por sua repetição, protegendo como uma casa, “tornando habitável o sentimento” (ibid, p. 30) é bem-vinda neste contexto que demanda distanciamento e redução das homenagens por questões sanitárias. Han nos diz que rituais são processos de incorporação em que os regimes válidos e os valores de uma comunidade são inscritos no corpo, sedimentados. Sobre o ritual do luto, o autor afirma a constituição de um sentimento coletivo: “No 91 Leituras Psicanalíticas ritual do luto a comunidade é o sujeito autêntico do luto. A sociedade abate-o ela mesma em face da experiência da perda” (ibid, p. 24). Lacan, por sua vez, considera que os ritos funerários não apenas celebram a memória do morto, mas consistem numa intervenção maciça do simbólico, de caráter macrocósmico, visto que “não há nada que possa preencher com significantes o buraco no real, a não ser a totalidade do significante” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 361). O impedimento ou restrição dos rituais fúnebres, como cumprimento de protocolos de saúde pública, têm efeitos sobre os processos de internalização das perdas e torna ainda mais solitário e desamparado o sujeito enlutado. No entanto, Han nos mostra que já estávamos abandonando rituais e convenções de todo o tipo, aderindo a uma assepsia que varre as narrativas e se satisfaz com dados, passando “do mito para o dataísmo”, do “conto para o cálculo puro” (HAN, 2021, p. 136). Han adverte que a abolição dos rituais faz com que o tempo apropriado, que ele faz corresponder aos “capítulos da vida”, desapareçam (ibid, p. 59), ou seja, faltam ao sujeito as marcações que escandem a vida e encerram ciclos e, sem elas, deslizamos pela vida afora (ibid) em um eterno ciclo de produção e consumo. CONSIDERAÇÕES FINAIS No contexto pandêmico perdas reais e abstratas se acumulam: perdemos em liberdade de circulação pelo território, perdemos em segurança e estabilidade porque a experiência de mundo, assumida como estável, mostrou-se assujeitada ao desconhecido vírus, colocando em risco a certeza, ainda que a saibamos ilusória em certa medida, de ter a vida e a morte sob controle. Franco (2021), a respeito desse contexto adverso estima que entre tantos prejuízos, talvez o maior seja a perda da ilusão do mundo estável, como a “plataforma de apego seguro” (ibid, p. 78). Essa realidade traumática traz para o primeiro plano o desamparo, considerado estrutural, recordando nossa fragilidade diante das 92 Flavia Gaze Bonfim (org.) forças que atingem nossos corpos, conforme nos fala Freud em O Mal-estar na civilização (1930). Cada vez mais adiada pela ciência, num mundo cuja população envelhece progressivamente e se preocupa em administrar as consequências socioeconômicas da longevidade, a morte rompe com os limites que tornam aceitáveis sua aparição. Ou seja, não domesticada, faz aparição fora do enquadre do ciclo vital suposto completo, e passa a habitar o território público, deixando de ser vista como exceção e articulada aos sentidos de fracasso e vergonha, como a personagem onipresente ligada ao fracasso (FRANCO, 2021, p. 104) da qual nos fala Franco: Por ser inequívoca, universal e inegável, ela afronta quem aposta no sucesso e a considera símbolo de fracasso não apenas pessoal, mas dos valores que norteiam suas escolhas. Trata-se de uma ferida narcísica pessoal, social e cultural. (ibid, p. 104) Passando do lugar de exceção ao lugar comum, a morte, assim como o controle do vírus, passa a ser entendida como um problema de saúde pública, evidenciando a importância do laço social, ou seja, da relação do sujeito ao outro/Outro pois não há salvação para ninguém de modo individual. Nessas condições, também o luto tem destacada sua dimensão social e política, o sofrimento atravessa os limites da família para constituir uma causa pública pela qual precisamos lutar e nos posicionar coletivamente. Butler coloca em evidência essa disparidade na percepção da experiência do luto: Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (BUTLER, 2020, p. 43) 93 Leituras Psicanalíticas A autora nos provoca perguntando, partindo do pressuposto de que a nossa vulnerabilidade à perda e ao luto advém “do fato de sermos corpos socialmente constituídos, apegados uns aos outros, correndo o risco de perder tais ligações” (ibid, p. 40): “Quais vidas contam como vidas?” e “O que concede a uma vida ser passível de luto?” (ibid, p. 40). A atuação do psicanalista hoje diante de um sujeito enlutado exige um posicionamento ético advertido da instabilidade e insegurança predominantes no ambiente social, decorrentes da desigual distribuição dos recursos de cuidado, que retiram a morte do lugar do inexorável e a situam no centro do debate político sobre as relações de poder. No plano da clínica psicanalítica essa crise desdobra-se em perigo (de não estar à altura do mal-estar desses dias) e, também, em oportunidade – polos que nos remetem aos dois aspectos que configuram o ideograma chinês que designa a “crise”. Destacamos ainda que a raiz latina desta palavra origina também o crisol, que é o vaso para limpar, purificar e varrer as impurezas do ouro, ou outro metal precioso. Logo, tendo em face os desafios lançados aos sujeitos nos últimos meses, a psicanálise também exibe uma produção em floração, uma abertura para reavaliar e revalidar, ou ratificar algumas premissas teórico-práticas tornando-se, através do enfrentamento desta questão, mais apurada e mais afinada com as questões postas pela subjetividade de nosso tempo. REFERÊNCIAS ALLOUCH, Jean. Erótica do Luto: no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. FRANCO, Maria Helena Pereira. O luto no século 21: uma compreensão abrangente do fenômeno. São Paulo: Summus editorial, 2021. FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. ____. (1915) Luto e melancolia. ESB, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. _____. (1916) Sobre a transitoriedade. ESB, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. 94 Flavia Gaze Bonfim (org.) _____. (1920) Além do princípio do prazer. ESB, volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. _____. (1930) O mal estar na civilização. ESB, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006. HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Petrópolis: Vozes, 2021. LACAN, Jacques. (1958-1959). O Seminário livro 6- o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. PARKES, Colin Murray. Luto: Estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus editorial, 1998. PEIXOTO, José Luís. A criança em ruínas. Porto Alegre: Dublinense, 2017. 95 IMPACTOS DA GESTÃO NEOLIBERAL NA PANDEMIA DE COVID-19: O TESTEMUNHO MELANCÓLICO DO SUJEITO NEOLIBERAL Flávia Laís Machado Moura19 Claudia Henschel de Lima20 Lilian Faustino da Cruz21 David Miqueias de Oliveira Costa22 INTRODUÇÃO O capítulo apresenta uma síntese da pesquisa conduzida no Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária (Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ), que se dedica à investigação da racionalidade neoliberal e, mais especificamente, da melancolização como o pathos desta racionalidade. Desde o ano de 2020, com a irrupção da emergência humanitária da COVID-19, a pesquisa interroga os impactos psíquicos da gestão neoliberal, a partir de dois eixos:1. A relação entre neoliberalismo em emergências humanitárias; 2. Os processos psíquicos exigidos por tal modelo de gestão. Esses eixos encontram sua consistência no estudo de Klein (2008) sobre a correlação entre emergências humanitárias e reformas estruturais que levam à redução do Estado de bem-estar social e à expansão do mercado. Na década de 1980, a avaliação feita por Milton Friedman, um dos marcos da Escola de Chicago, a respeito do sentido de uma crise no capitalismo, era bastante precisa. Com efeito, no prefácio de seu livro Capitalismo e Liberdade, Milton Friedman (2019) afirmara: Mestranda em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/2925624309388207 Doutorado em Psicologia (UFRJ). Professora Permanente (UFRJ e UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/3127001494331912 21 Mestranda em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/6806753942326650 22 Mestrando em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/1432828321344496 19 20 96 Leituras Psicanalíticas Apenas uma crise real ou percebida – produz mudanças verdadeiras. Quando a crise ocorre, as ações dependem das ideias predominantes. Acredito que essa seja nossa função básica: desenvolver alternativas para as políticas públicas vigentes, mantê-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível torne-se politicamente inevitável (FRIEDMAN, 2019, p. 15). A centralidade da crise como alavanca para reformas inevitáveis se atualiza, em 2005, com a emergência devastadora do furacão Katrina, na cidade de New Orleans. Em entrevista ao The Wall Street Journal, a conduta de Friedman (2005) foi avaliar que o Katrina era mais do que uma emergência humanitária, mas a oportunidade para estabelecer uma reforma estrutural do sistema educacional radical: A maioria das escolas de Nova Orleans está em ruínas, assim como as casas das crianças que as frequentaram. As crianças agora estão espalhadas por todo o país. Isso é uma tragédia. É também uma oportunidade de reformar radicalmente o sistema educacional (...) (...) As escolas de New Orleans estavam falhando pelo mesmo motivo que as escolas estão falhando em outras grandes cidades, porque as escolas são de propriedade e operadas pelo governo. O governo decide o que deve ser produzido e quem deve consumir seus produtos, geralmente designando os alunos para escolas perto de sua residência. O único recurso dos pais insatisfeitos é mudar de residência ou desistir do subsídio do governo e pagar a escola dos filhos duas vezes, uma vez em impostos e outra em mensalidades. (FRIEDMAN, 2005, tradução nossa). Com base nessas referências, a hipótese da pesquisa conduzida pelos autores deste capítulo é que o neoliberalismo constitui uma racionalidade cujo pathos é a melancolização. Ao longo dos dois anos da emergência humanitária de COVID19, a governança brasileira trouxe, para seu enfrentamento, a defesa da 97 Flavia Gaze Bonfim (org.) liberdade de cada indivíduo acima da saúde da população. Desde 2020, o governo agitou a bandeira da liberdade individual - um elemento característico do discurso neoliberal - no quadro de uma emergência humanitária de alta infecção e letalidade que, por sua vez, impôs medidas restritivas de circulação (lockdown, isolamento social, restrição de eventos coletivos de shows e cultos religiosos), de proteção (máscaras) e medidas sanitárias de vacinação. A liberdade é um conceito fundamental do liberalismo clássico referindo-se à liberdade de possuir bens, à liberdade da propriedade privada, e a constituição do indivíduo como máxima expressão da propriedade privada. No entanto, a bandeira da liberdade no neoliberalismo se dá em nome do combate ao modelo do estado de bem-estar social e do conjunto de políticas que, dele, decorre: políticas educacionais, políticas econômicas de emprego, políticas habitacionais, políticas de saúde, políticas sanitárias: A pessoa livre não perguntará nem o que o país pode fazer por ela nem o que ela pode fazer pelo país. Indagará, isto sim, ‘o que eu e meus compatriotas podemos fazer por meio do governo para realizar nossas tarefas pessoais, para alcançar nossos vários objetivos e propósitos, e acima de tudo, para proteger nossa liberdade?’ (FRIEDMAN, 2019, p. 2, grifos do autor). A defesa da liberdade individual no neoliberalismo, se ancora no combate das políticas públicas promovidas pelo Estado – que passam a ser consideradas como intervencionistas – e na reificação do indivíduo, do eu. Michel Foucault, em seu curso Nascimento da Biopolítica (1978-1979/2008), investigara no fundamento do neoliberalismo, a constituição de uma racionalidade política que tinha em seu horizonte a repulsa ao Estado de bem-estar social – considerado como planificador e intervencionista sobre a vida dos indivíduos. Com base nesta investigação, Dardot e Laval (2016) denominaram 98 Leituras Psicanalíticas essa racionalidade neoliberal, de empreendedor de si, e cujos traços psíquicos são: a unidade do eu e a concorrência: Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330-331). Com essa colocação sustentamos que o neoliberalismo não é apenas um modo de regulação dos sistemas de trocas econômicas. Considerando crises e emergências humanitárias como oportunidade de dissolução do Estado de bem-estar social, ele é um regime de produção da unidade do eu e da concorrência, de hiper responsabilização do eu e de melancolização. Um conjunto de referências transdisciplinares do campo da ciência política e da psicanálise nos servirão para delimitar a forma como o Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária vem desenvolvendo a hipótese da melancolização como pathos do sujeito neoliberal. RACIONALIDADE NEOLIBERAL: O OBJETIVO É A MUDANÇA DO CORAÇÃO E DA ALMA O título desta seção é uma referência direta à entrevista, dada por Margareth Thatcher, à Ronald Butt do Sunday Times, em 1981. Na época, ela era a primeira da ministra do Reino Unido, e sua entrevista revela que o neoliberalismo não é apenas um modo de regulação dos sistemas de trocas econômicas baseado na maximização da concorrência e no livre mercado. Ele é um regime de gestão social e produção de racionalidade: O que me irritou sobre toda a direção da política nos últimos 30 anos é que sempre foi para a sociedade cole- 99 Flavia Gaze Bonfim (org.) tivista. As pessoas se esqueceram da sociedade pessoal. E eles dizem: eu conto, eu importo? Para o qual a resposta curta é sim. E, portanto, não é que eu me debruce sobre políticas econômicas; é que eu realmente decidi mudar a abordagem, e mudar a economia é o meio de mudar essa abordagem. Se você mudar a abordagem, você realmente está atrás do coração e da alma da nação. A economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma.(THATCHER, 1981, tradução nossa). Localizada historicamente no terceiro momento do neoliberalismo, ou seja, em sua consolidação no campo político por meio da agenda liberal-conservadora23, essa avaliação de Thatcher (1981) revelaria seu êxito na perpetuação de uma racionalidade que incorpora o ideário neoliberal, a eternização da figura do sujeito unitário, do neossujeito, pautado pela identidade de si, pela autonomia e pelo empreendedorismo: Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis. – metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. (DARDOT E LAVAL, 2016, p. 327) O apelo ao indivíduo, explícito nesta formulação, revela a extensão do modelo da empresa para o funcionamento da subjetividade, de modo que a cristalização da identidade, a empresa/personal branding é o novo status quo dos indivíduos. Ao constituir-se segundo o modelo da empresa, o sujeito neoliberal não interroga sobre o que o país pode fazer por ele. Ao contrário, ele é livre e responsável por si mesmo com relação a habitação, emprego, habitação, saúde e educação. Esse ponto é amplamente abordado por Wendy Brown, em Nas ruínas do neoliEssa agenda liberal-conservadora esteve presente no Reino Unido (Margareth Thatcher, 1979), nos Estados Unidos (Ronald Reagan, 1980) e na Alemanha (Helmut Kohl, 1982). 23 100 Leituras Psicanalíticas beralismo. A ascensão da política antidemocrática no Ocidente (2019) que investiga os impactos da dissolução do Estado de bem-estar social, pelo neoliberalismo, trabalhando com a hipótese de que os valores da família tradicional assumem a lógica da empresa e asseguram o funcionamento da racionalidade neoliberal. A autora elenca uma série de transformações que ela localiza na estrutura da subjetividade. Para a autora, trata-se de uma transformação na compreensão do que seja a liberdade, do que são as relações sociais, do que é a moralidade. A liberdade individual e a apresentação de um si mesmo idêntico, empreendedor, separa a subjetividade do laço social, dos atributos que o constituem como cidadão, legitimando a desigualdade pela concorrência e pelo mérito, a hegemonia da moral conservadora (cujo pilar é a tríade família-religião-nacionalismo) e, consequentemente, o esmaecimento da democracia. No lugar do Estado, com suas políticas garantidoras de habitação, educação, saúde e segurança sanitária, a família ganha contornos reguladores da manutenção da liberdade individual, impondo limites para seus membros (BROWN, 2019). No quadro dessas considerações, a centralidade de crises e emergências humanitárias são alavancas fundamentais, não só para reformas inevitáveis do tecido social, como também para a gestão da responsabilidade sobre o indivíduo. Instabilidades políticas, pandemias, desastres naturais, produzem mobilizações afetivas que serão o solo para a realização de reformas estruturais que formatam o funcionamento do Estado a partir da lógica do mercado, a extrema responsabilização individual, até restar à ele apenas o núcleo de sua família e uma identidade de si profundamente enraizada no empreendedorismo. O CHOQUE COMO MÉTODO DA GESTÃO NEOLIBERAL Guerras, conflitos políticos, desastres naturais e pandemias compõem o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu como sendo o quadro das emergências humanitárias. Seu impacto sobre a 101 Flavia Gaze Bonfim (org.) subjetividade é enorme, produzindo uma experiência desastrosa de vulnerabilidade, de confusão mental, de suspensão do julgamento, de ruptura da cadeia associativa de pensamento, de angústia e medo. A referência especializada em emergências humanitárias (OPAS, 2020; FIOCRUZ, 2020) isola com precisão o quadro sintomático, identificado a partir do primeiro trimestre de uma emergência humanitária: 1. Medo. 2. Sensações de: incerteza quanto ao futuro, impotência frente aos acontecimentos, desamparo, solidão, tristeza, luto e ansiedade. 3. Alterações comportamentais: alimentares (ter mais apetite ou menos apetite), no sono (insônia ou sono em excesso, pesadelos). 4. Agravamento de conflitos interpessoais com familiares, no trabalho. 5. Alterações no pensamento. A condição subjetiva imposta por uma emergência humanitária aponta para o que Freud (1926[1925]/1987) denominara de desamparo fundamental (hilflosikheit) e subjaz na base do entendimento do choque como método do capitalismo de desastre, proposto por Naomi Klein em A Doutrina de Choque: a ascensão do capitalismo de desastre (2008). O estudo de Klein (2008) coloca uma questão ética fundamental relativa à gestão subjetiva dos impactos de uma emergência humanitária na vida da população. O uso do termo choque decorre da observação dos impactos psicológicos de experimentos de privação sensorial, do tratamento de transtornos mentais com eletroconvulsoterapia e da concepção de que a mente é uma tabula rasa que pode ser modificada a partir da manipulação de estímulos ambientais. O experimento sobre privação sensorial, conduzido por Donald Hebb, utilizou uma amostra de 63 estudantes universitários, isolados em um ambiente usando óculos escuros, fones de ouvido com ruídos brancos e cilindros de papelão 102 Leituras Psicanalíticas cobrindo braços e mãos a fim de dificultar o sentido do tato. Após um período, Hebb pretendeu ainda mensurar o grau de susceptibilidade da amostra à “lavagem cerebral” e colocou gravações sobre a existência de fantasmas e a desonestidade da ciência. Ao final, os estudantes apresentavam sintomas de confusão mental, alucinação, declínio da atividade intelectual e susceptibilidade às concepções apresentadas nas gravações. Klein (2008) localiza, nesse experimento, a base que fundamentou a doutrina de que uma crise profunda, causada por instabilidades políticas, golpes de estado e guerras) e desastres naturais (furacões, terremotos, ciclones, pandemias), pode ser a oportunidade para a implementação de reformas profundas na estrutura sociopolítica. De fato, a doutrina do choque sugere que golpes, desastres naturais, epidemias e pandemias são a oportunidade para impor a concepção radical do livre-mercado, fazer reformas estruturais no modelo de política econômica a favor de corporações (KLEIN, 2017) e promover mudanças na estrutura social, precisamente por causa da mobilização de angústias e medos, da sensação de incerteza provocada. Nessa perspectiva, o conceito freudiano de identificação e de desamparo, são fundamentais para o entendimento da constituição do eu e como suas características narcísicas se relacionam com o terreno das reações psicológicas previstas pela doutrina do choque. CONSTITUIÇÃO DO EU E FORMAÇÃO DO LAÇO SOCIAL PELO LÍDER O texto Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020) é uma referência central para entender o processo de constituição do eu e a produção do sentimento de desamparo. Nele, fica consolidada a impossibilidade de se separar psicologia individual e psicologia social, ou seja, de se distinguir entre uma psicologia que investigaria os processos de constituição do eu e uma psicologia dedicada a investigar criticamente os meios de sujeição social e produção de alienação. Por isso, ao se dedicar à investigação a lógica da formação do eu a partir do conceito 103 Flavia Gaze Bonfim (org.) de identificação, Freud (1921/2011) definiu a constituição do eu pela alienação às condições materiais da vida social e por sua íntima articulação à figura da autoridade indicando como o eu não é uma instância de mediação, mas pode vir a ser a própria reificação da autoridade. O conceito de identificação, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2011), condensará a presença da figura de autoridade, o laço afetivo com essa figura e o processo de alienação. E será com base na fórmula da constituição do eu pela identificação, que inclui o laço afetivo com a autoridade, que Freud corajosamente formulará uma teoria sobre a relação entre alienação e autoridade no campo mais amplo das relações sociais. Essa teoria define como o processo de identificação mobiliza uma gradação de sentimentos que vai desde o enamoramento (com a idealização da autoridade) até a sujeição, em que o eu acaba por desaparecer completamente, em nome da figura hegemônica de autoridade: humilde sujeição, alienação, despersonalização, solapamento da iniciativa própria, docilidade ausência de crítica, desamparo e agressividade direcionada ao que não se conforma a essa forma de identificação pela sujeição. A formulação de Freud (1921/2020) é clara e indica o caminho de uma intuição que, muito pouco tempo depois, se converteria em hipótese a respeito da ascensão do fascismo na Europa: ao mesmo tempo em que a sujeição à autoridade se alimenta do desamparo, ela produz, no eu, a alienação, com a ilusão de que a autoridade é a solução. Freud (1921/2020) retoma, então, seus achados conceituais sobre o narcisismo, do estado de ânimo à perda do objeto, e o complexo de édipo para definir o processo de identificação tanto como ambíguo, como limitado à um traço do objeto. A partir de tais referências, o autor distinguirá, no capítulo VII, as três formas de identificação do eu, expostas na tabela 1. 104 Leituras Psicanalíticas Tabela 1. Formas de identificação, segundo Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020). Formas Definição Formação do Ideal do eu (Ser como a pessoa) É a forma de ligação afetiva originária com uma outra pessoa, que conduz o psiquismo ao posterior investimento em outros objetos de amor (ter). Por regressão do ter ao ser A forma de ligação afetiva originária toma o lugar do investimento em outros objetos de amor (ter), vigorando a introjeção do objeto no eu. Infecção psíquica (identificação entre os eus) A forma de ligação afetiva opera entre pessoas a partir do reconhecimento de um traço comum, sem se orientar pelo Ideal do eu. A identificação é por imitação e está fundada em um querer colocar-se no lugar do outro. Fonte: Freud, 1921/2020 Ele avança em seu raciocínio, no capítulo VIII, onde retoma as formulações sobre a formação do líder da horda primitiva e a distribuição afetiva, pulsional, entre o eu e o objeto. Freud não só esclarece, na formação do líder, a passagem sutil do enamoramento à sujeição como, mais fundamentalmente, o grau de funcionamento pulsional, que vai desde a sua distribuição entre o eu e objeto, até a desaparição do eu pela sombra do próprio objeto: (...) o Eu se torna cada vez menos exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais grandioso, mais valioso; este finalmente alcança a posse de todo o amor próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu torna-se a consequência natural. O objeto consumiu o Eu, por assim dizer. Traços de humildade, de restrição do narcisismo, de causação de danos a si mesmo estão presentes em qualquer caso de enamoramento; em casos extremos, eles são simplesmente intensificados, e com o recuo das reivindicações sensuais, eles ficam sozinhos a dominar. (...) Silencia-se a crítica exercida por essa instância; tudo o que o objeto faz e exige é correto e inatacável. A consciência não encontra aplicação para tudo que ocorre em favor do objeto; na cegueira amorosa nos tornamos criminosos sem remorso. A situação inteira se deixa resumir, sem resíduos, em uma fórmula: 105 Flavia Gaze Bonfim (org.) O objeto colocou-se no lugar do Ideal do eu. (FREUD 1921/2020, p. 188). Assim, Freud (1921/2020) conduz a distinção fundamental entre identificação e enamoramento/sujeição: 1. Na identificação: o objeto foi perdido ou renunciou-se a ele; então é novamente instaurado no Eu, que se modifica parcialmente conforme o modelo do objeto perdido enriquecendo-se com suas propriedades. 2. No enamoramento/sujeição: o objeto foi totalmente conservado (equivalendo ao pai da horda primitiva, severo, rígido e autoritário) e, como tal, é sobreinvestido por parte e à custa do Eu. A lógica do enamoramento/sujeição é caracterizada como hipnose pois a posição do eu, neste caso, é a mesma da hipnose: humilde sujeição, solapamento da iniciativa própria, docilidade e ausência de crítica ante o mesmerista, exatamente como diante do objeto amado. Ele é o único objeto, nenhum outro recebe atenção além dele. A figura 1 fora elaborada por Freud (1921/2020) como matriz para a inteligibilidade da constituição do líder a partir da identificação primária ao pai, localizada no narcisismo. Figura 1. A Formação do líder segundo a lógica da identificação. Fonte: FREUD (1921/2020) A figura 1 mostra como um objeto externo (o traço ou insígnia de um líder) ocupa o lugar do que o eu ama como seu ideal. O êxito da constituição da massa reside não só na substituição entre o objeto 106 Leituras Psicanalíticas externo e o ideal, como também na identificação de cada eu, na massa, à outros eus: “Uma massa primária como essa é uma quantidade de indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu Ideal do eu e, em consequência disso, identificaram-se uns com os outros em seu eu” (FREUD, 1921/2020, p. 192). Ao observarmos a formação do líder autoritário do fascismo, identificamos exatamente a substituição do Ideal do eu pelo líder, como uma extensão da personalidade. Por isso, o líder é considerado alguém como nós, com as mesmas preocupações, os mesmos anseios, segundo um mesmo projeto. O esquema desenha o modelo do lugar do eu na alienação e da formação do fascismo, revelando como uma grande quantidade de indivíduos elege e posiciona um único objeto no lugar do Ideal do eu e em consequência disso: 1. Identificam-se uns com os outros em seus eus. 2. Formam uma relação de semelhantes e o sentimento de que somos todos iguais. 3. Constituem a imagem unitária do povo. 4. Produzem a segregação agressiva de tudo o que se opõe a essa imagem unitária. Essa forma de identificação é denominada de identificação imaginária, precisamente porque situa a formação do líder fascista sobre a base da identificação especular ao Ideal do eu. Neste sentido, um líder autoritário, que encarna a imagem unitária do povo, se ergue como defesa narcísica, agressiva e extremamente violenta da identidade de si. O esquema de Freud, reproduzido na figura 1, evidencia a estrutura de personalidade que caracteriza essa identidade de si e sua presença na própria vida política, tal como Lacan (1938/2003) reconhece por meio da denominação de psicose social: ancorada na imagem unitária do povo, ela persegue e expulsa a figura do outro que se apresenta como diferente dessa unidade. Mas sobre qual estado de ânimo, ela se assenta? 107 Flavia Gaze Bonfim (org.) MELANCOLIZAÇÃO COMO PATHOS DO SUJEITO NEOLIBERAL A hipótese da pesquisa, conduzida pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária (Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ), é que a melancolização é o pathos do sujeito neoliberal, seguindo a fórmula freudiana de Luto e Melancolia (1917/2020): a sombra do objeto recai sobre o eu. Assim, é na formação identificatória de um eu defensivo, agressivo, rígido e profundamente melancolizado que identificamos, em Freud, os passos para construção de um entendimento sobre a relação entre a gênese do eu e a sujeição social à um líder autoritário, na contramão da ideia de que a ascensão do líder autoritário ocorre em um contexto de perda, de colapso da identidade. Essa espécie de reversão da pulsão, abandonando o investimento no objeto e direcionando-se ao eu, revela uma conformação subjetiva de maior radicalidade, evidenciando a sujeição do eu ao objeto com retração da pulsão de morte sobre o eu: seria esse processo de invasão da pulsão de morte no eu, o que está na base da constituição do sujeito no neoliberalismo? A fim de responder à essa pergunta, consideremos a identificação melancólica, com a finalidade de mostrar que a melancolia não produz massa e esclarece o lugar do líder no funcionamento do neossujeito. Em Luto e Melancolia (1917/2020), no quadro da reflexão sobre o destino da pulsão a partir da perda do objeto amado, o impacto da I Guerra já indicava para Freud a forma como o ser humano se relaciona afetivamente, pathicamente, com a realidade simbólica. Freud (1917/2020) destaca os seguintes traços na melancolia: O melancólico ainda nos mostra algo que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima do Eu, um grandioso empobrecimento do Eu. (...) O doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e moralmente desprezível; ele se recrimina, insulta-se e espera ser rejeitado e castigado. Ele se humilha diante 108 Leituras Psicanalíticas de qualquer pessoa e sente pesar por seus familiares estarem ligados a uma pessoa tão indigna. Ele não julga que uma mudança lhe aconteceu, mas estende sua autocrítica ao passado; ele afirma que nunca foi melhor. (FREUD, 1917/2020, p. 102-103). A partir dessa descrição, Freud não só define a distinção entre os estados de ânimo que um ser humano assume diante da perda do objeto amado, como também localiza, na melancolia, um estado de ânimo específico em que se observa a retração do investimento da pulsão sobre o eu. Na melancolia, no lugar do objeto perdido, ocorre uma regressão do afeto pulsional até o narcisismo, produzindo essa experiência melancólica da sombra do objeto recaindo sobre o eu: o eu se auto recrimina em um movimento de retorno agressivo da pulsão ao eu, interrogando suas escolhas em um movimento em que o eu é recriminado por ter feito escolhas erradas, adotado ideologias enganosas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A identificação do sentimento de melancolização na base da reivindicação de liberdade individual e da alienação profunda à crença narcísica no poder, na força, do indivíduo contra as adversidades da vida – ambos localizados no fundamento da reivindicação da liberdade individual de ir e vir, da rejeição das medidas de isolamento social e uso de máscaras, da banalização da pandemia e da crença na eficácia do “kit para tratamento precoce” da COVID-19 – lança alguma luz à pergunta sobre a relação entre essa dimensão psicológica, típica de um quadro de despersonalização e melancolização, e a perpetuação do neoliberalismo. Se por um lado, a espiral de desastres produz reformas estruturais que retiram o Estado brasileiro da atividade econômica, de outro esse mesmo Estado intervém para assegurar que essa espiral produza e aprofunda uma verdadeira despolitização do campo social: 109 Flavia Gaze Bonfim (org.) 1. Alienando a população com relação às condições materiais de uma emergência humanitária da amplitude da pandemia de COVID-19. 2. Produzindo no funcionamento psicológico, a “despersonalização e a crença no poder do indivíduo investida pelo sentimento de melancolização”. O cenário das emergências humanitárias lança luz a gestão que desmantela o aparato estatal e apropria-se da dissolução do alicerce simbólico em nome da sobrevivência. A eficácia da racionalidade neoliberal não questiona a crise produzida pelo choque, mas responsabiliza cada indivíduo pela resolução e manutenção da ordem, cabendo a cada instância, “cuidar de seu jardim” (FRIEDMAN, 2019). Talvez seja esta a verdade na base do tweet do Presidente da República em 16 de junho de 2020: Tiramos o Estado das costas de quem produz e sempre nos posicionamos contra quaisquer violações de liberdade. REFERÊNCIAS BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. FREUD, S. Luto e Melancolia (1917). In FREUD, S. Cultura, Sociedade, Religião: O mal-estar na Cultura e Outros Escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, Sociedade, Religião: O mal-estar na Cultura e Outros Escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. Freud, S. Inibições, Sintomas e Angústia (1926[1925]). In: Freud, S. Obras Completas. v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FRIEDMAN, M. Capitalismo e Liberdade, Edição do 40º aniversário. Rio de Janeiro: LTC, 2019. FRIEDMAN, M. The Promise of Vouchers. The Wall Street Journal, 2005. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/SB113374845791113764. Acesso em: 2 jan.2022. KLEIN, N. A doutrina de choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 110 Leituras Psicanalíticas KLEIN, N. Não Basta Dizer Não: Resistir à Nova Política de Choque e Conquistar o Mundo do qual Precisamos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017. Lacan, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938). In: Lacan, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. MINISTÉRIO DA SAÚDE. FIOCRUZ. Saúde mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19: Recomendações Gerais. Brasília: FIOCRUZ, 2020. OPAS - Organização Panamericana de Saúde. Guia de intervenção humanitária (GIH-mhGAP): manejo clínico de condições mentais, neurológicas e por uso de substâncias em emergências humanitárias. Geneva: OPAS, 2020. Disponível em: www.paho.org. Acesso em: 2 jan.2022. THATCHER, M. The First Two Years. Interview for Sunday Times. Sunday Times. 3 may, 1981. Disponível em: https://www.margaretthatcher.org/document/104475. Acesso em: 20 jan.2022 111 A ARTE DE UM BOM VENDEDOR ESTÁ EM VENDER... A FELICIDADE Pâmela Mizurini24 Paulo Eduardo Viana Vidal25 No decorrer da segunda metade do século XIX, os avanços favorecidos pela primeira revolução industrial e seu sistema de fábricas, somados às novas tecnologias, estimularam a produtividade no sistema capitalista, que passou a produzir maciçamente. Em consequência, a maneira como os produtos passaram a ser consumidos também se transformou, em razão da transição de uma sociedade baseada no comércio originalmente familiar, para uma sociedade edificada na massificação da produção e do consumo. Conforme Zaretsky, As origens da segunda revolução industrial encontram-se nas décadas de 1860 e 1870, os anos de infância e juventude de Freud. Foram essas as décadas que viram o surgimento da ciência e da tecnologia que a caracterizaram (o dínamo, o aço e os produtos químicos), além de suas formas características de organização econômica (as transações bancárias em larga escala, a corporação, o comércio internacional). O crescimento econômico se fez acompanhar de forma política, por exemplo, na Inglaterra, Áustria, Estados Unidos, Alemanha e Japão. A Inglaterra começou seu longo declínio e os Estados Unidos, sua ainda mais longa ascensão. A emergência de uma rede mundial de ferrovias e navios a vapor promoveu a padronização de pesos, medidas, tempo e moedas. A alfabetização, a escolarização e as instituições de pesquisa, em especial as universidades, cresceram drasticamente, desencadeando o aumento de produMestra em Psicologia Clínica (UFF). Psicanalista associada ao Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/7998663787880002 25 Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Professor-associado (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/3921736842674257 24 112 Leituras Psicanalíticas tividade subjacente à virada finissecular em direção ao consumo de massa. (ZARETSKY, 2006, p. 28-29) Em conformidade com Zaretsky (2006), na Segunda Revolução Industrial (que teve seu término durante a Segunda Guerra Mundial), houve uma segmentação entre os momentos dedicados ao trabalho propriamente dito e aqueles dedicados à vida, isto é, ao lazer do trabalhador, que passou a desfrutar do consumo também como uma forma de entretenimento. Conforme o autor, a Segunda Revolução Industrial se iniciou nos Estados Unidos, onde originou-se a corporação verticalmente integrada, “uma corporação que organizava não apenas as matérias-primas e a produção, mas também a publicidade, a comercialização e o consumo” (ZARETSKY, 2006, p. 18). Sendo assim, podemos compreender que o homem moderno vive em uma sociedade que se modificou ao longo do tempo e os sujeitos passaram a possuir uma relação distinta com os objetos produzidos e consumidos. A sociedade da qual tratamos aqui é nomeada por Baudrillard como sociedade de consumo. Para Baudrillard (1970/2014), a sociedade de consumo destina um amplo espaço para a publicidade, pois ela é essencial para uma ressignificação dos objetos como fonte de satisfação, elevando o consumo ao nível do prazer, permitindo assim a sua ampliação. Visto isso, o autor também nos aponta que o consumo, assim como a linguagem, passa a simbolizar uma série de novas representações e com isso marcar a diferença para os sujeitos por meio dos objetos. E como a sociedade de consumo também é uma sociedade pós-industrial, sua égide se ergue com os gadgets e Baudrillard nos indica que não há uma definição específica para eles, mas que podemos pensá-los como um objeto onde a sua função essencial fica subsumida por um caráter lúdico, ou seja, o que se consome é completamente diferente da utilidade do objeto em si. Com isso, o consumo dos gadgets serve para qualquer outro objetivo: eles assumidamente são atribuídos a funções secundárias. Por exemplo, quando o carro assume uma função 113 Flavia Gaze Bonfim (org.) para além do seu emprego de locomoção, considera-se importantes os cromados, o lugar do volante etc. E, dessa forma, o carro passa a representar um gadget pelo fato de ingressar em uma lógica modista. Lacan já comentava o quanto somos dependentes dos gadgets, desses objetos que invadem cada vez mais a nossa vida cotidiana, proliferando-se sem controle. Isto levou diversos analistas a frisar a maneira como se confundem, para o sujeito, o objeto de consumo e o objeto do desejo no Discurso Capitalista. (TEIXEIRA, 2005, p. 139) Nesse momento, é importante observarmos que o discurso do mestre, submetido aos avanços da ciência e do capitalismo, se modificou e se transformou no que conhecemos hoje como o discurso do capitalista. A nossa cultura é a cultura dos objetos que ela produz e esses correspondem à função do discurso que se encontra em questão. Nas palavras de Lacan, o discurso do mestre precisou extrapolar certas fronteiras, Para isso, foi preciso que ele ultrapassasse certos limites. Em poucas palavras, isso acontece àquilo cuja mutação tentei apontar-lhes. Espero que se recordem disso, e se não recordam – é bem possível –, vou lembrar-lhes já, já. Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 178) Lacan, em Televisão (1973/2003) aponta como aconteceu essa modificação na qual o discurso do mestre, submetido à ciência, se transformou no discurso do capitalista. Esse discurso, em especial, diferente dos outros quatro discursos – discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do analista e discurso universitário – que ele já havia proferido no seminário O Avesso da Psicanálise. A começar, todos os discursos anteriores são discursos que fazem laço social, enquanto o discurso do capitalista é o único discurso que 114 Leituras Psicanalíticas o foraclui. Lacan alude ao discurso do mestre como relativo ao senhor antigo e, o discurso capitalista, ao senhor moderno, chegando a afirmar que “o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber (LACAN, 1969-1970/1992, p. 32). O discurso do capitalista, como já mencionamos, é um discurso que não faz laço social e por isso existe uma impossibilidade entre o campo do agente e o campo do outro com o cruzamento das setas. Assim, um termo não se dirige a outro termo como no discurso do mestre, e sim, se mantém em um circuito fechado. Isso situa o sujeito numa posição de comandar o objeto a, e o objeto a também se encontra na posição de comandar o sujeito. Pelo fato de o circuito ser fechado, diversamente do que ocorre com os outros discursos, não há a possibilidade de o discurso do capitalista girar para outros discursos. Teixeira (2005) nos afirma que, no discurso do capitalista, o sujeito fica completamente eclipsado pelo objeto. Esse discurso possui como habilidade ofertar diversos e infinitos objetos como substitutos do objeto causa do desejo, ou melhor, como substitutos do objeto a. Dessa forma, o mercado produz e comercializa o objeto em série, universalizando-o. Isso quer dizer que há um nivelamento universal do desejo, reduzindo esse desejo ao alcance de um balcão de loja, onde objetos idênticos, seriados, ganham o status de objeto de desejo, facilmente adquiridos apenas por aqueles que podem pagar por eles O fato de cada sujeito gozar desse objeto, que é idêntico para todos, de um modo que acredita singular, não é um empecilho, mas o atrativo especial que faz com que cada um sinta que esse objeto padronizado foi concebido especialmente de acordo com a sua fantasia. O capitalismo debocha, de certa forma, de nossa pretensão demasiadamente humana de singularidade, vendendo fantasias feitas em série (TEIXEIRA, 2005, p. 172) 115 Flavia Gaze Bonfim (org.) O autor completa que isso acontece pelo fato de o mercado encarnar a figura do Outro, que responde e organiza, a partir de uma suposição de saber, acerca daquilo que causa desejo, não apenas em um sujeito, mas em todos. Dessa forma, podemos refletir que, na sociedade de consumo, a figura do mercado parece saber o que todo mundo deseja e, por isso, consegue dispor de um objeto fabricado para atender esses desejos. Mas isso tem seus efeitos colaterais: um deles é reduzir o objeto causa do desejo a uma bugiganga, da qual o sujeito acaba tornando-se dependente, pois uma outra característica importante é que “a felicidade constitui a referência absoluta na sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação” (BAUDRILLARD, 1970/2014, p. 49) para os sujeitos que nela habitam e desfrutam. Dessa maneira, a felicidade passa a ser mensurada pela quantidade de objetos ou serviços consumidos, carregando assim, atrelada a ela, o mito da igualdade. Baudrillard (1970), elucida que o mito da igualdade tem as suas origens na revolução industrial e foi a partir desta que a felicidade e o bem-estar ganharam um lugar de destaque na sociedade, passando a ser mensuráveis por objetos consumidos em detrimento de uma vida mais confortável e como um signo de êxito social. Visto isso, consideremos que Freud, por meio de suas muitas reflexões acerca da sociedade, se indagou em seu livro O mal-estar na civilização (1930) sobre qual seria a finalidade e a intenção de vida do homem. E é a partir desse questionamento que nos afirma que não é difícil acertar a resposta: “eles buscam felicidade, querem se tornar e permanecer felizes”. (FREUD, 1930/2010, p. 29-30). Diante do esforço do sujeito em buscar a felicidade como intenção de vida, Freud ainda nos alerta que essa procura se defronta diretamente com os paradoxos da satisfação. O psicanalista concebe que “essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, ‘felicidade’ se refere apenas à segunda” 116 Leituras Psicanalíticas (FREUD, 1930/2010, p. 30). Assim, a partir dessa demarcação entre ausência de desprazer e a vivência de prazeres intensos, ele nos acrescenta que essa divisão de metas responde diretamente ao programa do princípio do prazer. Vejamos: Como se vê, é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida. Esse princípio predomina o desempenho do aparelho psíquico desde o começo; não há dúvidas quanto a sua adequação, mas o seu programa está em desacordo com o mundo inteiro; (…) Aquilo a que chamamos felicidade, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por natureza é possível apenas como fenômeno episódico (FREUD, 1930/2010, p. 30-31). Freud igualmente constata que, mesmo que sigamos diferentes caminhos, jamais conseguiremos alcançar tudo o que desejamos, pois o princípio do prazer nos impõe um programa onde a felicidade consiste em um problema de economia libidinal. Esse programa é irrealizável. Ou seja, nas palavras de Freud: O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcançar tudo o que desejamos. No sentido moderado em que é admitida como possível, a felicidade constitui um problema de economia libidinal (FREUD, 1930/2010, p. 40). Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud ilustra, como já vimos anteriormente, que o princípio do prazer funciona de forma a 117 Flavia Gaze Bonfim (org.) direcionar a energia e a descarga pulsional com o objetivo de atingir o prazer, ou seja, de alcançar a felicidade. Em virtude de o sujeito contemporâneo ter um acesso mais facilitado aos objetos, devido à sua produção em massa, esse sujeito pode recorrer à compra de tais objetos na tentativa de alcançar um bálsamo, uma defesa para o seu mal-estar, numa busca incessante de sua felicidade. Pois, dessa forma, o consumo passa a representar o mais novo exemplar de felicidade dito pela sociedade, de acordo com Santos (2009). Em outros termos, o ato de comprar objetos, em alguns casos de maneira excessiva, demonstra uma tentativa de evitação de um mal-estar, ou seja, a evitação de uma insatisfação, um desprazer, para afastar um sofrimento. Assim, de acordo com a autora, a nossa sociedade se apoiou na possibilidade de gerir a busca de prazer dos sujeitos por meio dos objetos de consumo como satisfação. Conforme Costa (2005), ainda há uma dificuldade concernente à articulação entre felicidade e prazer. Ele demonstra que, quanto mais proferimos a minimização do sofrimento e a otimização do prazer, “mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos com o sofrimento que não podemos evitar” (COSTA, 2005, p. 197). Assim, o consumo excessivo surge como um suporte na tentativa de alcançar a felicidade, já que é a partir de uma insatisfação do sujeito que emerge o consumidor modelo, pois a insatisfação “é o motor do consumismo” (COSTA, 2005, p. 139). O autor ainda acrescenta que, na sociedade de consumo, a felicidade surge como um bem, passível de ser comprado, desfrutado e acumulado. Porém, nunca alcançável por inteiro, mas sempre pela metade. Ele nos indica que “a felicidade que se consome no instante em que se realiza é uma felicidade pela metade, um aperitivo que desperta a fome sem poder saciá-la” (COSTA, 2005, p. 94). Já os autores Bernard & Dumoulin (2019) observaram que, em se tratando de uma sociedade capitalista, existe uma lógica, ou melhor, um jogo entre a oferta e a demanda. Eles nos indicam que o 118 Leituras Psicanalíticas capitalismo soube industrializar a dialética que há entre a demanda e o desejo, que era, até então, algo exclusivo da estrutura neurótica. Os autores nos apontam que, se tratando do consumo e sua repetição, o que está em questão é a dependência do sujeito neurótico frente à demanda do Outro. Ressaltam que o sujeito que se encontra na estrutura neurótica, pergunta repetitivamente ao Outro o que está faltando, supondo que este possua a resposta para a sua pergunta, ou seja, que esse Outro saiba o que lhe falta. Contudo, nos adverte que, em se tratando do Outro, nenhuma resposta será totalmente satisfatória, marcando uma diferença, uma lacuna entre o que esse sujeito solicitou e o que ele recebeu, revelando uma falta. Assim, Bernard & Dumoulin (2019) afirmam que diante da falta, ou melhor, da lacuna que há entre a demanda e o desejo, o que aparece é a impossibilidade de uma completa satisfação. Desse modo, eles assinalam que na língua francesa há uma frase que corresponde exatamente a isso, que é: “um pedido não satisfeito ‘deixa algo a desejar’” (BERNARD & DUMOULIN, 2019, p. 712)26. Os autores ainda acrescentam que há um paradoxo em questão, pois o sujeito, de certa forma, também deseja que seu pedido não seja satisfeito, pois se seu desejo for satisfeito totalmente, o sujeito não pode mais continuar desejando. Bernard & Dumoulin (2019), também nos apontam que o sujeito eurótico se aliena no desejo do Outro, para que assim esse Outro lhe ordene o que desejar, se colocando como objeto do desejo desse Outro. Eles nos dão como exemplo um sujeito no restaurante. Vamos pensar em um sujeito com seus pequenos constrangimentos em um restaurante, quando o menu chega às suas mãos, ansioso para dizer o que quer, ele se volta para o Outro para ele fazer alguma sugestão, ou seja, a oferta, senão a ordem do dia. Parece, portanto, haver uma alienação voluntária do sujeito neurótico diante do Outro, para o qual ele deixa 26 No original: qu’une demande non satisfaite «laisse à désirer». 119 Flavia Gaze Bonfim (org.) se enganar em seu desejo. Em vez de seguir o caminho de seu desejo, isto é, de sua falta, do que “deixa a desejar” e o separaria do Outro, o neurótico escolhe prontamente uma alienação tranquilizadora, que poderia então ser entendida como “Deixa desejar”. O maître então indica ao sujeito aonde e como ir, até mesmo lhe fazendo várias propostas contraditórias, promovendo a ilusão inibidora de um “constrangimento quanto à escolha” (BERNARD & DUMOULIN,2019, p. 713. Tradução nossa)27 É a partir dessa afirmação que os autores traçam um cruzamento entre a lógica da neurose com a lógica capitalista, no chamado jogo da oferta e demanda. É por meio desse jogo, que eles afirmam que o capitalismo soube industrializar a dialética do desejo e da demanda. Para demonstrar isso melhor, eles recorrem a um pequeno apólogo conhecido como “a arte do vendedor” que Lacan apresenta em seu seminário A lógica da fantasia (1966-1967). Por meio desse apólogo, Lacan demonstra uma arte da oferta disposta a criar demanda, que se fundamenta em fazer um sujeito desejar um objeto do qual não necessita, para assim levar esse sujeito a desejar tal objeto. De acordo com Bernard & Dumoulin (2019), é possível observarmos, por meio desse apólogo, não só como o sujeito pede ao Outro o objeto do qual sente falta e que deveria desejar por si mesmo, mas como esse sujeito está disposto a pagar por um objeto. Com isso, eles elucidam o primeiro princípio da arte de um bom vendedor, que é a de persuadir alguém a desejar um objeto do qual ele não precisa. O desejo, lembramos, é sempre o desejo d’Outra coisa, portanto precisamente do que se distingue da necessiNo original: Pensons ici à ses petits embarras au restaurant, quand le menu entre les mains, pressé de dire ce qu’il veut, il se tournera alors vers l’Autre pour lui demander quelque suggestion, c’est à dire l’offre, si ce n’est l’ordre, du jour. Il apparaît donc une aliénation volontaire du sujet névrosé à la demande de l’Autre, à laquelle il se laisse aller pour tromper son désir. Plutôt qu’emprunter la voie de son désir, c’est-à-dire de son manque, de ce qui «laisse à désirer» et le séparerait de l’Autre, le névrosé opte volontiers pour une aliénation rassurante, ce qui pourrait être alors entendu comme une «laisse à désirer». Le maître indique alors au sujet où et comment se diriger, quitte à lui faire plusieurs propositions contradictoires, lui laissant l’illusion inhibante d’un «embarras du choix». 27 120 Leituras Psicanalíticas dade. E é por isso que nada como a besteira, o supérfluo, algo que não precisamos, faz brilhar o objeto do desejo. Assim, é só uma questão de estimular o sujeito a solicitar esse objeto do Outro, ou seja, convidá-lo a substituir o objeto da lógica de seu desejo a de sua demanda, de acordo com o princípio da neurose. (BERNARD & DUMOULIN,2019, p. 713. Tradução nossa)28. Conforme Lacan (1966-1967), o segundo princípio da arte de um bom vendedor está relacionado ao fato de o vendedor convencer o sujeito de que se ele não comprar o objeto, esse lhe fará muita falta. Isso também ocorre frente a uma ameaça. Melhor dizendo, se o sujeito em questão não comprar o objeto que está disponível naquele momento, há a possibilidade de um outro sujeito vir e comprar em seu lugar o objeto do qual se trata. Com isso, esse outro sujeito terá posse do objeto, e ao possuí-lo será superior e mais feliz diante do sujeito que não comprou. Todavia, Bernard & Dumoulin (2019) apontam que o neurótico está alienado ao desejo do Outro, às suas ofertas e promessas de felicidade, e tentará substituir o seu próprio desejo pelo pedido que esse Outro lhe faz, ao indicar o que o sujeito deve comprar. Conformando-se ao fato de que esse Outro, que pode estar no papel do mercado, de uma publicidade ou de um vendedor, lhe sugira os objetos a serem consumidos. Os autores acrescentam ainda que o sujeito compra repetitivamente na tentativa de se redimir de sua dívida simbólica – que ao instituir o desejo, funda uma falta irremediável – ao adquirir uma dívida financeira em seu lugar e nos lembram que, para Lacan, a dívida simbólica existe, pura e simplesmente, pelo fato do sujeito falar e por mais que se tente, a dívida simbólica jamais será liquidada. A consequência é que mesmo que o sujeito insista, alienando-se às promessas de felicidade sugeridas pelo Outro, ou seja, à felicidade 28 No original: Le désir, avons-nous rappelé, est toujours désir d’Autre chose et donc justement ce qui se distingue du besoin. Et c’est pourquoi rien de tel qu’une connerie, que le superflu, que quelque chose dont on n’a nul besoin, pour faire miroiter l’objet du désir. Après quoi il s’agira en effet de pousser le sujet à demander cet objet à l’Autre, c’est à dire de l’inviter à substituer à la logique de son désir celle de la demande, selon le principe de la névrose. 121 Flavia Gaze Bonfim (org.) ofertada em forma de objeto por um vendedor, o que ocorre é que ele se afasta cada vez mais de seu desejo singular. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo (1970). Portugal: Edições 70. (2014). BERNARD, D; DUMOULIN, Q. Désirer, acheter, consommer. Approche lacanienne. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 22, n. 4, p. 710-724, dez. 2019. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142019000400710&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 28 jan. 2022. COSTA, P. M. Propaganda: o prazer como mercadoria. Signos do consumo – V.3, N.2, 2011. p. 167-180. FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer e outros textos (1920) In: Obras Completas. Vol. 14 / Sigmund Freud; Tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930) In: Obras Completas. Vol. 18 / Sigmund Freud; Tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LACAN, Jacques. Séminaire la logique du fantasme. (1966-1967), Inédito. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2022. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Jacques Lacan; Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; Tradução Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. LACAN, Jacques. Televisão (1973). In: Outros escritos. Jacques Lacan; Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. SANTOS, E. J. O discurso do capitalista e a questão do sujeito no laço social. Dissertação de mestrado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. p. 165. Belo Horizonte, 2009. TEIXEIRA, M. R. Vicissitudes do objeto. Salvador, BA: Àgalma, 2005. ZARETSKY, Eli. Segredos da Alma: Uma história sociocultural da psicanálise. Tradução: Marta Rosas. São Paulo: Cultrix, 2006. 122 CONSUMO E MÍDIAS DIGITAIS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE Camila de Paula Caldeira29 Simone Ravizzini30 INTRODUÇÃO O crescimento das mídias e plataformas digitais deu origem a questionamentos acerca do seu uso e também sobre a relação que se estabeleceu entre elas e a produção de subjetividade na contemporaneidade. Como o acesso ao consumo está cada vez mais facilitado, uma vez que não há mais necessidade de ir até lojas físicas para tomarmos conhecimento de novidades, temos maiores facilidades com a possibilidade de pagamento digital e observamos um encurtamento da distância entre o consumidor e os produtos. A partir de tal constatação no ideário social, este estudo visa questionar se, ao consumir tais objetos, se estaria mais próximo de uma sensação de completude, de satisfação, e quais as consequências disso para o sujeito. DESENVOLVIMENTO Os consumidores têm a impressão de que a posse de determinados objetos ou a possibilidade de realizar qualquer intervenção no corpo que responda às exigências culturais possam trazer felicidade, uma sensação de completude e de satisfação que não existe na realidade, a não ser por um momento muito específico e passageiro. As próprias Pós-graduação em Clínica Psicanalítica (UNILASALLE). Psicanalista. CV: http://lattes.cnpq.br/2460838552626728 30 Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079 29 123 Leituras Psicanalíticas exigências culturais se modificam ao longo do desenvolvimento da sociedade, ou seja, sempre existirá algo novo por meio do qual seja possível alcançar essa suposta felicidade que inclusive é uma ideia vendida pelos meios publicitários e pelo discurso capitalista. De acordo com Freud (1930/2020), o que os seres humanos querem alcançar na vida – e fazem disso seu propósito – é a felicidade, querem ser felizes e permanecer assim. Nota-se, assim, que o que determina o propósito da vida é o programa do princípio do prazer (FREUD, 1930/2020). Por estar em conflito com o mundo inteiro, ele é irrealizável, já que a felicidade não é contínua e só é possível enquanto fenômeno episódico. Assim, a felicidade é limitada de acordo com a própria constituição do ser humano, e, portanto, esse conceito de felicidade como obtenção apenas de prazer é impossível que de fato se alcance. A infelicidade, por outro lado, é muito mais facilmente experimentada (FREUD, 1930/2020). O sofrimento e a infelicidade podem surgir por meio de três fontes: do próprio corpo, do mundo exterior (poder superior da natureza) e da relação com os outros seres humanos, portanto, dos dispositivos que regulam essa relação e da inadequação dos indivíduos a eles. Por conta disso, as exigências de felicidade são reduzidas a um ponto onde seja mais fácil de alcançar. No que diz respeito à terceira fonte de sofrimento, chamada social, Freud (1930/2020) questiona como os dispositivos criados por nós mesmos, que deveriam trazer segurança, benefícios e proteção, são, ao contrário, fonte de sofrimento. Daí a possibilidade de que isso venha da própria constituição psíquica, e a questão de que uma grande parcela da culpa pelo nosso sofrimento vem da nossa cultura, pois a cultura implica ganhar algo e ao mesmo tempo perder outra coisa. Segundo Freud (1930/2020), grande parte da culpa pela miséria dos seres humanos vem da cultura, e seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Por outro lado, é através da mesma cultura que tentamos nos proteger da ameaça que provém das fontes de sofrimento. 124 Flavia Gaze Bonfim (org.) Ademais, o desenvolvimento da cultura é caracterizado pelas modificações que ele empreende nas disposições pulsionais humanas, “cuja satisfação não deixa de ser a tarefa econômica de nossa vida” (FREUD, 1930/2020, p. 346). Como consequência, a cultura é construída sobre a renúncia pulsional, tendo como pressuposto a não satisfação de poderosas pulsões e dominando as relações sociais dos seres humanos. Freud (1920/2020) observa que a pulsão recalcada não desiste de alcançar sua completa satisfação, o que significaria a repetição de uma experiência primária de satisfação. A pressão por um contínuo aperfeiçoamento em alguns seres humanos pode ser entendida como consequência do recalcamento pulsional. Entretanto, mesmo as formações substitutivas, reativas e sublimações não são suficientes para desfazer essa tensão que impele a satisfazer a pulsão, o que não significa que o indivíduo é livre em tal tentativa. Ao contrário, ele “é escravo de um impulso que o impele para um prazer cuja natureza é, ao mesmo tempo, paradoxal, pois em nada se confunde com o bom ou o agradável” (BAUMAN; DESSAL, 2017, p. 21). Segundo Freud, uma pulsão seria “uma pressão inerente ao orgânico animado para restabelecer um estado anterior, pressão que esse ser animado precisou abandonar sob a influência de forças perturbadoras externas” (1920/2020, p. 131). É aí que a pulsão se associa à compulsão à repetição, pois, ainda que não seja uma experiência prazerosa ou que leve à satisfação, ela é repetida por pressão da compulsão (FREUD, 1920/2020). Dessa forma, observa-se que a pulsão não tem apenas o caráter de transformação e de desenvolvimento, mas também existe nela o fator da conservação do ser vivo forçada pela repetição, orientada à regressão. As pulsões, entretanto, não são da mesma ordem. Elas são divididas entre pulsões de vida e pulsões de morte. As primeiras constituem as pulsões sexuais, conservadoras, no sentido de trazerem de volta estados anteriores. Também são mais resistentes às influências externas, preservando a vida por períodos mais longos (FREUD, 1920/2020). 125 Leituras Psicanalíticas Entretanto, é necessário que haja outra pulsão em oposição a essa e que ao invés de tentar conservar a substância vivente e desenvolvê-la, anseia pelo retorno ao estado primordial, inorgânico, a pulsão de morte (FREUD, 1930/2020). A satisfação da pulsão de morte “está conectada a um gozo [Genβ] narcísico extraordinariamente elevado, pelo fato de essa satisfação mostrar ao Eu a realização de seus antigos desejos de onipotência” (FREUD, 1930/2020, p. 375), tentando propiciar ao Eu a satisfação de necessidades vitais e controle sobre a natureza. A cultura encontra nessa pulsão seu obstáculo mais poderoso, uma vez que a pulsão de morte carrega com ela a inclinação originária e autônoma do ser humano à agressão. Ela seria um processo a serviço de Eros, ao tentar agrupar os sujeitos isolados em grupos, tribos, famílias, ou seja, em uma unidade. Esses conjuntos de sujeitos devem ser ligados uns aos outros libidinalmente, pois apenas o campo das necessidades e do trabalho não seriam suficientes para que ficassem unidos (FREUD, 1930/2020). Em determinadas circunstâncias essa estrutura pode desatar e disso pode resultar o desprendimento da pulsão de morte, liberando as barreiras de contenção e impondo até o extremo a autodestruição ou a agressão contra o outro. Na atualidade, isso pode ser relacionado com a convergência entre o discurso do capital e o discurso técnico-científico, na intenção de estabelecer um modelo definitivo, absoluto e imperecível da verdade (BAUMAN; DESSAL, 2017). Para Freud (1930/2020), a forma como a cultura inibe essa tendência à agressividade dos indivíduos é através de sua introjeção, interiorização. Na verdade, a agressão retorna para o lugar de onde veio, ou seja, é voltada contra o próprio Eu e uma parte do Eu – Supereu – opondo-se ao restante como se fosse uma “consciência moral”. O Supereu exerce a agressão contra o Eu e a tensão entre essas duas instâncias resulta na consciência de culpa, que se manifesta pela necessidade de punição. Dessa forma, a cultura lida com a 126 Flavia Gaze Bonfim (org.) tendência à agressão enfraquecendo e vigiando os indivíduos através do Supereu (FREUD, 1930/2020). O sentimento de culpa também tem origem no medo da autoridade externa, a princípio o medo da criança da autoridade dos pais e, portanto, o medo da perda do amor. Nesse caso, o sujeito – a criança – é obrigada a renunciar às satisfações pulsionais para não perder o amor. Já no caso do Supereu, uma vez que, ao contrário do que ocorre com a autoridade, não se pode esconder os desejos proibidos dele, obriga, então, à punição. A severidade do Supereu prolonga a severidade da autoridade externa, interioriza-a, numa espécie de substituição (FREUD, 1930/2020). Ao questionar qual seria a relação entre a renúncia pulsional e a consciência de culpa, Freud (1930/2020) aponta que ao se realizar a renúncia por medo da autoridade externa não restaria sentimento de culpa, pois estaria mantendo, garantindo, o amor. Porém, isso não ocorre com o medo do Supereu. Apesar da renúncia ser bem-sucedida, restará o sentimento de culpa e a tensão de tal sentimento resulta em uma contínua infelicidade. Freud (1930/2020) articula também a ideia da “consciência moral” relacionada à cultura e, logo, com a forma de estarmos em sociedade. Ainda que essa seja uma instância interna, ela é também afetada pelo meio externo, havendo um lado do Supereu que trabalha com as exigências próprias do sujeito e outro que internaliza as exigências externas, por meio da educação, por exemplo. De tal forma, a comunidade também forma um Supereu e sua origem é semelhante àquela do sujeito. Tanto o “Supereu-da-cultura” quanto o do sujeito estabelece severas exigências ideais – como se deve pensar, agir, falar –, que se não forem cumpridas levam à punição (FREUD, 1930/2020). Os processos de desenvolvimento cultural da massa e da própria pessoa são, portanto, colados um ao outro. Nesse ponto, retornamos ao que Freud expõe acerca da terceira fonte de sofrimento, a social. Entre o sujeito e o coletivo – tanto os 127 Leituras Psicanalíticas semelhantes quanto as instituições que os organizam –, sempre haverá um conflito, pois as condições externas dificilmente serão ideais. Segundo Bauman e Dessal (2017), os impulsos dos seres humanos vão de encontro com as exigências culturais. Uma vez que para a cultura se desenvolver requer que se perca algo à custa de outra coisa, Bauman e Dessal (2017) enunciam que a tensão entre os desejos individuais e as demandas sociais se afrouxaria caso fosse possível atender às duas exigências ao mesmo tempo, mas é impossível que isso ocorra. Para atingir uma vida suportável, “vivível”, são indispensáveis tanto a liberdade de agir de acordo com os próprios impulsos e desejos, quanto às restrições impostas pela cultura. Assim, é possível o equilíbrio para que não resulte em uma desorientação e nem em uma escravidão. Afinal, o descontentamento é fruto do processo civilizador (BAUMAN; DESSAL, 2017): para estar na cultura é necessário perder algo. Em nosso tempo, entretanto, a fartura na oferta de produtos gera ansiedade e urgência para consumir e a facilidade de abandonar os outros objetos comprados anteriormente, que, agora, já não possuem mais o mesmo valor, porque ultrapassados (BAUMAN; DESSAL, 2017). Segundo Bauman e Dessal (2017, p. 43), A vida da geração jovem é vivida hoje num estado de emergência perpétua. É preciso manter os olhos bem abertos e aguçar os ouvidos de forma constante para captar de imediato as visões e os sons do novo: o novo que sempre “já está vindo”, a uma velocidade só comparável à de um bólido que passa e se esfuma num instante. Não há um momento a perder. Desacelerar é desperdiçar. LAÇO SOCIAL E DISCURSOS O psicanalista Romildo do Rêgo Barros (2005) declara que há uma transformação no laço social e na relação mantida com os objetos 128 Flavia Gaze Bonfim (org.) de consumo, em que muitas vezes sequer se questiona o porquê de se estar consumindo, comprando-se apenas por existirem. Dessa forma, no consumismo, a demanda do sujeito se torna menos específica, a sociedade passa a se concentrar na produção propriamente e o objeto perde a sua referência (ainda que ilusória) à necessidade. A publicidade e o marketing agem continuamente ao não abrir espaço para o intervalo em que o objeto faltaria, pois vendem sempre algo novo que vem para ocupar esse lugar de falta. Consequentemente, os objetos passam a ser considerados em série, um em relação a outro, e o recurso utilizado para que se mantenha essa lógica e um equilíbrio entre objetos e demandas do sujeito é por meio de estratégias baseadas na repetição e na insistência (BARROS, 2005). Na dinâmica das mídias digitais é possível perceber com clareza essa relação que se estabelece com o consumo, pois atualmente elas são um dos principais lugares onde o laço social acontece, ainda que virtual. É nesse espaço que o consumo é compartilhado, como, por exemplo, as mais novas compras, os objetos mais atualizados, os procedimentos de estética, as viagens mais interessantes. Com isso, o próprio limite entre o público e o privado fica cada vez menor diante da “necessidade” de ter que compartilhar para poder, de alguma forma, validar o que foi feito e atestar a felicidade. Portanto, a partir do que foi exposto por Freud (1930/2020) acerca da felicidade e do processo civilizador, é plausível o questionamento sobre qual relação existe entre a busca da felicidade ideal e a forma como os sujeitos se inserem no laço social, que atualmente é cada vez mais mediado pelas redes sociais. A partir do momento que essa busca da felicidade passa pelo consumo e se dá como um tipo de prestação de contas – enquanto resposta a um “Supereu-da-cultura” (FREUD, 1930/2020, p. 400) –, isso tem consequências nas formas de enlace entre os seres. Ao mesmo tempo em que os meios de comunicação são aprimorados, as formas de enlace são ampliadas. Entretanto, no mundo contem129 Leituras Psicanalíticas porâneo, apesar das muitas possibilidades de conexão, ouve-se, por toda parte, muitas queixas sobre infelicidade, solidão e uma sensação de incompletude e de vazio. Como pensar esse enlace entre um e outro ser de fala na atualidade? Para Lacan, o laço social deve ser pensado enquanto discurso e em articulação com a linguagem, fundado sobre ela (LACAN, 197273/2008). Os laços sociais são também aparelhos de gozo, pois esses vínculos suscitam um esvaziamento e enquadramento de gozo ao estabelecer maneiras conviviais de se relacionar com o outro (QUINET, 2012), pois é assim que a civilização se estrutura. Então, para elaborar essa noção de discurso, Lacan (196970/1992) pontua que há nele uma estrutura que está além das palavras propriamente, e que elas são até mesmo um tanto ocasionais, chamando-o de “discurso sem palavras”. É sem palavras porque o discurso pode subsistir sem elas, mas, estabelecendo certas relações fundamentais que só podem se manter através da linguagem. O discurso enquanto laço social “funda um fato estabelecendo vínculo entre aquelas pessoas concernidas” (QUINET, 2012, p. 48). O que se trata aqui é de uma relação entre um agente (dominante) e um outro (dominado), estabelecendo o laço entre o par e provocando uma produção, um efeito. Para que isso aconteça, não é necessário palavras, um lugar físico ou uma posição específica no meio social, basta um ato. Logo, uma mesma pessoa pode ser agente de discursos diferentes. Uma relação fundamental se define entre dois significantes, os quais se escrevem como S1 e S2, e disso resulta a emergência de um sujeito, pois ele é sempre efeito do discurso, consequência da estrutura que o determina (KOSOVSKI, 2010). Ou seja, um significante (S1) funciona representando esse sujeito ($) junto a outro significante (S2), definindo as estruturas dos discursos. Como aponta Kosovski (2010, p. 290), “o discurso é o que estrutura o mundo real, e sobre suas diferentes configurações se fundam os laços sociais mais fundamentais entre os seres falantes”. 130 Flavia Gaze Bonfim (org.) Lacan, então, formula a teoria dos discursos partindo da estrutura do discurso do inconsciente (VALAS, 2001), o qual ele considera como o discurso de base, e que vem a ser formalizado como do mestre, desenvolvendo, em seguida, mais três discursos. Essa estrutura dos discursos é constituída de quatro lugares fixos: o agente, que também é o lugar do semblante e vai caracterizar o discurso, o outro (trabalho), a produção (perda) e a verdade. Figura 1: Os lugares do discurso Fonte: LACAN, 1970/2003, p. 447 Além disso, compõem essa estrutura quatro elementos variáveis que irão ocupar esses lugares e definir o discurso: S1 é o significante mestre, que representa o poder e é aquele que ordena a cadeia significante, S2 é o saber, $ é o sujeito dividido e a é o objeto mais-de-gozar. Figura 2: Os discursos Fonte: LACAN, 1972, p. 32. 131 Leituras Psicanalíticas Todo discurso é sustentado por uma verdade a partir da qual o agente se autoriza. Desse lugar partem vetores, mas nunca chegam vetores, pois não há relação da verdade com a produção. Isso é indicado como uma impotência, uma não-relação, uma barreira, uma disjunção. O lugar da verdade suporta o agente do discurso e o agente se relaciona com o outro (ou trabalho) e disso extrai uma produção. Os discursos também são compostos por uma impossibilidade (acima da barra, entre o agente e o outro). Lacan formula isso a partir do que Freud denomina como as três profissões impossíveis: governar, educar e psicanalisar, e introduz uma quarta relação impossível que seria fazer desejar. Segundo Freud (1937/2017, p. 332), “é quase como se o analisar fosse aquela terceira das profissões ‘impossíveis’, em que se tem certeza de antemão do resultado insuficiente”. São impossíveis porque nunca serão realizadas completamente, uma vez que o resultado sempre vai deixar a desejar. Apoiado nos impossíveis denominados por Freud, Lacan também nomeia os quatro discursos: o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso do analista e o discurso da histérica, respectivamente. “Eles são uma proposta de formalização dessas modalidades de vínculo entre as pessoas” (QUINET, 2012, p. 50). A sucessão dos elementos no discurso não pode ser desarrumada em sua ordem, mas os elementos podem mudar de localização obedecendo à operação de um quarto de giro. A partir do deslocamento dos elementos, obtêm-se os quatro discursos que se diferenciam em função do lugar que esses elementos irão ocupar. Mais tarde, na conferência de Milão em 1972, Lacan formaliza o discurso do capitalista como uma inversão, deslizamento ou derivação do discurso do mestre, sendo ele que nos interessa neste estudo. Na virada do discurso do mestre para o discurso do capitalista, diferentemente do que ocorre com os outros discursos, a verdade é a do capital: ele é o significante mestre, o agente é o consumidor, o saber é o da ciência e da tecnologia e o que se produz são os objetos de consumo enquanto objetos de gozo. A relação estabelecida nesse discurso 132 Flavia Gaze Bonfim (org.) não é do sujeito (agente) com o outro, mas com um objeto (a), que nesse caso é a mercadoria, gadget, fabricado pela ciência e tecnologia (S2) e que é vendido como se fosse o objeto de desejo do consumidor (QUINET, 2012). Além disso, não existe o vetor indicando a relação de impossibilidade que caracteriza os discursos como laço social, não ligando o agente ao outro, portanto, não fazendo laço. Assim, o sujeito dividido tem acesso direto, sem mediação do saber, ao objeto a (mais-de-gozar), resultando em uma alienação e em um sujeito submetido ao imperativo do significante mestre, que é o imperativo do gozo. Isso indica uma passagem do “supereu freudiano” que nega e que proíbe o gozo, para o “supereu lacaniano, que diz ‘goza’ (consuma), ‘trabalhe’ (funcione) e goze trabalhando” (DUNKER, 2019, p. 126). Por essa relação direta, o sujeito, reduzido a consumidor, é ele mesmo consumido. Assim, o próprio consumidor, de certa forma, se confunde com o produto que passa a definir o sujeito (DUNKER, 2019). O PAPEL DA INTERNET E DAS MÍDIAS DIGITAIS Enquanto os outros discursos colocam a castração e a falta em jogo, ainda que seja tentando recobri-la, o discurso do capitalista a rejeita e não considera o furo. Ao negar a castração, nega-se a falta estrutural que concerne ao sujeito e que movimenta o desejo. Tenta-se manter, assim, um sujeito completo, não dividido, implicando uma “infinitização” dessa busca pela completude. Quinet (2012) aponta que o discurso capitalista fabrica um sujeito que gira em torno do “desejo capitalista” e interpreta sua falta estrutural, a falta-a-ser. Segundo o autor, essa falta vira falta-a-ser-rico e a falta-de-gozo vira falta-a-ter-dinheiro. A relação que é promovida no discurso capitalista é entre o sujeito e um objeto de consumo curto e rápido (gadget), estimulando a ilusão de completude com um parceiro conectável e desconectável que está ao alcance das mãos, e não mais com uma pessoa. Regida por tal discurso, a sociedade se nutre pela fabricação da falta de gozo, produzindo sujeitos insaciáveis que nunca conseguem comprar tudo aquilo 133 Leituras Psicanalíticas que supostamente desejam em sua demanda de consumo (QUINET, 2012). Entretanto, Crary (2014, p. 46) afirma que O mais importante agora não é o aprisionamento da capacidade de atenção por um objeto delimitado – um filme, um programa de televisão ou uma música –, cuja recepção em massa parece ser a grande preocupação de Stiegler, mas a transformação da atenção em operações e respostas repetitivas que sempre se sobrepõem a atos de olhar e de escutar. Não é a homogeneidade dos produtos de mídia que perpetua a segregação, o isolamento e a neutralização dos indivíduos, mas os arranjos compulsórios nos quais esses elementos, assim como muitos outros, são consumidos. O “conteúdo” visual e auditivo é na maioria das vezes um material efêmero, substituível, que, além de sua condição de mercadoria, circula para habituar e validar nossa imersão nas exigências do capitalismo do século XXI. Conforme aponta Crary (2014), as ilusões de domínio, vitória e posse, são modelos cruciais para a intensificação do consumo 24/7 (24h por dia nos sete dias da semana). As atividades do mundo real, que não tem o correlativo virtual, acabam por perder sua relevância, pois sempre haverá algo online mais informativo, interessante, surpreendente, divertido do que qualquer coisa disponível nas condições reais imediatas. Além disso, os algoritmos fazem com que, ao visitar uma página ou visualizar um produto, apareçam na tela várias opções de compra desse produto ou similares em lojas diferentes. Ou seja, os dispositivos colocam os consumidores em contato com vários outros produtos que não estavam nem mesmo procurando a princípio (CRARY, 2014). Atualmente, com a diversidade de dispositivos capazes de ocupar todo o nosso tempo, há pressão para que os sujeitos se reconfigurem e reimaginem a si mesmo, e aí reside a diferença para os dias atuais. As pessoas passam a se identificar com as uniformi134 Flavia Gaze Bonfim (org.) dades e valores das mercadorias, assim como dos vínculos sociais desmaterializados (CRARY, 2014). Entretanto, o incentivo desses supostos benefícios acoberta o fato de que a maioria das relações sociais é transferida para formas monetizadas e quantificáveis. As condições e o estilo da vida individual também mudam, pois a privacidade se torna impossível já que as pessoas são transformados em local permanente de vigilância e coleta de dados. O alinhamento aos vários produtos, serviços e “amigos” que consumimos, administramos e acumulamos tem consequências, como o empobrecimento sensorial, a redução da percepção do hábito e as respostas programadas. Um exemplo disso é o fenômeno dos blogs, onde prevalece o diálogo unidirecional consigo mesmo. Não há, nesse tipo de mídia/plataforma digital, a possibilidade de escutar ou esperar outra pessoa (CRARY, 2014). CONSIDERAÇÕES Tudo se tornou rápido demais. O consumo, hoje, está presente em todas as horas de nossos dias e o limite entre público e privado é cada vez mais estreito. Uma vez que tal consumo se tornou uma via para adquirir certas posições sociais, leva também a competições entre as pessoas sobre quem tem mais, quem compra mais, e consequentemente quem é mais feliz. Mas algo resta e insiste em não ser completado. Para a psicanálise, o desejo, por definição, é sempre insatisfeito e é isso que faz o ser falante se movimentar sempre em busca de outra coisa. Isso só é possível devido à incompletude, à falta estrutural de cada um. Entretanto, sustentar tal posição perante a falta fica cada vez mais difícil em tempos em que a tentativa de apagamento do desejo através da ideia de completude, de que não há espaço para a falta, é perpetuada pelas propagandas e pelo discurso capitalista. O objeto que se encontra nunca é aquilo pelo qual se anseia, e nessa insatisfação reside a marca distintiva do desejo. Pensando nos objetos de consumo, eles não são sinônimos de objetos de necessidade. 135 Leituras Psicanalíticas O capitalismo existe justamente porque “se dedica à fabricação em massa de objetos cuja virtude fundamental consiste em entrar em sintonia com o objeto inconsciente que opera como causa de nossos desejos” (BAUMAN; DESSAL, 2017, p. 56). Tal relação que se estabelece com os objetos, leva a um apagamento dos sujeitos, que estão imersos nos imperativos de consumo, de gozo. O sujeito, dividido, surge como efeito da articulação significante, e é nessa divisão que o desejo pode aparecer. Assim, ele pode encontrar outra forma de se relacionar com os objetos, não mais pela via da completude, mas sim sustentando a falta. Resta à psicanálise possibilitar àqueles que a seguem um lidar melhor com esta falta sem pretender extirpá-la. Diante desta, é preciso um saber fazer, um inventar, tal como na poesia, escrevendo no vazio as letras possíveis de nosso existir. As mídias digitais vieram para ficar e problematizar o uso delas não significa demonizá-las ou dizer que não se pode fazer isso ou aquilo, mas colocar em questão qual é exatamente o uso que se faz delas e como determinada forma de participar desse ambiente pode, na maioria das vezes, tentar suprir algo que é da ordem do impossível, ou seja, a falta. REFERÊNCIAS BARROS, R. R. Um objeto que não se consumiria nunca. Subjetividade e contemporaneidade, [s.l.], n. 16, ano X, 2005. Disponível em <https://www.yumpu.com/pt/document/ read/12735359/um-objeto-que-nao-se-consumiria-nunca-instituto-de-psicologia-da->. Acesso em: 19 jan. 2022. BAUMAN, Z.; DESSAL, G. O retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. CRARY, J. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. DUNKER, C. O discurso do capitalista: espectros de Marx em Milão. Teoría y Crítica de la Psicología, México, v. 13, p. 108-130, 2019. Disponível em <https://teocripsi.com/ojs/ index.php/TCP/article/view/282/255>. Acesso em: 19 jan. 2022. FREUD, S. Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 1920/2020. FREUD, S. Mal-Estar na Cultura. In: Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 1930/2020. 136 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 1937/2017. KOSOVSKI, G. F. O semblante, o corpo e o objeto. Fractal, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 285-296, maio/ago. 2010. Disponível em <https://www.scielo.br/j/fractal/a/HtmjBWrXTBMj3JtDkMkBjvR/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 19 jan. 2022. LACAN, J. Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972. In: Lacan in Italia (1953/1978), Milão Salamandra, pp. 32-55, 1972. LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1969-70/1992. LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1972-1973/2008. LACAN, J. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970/2003. VALAS, P. As dimensões do gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 137 FUTURO DE MERCADOS COMUNS: EFICÁCIA E DOCILIDADE Marcos Vinicius Brunhari31 Os avanços e os progressos civilizatórios, segundo a perspectiva de Freud em seu “Mal-estar na cultura” (1930/2020), envolvem certo preço a ser pago por aquele que aí se insere. Trata-se da subtração daquilo que idealmente poderia compor a plenitude do programa de felicidade e que, por outro lado, se apresenta como sentimento de culpa derivado das restrições que se impõem ao campo pulsional. Mal-estar fundante da coletividade e da sociedade, sua incidência é indicada por Freud a partir da distinção de três patamares desde os quais o sofrimento pode se originar: o próprio corpo como fonte de sofrimento por estar condenado ao declínio e à dor; a externalidade desde onde forças esmagadoras geram catástrofes naturais e acidentes; e, a mais penosa das fontes de sofrimento, aquela que provém dos relacionamentos humanos e que pode ser entendida como de ordem social, já que inclui a mutualidade em sociedade enquanto originária do mal-estar. É a partir deste terceiro item que se torna verificável a insuficiência dos regimentos sociais para dar conta do sofrimento, dado que sua edificação se sustenta pela renúncia pulsional. Essa perda referente à satisfação é o esteio da mutualidade e do funcionamento disso que se sustenta pela impossibilidade, visto que o laço social não se confunde com uma restituição do que se perdera. Será na segunda metade da década de 1960, com um pontual comentário de Lacan (1967/inédito), que um além do mal-estar poderá ser cogitado nos termos dos efeitos de segregação. A saber, afirma Lacan (1967/inédito): Doutorado em Psicologia Clínica (USP). Professor Adjunto (UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/3882607540204690 31 138 Leituras Psicanalíticas Os progressos da civilização universal vão se traduzir não apenas por certo mal-estar como já o Sr. Freud havia se dado conta, mas também por uma prática que verão se tornar mais estendida, e que não mostrará sua verdadeira face imediatamente, mas que tem um nome com o qual, mude ou não, sempre irá dizer o mesmo e vai ocorrer: a segregação. Dessa maneira, é possível vislumbrar uma descontinuidade no cerne do processo civilizatório que não é apenas atrelada à destruição, mas sim ao próprio avanço. É enquanto efeito de segregação que o progresso pode ser pensado em seu avesso; e, como além do mal-estar, sua problemática pode ser franqueada sob a forma de engodo político. Seja como avesso do progresso civilizatório ou como engodo político, o efeito de segregação permite-se atrelar à atualidade do neoliberalismo. Tomando isso como objetivo, buscaremos destacar - a partir de Achille Mbembe (2020) e de Giorgio Agamben (2008) - dois pontos cruciais que articulam os efeitos de segregação ao que Lacan refere a respeito do futuro de mercados comuns. ALÉM DO MAL-ESTAR, O PROGRESSO SOB O NEOLIBERALISMO Em “Políticas da inimizade” (2020), Achille Mbembe propõe uma releitura retroativa do presente em uma empreitada cujo mote se edifica enquanto crítica do tempo atual e que leva em consideração a atualidade do repovoamento e da globalização do mundo. É a partir da égide do militarismo e do capital que o filósofo camaronês delimita uma inversão da democracia desde traços característicos da época em que essa forma de governo encontra a sua política ameaçada. A narrativa oficializada que conjuga democracia e pacificidade se torna efêmera quanto à afirmação que sustenta a ausência da brutalidade e da violência física sob a égide do Estado e da restrição imposta, desde então, aos membros da sociedade. Segundo Mbembe (2020, p. 37), “a 139 Flavia Gaze Bonfim (org.) brutalidade das democracias somente foi abafada” e, em seu princípio, o processo democrático inclui certa tolerância a determinadas formas de violência como, por exemplo, aquelas executadas por instituições privadas ou por forças de grupos de milícias ou paramilitares. O abafamento constitucional, já vislumbrado pela perspectiva freudiana (1930/2020) a respeito da agressividade e do mal-estar implícito ao laço social, é apregoado pelo filósofo ao inventário amargo da democracia, que traz em seu cerne a integração entre três ordens: da plantation, da colônia e da democracia. Trata-se da mesma matriz que historicamente sustenta as distintas ordens em sua estrutura e que permite uma perspectiva contemporânea sobre a brutalidade. Nesse sentido, as conquistas coloniais se ofereceram como espaço privilegiado e experimental para o poderio técnico que, em suas últimas consequências, abriu o caminho para o campo de concentração e para as ideologias genocidas da modernidade (MBEMBE, 2020, p. 46): A história da democracia moderna é, no fundo, uma história de duas faces, ou melhor, de dois corpos: o corpo solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro. O império colonial e o Estado escravagista – e, mais precisamente, a plantation e a colônia penal – constituem os maiores emblemas desse corpo noturno. Se a democracia carrega em si o mundo colonial, o contrário também se faz legítimo. É assim que o funcionamento e a sobrevivência das democracias “são pagas ao preço da externalização da sua violência originária em lugares outros, os não lugares cujas figuras emblemáticas são a plantation, a colônia ou, atualmente, o campo e a prisão” (MBEMBE, 2020, p. 53). Os não lugares que perpassam a história não são desvitalizados nas democracias, que relutam frente ao temor de que essa violência, idealizada em uma ideia de latência, venha à tona e perturbe a ordem política. Ameaça causada por aquilo que alteraria a concepção de uma política feita de si mesma; um perigo que faz recuar diante a brutalidade implicada no não-lugar – ou, como podemos aventar: o umbigo da democracia. 140 Leituras Psicanalíticas Em continuidade ao que se destaca sobre o não-lugar nas democracias, e mantendo as devidas singularidades históricas de cada tema, é possível também recuperar em Agamben (2008) a proposta de um fator de indizibilidade presente no testemunho dos horrores dos campos de concentração e de extermínio da Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, Auschwitz tem certa localização na medida em que deflagra um descompasso histórico. É aí que uma lacuna se presentifica na função do testemunho derivado daquele período histórico específico: aquilo que se testemunha pelos sobreviventes apresenta uma dimensão intestemunhável em relação à amplitude dos horrores vivenciados. Para Agamben (2008, p. 43): A testemunha comumente testemunha a favor da verdade e da justiça, e delas a sua palavra extrai consistência e plenitude. Nesse caso, porém, o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta; contém, no seu centro, algo intestemunhável, que destitui a autoridade dos sobreviventes. As ‘verdadeiras’ testemunhas, as ‘testemunhas integrais’ são as que não testemunharam, nem teriam podido fazê-lo. São os que ‘tocam o fundo’, os muçulmanos, os submersos. Primo Levi ilustra a sustentação dessa tese, especialmente naquilo que Agamben denomina de uma “descoberta inaudita” (2008, p. 30), ao isolar um elemento ético derivado da conjunção entre o algoz e a vítima. A zona cinzenta que caracteriza essa conjunção alude, por exemplo, aos que compunham o Sonderkommando – prisioneiros que, concomitantemente ao lugar ocupado, eram responsabilizados pela logística das câmaras de gás e dos fornos crematórios. O relato de uma partida de futebol entre estes prisioneiros e os membros da organização paramilitar nazista poderia ser compreendido com um momento de normalidade em um cenário tão aterrador, mas é pungente e brutal à medida em que escapa a qualquer possibilidade de escrita e de tradução. A palavra da testemunha vale por aquilo que falta e seu relato inclui, em seu âmago, um não-testemunhável que se reporta àqueles que 141 Flavia Gaze Bonfim (org.) não puderam falar. O ato de testemunhar adquire potência mediante o impossível enxertado na estrutura do campo da linguagem. Agamben (2008) vai além ao afirmar ser o testemunho sempre um ato de autoria e que este é verdadeiro pois se ocupa daquele que já deixou de existir. O testemunho tem como parâmetro tanto a impossibilidade, enquanto operador que faz frente à plenitude do dito, quanto a destituição mais aterradora da condição de ser falante. Aquilo que ressaltamos sobre o não-lugar nas democracias e o fator de indizibilidade diante dos horrores testemunhados a partir dos campos de concentração e de extermínio devem ser considerados em sua singularidade histórica e política. Resguardado o sustentáculo ético que assegura o fator histórico em sua forma e ressonância única, é possível indicar, a partir daquele que se localiza na zona do indizível e do inaudito, uma condição na qual se destitui o ser falante mediante a brutalidade que se impõe de forma maciça por via de uma política. Essa condição foi destacada por Lacan (1967/2003), em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, e pode ser aqui recuperada pontualmente com a finalidade de introduzir um argumento sobre os efeitos de segregação. Lacan (1967/2003) trata das estruturas asseguradas da psicanálise e, dentre estas, considera a diferenciação entre psicanálise em extensão e em intensão como que sustentada na proposta da psicanálise enquanto experiência original, orientada pela transferência, cujo termo aponta para o sujeito em um “decair de sua fantasia” (p. 257). Esse decair se alinha, neste período do ensino, à travessia da estrutura fantasmática proposta no “Seminário livro 15: o ato psicanalítico” (1967-68/inédito) como “queda do sujeito suposto saber e sua redução ao advento desse objeto a, como causa da divisão do sujeito, que vem ao seu lugar” (1967-1968/inédito). A destituição, de tal forma operada, assinala o decair em direção ao saber sobre a falta fundamental. Diferencia-se, dessa maneira, uma de outra forma de destituição – aquela que pode ser promovida pelo uso político do avanço tecnológico. Segundo Lacan 142 Leituras Psicanalíticas (1967/2003, p. 257), o real da ciência “destitui o sujeito de modo bem diferente em nossa época quando apenas seus partidários mais eminentes, como um Oppenheimer, perdem a cabeça”. Destituição outra, portanto, que pode vir a ser sinônimo de morte e destruição, como a provocada pela bomba atômica. Essa forma de destituição do sujeito é, na Proposição, tomada como uma ampliação dos processos de segregação, que tem um horizonte no que se viu emergir dos campos de concentração, sua antecipação (LACAN, 1967/2003, p. 262): A terceira facticidade, real, sumamente real, tão real que o real é mais hipócrita [bégueule] ao promovê-la do que a língua, é o que torna dizível o termo campo de concentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagando do humanismo ao terror, não se concentraram o bastante. Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Atrelados ao real dos campos de concentração e aos aspecto de não-lugar na história das democracias e ao impossível de se testemunhar, os efeitos de segregação são asseverados por Lacan em uma lógica mercadológica: “nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (p. 263). Um equilíbrio mercadológico se tornará factível em um futuro em que a segregação será ampliada com base em uma certa lógica que não se restringe à da produção. Isto que se configura como mercado comum pode corresponder ao que vislumbramos atualmente como uma razão neoliberal, cujo imperativo normativo se fixa como uma lógica que incide sobre o Estado e sobre o mais íntimo de cada membro da sociedade (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 34). A razão que se equilibra pela ampliação dos efeitos de segregação pode ser equiparada aos processos desde os quais se destitui o 143 Flavia Gaze Bonfim (org.) sujeito ao preço de fazer emergir uma ontologia empresarial de si. É possível, assim, propor que seja em nome da empresarização de si que a destituição do sujeito opera. De acordo com Morozov (2018, p. 33), “o capitalismo dadocêntrico adotado pelo Vale do Silício busca converter todos os aspectos da existência cotidiana em ativo rentável”. A vida rentável é parte do escopo da racionalidade neoliberal e seu alcance massificante encontra pleno licenciamento na Web 2.0 enquanto política a não ser, estrategicamente, assim definida. Trata-se de uma política que o Discurso Capitalista (BRUNHARI, 2021) difunde com a ascensão do mercado, a qual não deixa de ser notada por Lacan (1968-1969/2008) ao afirmar que “o capitalismo introduz algo que nunca se vira, isso que é chamado de poder liberal” (p. 232). Observa-se que essa política não se ocupa apenas de um plano econômico em que o mercado exerce suas práticas livres. Há uma interferência disso sobre a normatização da vida cotidiana e a imposição de uma competição generalizada, e isso pode se fundamentar nas proposições de Foucault (1978-1979/2004), referentes a um estudo sobre o neoliberalismo, em que o autor procura analisar a razão política da governamentalidade. Esta razão se constitui como uma gestão, que remete aos princípios do liberalismo político, determinante sobre as condutas humanas. Segundo Foucault (1978-79/2004, p. 94): A nova arte governamental vai então apresentar-se como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo ‘sê livre’, como a contradição imediata que esse imperativo pode implicar. Não é o ‘sê livre’ que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente isto: vou produzir-te algo com o qual se pode ser livre. Vou fazer com que sejas livre de ser livre. É como dispositivo de governamentalidade que essa razão política se difunde em seu aspecto de normatização da vida cotidiana. A liberdade se torna o produto que, doravante, não coincide apenas com o estatuto de mercadoria, mas também com a capacidade de consumir 144 Leituras Psicanalíticas o consumidor. Essa coincidência entre consumo e consumidor pode ser notada pelo velamento da divisão do sujeito, processo que propomos ser associável ao encontro entre sujeito e objeto proporcionado pelo Discurso Capitalista. Esse encontro de consumação, em que uma falsa restituição se consuma pela via do consumo do objeto produzido em larga escala, corresponde ao velamento da divisão e destituição do sujeito. Isto aponta para o fato de que este discurso não promove o laço social, já que a (não) relação que se estabelece é entre o sujeito ordenado pela falta de gozo e o objeto de consumo acessível, o gadget. Diferentemente do Discurso do Mestre (hegeliano) em que o laço se estabelece entre o senhor e o escravizado, o senhor moderno tende a desaparecer do lugar dominante e tornar agente aquele sujeito voraz. Compreende-se que “a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar” (LACAN, 1970/2003, p. 434). O gadget é o fundamento de uma economia que, em larga escala, se torna uma gestão na qual o sujeito padece disto que é fabricado para ser consumido em uma acoplagem que visa suspender a divisão e ratificar a consumação. Como destacamos anteriormente, a partir de Dardot e Laval (2016, p. 16), temos que cada membro da sociedade deve “conceber a si mesmo e comportar-se como uma empresa”. Trata-se de uma empresa-de-si que se funda na gestão de acordo com a qual os esforços e resultados devem ser intensificados e os gastos minimizados em função de uma determinada eficácia. Sobre isso, acompanhamos a afirmação de Milton Santos (2000, p. 53): Como as técnicas hegemônicas atuais são, todas elas, filhas da ciência, e como sua utilização se dá ao serviço do mercado, esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência, considerada, ela própria, infalível. Essa, aliás, é uma das fontes do poder do pensamento único. A política que não se faz pelo laço social gera como resultado o indivíduo tecnologicamente dócil que tem como causa o objeto produzido 145 Flavia Gaze Bonfim (org.) em larga escala. Propomos que a relação de consumação do sujeito com este objeto gera como efeitos as possibilidades de supressão de uma divisão em nome da resposta a um projeto de eficácia para este que tem velada sua divisão em um isolamento que o conduz à estratificação e à miséria subjetiva. A EMPRESA-DE-SI COMO RECHAÇO DO SINGULAR A proposta de que esse processo pode ser entendido a partir das referências ao corpo noturno das democracias e ao indizível do testemunho encontra auxílio para sua fundamentação nas afirmações de Agamben (1995) a respeito do campo de concentração como fato histórico e, mais além, como matriz oculta do espaço político no qual vivemos atualmente. Aliás, questiona-se se o presente é marcado pela característica oculta dessa matriz, já que podemos alinhar alguns exemplos bastante evidentes durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. A interrogação acerca do estatuto jurídico e político do campo de concentração expande a incidência do que é materializado sem estar circunscrito ao passado sombrio da Europa em guerra. Esse espaço político remete ao que Agamben (1995) reconhece como estado de exceção em sua mais plena soberania e prática. O campo torna-se assim um território (não necessariamente em termos físicos) exterior às coordenadas do ordenamento jurídico, embora sua presença de fato esteja assentada sobre um território interno a essas ordenações legais. Esse espaço conjuga, em um conjunto indissociável, o que se define como vida nua e a norma em um Estado moderno que centraliza em seus cálculos a vida biológica, e a esta impõe regras por possuí-la à sua disposição. O poder soberano dispor da vida significa que a morte está em jogo. Dentro desse domínio, Agamben (1995) recupera do direito romano arcaico a figura do homo sacer, o qual tem a vida nua totalmente disponível à soberania. Essa vida torna-se banal e o espaço do campo prevalece em razão desta ser uma vida ser matável. 146 Leituras Psicanalíticas Recentemente, esse aspecto da vida matável se reconfigura em uma proposta conceitual sobre a necropolítica, de Achille Mbembe (2018), na qual a tecnociência oferece subsídios à construção de um maquinário empregado na destruição máxima de pessoas e na criação de mundos mortos como novas formas de existência social. A devastação das massas, que podemos entender como o extremo do remanejamento, é pensada pelo autor em associação à colonização, ao escravismo e ao massacre. Para finalizar, há um preço a ser pago que pode ser atribuído ao velamento da estrutura na qual o sujeito se divide em sua relação com o objeto a. A concentração das massas humanas universaliza a empresa-de-si como agente eficaz e dócil não como um animal ou mesmo como cadáver, mas pelo rechaço do que é mais singular. A universalização do sujeito supõe que a divisão seja extirpada em nome de um encontro forjado com o gozo. Esse encontro tem como fundamento a destituição operada pelo ilimitado da tecnicização e remete à matriz do campo de concentração na medida em que reduz a divisão do sujeito assim incorporado a uma categoria isolada. O velamento da divisão e a destituição da estrutura fantasmática podem ser compreendidos como a disponibilização do que ocuparia o lugar de resto. O futuro de mercados comuns se equilibra, desse modo, em um efeito de segregação que anula a divisão em nome da estratificação. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. (1995). Homo sacer – O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG. AGAMBEN, G. (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo. BRUNHARI, M. V. (2021) Fascismo e Discurso Capitalista: um objeto sintético. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental [online]. 2021, v. 24, n. 03 [Acessado 09 Março 2022], pp. 597-617. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n3p597.7 DARDOT, P. e LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. 147 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, S. (1930/2020). Mal-estar na cultura. In. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica. FOUCAULT, M. (1978-79/2004). Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70. LACAN, J. (1967/2003). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1967/inédito). Breve discurso aos psiquiatras. LACAN, J. (1967-1968/inédito). O Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. LACAN, J. (1968-69/2008). O Seminário, livro 16 – De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1970/2003). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. MBEMBE, A. (2018). Necropolítica. São Paulo: n-1 edições. MBEMBE, A. (2020). Políticas da inimizade. São Paulo: n-1 edições. MOROZOV, E. (2018) Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Editora Ubu. SANTOS, M. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record. 148 DISCURSO DO CAPITALISTA, SEGREGAÇÃO E RACISMO Flavia Gaze Bonfim32 O racismo é uma estrutura que organiza o campo social, a subjetividade, a economia, a política e as instituições. Ele constitui uma forma de mal-estar que produz exclusão e sofrimento psíquico para a população de negros no Brasil, não podendo ser pensado desarticulado do capitalismo. Nesse sentido, esse trabalho tem como proposta abordar a relação entre capitalismo, segregação e racismo, tomando como referência o pensamento de Lacan, mas – como propõe Andrea Guerra et al. (2021) – interpretando seu ensino de forma geopoliticamente demarcada a partir de coordenadas decoloniais. Sendo assim, tomarei como ponto de partida a teoria dos discursos, decantando dessa formalização o discurso do capitalista e seus efeitos de homogeneização de gozo que fomenta, no caso de uma sociedade com marcas coloniais como a do Brasil, as práticas segregativas pela via da manutenção racismo. DISCURSO DO CAPITALISTA A teoria dos discursos é uma elaboração que permite articular a dimensão do sujeito, do gozo, do saber inconsciente e do laço social. Precisamente, Lacan (1992 [1969-70]) propõe que o sujeito é efeito do discurso e é a partir deste que temos a produção do laço social, localizando quatro estruturas discursivas: discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do universitário e discurso do analista. No caso do discurso do capitalista, Lacan não o pensa propriamente como um quinto discurso, mas o localiza com a forma contemporânea de pensar o mestre. Lacan (ibid.) situa os discursos como uma estrutura sem palavras, propondo sua organização por meio da coordenação de quatro 32 Psicanalista. Doutora em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576 149 Leituras Psicanalíticas elementos: S1, S2 , a, $, distribuídos em quatro lugares diferentes: 1) lugar do agente/poder ou semblante; 2) lugar do trabalho ou Outro; 3) lugar da produção/perda e 4) lugar da verdade. O S1 corresponde ao significante mestre, designado pelo campo do Outro; O S2 representa o saber, constituído pela bateria significante; o a indica o objeto a, mais-de-gozar, enquanto perda no trajeto S1-S2; e o $ representa o sujeito dividido. Quanto aos lugares, Carolina Coelho (2006) assinala que o agente organiza a produção discursiva; o Outro é aquele a quem o discurso se dirige; a produção é o efeito do discurso e a verdade aquilo que o sustenta. Assim, todo discurso se organiza por meio de uma “verdade” que o movimenta, havendo um “agente” que se direciona e coloca em trabalho um “outro” a fim de obter uma “produção”. AGENTE OUTRO VERDADE PRODUTO O discurso do mestre é o ponto de partida dos discursos, segundo Lacan (1992 [1969-70]), por motivos históricos e por ele incorporar a função alienante do significante. Ele representa o discurso do poder, da dominação, operando uma apropriação do saber a serviço do mestre. No lugar do agente, está o S1 que se dirige ao S2, visando obter uma produção. Ele busca representar o sujeito, que deveria ser idêntico ao S1, ocultando, porém, uma verdade: o sujeito é dividido. A partir do discurso do mestre, por meio da operação de quarto de giro, os outros discursos são extraídos na medida em que seus elementos sofrem uma permuta. 150 Flavia Gaze Bonfim (org.) O discurso do capitalista é o único que quebra essa ordem lógica ao desarrumar a cadeia simbólica, S1 – S2. Ele não se produz pelo giro, mas por uma distorção do discurso do mestre. Trata-se, portanto, de um falso discurso, cuja configuração se apresenta da seguinte forma: A distorção é localizável no lado esquerdo, bem como na ausência da seta que articula o agente ao Outro – o que indica a falta de relação entre esses lugares. Precisamente, Lacan diz que “Uma coisinha de nada que gira e o discurso do mestre de vocês mostra-se tudo o que há de mais transformável no discurso do capitalista.” (2009 [1971], p. 47) Essa “coisinha de nada” que gira, esse “ínfimo deslizamento” (LACAN, 2011 [1972]) corresponde às condições sócio-históricas33 para a emergência do capitalismo e é demonstrável por Lacan através 33 Essas condições serão retomadas no próximo item “Capitalismo e racismo”. 151 Leituras Psicanalíticas da inversão entre o lugar do $ e o S1, no qual o sujeito está no lugar de agente, como um consumidor com pretensa soberania e o S1, o capital, é a verdade oculta. Ou seja, é o capital que comanda o discurso do capitalista e não o sujeito. Nos termos de Lacan, ocorreu uma “mutação capital”, que conferiu “ao discurso do mestre seu estilo capitalista.” (1992 [1969-70], p. 160) Isso implica em assinalar que o advento do capitalismo produziu impacto no laço social e, consequentemente, na subjetividade a ponto do sujeito ser comandado pelo capital. A questão que se coloca aqui – interroga Vladimir Safatle – é por quê os sujeitos se submetem a tais condições de servidão e sujeição social. Pensar essa resposta pela via da coerção e violência direta é insuficiente, sendo necessário considerar que: “ao produzir uma mutação na racionalidade da produção econômica, o capitalismo mudou nossa forma de gozar.” (SAFATLE, 2002, p. 71) Ele introduziu uma relação com o gozo a partir do mais-de-gozar. No que se refere ao discurso do capitalista, Lacan (2011 [1972]) situa que aquilo que o distingue é Verwerfung, a rejeição, a foraclusão da castração, ressaltando que se trata de um discurso que deixa de lado as “coisas do amor”. Segundo Ana Beatriz Freire e Fabio Malcher: “A foraclusão da castração visada no discurso do capitalista se baseia na promessa de acesso ao gozo perdido pela via dos objetos de consumo, incontáveis e efêmeros, gadgets”. (2015, p. 330) Uma promessa de gozo infinito e imediato que não se cumpre, vale dizer, mas que alimenta o sistema. O sujeito permanece, então, capturado na trama de mercado, pois passa a buscar um novo objeto de consumo em um deslocamento metonímico na procura do gozo prometido. O gozo, pelo contrário, não se deixa capturar, deixando o sujeito frustrado, mas ao mesmo tempo, pronto para um novo consumo. (MALCHER; FREIRE, 2016) Convém ainda ponderar que o discurso do capitalista não libera o desejo, mas o reprime, o objeta de tal forma que rejeita a castração. É importante lembrar que o desejo – as “coisas do amor”, no dizer de Lacan – visa o gozo, mas também a proibição do gozo. Temos aqui 152 Flavia Gaze Bonfim (org.) uma dialética inerente ao desejo, mas cuja operação é obturada pelo discurso do capitalista, pois só há o imperativo do gozo: Consuma! Um consumo que oferece todo tipo de engodo, pois, como ressalta Malcher (2019), o objeto pulsional, privilegiado da fantasia, é sempre singular e não pode ser tamponado por nenhum objeto que o capitalismo oferece. Notadamente, trata-se de uma modalidade de discurso que propõe eliminar a distância entre o sujeito e o objeto a, supondo ser possível ter acesso direto ao gozo através dos objetos. Tais objetos, os gadgets, funcionam como mais-de-gozar na medida em que buscam capturar o gozo perdido ao entrar na linguagem. Mais ainda, o capitalismo produz um pseudo déficit para que o sujeito seja incitado a consumir, gerando ilusoriamente novos e novos objetos, como alternativa ao amor e a dor de existir. Resumindo, é possível afirmar que Lacan não analisa o capitalismo pelo viés de uma economia política, mas de uma economia libidinal, extraindo considerações da crítica marxista em torno da mais-valia e forjando o termo mais-de-gozar. Ou seja, Lacan pensa o capitalismo a partir do impacto sobre o campo do desejo, na medida em que “produz a crença de que o gozo que nos impulsiona pudesse se realizar no interior das dinâmicas imanentes ao Capital” (SAFATLE, 2002, p. 68) Capturado pelo capital, o campo do desejo passa a se organizar a partir do mais-de-gozar. Nesse sentido, o capitalismo conseguiu colonizar nosso gozo, formando nosso interesse a partir da oferta de objetos e indicando modos de satisfação, além de moldar nossa relação com o trabalho, no qual se introduziu a necessidade de produção constante, de performance e de competitividade. (ibid.) LAÇO SOCIAL E PROCESSOS SEGREGATÓRIOS Para falar em segregação, convém delimitar o que significa o verbo segregar, a saber: separar do rebanho. Proveniente do latim, grex, gregário, corresponde aqueles que não desfrutam dos mesmos cuidados do pastor, sendo o rebanho aqueles que fazem parte de um grupo que comparti153 Leituras Psicanalíticas lham dos mesmos preceitos e ideais, existindo um laço emocional de caráter libidinal que os une. (MALCHER, 2019). Paradoxalmente, ao se formar um grupo, há sempre uma outra parcela de sujeitos que fica de fora. Logo, inevitavelmente, é inerente ao laço social algo da ordem de uma segregação, separação entre quem é e quem não é do grupo. Desdobrando essa questão, Malcher (2019) retoma a proposição freudiana de que a possibilidade do laço social remete à constituição do Eu, precisamente, a passagem do Eu-prazer ao Eu-realidade. A constituição do Eu implica em uma separação entre o sujeito e a alteridade, entre o Eu e o não-Eu (exterior). O exterior e seus estímulos são considerados como fonte de desprazer e, por meio dessa experiência, a alteridade tem um caráter de fremde [estrangeiro, ameaçador]. Nesse sentido, Freud aponta que “O exterior, o objeto, o odiado seriam, bem no início, idênticos.” (2020 [1915], p. 55) E complementa: “Se, depois, o objeto se apresenta como fonte de prazer, ele passa a ser amado, mas é também incorporado ao Eu, de modo que, para o Eu-prazer purificado, o objeto coincide novamente com o que é alheio e odiado.” (ibid., ibid.) Por fim, Freud é levado a afirmar que “O ódio, como relação com um objeto, é mais antigo que o amor; ele brota do repúdio primordial do Eu narcísico perante o mundo externo portador de estímulos.” (2020 [1915], p. 61) Ao se constituir, o Eu precisa passar do Eu-prazer para o Eu-realidade. Essa passagem implica em uma renúncia de ordem pulsional e é justamente ela que abre espaço para o laço social, pois permite ao sujeito abrir mão do seu narcisismo para manter relação com o outro. Contudo, a alteridade continua a produzir no sujeito um caráter de estranhamento e ameaça, e por isso ele produz mecanismos de rechaçá-la. (MALCHER, 2019) Freud (1996 [1921]) também abordou os impasses no laço social, destacando a dificuldade na relação de contato com o semelhante e cunhando para tanto a ideia de “narcisismo das pequenas diferenças”. Foi sua maneira inicial de pensar a problemática da hostilidade e do ódio. Contudo, quando se aproximava na Europa a ameaça do nazismo, Freud 154 Flavia Gaze Bonfim (org.) (1996 [1930]) considerou que o narcisismo das pequenas diferenças não era suficiente para explicar essa hostilidade, localizando na pulsão de morte a fonte do ódio inerente ao humano. Complementando, Freud levanta a questão do mandamento do “Amor ao próximo”, dizendo tratar-se de uma formação reativa, pois o que está em jogo na relação com outro caminha muito mais em direção a uma agressividade. O próximo, nos diz Freud (ibid.), é quem o sujeito quer satisfazer sua agressividade, explorando, dominando, causando sofrimento e até matando. Freud também indicou que a ligação de amor entre os semelhantes acabam por ter como condição a existência de outros sujeitos para poder exteriorizar a agressividade. (ibid.). Como bem ponderou Lacan (1992 [1969-70]), na origem da fraternidade, está a segregação. Ao unir-se ao semelhante, o sujeito pode fazer o diferente alvo de sua exclusão. Para articular essa questão, Lacan faz menção, inclusive, aos princípios da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – ridicularizando a obstinação de tais ideais, considerando mais importante captar o que eles recobrem, a saber: a segregação. (ibid.) Não podemos deixar de lembrar que tais princípios excluíram as mulheres em termos de direitos, ainda que tivessem contado com o apoio e a luta das mesmas nos movimentos sociais que antecederam e se desdobraram na própria revolução. Ou seja, tais princípios destinavam-se a um único grupo: o dos homens brancos europeus. Lacan (1992 [1971-72]) pontua ainda que as noções de “irmão”, “irmandade” e “fraternidade” não devem ser vistas a partir de bons sentimentos, do bem comum, pois a fraternidade corresponde a uma forma de laço social que se estrutura pela formação de um grupo no qual está em jogo a identificação e a homogeneização dos modos de gozo. Isso acaba por culminar na segregação e no ódio ao diferente, podendo chegar a violência, perseguição e assassinato. Assim, Lacan pondera que aquilo que “se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo.” (ibid., p. 227) Guerra et al. entende que, com este comentário, Lacan parece indicar que “a questão da valorização 155 Leituras Psicanalíticas contemporânea do corpo tem como efeito a segregação em relação àqueles que possuem outra configuração de corpo e que aparecem enquanto alteridade materializada pela raça.” (2021, p. 11) Ao problematizar de que modo essa alteridade passa a ser materializada na raça, Miller (2010) propõe pensar o problema do racismo através da noção de extimidade, de Outro interior, incluindo também a dimensão do gozo neste tipo de segregação que envolve inegáveis aspectos históricos, sociais, econômicos, culturais e estéticos. Ele afirma que o racismo tem relação com o ódio do gozo do Outro, a uma intolerância ao modo particular com que o Outro goza. Isso, porém, tem relação com o próprio modo como o sujeito vivencia seu gozo. Toda relação com o gozo envolve algo da perda, de uma subtração de gozo. Essa subtração acaba por ser localizada no Outro, como se este fosse o responsável pelo roubo de gozo que cada um experimenta com a castração. Perda e excesso caminham aqui juntos, pois o gozo é sempre excessivo. Assim, tolerar reconhecer esse Outro como próximo é somente na condição de separado. (ibid.) Nesse sentido, Lacan coloca a questão nos seguintes termos: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele.” (2003 [1974], p. 533). Uma aproximação mais intensa é sentida como excessiva. A dimensão do excesso é atribuída ao Outro, mas na verdade trata-se de algo inerente ao gozo: ele é excessivo; puro desatino, inassimilável, deslocalizado a ponto de não ser reconhecido como próprio. Esse excesso faz morada em cada sujeito, mas é desconhecido a ponto de ser rejeitado e odiado. Por esse viés, Miller (2010) pensa que se trata de um ódio ao próprio gozo, recuperando daí a questão da extimidade; esse dentro e fora, esse estranho familiar, que habita o sujeito e que ele odeia. CAPITALISMO E RACISMO Ao falar que “alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história”, Lacan diz que “Não vamos esquentar a cabeça para saber se foi por causa de Lutero·, ou de Calvino, ou de 156 Flavia Gaze Bonfim (org.) não sei que tráfico de navios em tomo de Gênova, ou no mar Mediterrâneo, ou alhures”. E complementa: “pois o importante é que, a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital.” (2012 [1969-70, p. 188) Nesse ponto, contudo, precisarei discordar de Lacan. Sendo uma psicanalista do Sul Global, é preciso “esquentar a cabeça” com isso, pois desprezar os aspectos históricos que envolvem o capitalismo e escravização dos africanos seria silenciar um problema que continua a produzir efeitos deletérios sobre a população negra. No que se refere a Martinho Lutero e João Calvino, é possível extrair do pensamento do sociólogo Max Weber34 que a Reforma Protestante introduziu um novo modo de subjetividade centrado no trabalho e da renúncia aos prazeres mundanos que amadureceu a passagem do feudalismo para o capitalismo. Além disso, a acumulação de capital também foi possibilitada pelo mercantilismo e pela “descoberta de novas terras” – o que precisou contar com uma forjada teoria das raças para justificar o racismo e a escravização dos negros. Pois, como pondera Silvio Almeida, “a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas” (2018, p. 21). Segundo Almeida (2018), a cada limite histórico que o capitalismo encontrou para a acumulação de capital e necessidade de produção, ele obteve com o racismo formas renovadas de violência e subjugação dos negros. Inicialmente, com o imperialismo, o capitalismo se expandiu através da dominação colonial, tendo como base de argumento ideológico o racismo e o eurocentrismo de progresso, no qual os povos africanos seriam “salvos” do seu atraso pelo conquistador europeu. Em um segundo momento, após a segunda guerra – mesmo quando a produção em larga Em seu livro A ética protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber considerou que a teologia da predistinação do Calvinismo é uma das condições para a emergência do capitalismo. Criticando a doutrina católica da indulgência, o Calvinismo considerava que não era possível fazer nada para garantir a ida para o céu e que os escolhidos de Deus eram predestinados ao nascerem. Sem saber se era um escolhido ou não, o sucesso financeiro tornou-se indícios da benção divina e do fato de ser um predestinado. Assim, formalizou-se uma ética no qual devia-se trabalhar muito, manter uma modo de vida pautado na virtude racional e abster-se de gastar o que conquistou com os paixões carnais. (STANGROOM, 2008) 34 157 Leituras Psicanalíticas escala e o consumo de massa caminhavam na Europa associado a ideia de bem-estar social – o acesso aos direitos pelos trabalhadores não se deu da mesma forma. Assim, havia alguns setores da indústria sem a proteção de sindicatos fortes que se mantinham por meio de baixos salários e subcontratação de mulheres, negros e imigrantes. (ALMEIDA, 2018) Atualmente, porém, é o neoliberalismo que indica novos dispositivos de exploração. Mediante a crise do Estado de bem-estar social e do modelo de produção do fordismo, a supressão dos direitos sociais é realizada por meio de uma austeridade fiscal que transfere parte do orçamento público para o setor financeiro privado. Promove-se privatizações, precarização do trabalho, desregulamentação de setores da economia e um desmonte da rede de proteção social. Com esse desmonte, a vulnerabilidade social da população negra é reforçada e a sociedade, em face a essa instabilidade social, encontra no pensamento racista um inimigo (os jovens negros), distraindo-se dos reais problemas causados pelo neoliberalismo. Esses jovens são tidos como aqueles que ameaçam a vida social e a paz, naturalizando a intervenção repressiva do Estado que se manifesta por uma necropolítica. (ALMEIDA, 2018) É digno de nota que a ideia do homem negro como ameaçador e propenso à criminalidade vem sendo historicamente construída. Se no Brasil Colonial e Imperial, o corpo negro era um corpo para o trabalho escravo, após a Abolição seu corpo foi recobertos por novos sentidos. Sem uma política de reparação social, nem as mesmas possibilidades de acesso aos cargos de trabalho que foram ocupados pelos imigrantes que chegaram ao país, o homem negro passou a ser visto como o vadio, desqualificado, aquele que causa medo, propenso à violência, à irresponsabilidade. Por essa construção social, o homem negro tornou-se um corpo perigoso, carregando o estereótipo de criminalidade. (MELGAÇO DA SILVA JR.; CAETANO, 2018) Ainda sobre a não incorporação dos homens negros aos postos de trabalho após a Abolição, Pedro Jaime (2017) assinala que a escolha pelos imigrantes europeus teve relação com o racismo e não propria158 Flavia Gaze Bonfim (org.) mente com a questão da desqualificação técnica dos negros. Apesar de terem vindo de países com maior nível de industrialização que o Brasil, os imigrantes em sua maioria residiam em zonas rurais, de modo que tal como os negros não estavam tecnicamente preparados para o trabalho industrial. Com isso, sem possibilidade de acesso ao mercado de trabalho, foi se reforçando cada vez mais a situação de vulnerabilidade e de desigualdade social entre brancos e negros. ( JAIME, 2017). Ou seja, na medida em que os jovens negros não são integrados ao mercado, seja como trabalhadores ou consumidores, corrobora-se para sua segregação, localizando em seus corpos o estereótipo de criminalidade sempre prontos a roubar os objetos do mais-de-gozar dos brancos. E se isso nos importa enquanto psicanalistas é porque inevitavelmente a raça indica maiores ou menores condições de vulnerabilidade social, em quem pode viver e morrer, no qual o sofrimento psíquico não pode ser dissociado de uma configuração política e econômica. Se há opressão, há sofrimento e, portanto, isso diz respeito aos analistas. São corpos que passam a ser aprisionados por discursos degradantes e por olhares desconfiados, tomados constantemente como suspeitos na rua e em cada estabelecimento que adentra. Ao pensar o tema da segregação o próprio Lacan nos indicou que ela representa uma reação de uma universalização promovida pela “curiosa copulação” (1992 [1969-70], p. 103) entre ciência e capitalismo, prenunciando que: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação.” (2003 [1967], p. 263) Tanto a ciência quanto o capitalismo estão amparados por uma lógica que promove uma quantificação, onde tudo pode ser contável, mas que, para tanto, a exceção precisa ser desprezada. Ou seja, conforme o capitalismo promove uma universalização em termos de ofertas de bens de consumo e de modos de gozo, mais ele corrobora para a anulação particularidades – o que tende a alimentar efeitos segregatórios. Em outras palavras: os objetos são ofertados de forma massificada para o consumo e quem não os possui, está fora. Pois, como 159 Leituras Psicanalíticas indica Malcher: “quanto mais se rebaixam as diferenças, maior o empuxo à segregação.” (2019, p. 50) A mínima diferença passa a ser insuportável. Lacan também observa que estamos uma “época planetária” que modificou a antiga ordem imperialista e introduziu um novo problema: “como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas?” (2003 [1967 b], p. 361) Se esse problema pode ser verificado na Europa com a questão da imigração, no Brasil essa segregação configura nosso território e pode ser facilmente identificada, por exemplo, na desigualdade social e territorial da cidade do Rio de Janeiro: de um lado as comunidades, sem estrutura e ações políticas do Estado (que não seja as de extermínio), e do outro, a Zona Sul. Juntos no mesmo espaço geográfico, mas profundamente separados. Sendo assim, o que Lacan nos ajuda a compreender é que toda universalização se traduz em mal-estar e segregação, pois quanto mais se caminha em direção ao universal do gozo, mais se exclui o singular. Toda homogeneização na produção e no consumo imposta pelo capitalismo também produz a ideia de um gozo indiferenciado para todos, um gozo indiferenciado que despreza a singularidade e, com isso, produz um ataque à diferença. É evidente que essa promessa de gozo para todos é uma falácia, pois só se destinam aqueles que podem pagar. (MALCHER, 2019) Nesse jogo, todavia, o capitalismo não possibilita que todos os sujeitos possam ter acesso aos bens; pelo contrário, ele produz a pobreza e desigualdade social, bem como tem-se servido historicamente da manutenção do racismo para garantir maior acumulação de capital. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A partir da discussão aqui travada é possível destacar que a segregação faz parte do laço social, pois só se organiza um grupo quando se estabelece quem está fora dele. Além disso, ela retoma um impasse estrutural que emerge na constituição do sujeito em sua relação com a alteridade. Contudo, se podemos pensá-la dessa forma, é necessário 160 Flavia Gaze Bonfim (org.) fazer uma distinção quanto àquilo que converge para práticas propriamente segregadoras e excludentes, especialmente, quando levamos em consideração os efeitos trágicos do racismo produzido pelo capitalismo. Historicamente, o capitalismo vem encontrando no racismo meios para acumulação de capital e para os problemas na produção. Notadamente, essa temática tem sido abordada pelo viés político, econômico e social, por outro lado, a aposta aqui foi introduzir a psicanálise neste debate, indicando que ela pode contribuir para esta discussão a partir de um elemento heterogêneo: o gozo. O capitalismo opera por uma intensificação de uma universalização e homogeneização em termos de bens de consumo e oferta de gozo, que anula as particularidades e fomenta ainda mais os impasses dos sujeitos com infamiliar que concerne à própria dimensão do gozo. Assim, a forma diferente do Outro gozar é tomada como roubo de gozo, fazendo dos corpos negros sinônimo de ameaça fruto dos mitos racializantes. Um mito que inversamente coloca as vidas negras sobre uma concreta ameaça, haja vista o genocídio dos jovens negros pelo Estado e o seu encarceramento em massa. Assim, encerro com um trecho da música, “A carne”, interpretada de maneira visceral e em tom de denúncia por Elza Soares, que recentemente nos deixou. Sua voz única que, como ela afirmou, era usada para dizer o que se cala, vem assim perturbar o descanso e a mudez conveniente dos que colhem os privilégios simbólicos e materiais da branquitude sem se responsabilizar pelo problema do racismo. Sem sombra de dúvidas, sua letra diz de maneira mais contundente sobre os efeitos da relação entre capitalismo, segregação e racismo do que aqui pude empreender. A carne mais barata do mercado É a carne negra Tá ligado que não é fácil, né, mano? Se liga aí A carne mais barata do mercado é a carne negra (4X) Só-só cego não vê 161 Leituras Psicanalíticas Que vai de graça pro presídio E para debaixo do plástico E vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos A carne mais barata do mercado é a carne negra Dizem por aí A carne mais barata do mercado é a carne negra (3X) Que fez e faz história Segurando esse país no braço, meu irmão O cabra que não se sente revoltado Porque o revólver já está engatilhado E o vingador eleito Mas muito bem intencionado35 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. COELHO, Carolina. Psicanálise e laço social – uma leitura do Seminário 17. In: Revista Mental, Barcelona, v. 4, n. 6, jun. 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272006000100009 Acesso em: 15 fev. 2021. FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. (1915) In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 13-69. ______. O mal-estar na civilização (1930) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI, p. 67-148. ______. Psicologia das massas e análise do eu. (1921) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII, p. 81-183. GUERRA, Andrea; RIBEIRO, Cristiane; JORGE, Enrico; BISPO, Fabio, SOUZA, Marcela; ROSA, Nayara; MENDONÇA, Renata; PENHA, Sonia; SANTOS, Tayná. Ocupação Antirracista e decolonial no espaço psicanalítico. Quaderns de Psicologia. v. 23, n. 3, p. 1-19. Disponível em: https://quadernsdepsicologia.cat/article/view/v23-n3-guerra-ribeiro-jorge-etal/1787-pdf-pt. Acesso em: 28 jan. 2021. LACAN, Jacques. Alocução sobre as psicoses da criança. (1967) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 508-543. 35 Esta música faz parte do álbum “Do Cóccix Até O Pescoço”, lançado em 2002, tendo sido escrita por Seu Jorge, Ulises Capelleti e Marcelo Fontes Do Nascimento. 162 Flavia Gaze Bonfim (org.) ______. Estou falando com as paredes: conversas na capela de Sainte-Anne. (1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011. ______. O Seminário, livro 17 – O avesso da psicanálise. (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. ______. O Seminário, livro 18 – De um discurso que não fosse semblante. (1971) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. ______. O Seminário, livro 19 - ... ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012. ______. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 248 – 264. ______. Televisão. (1974) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 508-543. FREIRE, Ana Beatriz; MALCHER, Fabio. O corpo de consumo entre a ciência e o capitalismo. In: MANSO, Rita; DARRIBA, Vinicius. Psicanálise e Saúde: entre o Estado e o sujeito. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2015. p. 327-339. JAIME, Pedro. Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial. São Paulo: Edusp, 2017. MALCHER, Fabio. Capitalismo, diferença e gozo: a produção de efeitos de segregação. In: CARDOSO, Marta; HERZOG, Regina (org.). Diferença e segregação. Curitiba: Appris Ed., 2019, p. 45-61. ______; FREIRE, Ana Beatriz. Laço social, temporalidade e discurso: do totem e tabu ao discurso capitalista. In: Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 19, n. 1. p. 69-84, Jan-abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/NkHLzmCnfMgXb7GzZfc3X8B/?lang=pt#. Acesso em: 20 abr. 2021. MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010. MELGAÇO DA SILVA JR., Paulo; CAETANO, Marcio. Roda de homens negros: masculinidade, mulheres e religião. In: De guri a cabra macho: as masculinidades no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2018, p. 190–210. SAFATLE, Vladimir. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. STANGROOM, Jeremy. Pequeno livro das grandes ideias. São Paulo: Ciranda Cultural Ed., 2008. 163 A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO DO ANALISTA À LUZ DE FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO Rogério Paes Henriques36 DISCURSO: SEM PALAVRA, MAS NÃO SEM ESCRITA No Seminário, livro 17, Lacan (1969-70/1992) assinala que o discurso do qual se trata em psicanálise é “um discurso sem palavras” (p. 11; grifo original). Com isso, Lacan faz deslizar os sentidos atribuídos pela linguística à noção de discurso associado à fala (ato individual de vontade e inteligência) e ao enunciado (encadeamento lógico de proposições) (MOISÉS, 1974, p. 152-153). Lacan parece filiar-se aos retóricos clássicos - sobretudo Aristóteles, Quintiliano e Horácio - tomando deles a noção de discurso como estrutura (ibid., p. 153), porém, deslocando-a do dito (campo da oratória) rumo ao dizer. Tal deslocamento, sua subversão, lhe permite escrever37 algebricamente quatro discursos: do mestre, da histérica, do universitário e do analista (LACAN, 196970/1992, p. 19; p. 44), entendidos como “uma ordem estabelecida no real a partir da linguagem”38 (GOLDENBERG, 2014, p. 119). Pós-doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e em Psicologia (UFF). Professor Associado III (UFS). CV: http://lattes.cnpq.br/6173994821157043 37 As dimensões do dizer e do escrever estão no centro da experiência analítica, na medida em que o que se diz e o que se escreve, em uma psicanálise, se enlaçam e estabelecem o ponto extremo da relação do sujeito com o inconsciente (BONNAUD, 2014, p. 123). Não à toa, Lacan (1969-70/1992, p. 47 e seg.) toma a repetição em Freud, que se funda num retorno e numa perda do gozo, para elucidar sua noção de “mais-de-gozar”, articulando-a ao traço unário: “...é no traço unário [marca de gozo] que tem origem tudo o que nos interessa, a nós, analistas, como saber” (LACAN, 1969-70/1992, p. 48). Todavia, não se trata de qualquer saber, mas do saber na condição de “gozo do Outro” (ibid., p. 13). “É com o saber como meio de gozo que se produz o trabalho que tem um sentido, um sentido obscuro. Esse sentido obscuro é o da verdade” (ibid., p. 53). “É ao analista [...] que se endereça essa fórmula que tantas vezes comentei, Wo es war soll Ich werden. [...] É lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do outro, que eu, na medida em que profiro o ato analítico, devo advir” (ibid., p. 55). 38 Lacan (1972) afirma: “O discurso é o que? É o que, na ordem... no ordenamento do que pode ser produzido pela existência da linguagem, faz função de laço social” (p. 20). 36 164 Leituras Psicanalíticas Há, assim, quatro modalidades de renúncia à tendência pulsional em tratar o outro como objeto a ser consumido (sexual e fatalmente) em prol do laço social - localizado por Freud (1930/2020) como a principal fonte de mal-estar para o ser falante -, que definem quatro formas de relacionamento: governar, correspondente ao discurso do mestre no qual o poder domina; educar expressa o discurso universitário regido pelo saber; analisar nomeia o discurso do analista, que se apaga como sujeito erigindo-se como causa libidinal do processo analítico; e fazer desejar no discurso da histérica, onde predomina o sujeito da interrogação levando o mestre não somente a querer saber, como também a produzir um saber (QUINET, 2001, p. 13). Os discursos são modos de aparelhar o gozo com a linguagem. A cultura exige do sujeito uma renúncia pulsional e todo laço social implica um enquadramento da pulsão e resulta em perda real de gozo: “...há perda de gozo. E é no lugar dessa perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do objeto perdido, disso que eu chamo a” (LACAN, 1969-70/1992, p. 50). O objeto a mais-de-gozar engendra no sujeito uma incessante recuperação de gozo, pois a defasagem não pode ser reabsorvida. A formalização lacaniana dos quatro discursos utiliza quatro lugares: a verdade, que sustenta o laço social sendo ao mesmo tempo escondida; o agente do discurso, que domina o laço social conferindo-lhe o tom e sua característica primordial; o outro, aquele a quem o discurso se dirige ou se submete; e a produção, o resultado, o efeito ou o que resta da aparelhagem do gozo pelo discurso (QUINET, 2001, p. 14). AGENTE VERDADE → OUTRO PRODUÇÃO Há também quatro elementos que ocuparão sucessivamente esses lugares: S1, o significante-mestre; S2, o saber; $, o sujeito; e a, o objeto mais-de-gozar. Desse modo, a descrição dos quatro laços sociais fundamentais de nossa sociedade é feita por meio da circulação desses quatro elementos em cada um dos lugares disponíveis. 165 Flavia Gaze Bonfim (org.) Discurso do Mestre S1 → ___ $ Discurso da Histérica S2 ___ // [Quarto de giro] a a → S2 S1 ___ // S2 Discurso Universitário $ ___ // → ___ a Discurso do Analista ___ $ S1 [Quarto de giro] S2 → ___ S1 a ___ // $ Esses quatro discursos constituem a matriz de todo laço social e uma maneira - sempre fracassada - de tratar o gozo com os semblantes: o poder, no discurso do mestre; o saber, no da universidade; o desejo, no da histeria; e o objeto a, no discurso do analista. Este último, ao colocar o gozo na dianteira do laço social, desvela aquilo que os demais discursos ocultam: “que o significante trabalha para o gozo e que, desse trabalho, cada discurso extrai alguma satisfação e nenhum sentido” (BRODSKY, 2011, p. 118). DISCURSOS DO MESTRE NA ATUALIDADE O discurso universitário: imperativo de saber No Seminário, livro 17, Lacan (1969-70/1992) designa o discurso universitário como “discurso do mestre modernizado” (p. 36). Se ao mestre antigo cabia o poder dissociado do saber, cujo suporte era o escravo, no discurso universitário, o mestre moderno (saber universal científico) se apropria do saber do escravo, o que lhe permite dominar – trata-se aí de um saber-poder. Consequentemente, há uma tirania do saber que exige, a todo custo, a obediência ao imperativo epistemológico de “tudo-saber” (ibid., p. 32). No discurso universitário, portanto, a verdade do sujeito (S1) é rejeitada em prol do saber (S2), caracterizado como “a ideologia da ciência, falsa ciência, e a burocracia associada a esse tipo de saber” (TUDANCA, 2008, p. 94). Na 166 Leituras Psicanalíticas condição de mestre do discurso universitário, nada consegue deter a “fantasia de um saber-totalidade”, a despeito das tentativas frustradas de regulação dos comitês de ética. O sujeito que corresponde ao discurso universitário é o “aluno como objeto a, chamado por Lacan de astudado, a fim de indicar com esse termo o lugar de objeto em que está instalado” (TUDANCA, 2008, p. 95), condenado a ser “apenas unidade de valor” (LACAN, 196970/1992, p. 84), um produto tão consumível quanto qualquer outro. Em um acolhimento feito por mim na condição de psicólogo voluntário de um programa de escuta à comunidade acadêmica de uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública da Bahia, em 2020, ao longo de oito sessões, encontrei na modalidade on-line Clara, aluna de meia-idade dessa IES, que se queixa inicialmente de não pertencimento ao cenário acadêmico. Ingressante via cotas raciais, ela se percebe mais lenta intelectualmente que suas colegas de turma, efeito - segundo ela - da extrema pobreza que lhe impôs a postergação de sua formação escolar, só completada relativamente recente. Atual funcionária pública concursada de nível superior, seu curso avançado viria coroar sua trajetória de estudos. Todavia, Clara se questiona se este seria mesmo o seu lugar. Apoiando-se no discurso decolonial, ela me relata as adversidades que uma “negra de pele clara” - como ela se declara - teve que enfrentar para ingressar na pós-graduação. E segue enfrentando, uma vez que os próprios professores que lhe apresentaram os estudos decoloniais parecem não lhe reconhecer academicamente. Por não ser bem avaliada, ela se percebe segregada da instituição. O discurso capitalista: imperativo de gozo Numa conferência proferida em Milão, “Do discurso psicanalítico”, Lacan (1972) assim apresenta o discurso capitalista como substituto do discurso do mestre: “...uma pequenininha inversão simplesmente entre o S1 e o $... que é o sujeito... basta para que isso ande como sobre 167 Flavia Gaze Bonfim (org.) rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma” (p. 18). Discurso do Mestre Discurso capitalista S1 → S2 $ S2 consumidor ciência ___ _↓_ ___ ___↓___ ____↓___ ___↓___ ___↓___ $ // a S1 a capital gadgets Esse é, na verdade, o laço social dominante em nossa sociedade, emendou-se Lacan, e não o discurso universitário na condição de discurso do mestre moderno, tal como ele havia afirmado dois anos antes no Seminário, livro 17. “A sociedade regida pelo discurso capitalista se nutre da fabricação da falta de gozo e produz sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo – consumo de gadgets que ela oferece como objetos do desejo -, promovendo, assim, uma nova economia libidinal” (QUINET, 2001, p. 17). Tal discurso não promove efetivamente a ocorrência de laços sociais, reduzindo as parcerias do sujeito aos objetos de consumo curtos e rápidos ($ ← a). Nesse sentido, promove-se “tanto um autismo induzido quanto um empuxo-ao-onanismo” (QUINET, 2001, p. 17), pois não só se realiza a economia do desejo do Outro, como também se estimula a ilusão de completude - ilustrada, por exemplo, na fantasia ciborgue39 em Donna Haraway (2009). O capital se apresenta como significante-mestre desse discurso, materializado por um sujeito animado pelo dinheiro ($ → S1). Por sua vez, o saber científico capitalizado, subsumido pela tecnologia, produz gadgets que operam como se fossem causa de desejo (S2 → a), quando de fato não passam de objetos de gozo que visam a saturar o sujeito (tornado consumidor) e a tamponar sua falta, desconsiderando seu desejo. Dado que “Um mesmo circuito econômico vale no capitalismo e na pulsão: perda e retorno de gozo sintomático” (AFLALO, 2008, p. Grosso modo, trata-se de fazer existir a relação sexual (no sentido de Lacan) entre o ser humano e as máquinas. Isso ressoa na “epistemologia mutante” de Paul Beatriz Preciado e sua noção de “monstro” ilustrada, no Brasil, com a HQ de Lino Arruda Monstrans: experimentando horrormônios. O hibridismo entre o humano e a biotecnologia é uma das ilusões que perpetuam o ideal do discurso do capitalista. 39 168 Leituras Psicanalíticas 84), o sujeito do discurso capitalista “é um santo, pois com seu corpo ele se consagra a fazer existir esse novo objeto a para os outros. Ele sabe que seu ser é refugo do discurso, pois consentiu com o saldo cínico da pulsão” (ibid., p. 85). O discurso capitalista “é astucioso por deixar cada um diante da liberdade do imperativo do mais-de-gozar” (GOLDENBERG, 2014, p. 120), apresentando-se como “verdadeiramente pestilento”. Esse discurso sem avesso e não regulador opera “a segregação determinada pelo mercado entre os que têm ou não acesso aos produtos da ciência” (QUINET, 2001, p. 18). “A droga contemporânea [...] é um derivado da ciência”, seja um produto tecnológico, seja uma nomeação por ela fornecida: TDAH, TOC, disforia de gênero etc. (BRODSKY, 2011, p. 119-120). Contudo, “O discurso capitalista é destinado a arrebentar, pois a soma dos objetos a, que ele faz consomar [consumir], é limitada pelo corpo, que se consuma tão rápido quanto lhe é imposta a insuflação dos mais-de-gozar” (AFLALO, 2008, p. 85). Clara me relata sua dificuldade em assumir seus cabelos crespos e como a militância vem influenciando positivamente em seu processo de aceitação. Foram anos e anos de dolorosos alisamentos contínuos nos quais ela consumiu uma infinidade de produtos capilares, numa tentativa sempre fracassada de embranquecimento – fracasso esse também encontrado ao seu próprio modo nos testemunhos de passe da psicanalista argentina Marina Recalde (2014a; 2014b; 2016). Afinal, por mais lisos que fossem os cabelos de Clara, ela me relata outros fenótipos denunciadores de sua negritude, mesmo para uma “negra de pele clara” como ela: seu nariz e seus lábios. No novo ambiente universitário, Clara não tem mais motivos para camuflar sua negritude, que ela agora enaltece. Quando finalmente seu estilo Black de cabelo lhe parece, ao sabor da decolonialidade, uma “declaração política de consciência racial através do qual ela redefine padrões dominantes de beleza” (KILOMBA, 2019, p. 127), e isso em pleno ápice de sua realização acadêmica, Clara contudo sente que seu mal-estar retorna e procura 169 Flavia Gaze Bonfim (org.) ajuda psicológica... Há um resto não assimilável pelos discursos do mestre dominantes, que denota um gozo desconhecido para si própria. A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO DO ANALISTA Soler (1998, p. 43-46) afirma que a tese lacaniana faz da segregação, em seu desenvolvimento recente, um efeito, ou melhor, uma consequência inevitável daquilo que caracterizamos como sendo a universalização introduzida na civilização pela ciência. Trata-se de fazer funcionar um “para todos” que suprima as diferenças nos planos do desejo e do gozo. “A extensão da segregação se vale da substituição do sujeito dividido pelo sujeito puro [saber] da ciência” (BROUSSE, 2019, p. 157). Aos refratários à universalização regida pelo mercado de bens comuns, isto é, aos insubmissos ao gozo fálico competitivo, impõe-se a via espacial da repartição territorial. Mas, além da segregação pelo Outro social, há também a autossegregação ou segregação voluntária: aqueles que escolhem segregar-se de uma massa qualquer, em nome da ideia de irmandade: são os egos que fazem grupo. A segregação se apresenta, portanto, na atualidade, como uma via principal de tratar o insuportável, o impossível de suportar: o gozo do Outro. Soler se pergunta então se os discursos não seriam fontes de segregação, afinal, todo discurso é racista - eis a tese de Lacan -, na medida em que cada um deles visa a submeter os indivíduos à sua própria ordem de gozo, rivalizando com os demais. Resta saber se o discurso analítico, apesar de discriminatório, tal como os outros três, pode evitar a segregação (SOLER, 1998, p. 46). À fragmentação do significante-mestre do Pai responde a “função do Progresso” na civilização como ideologia comum, atrelada à justiça distributiva dos benefícios do progresso. Todavia, como nos lembra Lacan, não cabe ao analista ser o “Cervantes de tal justiça distributiva”. Pois, na atual “civilização unissex” deixa-se de lado a zona de exceção que faz menos-um ao todo: a zona da relação sexual. O espaço que do 170 Leituras Psicanalíticas todo não pertence à relação sexual é aparentemente o da igualdade. Há no mundo atual tentativas de tratar a discriminação (no sentido de diferença, precisamente situada e definida) que a psicanálise cultiva, a discriminação sexual, pelo ideal igualitário. Alguns, inclusive, tomam essa discriminação em termos de segregação (SOLER, 1998, p. 48-49) servindo-se do discurso jurídico para fazer existir a relação sexual no nível do significante, no sentido da proporção, como se o Direito pudesse lhes garantir uma justiça distributiva do gozo sexual (MILLER, 2015, p. 105). Cabe ao discurso analítico promover a operatória de um avesso: dedicar-se a curar os sintomas renegados da esfera sexual e resistir à ideologia igualitária. “O discurso analítico pretende escapar à segregação pela via do um por um, o que [também] é astuto” (SOLER, 1998, p. 49). Conceber a posição de agente ao analista como objeto a mais-de-gozar implica ao discurso do analista operar com a noção de real, com uma experiência orientada para tocar o real. Todavia, ao formalizar os quatro discursos, Lacan assinala que eles, apesar de serem tratamentos do gozo, pertencem ao registro do semblante, ou seja, não tocam o real. O objeto a faz-se, portanto, agente do impossível e o discurso do analista opera em relação ao real como avesso do semblante. Nessa operação pelo avesso, o discurso do analista “Faz cair o Outro como fundamento do sujeito, leva a fantasia à impossibilidade de unir com o Outro, produz a ruptura da articulação S1-S2 e seu efeito de sentido, e põe em prática o avesso do inconsciente transferencial” (YACOI, 2008, p. 82). A despeito de também ser uma maneira de tratar o real com os semblantes, no que concerne ao discurso analítico, sua ficção não é a do Pai da tradição nem a do direito ao gozo para todos, tampouco a do direito à felicidade. “Sua ferramenta é o paradoxo de uma lei singular chamada sintoma” (BRODSKY, 2011, p. 120). O sintoma como ‘acontecimento de corpo’, no ensino tardio de Lacan, talvez reflita sua aposta num saber prévio aos discursos. “É que um saber, por assim 171 Flavia Gaze Bonfim (org.) dizer, ‘inscrito no corpo’, evidentemente não provém da universidade nem da ciência e, consequentemente, bem que poderia como as baratas, sobreviver à sua propagação” (BENITO, 2011, p. 127). Eis então que surge uma lembrança de infância que toca o singular em seu corpo: a mãe de Clara, branca, penteia os seus cabelos crespos rudemente, causando-lhe muita dor. Durante parte de sua infância, seus cabelos chegaram inclusive a ser cortados bem curtos, de modo a poupar sua mãe dessa penosa tarefa. Ao relatar essa sua “marca humana” (ROTH, 2002), Clara toca algo de uma inscrição corporal singular para além do discurso universitário e da ciência. Aberto o processo associativo, a atual angústia que sente ante o fantasma do abandono de sua filha caçula - retinta e também lenta na aprendizagem como seu marido: “vale à pena continuar a ensiná-la?” “Ela não teria puxado ao pai, e não a mim?” - lhe assombra como repetição do seu próprio abandono por sua mãe. Oriunda de família numerosa muito pobre interiorana, Clara mudou-se para a capital aos 13 anos, ofertada por sua mãe a duas irmãs mais velhas para cuidar dos sobrinhos. Apesar de reconhecer oportunidades daí advindas, ela se pergunta porque sua mãe a deixou-cair tão precocemente, cernindo algo de sua posição de objeto (filha excluída da série familiar) e advindo lá onde ela era o Isso, pura repetição tíquica. A partir de um reviramento dos discursos do mestre que até então lhe organizavam, Clara toma a palavra para que um outro faça d’Isso (da causa de gozo - seu estatuto de objeto colocada no lugar da verdade desse sujeito) um saber. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 1978, Lacan afirma: “Há quatro discursos. Cada um se crê a verdade. Só o discurso analítico é uma exceção. Seria melhor que este dominasse, concluir-se-á, porém justamente esse discurso exclui a dominação, em outras palavras, não ensina nada. Não tem nada de universal...” (LACAN, 1978/2011). No lugar do consumo de um ensi172 Leituras Psicanalíticas namento, é a falta de se deixar levar pelas ilusões dos outros discursos que nos torna psicanalistas, a operar o discurso analítico. O discurso analítico só se sustenta como exceção aos outros três discursos de dominação. “A ciência modificou o discurso do mestre e aumentou os poderes a força de algoritmos, o discurso histérico conquistou o campo social e o discurso universitário reina sobre os saberes” (BROUSSE, 2020, p. 218). Já o discurso analítico dissipou-se sempre que pretendeu dominar: sua inserção social é, ao mesmo tempo, seu desaparecimento. Sua estrutura o coloca como furo aos discursos do mestre - universitário e capitalista. “A experiência analítica, ao associar o inconsciente a ser decifrado ao inconsciente real, abre uma nova via sobre os processos segregativos. Na verdade, ela alia o real da cifração àquele do organismo, enoda a materialidade das palavras à marca de gozo no corpo” (BROUSSE, 2019, p. 159). A psicanálise responde pela subversão do desejo à orientação segregativa do gozo, substituindo o universalismo pelas soluções singulares (não coletivizáveis) dos seres falantes. “Não há identidade do analista. Esse reviramento dos discursos do mestre é, em si e para cada um, uma alegre experiência de subversão. Os analistas são inclassificáveis!” (ibid.). REFERÊNCIAS AFLALO, A. Discurso capitalista. In: AMP. Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. BENITO, E. Discurso universitário. In: AMP. Scilicet: A ordem simbólica no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2011. BONNAUD, H. Dizer/Escrever. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. (Orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. BRODSKY, G. Discurso do analista. In: AMP. Scilicet: A ordem simbólica no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2011. BROUSSE, M-H. Segregação versus subversão. In: Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019. ______. Vaciar a la madre. In: Lo femenino. Buenos Aires: Tres Haches, 2020. 173 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, S. (1930) O mal-estar na cultura. In: Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. GOLDENBERG, M. Discurso capitalista. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. (Orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. HARAWAY, D. Manifesto ciborgue. In: HARAWAY, D; KUNZRU, H.; TADEU, T. (Orgs.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. KILOMBA, G. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. LACAN, J. (1969-1970) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. ______. (1972) Do discurso psicanalítico. Conferência de Lacan em Milão em 12 de maio de 1972. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Versão PDF. Disponível em: facebook.com/lacanempdf ______. Lacan por Vincennes! Revista Lacaniana de Psicoanálisis, ano VII, n. 11, oct. 2011. Disponível em: https://filadd.com/doc/6-lacan-1978-lacan-por-vincennes-revista-lacaniana MILLER, J-A. O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Editora Cultrix, 1974. QUINET, A. A psiquiatria e sua ciência nos discursos da contemporaneidade. In: QUINET, A (Org.) Psiquiatria e psicanálise: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. RECALDE, M. Novo uso do sinthoma. Latusa, Rio de Janeiro, n. 19, p. 179-185, 2014a. ______. Responder a um “não”. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 68/69, p. 59-63, 2014b. ______. Corpo, significante e gozo. Arquivos da Biblioteca, Rio de Janeiro, n. 12, p. 65-83, 2016. ROTH, P. A marca humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SOLER, C. Sobre a segregação. In: BENTES, L.; GOMES, R. F. (Org.). O brilho da infelicidade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. TUDANCA, L. Discurso universitário. In: AMP. Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008. YACOI, A. Discurso do analista. In: AMP. Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008. 174 O RACISMO E A RECUSA DA TRANSFERÊNCIA: RESISTÊNCIAS DO PSICANALISTA Mariana Mollica da Costa Ribeiro40 Fabio Santos Bispo41 INTRODUÇÃO Propomos uma discussão sobre como as relações raciais comparecem nos fenômenos transferenciais. Freud (1905/1996) destaca que a transferência pode funcionar como o motor do tratamento e ao mesmo tempo interromper a associação livre. O que determina sua passagem de obstáculo a uma poderosa aliada é justamente a especificidade do manejo da estratégia transferencial pelo psicanalista. Nossa questão se situa exatamente nesse ponto: como o racismo pode interferir nessa operação? Consideramos, primeiramente, os entraves que o racismo estrutural coloca para uma escuta efetiva na análise, principalmente a partir da emergência da transferência negativa e da resistência, quando a surdez por parte do psicanalista impede que sujeitos historicamente marcados pela violência colonial sejam escutados. Nos perguntamos acerca das condições de possibilidade para que o discurso psicanalítico atinja e trate, não apenas o sofrimento racial de cada um, mas as relações de colonialidade presentes na polis e atualizadas na cena analítica. Para tanto, é preciso reconhecer as resistências dos psicanalistas, ligadas à própria denegação do racismo, principal marca do racismo brasileiro (GONZALEZ, 2020; MUNANGA, 2017), e que pode ser encoberta inconscientemente sob o manto de uma suposta neutralidade clínica. Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Pós-Doutoranda (PNPD/CAPES). Professora colaboradora (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/2046000937874008 41 Doutor em Psicologia (UFMG). Professor (UFES). CV: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747 40 175 Leituras Psicanalíticas Esse é um obstáculo que pode implicar uma recusa de escuta da repetição e da resistência oriundos da transferência. Para enfrentar esse impasse, é necessária uma sensibilização, na formação do psicanalista, quanto à leitura e comprometimento com os estudos pós-coloniais e decoloniais, mas também uma transformação concreta das relações raciais que permeiam o laço analítico. Isso pode ocorrer, por exemplo, com a abertura, nas escolas de psicanálise, de programas de ações afirmativas que inclua um número cada vez maior de pessoas negras e de origem periférica e com o engajamento teórico e político efetivo em relação às violências subjetivas e sociais de nosso tempo. Um número importante de psicanalistas negras e negros já vem lutando para o resgate das contribuições de autoras negras brasileiras, que trazem leituras originais e fundamentos para uma experiência psicanalítica em solo brasileiro, com uma escuta das trajetórias e experiências periféricas atravessadas pela incidência da segregação racial. Outro eixo de análise, diz respeito ao impacto do racismo no próprio estabelecimento da transferência, na medida em que a suposição de saber, numa sociedade racista, pressupõe a brancura como condição de possibilidade. Frequentemente, a questão racial interroga a dimensão da transferência de forma mais explícita quando o paciente negro demanda ser atendido por um analista negro ou, o que nem sempre significa a mesma coisa, quando o paciente negro recusa um analista branco. Como somos atravessados pelos ideais coloniais da branquitude (FANON, 2020; SOUZA, 1983/2021), mesmo as pessoas negras raramente demandam analistas negros. Nossa hipótese é de que a população negra ainda deposita no branco a suposição de saber e somente uma minoria, marcada por certo confronto com o racismo e um saber advindo dos movimentos sociais, arrisca um passo na superação dessa preferência. Talvez seja o incômodo com essa virada que tem levado muitos psicanalistas a recorrer a argumentos que escamoteiam a lógica racial implicada no caráter colonialista e europeizante dos saberes acadêmicos, que pode mesmo atingir a transmissão da psica176 Flavia Gaze Bonfim (org.) nálise. Discutimos a seguir a forma como esses argumentos reforçam a recusa a um debate franco acerca do racismo, remetendo-o a um suposto identitarismo. Autores críticos da colonialidade (FANON, 2020; MBEMBE, 2018; RIBEIRO, 2017; GROSFOGUEL, 2016; DUSSEL, 1993) nos ajudam a responder essa crítica, abrindo espaço para uma psicanálise implicada na superação do negacionismo. DA ALEGAÇÃO DE IDENTITARISMO A UMA ESCUTA DO CARÁTER VIOLENTO DAS IDENTIDADES NORMATIVAS Por que pessoas negras têm procurado analistas negros e tem evitado os brancos? É comum o argumento, no campo psicanalítico, de que esta busca se dá em função de uma identificação imaginária e que esta é uma tendência dos nossos tempos, que tem encontrado no identitarismo um meio de defesa contra a segregação, através de uma busca pelo semelhante. Do ponto de vista político, os críticos de noções como o “lugar de fala” (RIBEIRO, 2019), por exemplo, argumentam que a política identitária presentificaria um essencialismo político, carente de sofisticação teórica, que mascara a luta de classes, tomada como o verdadeiro problema a ser enfrentado para combater as opressões no capitalismo. Sugerem que a política identitária fratura o corpo político, reificando identidades, criando hierarquias e acirrando ainda mais a fixação de sujeitos em determinados lugares. No caso de psicanalistas, a crítica aponta que o problema é dar ênfase demasiada ao imaginário, aos atributos do eu que mascaram a dimensão do inconsciente, e leem os movimentos identitários com a mesma lógica do grupo do tipo “mente grupal” descrita por Gustave Le Bon, como aponta Freud (1921/1996) em Psicologia das massas. A tese clássica de Freud é que os membros do grupo se reúnem a partir de identificações entre si e por colocar o mesmo líder no lugar do ideal do eu. Ainda que não haja um líder, uma ideia ou um ideal poderia consolidar um 177 Leituras Psicanalíticas tipo de grupo que pudesse encobrir o inconsciente, produzindo uma homogeneização entre os integrantes, reforçando o narcisismo das pequenas diferenças e a alienação dos eus dos “irmãos” em relação a sua própria dimensão pulsional. Através do estudo dos quilombos e das noções de quilombismo, desenvolvidas por autores como Beatriz Nascimento (2021), Abdias Nascimento (1980), Clovis Moura (2001) e outros historiadores, antropólogos e ativistas negros, temos colocado em questão a ideia de que os coletivos de luta política, que extraem da tradição quilombola um saber fazer contra a opressão racial, sejam eles próprios organizados pela mesma lógica da Igreja e do Exército. O quilombo pretende ser uma brecha no sistema escravista e fazer resistência justamente à lógica colonial que se serviu da estrutura da igreja e do exército para dominar os territórios conquistados e manipular, ludibriar e controlar a população autóctone (RIBEIRO, ROSA e ASSIS, 2022). Seria mesmo honesto e ético, da parte dos psicanalistas, utilizar um modelo grupal lido por Freud de organizações erigidas sob a lógica do nazismo para destrinchar o que se opera nas organizações populares de luta contra o extermínio? Djamila Ribeiro (2017) e demais defensores do conceito de lugar de fala afirmam que esses argumentos são falaciosos e escondem uma manutenção de certos privilégios para que as coisas não se modifiquem (BISPO, 2022). Estariam a serviço do que Cida Bento (2002) nomeou como o pacto narcísico da branquitude que, sob o manto da universalidade, admitem que sejam omitidas as forças de extermínio de subjetividades negras, indígenas e lgbtqia+. Essas forças permanecerão atuantes de forma insidiosa caso os problemas da raça, do gênero e da etnia não sejam levantados, com a reivindicação de urgentes transformações. O poder é quem determina essas identidades e, portanto, as estruturas de opressão isolam e encerram alguns grupos em lugar de dejeto social, de subalterno, de objeto do gozo e do capricho de outros, retirando seu estatuto subjetivo e sua cidadania. A estratégia criada 178 Flavia Gaze Bonfim (org.) pelos movimentos sociais é de dar a ver os marcadores sociais, ao invés de encobri-los. Ou, como diria Freud acerca das coisas sexuais, “dar nome aos bois” [“j’apelle un chat un chat”] (FREUD, 1905/1996, p. 54). Essa estratégia dialoga com a proposta de Freud sobre o modo de lidar com a repetição na transferência. Se não houver um esforço de trazer para a fala os cenários de dominação que se repetem, será difícil superá-los, pois “é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie” (FREUD, 1912/1996, p. 119). Essa expressão histórica do vocabulário jurídico antigo é trazida por Freud nessa formulação tão enigmática quanto genial, para mostrar a importância da presença real do analista, naquilo que ele encarna o lugar de Outro nas experiências que recolhe. O paciente o inclui nas tais “séries psíquicas que o sujeito já formou” e, se avançamos com Lacan, atualiza precisamente o ponto em que o sujeito é objeto de um Outro que goza. Se o analista encarna o opressor que nada quer saber acerca da dimensão racial, como é próprio da sociedade colonial, os sofrimentos decorrentes do racismo não aparecerão. Não se trata de essencialismo ou de uma crença na identidade fixa, muito pelo contrário, a questão é subverter a nomeação violenta advinda do Outro. Reafirmar: Sou negra/o! Não é você racista que afirma o que sou. Minha afirmação como negra/o é a de subverter o apagamento da minha história, das minhas origens, da minha cultura, da minha subjetividade e da história de um povo. Tornar-se negro é condição, segundo as teses de Fanon e Neuza Santos, para superar a tendência do negro colonizado em forjar uma identificação aos ideais de matriz europeia e branca. Em termos psicanalíticos, a enunciação e autodesignação presente nesses grupos opera a favor de uma des-identificação, destituindo os ideais recalcados da branquitude. Trata-se de deslocar o que Neusa Souza (1983/2021) chamou de Ideal do Eu Branco. Antes de qualquer crítica precipitada, que utilize a psicanálise para deslegitimar a atuação política de grupos minoritários, é preciso escutá-los e se perguntar acerca da importância dessas vozes para a superação do extermínio, da tortura e da objetificação de seus corpos que ocorre 179 Leituras Psicanalíticas cotidianamente e ir além; produzir um giro de discurso no laço social, uma transformação no racismo estrutural. A insistência da crítica pelo imaginário desconsidera completamente os mais complexos e inquebrantáveis determinantes do racismo, perpetuadores da violência colonial, que podem ser presentificados nas análises. Neste ponto, é essencial adentrar às questões relativas à identificação, para em seguida avaliar os aspectos mais delicados e complexos, portanto, menos evidentes. O QUE SE REPETE NA TRANSFERÊNCIA? Vale lembrar da crítica que Jacques Lacan (1963-64/1985) faz à psicanálise do ego, que baseava o manejo da transferência, bem como a direção da análise, na identificação ao analista. Essa é uma questão que diz respeito mais ao final da análise do que ao início. No estabelecimento da transferência, essa identificação é um dos motivos que leva alguém a uma análise. A escolha inconsciente se dá a partir de algum traço identificatório, um significante qualquer, que demarca a determinação simbólica da transferência, para além do eixo imaginário especular. A própria definição de transferência em Freud se serve dessa dimensão. Ele propõe que a ligação do analisando com o analista conta com um amor provocado por “ideias libidinais antecipadas” e “clichês estereotípicos” (FREUD, 1912/1996, p. 111). A repetição evoca, pois, tanto a dimensão econômica, entrevista na intensidade da libido investida no analista, quanto a dimensão simbólica, das marcas inscritas no encontro com a alteridade, cujos traços mnêmicos determinam um modo próprio de posição subjetiva no laço com o Outro. São as reimpressões desses traços que se presentificam na transferência. O psicanalista consente em entrar na série psíquica, pagando com seu corpo e com sua pessoa, advertido do manejo que terá que realizar para fazer oscilar o semblante do lugar que ele ocupa na transferência. Ele vai assumindo o lugar de várias identificações e encarnando uma série de objetos até que possa vir a cair e ser esvaziado 180 Flavia Gaze Bonfim (org.) de representações. Portanto, se para o analisante a identificação é uma via fundamental para estabelecer a transferência, para o analista, algo dessa identificação terá que ser deslocada. É perfeitamente possível que uma pessoa negra busque um analista negro supondo que este terá mais condições de ouvi-lo do que um analista branco. Isso pode ser mais ou menos consciente e constituir uma manifestação da suposição de saber que fundamenta a transferência. O cuidado que o analista deve ter, sempre, é o de não encarnar de fato a suposição de saber, permitindo que a questão do desejo emerja como causa do trabalho analítico. O psicanalista abre mão de seu lugar de poder na transferência, inaugurando a passagem para a associação livre, como regra primordial da clínica, na qual a palavra do sujeito toma a dianteira, deixando falar o inconsciente por meio do próprio discurso que assume o protagonismo na cena analítica. O saber que importa é o que está suposto, abaixo da barra do recalque, como retrata o matema da transferência (LACAN, 1967/2003). Lacan localiza no ato analítico a precipitação da entrada em análise, quando há uma oscilação do analista enquanto um ideal de saber e a causa da análise se desloca para a cadeia significante trazida pelo sujeito, articulada à questão que lhe permitiu formular uma demanda de análise que inclui o analista como um significante qualquer. Geralmente não se levantam muitas preocupações quando a preferência do paciente é por analistas brancos, primeiramente por que essa preferência raramente é enunciada. Nunca se interroga, inclusive, porque pessoas brancas só procuram analistas brancos. Talvez também pelo racismo implícito na desconfiança em relação à capacidade de o negro atuar como analista. Entretanto, se nem o paciente enuncia o traço racista que fundamenta a transferência, quando ele está presente, nem o analista admite o peso dessa dimensão, a possibilidade de intervir no ciclo de repetição torna-se mais remota ou inexistente. A grande pergunta que merece ser colocada não é, pois, como o analista negro deve manejar a suposição de saber quando ela ocorre – seguimos o que 181 Leituras Psicanalíticas já é a política da psicanálise de recusar a posição de mestria – a grande questão é como possibilitar que essa face branca da transferência seja negritada. Ou seja, como intervir para que os ideais da branquitude sofram algum abalo na análise, se eles não são sequer nomeados? Como analista e analisante podem superar a denegação do racismo que permeia o laço social e interrogar o mito negro e o ideal de branquitude? Em Observações sobre o amor transferencial, Freud (1915/1996) aponta o quanto o paciente nos demanda a correspondência de seu amor e o quanto nos convoca para responder frente ao seu sofrimento de forma a ocultar os imbróglios da castração, apaziguar suas culpas e decepções da vida. O lugar do analista na transferência, seja frente à transferência positiva, quando lhe é direcionado conteúdos inconscientes sexuais, seja frente à hostilidade que lhe é imposta por meio da transferência negativa – é o de abster-se de oferecer uma resposta fechada, abrindo a possibilidade de presentificação do inconsciente na neurose de transferência (FREUD, 1914/1996). Esse conceito se refere ao surgimento, durante o processo analítico, de repetições ou atuações (acting out) no lugar da recordação. A associação livre colocará em marcha o processo de elaboração na medida em que o sujeito em análise vai nomeando os acting out e rememorando o que estava latente. O processo de simbolização da repetição, fazendo do autômaton tiqué, como diria Lacan (1963-64/1985), leva o sujeito à elaboração da repetição. O modo como Freud (1905/1996) maneja a transferência com Dora, levando a paciente a atuar, em vez de elaborar, é elucidativo quanto aos obstáculos dos preconceitos do analista, que é a forma direta como Lacan (1953-1954/1986) nomeia a contratransferência. Essa atuação pode ser uma saída prematura da análise, ou pode ser uma permanência que leva o paciente a fixar-se em uma posição de não poder falar sobre o racismo. A análise coloca-se, então, como um reforço do recalque. O que leva Freud (1905/1996), diante da questão da feminilidade, a escutar sua resistência à posteriori no caso Dora? Ele percebe que seu “lugar de fala”, enquanto homem, o localizava na série 182 Flavia Gaze Bonfim (org.) paterna: pai, Sr. K. Só depois ele pôde extrair do ensino de sua própria resistência, a impossibilidade de legitimar a questão que Dora trazia acerca do saber sobre a feminilidade que supunha presente na Sra. K. Partindo dos consultórios de psicanalistas que são negras e negros, Kwame dos Santos e Fernando Teixeira-Filho (2020) afirmam que a vantagem da escolha por identificação, segundo os analisantes, é, primeiro, não sofrer racismo na análise, já que os brancos estariam tomados, sem que eles próprios percebam, pelos cruéis e naturalizados vícios do racismo estrutural. Além disso, o analisando não ficaria incumbido de apresentar ao analista as discussões sobre o tipo de opressão que sofre, já que partem de certo conhecimento sobre um pior atravessado no próprio corpo. Apesar desses riscos e efeitos, entretanto, se essas razões são levadas para a análise, significa que podem ser interrogadas e enfrentadas, visto que cada corpo é afetado de maneira singular pelas opressões sociais. Dois fragmentos de casos atendidos na clínica do Ocupação Psicanalítica42 podem ilustrar o acolhimento dessa dimensão singular. Em um deles, uma jovem negra confessa a sua analista, também uma mulher negra, que preferia ser atendida por um homem. Em vez de simplesmente repassar o caso sem escutá-lo, a analista suporta essa rejeição inicial e abre espaço para que aquela demanda fosse interrogada. Após algumas associações, outro significante surge para redefinir a primeira afirmação. Além de relatar uma experiência anterior positiva com um analista homem, ela alega a dificuldade de falar sobre algumas questões com seu corpo diante do olhar de outra mulher, ainda mais se tratando de uma mulher magra. Depois de várias sessões, um dos pontos em torno do qual a análise da paciente gira é, justamente, o olhar racista de sua mãe, com uma ostensiva demanda para que a paciente emagrecesse. O outro caso, foi com um analista 42 Trata-se de um coletivo de psicanalistas que vem investindo, desde 2020, na pesquisa, na transmissão e na prática clínica voltada para uma psicanálise antirracista. Atualmente, está vinculado ao Núcleo de Psicanálise e Laço Social – PSILACS (UFMG) e conta com núcleos no Rio de Janeiro (UFRJ), no Espírito Santo (UFES) e na Bahia (UFRB). 183 Leituras Psicanalíticas homem, branco, cuja paciente relatou dificuldades de falar diante de um homem devido a situações de violências sexuais sofridas. Nesse caso, o analista chega a propor a possibilidade de encaminhamento, não sem acolher e escutar cuidadosamente o que a paciente tinha a lhe dizer. Ao relatar o caso em supervisão, o analista mostrou-se surpreso com o fato de a paciente, mesmo tendo se esquivado com faltas reiteradas em algumas sessões, ter retomado mais uma vez seu impasse e ainda assim decidido permanecer com o mesmo analista. Em ambos os casos, foi importante suportar a transferência negativa, escutando os impactos que o corpo e a cor da analista provocam na vinculação do paciente ao trabalho de análise. Admitir a incidência do racismo e do sexismo é, pois, fundamental para que a resposta do analista não seja obstaculizada pela sua resistência ao sofrimento racial e sexista recalcado pelo sujeito ou a recusa automática da transferência. É importante suportar a enunciação acerca da branquitude do analista, dentro e fora da análise. A superação da resistência do analista é, pois, uma operação clínica, mas também política que vai da formação à transmissão dos problemas cruciais que interrogam a psicanálise. Destacamos especialmente aquele que foi proscrito, não dito, inexplorado na história da psicanálise, a saber, a estrutura colonial e racista presente na transferência. Há, nesse âmbito, algumas perguntas cruciais que precisam ser feitas de forma bem direta: por que não há analistas negros nas instituições psicanalíticas? Por que não citamos os analistas pretos em nossas pesquisas e prosseguimos valorizando mais os autores europeus? CONTRIBUIÇÕES FERENCZIANAS PARA O DEBATE Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1937/1996) traz à tona a crítica de Ferenczi ao fato de ele não levar em consideração a dimensão da transferência negativa, quando esse polo da ambivalência afetiva se encontra escamoteado. O psicanalista húngaro, que foi analisante de Freud e percebeu o quanto sua análise não tocou nos afetos 184 Flavia Gaze Bonfim (org.) hostis dirigidos ao analista – e, portanto, o impediu de avançar em sua análise – propõe uma transformação da técnica psicanalítica. Criou a técnica ativa, de forma que o analista estivesse numa postura menos passiva frente ao seu paciente, na busca de provocar, fazer aparecer os afetos desagradáveis dirigidos ao médico. Ferenczi acaba posteriormente por abandonar a técnica ativa, mas mantém a proposição ética de que o analista não poderia ser neutro, apontando a hipocrisia dos analistas frente à falta de sensibilidade diante da dor do seu paciente. Essa indiferença não se dava por uma simples defesa individual ou algo específico daquele analista, mas sobretudo por aspectos ligados ao lugar social e à impossibilidade de perceber as próprias resistências. Considerando que o caso a caso, a singularidade própria ao fazer clínico, poderia não evidenciar os determinantes sociais, Ferenczi alerta que corremos o risco de estarmos nós “tranquilos, fumando nosso charutinho, entediados, às vezes fazemos uma observação convencional, às vezes cochilamos(...)” (FERENCZI, 1932/1990, p. 224), enquanto resistimos aos desafios maiores que o tratamento exige. Canavêz e Verztman (2021), destacando esse ponto, perguntam se os psicanalistas são capazes de escutar os desmentidos sociais. Sem deixar em segundo plano a realidade psíquica, a concepção ferencziana do traumático acentua elementos até então pouco valorizados na psicanálise. Para além do trauma como excesso pulsional inassimilável e que escapa à representação, Ferenczi sugere que o terror se deve não apenas àquele evento terrificante, mas à consequência de o sujeito não ter seu sofrimento reconhecido. Portanto, não se trata apenas de como o sujeito vive de forma singular o acontecimento traumático, mas é preciso sobretudo considerar todo o seu entorno social (GONDAR, 2016, p. 137). A recusa radical do reconhecimento de um sofrimento decorrente de uma violência é, segundo Gondar, a própria negação do sujeito. Esta seria justamente a dimensão do desmentido em Ferenczi. O impacto do descrédito foi desenvolvido pelo autor quando descreveu uma situação de abuso sexual vivido por 185 Leituras Psicanalíticas uma criança, envolvendo também situações de sujeição, humilhação e tortura, nas quais o sujeito está submetido sem que possa reagir. A criança do mito ferencziano tem sua experiência desacreditada por um adulto que não pode escutá-la. Mais do que não escutar, ele ratifica e desmente o abuso, fazendo além de uma negação, uma afirmação à criança, afirmação que legitima o abusador. Não se trata aqui da própria abolição de uma representação que retorna desde fora, como na psicose, ou de um esquecimento radical do desejo, produzido pelo recalcado rechaçado da consciência. Nesse caso, o sujeito é “subtraído violentamente não de seus conteúdos mentais, mas de processos de reconhecimento de si” (CANAVÊZ e VERTZMAN, 2021, p. 7). O antídoto ferencziano para essa postura é a própria presença do psicanalista. Para ele, a ênfase exclusiva nas fantasias impede os analistas de estarem atentos à incidência da realidade social que comparece na análise, seja do lado do analista, seja do analisando, apontando que a saída de uma espécie de “burocratização da escuta” (CANAVÊZ e VERTZMAN, 2021) estaria ligada a conhecer os determinantes sociais aos quais ele próprio estaria sujeito. Vale lembrar as iniciativas de Freud no entre guerras, com o incentivo às clínicas públicas, apresentadas no livro organizado por Danto (2019). Como afirma Ayouch (2019), a psicanálise começa como uma prática judaica, num ambiente no qual a Alemanha assistia a ascensão do Nazismo e, portanto, tratava-se de uma prática fundada por um estrangeiro judeu, considerado um inimigo a ser exterminado. A psicanálise é fundada a partir de uma ética subversiva também por ter surgido para que a sexualidade feminina, impedida de se expressar pela moral sexual civilizada da família burguesa europeia, pudesse sair da clausura através da escuta do sintoma histérico pelo analista. Há uma espécie de elitização característica da institucionalização do movimento psicanalítico bastante questionada ao longo da história da psicanálise e que hoje vem sendo subvertida por uma práxis nova que se incomoda com a ausência de pessoas negras e indígenas nas 186 Flavia Gaze Bonfim (org.) instituições de formação psicanalítica, bem como nas universidades e outros espaços decisórios politicamente relevantes. Kupermann (2019) chega a dizer que, além do núcleo irrepresentável do trauma, indizível para cada sujeito, é preciso perceber que, frente aos grupamentos humanos mais vulneráveis, há formas violentas de poder que são tacitamente aceitas como coisa natural. São repetições que se perpetuam diante de nossa indiferença e, portanto, no lugar do indizível, o inaudível que “tende a tornar o outro insensível à voz daquele que deseja testemunhar a sua dor” (KUPERMANN, 2019, p. 67). CONSIDERAÇÕES FINAIS O diálogo com os estudos pós-coloniais e decoloniais é fundamental para termos uma postura crítica em relação a um universalismo pretensamente abstrato. Enrique Dussel (1993) sugere que o mito da modernidade origina o empreendimento colonial que resultou no extermínio de povos indígenas e na escravização de povos africanos. Tanto os indígenas quanto os negros foram considerados seres sem alma e essa desumanização mantém suas consequências; que precisam ser escutadas. Como vimos, há repetições que não são exclusivas do paciente na transferência com seu analista, mas que são determinadas pela atualização das condições discursivas de dominação. Lacan (196970/1992) nos oferece, a partir da lógica dos discursos, um modo de circunscrever as dimensões políticas mais amplas dessa repetição no laço social, sem perder de vista o modo como cada um atualiza isso em sua trajetória. Como na análise o paciente precisa superar a resistência e falar para que algo da repetição sintomática cesse de se escrever, assim também, no âmbito político, a psicanálise precisa tomar coragem e falar sobre as dimensões racistas e coloniais que atravessam a nossa história e a nossa prática institucional e clínica. Se Fanon inicia esse exercício corajoso de rasgar o véu da hipocrisia e falar da pele negra e das máscaras brancas, desde a leitura da psicanálise freudiana, temos autoras que prosseguiram com esse exercício, se debruçando 187 Leituras Psicanalíticas sobre a realidade brasileira. Neuza Souza, Lélia Gonzalez, Isildinha Baptista, são mulheres que precisam ser estudadas. Mas é preciso também convocar os psicanalistas brancos a tomar a palavra no exercício de superação das resistências e denegações. Por serem maioria e ocuparem os espaços de poder, têm condições e responsabilidade na formação política dos novos analistas. Nesse sentido, a reversão teórica e política do apagamento do racismo e da negritude terá certamente ressonâncias clínicas tanto para analisantes – permitindo que muitas pessoas hoje excluídas sejam encorajadas a se candidatarem à análise – quanto para analistas, cuja escuta estaria mais aberta às questões específicas da periferia brasileira. REFERÊNCIAS AYOUCH, Thamy. Psicanálise e Hibridez: gênero, colonialidade e subjetivações. Curitiba: Calligraphie, 2019. BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. BISPO, Fábio Santos. Para uma decolonização da psicanálise. Decolonização e psicanálise, n-1 Edições, 2022. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/para-uma-decolonizacao-da-psicanalise? Acesso em: 20 fev. 2022. CANAVÊZ, Fernanda; VERZTMAN, Julio Sergio. Somos capazes de escutar os desmentidos sociais? Ayvu: Revista de Psicologia, v. 8, 2021. DANTO, Elizabeth Ann. As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, 19181938. São Paulo: Perspectiva, 2019. DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Petrópolis: Editora Vozes, 1993. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas, trad. bras. de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu Editora, 2020. FERENCZI, Sándor. Diário clínico (1932). São Paulo. Martins Fontes, 1990. FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 7, p. 15-108. 188 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). In: FREUD, Sigmund. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12, p. 109-111. FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12. p. 161-163. FREUD, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial (1915). In: FREUD, Sigmund. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12 p. 175-177. FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). In: FREUD, Sigmund. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.18. p. 79-145. FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável (1937). In: FREUD, Sigmund. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 23. p. 225-231. GONDAR, Jô. Terror, terrorismo e reconhecimento. Cadernos de Psicanálise, v. 38, n. 35, 2016. p. 129-141. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984). In: RIOS, Flávia e LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. pp. 75-93. GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, 2016. KUPERMANN, Daniel. Por que Ferenczi? São Paulo: Zagodoni, 2019. LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., 1992. LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 248-264. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. MOURA, Clovis. Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. MUNANGA, Kabengele. As ambiguidades do racismo à brasileira. In: KON, Noemi Moritz; SILVA, Maria Lúcia e ABUD, Cristiane Curi (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância. Petrópolis: Vozes, 1980. 189 Leituras Psicanalíticas RIBEIRO, Djamila. O que é o lugar de fala? Letramento: Rio de Janeiro, 2017. RIBEIRO, Mariana; ROSA, Nayara Paulina e ASSIS, Geisa. A constituição da massa colonial e a estrutura coletiva do quilombo. Revista Trivium: estudos interdisciplinares. UVA: Rio de Janeiro, 2022 (no prelo). SANTOS, Kwame Yonatan Poli dos; TEIXEIRA-FILHO, Fernando Silva. A clínica e a construção dos lugares de fala e de escuta. Revista PUC-SP, Cadernos do fim do Mundo. v. 1, n. 21, 2020. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social (1983). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.: 2021. 190 SOBRE O TECNOPOPULISMO E A “SERVIDÃO APAIXONADA” Raul Max Lucas da Costa43 “...as massas nunca conheceram a sede pela verdade. Elas exigem ilusões, a que não podem renunciar.” (FREUD, 1921/2020, p. 150) INTRODUÇÃO Este manuscrito almeja lançar uma discussão sobre o traço de “servidão apaixonada” na relação entre as massas e os líderes populistas de extrema-direita na atualidade. O termo em questão foi destacado por Freud (1921/2020, p. 189) em sua análise do estado de enamoramento, característico da relação entre a massa e seu líder, tal qual o laço entre o hipnotizado e o hipnotizador. Fascinação foi outra palavra utilizada neste contexto para esta peculiar relação de identificação, condição esta que não se limita a uma espécie de adoração passiva e apaixonada, mas que podem também conduzir as massas ao ato, seja na forma de violência ou a situações de sacrifício com riscos de morte. Considerando as particularidades do laço social contemporâneo, em destaque para a aliança entre capitalismo, tecnologia e ciência (PINHEIRO & COSTA, 2017), é notável a influência das redes sociais nos rumos da política governamental e na formação de novas massas artificiais. Neste sentido, destaco o surgimento de uma nova versão do agrupamento massificado, as chamadas “massas digitais” (DUNKER, 2019). Estas teriam a peculiaridade de se valer do anonimato e da articulação em rede para inflamar manifestações de ódio e de detração no âmbito virtual. Por sua vez, Lacan, anteviu o poder Psicanalista. Doutor em Psicologia (UNIFOR). Professor (UNILEÃO). CV: http://lattes.cnpq.br/0225116375934219 43 191 Leituras Psicanalíticas da mass media, ao atentar para a novidade da prevalência da voz e do olhar através das tecnologias comunicacionais. No contexto de hoje, a expressão “tecnopopulismo” (MELLO, 2020), parece indicar melhor o alcance de uma nova configuração política que se apresenta, onde as mídias digitais possuem um papel central na dinâmica eleitoral, na doutrinação ideológica e na espetacularização das personagens políticas. DESENVOLVIMENTO Enquanto conceito da ciência política, populismo é um termo carregado de história e de indeterminações. O Dicionário de Política organizado por Bobbio, Matteucci e Gianfranco (1998), define populismo como um regime político onde o líder populista estabelece uma discursividade governista protecionista endereçada ao povo. Daí surge a prerrogativa de qualquer governo populista: manter distância ou mesmo eliminar o Outro ameaçador. Isso acentua o aspecto afetivo, seja nos apaixonados discursos nacionalistas ou na devoção popular ao seu líder/pai. Nos critérios conceituais da análise política, outras características de um governo populista seriam: o interesse pelo desenvolvimento industrial, a supremacia e legitimidade popular, a relação direta entre o líder e o povo e, por fim, uma narrativa protecionista diante das ameaças à unidade nacional. Poderíamos pensar a partir desses elementos como se constituiu na história do século XX movimentos como o peronismo, a fase populista da Era Vargas, o castrismo cubano, dentre outros. É possível ainda localizar aspectos populistas em governos socialistas e da direita liberal do século XX. Valeria um comentário mais detalhado sobre a diferença entre populismo (política emancipatória) e totalitarismos (formação de massa), mas por hora, neste escrito, nos interessa considerar o traço populista na extrema direita atual, especificamente a relação direta com os apoiadores, e sua propaganda autoritária através da mídia digital. 192 Flavia Gaze Bonfim (org.) Como ponto de partida, destaco a marca definidora, ou ainda, a fórmula do governo extremista: o líder, a massa, o inimigo, uma nominação. Incluo esta última categoria, considerando a constância do nome do líder/pai e da consequente filiação que gira em torno dele, como, por exemplo, o que nome que se dá aos seus partidários ou seguidores. A respeito da relação entre o líder e o povo, encontramos no dicionário já citado a seguinte observação: O apelo à força regeneradora do mito — e o mito do povo é o mais fascinante e obscuro ao mesmo tempo, o mais imotivado e o mais funcional na luta pelo poder político — está latente mesmo na sociedade mais articulada e complexa, para além da sistematização pluralista, pronto a materializar-se, de um instante para o outro, nos momentos de crise. (BOBBIO, MATTEUCCI & GIANFRANCO, 1998, p. 986) Buscando lançar uma luz analítica sobre as obscuridades conceituais e políticas do populismo, Ernesto Laclau (2013) considera importante atentar para seu aspecto lógico e estrutural em vez de uma longa descrição tipológica de suas variações em cada país e época. Surpreendente ou não, o autor recorre primeiramente a Freud por considerar que este diferente de seus contemporâneos apresentou uma análise radical sobre a constituição da sociabilidade. Em seguida, Laclau reconhece em Lacan, sobretudo na teoria do significante, um autor essencial para pensar o populismo a partir de sua estrutura de linguagem, enquanto narrativa. Da vasta contribuição deste autor sobre o tema, destaco sua exortação de que não basta a influência ou o carisma do líder para o estabelecimento do povo unificado. Só há governo populista se o líder se dispor como aquele que responderá às demandas do povo. Retornarei a questão mais adiante. Embora eu desconheça algum comentário específico de Freud e Lacan sobre o tema do populismo, é inevitável não pensar nas contri193 Leituras Psicanalíticas buições teóricas que eles deixaram sobre as massas e a lógica coletiva, respectivamente. Aliás, recentemente, o ano de 2021 marcou os cem anos do livro Psicologia das Massas e Análise (1921/2020) do Eu, de Freud, publicado originalmente em 1921. Muito já se comentou sobre este texto, desde sua suposta condição de ultrapassado à sua notória atualidade para pensar a política do mundo de hoje, especialmente na ascensão da extrema direita. Que Freud tenha com este texto antevisto a ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão não é grande novidade. A quem diga que a fonte de inspiração do pai da psicanálise foi a Revolução Russa de 1917 (ROUDINESCO & PLON, 1998). As manifestações políticas formadas por multidões “sem líderes” e anônimas dos anos 2000 pareciam ter sepultado qualquer possibilidade no mundo globalizado, marcado historicamente por guerras e ditaduras, de arranjos ou constituições de massas (HARDT & NEGRI, 2005). Inevitável não lembrar das cenas iniciais do filme A Onda de 2008, onde um professor de história interpela sua turma sobre a possibilidade do fascismo e do nazismo no mundo de hoje. Diante da resposta negativa e incrédula por parte dos estudantes, o professor reproduz e comprova através de um experimento social todos elementos constituintes do nazi-fascismo com seus alunos. As consequências disso, porém, vocês devem imaginar quais foram. A explosão da extrema direita nos últimos anos (EUA, Brasil, Hungria) ainda nos chocam, sobretudo, as imagens de manifestações antidemocráticas e favoráveis ao retorno à ditadura militar. A socióloga Esther Solano (2019) situa as origens do bolsonarismo como uma demanda de dada parcela populacional por uma solução antissistema, apartidária e idealmente imune à corrupção, ou seja, íntegra. Uma novidade da extrema direita de nossos dias é sua apresentação tecnopopulista. Vale aqui enumerar suas características (MELLO, 2020): 1) o uso privilegiado do aplicativo de conversação Whatsapp como veículo propagador de notícias falsas e de detração política. 194 Flavia Gaze Bonfim (org.) Como se sabe, os disparos em massa de mensagens pró-bolsonaro através do Whatsapp na campanha presidencial brasileira de 2018 foi financiado por empresários bolsonaristas que contrataram empresas de marketing digital para este fim. O caso continua sob investigação judicial por se configurar como crime eleitoral. 2) a proximidade do líder com seus seguidores através de mensagens e comentários nas redes sociais, em geral: Twitter, Facebook, Instagram e a comunicação direta com o público através de “lives” no YouTube. A pesquisa jornalística de Patrícia Campos Mello (2020) revelou que durante a campanha eleitoral de 2018, o número de seguidores de Bolsonaro nas redes sociais era notadamente superior em comparação aos outros candidatos. Por exemplo, no Facebook, Bolsonaro tinha 6,9 milhões de seguidores enquanto Haddad, 689 mil. 3) os ataques organizados através de bots e trolls às pessoas e às instituições contrárias ao posicionamento ideológico extremista. A constatação de um “gabinete do ódio” sintetiza muito bem como funciona esta operação de uso das redes sociais como arma de hostilidade. Toda esta mobilização no meio digital revela uma nova configuração das massas, onde o anonimato, a desinibição e o ódio segregativo, potencializa o efeito de coesão massiva. Isso está evidenciado na capacidade, via internet, de formar e articular grupos isolados geograficamente. O ódio ao inimigo consiste em um dos elementos de união entre diversos grupos virtuais de extrema direita. A nomeação do inimigo perpassa um deslizamento significante muito peculiar: “A contiguidade do ódio passa do PT para o comunismo, daí para o esquerdismo, gênero, ideologia e disso para qualquer sintagma que contenha a expressão social...” (DUNKER, 2019, p. 128). A lógica dessa coesão é a própria segregação que lhe é constituinte. Na origem da fraternidade está a segregação (LACAN, 1970/2003), aqui com o requinte destrutivo, haja vista que o recurso à palavra, ao simbólico fica fora na manifestação de ódio, enquanto uma paixão do ser situada entre o real e o imaginário (LACAN, 1953/1994). Junto a 195 Leituras Psicanalíticas isso, a figura do líder/pai tecnopopulista surge como um protetor garantidor da segurança e combatente capaz de deter a ameaça comunista. Retomando a questão do estudo freudiano das massas, e sua proximidade com a comunicabilidade tecnopopulista de hoje, é importante considerar que a atualidade da análise freudiana consiste em permitir uma leitura estrutural e lógica, muito bem introduzida por Freud através do conceito de identificação. História e estrutura perpassam este texto freudiano e por esta via dupla que podemos pensar nas massas digitais de hoje. O próprio título da obra já nos fornece uma indicação de uma torção moebiana entre o individual e o social, as massas e o Eu. A leitura atenta de autores sociólogos e antropólogos e a escrita vagarosa de Freud sobre o assunto é encerrada no último capítulo com uma bela reflexão clínica sobre a melancolia e a funcionalidade singular do ideal do Eu. Freud aponta três fontes (e não tipos!) da operação de identificação. A primeira, ao pai, considerada por Lacan como anterior a experiência do sujeito. A segunda fonte, a identificação sintomática, regressiva, fazendo recuar a escolha de objeto à identificação. É desta que Lacan isola a função do traço unário. A terceira fonte, consiste na identificação histérica, onde se toma o desejo alheio como próprio e se apresenta na forma de uma contaminação psíquica, diz Freud. As três fontes se articulam revelando a identificação como uma operação contínua e crucial na constituição do sujeito em sua relação com o Outro. Basicamente, foi esta a tônica destacada por Lacan sobre este livro. O próprio não se furtou a tecer considerações sobre os efeitos de massa no laço social. Percebeu na formação psicanalítica de sua época um funcionamento institucional massificado e hierárquico, onde se concebia o final de análise como uma identificação ao ideal do Eu do analista. Em suma, a massa busca o Um, fazer um todo. Oposto a isso, Lacan nos convida a pensar a lógica do não todo, da incompletude nas questões coletivas. 196 Flavia Gaze Bonfim (org.) Dito isso, retomo uma questão destacada anteriormente sobre as demandas do povo. Um dos traços destacados por Freud sobre a psicologia (no sentido de psiquê, “mentalidade”) das massas é a predominância dos afetos sobre a razão. Tal fato, nos faz pensar a prevalência do ódio enquanto uma paixão destrutiva do ser do outro. Contudo, após lançar as bases do conceito de identificação (fazendo Lacan dedicar um seminário sobre o tema), o que faz Freud? Escreve um capítulo exclusivo em seu livro para problematizar o enamoramento e seu paralelo com a hipnose. Isso me faz lembrar a consideração de Lacan de que “o afeto é feito do efeito da estrutura”. (LACAN, 1977, p. 16). A dinâmica do estado amoroso extremo não coincide, a priori, com a identificação, pois na análise freudiana, a identificação acrescenta algo ao Eu e no amor é o oposto, algo se perde. Mais adiante, avança nesta ideia e conclui: “Uma massa primária como essa é uma quantidade de indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência disso, identificaram-se uns com os outros em seu Eu” (FREUD, 1921/2020, p. 192). Quando se está enamorado ocorre a experiência de um esvaziamento do próprio Eu e uma espécie de engrandecimento do amado, uma idealização. Isso promove uma equivalência entre o estado de apaixonamento ao de hipnose (que seria a lógica da massa reduzida a relação dual). Neste momento, Freud destaca uma forma mais elevada de enamoramento: a servidão. Esta seria uma fascinação das massas pelo seu líder. Enamorada, a massa celebra, aplaude e se lança em situações de risco de morte, por amor. Lacan chama esta situação de “fascinação coletiva” e destaca a função do olhar, como uma das formas do objeto a. O sujeito se olha do lugar do ideal do Eu. Se pretende ser amado pelo líder, por exemplo. Contudo, este líder nada quer saber de seus súditos fechando-se em uma condição narcísica. Considerando a prevalência do olhar e da voz no mundo contemporâneo e sua função na mass-media, Lacan constata que: “...tudo isso se esclareça pela referência a esses dois objetos (…) - a 197 Leituras Psicanalíticas voz, quase que planetizada, senão estratoferizada por nossos aparelhos – e o olhar, cujo caráter invasor não é menos sugestivo, pois por tantos espetáculos, tantas fantasias, não é tanto nossa visão que é solicitada, mas o olhar que é suscitado” (LACAN, 1964/1998, p. 259). De fato, hoje o olhar e a voz se propagam pelo mundo através da internet. Dito isso, enfatizo a possível aproximação dessa massa apaixonada e seduzida pelo olhar e pela voz, sua participação como servos ativos, classicamente chamada de “servidão voluntária”, vide o livro clássico de Étienne de La Boétie (2017). Mais do que uma manipulação unilateral do líder para seus súditos, o que assistimos é uma demanda de certa parcela populacional sendo respondida. Falando de outra forma e tomando como exemplo um aspecto da história do Nazismo: a tese polêmica do livro de Daniel Goldhagen (1997) Os carrascos voluntários de Hitler é de que foi o cidadão comum, o alemão médio, que aderiu ao Nazismo. Ele, o cidadão alemão, sabia dos campos de concentração e contribuiu de forma efetiva para o Holocausto. O antisemitismo germânico era anterior a Hitler e além disso era de um tipo peculiar, um antisemitismo de eliminação. O que quero chamar à atenção é que para além do líder genocida precisamos conversar também sobre seus apoiadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS A persistência histórica das massas no laço social, nos faz refletir sobre seu estatuto de regressão social, apontado por Freud (1921/2020). Na leitura de Safatle (2020), o grande mérito de Freud ao elaborar o mito científico do pai primevo e sua horda, foi atentar justamente pela permanência na política moderna da referência nostálgica do líder/pai. Embora o assassinato do pai marque a constituição de um lugar vazio na vida coletiva, a insistência em ocupá-lo conduz ao pior, sobretudo, quando falamos do autoritarismo extremista de hoje. A lógica discursiva que está em jogo é do capitalista. Discurso de exceção, cujo movimento ininterrupto e sem limites, tende a se 198 Flavia Gaze Bonfim (org.) consumir. Nesse sentido, ao não se interessar pelas coisas do amor, penso aqui no laço civilizatório constituído em torno do Eros, o discurso do capitalista tenta promover uma foraclusão da castração (LACAN, 1970/2009). Em nome da prevalência do mercado e da capitalização generalizada, o projeto neoliberal de destruição das políticas sociais e de doutrinação do pensamento avança. Movido pela lógica capitalista, o líder tecnopopulista e extremista anseia pelo totalitarismo, fazendo ecoar ainda hoje a aguda constatação do dramaturgo alemão Bertolt Brecht à época do Nazismo: “o fascismo é a face verdadeira do capitalismo”. Sabemos que a psicanálise só pode ter um lugar em uma sociedade que aposte na democracia, pois esta carrega em si a lógica do não todo, o lugar vazio através da representatividade. Se massa e hipnose, segundo Freud, se equivalem, é importante lembrar que a clínica psicanalítica surgiu e segue como uma ruptura dessa pregnância totalizante. REFERÊNCIAS BOBBIO, Noberto.; MATTEUCCI, Nicola.; PASQUINO, Gianfranco. (Orgs). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília – UnB, 1998. DUNKER, Christian. Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático. In: Democracia em risco? 22 Ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. In: FREUD, Sigmund. Cultura, sociedade e religião: O Mal-estar na cultura e outros escritos. Tradução: Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Obras incompletas de Sigmund Freud / coordenação Gilson Iannini, Pedro Heliodoro Tavares). GANSEL, Dennis. A Onda. [Filme- vídeo]. Gansel, D. dir.107min, 2008. GOLDHAGEN, Daniel. Os Carrascos Voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. São Paulo: Record, 2005. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. São Paulo: Edipro, 2017. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Seminário original de 1953). 199 Leituras Psicanalíticas LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Seminário original de 1964). LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009. (Seminário original de 1970). LACAN, Jacques. Palabras sobre la Histeria. 1977. Disponível em: www.lacanterafreudiana.com.ar. LACAN, Jacques. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (publicação original de 1970) LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. MELLO, Patrícia Campos. A Máquina do Ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. PINHEIRO, Rafael Lobato; COSTA, Raul Max Lucas da (Orgs). A psicanálise no laço social: ciência, capitalismo e mal-estar na contemporaneidade. Curitiba: CRV Editora, 2017. SAFATLE, Vladimir. Posfácio: Medo, desamparo e poder sem corpo. In: FREUD, Sigmund. Cultura, sociedade e religião: O Mal-estar na cultura e outros escritos. Tradução: Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Obras incompletas de Sigmund Freud / coordenação Gilson Iannini, Pedro Heliodoro Tavares). SOLANO, Esther. A bolsonarização do Brasil. In: Democracia em risco? 22 Ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 200 UMA LEITURA PSICANALÍTICA SOBRE PÓS-VERDADE Alexandre Dias Rosa Torres44 Maycon Rodrigo da Silveira Torres45 Paula de Oliveira Santarossa46 INTRODUÇÃO Post-Truth [Pós-Verdade], a palavra escolhida como Word of the Year [A palavra do ano, em inglês] de 2016 pela Oxford Dictionary tem como descrição: um adjetivo definido como relacionado a ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal. Isso significa que fatos derivados de artigos científicos e pesquisas feitas com método não estão conseguindo ter a influência na opinião de determinada parcela da população. Sua primeira aparição foi feita por Steve Teich para a revista The Nation em 1992, como um fenômeno de inclinação social na qual a verdade não seria tão importante como imaginávamos. Foi em 2016 com a chegada de Donald Trump a presidência dos Estados Unidos e a separação do Reino Unido da União Europeia que o termo começou a ser mais discutido, momento em que as projeções feitas pelas mídias tradicionais não se concretizaram e novos meios de comunicação vinda da internet começaram a surgir trazendo conteúdos que colocavam em dúvida a credibilidade das informações desses canais convencionais. O presente trabalho tem como tema a pós-verdade e fake news como instrumento político de manipulação das massas na vida contemporânea. O objetivo é discutir algumas consequências da propagação Possui graduação em Psicologia (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/5870645596795921 Doutor em Psicologia (UFF). Psicólogo. Psicanalista. Professor e Coordenador (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/7552210600986070 46 Doutora em Psicologia (UFF). Psicóloga. Psicanalista. Professora (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/2273241120246161 44 45 201 Leituras Psicanalíticas de informações pelos meios de comunicação digital potencializada por aparelhos eletrônicos, pelo arcabouço teórico da psicanálise, na medida em que a experiência humana é necessariamente atravessada pela linguagem, em sua relação com a pulsão e o gozo. De acordo com Seixas (2018), a morfossemântica do prefixo “pós”, segundo o próprio dicionário Oxford, deixou de significar apenas algo após um determinado evento para também indicar que um certo conceito específico tornou-se irrelevante. Ou pelo dicionário online Dicio (2021), o prefixo “pós” pode ser atribuído a um juízo de valor negativo, desvalorizando o conceito ao qual está ligado. Esse prefixo vai além de uma descredibilização ou um período após a verdade, mas sim uma superação do desejo de verdade que está em divergência com as convicções do sujeito. Isso resultaria numa leitura pré-programada, em que o movimento de averiguar os fatos estaria paralisado em contrapartida na continuidade da manutenção de suas ideologias. A análise de Silvânia Siebert e Israel Pereira (2020) contribui para a compreensão da pós-verdade por um antagonismo entre o valor de verdade e o efeito da verdade. O valor de verdade são os saberes legítimos da ciência onde as instituições dão suporte e valor; é caracterizado pela vontade de um mundo estável e racional. Já o efeito de verdade surge a partir das subjetividades do indivíduo em relação com o mundo, podendo ser verdadeiro caso seja compartilhável e reconhecido por outras pessoas. A pós-verdade seria uma forma de dominação ideológica na qual haveria uma disseminação intencional de notícias falsas, como uma tentativa de mudar os fatos conforme a reação das massas, na medida em que se mostra um mecanismo de poder ao torcer as narrativas (CUNHA, 2018). Outro aspecto da pós-verdade a ser considerado é o momento histórico resultante do grande esforço de dar significado na vasta velocidade de informações e comunicação que a população tem que lidar diariamente, uma tentativa de dar contorno aos inúmeros acon202 Flavia Gaze Bonfim (org.) tecimentos do mundo. É sugerido que seria uma defesa contra fatos desconfortantes. A pós-verdade poderia nascer numa sociedade que se importa mais com seu bem-estar do que os fatos em si, e a ideologia seria fator crucial para as inclinações e seleções que o sujeito abraçaria para si, anulando quaisquer argumentos científicos e metodológicos (SIEBERT; PEREIRA, 2020). Essa busca da construção de significado talvez possa ser explicada através da ideologia de interpretação, na qual colocar em dúvida uma informação representa um esforço de posicionamento, acarretado pelo forte caráter ideológico para interpretar os fatos. A ideologia é um excesso de evidências dos sentidos institucionalizados em que os acontecimentos não mais importam, mas sim apenas as inclinações seletivas de suas crenças para decidirem o que é verdade ou mentira. As convicções políticas não estão tão distantes das crenças religiosas, e como tal, estabelece uma racionalidade própria na qual pode validar as verdades de cada grupo (SEIXAS, 2008). A PSICANÁLISE E OS EFEITOS DA PÓS-VERDADE As consequências da pós-verdade vão além dos danos individuais. Para Cunha (2019), a sistemática da pós-verdade pode impactar gravemente regimes democráticos, abrindo caminhos perigosos para o autoritarismo. As empresas de comunicação tradicionais tentaram se adaptar ao novo mercado, atravessado pela ascendência revolucionária dos meios da informação e da facilidade do compartilhamento de notícias, oferecendo informações que corroboram e confirmam as crenças subjetivas dos leitores. Somado a isto, o surgimento das redes sociais digitais promoveu o aumento da confusão entre o limite da opinião e dos fatos, junto da maior facilidade de compartilhamento de fake news por influenciadores. É associado ainda a uma distorção do pós-modernismo por negacionistas da ciência na argumentação que fatos sociais são sempre construídos e que argumentos sobre um determinado assunto podem 203 Leituras Psicanalíticas depender de uma narrativa ou ponto de vista. Esse intuito seria para lançar dúvidas sobre argumentos científicos e tirar a credibilidade de cientistas, alegando que são grupos com interesses particulares. Cunha (2018) descreve o termo falsa equivalência para denominar como esses fatores levariam a uma relatividade total, na qual não existiria uma verdade objetiva, mas sim que pessoas comuns poderiam chegar a uma equivalência entre suas opiniões sentimentais para construir evidências. A questão da relatividade da verdade por serem relativas depende de seus domínios de validação, como exemplos a área científica com seus critérios metodológicos que podem fornecer bases epistêmicas de validação, as jurídicas com bases deônticas e por fim as políticas com bases de validação ideológicas. A realidade social é o lugar do contingente, onde não há verdade última, e não tem como sua característica o princípio da necessidade, aquilo que consideramos na proposição como irrenunciavelmente verdadeira ou irrenunciavelmente falso. Apesar das fakes news estarem muito associadas com a pós-verdade, de acordo com Seixas (2018), há uma diferença fundamental que os leitores e pesquisadores não podem resumir num único fenômeno. Em primeiro lugar, ambas têm a intenção de dissuadir pessoas para levá-las à desinformação, porém, na pós-verdade há um processo de reprodução automática de convicções já antecipadamente instituídas, mesmo que o discurso não corresponda a uma mentira comprovada ou obedeça a uma intencional manipulação dos sujeitos produtores do discurso. Em certas situações, podem haver em meio a informações falsas outras tantas verdadeiras, no entanto, a pós-verdade é uma combinação calculada entre observações corretas e interpretações plausíveis, mas com interpretações errôneas e tendenciosas. A consequência dessa busca de confirmação nas amarrações ideológicas poderia gerar uma sociedade polarizada e fragmentada, onde a pós-verdade seria uma forma de domínio e manipulação política com grande propensão a demonização dos adversários e decadência de regimes democráticos. Cunha (2018) usa o termo transbordamento 204 Flavia Gaze Bonfim (org.) epistêmico para descrever a desconfiança ideológica do outro para além da vida política, o que resultaria numa câmara de ecos, uma segregação de estilos de vidas e visões de mundo incapazes de tolerar o diferente. Seixas (2018) denominaria a pós-verdade como um autoritarismo da interpretação, onde há uma rejeição sem maiores críticas do diferente e o acolhimento do que se assemelha. Através da propaganda e da análise do discurso, partidos de extrema direita operaram na vida política combinando liberalismo com antielitismo, além de reforçarem o pensamento “nós contra eles”, na qual fica estabelecido que há os bons, os homens comuns contra os estrangeiros que se comportam e pensam diferente. O populismo se beneficia dessa retórica da fronteira do “nós e eles” de forma que pode ser entendido como uma ação política constante em que conteúdo e forma importam. No texto “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud (1920/2011) localiza a identificação ao líder ou a um ideal no elemento que promove o agrupamento dos membros identificados entre si. A fascinação substituiu o ideal do eu individual por um ideal coletivo e é reforçado pelo processo de diferenciação em relação a outros grupos, compreendidos como inimigos. A comunicação digital mudou drasticamente a relação entre a figura política e a comunidade, de tal sorte que, nas redes sociais, criou-se uma maior possibilidade do aumento de um eleitorado, junto com a sensação de aproximação do indivíduo, já que facilitou os meios de se passar informações de suas ideias, posições e a própria vida particular. Arão (2020) conta que a combinação entre as redes sociais e a publicidade já trouxe mudanças drásticas na alteração do rumo das eleições, como a dos EUA e do Brexit. A propaganda personalizada gerenciada por empresas como a Cambridge Analytica e pessoas como Steve Bannon usaram a psicologia comportamental aliada aos algoritmos fornecidos pela Big Data47 para levar ao eleitor notícias 47 Conjunto de fontes de dados variados e complexos que chegam em grandes volumes e velocidade. 205 Leituras Psicanalíticas oportunistas de algum candidato, tudo baseado por seus gostos, personalidade e preferências políticas. O populismo digital definido por Viscardi (2020) como efeito da alta velocidade das informações somada à insegurança e instabilidade dos eventos no mundo fazem a população buscar um sentido no senso comum para construir uma base de segurança. Esse fenômeno expressa a manutenção da mensagem e persona de certos políticos nas redes sociais, como uma arquitetura bem elaborada capaz de dinamizar a relação com os seguidores/leitores por meio de uma construção de imagem e compartilhamento de propostas, mas também com uma disseminação de teorias da conspiração, informações mentirosas e manipulação eleitoral. Outro elemento muito importante do populismo digital é caracterizado pela participação incisiva dos eleitores nas redes sociais por meios de criação e compartilhamento dos conteúdos nos mesmos moldes discursivos, e essas atividades foram pontos chaves para a vitória de Jair M. Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018. Este efeito pode ser explicado com a busca por legitimação de posições políticas pela construção de verdades não legitimadas de forma a haver “efeitos de verdade” em enunciados que operam como comandos. As eleições de Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (Brasil) demonstraram como nesses períodos de 2016 e 2018 houve um aumento de trocas de mensagens de cunho político nas redes sociais e como o show midiático desses dois candidatos levaram a população de seus respectivos países a um binarismo radical “ou você é a favor, ou você é contra”, além de ter sido possível registrar cinco padrões de mensagens em grupos de Whatsapp48 durante o ano de 2018: criar uma fronteira amigo-inimigo; fortalecer o carisma do candidato e traçar paralelos entre ele e seus seguidores; manter a audiência mobilizada através de mensagens alarmistas e conspiratórias; canibalizar o oponente e desqualificar fontes de conhecimento padrão como a mídia e a academia. 48 Aplicativo digital de comunicação por texto, fotos, vídeos, áudio e telechamada. 206 Flavia Gaze Bonfim (org.) Assim como no texto da “Psicologia das massas e análise do eu” de Freud, Viscardi (2020) pensam que o povo tem uma identificação com o líder, por consequência de um ato performático do populismo das redes, na qual há uma estratégia discursiva carregada de afetos, onde o povo, que tem uma falsa sensação de proximidade com a figura política por mediação das redes, consegue encontrar um representante. Há também a necessidade de criação de uma unidade de demanda social em comum para assim criar uma identidade global, um exemplo de unidade poderia surgir a partir de uma demonização de uma parte da população. Cunha (2018) considera a pós-verdade como um facilitador de regimes autoritários, visto que se há uma relativização total da realidade, as pessoas ficariam mais influenciadas pelas manipulações políticas, e sem uma base forte de confiabilidade, as críticas ao poder ficariam mais insólitas. O autor acredita também que determinados agentes políticos utilizam-se da polarização e fragmentação ideológica, oriunda da pós-verdade, como meio de domínio e disseminação de suas narrativas. É uma forma de mostrar poder e de manipulação das massas, quando muitos acreditam que estão agindo por conta própria. Pode-se dizer que para esse autor, a pós-verdade como manifestação de propaganda é um passo para os regimes autoritários. Tendo a mídia tradicional perdendo o monopólio e a confiabilidade da entrega de informações pelas redes sociais e pelos formadores de opiniões, a facilidade da distribuição de notícias cresceu descontroladamente, e com isso mais pessoas têm autonomia para buscar um meio de se informar, contudo, nunca houve uma distribuição tão grande de narrativas falsas como na era digital. A definição de pós-verdade é quando o apelo emocional em certas crenças têm mais importância do que os fatos em si, mesmo quando respaldado em bases científicas ou provas documentadas. Nos conceitos psicanalíticos desenvolvido por Freud, há o termo chamado de realidade psíquica, sobre a qual o psicanalista trabalha 207 Leituras Psicanalíticas numa análise. No inconsciente, o mundo é lido através das fantasias e desejos, de tal forma que a realidade é uma construção ficcional tão real para o sujeito quanto os acontecimentos no mundo exterior. Com isso, podemos perceber que o apelo do emocional carregado de afeto já está vinculado às construções de verdades bem antes da popularização do termo pós-verdade em 2016. Izabel Azzi (2007), ao citar O Projeto, afirma que a realidade psíquica é regida pelo princípio do prazer e a realidade externa, que além de ser inicialmente pensada como traumática, é guiada pelo princípio da realidade. Esta distinção vai se fazendo cada vez menos necessária no texto freudiano. Posteriormente, com outras elaborações, a realidade psíquica é vista na psicanálise como entrelaçada com a realidade externa, assim como uma Banda de Moebius, e estruturada pela fantasia, para encobrir algo que o sujeito não quer saber. A relação do sujeito com a realidade é articulada no laço social e marcada pela alteridade radical e, em certa medida, insuportável, do Outro. Miranda e Caldas (2021) destacam que diferente da teoria da sedução inicialmente proposta por Freud, cujo objetivo tinha a rememoração da cena traumática, um efeito de verdade está relacionado com a fantasia, uma tentativa de solução para o enigma do desejo do Outro. Numa análise, utiliza-se a associação livre como regra fundamental para operar a cadeia significante no sentido de transpor esse enigma para o plano da linguagem na transferência com o analista. A verdade construída em psicanálise se evidencia a partir das variedades de associações construídas em torno de um ponto de gozo opaco e traumaticamente constituído. A cadeia significante das associações gravita em torno desse ponto, cicatriz de um encontro original traumático com o gozo. São articulações feitas pelo simbólico e imaginário que contornam e indicam o real como um furo devido à impossibilidade de este ser traduzido em palavras. Todas as associações são, portanto, ficções e podem variar, o que não implica que sejam mentiras 208 Flavia Gaze Bonfim (org.) no sentido comum do termo. As ficções ganham algum estatuto de verdade pela presença constante dos ditos ao redor de um afeto no corpo impossível de ser inteiramente transposto para a linguagem. (MIRANDA; CALDAS, 2021, p. 5) Uma constatação importante a ser pontuada com as fake news, poderosa arma na era da pós-verdade, é de sua característica de preenchimento do vazio pulsional; é uma oferta de gozo do sentido para o sujeito em dúvida. Miranda e Caldas (2021) defendem que notícias falsas são instrumentos para aqueles que estão no desamparo total diante o enigma da existência, diante o real da vida e das mudanças da contemporaneidade, como a diversidades de gênero e do declínio do patriarcado, quando um mestre começa a ser apresentado como não todo e furado. A fácil aceitação de fake news pode ser método de acolhimento para um suposto retorno e restabelecimento a uma ordem tradicional-nostálgica. A máquina de produção de sentido é um modo peculiar de gozar, já que apontam para um mal que está no Outro. “Essa diversidade, que a cada dia aumenta, revela que a linguagem não dá conta do gozo sexual, o que se transforma numa ameaça. As fakes news difundem, assim, essa ameaça pulsional que há em cada um de nós.” (MIRANDA; CALDAS, 2021, p. 9). Algo que vai na contramão do trabalho analítico, pois se durante uma análise o indivíduo que nela aparece tem um discurso carregado de verdades e fantasias que apontam para uma posição do sujeito diante o mundo e do desejo do Outro, nosso trabalho não é tamponar dúvidas, mas sim assinalar o vazio pulsional e com isso apostar numa operação simbólica e na modificação que ela pode proporcionar. Assim, o discurso politicamente igualitário, a diversidade sexual e a aceitação de uma identidade simbólica, algo que se distancia de um sexo anatômico, fez crescer uma onda conservadora com o sentimento que é necessário defender certos valores tradicionais e ameaçados, não aceitando nenhum tipo de divergência. 209 Leituras Psicanalíticas Na psicanálise, um sintoma é um resto das relações infantis com os pais, em que o sujeito se faz objeto de desejos deles (ou não); é um gozo que aponta o modo de satisfação inconsciente bem particular de como a criança foi amada pela função materna e como um pai simbólico exerceu uma função. Sobre a questão do sintoma e como um sujeito perde a realidade em sua volta, Freud em 1924 escreve o texto “A perda da realidade na neurose e na psicose”, em que elabora a divisão nessas duas estruturas clínicas de como o Eu lida e evita com situações no confronto com o real. Na psicose, Freud (1924) explica que, quando há um conflito com a realidade exterior, o Eu, a serviço do Id, retira-se de uma parte da mesma para posteriormente criar uma alternativa na tentativa de substituir a anterior. No texto “As neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/2006) discorre que o psicótico utiliza-se de duas defesas diante a castração: a rejeição, que posteriormente Lacan utilizará o termo “foraclusão”, e a projeção. Os delírios e alucinações tem como objetivo a formação dessa nova realidade, são elementos do inconsciente expelidos e projetados no mundo exterior. Já na neurose não há um rompimento com a realidade, em sua dependência com ela, e com o recalque da vida pulsional, há uma porção de realidade a ser evitada mediante uma fuga, um modo de “não querer saber”. “Nele vemos que se reage com angústia a cada vez que o instinto reprimido faz um avanço, e que o resultado do conflito é apenas um compromisso, imperfeito como satisfação.” (FREUD, 1924/2006, p. 197). Freud usa o termo “retorno do recalcado” para designar o efeito do material inconsciente ao nível da consciência e como essa organiza a realidade, contudo, esse material é deformado pelo deslocamento e condensação; há uma mensagem secreta e simbólica que se articula na linguagem – sonhos, sintomas, lapsos, atos falhos, esquecimentos, acting-out e a trama efetiva do sujeito. Na vida psíquica, o outro é sempre considerado, enquanto objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é desde o início uma psicologia social, psicologia dos grupos, como já dizia Freud 210 Flavia Gaze Bonfim (org.) no texto “Psicologia das massas e análise do Eu”. Freud considera que mesmo um sujeito estando fora de um grupo, sempre carrega a marca e presença do outro, havendo uma indissociação do âmbito social. Arão (2020) apresenta a ideia da horda primeva, mito freudiano que tenta explicar como o homem nunca foi um sujeito isolado, mas há muito se constituiu em sociedade, como um animal de bando sob poder de um pai soberano de pleno gozo, na qual resulta em seu assassinato pelos próprios filhos. Para Freud, as massas podem ser consideradas uma encarnação da horda primeva, seus participantes partilham de uma alma coletiva, uma mente grupal homogeneizada que trabalha em perfeita harmonia. Se na vida fora das massas parte de nossos impulsos é barrado pela censura, dentro de um grupo, o sujeito tem uma tendência de transformar-se em algo diferente. Arão numa perspectiva freudiana, explica que a massa tem a capacidade de retirar a individualidade de um sujeito, cria-se um sentimento de poder e unificação, mesmo que o mesmo se julgue independente e autônomo. A censura da vida cotidiana é afrouxada, e todas as atitudes, pensamentos e desejos que o sujeito não tinha coragem de colocar em prática quando sozinho tem como brecha quando inserido num grupo – racismo, apoio a torturadores, homofobia e afins. É o retorno dos conteúdos inconscientes, pois o ser da massa é regido por pulsões primitivas ao nível do contágio e influência com seus semelhantes; há uma desinibição das mesmas. O senso crítico é outra questão prejudicada, na medida em que o sujeito fica mais suscetível à subserviência de um líder eleito como representante de seus ideais. Freud considera que esse líder, através das identificações inconscientes, tem um poder hipnótico sob seus seguidores, além de uma conexão libidinosa que mantém o grupo em conjunto. Essa autoridade não necessita de nenhum tipo de convencimento racional, pois sendo a massa o inconsciente manifesto, o líder é a personificação dos anseios de seus seguidores. 211 Leituras Psicanalíticas O que aprendemos dessas três fontes pode ser resumido assim: primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais significativo esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim ao início de uma nova ligação. (FREUD, 1924/2006, p. 50) José Martins Neto (2018) considera que o mundo digital tem a mesma capacidade de formação de massas tão quanto na vida real, junto com todos seus mecanismos de ações, como constantes contaminações e direcionamentos de afeto de ódio que colaboram para um deficit do pensamento crítico. O trabalho de pensar é fundamental para uma democracia saudável, é de extrema importância um clima de tolerância com o diferente para que possa haver debates entre forças políticas opostas. As intrigas nas redes sociais durante as eleições de 2018 demonstraram como esses ciberespaços foram centrais para a disseminação de uma retórica de ódio contra minorias em prol de um candidato. Neto compara essas retóricas o que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”. “As palavras perdem seu valor e seu papel de único meio para evitarmos o confronto violento. Não há mais espaço algum para o debate de ideias e propostas, uma vez que incitações ao mal não são levadas a sério.” (NETO, 2018, p. 3) Neto (2018) também indica que a psicanálise freudiana é enfática ao citar que, para fazer parte da civilização, é necessário a renúncia de algo da ordem pulsional. Assim como os filhos do pai da horda fizeram após o parricídio, uma parcela da pulsão tem que ser renegada. Em terceiro lugar, enfim, e isto parece ser o mais importante, é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual, o quanto 212 Flavia Gaze Bonfim (org.) ela pressupõe justamente a não satisfação (supressão, repressão, ou o quê mais?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens; já sabemos que é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de combater. Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico; aí teremos muito o que esclarecer. Não é fácil compreender como se torna possível privar um instinto de satisfação. É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios. (FREUD, 1930/2006, p. 40) A renúncia do gozo pleno tem que ser realizada para que uma cultura progrida, mas, como menciona Freud, a renúncia de poderosas pulsações leva à frustrações e a causa de todas as hostilidades que ocorreram na história humana. Os relacionamentos de hoje em dia, principalmente nas questões políticas, são de extrema intolerância, quase que da ordem do insuportável, algo que se pode considerar o que Freud (1920/2011) chamou de narcisismo das pequenas diferenças. Algumas figuras políticas são idealizadas pelas massas como uma idealização do próprio Eu reprimido, quando esses líderes atacam ou prometem políticas que prejudiquem determinados grupos. Esses sujeitos ficam em fácil posição de manipulação justamente pelo conceito do narcisismo das pequenas diferenças. Arão (2020) explica que o medo do diferente, a impotência e a ânsia de uma resposta demanda a procura de uma figura poderosa, como o extremista que age de uma forma que os outros membros não são capazes de fazer sozinhos. O desenvolvimento da nossa civilização não é retilínea. Para Bauman (2017), trata-se de um movimento pendular. Em sua especulação a respeito do diagnóstico de Freud sobre o mal-estar de nossa cultura nos dias de hoje, acredita que nossa principal fonte de insatisfação seja a carência de segurança, um temor de desamparo na qual a troca de uma certa liberdade seria o suficiente para tamponar 213 Leituras Psicanalíticas essa angústia – algo oposto da época de Freud com seus pacientes que necessitavam de liberdade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar, é interessante articular e refletir a questão do pêndulo de Bauman com o “gozo culposo” da elite brasileira – ideia presente no artigo de Marcos Nunes (2020) sobre a antologia política do gozo com as fake news. O autor descreve como a elite brasileira tem raízes colonialistas, é predatória e se considera pertencente a outro lugar que não o Brasil. A relação que os colonos portugueses tinham com o Brasil era de violência e de expropriação, tanto das riquezas da terra quanto dos corpos escravizados. “O corpo do escravo está aí, à disposição do seu senhor. O corpo da escrava está aí, para gozar e, eventualmente, produzir um ou outro bastardo.” (NUNES, 2020, p. 8). O resultado de trezentos anos de escravidão e violência teve resultado num gozo culposo, não pela moral ética, mas pelo medo da retaliação (“racismo reverso”, “agenda gay”, “genocídio branco”). As políticas higienistas e de segregação de minorias são formas de lidar com esse medo, um retorno do recalcado que se instaura a partir do momento em que esses grupos oprimidos também lutam por partilhar esse gozo antes usufruído apenas por uma elite. Hoje, essas minorias estão cada vez mais assumindo um espaço que antigamente era inimaginável de se ter, o que produz na elite um sentimento de invasão e usurpação por aqueles que antes estavam à margem da sociedade, mas agora ocupam as universidades, shoppings e lugares considerados como espaço de gozo do senhor. Nunes (2020), no final de seu artigo, termina abordando que o gozo das fake news é o gozo do colonizador, uma ficção que funde o ódio e erotismo abjeto na qual tem raízes na nossa história e cultura, onde a violência proporciona algum tipo de prazer. Além disso, a máquina das fake news é uma narrativa perfeita de uma ficção para sustentar a falta, o não senso do Real da política. É um modo de colocar o sujeito 214 Flavia Gaze Bonfim (org.) num lugar de produção de verdade na qual há o gozo do não-saber que, aliado ao fundamentalismo religioso e do negacionismo científico, não necessitam de nenhum procedimento de verificação, apenas uma bela ficção de retorno a um passado mitológico onde não havia o medo de retaliação pela ascensão de grupos minoritários. E quais as implicações para a condução da análise? Ainda em Freud (1920/2011), aponta-se para a importância do final de análise como marcada pela queda dos ideais, ponto de emergência da singularidade para além de um narcisismo egóico que reforce os efeitos imaginários dos discursos segregatórios. REFERÊNCIAS ARÃO, Cristian. “As Redes Sociais e a Psicologia das Massas: A Internet como Terreno e Veículo do Ódio e do Medo”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, p. 181-206; 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/issue/ download/2176/545#page=182 AZZI, Izabel. “Realidade, Uma Razão Que Não Se Explica”. Ágora, Rio de Janeiro, v. X, n. 2, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/NgGGQV5PtFLJCYh3xvKHJDD/?lang=pt BAUMAN, Zygmunt. O retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo líquido. Zahar; 1ª edição, 2017. CUNHA, Marcio. “Post-Truth and Authoritarianism: Reflections about the Antecedents and Consequences of Political Regimes Based on Alternative Facts”. Bras. Political Sci. Rev. v.13, n. 2, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo. php?pid=S1981-38212019000200601&script=sci_arttext FREUD, Sigmund. (1894). “As Neuropsicoses de Defesa”. In: FREUD, S. Primeiras Publicações Psicanalíticas (1893-1899), v. 3. Imago Editora, 2006. FREUD, Sigmund. (1924). “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: FREUD, S. O ego e o id e Outros Trabalhos (1923-1925), vol. 19. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006. FREUD, Sigmund. (1930). “Mal-estar na Civilização”. In: FREUD, S. O ego e o id e Outros Trabalhos (1923-1925), vol. 21. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006. FREUD, Sigmund. (1920). “Psicologia das massas e análise do eu”. In: FREUD, S. A psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Companhia das Letras, 2011. MIRANDA, Leonardo; CALDAS, Heloísa. “Considerações psicanalíticas sobre a pós-verdade e as malditas fake news”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun215 Leituras Psicanalíticas damental; São Paulo, v. 24, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/ xgJscBpHgzPcyRmxqDrqpDD/?lang=pt NETO, José Martins. “Psicanálise, formação de massa e democracia”. Ide, São Paulo, v. 40, n. 66, 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062018000200008 NUNES, Marcus Vinicius de Souza. “Nada Mais Que A Verdade: Fake News, Ficção E A Ontologia Política Do Gozo”. Leitura Flutuante, v. 12, n. 2, 2020. Disponível em: https:// revistas.pucsp.br/index.php/leituraflutuante/article/view/51550/pdf PÓS-VERDADE. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/pos/. SEIXAS, Rodrigo. “A retórica da pós-verdade: o problema das convicções”. Revista Eletrônica De Estudos Integrados Em Discurso E Argumentação, v. 18, n. 1, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.17648/eidea-18-2197 SIEBERT, Silvania; PEREIRA, Israel. “A pós-verdade como acontecimento discursivo”. Ling. (dis)curso, Tubarão, v. 20, n. 2, 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1518-76322020000200239>. VISCARDI, Janaísa Martins. “Fake news, verdade e mentira sob a ótica de Jair Bolsonaro no Twitter”. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 59, n. 2, p. 1134–1157, 2020. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8658477. Nota: trabalho derivado da monografia intitulada “Análise das questões da pós-verdade e fake news como instrumento político e das massas: uma investigação sócio psicanalítica” apresentada por Alexandre Dias Rosa Torres em dezembro de 2021 na Faculdade Maria Thereza (FAMATH). 216 A SEXUALIDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS: NOTAS SOBRE O GOZO E O AMOR Renata Sales Martins49 Luciana Ribeiro Marques50 INTRODUÇÃO Em 1905, no texto Três ensaios da teoria sexual (1905/2020), Freud, já dispondo do conceito de inconsciente e da articulação do aparelho psíquico como um aparelho de linguagem, traz o conceito de pulsão para falar da sexualidade como o alicerce de toda a teoria psicanalítica. A teoria da sexualidade é efeito de seu extenso percurso clínico, onde pôde perceber que o eu se utiliza do recalque como defesa diante das constantes exigências de satisfação das pulsões, sendo os sintomas neuróticos o produto desse conflito. Ao ofertar um dispositivo em que a fala do sujeito, endereçada ao analista sob transferência, é o seu material de trabalho, Freud pôde operar e ter notícias do circuito pulsional em suas dimensões simbólica e real; ou seja, através do que se coloca em significantes e do que escapa, por ser impossível de representar, restando e retornando para o sujeito como tentativa de recuperação de um gozo perdido. Lacan, ao retomar e avançar com a teoria freudiana da sexualidade, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, articula as modalidades de gozo em relação ao falo, apontando as diferentes posições assumidas pelo sujeito, através da linguagem, frente à falta e à castração. O falo, como um significante da falta, orienta o desejo a partir da operação metafórica do Nome-do-Pai, organizando, assim, o campo do gozo, porém, não-todo: sempre haverá algo que escapa à representação significante e aponta para a ausência de complementariedade Doutoramento em Psicanálise (UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/4866118695237925 Pós-Doutoramento e Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise (PGPSA–UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/3540771560141062 49 50 217 Leituras Psicanalíticas entre as posições de gozo do homem e d’Ⱥ mulher expressos tanto através da relação entre os sexos, que não vai, quanto na impotência do amor em fazer Um. Assim, pretendemos trabalhar, através de dois casos clínicos, o mal-estar inerente às parcerias amorosas – tal como escutamos na clínica –, mas não sem tecer uma articulação entre a sexualidade, o gozo e o amor. DESENVOLVIMENTO No texto As neuropsicoses de defesa (1894/2020), Freud afirma a existência de representações hiperinvestidas, de caráter sexual e incompatíveis ao eu, diante das quais o psiquismo precisa produzir defesas. Essa teoria, retomada um ano depois no texto Projeto para uma psicologia (FREUD, 1895/2020), aponta para a ideia de um psiquismo regido pelo princípio de prazer, uma lei de quantidades que tem como visada a eliminação do excesso de energia acumulada em seu interior e sentida como desprazer. Nesse texto, Freud descreve uma primeira experiência mítica de satisfação, vivida pelo indefeso bebê, recém-chegado ao mundo, na tentativa de neutralizar o excesso de energia proveniente de estímulos endógenos e exógenos. Sua primeira tentativa é lançar mão de um recurso motor, como choros e gritos, mas que não produzem o alívio necessário, sendo imprescindível a intervenção de um Outro que oferte o alimento ou o aquecimento do corpo, colocando um fim ao desprazer suscitado pelo aumento das excitações: Se o indivíduo auxiliador operou o trabalho da ação específica do mundo exterior no lugar do indivíduo desamparado, este, por meios de dispositivos reflexos, é capaz de consumar no interior do seu corpo, a atividade necessária para cancelar o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui, então, uma experiência de satisfação que tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo (FREUD, 1950[1895]/2020, p. 363). 218 Flavia Gaze Bonfim (org.) Para Freud, portanto, a consequência da relação do bebê com esse Outro é a inscrição do que chamou de traços mnêmicos, ou seja, marcas significantes que fundam o aparelho psíquico e banham seu corpo de linguagem, transformando o corpo orgânico em um corpo erógeno. Com isso, Freud marca a presença de uma alteridade que pré-existe ao sujeito e possui uma especificidade distinta das demais presenças que o cerca, se tratando de uma instância a qual o bebê passa a direcionar seu apelo na tentativa de parcializar os efeitos de seu desamparo. Ao conceber o psiquismo fundado pelas marcas significantes que se constituem na relação com o Outro, Freud desnaturaliza a condição humana como da ordem instintual e orgânica, situando sua constituição a partir do investimento materno que dá suporte ao apelo infantil e produz um registro de representações da ordem da sexualidade. Essa marca, produzida mediante intervenção externa no prematuro corpo do bebê será metabolizada e incluída no registro de representações. Porém, por se tratar de um excesso, uma parte não será integrada em tal registro, permanecendo como algo inassimilável e que restará como Coisa, como das Ding. Trata-se, portanto, de dois componentes: [...] um dos quais se impõe por uma montagem constante, mantém-se reunido como uma Coisa do mundo, enquanto o outro é compreendido por um trabalho mnêmico, isto é, pode ser reconduzido a uma notícia do próprio corpo (FREUD, 1950[1895]/2020, p. 373). Em outras palavras, desse encontro com o Outro, o bebê se depara com um excesso que o aparelho psíquico não encontrará meios para absorver por inteiro e incluí-lo no sistema de representações, se tornando uma memória inconciliável com o eu e, portanto, traumática. Como presença, essa lembrança inassimilável se constituirá como um núcleo de fixação, ou seja, um núcleo atrativo com o qual se ligarão as experiências posteriores do sujeito, denotando, para sempre, uma impossibilidade de satisfação total mediante descarga completa de excitações. 219 Leituras Psicanalíticas No Manuscrito K (1896/2020), Freud reafirma a natureza sexual que está em jogo no evento traumático e acrescenta sua constituição em um momento prematuro, equivalente às primeiras experiências de satisfação. A ocorrência de sua lembrança, no entanto, precisa se dar em um instante posterior, onde há uma reedição da defesa vivida com uma intensidade ainda maior, visto que ela se soma à anterior. Nesse segundo momento, o psiquismo já teria condição simbólica para responder de outro lugar, porém, reage da mesma maneira, o que denota uma repetição a partir da tal fixação produzida pelo núcleo traumático. Sendo assim, “fator econômico, sexualidade e temporalidade definem o trauma. As ficções de sedução estão inscritas no traço mnêmico de um trauma infantil. A sexualidade é traumática” (BERTA, 2012, p. 83). Cabe destacar que Freud, inicialmente, alicerçava suas teorias sobre o trauma tendo as cenas de sedução por parte de um adulto como base. A virada teórica, documentada em duas cartas a Fliess, ambas de 1897 (FREUD, 1950[1897/2020]), apontam para o importante papel das fantasias neuróticas infantis na constituição do trauma. Com isso, Freud traz a noção de realidade psíquica ao afirmar que o afeto que não conseguiu se ligar a uma representação pode ser investido em uma ficção. A partir desse momento, a fantasia ganha lugar de destaque ao longo da obra de Freud que passa a considerar a concomitância entre duas realidades: externa e interna. A relação do sujeito com o mundo externo passa a ser, então, mediada por representações singulares que se repetem insistentemente com a intenção de oferecer ao psiquismo certa homeostase: [...] tais representações constituem uma verdadeira matriz psíquica que funciona como uma espécie de filtro em relação ao mundo externo, do qual são retiradas apenas os traços que com elas coadunam (COUTINHO JORGE, 2010, p. 10). O intuito é trazer uma proteção para o aparelho psíquico contra os excessos de estímulos, sejam externos ou internos. Os externos, 220 Flavia Gaze Bonfim (org.) vividos através de experiências muitas vezes de ordem traumática, produzem grandes exigências de simbolização, isto é, um trabalho de elaboração psíquica constante que, mesmo assim, não compreende todo o excesso. Os internos são efeitos do que se produz a partir do núcleo de fixação, ou seja, a partir desse resto inassimilável, proveniente do encontro sempre traumático com o sexual e que se presentificarão nas poderosas forças pulsionais. Ao se ocupar da sexualidade infantil e seus desvios, Freud traz em seus Três ensaios da teoria sexual (1905/2020) a pulsão como produto da linguagem, pois, vindo ao mundo desamparado e sem o saber que o instinto lhe concederia, o bebê precisa, necessariamente, submeter-se ao Outro em uma aposta de manter-se vivo. A interpretação que, por exemplo, poderá dar sentido ao seu choro com a oferta de alimento e acalento, o introduzirá no campo da sexualidade a partir da erogenização da carne: será a articulação entre a linguagem e o corpo-carne que produzirá um corpo pulsional, mapeado pelos significantes que a língua materna banhou. Diante dessa operação, o bebê passará a endereçar suas demandas de satisfação ao Outro, mas não sem que uma fenda se abra entre o almejado e o alcançado, sendo justo dessa hiância que surge o desejo. A necessidade – transformada em demanda de amor pela incidência da linguagem –, dará a conotação do inerente desencontro que restará na relação do sujeito com o Outro e que o desejo irá ratificar, revelando assim, a impossibilidade de completude (cf. MARQUES, 2016). Desde o início de sua teoria sobre as pulsões, Freud destaca ser a satisfação o objetivo da pulsão; satisfação que, sendo sempre parcial, será postulada como aquilo que se coloca na relação do sujeito com a falta, com o objeto vazio que causa o desejo do sujeito e faz reverberar nos encontros e desencontros amorosos estabelecidos na vida. Dito de outro modo, se a pulsão leva o sujeito em direção à falta e não há vínculos pré-estabelecidos entre a pulsão e o seu objeto, essa relação será sempre montada pelo sujeito, levando-a a não atingir o objeto 221 Leituras Psicanalíticas em si, mas apenas o contornar. Neste sentido, podemos entender o objeto como um vetor, um orientador que instiga o sujeito em uma direção que, ao não atingir seu alvo, revela o descompasso que a pulsão instaura no sujeito. O mal-estar, próprio da pulsão, está na satisfação produzida no contorno do objeto e não em seu encontro, pois, tal satisfação não deve ser situada, a partir de Freud, como da ordem do prazer, mas sim da repetição: Temos, então, a força da pulsão emergindo de sua fonte na borda da zona erógena, aspirando ao encontro com o objeto. Se o encontro com o objeto, que seria o objeto da satisfação, é o encontro com o oco, com o vazio do objeto, a satisfação da pulsão está no retorno e no recomeço, em sua própria insistência, na compulsão à repetição (RIBEIRO, 2015, p. 23). Em 1920, Freud retoma tais pressupostos a partir dos avanços de sua clínica e afirma que, na impossibilidade, pela via do princípio de prazer, de se produzir uma descarga que ponha fim nessa tensão provocada por esse excesso, o sujeito repete as experiências anteriores: pela via de sonhos, como nos traumas de guerra; nas brincadeiras infantis como o for-Da; ou, ainda, na própria transferência endereçada ao analista. Ao destacar que, para além da satisfação obtida com a diminuição da tensão do aparelho psíquico havia uma compulsão à repetição, Freud ainda enfatiza que entre o que se busca repetir e o que de fato se repete, há uma perda, um resto que insiste, levando-o ao conceito de pulsão de morte: uma energia livre, muda, sem palavras, desligada de qualquer significante. A partir da leitura do Mais além do princípio de prazer (FREUD, 1920/2020), Lacan pôde criar o conceito de gozo, primeiramente, em O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55/2010), ainda como uma noção e, posteriormente, em O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise (1959-60/2008), onde o gozo surge como um conceito que comporta um inassimilável na constitui222 Flavia Gaze Bonfim (org.) ção de todo ser de linguagem, ou seja, como um “fora-do-significado” (LACAN, 1959-60/2008). O processo de subjetivação, tanto para Freud quando para Lacan, é efeito da entrada do significante do Outro no corpo bebê, o que possibilita sua inscrição na ordem da sexualidade pulsional e parcial, ao mesmo tempo em que aponta para aquilo que, diante de um excesso, permanece fora do sistema de representações significantes. Em A significação do falo (1958/1998), Lacan aborda o falo como um significante que, a partir da operação da metáfora paterna, servirá para o sujeito como um vetor que permite unir desejo e lei, impossibilitando qualquer acesso a um gozo todo. O falo, como significante da falta no Outro, possibilitará ao sujeito orientar o seu próprio desejo a partir da pergunta “o que o Outro quer de mim?”. Assim, ele servirá como um significante que garantirá aos demais a possibilidade de inscrição, vindo a organizar o campo do gozo, porém, não-todo. Em O Seminário, Livro 20: mais, ainda (1972-73/2008), Lacan apresenta, através das fórmulas quânticas, a desproporção entre os sexos a partir dos distintos modos de gozo: O lado masculino se caracteriza por uma exclusividade do gozo fálico, afirmando o conjunto de todos os homens a partir da exceção que funda esse conjunto, sendo o que a mítica freudiana desenvolveu como o pai da horda primitiva, o Totem; do outro lado, Lacan vai dizer 223 Leituras Psicanalíticas que Ⱥ mulher não goza de forma complementar, nem simétrica, pois ela teria acesso a duas modalidades de gozo: o gozo fálico e o Outro gozo. No terceiro andar das fórmulas outra disparidade, aqui, a posição masculina toma o objeto a como causa de seu desejo, e Ⱥ mulher toma o homem no lugar de falo, permitindo que Lacan aponte para a não existência da relação sexual. Como pura alteridade, o não-todo fálico da posição feminina adverte que nem tudo na mulher vai dizer respeito ao falo e ao significante, pois inclui o que dele escapa e que, por isso, é da ordem do real: resto que sobra e por vezes transborda, como já afirmava Freud no início de sua obra ao falar do sexual traumático a partir de um excesso não metabolizado pelo aparelho psíquico. No 2º Ciclo Internacional Interuniversitário de Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ (2021), Heloisa Caldas aponta para o fato de que a noção de Outro gozo em Lacan é análoga à ideia de trauma em Freud. Conforme a conferencista, o primeiro gozo, aquele da primeira experiência de satisfação, implica uma invasão no corpo do bebê diante do qual o aparelho psíquico metabolizou apenas o que pôde dar conta, restando um excesso que permanece como alteridade: “somente parte do gozo pode ser submetido à mestria de um saber através do significante, o que implica que resta um Outro gozo irreconhecível e, por isso mesmo, inassimilável” (CALDAS, 2021). O Outro gozo faz vacilar aquilo que se sabe pela via do significante, garantindo o mal-entendido das parcerias amorosas, o mal-entendido advindo da completude idealizada que vai inexoravelmente fracassar e desvelar a inexistência da relação sexual. Diante disso, passaremos agora a dois fragmentos de casos clínicos. Caso 1: Daniel chega em análise contabilizando suas perdas diante do uso abusivo de cocaína: o casamento, o trabalho em uma multinacional, os bens materiais e os amigos. De volta à casa da mãe no interior, ao trabalho na pequena empresa do pai, Daniel estava cheio de dívidas e tinha acabado de ter um infarto. Iniciou o uso de drogas na vida adulta, em festas de música eletrônica onde partilhava seu 224 Flavia Gaze Bonfim (org.) uso com o companheiro e com os seus amigos. Sua mãe, sempre teve questões com a homossexualidade de Daniel; em alguns momentos convivia com seu parceiro, mas, em outros, se afastava, mantendo seu desconforto por vezes velado, por vezes explícito, oscilações análogas as que fazia com a religião. Até que, em um momento de aproximação com a religião, ela pede que o filho retorne com ela ao convívio religioso como condição da aproximação entre ambos: “não há felicidade fora da religião”, dizia ela. Ao ouvir a negativa de Daniel, ela completa: “se é sua escolha, arque com ela. Eu não vou mais conviver com vocês. Eu te amo muito, mas amo meu Deus mais que a você e ele não permite que eu aceite essa vida que você leva”. Daniel localiza esse como o momento em que passou a usar drogas de um outro modo, ou seja, diariamente, em situações que iam do lazer ao trabalho, chegando a passar dias em quartos de hotéis onde consumia drogas e sexo em um movimento masturbatório: “não importava quem estava comigo. Ficava horas e mais horas sem nem ter orgasmos. Foi assim que perdi tudo, quase morri e continuo gastando o que não tenho porque não consigo parar”. Caso 2: Fernanda chega em análise ao saber que a pesquisa acadêmica de quem escolheu para ser a sua analista tinha relação com as mulheres, o amor e a clínica das toxicomanias: “isso aí que você descreve, já fiz tudo”. A primeira vez em que se apaixonou, Fernanda tinha 15 anos: uma amiga do colégio lhe apresentou o Rafael, um traficante que vendia drogas próximo à escola. Fernanda já tinha usado maconha algumas vezes com amigos, mas começou a comprar com Rafael para se aproximar dele, o que funcionou. Certa vez, antes de transarem, ele lhe entrega um saquinho com cocaína e diz: “você não tem ideia de onde isso aqui pode levar a gente. Eu não tinha mesmo. Mas com ele, eu ia para qualquer lugar”. Ao descobrir esse namoro, sua mãe começou a proibir suas saídas, trocou Fernanda de escola, mudaram para uma cidade vizinha e não lhe dava dinheiro para nada. Naquela época, começou então a sair com um homem muito mais velho, com quem passou a fazer sexo 225 Leituras Psicanalíticas em troca de dinheiro; dinheiro esse que passou a ser usado como meio para encontrar Rafael: “Eu era muito louca. Tudo que ele pedia, eu fazia: fugi de casa, larguei a escola, levava droga escondida em bolsas, roupas e até no meu corpo. Eu passava melhor pela polícia por ser mulher, nunca me paravam. Nessas horas eu só pensava: esse homem nunca mais me deixa depois desse risco todo que corri por ele... Nem sei te dizer se aquela altura eu tinha prazer usando droga. Eu gostava mesmo era de como ele me olhava quando eu chegava com a droga”. Retornando às fórmulas quânticas para pensar a desproporção entre os gozos apontada por Lacan, temos, do lado do homem, o gozo fálico que aponta para uma relação de exclusividade com o significante e que toma o parceiro como objeto da sua fantasia. No entanto, a partir das vinhetas clínicas trazidas aqui, o que podemos perceber com o caso Daniel é um recurso à droga na tentativa de tamponar a angústia frente à castração, atualizada na escolha de sua mãe por Deus e não por ele. Daniel, então, elege a droga como seu próprio deus, em uma relação exclusiva onde passa a não mais se relacionar com parceiros que possam ocupar o lugar de objeto a na sua fantasia, suscitando, com isso, um rompimento com o gozo fálico. O que temos, a partir disso, é uma relação mortífera em busca de um gozo todo que aponta para um desintrincamento pulsional, uma pura cultura da pulsão de morte, como já apontava Freud desde 1923. Fernanda, por sua vez, se utiliza da droga para se ligar a Rafael. Na divisão entre o gozo fálico e o Outro gozo, Fernanda se agarra ao significante fálico, tendo um parceiro que lhe serve como conector, pois, do outro lado, o que encontra é S (Ⱥ), ou seja, aquilo que falta como significante no Outro e que é vazio de significação. É por essa ligação das mulheres com o Outro barrado da linguagem e pela falta de um significante que diga Ⱥ mulher, que Lacan nos lembra que quando se trata da relação das mulheres com o amor, há algo da ordem da loucura: “a ponto de não haver limites às concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens” (LACAN, 226 Flavia Gaze Bonfim (org.) 1973/2003). O que percebemos é que as mulheres, embora não-todas, permanecem ligadas ao falo em uma aposta de que o amor seja a possibilidade de encontrar sua subsistência: “sem o amor do Outro não se teme perder um objeto valioso: teme-se perder a si própria, tragada pelo não-ser” (RIBEIRO, 2011, p. 163). Daí concluirmos, com Lacan, que entre os sexos a coisa não vai! CONSIDERAÇÕES Uma vez que a coisa não vai, propomos considerar algumas questões sobre o amor como suplência ao impossível da relação sexual, falha que faz surgir a aposta na ficção e implica na distinção entre o modo masculino e o modo feminino de lançar mão do amor51 como aquilo que pode vir a ocupar o lugar do que rateia. Por um lado, temos um homem, cujo gozo é limitado ao gozo fálico, uma vez que O Homem, o Todo-Homem, esse não existe; ou melhor, só existe como proposição universal, como significação produzida por efeito de discurso: um Totem. Por outro, Ⱥ mulher que não existe, mas se duplica, na medida em que além de sua relação com o falo [Ⱥ → Φ] – meio pelo qual as mulheres podem encontrar o significante de seu próprio desejo –, elas também mantém relação com o Outro [Ⱥ → S(Ⱥ)]; questão que nos lança a um retorno a Freud quando afirma a diferença advinda por efeito do complexo de castração: se para os homens incide a angústia de castração, para as mulheres a angústia se dá pela via do abandono, pelo medo da perda do amor (cf. MARQUES, 2016). Embora sem o recurso da lógica, Freud já havia desde cedo percebido que o fracasso da relação sexual determinava a diferença entre o modo masculino e o feminino de amar. Entre 1910 e 1918, escreve três textos de contribuição à psicologia do amor: Sobre um tipo particular de escolha de objeto nos homens (1910/2007), Sobre a mais generalizada degradação da vida amorosa (1912/2007) e O tabu da virAqui estamos tratando do amor como amor-paixão. O amor como paixão é imaginário, é o amor que tem como visada ser amado pelo outro (LACAN, 1953-54/1983|) e (cf. FERREIRA, 2004). 51 227 Leituras Psicanalíticas gindade (1918[1917]/2007). Nos homens, observa Freud (1910/2007), a primeira condição para a escolha do parceiro aponta para um terceiro prejudicado, de modo que um outro homem possa reivindicar o direito de posse da mulher escolhida, tornando-a supervalorizada. A segunda é designada como amor à má reputação do objeto, relacionada com a experiência do ciúme, que se torna necessária. A terceira revela-se por sua natureza compulsiva, com enorme dispêndio de energia, já que exclui quaisquer outros interesses do sujeito. Por fim, a quarta condição indica a ânsia de salvar a mulher amada, por onde se desenvolve o desejo de manter a mulher escolhida no caminho da virtude: [...] o que Freud vem nos salientar é que o tipo de amor dos homens, quer esteja pautado em uma ou em mais de uma das condições aqui descritas, tem os traços de fixação nas fantasias infantis, [...] sendo a mãe idolatrada com ternura como santa, mas não sem revelar ao menino o seu lado erótico, ao entregar-se ao desejo do pai. É esse o pano de fundo presente nas derivadas condições de escolha por parte dos homens (MARQUES, 2016, p. 127). Foi a partir dessas constatações que Freud (1912/2007) pôde pensar a impotência presente na vida sexual de alguns homens dotados de natureza intensamente libidinosa. Em certos casos a fixação da libido em fantasias incestuosas inconscientes é a causa da debilidade do órgão. Já em outros, a restrição se coloca na escolha, através da qual a corrente erótica que permanece ativa procura objetos que não remetam às imagens incestuosas proibidas. Desse modo, a fim de evitar o incesto, toda a esfera do amor permanece cindida: “Quando amam não desejam, e quando desejam não podem amar. Buscam objetos que não precisem amar, a fim de manter afastada sua sensualidade dos objetos amados [...]” (FREUD, 1912/2007, p. 176). No caso das mulheres, embora Freud não verifique a necessidade de depreciação do objeto sexual – provavelmente pelo fato das mulheres não supervalorizarem o objeto no encontro com o parceiro –, muitas vezes elas são incapazes de desfazer a conexão entre o erotismo e a proibição, o que pode torná-las psiquicamente impotentes 228 Flavia Gaze Bonfim (org.) quando o sexo finalmente lhes é permitido; destacando, para homens e mulheres, o obstáculo como algo presente na vida sexual e meio através do qual há a intensificação da libido: [...] “essa condição do proibido é equiparável, na vida amorosa feminina, à necessidade de degradação do objeto sexual no homem” (FREUD, 1912/2007, p. 180), ponto de falha necessário que conduz à valorização do amor (MARQUES, 2016, p. 129). Dito de outro modo, com Lacan: para o homem, o(a) parceiro(a) porta uma marca fálica na medida que, sendo o objeto escolhido, apresenta-se no lugar do significante fálico [Φ (a)], por onde o desejo masculino aposta no tamponamento da falta no Outro (LACAN, 1960/1998). Para as mulheres, o que está em jogo é o desejo de falo, que na forma erotomaníaca aposta no parceiro como aquele em quem ela vai encontrar o significante de seu desejo, único capaz de responder a sua falta: Ⱥ. Ou seja, na forma fetichista, prevalece o desejo, já que o ato de amor dos homens é a perversão polimorfa do macho, por onde a satisfação em ter um objeto não só apazigua sua angústia de castração como ratifica sua posição do lado masculino da partilha dos sexos. Já no modo erotomaníaco a exigência de ser amada não se reduz à demanda do diga-me que me ama, mas, antes, se estende para as diversas provas de amor que solicita ao parceiro. Será que ele me ama? Essa é a eterna questão, um véu que encobre seu mote fundamental: o enigma do feminino, o Outro que as mulheres são para si mesmas (cf. MARQUES, 2016). Logo, a relação das mulheres com a demanda de amor – erotomaníaca – e dos homens com o desejo – fetichista – surge como anteparo ao real, sendo o recurso ao amor o reflexo da presunção de que há uma riqueza no interior do outro, por onde o sujeito supõe um ser. É aí que está o paradoxo, pois o que falta em si é justamente o que o amado também não tem: o objeto de desejo que seria capaz de conduzir à felicidade plena, à salvação, promovendo a união por onde amado e amante se fundem e se confundem. Contudo, justamente 229 Leituras Psicanalíticas porque a ideia do Um é introduzida no mundo pelo significante que a miragem do amor-paixão é possível. Ou seja, se no plano do amor a visada é o ser, aquilo que na linguagem mais escapa, por outro lado, é a única aposta possível: No amor, o que se visa, é o sujeito, o sujeito como tal, enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se ordena ou pode se ordenar por uma vida inteira. Um sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo. Mas, por outro lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor (LACAN, 1972-73/2008, p. 69). A ideia do Um é o que leva à aposta na dissolução com o outro. Dissolver-se com o outro é a miragem que o amor-paixão oferece e que, desde Aristófanes (PLATÃO, 1999), mantém viva a crença no encontro com a cara-metade. No entanto, se só há Um sozinho, como pode haver amor por um outro? Está aí o engodo, pois quando um sujeito é tomado por outro, ele sempre é tomado como objeto, não havendo qualquer relação possível de sujeito a sujeito. Cada sujeito, ao ocupar-se de seus objetos, esquece que o outro, quando tomado como parceiro, também é um sujeito e, sem a menor consideração com esse outro, o recorta em função de seus interesses, podendo o interesse ser a droga-deus, no caso de Daniel, ou a sua própria subsistência, como no caso de Fernanda. REFERÊNCIAS BERTA, S. L. (2012). Um estudo psicanalítico sobre o trauma de Freud a Lacan. Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. CALDAS, H (2021). A ética da psicanálise diante da violência ao feminino. Conferência proferida no 2º Ciclo Internacional Interuniversitário de Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. COUTINHO JORGE, M. A. (2010). Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan – A clínica da fantasia. Vol.2. Ed. Zahar. FERREIRA, N. P. (2004). A teoria do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 230 Flavia Gaze Bonfim (org.) FREUD, S. (1894/2020). Las neuropsicosis de defensa (Ensayo de una teoría psicológica de la histeria adquirida, de muchas fobias y representaciones obsesivas, y de ciertas psicosis alucinatorias) (1894). In: Obras completas: Primeras publicaciones psicoanalíticas: 1893-1899. - vol. 3 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1950[1895]/2020). Proyecto de psicología. In: Obras completas: Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos en vida de Freud: 1886-1899. - vol. 1 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1950[1896]/2020). Manuscrito K. Las neurosis de defensa (Un cuento de Navidad). In: Obras completas: Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos en vida de Freud: 1886-1899. - vol. 1 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1950[1897]/2020). Carta 61. In: Obras completas: Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos en vida de Freud: 1886-1899. - vol. 1 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1950[1897]/2020). Carta 68. In: Obras completas: Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos en vida de Freud: 1886-1899. - vol. 1 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1905/2020). Tres ensayos de teoría sexual. In: Obras completas: Fragmento de análisis de un caso de histeria (Dora). Tres ensayos de teoría sexual y otras obras de Freud: 19011905. – vol.7 – Buenos Aires: Amorrortu Editores. FREUD, S. (1910/2007). Sobre un tipo particular de elección de objeto en el hombre (Contribuciones a la psicología del amor I). In: Obras completas: Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras: 1910. - vol. 11 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1912/2007). Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa (Contribuciones a la psicología del amor II). In: Obras completas: Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras: 1910. - vol. 11 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1918[1917]/2007). El tabú de la virginidad (Contribuciones a la psicología del amor III). In: Obras completas: Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras: 1910. - vol. 11 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1920/2020). Más allá del principio de placer. In: Obras completas: Más allá del principio de placer, Psicología de las masas y análisis del yo y otras obras: 1920-1922. vol.18 - Buenos Aires: Amorrortu. FREUD, S. (1923/2007). El yo y el ello. In: Obras completas: El yo y el ello y otras obras: In: El yo y el ello y otras obras: 1923-1925. - vol. 19 - Buenos Aires: Amorrortu. LACAN, J. (1953-54/1983). O Seminário, Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1954-55/2010). O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1958/1998). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 231 Leituras Psicanalíticas LACAN, J. (1959-60/2008). O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1960/1998). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. (1972-73/2008). O Seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. LACAN, J. (1973/2003). O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. MARQUES, L. R. (2016). Homossexualidade e ética em psicanálise. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Rio de Janeiro. PLATÃO (1999). Diálogos I: Mênon - Banquete - Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro. RIBEIRO, M. A. C. (2011). Um certo tipo de mulher. Rio de Janeiro: 7 Letras. RIBEIRO, M. A. C. (2015). A pulsão e seus destinos. In: O caldeirão da feiticeira: a metapsicologia de Freud, um século depois. Contracapa. 232 ADOLESCÊNCIA, INTERSEXO E SEXUAÇÃO. QUESTÕES QUE SE COLOCAM À PSICANÁLISE Heloene Ferreira da Silva52 Sonia Alberti53 Onde melhor terei eu feito compreender que pelo impossível de dizer se mede o real? Lacan, 1972, p. 497. Geneviève Morel (1996) em seu texto, “Anatomia analítica”, ao abordar o que definiu como os três tempos lógicos da sexuação, é enfática ao afirmar que há uma oposição de dois reais: aquele da ciência biológica e aquele do analítico. O real do sexo biológico natural, physis, como possível em uma relação sexual entre gametas, e o real psicanalítico do sexo, como impossível em decorrência dos impasses secretados pelo fato de que o sexo se aborda apenas pelo viés da linguagem, o que consiste em uma equação: “não há relação sexual”. Tal diferença é de extrema importância na clínica com sujeitos intersexo. Voltaremos a isso. Sabemos que o campo da ciência é restrito ao fato de que em seu mundo só existem as representações com as quais o cientista trabalha. Aquilo que não é do campo do simbólico é intangível pela ciência. Dito de outra forma, a ciência encontra seu limite ao só poder afirmar algo que se encontra na ordem do dizer, do que é passível de ser dito. Tudo que escapa ao campo do dizível, do simbólico, está fora de seus limites (ALBERTI & ELIA, 2008). Daí, a ciência pretende operar com o significante como se ele fosse decepado de sua relação com o sujeito. Lacan (1967-68), em seu Seminário XV, O ato psicanalítico, aponta que a “condição do progresso da ciência é que não se queira Doutora em Psicanálise (UERJ). Psicóloga (UDA) de Urologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/5453106128938553 53 Professora Titular e Procientista (PGPSA-UERJ). Pesquisadora do CNPq e Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (A.M.E.). ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5120-5247 52 233 Leituras Psicanalíticas saber nada sobre as consequências que este saber da ciência acarreta ao nível da verdade” (LACAN, 1967-68, p. 17). No que concerne à psicanálise, ela se dirige ao sujeito, o que instaura um discurso que está para além do dito. Embora o sujeito esteja na dependência da cadeia articulada que representa o legado científico (LACAN, 1967), que o inscreve no plano simbólico, há algo que escapa ao possível de dizer, ao simbólico, que é intangível pela ciência e do qual a psicanálise se ocupa. Se a ciência visa fundar, produzir como efeito de seu discurso, um objeto, recalcando, em seu movimento, o sujeito, a psicanálise ao contrário, faz agenciar a sua prática discursiva (teórica e clínica) pelo objeto, dirigindo-se assim a um sujeito, situado como o outro dessa prática, tomada em sua singularidade. (ELIA, 1995, p. 12). Temos assim, uma diferença importante ao abordar a questão do real. A distinção na concepção da ciência médica de sexo biológico e o real do sexo psicanalítico, na clínica com sujeitos intersexo, em um ambulatório público, engendra uma prática multidisciplinar que evidencia a necessidade de termos acesso ao saber médico que não tínhamos para poder, então, escutar os sujeitos que estão ali implicados: mãe, médico, sujeito intersexo, família, equipe multidisciplinar... Toda essa problemática se adensa quando procuramos agir levando em conta o entrecruzamento dos vários saberes que necessariamente tem os seus furos com os quais fazemos girar os discursos. Ora, o trabalho em equipe de saúde multidisciplinar no hospital com sujeitos adolescentes intersexo é baseado na articulação com questões sociais, psíquicas, sexuais e mediação técnico-científica-cirúrgica que proporciona novas possibilidades de existência. Todavia, não se faz sem a história do corpo medicalizado. SEXO BINÁRIO OU NÃO BINÁRIO? No que tange o sexo biológico, o binário masculino ou feminino, se impõe como um pretenso truísmo científico e dita as normas sociais de gênero tendo a anatomia genital como principal marcador da 234 Flavia Gaze Bonfim (org.) diferenciação dos sexos. Quanto a esta, lacan (1972/2003) é enfático a afirmar que a análise prescinde, em seu discurso, de “qualquer savoir-faire dos corpos” (LACAN, 1972/2003, p. 479) segundo a linha da ciência, uma vez que evoca uma “sexualidade de metáfora, metonímica à vontade por seus acessos mais comuns, aqueles ditos pré-genitais, a serem lidos como extragenitais”. E então questiona: “seria porventura descabido dar o passo do real que explica isso traduzindo-o por uma ausência perfeitamente situável – a da ‘relação’ sexual em qualquer matematização”? (LACAN, 1972/2003, p. 480). Este “passo do real” proposto por Lacan ao localizar a “não-relação sexual” como isso que “não cessa de não se inscrever” em oposição à abordagem científica do corpo, nos parece encontrar uma demonstração na clínica com sujeitos adolescentes intersexo. Seguimos a pista deixada por Lacan (1972-73/2010) no Seminário XX quando se refere à teia de aranha de Spinoza. Segundo Lacan (1972-73/2010), do trabalho de texto que sai do ventre da aranha podemos vislumbrar uma escrita que tangencia o real “único ponto onde achávamos apreensíveis esses limites, esses pontos de impasse, de sem saída, que fazem entender o real como se acedendo, do simbólico, ao seu ponto mais extremo” (LACAN, 1972- 73/2010, p. 187). O real que acede do simbólico, no campo do intersexo, encontra uma série de tentativas (pseudo)científicas de apreender o sexo do sujeito por leituras biomoleculares em detrimento daquilo que o sujeito pode dizer sobre si. Mas, o que é intersexo? Questão que se coloca de saída uma vez que o prefixo –inter, causa o equívoco de um “entre sexos54”. No entanto, o que temos é uma questão biológica, uma indefinição quanto ao sexo que pode ser genético, hormonal, gonadal, anatômico (genital interno e/ou externo). Ressaltamos aqui que com os avanços da biologia molecular, mais de quarenta condições intersexo foram mapeadas. Cada condição pode apresentar uma ou mais das seguintes características: genitália atípica, incongruência entre genitália interna e externa, 54 O significante sexo, por si só, dá margem a questões de transição de gênero e de comportamento sexual. 235 Leituras Psicanalíticas virilização da genitália durante a puberdade, variantes numéricas ou estruturais do cromossomo sexual, desenvolvimento incompleto da genitália e variações da determinação gonadal. Uma clínica na qual os binários pênis e vagina, XX e XY, estrogênio e testosterona, útero e testículo, óvulo e espermatozoide, como significantes naturalmente antitéticos, que sustentam as “leis da segregação urinária” (LACAN, 1957/1998), não são suficientes para abarcar os corpos únicos intersexo. Nesses casos, ao par masculino e feminino, que se mostra insuficiente, o discurso médico oferece nomenclaturas variadas: DDS55 46XY, DDS ovotesticular, DDS 46XX... escrutinando os recônditos do corpo para avaliar qual é o “sexo certo” em meio à incerteza. Conhecidos popularmente como hermafroditas56, esses corpos questionam o binarismo do sexo e suscitam intrincadas questões normativas e discursivas. Como pudemos observar anteriormente em nossa pesquisa (FERREIRA DA SILVA, 2021), são corpos ininteligíveis (BUTLER, 1990/2018) cuja potência questionadora se coloca na cidade dos discursos atrelada a preconceitos que limitam a possibilidade de existirem como humanos. O que nos remete à questão: quanto ao corpo, ele testemunha tão diretamente uma atribuição de sexo masculino ou feminino? Levantar a questão da diferença entre os sexos, enquanto diferença anatômica observada através do testemunho do corpo, equivale a se perguntar o que o corpo atesta aqui (AYOUCH, 2014). Dado o fato de que ao nascimento atribui-se um sexo a partir do genital que se possui, questionamos: como se constitui um corpo sexuado quando o lastro imaginário genital (pênis/vagina) não se sustenta? Quando saímos do campo do suposto determinismo anatômico, cromossômico, gonadal, hormonal do sexo, quais são as variáveis que Distúrbios do desenvolvimento do sexo. Termo que tem sido substituído por Diferenças do desenvolvimento do sexo numa tentativa de despatologização da condição intersexo, termo adotado pelo movimento social. 56 Hermafrodita é um termo que caiu em desuso por ser considerado estigmatizante, uma vez que a sociedade o atrela ao que é considerado aberrante. 55 236 Flavia Gaze Bonfim (org.) estão em jogo na sexuação do sujeito? Como esse impasse aparece na relação clínica? E, que tipo de contribuição a psicanálise pode dar para que o médico se coloque de maneira sensível ao impasse? Para além disso, a questão intersexo é atravessada não apenas pelo diagnóstico, mas também pelo momento de vida, pelas questões sexuais que se colocam diferentes, quer se trate da infância ou da adolescência. Por isso, no pequeno recorte que escolhemos tratar nesse capítulo, nos debruçaremos na interseção: adolescência, intersexo e sexuação a partir de questões suscitadas pela clínica com sujeitos intersexo à psicanálise. CLÍNICA COM ADOLESCENTES INTERSEXO A adolescência presentifica a emergência do real do sexo. As mudanças corporais que advêm com o real da puberdade e que provocam uma alteração no imaginário do corpo, aliam-se ao trabalho que a adolescência traz consigo, de elaboração da falta no Outro (ALBERTI, 2004, p. 10), tendo como efeito a necessidade, algo que não cessa de se escrever, de se preparar para o encontro faltoso com o sexo, o encontro com o Outro sexo, aquele que é heteros, ou seja, aquele que é outro, diferente. Heteros em relação ao que não está dentro da norma daquele sujeito, o diferente (ALBERTI, 2017). Em nossa clínica, com sujeitos intersexo, alguns adolescentes sofrem transformações na puberdade que podem introduzir questões de identidade de gênero57, relacionado à sua variação biológica do sexo (VBS). Por variantes genéticas, hormonais ou fenotípicas, ao chegarem à puberdade os caracteres sexuais secundários não se desenvolvem ou se desenvolvem em oposição ao sexo designado ao nascimento, como nos casos de hiperplasia adrenal congênita58 (HAC) com controle 57 É importante diferenciar a variação biológica do sexo (intersexo), da identidade de gênero (trans, cis, não binário...) e da orientação sexual (homo, hétero, bissexual...). Os três componentes não são solidários, não implicam de maneira necessária, mas contingente, o desenvolvimento sexual do sujeito (Cf. FERREIRA DA SILVA, 2021). 58 Hiperplasia adrenal congênita (HAC) está presente em cerca de 1 para 16.000 indivíduos nascidos. 90% dos casos de HAC decorrem da deficiência da enzima 21-hidroxilase, que está intimamente relacionada à síntese de aldosterona e cortisol. Essa condição leva à conversão de altos níveis de testosterona durante a 237 Leituras Psicanalíticas medicamentoso irregular. As meninas “virilizam”: crescem pelos, barba, músculos, a voz engrossa... Numa das consultas ambulatoriais de Carla, adolescente de treze anos, que não utiliza a medicação que impediria a virilização de seu corpo, ela diz que odeia a mãe, declara-a como “sua maior inimiga”, que se fosse menino as coisas seriam bem mais fáceis: poderia voltar para casa na hora que quisesse, poderia jogar bola, não teria que ajudar nas tarefas de casa, em resumo: seria livre! O corpo musculoso e a barba de Carla ela esconde embaixo de um casaco com capuz. Diz não saber o que significa seu diagnóstico, nem fazer nenhuma questão de saber. “Minha mãe é quem sabe”, frase repetida pela adolescente frente a qualquer pergunta sobre sua condição. A equipe médica faz uma leitura que talvez ela esteja querendo virar um menino por não aderir corretamente ao tratamento que inibiria a ação da testosterona em seu corpo. A equipe médica aventa a possibilidade de que Carla apresente uma disforia de gênero e que virilizar faça parte de uma escolha da adolescente. Nesse momento intervimos: “para escolher, ela precisa saber como a HAC acomete seu corpo e só quem sabe é a mãe. Alguém precisa falar com ela e não com a mãe, para que a própria adolescente possa escolher”. A mãe, que se ocupa dos cuidados de Carla desde o diagnóstico ainda nos primeiros dias de vida, queixa-se das crises de agressividade da filha, que começaram na adolescência, diante de suas proibições, tais como: não ficar até tarde na rua, não pegar ônibus sozinha, não andar com meninos... Em suas palavras, a filha sempre foi uma menina tranquila e educada, mas nos últimos tempos “ela tem umas crises”. Inclusive, chegou a dar um soco na parede da escola quando a proibiram de jogar futebol. Questiona se a filha gostaria de namorar uma menina, o que lhe parece mais tolerável do que deixar sua filha andando gestação, gerando desenvolvimento genital atípico no sexo feminino. No sexo masculino, os sinais clínicos se tornam mais sutis, já que estes podem não apresentar alterações ao nascimento, levando ao diagnóstico tardio. Na puberdade, com controle medicamentoso irregular, os androgênios virilizam a menina. 238 Flavia Gaze Bonfim (org.) por aí sozinha, como uma menina “perdida”. Carla, por sua vez, não consegue dizer nada além de “se eu fosse um menino eu seria livre”! Passados alguns meses, Carla retorna ao Ambulatório. Agora está namorando, diz se sentir mais livre e introduz a demanda por uma intervenção cirúrgica, pois, em suas palavras, sua vagina é diferente e ela queria que fosse normal. “Os pequenos lábios são grandes, que piada, não? Se eu tiver clitóris, é uma bolinha estranha que fica muito lá no alto... Eu não tenho aquela linguinha que fica no meio e o buraco que eu tenho só cabe a ponta do meu dedo. Tem uma paredezinha que segura”, Carla fala sobre sua vagina: - É estranha. Diferente e eu queria uma normal! - Vou anotar aqui no meu caderno que você quer o normal para ver se você me explica que normal é esse que eu não conheço! Carla então questiona: - Você anotou o que eu te disse da última vez? Que se eu fosse um menino eu seria livre? - Não anotei, mas vou anotar agora! (Anoto: Se eu fosse um menino eu seria livre!) Bem... Você chegou aqui dizendo que está se sentindo livre, mas ao que parece, você não virou um menino... Como você se virou com isso?!? - Ahh, eu arrumei um menino! Conta então, agora já sem o casaco, que, na verdade, tudo no seu próprio corpo sempre a incomodou: aqueles músculos, aquela barba, aquele peito chapado... “tudo é tão masculino... Aí, da última vez que eu vim aqui, você me falou uma coisa bem estranha sobre me sentir menina... Não sei explicar, mas foi a primeira vez que alguém me perguntou como eu me sentia”. O namoro e a demanda pela cirurgia estética genital não duram muito tempo... Passados alguns meses, Carla retorna ao Ambulatório e em poucas palavras diz que não quer a cirurgia agora porque isso 239 Leituras Psicanalíticas atrapalharia seu campeonato de futebol. Conta que a mãe “deu um pouco de liberdade” e ela está podendo viver a própria vida. Entusiasmada, relata sobre suas vitórias nos jogos de futebol e como a possibilidade de treinar em um clube profissional a fez se desenvolver como uma atleta de alta performance. “Em campo eu sou a atacante e não quero cirurgia agora porque isso iria me atrapalhar muito”, nos diz taxativa. Relata estar feliz podendo viver a vida que sempre sonhou e que no meio de suas colegas de time “ninguém liga muito para o meu jeito diferentão. Tô de boa! Aprendi a usar meu corpo a meu favor! Sou a menina que eu escolhi ser”! Como o caso clínico ilustra, nossa aposta é que a possibilidade de fala que foi franqueada à Carla lhe permitiu saber, e a partir daí tomar uma decisão sobre o que ela queria. Esta, embora contrarie a decisão médica, que inclusive havia marcado a cirurgia, aponta que Carla desistiu porque pode saber. Ter um corpo, ser um corpo, sentir-se em um corpo sexuado, dizer sobre o semblante sexual... Essas escansões presentes na adolescência são uma forma de a cada momento se posicionar diante do real que acedeu do simbólico. Simbólico que só lhe foi possível porque um médico falou com ela, explicou sua condição conferindo-lhe “uma dimensão a mais: a de bordejar, contornar o furo real de modo a permitir que o sujeito se situe em relação ao que não pode domesticar pelo saber e pelo dizer” (ALBERTI & ELIA, 2008, p. 788). Para que isso possa acontecer é preciso que o sujeito tenha as referências necessárias. A psicanálise tem o que dizer na atualidade da ciência! Sem esperar utopias, podemos afirmar que dar lugar à palavra do sujeito, escutar sua demanda (ou permiti-lo formular sua demanda), reintroduz, nos discursos atuais, a dimensão ética da clínica. Ao longo dos anos, as frases que ouvimos dos médicos expressam um desconhecimento sobre o que está em jogo. Toda situação em torno da intersexualidade desafia padrões éticos e questiona o vocabulário cotidiano. Dessa forma, somos levados de forma bastante incisiva a levantarmos a hipótese de 240 Flavia Gaze Bonfim (org.) que o intersexo aponta de forma radical para o fato de que o advento do ser sexuado é sempre uma aposta! Essa formulação, acreditamos, corrobora o estatuto do lugar da psicanálise em relação à medicina: o de participar de um ato clínico que, no avesso da categorização normativa, recupera o olhar como dedicado à particularidade de cada caso (cf. ALBERTI & FERREIRA DA SILVA, 2020). Uma pergunta se impõe: como é possível, no atendimento clínico de sujeitos intersexo, se servir da ciência sem ocluir o sujeito? Privilegiando a escuta, o ato e a intervenção na prática cotidiana que não desconsidere as diferentes perspectivas éticas, políticas e científicas que estão em jogo num campo por si mesmo heteróclito. Nós, analistas, não podemos não querer saber! Depreende-se, portanto, que para que a prática médica não se dê exclusivamente a partir do saber médico científico é necessário que os analistas, que integram a equipe multidisciplinar, não se coloquem numa posição de nada querer saber sobre o discurso médico. A anatomia genital, a sexuação e as incertezas quanto à escolha de objeto, condensam o enigma da diferença sexual no momento da adolescência. Por isso, optamos por uma articulação com a clínica com adolescentes e o encontro com o real do sexo. Já pudemos observar em outra ocasião que a partir do momento em que o sujeito, saído da infância, depara-se com o real do sexo, a puberdade é o próprio encontro, malsucedido traumático, com esse real. “O real do sexo é, por definição, algo que jamais poderá ser totalmente simbolizado, deixando o sujeito – na linguagem do senso comum – ‘sem palavras’” (ALBERTI, 2009, p. 31). Esse encontro que preconiza uma escolha de objeto, no momento da adolescência, ao incluir a diferença sexual, se realiza em um plano no qual o corpo sexuado inclui as marcas que a cultura dispõe como legíveis para interpretar a dita diferença (ROSTAGNOTTO, 2020). 241 Leituras Psicanalíticas CONSIDERAÇÕES FINAIS A adolescência, por si só, já se impõe como uma travessia e um período de trabalho de elaborações frente àquilo que não mais se sustenta da infância. O que pudemos observar no caso relatado é que quando o corpo remete o sujeito a uma experiência exilada da lógica do coletivo, quando é um saber restrito biológico molecular que poderia dizer o que o acomete, o adolescente intersexo se vê sem palavras, não encontrando, via discurso, uma possibilidade de elaboração sobre esse corpo que muitas vezes “não se encontra no Google”. No caso Carla, quem sabe é a mãe e os médicos. Para tomar algum rumo, o sujeito precisa saber para trançar uma referência simbólica. Precisamos considerar que a posição subjetiva na partilha dos sexos não é sem relação com as profundas questões que o sujeito se coloca sobre seu lugar para o Outro e a importância de um encontro com um analista, quando este não se coloca na posição de quem tem um saber, mas, em função de sua função e abstinência diante da miríade de questões que se colocam no trabalho em equipe multidisciplinar, permite que um sujeito construa sua própria resposta, seja ela qual for (Cf. ALBERTI & FERREIRA DA SILVA, 2019). A psicanálise não desconsidera as singularidades embutidas no processo de sexuação, muito pelo contrário. A cada sujeito, sua singular forma de gozo em seu encontro com o corpo sexuado. Que não se reduz às determinações do sexo anatômico, nem à questão de gênero. REFERÊNCIAS ALBERTI, Sonia. Dois. In: DAQUINO, M. A diferença sexual: gênero e psicanálise. São Paulo, Agente Publicações. p. 77-94, 2017. ALBERTI, Sonia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 3ª. Ed, 2009. ALBERTI, Sonia. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. ALBERTI, Sonia & ELIA, Luciano. Psicanálise e ciência: o encontro dos discursos. Revista mal-estar e subjetividades. v. 8, n. 3. Fortaleza, p. 779-802. 2008. 242 Flavia Gaze Bonfim (org.) ALBERTI, Sonia. & FERREIRA DA SILVA, Heloene. “Sexuality and Questions of Gender in Adolescence: Contributions of Psychoanalysis”. In: Psicologia: Teoria e Pesquisa. v. 35, e35434. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistaptp/article/ view/23667/25430, 2019. AYOUCH, Thamy. “A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, v. 48, n. 4, p. 58-70, 2014. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. (1990). 16ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. ELIA, Luciano. Corpo e sexualidade em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Uapê, 1995. FERREIRA DA SILVA, Heloene. Dos mistérios do corpo ao falante: a escuta psicanalítica de sujeitos intersexo no contexto hospitalar. 2021. Tese. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Inédito, 2021. LACAN, Jacques. Encore. (1972-73). Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 869-893, 1998. LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. (1957). p. 496-533. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, Jacques. Lugar, origem e fim do meu ensino (1967). In: Meu ensino. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. (1967-69) Notas de Curso. Inédito. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19: ... ou pior. (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. LACAN, Jacques. O aturdito. (1972). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2003. MOREL, Geneviève. Anatomia analítica. In: Opção Lacaniana, 15, abr, 1996. ROSTAGNOTTO, Alejandro. La disparidad sexual. CIIP – Ciclo Internacional Interu niversitário de Psicanálise – outubro-novembro 2020. A Ética da psicanálise diante das questões da atualidade. Anotação feita em aula, 2020. 243 MASCULINIDADE E FEMINILIDADE COMO MODOS DE GOZO: SEXUAÇÃO, DIFERENÇA SEXUAL E MAIS ALÉM Vinícius Moreira Lima59 Do que estamos falando exatamente quando dizemos de “masculinidade” ou de “feminilidade”? Na cultura ocidental, temos a tendência de vincular esses termos a atributos expressivos de “macho” e “fêmea”: a masculinidade como uma propriedade dos homens e a feminilidade como uma propriedade das mulheres. Desafiando essa perspectiva, o teórico queer Jack Halberstam (2018) nota como esses termos são curiosamente vagos: não sabemos muito bem o que seria ao certo “masculino” ou “feminino”, tampouco temos definições muito precisas do que seriam “homens” ou “mulheres” – sem contar as suas variações históricas, geográficas, sócio-culturais, locais e mesmo subjetivas (isto é, as variações singulares do que um sujeito entende por masculinidade/feminilidade, bem como as mutações e instabilidades desse mesmo “entendimento” ao longo da vida de um sujeito). Nessa direção, o autor nos coloca a seguinte pergunta: “Se a masculinidade não é a expressão social, cultural e mesmo política do macho biológico [maleness], então o que ela é?” (HALBERSTAM, 2018, p. 1, tradução nossa). Em seu livro, Halberstam sustenta a importância de separar homens (cisgêneros) e masculinidade, não deixando que esta se reduza a uma propriedade biológica extraída da anatomia do “macho”. Sua empreitada, como coloca o título do livro – Female masculinity –, é a de pensar masculinidade em corpos nascidos com vagina: mulheres cis com expressão de gênero lida como masculina, performances de drag kings, lésbicas butch e homens trans são algumas das apresentações subjetivas que orientaram a pesquisa de Halberstam Psicanalista. Mestrando em Estudos Psicanalíticos (UFMG). CV: http://lattes.cnpq.br/2932481213382246 59 244 Leituras Psicanalíticas cerca de 20 anos atrás, a qual poderia se estender, hoje, também às pessoas não-bináries transmasculines. Ainda que o recorte do autor seja a construção de masculinidade em corpos com vagina, acreditamos ser possível e desejável ampliar o escopo de seu trabalho e pensar também o trânsito de feminilidade em corpos nascidos com pênis – o que pode se apresentar em homens cis gays afeminados, homens cis heterossexuais ou bissexuais permeáveis ao feminino, mulheres trans, travestis etc. (e, como escreve Carla Rodrigues (2018), sobretudo etc.). Esse cenário nos convida a entender masculinidade e feminilidade como configurações subjetivas que transitam entre corpos com vaginas e corpos com pênis, bem como entre corpos intersexo cuja anatomia não se enquadra nas categorias binárias de apreensão dos genitais. Tal perspectiva nos convoca a reapresentar alguns aspectos das teorias de Freud e Lacan à luz das questões contemporâneas de gênero e sexualidade que interrogam os enquadramentos normativos derivados de uma matriz cisgênera e heterossexual que eventualmente encontramos em certas formulações no campo analítico. Neste trabalho, gostaríamos de reconhecer – e não denegar de maneira simplificadora – as tensões existentes dentro da obra de Freud, assim como da obra de Lacan, que incluem tanto elementos para pensar gênero e sexualidade de formas subversivas quanto momentos de reiteração de normas sociais prévias que participam de suas formulações e bloqueiam a potência antinormativa da própria psicanálise. Sem desconsiderar estes momentos, e dada a extensão limitada deste capítulo, proporemos aqui enfatizar a dimensão subversiva aberta tanto por Freud quanto por Lacan para pensarmos os trânsitos de masculinidade e feminilidade entre os seres falantes mais além de sua redução normativa à cisgeneridade e à heterossexualidade. Recorreremos, portanto, a uma leitura marginal da teoria freudiana da bissexualidade e da formalização lacaniana da sexuação para pensarmos a própria diferença sexual sem reduzi-la à cis-heteronormatividade. 245 Flavia Gaze Bonfim (org.) Tradicionalmente, na cultura ocidental, tendemos a considerar (ou costumamos instituir) que a diferença sexual se conecta aos genitais. A distinção anatômica entre pênis e vagina (ou entre falo e castração, nas teorias sexuais infantis) estaria na base da assunção respectiva de masculinidade e de feminilidade por meninos e meninas, imbricando aspectos heterogêneos do sexual em torno de uma coerência fictícia da cis-heterossexualidade. Portadores de pênis devem se identificar como homens, assumir posições legíveis como masculinas (preferencialmente, viris), arranjo que deve se expressar ainda por uma orientação heterossexual e por práticas sexuais ligadas ao uso do pênis como órgão penetrante e à defesa do ânus como buraco a ser protegido. Portadores de vagina, por sua vez, devem se identificar como mulheres, assumir posições legíveis como femininas, arranjo que deve também se expressar pela heterossexualidade – a menos que se possa fetichizar, da perspectiva masculina, o encontro erótico entre duas mulheres – e por práticas sexuais que envolvam o consentimento com ter seu corpo penetrado pelo pênis de um parceiro. Vale observar que essas normas são formuladas tendo a branquitude do norte global como forma de subjetivação hegemônica, tendo diferentes consequências e atravessamentos para pessoas racializadas ao redor do globo, bem como para dissidentes de gênero e sexualidade, na medida em que subjetivações que não obedecem a esse arranjo normativo são frequentemente punidas com a subalternização, a violência e a morte, a partir das linhas de força do racismo, do machismo, da homofobia, da transfobia, entre diversas formas de ódio e segregação das alteridades na cultura ocidental. Tal arranjo normativo é, assim, a figuração tradicional da “diferença sexual” em nossa cultura, entendida como a naturalização dos semblantes de “homem” e “mulher” cisgêneros, brancos e heterossexuais. É nesse sentido que Paul B. Preciado (2020) nos convoca a enxergar a diferença sexual como peça-chave de uma epistemologia binária e normativa, a serviço do poder hetero-patriarcal-colonial, na medida em que contribui para enquadrar a diversidade 246 Leituras Psicanalíticas dos corpos numa ordem violenta, comprometida com o patriarcado, a cisgeneridade, a heterossexualidade e a colonialidade do poder. Em seu trabalho, o filósofo nos exorta a buscar formas de nos aliar, como psicanalistas da transição epistêmica, aos mutantes que desafiam as normas de inteligibilidade dessa epistemologia. Nessa direção, gostaríamos de explorar aqui a possibilidade de que uma saída da epistemologia da diferença sexual talvez possa se dar por meio de uma subversão interna a esse mesmo dispositivo. Uma forma de desenhar esse tipo de saída, mais ao modo de uma linha de fuga do que de uma revolução, seria nos arriscando a pensar masculinidade e feminilidade fora das identificações normativas de homem e mulher, bem como a pensar as identificações com as categorias homem e mulher (quando é o caso) fora de suas pretensas determinações anatômicas. Mas essa estratégia só terá valor se for possível também dar lugar àquilo que foge a essas categorias normativas mesmo quando deslocadas de seus suportes hegemônicos. Trata-se aí, mais uma vez, do “sobretudo etc.”, com o qual somos convidades a levar em conta a dimensão singular do gozo e das formas de nomeação e subjetivação que se aproximam da ordem do inclassificável, do não categorizável, aliás tão caro à própria psicanálise. Partamos, então, da posição de Freud quanto à masculinidade e à feminilidade. Ao longo de sua obra, o psicanalista sustenta a impossibilidade de defini-los estritamente do ponto de vista psicanalítico. Ele dirá que, no sentido biológico, esses termos se definiriam pelos produtos sexuais, espermatozoides e óvulos, ao passo que, no sentido sociológico, eles se articulariam pelas convenções sociais (isto é, de uma perspectiva contemporânea, os performativos de gênero) responsáveis por determinar o que conta como masculino e como feminino. Enquanto isso, no sentido psicológico, poderíamos tentar certa aproximação entre masculinidade-atividade e feminilidade-passividade, mas mesmo essa precária tentativa de definição nos diz muito pouco e se desmancha no ar. Para Freud (1933/2010), masculino e feminino 247 Flavia Gaze Bonfim (org.) não seriam inteiramente definíveis nem pela anatomia, nem pelas convenções sociais, mas tampouco pela psicologia, o que não impede masculinidade e feminilidade de atravessarem os corpos dos seres falantes em proporções as mais diversas. Está em jogo a concepção freudiana da bissexualidade, que opera “como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra” (FREUD, 1933/2010, p. 265). Nessa perspectiva, não se trata apenas da flutuação de escolhas de objeto entre homens e mulheres (como nos faria pensar o sentido contemporâneo do termo bissexualidade no campo da orientação sexual), mas também da coexistência de identificações masculinas e femininas em um mesmo sujeito (o que quer que elas signifiquem para cada um), bem como de modalidades de satisfação ativa e passiva da pulsão e ainda de uma consideração da anatomia de todo sujeito como fazendo parte de um continuum entre “macho” e “fêmea”, sendo que nenhum desses polos seria jamais inteiramente materializado em um corpo qualquer. Freud desmonta, a partir de dentro do dispositivo, a ficção de que seríamos univocamente homens ou mulheres, machos ou fêmeas, masculinos ou femininos, evidenciando a multiplicidade que habita cada “indivíduo”. É certo que a noção de bissexualidade encontrou também uma série de limitações: seja pela permanência de sua matriz de inteligibilidade binária (os polos são sempre masculino e feminino), seja pelo raciocínio heteronormativo que por vezes assombra seu uso freudiano (o masculino só se dirige ao feminino e vice-versa) – pontos que foram assinalados por Judith Butler (1990/2015). Outra questão que nos caberia desdobrar se refere às tensões produzidas pelas formas de conexão da bissexualidade aos complexos de Édipo e de castração, conexão que, por um lado, foi empregada de maneiras normativas ao longo da história da psicanálise (numa teoria do desenvolvimento que envolveria renunciar à bissexualidade e à perversão polimorfa das pulsões em prol da adesão a uma posição sexual pretensamente 248 Leituras Psicanalíticas unívoca, genital e adulta). Mas, por outro lado, essa conexão também pode nos permitir localizar criticamente de que modo tais complexos operam como elementos de normatização do gênero e da sexualidade no percurso de um sujeito, sempre falhando em produzir uma unificação completa da subjetividade em torno da genitalidade. Ao mesmo tempo, gostaríamos ainda de apostar aqui na noção de bissexualidade enquanto um modo de Freud se aproximar da dimensão de indeterminação e da multiplicidade que constituem a sexualidade humana, tornando obsoletas as tentativas de definição binária e inequívoca de uma posição sexuada. Nessa perspectiva, o Édipo e a castração podem ser relidos como modos neuróticos de se relacionar à masculinidade e à feminilidade a partir das teorias sexuais infantis que equacionam a feminilidade com a castração e a masculinidade com a posse do falo, tornando o feminino um campo de horror diante do qual os sujeitos identificados com a masculinidade passarão a recuar. Não estaria uma análise na direção de buscar dissolver essas ficções infantis e permitir a um sujeito melhor circular entre a masculinidade e a feminilidade que todavia já o atravessam? Nesse sentido, a contribuição de Freud ao debate da diferença sexual, entendida aqui como uma subversão interna ao regime epistemológico do qual ele parte, repousa em sustentar que não existe um conceito (uma determinação específica de conteúdo) de masculino e de feminino e que, ao mesmo tempo, cada sujeito é atravessado por masculinidade e feminilidade em proporções diversas, ainda que não saibamos ao certo o que são. Podemos considerar que Lacan (1972-1973/2008) retorna a esse cenário ao formular que “homens” e “mulheres” não são mais que significantes, isto é, elementos de linguagem que, por si só, não possuem nenhuma significação a priori, não estão colados a nenhuma significação, podendo ser empregados de maneiras as mais diversas, mas sendo frequentemente chapados de forma normativa nos processos de subjetivação – a exemplo do que o psicanalista francês chamará de “leis da segregação urinária”. Trata-se do problema do uso dos banheiros 249 Flavia Gaze Bonfim (org.) públicos, cujas portas idênticas só são diferenciadas pelo significante, o qual convoca sujeitos divididos, isto é, sem substância e sem identidade, a se alinharem à lógica fálica que distribuirá os corpos entre diferentes lugares simbólicos – de “homens” e de “mulheres” – a partir da leitura normativa de sua anatomia pelo discurso sexual. O que é curioso observar é que os seres falantes só se reconhecem como tais ao responderem a essas injunções normativas do discurso à sua maneira, podendo inclusive recusar, subverter, rearticular tais injunções de modo contingente em suas identificações e em seus modos de gozo. É precisamente essa dimensão que nos parece entrar em jogo na tábua da sexuação, que formaliza os modos de gozo fálico ou masculino e não-todo fálico ou feminino, da qual podemos depreender usos bastante diversos. Por um lado, uma vez que é repartida por Lacan (1972-1973/2008), mesmo que como uma “abreviatura”, entre os lados “homem” e “mulher”, a tábua pode – o que não significa que deva – servir para reforçar estereótipos de gênero e tipologias sexuais provindos da cis-heterossexualidade normativa – uso que devemos constantemente recusar. Por outro lado, essa mesma partição pode também servir para apontar criticamente a maneira como a cultura ocidental buscou distribuir os corpos de “homens” e de “mulheres” (cisgêneros, brancos e heterossexuais) entre essas posições de gozo (cf. LIMA & VORCARO, 2020; LIMA, 2021), na medida em que as normas sociais (de gênero, raça, sexualidade, entre outras) não incidem apenas como uma regulação mecânica e asséptica de atributos ou comportamentos permitidos ou proibidos, elas são também tentativas de normatizar as formas pelas quais um corpo pode ou não gozar, tentativas de determinar quais posições sexuadas poderão ou não ser assumidas e subjetivadas por corpos específicos. 250 Leituras Psicanalíticas Assim, numa primeira aproximação à tábua sob a ótica das fronteiras normativas do gênero, deveria se posicionar do lado dito “homem” da sexuação todo aquele – e tão somente aquele – que nasce dotado de um órgão no corpo que podemos situar discursivamente como um pênis. Sua posição de sujeito [$], presumidamente viril e portadora do falo simbólico [Ф], deve envolver a objetificação da alteridade, reduzindo-a a um objeto de seu fantasma [a]. Por sua vez, do lado dito “mulher”, deveria estar cada um que nasce desprovido de atributo fálico, fato que expõe esses seres falantes à condição de inexistência [La] em um universo patriarcal. Ao mesmo tempo, busca-se reduzir estes seres ao lugar de objeto da fantasia masculina [a], devendo reencontrar o falo no corpo de um homem [La → Ф] e permanecendo sem acesso a Outro gozo além do falo. Um gozo que, no entanto, acessam de maneira contingente, ao se abrirem para um ponto de indeterminação identitária que se situa mais além dos semblantes fálicos atualmente instituídos [La → S(Ⱥ)]. Na tradição cisheteronormativa ocidental, esses limites não deveriam ser transpostos: quaisquer trânsitos nesse campo – a exemplo dos dissidentes de gênero e sexualidade, que recusam ou subvertem as designações advindas 251 Flavia Gaze Bonfim (org.) dessa tradição discursiva – são punidos com violência e mesmo com a morte, numa tentativa sempre falha de resguardar a fronteira binária entre os sexos (cf. LIMA, 2021). Caberia, ainda, introduzir alguns elementos que nos permitam inserir a dimensão de raça no debate da sexuação, na medida em que, quando Frantz Fanon afirma que “o negro não é um homem”, ele constata, a seu modo, a segregação fundadora de homens negros como condição para a formação do conjunto “universal” dos homens no laço social do Ocidente, marcado não apenas pela cisgeneridade e pela heterossexualidade, mas também pela branquitude. É nesse sentido que podemos situar a fetichização dos homens negros pelo mundo branco, que os delega ao campo do Outro e os torna, por isso, passíveis de serem tomados como alvos preferenciais da violência social, já que não são reconhecidos em sua humanidade como sujeitos, ainda hoje sendo lidos pelo universo branco, muitas vezes, como objetos inferiorizados e animalizados. Do ponto de vista da sexuação, esse tratamento fetichizado dos homens negros no laço social não os impede de se situarem no gozo todo fálico, mas eles aí serão marcados pelos efeitos subjetivos do racismo, ora pela via da emasculação, ora pela via da hipervirilização (FAUSTINO, 2014). Por sua vez, quando Grada Kilomba (2019) afirma que a mulher negra representa “a ‘Outra’ da Outridade” – ou “o ‘outro’ do outro”, na leitura de Djamila Ribeiro (2019) –, ela assinala, também a seu modo, o que entendemos aqui como um suplemento de alteridade das mulheres negras em relação às mulheres brancas. Se estas são marcadas pela condição de inexistência em relação ao universo masculino, as mulheres negras estariam numa posição de dupla alteridade: são o Outro para os homens, mas também são o Outro para as mulheres brancas, sendo negadas tanto pela masculinidade quanto pela branquitude, posição que imprime importantes consequências subjetivas para as mulheres negras. Numa cultura em que a universalidade é tradicionalmente uma prerrogativa masculina e branca, tendo o falo (e, implicitamente, sua 252 Leituras Psicanalíticas própria branquitude) como operador da partilha dos corpos no laço social ocidental, o significante d’A mulher passa a ocupar aí um lugar de inexistência, assim como o significante d’A negritude. Dessa forma, os termos “homem” e “mulher” presentes na tábua da sexuação, uma vez reconhecidos em sua dimensão racializada, podem também nos ajudar a localizar a incidência discursiva da raça sobre os seres falantes no laço social – o que deve ser articulado, a cada vez, com o modo singular como cada sujeito irá se apropriar de seu corpo para o gozo em resposta à forma como foi lido e convocado pelo discurso que o (con)forma. Mas vale observar que essa é apenas a forma normativa como os seres falantes são convocados a ocupar lugares na sexuação, pois existem maneiras muito diversas de dar corpo aos elementos da tábua, de modo que a sexuação não é redutível à versão narrativa que construímos aqui pela via das normas raciais, sexuais e de gênero. Afinal, se o que nos orienta é o caráter contingente e singular da sexuação de cada ser falante (não sem o coletivo que o circunda e o antecede), a lógica da sexuação lacaniana não precisa ser utilizada apenas centrando-se na tábua como imagem (do fracasso) da norma ou como consolidação (do impossível) da diferença sexual branca e cis-heteronormativa. Nesse caso, podemos recorrer ao fato de a lógica da sexuação ser formalizada como uma estrutura, o que significa que ela se propõe a comportar (mas não significa que o cumpra inteiramente) uma dimensão vazia de conteúdo que lhe permite ser utilizada, apropriada e deformada de formas muito diversas. Não se trata aqui de pensar uma estrutura a priori, transcendental ou fora da história, como muitas vezes se tendeu a fazer na psicanálise lacaniana. Trata-se, antes, de pensar uma estrutura lógica em conexão com as formas históricas de determinação de seres falantes mediante sua interação com os semblantes de gênero, raça e sexualidade na cultura, na medida em que essa lógica permite situar pelo menos duas maneiras de se fazer um corpo para o gozo 253 Flavia Gaze Bonfim (org.) que podem ser assumidas e modalizadas em formas de subjetivação não apenas hegemônicas, mas também dissidentes da norma. Lacan (1972-1973/2008) ele mesmo nos parece abrir o caminho para situarmos essa dimensão queer na sexuação. Ao partir de uma matriz epistemológica cis-heterossexual para pensar a partilha dos corpos entre os lados “homem” e “mulher” da tábua, o psicanalista depara com um tipo de trânsito de seres falantes entre esses lados que desconsidera as pretensas determinações da anatomia. A histérica e a mãe seriam figuras paradigmáticas do lado “homem”, ao passo que o místico São João da Cruz seria um paradigma do lado “mulher”, de modo que, ao cabo desse percurso, já não sabemos mais o que são ao certo homens e mulheres, uma vez que o trânsito entre modos de gozo não obedece necessariamente à partição binária inculcada pelo discurso sexual. Testemunhando um gender trouble à sua maneira, a obra lacaniana nos permite evidenciar o modo como a epistemologia da diferença sexual é subvertida internamente pelo trajeto singular de cada ser falante na sexuação, que, a despeito das normas sociais, pode assumir posições de gozo incoerentes em relação aos ideais que nos governam. Dessa forma, em resposta à violência da segregação urinária, cada ser falante elege a porta que melhor cerne um traço de seu modo de gozo, ainda que de forma precária e incompleta. Não é disso que se trata também no trabalho de Jack Halberstam? Sua obra Female masculinity poderia ser tomada como uma apresentação de diversas formas de encarnar modos de gozo fálico – articulados aqui à incorporação subversiva de semblantes da masculinidade, somados a um embrutecimento fálico do corpo, à sustentação de uma posição de sujeito, recusando um lugar de objeto de gozo do Outro, bem como um lugar de inexistência no laço social – por parte de sujeitos que não são portadores de pênis, mas que podem assumir uma posição sexuada tradicionalmente marcada como propriedade dos homens cisgêneros e heterossexuais, a qual, no entanto, não lhes pertence (porque não pertence a ninguém em particular). O argumento de Halberstam (2018) é que, 254 Leituras Psicanalíticas “longe de ser uma imitação da condição do macho biológico, a masculinidade em corpos com vagina na verdade nos oferece um vislumbre de como a masculinidade é construída como masculinidade” (p. 1, tradução nossa). Nesse sentido, somos convocades pelo autor a pensar uma “masculinidade sem homens”, no sentido da circulação de masculinidade entre corpos que não coincidem com o “macho biológico” da espécie. Relendo, então, Halberstam com Lacan e muitos Outros, podemos considerar que a masculinidade normativa tradicional seria construída por meio da assunção (socialmente autorizada) de um modo de gozo fálico, acompanhada pelo reconhecimento de um lugar de universalidade na cultura ocidental. No entanto, sabemos também que o modo de gozo fálico e os semblantes da masculinidade que frequentemente (embora não necessariamente) a ele se articulam podem circular entre os mais diversos corpos falantes, sejam eles portadores de pênis ou não, sem encontrar um suporte corporal que lhe seja próprio ou adequado. É precisamente isso que nos ensinam alguns relatos de Preciado em Testo junkie, em que ele nos conta de sua “carreira sexual como um conquistador sem pau”, que teria se iniciado em sua “mais tenra infância” (PRECIADO, 2018, p. 99). Desde o tempo de escola, Preciado se interessa pelas “meninas mais sexies da classe”, com um “desejo de trepar apenas com o topo da pirâmide da feminilidade, as fêmeas alfa, as superputinhas”. Com seu circuito fantasmático, ele recorta as “bundas” no corpo do Outro como objeto a que mobiliza seu erotismo fálico (ou ainda, “díldico”, se pudermos formular esse termo): Desde menina, possuo um pau fantasmagórico de operário. Reajo a quase qualquer bunda que se mova. Para mim, dá na mesma que sejam bundas de meninas ou de mães, de burguesas ou camponesas, de bichas, de freiras, de lésbicas ou de piranhas. A reação do meu órgão sexual mental é imediata. Todas as garotas, as mais bonitas, as mais heterossexuais, [...] estão na realidade destinadas, ainda sem saber, a se tornarem vadias penetradas pelos meus dildos (PRECIADO, 2018, p. 99). 255 Flavia Gaze Bonfim (org.) Os relatos de Preciado, juntamente ao trabalho de Halberstam, nos convidam a evidenciar que o gozo fálico na sexuação não é exclusividade dos homens cis, podendo circular entre seres falantes que se nomeiam das formas as mais diversas – sendo, inclusive, a categoria do dildo uma importante ferramenta para evidenciar a discordância entre portadores de pênis e posse do falo. Nessa perspectiva, o gozo fálico se constitui como um modo de gozo a serviço do roteiro solitário da fantasia [$ → a], mesmo quando diante de outro corpo. Tal modo de gozo se apresenta como uma satisfação limitada, circunscrita e localizada – seja no seu próprio falo (ou melhor, num pênis, num clitóris ou em qualquer parte do corpo que seja investida como tal, a exemplo dos dildos de Preciado), seja em uma parte específica do corpo do Outro (sob as múltiplas formas do objeto a), seja em semblantes fálicos da cultura que viriam fornecer ao sujeito a ilusão de seu poder [Ф]. Dessa forma, a crença de ter o gozo ao alcance da mão, localizado num instrumento de suposta potência, daria ao sujeito a ilusão de uma totalidade possível, de um fechamento de sua consistência corporal, ao se orientar pelo elemento fálico que assim se extrai do corpo. Do lado do não-todo, por sua vez, encontramos frequentemente sujeitos designados pelo discurso como mulheres ou em posição feminina: trata-se, ali, daqueles que são convocados discursivamente a ocupar uma posição de objeto [a] para a fantasia de um outro corpo, mas que, em virtude dessa mesma posição, por não precisarem bancar o lugar de quem tem o falo (uma vez que é o corpo do outro que fica encarregado de sustentá-lo), podem acessar um Outro gozo [La → S(Ⱥ)], “louco, enigmático”, que não é inteiramente circunscrito pelo regime fálico [Ф]. Nesse ponto, está em jogo um modo de satisfação que não se localiza em uma parte específica do corpo. Diferentemente do gozo fálico, o não-todo conduz um ser falante à experiência de uma abertura corporal àquilo que não se encaixa no universo fálico. Enquanto a vertente fálica do gozo precisa se preocupar com a norma discursiva da castração, seja para obedecê-la, seja para transgre256 Leituras Psicanalíticas di-la, mantendo a satisfação pulsional inteiramente referida ao limite fálico e àquilo que o ultrapassa, o não-todo permite um modo de gozo que não se orienta pela relação entre a norma e a transgressão ou entre a regra e a exceção. Uma vez que não há aí um ponto de exceção que dê um limite ao gozo, essa abertura ao ilimitado dá margem ao encontro com o arrebatamento amoroso, o êxtase místico, a devastação, bem como às experiências produtivas de indeterminação, que permitem acessar um modo de satisfação que não se deixa restringir pelas determinações identitárias que regulam a subjetividade – determinações ligadas seja à masculinidade, seja à feminilidade. Em vez de se aferrar ao gozo fetichista do fantasma, isolado do amor, e em vez de manter distante a posição de objeto a qualquer custo, a dimensão não-toda do gozo consente com o risco e a delicadeza da experiência amorosa, bem como é mais permeável a ocupar contingencialmente o lugar de objeto para um Outro. O feminino do gozo não-todo, esse “feminino de ninguém”, como escreve Maria Gabriela Llansol (1994), vem nomear uma posição que comumente se apresenta sob os semblantes da feminilidade (qualquer que seja o corpo que lhes dê suporte), mas somente na medida em que esses semblantes tendem a preservar o lugar do furo, da indeterminação, daquilo que abre para um mais além da norma fálica – ao modo do êxtase de Santa Tereza na escultura de Bernini que estampa a capa do Seminário 20. A Santa ali se permite gozar do iminente atravessamento de seu corpo pelas flechas do amor divino, gozar da entrada de elementos de alteridade em seu corpo assim outrificado – um modo de gozo que desperta horror em quem está muito apegado aos semblantes da posse fálica, aqui desvelada em seu caráter contingente. Nessa direção, valeria resgatar o próprio São João da Cruz – um ser falante dotado de pênis – como figura do gozo feminino. Em suas experiências místicas, ele escreve sobre a abertura de seu corpo à penetração pelo ser amado (isto é, pelo amor de Deus), contrastando com o policiamento rígido das fronteiras corporais e com a recusa radical 257 Flavia Gaze Bonfim (org.) à alteridade que costumam marcar a masculinidade em nossa cultura: “Oh! chama de amor viva, / Que ternamente feres / De minha alma no mais profundo centro!” (CRUZ, 2002, p. 827). São João desdobra da seguinte maneira, em prosa, o que entende estar em jogo nesse trecho de sua escrita poética: Assim a alma, nesta chama, sente tão vivamente a Deus e dele goza com tanto sabor e suavidade, que diz: Oh! chama de amor viva, / Que ternamente feres. / Isto é, com teu ardor, ternamente me tocas. Sendo uma chama de vida divina, fere a alma com ternura de vida de Deus; e tão intensa e entranhavelmente a fere e a enternece, que chega a derretê-la em amor (CRUZ, 2002, p. 831, grifos do autor). Nesse amor, “Acontece-lhe [à alma] como à lenha quando dela se apodera o fogo, transformando-a em si pela penetração de suas chamas” (CRUZ, 2002, p. 826). Diante disso, um de nossos desafios hoje talvez seja o de pensar a sexuação além da tábua (um além que não é sem) enquanto dois modos de se fazer (e de se desfazer) um corpo para o gozo. Nessa perspectiva, encontramos em Miller (2016) e Dafunchio (2011) uma reescrita da sexuação que nos permitiria situar os modos de gozo a partir dos usos do corpo entre os quais cada ser falante irá circular: 258 Leituras Psicanalíticas De um lado, trata-se de buscar fazer do seu corpo um todo que se fecha, sustentando uma relação rígida ao semblante, mais afim ao funcionamento do gozo fálico, que localiza a satisfação no falo ou num objeto a. De outro lado, trata-se de permanecer atravessado pelo elemento de alteridade que faz furo nas tentativas de encerrar o corpo numa totalidade fechada, abrindo-se àquilo que se situa entre a norma fálica e seu mais além, o que permite um uso mais maleável dos semblantes (não-todo fálico). Tal partilha possibilitaria pensar masculinidade e feminilidade – ou ainda, todo e não-todo – como modos de gozo a partir dos usos do corpo em cada ser falante, para além das determinações de gênero, raça e sexualidade. Enfatizamos aqui as possibilidades de trânsito entre esses usos do corpo, pendentes do modo com que cada um se relaciona aos gozos fálico e não-todo fálico. Mas, mesmo que o embrutecimento corporal e o fechamento fálico sejam tradicionalmente articulados aos semblantes da virilidade em nossa cultura – tal como a abertura à alteridade também se conecta frequentemente com os semblantes do feminino –, ainda nos interessa sublinhar a singularidade da sexuação mais além do binário normativo do gênero. Trata-se de dar lugar ao uso que cada ser falante faz do seu corpo, a partir da forma como cada um se nomeia e busca, por esse ato de nomeação, cernir algo da opacidade da sua experiência subjetiva com o gozo. Nesse sentido, torna-se tarefa de cada ser falante inventar sua maneira de vincular um semblante ao seu modo de gozo, seja recorrendo à tradição, seja subvertendo suas designações e produzindo uma nomeação própria. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990) (9ª ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. CRUZ, São João da. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002. DAFUNCHIO, Nieves Soria. Nudos del amor. Buenos Aires: Del Bucle, 2011. HALBERSTAM, Jack. Female masculinity (1998). Durham: Duke University Press, 2018. 259 Flavia Gaze Bonfim (org.) FAUSTINO, Deivison. O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: BLAY, Eva Alterman (Coord.). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 75-104, 2014. Disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Feminismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf. Acesso em: 26 fev. 2022. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. FREUD, Sigmund. A feminilidade (1933). In: ______. Obras completas, volume 18. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. p. 263-293. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008. LIMA, Vinícius Moreira; VORCARO, Ângela Maria Resende. O pioneirismo subversivo da psicanálise nos debates de gênero e sexualidade. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 40, p. 1-13, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/yvkKk3GRHmdM8758cYgrghp/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 26 fev. 2022. LIMA, Vinícius Moreira. Psicanálise e homofobia: o infamiliar na sexuação. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 397-420, jun. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/T6z5ZfV8N5mYMzMNmx6wjBJ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 26 fev. 2022. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig II: o ensaio de música. Lisboa: Rolim, 1994. MILLER, Jacques-Alain. O osso de uma análise (1998). Rio de Janeiro: Zahar, 2016. PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2008). São Paulo: n-1 edições, 2018. _________. Yo soy el monstruo que os habla: informe para una academia de psicoanalistas. Barcelona: Anagrama, 2020. RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. RODRIGUES, Carla. Nós, o falo e a escuta. Cult, São Paulo, n. 238, p. 36-39, nov. 2018. 260 A INDIVIDUALIZAÇÃO DO RITO NA ERA DO OUTRO QUE NÃO EXISTE EM UM CARTAZ DE SITE PORNOGRÁFICO Hugo Bento60 No ano de 2014, a empresa PornHub, que hospeda e divulga vídeos pornográficos na internet, propôs um desafio em forma de concurso aos designers de todo o mundo: criar anúncios dos serviços oferecidos pela empresa para as famílias, que pudessem ser veiculados em diferentes horários e localidades por meio da televisão, outdoors e revistas. O vencedor do concurso seria contratado como diretor de criatividade do site. Após a seleção de distintas peças gráficas, audiovisuais e performativas enviadas por concorrentes de todos os continentes, quinze trabalhos foram escolhidos e apresentados no site para votação do público. Dos quinze trabalhos finalistas no concurso, destaco o cartaz produzido por Ben H., intitulado Everyone has a ritual, como expoente da individualização dos ritos de passagem em o contexto atual, na época do Outro que não existe. Para isso, brevemente, apresentarei algumas informações sobre a pornografia na internet e o consumo de vídeos pornográficos; explicarei por qual motivo, em meio aos psicanalistas de Orientação Lacaniana, convencionou-se chamar de era do Outro que não existe o mundo pós-industrial; proporei uma leitura dos ritos que, anteriormente, demarcavam a passagem da infância para a vida adulta na contemporaneidade. Iniciemos, então, pela pornografia e a internet. A produção e o consumo de material pornográfico em todo o mundo movimentam aproximadamente cem bilhões de reais anualmente (MARIANO, 2020). De sexo caseiro às práticas fetichistas muito específicas, que exigem preparações cenográficas, por meio Psicanalista. Psicólogo (CRP 04/39401). Mestre em Psicologia / Processos de Subjetivação (PUC Minas). Coordenador (UNIVERITAS). CV: http://lattes.cnpq.br/7751333484823732 60 261 Leituras Psicanalíticas da conexão com a internet, o consumidor pode acessar fotografias e vídeos pornôs em segundos. Especificamente na adolescência, um estudo qualitativo desenvolvido por estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Ceará com 58 sujeitos de 10 a 19 anos de idade indicou a idade dos primeiros contatos com material pornográfico: entre os 10 e 14 anos (LIMA et al, 2019). De modo semelhante, em uma pesquisa qualitativa empreendida por Baumel et al (2019), com 10 homens e 10 mulheres, com idade entre 23 e 30 anos, residentes do Espírito Santo e de Minas Gerais, sobre pornografia e comportamento sexual, verificou-se que o contato com o material pornográfico também se deu nos anos iniciais da adolescência. Além disso, a pesquisa sinalizou que para os pesquisados “a pornografia parece ser a primeira fonte de informação sexual, contribuindo com o aprendizado sobre práticas sexuais e descobertas sobre si mesmo e sobre o corpo do outro” (BAUMEL et al, 2019, p. 140) Curiosamente, no país em que assistimos mobilizações políticas contrárias à Educação Sexual no ambiente escolar e docentes de diferentes níveis de ensino sofrem perseguições por pautarem gênero e sexualidade em suas aulas, os dois estudos acadêmicos acima citados apontam a pornografia como elemento de iniciação sexual. Sobre esse caráter pedagógico ou iniciático da pornografia em nossa época, reconheço a necessidade de maiores estudos no contexto brasileiro. Entretanto, parece-me importante ressaltar que, com aproximadamente vinte e quatro milhões de crianças e adolescentes navegando pela internet no Brasil (CETIC.BR, 2020), o contato dos menores de idade com material pornográfico é uma realidade possível. Neste sentido, ainda que produzido em um cenário socioeconômico distinto do contexto brasileiro, o cartaz de Ben H. (2014) para a plataforma pornô PornHub apresenta-nos a dimensão individual e estritamente masturbatória da iniciação sexual no mundo globalizado. Diante disso, cabe-me perguntar se a aprendizagem erótica de meni262 Flavia Gaze Bonfim (org.) nos e de meninas, em outros momentos históricos, esteve conectada a recursos coletivos e dispositivos culturais compartilháveis. O psicanalista italiano Massimo Recalcati (2022), em o ensaio O Complexo de Telêmaco, registrou suas considerações sobre o lugar da autoridade familiar e paterna em os nossos dias, baseando-se na experiência clínica com adolescentes e jovens. De acordo com Recalcati (2022), a clínica da juventude contemporânea ensina aos psicanalistas que os meninos e as meninas de nossos dias dão prova da irremediável queda do pai-austero, da ficção da potência paterna e da tradição. Ao mesmo tempo, essa clínica coloca os praticantes da psicanálise diante de apresentações do pai marcadas pelo afeto, pela explicitação dos seus próprios limites, ou, simplesmente, pela singularização do interesse vivificador de um cuidador para com um jovem. Trata-se de uma clínica psicanalítica desenvolvida na época do Outro que não existe, da “evaporação do pai” (LACAN, 1968/1969, p. 84). Entretanto, que época é essa? Junto de Éric Laurent, Jacques-Alain Miller (2013) dedicou um seminário ao tema da inexistência do Outro nos anos de 1996 e 1997. Neste seminário, os psicanalistas elucidam que o tempo em que vivemos não é caracterizado pela ausência do Nome-do-Pai ou pela eliminação de qualquer discurso normatizador – como a expressão “não existe” pode nos levar a concluir erroneamente. Referem-se à uma época em que o caráter unívoco do Outro é interrogado e o aspecto de semblante das instituições é explicitado. No lugar em que outrora podia-se encontrar uma única maneira de proceder e de atribuir significação à vida, sem tomá-la como objeto de questionamento, constatamos a pluralidade. Por isso, nossa época vê inscrita em seu horizonte (melhor horizonte do que muro) a sentença de que há apenas semblante. De fato, a era atual está presa no movimento cada vez mais acelerado de uma desmaterialização vertiginosa que coroará de angústia a questão do real. É um tempo em que o ser, ou melhor, o sentido 263 Leituras Psicanalíticas da realidade, tornou-se um ponto de interrogação. (MILLER, 2013, p. 11, tradução nossa) Se em uma época Outra, as coisas do cotidiano e as relações entre os seres humanos estavam vetorizadas por um sentido coletivamente compartilhado e inquestionável (porque naturalizado), não é assim em nossos dias. A diretriz normatizadora do Outro se materializa de diferentes maneiras, em nosso contexto; e, em última instância, esta é a prova maior de sua inexistência. A inexistência do Outro, aqui sublinhada, pode ser percebida na convivência mais ou menos pacífica de distintos grupos ideológicos em um mesmo território, bem como na evocação da experiência individual como norte de conduta. Nestas duas situações, não se verifica um único termo cultural que organize as relações dos sujeitos uns com os outros e consigo mesmos. Como afirmei em um trabalho anterior, sobre a questão da família, da filiação e dos processos de adoção, a passagem do tempo em que o Outro existia para o mundo em que a “valorização dos interesses individuais” e o “declínio da obediência radical aos princípios coletivos” são a tônica, “não ocorreu apressadamente” (BENTO, 2017, p. 8). Movimentos intelectuais, acontecimentos históricos e alterações econômicas substanciais resultaram no estabelecimento desta época em que a tradição cede à experimentação, em que a relativização alcança figuras antes tomadas como imutáveis: a Reforma e a Contrarreforma, a invenção da imprensa e o surgimento das fábricas, por exemplo. Servindo-se de referenciais da História, dos Estudos Sociais e da Economia, podemos constatar que a força da coletividade fazia-se notar, nas sociedades tradicionais, em diferentes aspectos da vida cotidiana. O tornar-se homem ou a masculinização dos meninos, por exemplo, nas sociedades pré-modernas, ou seja, naquelas organizações sociais em que uma única orientação de conduta pode ser localizada, era marcada pelos ritos de passagem. Ritos que, apesar de incidirem marcas em um corpo, não ocorriam sem a presença dos demais. De acordo com Badinter (1992), tais ritos de masculinização, empreen264 Flavia Gaze Bonfim (org.) didos por um coletivo investido de autoridade, baseados em uma cosmovisão compartilhada, incluíam: a) distanciamento da figura materna; b) alocação em um mundo desconhecido; c) demonstração pública e intensa de virilidade. Os rituais de iniciação masculinos compõem-se, especialmente, de um conjunto de provações físicas e emocionais, fixação de conhecimentos, valores, crenças etc. Na sociedade Xavante, por exemplo, existe a casa dos solteiros para onde se dirigem os meninos em processo iniciático. Essa casa pode estar localizada no pátio da aldeia, portanto, à vista e ao alcance de todos, mas na qual está proibida a entrada das mulheres, que só vão lá para levar alimentos. Durante a iniciação, os meninos podem freqüentar a casa de sua mãe, mas do ponto de vista simbólico, a permanência na casa dos solteiros representa a separação entre o filho e a mãe e, portanto, o preparo para o relacionamento com outra mulher, com quem terá filhos e partilhará responsabilidades familiares. (RANGEL, 1999) Ao me deter um pouco mais demoradamente no cartaz de Ben H. (2014) para a campanha publicitária do site pornográfico, interesso-me pela presença da ideia de ritual conjugada com a de sexualidade. Recordo alguns trabalhos antropológicos lidos ainda quando estudante de graduação, evoco detalhes de algumas etnografias e dou-me conta de que se o mundo contemporâneo inaugura um modo de fazer com o sexo e com o corpo explicitamente individual, ele não prescinde de noções anteriormente relevantes: ele as modifica, individualizando-as. A peça gráfica produzida por Ben H. (2014), originalmente, é uma proposta de cartaz vertical onde se lê, centralizado e acima de todos os ícones, a frase Everyone’s got a ritual., aqui traduzida como Todo mundo tem um ritual. . Na sequência, vê-se fones de ouvido, seguidos de um pote de creme, uma meia, um computador notebook e a frase Discover yours., Descubra o seu. . Por fim, o logotipo da empresa PornHub. 265 Leituras Psicanalíticas Figura 1: Everyone has a ritual Fonte: H., Ben.61 A menção ao ritual, na peça gráfica aqui analisada, conecta-se aos rituais de passagem e de masculinização acima citados e amplamente estudados pela Antropologia. Apesar de mencionados, os rituais de virilidade característicos das sociedades pré-modernas, no cartaz, são substancialmente modificados: no lugar dos outros homens que testemunham a passagem do menino em homem, os objetos adquiridos na indústria farmacológica e informacional dos nossos dias. Onde antes se encontrava o coletivo que atestava a saída da meninice e a entrada no mundo dos homens, atualmente o corpo que goza ritualisticamente sozinho. 61 Disponível em: <https://pornhubcampaign.tumblr.com/post/78784795654/ben-h-2#.XbCC_2Z7nIV>. 266 Flavia Gaze Bonfim (org.) Miller (2013) e Éric Laurent, em o Seminário já citado, propuseram a escrita de um “pequeno matema”, na tentativa de comunicação do uso do corpo característico de nossa época: “I < a”. Onde se lê que, em nosso contexto, o Ideal é menor que o objeto, ou, ainda, que “nosso modo de gozo se situa pelo mais de gozar” e não implica em uma passagem necessária “pelo Outro social” (p. 372, tradução nossa). Nas sociedades pré-modernas, marcadas pelos ritos de passagem, pelo predomínio da coletividade, havia satisfação corporal, mas esta, necessariamente, passava pelo Outro. Em nosso tempo, a satisfação pode ser obtida sem que o circuito de gozo inclua a coletividade testemunhal, o Outro. Ao estar particularizada pelo mais de gozar [a satisfação], deixa de ser organizada, solidificada, pelo Ideal. Consequentemente, nosso modo contemporâneo de gozar se vê de alguma maneira funcionalmente atraído pelo estatuto autista do gozo. (MILLER, 2013, p. 372373, tradução nossa) Em O Seminário, Livro 19, Jacques Lacan (1971-1972/2012) apresentou aos seus alunos os desdobramentos radicais do princípio de “que não existe relação sexual” (p. 29). Abordando as diferenças lógico-estruturais entre homens e mulheres e a impossibilidade de garantir que o ato comunicacional seja pleno, Lacan colocou em evidência a desarmonia e a falta de determinação biológica no que diz respeito ao encontro sexual. É neste Seminário, segundo Jacques-Alain Miller (2012), que o correlato do aforisma da inexistência da relação sexual é apresentado. Que correlato vem a ser este? ‘Há-um.’ No cerne do presente Seminário, esse aforismo, que passara despercebido, completa o ‘Não existe’ da relação sexual, enunciando o que há. Entenda-se, o Um-sozinho. Sozinho em seu gozo (essencialmente autoerótico), assim como em sua significação (fora da semântica). (MILLER, 2012, s/p) 267 Leituras Psicanalíticas É, no entender de Miller (2012), este o tempo da inauguração do último ensino de Lacan. Tempo marcado pelo real e pela impossibilidade de tudo significantizar. Período do ensino lacaniano em que o gozo é destacado e a superação ontológica/ôntica já problematizada em O Seminário, Livro 11 pode ser encontrada na Henologia62 e no campo do Uniano. Ensino que apresenta uma abordagem do corpo que ultrapassa as significações culturais e as construções discursivas, mas destaca a experiência única e impossível de ser integralmente relatada e testemunhada. Considero o trabalho gráfico de Ben H. (2014) como expressão de uma época – a atual –, e, também, como uma sinalização: a psicanálise para este tempo não é outra senão aquela que podemos chamar de henológica. A clínica contemporânea coloca cada praticante da psicanálise em encontro com seres falantes, com sujeitos dotados de corpos pulsantes, vívidos, que podem se sentir motivados (ou não) a tentarem fazer passar pelas palavras as especificidades de seus rituais. Para outros, talvez, uma psicanálise sirva para que ocorra a invenção de um ritual. Por fim, parece-me que há, aqui, de diferentes maneiras, a possibilidade alegre de utilizar o corpo de modos mais ou menos satisfatórios, mais ou menos destrutivos, mais ou menos agradáveis, mais ou menos aceitos socialmente, mais ou menos... Há a possibilidade de fazer uso do corpo. REFERÊNCIAS BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Baumel, Cynthia Perovano Camargo et al. Atitudes de Jovens frente à Pornografia e suas Consequências. Psico-USF [online], 2019, v. 24, n. 1, pp. 131-144. Disponível em: <https:// doi.org/10.1590/1413-82712019240111>. Acessado em: 13 mar. 2022. BENTO, Hugo. O desejo de filho na adoção homoparental: uma perspectiva psicanalítica. Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2017. 62 Henologia, do grego τò ἕν to hen; hen = “um”, diz respeito ao estudo d’O Um; à reflexão filosófica sobre a unidade e a transcendência desde o pensamento pré-socrático. 268 Flavia Gaze Bonfim (org.) CETIC.BR. Tic Kids Online Brasil 2019: Principais resultados. São Paulo: UNESCO, 2020. Disponível em: < https://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2019_coletiva_imprensa.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2022. H., Ben. Everyone has a ritual, March 2014. Disponível em: <https://pornhubcampaign. tumblr.com/post/78784795654/ben-h-2#.XbCC_2Z7nIV>. Acesso em: 23 out. 2019. LACAN, Jacques. Intervention sur l’exposé de M. de Certeau: “Ce que Freud fait de l’histoire. Note à propos de ‘Une névrose démoniaque au XVIIe siècle’” (1968). Congrès de Strasbourg, out. 1968. Lettres de L’École Freudienne, n. 7, 1969, p. 84. ______. O Seminário, Livro 19: ... ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012. LIMA, Lana Mara Matias. MARREIRO, Igor Shayder. MARQUES DA SILVA, Naira. GONÇALVES, Natália Lima. RIBEIRO, Maria Carolina Queiróz. ANDRADE, Jakeline Alencar. A relação dos adolescentes com o consumo de pornografia. Encontros Universitários da UFC, Fortaleza, v.4, 2019, p. 4887. MARIANO, Helena Maria. As problemáticas da pornografia na era do capitalismo informacional. Jornal Prédio 3 – JP3, 21 set. 2020, São Paulo. Disponível em: <https://jornalpredio3. com/2020/09/21/as-problematicas-da-pornografia-na-era-do-capitalismo-informacional/>. Acesso em: 13 mar. 2022. MILLER, Jacques-Alain. El Otro que no existe y sus comités de ética: Seminario en colaboración con Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós, 2013. ______. Contracapa de O Seminário, Livro 19. In: LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012. RANGEL, Lucia Helena. Da infância ao amadurecimento: uma reflexão sobre rituais de iniciação. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 3, n. 5, p. 147-152, Aug. 1999. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831999000200019&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 jan. 2020. RECALCATI, Massimo. O Complexo de Telêmaco: pais, mães e filhos após o ocaso do pai. Belo Horizonte: Âyiné, 2022. 269 ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E FEMINISMO: REFLEXÕES SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA A PARTIR DE TEXTOS FREUDIANOS Bárbara Breder Machado63 INTRODUÇÃO Este capítulo tem por objetivo seguir as sendas do caráter político da psicanálise, reafirmado por Marie-Hélène Brousse em seu livro O inconsciente é a política (2018). E, a partir daí, realizar uma ponte com o pensamento feminista – através das obras de Silvia Federici: Calibã e a Bruxa (2017) e de Gerda Lerner A origem do Patriarcado: a história da opressão das mulheres pelos homens (2019) – a fim de extrair uma reflexão interdisciplinar sobre a dominação masculina e os processos de subjetivação que dela decorrem. Para tanto, utilizaremos os textos freudianos, que versam sobre o impacto da cultura na dimensão psíquica, a saber: “Moral civilizada e doença nervosa moderna” (1908), “Esclarecimento sexual às crianças” (1907), “Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise XXXIII - Feminilidade” (1933), em costura com o livro da Maria Rita Kehl: Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (2016). Assim, os campos temáticos que buscaremos costurar e pensar suas tensões e imbricações são: a psicanálise e a ciência política. E, em última instância, objetivamos provocar a psicanálise, a partir do campo do feminismo, para extrair dela, seu caráter político. É importante destacar que nosso interesse é investigar, não somente como a cultura patriarcal deflete nos processos de identificação, dado a oferta simbólica do campo da cultura, como também analisar, Doutora em Ciência Política (UFF). Professora adjunta e coordenadora (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/6132106075115936 63 270 Leituras Psicanalíticas de que forma a condição subjetiva atravessada por estes norteadores é, por si, condição de re(produção) da subalternidade feminina. Pois, assim, sustenta as relações de poder postas em nossa sociedade. Este esforço está norteado na afirmação lacaniana de que o analista deve ter, inevitavelmente, a subjetividade de sua época como horizonte. Assim, pretendemos pensar através da psicanálise e para fora de seu eixo, implicada politicamente em temas cruciais para a democracia, como neste caso, sobre as relações de gênero e a dominação masculina. [...] alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” citação de “Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise”, texto de 1953, no qual Lacan enuncia claramente, pela primeira vez, a tese que irá orientá-lo e sua leitura de Freud e revolucionar a psicanálise. É o momento em que o Lacan apresenta o axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem. (BROUSSE, 2018, p. 26) Desta forma, interessa-nos destacar, já de saída, que a empreitada lacaniana do chamado retorno a Freud, parte justamente da concepção do caráter político da psicanálise64. E, como aponta Brousse (2018): a oposição entre individual x coletivo não se sustenta dado que o desejo que o sujeito visa decifrar é sempre o desejo do Outro e passa pelos desfiladeiros significantes da linguagem. Podemos dizer que para Lacan existe, do ponto de vista do analista, um imperativo de deciframento do movimento simbólico.(...) Decifrar, portanto, um Outro, que é Outro simbólico, enquanto efeito da língua. (BROUSSE, 2018, p. 29) Logo, trata-se de pensar a tomada de lugar no campo feminino ou masculino não como resultado do jogo biológico, mas sim como um processo que inclui aspectos civilizatórios e, portanto, culturais, na construção do que hoje entendemos como gênero. E isso não estaria Na medida em que o que coloca em questão é a relação do sujeito com a verdade. Como aponta Foucault em seu curso “Hermenêutica do Sujeito”, em 1982. Publicado no Brasil em 2010. 64 271 Flavia Gaze Bonfim (org.) em dissonância com o avanço da concepção dos matemas lacanianos e a questão da lógica frente à diferença sexual. Vale destacar a assertiva de Diana Rabinovich acerca de certo “ponto de vacilação” de Lacan sobre essas duas modalidades de leitura do campo simbólico: Lacan sempre deixou um ponto de vacilação a respeito. Há épocas que enfatiza mais um do que o outro. Por exemplo, na primeira época enfatiza mais o simbólico no sentido cultural que o simbólico no sentido matemático . (...) mas não há de se considerar que um anula o outro. Se usualmente tomar o simbólico matemático se esquecendo da outra dimensão do simbólico e que a ordem simbólica é uma articulação original de ambos os aspectos. (RABINOVICH – teórico n° 6, 1995)65 Então nos cabe, aqui neste trabalho pensar, qual a oferta simbólica centrada na cultura patriarcal que habilita a condição de ser mulher, tendo em vista, o lugar estrutural de sujeição e subalternidade, a partir do qual se habita o mundo (bell hooks, 2020). Interessa-nos também refletir se a psicanálise pode oferecer recursos para enfrentar o patriarcado. Ou se trata, pelo contrário, de um dispositivo que reifica a submissão e a dominação masculina? A psicanálise nos oferece escopo para desnaturalizar a condição de gênero ou nos aprisiona ainda mais em suas amarras? Nossa aposta é a primeira opção. Isto é: que este campo de conhecimento pode oferecer ferramentas importantes para a luta feminista. Grifo e tradução nossos – documento da cátedra I: Psicoanálisis: Escuela Francesa. Teórico n 6 22/06/1995: “lo imaginario, lo simbólico, lo real” – Profesora Diana Rabinovich. “Entonces. Lacan en cierto momento, enfoca lo simbólico no solo en el sentido de la lingüística, de la historia cultural, de la determinación social, de todo lo que Hegel puede agregar a esto, de todas las determinaciones filosóficas complejas de lo simbólico, dando un vuelco, y lo simbólico pasa a significar las pequeñas letras de sus matemas, es decir, de sus fórmulas. (…) Lacan siempre dejó un punto de vacilación al respecto. Hay épocas en que enfatiza más uno que otro. Por ejemplo, en la primera época enfatiza más el simbólico en el sentido cultural que el simbólico en el sentido matemático. (…) Pero, no hay que considerar que uno anula el otro. Se suele tomar lo simbólico matemático olvidando la otra dimensión de lo simbólico de una articulación original en ambos los aspectos”. 65 272 Leituras Psicanalíticas DESENVOLVIMENTO Gerda Lerner, em seu célebre livro A criação do Patriarcado: História da opressão das mulheres pelos homens (2019)66 afirma que: As teorias de Freud reforçaram ainda mais as teorias tradicionalistas. (...) Apesar de muitos aspectos da teoria freudiana se provarem úteis na construção da teoria feminista, foi a máxima de Freud de que para as mulheres a anatomia é o destino que deu nova vida e força ao argumento da supremacia masculina. As aplicações da teoria freudiana à criação dos filhos e à literatura popular de autoajuda, não raro vulgarizadas, deram novo prestígio ao velho argumento de que o papel da mulher é ter e criar filhos. (LERNER, 2019, p. 45) Nesta passagem, a autora traz a tensão existente entre o feminismo e a psicanálise na origem do texto freudiano, apontando que, se por um lado alguns aspectos da teoria foram úteis à construção da teoria feminista, por outro, contribuíram para a reificação do lugar da maternidade como natural, fortalecendo um dos argumentos da dominação masculina. A afirmação de Lerner traz em si o âmbito paradoxal do encontro do feminismo com a teoria psicanalítica: se, por um lado, encontramos traços da dominação masculina, por outro, conceitos como a bissexualidade humana, a moral civilizada, a compreensão do Complexo de Édipo como processo e a inter-relação do aparelho psíquico com as exigências sociais, contribuem para a desconstrução da ideia de natureza humana. E, assim, da “naturalização” do lugar da mulher como inferior. De acordo com o pensamento de Simone Beauvoir (1949)67, a força do opressor está relacionada à cumplicidade entre os próprios oprimidos. De modo paradoxal, as mulheres participam do processo de sua subordinação, na medida em que internalizam a ideia de sua 66 67 Este livro somente foi traduzido para o português 33 anos depois de sua publicação. Este livro somente foi traduzido para o português 33 anos depois de sua publicação. 273 Flavia Gaze Bonfim (org.) inferioridade. Assim, nos cabe colocar a pergunta se em Freud podemos encontrar a explicação da forma que se dá esta interiorização da moral sexual burguesa através do dispositivo do Complexo de Édipo. Portanto, retornar aos estudos sobre a criação dos estados burgueses, centrados no dispositivo da família nuclear, no casamento monogâmico e na necessária submissão da mulher ao homem, faz-se necessário. Desta forma, se revisitarmos a história da fundação do Capitalismo, veremos, através da análise de Silvia Federici (2017), que sua empreitada só se efetiva pela sua sustentação no patriarcado. E, assim, nos permite incidir, a pergunta de que modo o mal-estar produzido por este sistema decanta nas falas das pacientes, desde o consultório freudiano até os atuais. Freud é quem abre o caminho e tenta, talvez de maneira precária mas ao mesmo tempo precisa, dar conta desta determinação histórica na subjetividade. É ele quem vai tratar de mostrar de que maneira a história está presente e articulando e organizando sobre esse aparato psíquico, onde a sociedade se interiorizou até o ponto em que o sujeito apareça congruentemente integrado dentro da re-produção do sistema que o produziu. Que funcione para ele e de acordo com ele. (ROZITCHNER, 1982, p. 15) Ao percorrermos a história da psicanálise, nos deparamos com a primeira formulação freudiana acerca da produção sintomática. Inicialmente, ele parte da hipótese de que as suas pacientes haviam sido submetidas a uma cena de abuso infantil. Uma sedução perpetrada por um adulto em seus primeiros anos de vida. Hipótese que foi abandonada, e sua proscrição é responsável por uma das grandes descobertas freudianas: a realidade psíquica e as fantasias histéricas, que serviriam de base para as produções sintomáticas. Nossa intenção de retomar a primeira e abandonada teoria da sedução, é decantar sobre ela algumas reflexões, a partir do arcabouço teórico sobre violência de gênero e relacionamentos abusivos, ampla- 274 Leituras Psicanalíticas mente estudados e difundidos na atualidade. É comum hoje mapearmos, a partir do que a teoria feminista produz de arcabouço teórico, as ações coercitivas aplicadas às meninas, via educação restritiva e cerceadora, que podem ser compreendidas como parte da violência simbólica constantemente silenciada pelo vetor de naturalização dos papéis de gênero. E, para responder às acusações dos que sustentavam que as confissões das histéricas não mereceriam créditos ou eram induzidas por seus médicos, Freud constituía-se em vigoroso defensor dos pacientes aflitos. Promovendo ao mesmo tempo um desmantelamento feroz da ordem familiar do fim do século. Em geral, ele dizia, as meninas são vítimas de abuso cometidos por seus irmãos mais velhos, os quais foram iniciados por uma babá ou empregada. Porém pior ainda, Freud afirmava a existência, no seio de todas as famílias, de um “atentado precoce”, sempre cometido por um adulto sobre uma criança quase sempre na faixa entre dois e cinco anos de idade. (ROUDINESCO, 2016, p. 89) Talvez a primeira possibilidade de olhar para a violência simbólica, que ocorre de maneira reificada, sub-reptícia e crônica às quais as mulheres estão submetidas cotidianamente, tenha sido mapeá-la via abuso sexual. Pois, não podemos perder de vista que o efeito civilizatório centrado na moral burguesa opera, via educação para as meninas, promove a destituição de seu valor e assim, a violenta e correlata oferta do lugar simbólico de desvalor, no qual a partir deste período passa a ser exigido a cada menina atender. Resgatando essa argumentação e aplicando o que temos acumulado em teoria feminista sobre as múltiplas formas de violência, podemos atualizá-la e entender que, embora não fosse uma violência sexual, no sentido da sedução ou as vias de fato, poderia estar articulada a uma violência simbólica, ao configurar como lugar da mulher como destituída de valor. E, dado que a educação e sociabilidade são executadas por atores familiares, estes abusos são cometidos por 275 Flavia Gaze Bonfim (org.) membros da família e entorno, coagindo as meninas a ocupar um lugar social reduzido em potência e relegado a segundo plano. Ou como aponta Virgínia Woolf (2012): O opressivo e sufocante era o que podemos chamar de educação negativa, que decreta não o que se pode fazer, e sim o que não se pode fazer. Provavelmente apenas mulheres submetidas a ela podem entender o peso do desestímulo ao ouvirmos constantemente que, como mulheres nunca esperam grande coisa de nós...mulheres que viveram na atmosfera criada por tal doutrinação sabem como isso sufoca e desanima, como é preciso coragem para superá-la. (WOOLF, 2012, p. 54) Tal fato não passou despercebido pela visada freudiana, que no texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908) aponta a dupla exigência burguesa sobre os gêneros, e como esta divergência é produtora de sofrimento. Logo, podemos refletir a partir daí, se o caráter traumático da neurose na origem dos sintomas histéricos não seria uma primeira aproximação ao fato de que a diferença sexual está fundada e sustentada por uma desigualdade social estruturante. Ou ainda, que a diferença lógica, apontada posteriormente por Lacan, não destitui a análise da divisão sexual social baseada na desigualdade entre os gêneros, sustentado pela dominação masculina, como defende Lerner (2019). Seguindo esta pista, podemos afirmar que a psicanálise lança luz ao que podemos nomear na atualidade como efeitos nefastos da dominação masculina, no cerne da sociedade burguesa e do capitalismo. Em 1895, a histeria das mulheres examinadas por tantos cientistas conservava seu mistério. E foi aos romancistas suas heroínas – de Fleubert a Tolstói, de Emma Bovary a Anna Karenina – que coube o mérito de lhes dar um rosto humano: o de uma revolta impotente que levava ao suicídio ou a loucura. Em vão afirmava-se a existência da histeria tanto em Paris como em Viena: a “doença” 276 Leituras Psicanalíticas parecia golpear sobretudo as mulheres. O paradigma da “mulher histérica” progressivamente abandonado ao longo do século XX, permaneceu ligado a um estado da sociedade no qual para exprimir sua aspiração à liberdade, as mulheres não tinham outro recurso senão a exibição de um corpo atormentado. (ROUDINESCO, 2016, p. 81) Desta forma, o gênio freudiano, avançando pela reorientação do percurso clínico em relação a Charcot, fundou uma clínica sustentada pela transferência, abrindo lugar para a construção da narrativa das pacientes sobre sua história, abandonando a clínica do olhar, e a correlata exibição dos sintomas, apostando na escuta e a elevação do sintoma à categoria de enigma. Roudinesco aponta ainda que: Ao abandonar sua neurótica e definir as condições originais de uma terapêutica da confissão, Freud explorava de uma maneira inédita de pensar a sexualidade humana (...)ele estendeu a noção de sexualidade a uma disposição psíquica universal, tornando- a própria essência da atividade humana. (ROUDINESCO, 2016, p. 96) A autora segue afirmando que a teoria freudiana foi tomando forma inspirada no romantismo negro, abraçando os trágicos gregos, tendo o homem como ator inconsciente de sua própria destruição. Afastando-se, assim, da psicologia médica, propondo uma concepção de sujeito sustentada em um determinismo inconsciente amparado na máxima: “eu é um outro” colocando a psicanálise numa rota de transgressão como uma: “disciplina bizarra, uma combinação frágil unindo a alma e corpo, afeto e razão, política e animalidade: sou um zoon politikon, dizia Freud, citando Aristóteles” (ROUDINESCO, 2014, p. 100). Transgressão que visamos aqui reativar e animar com este trabalho em nossa combinação “frágil” e “bizarra”68 entre feminismo e psicanálise. Avançando sobre o texto “Moral civilizada e doença nervosa moderna” (1908), munidos da leitura de Silvia Federici (2017), para 68 Para usar os termos de Roudinesco. 277 Flavia Gaze Bonfim (org.) operar a reflexão feminista ao texto vienense, que de dedicou a localizar importantes argumentos para sustentar a diferença da exigência cultural entre homens e mulheres. Neste texto, Freud parte da análise do livro Ética sexual, publicado em 1907 por Von Ehrenfels, e dedica-se a inserir contribuições sobre a diferença da moral sexual “natural” e a “civilizada”. Em seu âmago, o texto freudiano sustenta o argumento que o sofrimento psíquico possui relação com exigência de renúncia de satisfação sexual exigida pela moral civilizada. E que esta se coloca de maneira distinta para os homens e mulheres. Ponto que aqui nos interessa, pois, embora Freud não problematize, se incidirmos a marcação de gênero, as consequências que essa dupla moral se impõe sobre estes diferentes corpos ganha outro relevo. Ainda que esta teoria etiológica tenha sofrido importantes mudanças ao longo da sua obra, nos interessa salientar que, segundo Freud, esta disparidade de exigência é instilada pela educação oferecida às crianças e está comprometida com os ideais da moral civilizada. É importante ressaltar que essa moral é a burguesa, orientada pelo advento da modernidade e do capitalismo. Ou seja, dispositivo de execução de controle de corpos e uso das sexualidades segundo os objetivos vitorianos. Desta forma, profundamente comprometidos com a divisão sexual do trabalho. (FEDERICI, 2017). As páginas que seguem neste célebre texto freudiano nos oferecem um rico exemplo da efetivação daquilo que Foucault aponta como controle dos corpos, em História da sexualidade: A vontade de saber (1988). Assim como, a crítica pontual de Silvia Federici em indicar necessidade de incluir na análise foucaultiana, a especificidade do que o modelo capitalista operou sobre a existência e corpos das mulheres. Segundo Federici, a acumulação primitiva que permitiu o desenvolvimento do capitalismo tem como um dos tripés a expropriação das mulheres de seus corpos na divisão sexual do trabalho, que se sustenta com a necessária degradação da figura da mulher. 278 Leituras Psicanalíticas A acumulação primitiva não foi então, simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores exploráveis e de capital. Foi também, uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como raça e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno; (FEDERICI, 2017, p. 119, grifo da autora). Retornando ao texto freudiano, é possível encontrar as consequências psíquicas do efeito da educação das meninas baseadas na coerção e na proibição, que dialogam com a ideia de degradação da figura da mulher e seu rebaixamento. Nele, podemos ler que a interdição das mulheres as impede de se ocupar intelectualmente de problemas sexuais e, assim, as afastam de toda a possibilidade de pensar, levando à perda de valor do conhecimento em geral. A educação das mulheres a impedem que se ocupem intelectualmente dos problemas sexuais, embora o assunto lhes desperte uma extrema curiosidade, e as intimida condenando tal curiosidade como pouco feminina e com indício de disposição pecaminosa. Assim, a educação as afasta de qualquer forma de pensar e o conhecimento perde para elas, o valor. Essa interdição do pensamento estende-se para além do sexual, em parte através de associações inevitáveis, em parte automaticamente, como interdição do pensamento religioso ou a proibição de ideias sobre a lealdade entre cidadãos fiéis” e conclui: “acredito que a inegável inferioridade intelectual de muitas mulheres pode antes ser atribuída à inibição do pensamento necessária a supressão sexual” (FREUD, 1908, p. 204, grifo nosso) Esta tese freudiana também está posta em outro texto: “Esclarecimento sexual às crianças” (1907), no qual apresenta uma crítica à interdição de saber sobre a sexualidade que, segundo ele, traz consequências drásticas para a comum curiosidade infantil e promove 279 Flavia Gaze Bonfim (org.) danos a seu desenvolvimento intelectual posterior. Ora, podemos então questionar que a suposta “inferioridade intelectual de muitas mulheres pode ser atribuída à inibição do pensamento necessária a supressão sexual” tem sido parte de um projeto que está a serviço da divisão sexual do trabalho, e tem efetuado de maneira sistemática a degradação da figura da mulher na sociedade, sustentado sua exploração. Assim, podemos aqui estabelecer que a severidade de cerceamento, via educação, sustentada pela moral civilizada, no que tange o conhecimento da menina sobre seu corpo, sobre sua sexualidade, bem como sua expressão, promove exigências mais rigorosas às mesmas, impedindo-as de exercer sua curiosidade e avançar no campo do conhecimento acerca de si e do mundo. O que tem resultado em uma discrepância no cenário do exercício intelectual. De fato, hoje bem diferente da época da escrita destes textos, porém que se mantém atual, apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho. Esta que se realizou reificando e acirrando as desigualdades e contradições existentes. Neste texto, nos interessa ressaltar que o curso de desenvolvimento da pulsão sexual (passando para o autoerotismo ao amor objetal; da autonomia das zonas erógenas à subordinação destas à primazia dos genitais, postos à serviço da reprodução) atende à lógica da coerção social. Dado que reorganiza a forma de obtenção de prazer, balizado por aquilo que a moral burguesa exige, a saber: reprodução. Promovendo uma grave cisão na existência das mulheres ao reduzi-las ao reduto doméstico, ao trabalho reprodutivo e não pago. Isso se destaca ao longo do texto, quando Freud divide em três os estágios da civilização. 1- quando a pulsão manifesta-se livre; 2quando a pulsão está reprimida, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e 3- só a reprodução legítima é admitida como meta. E estabelece como desvio a esta, a homossexualidade e a fixação infantil a um objeto preliminar. Nosso primeiro grifo tem como intuito destacar que, aquilo que se estabelece como “sexualidade dita normal, isto é útil a sociedade” 280 Leituras Psicanalíticas é definida por parâmetros morais burgueses. Isso não passou despercebido à análise freudiana: “essa moral dupla em nossa sociedade é válida para homens, é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos” (FREUD, 1908, p. 200). O que também nos fez destacar o caráter preliminar do objeto de desvio da sexualidade normal, dado que aquilo que a moral burguesa exige é o uso da sexualidade para a procriação, estabelecendo a base para a construção da narrativa da existência da mulher reduzida à maternidade e ao trabalho reprodutivo. Vale, então, ressaltar que o controle dos corpos femininos e sua domesticação também reverbera naquilo que se prescreve como uso possível da sexualidade. Isto equivale à construção da imagem da mulher e o discurso sobre o feminino sustentado pela realização da maternidade, como plena e destino esperado. É preciso destacar, que muitas das falas das pacientes no divã, estão diretamente relacionadas com aquilo que ele denomina como moral civilizada moderna, que atende aos ideais burgueses norteadores do nascimento do sistema capitalista. Sistema este que, segundo Silvia Federici, surge escorando-se e promovendo o feminicídio em escala genocida conhecido como “caça às bruxas”. Nota-se, assim, que a condução da mulher para o reduto doméstico, extinguindo-se seu direito de habitar a esfera pública, o espaço político, provém de uma estratégia econômica sócio histórica, que está diretamente relacionada à expropriação promovida pelo capitalismo. Sistema que se vale da construção do discurso sobre a feminilidade, a partir da perspectiva masculina, estabelecendo, além da assimetria de gênero, a produção da degradação da figura da mulher como objeto pertencente ao homem, caso ela se enquadre na produção discursiva sobre o feminino; ou como o lugar de abjeto, passível a violência e extermínio na fogueira, caso ela não se enquadre neste discurso. A construção da figura da bruxa foi, portanto, empreendimento de Estado, viabilizado pela lógica religiosa. Fato que está na base de emergência do capitalismo e que reverbera e o sustenta até os dias atuais. 281 Flavia Gaze Bonfim (org.) Portanto, faz-se necessário ter isso em mente ao questionarmos o campo simbólico organizado e oferecido às meninas, antes mesmo de seu nascimento. Dado que este aporte cultural específico – misógino e restritivo – a partir do qual cada mulher toma lugar no jogo simbólico, apropriando-se imaginariamente e construindo seu lugar no mundo, coloca-a em posição de desvalor. Segundo Maria Rita Kehl (2016), podemos pensar a feminilidade como um discurso construído para além da diferença anatômica, que estabelecem o pertencimento a um de dois grupos identitários binariamente definidos, carregados de significações imaginárias e centrado na lógica masculina sobre o que é uma mulher. Até aqui, denominei feminilidade é uma construção discursiva produzida a partir da posição masculina, à qual se espera que as mulheres correspondam, na posição que a psicanálise lacaniana designa como sendo a do Outro do discurso. (KEHL, 2016, p. 56) E, sendo assim, ao aceitar a posição do Outro do discurso, Kehl destaca que as mulheres renunciam a falar por si próprias, de se apropriar de uma das formas universais do falo: o falo da fala; e deixam de participar das grandes tarefas da cultura, permanecendo socialmente invisíveis e silenciadas. Nota-se então, que o silenciamento das mulheres é algo que está na fundação da experiência societária em que vivemos. Assim, a psicanálise pode nos ajudar a compreender de que forma essa experiência social é internalizada e desejada (ainda que na esfera inconsciente) pelas próprias mulheres, ao mesmo tempo em que pode nos ajudar na construção de narrativas outras – especialmente na clínica – que façam enfrentamento à essa noção de feminilidade imposta pela ótica burguesa. Cabe-nos, portanto, afirmar que aspectos estabelecidos na ordem social refletem na organização psíquica. Ou seja, a lógica patriarcal interfere na construção de um eu-ideal em desvantagem ao oferecer, no caso da menina, material para forjar o ideal-de-eu comprometido 282 Leituras Psicanalíticas com a lógica misógina, inculcados em nossa sociedade. Afinal: “É o gênero que vem sendo o principal responsável por determinar o lugar das mulheres na sociedade” (LERNER, 2019, p. 48). CONSIDERAÇÕES Dado o percurso argumentativo realizado até aqui, podemos concluir que a psicanálise nos oferece recursos para compreender a internalização da desigualdade de gênero. E abre possibilidade para investigar os mecanismos íntimos de submissão, que promovem a condição subjetiva comprometida com esta relação de poder. Logo, aquilo que Freud formula como complexo de Édipo é o dispositivo vital para introjeção da desigualdade de gênero, necessária para a divisão sexual do trabalho e a expropriação da mulher de seu corpo e sua liberdade, necessárias à manutenção do sistema capitalista. Pois, como bem aponta Gerda Lerner (2019), há uma contradição entre a centralidade e o papel ativo das mulheres na criação da sociedade e sua marginalização, fazendo com que elas mesmas lutem contra a própria condição. Através da reflexão que a autora lança: “Há milênios, as mulheres participam do processo da própria subordinação por serem psicologicamente moldadas de modo a internalizar a ideia da própria inferioridade”. (LERDA, 2019, p. 268) Abre-se uma fenda, a partir da qual podemos atualizar a psicanálise a seu tempo, e contribuir para o avanço da compreensão dos mecanismos psíquicos envolvidos na produção desta cumplicidade. Uma condição subjetiva submissa sustentada em uma certa aceitação de sua posição de desvalor, cabendo-lhe apenas “ser” o falo para alguém, esconder com véus a sua falta constitutiva através dos semblantes. E, supostamente “realizar-se” na maternidade, construindo para si a possibilidade de possuir o “falo”, através de um filho, a fim de restituir a si algum valor social/existencial. Não devemos esquecer que a falta é constitutiva da condição humana, desta forma, também está posta para os homens. Aqui é interessante ressaltar que a masculinidade também é uma produção, 283 Flavia Gaze Bonfim (org.) não é dada de saída (BONFIM, 2021). Entretanto, para os meninos há uma espécie de oferta de “carta” ou “cartada” futura que ele poderá lançar mão, após o período de latência. Possuir o “falo” viabiliza para ele a abertura ao lugar da esfera pública, do trabalho pago, da política, no sentido aristotélico, de tomar a palavra na polis, lugar privilegiado e à custa da subalternização das mulheres. Ressaltamos a precisão da análise de Virgínia Woolf (2012): o reservatório que conduz os homens ao destaque nas atividades da civilização é o mesmo que empurra as mulheres ao silenciamento e as aprisionam no reduto doméstico, retirando-as da cena pública e das realizações civilizatórias. É importante ressaltar, que, se até a esta altura do texto, nos dedicamos a uma análise macroestrutural, é na singularidade que cada mulher - que não pode ser contata senão, uma a uma - vai tomar lugar frente a este discurso sobre a feminilidade, de modo particular e intransferível. E, que a riqueza da clínica é justamente poder resignificar e se reposicionar (também) em relação a esses vetores de opressão. [...] ao desnaturalizar o que foi construído ela cultura, espero que tenhamos maior mobilidade na clínica das neuroses de nossas analisandas mulheres a fim de possibilitar que a partir de uma análise, possam constituir como lhes convier a relação com a feminilidade. (KEHL, 2016, p. 39) Cabe a nós (psicanalistas e feministas) essa tarefa, de incidir a crítica feminista sobre a psicanálise e assim, dela extrair seu caráter político. REFERÊNCIAS BONFIM, Flavia: A sexuação do homem na contemporaneidade: entre o declínio do ideal viril, o feminismo e o feminino – tese defendida no PPGP/UFF, Niterói/RJ, 2021. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Vol. 2: A experiência vivida. Rio de Janeiro/RJ: Ed. Novas Fronteiras, 1949. BROUSSE, Marie-Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018. 284 Leituras Psicanalíticas FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”. São Paulo/SP, Editora Elefante, 2017. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo/SP: Ed. Graal, 2005. FREUD, Sigmund. Esclarecimento sexual às crianças (1907). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987. ______Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise XXXIII Feminilidade (1933) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987. _______ Moral civilizada e doença nervosa moderna (1908). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987. HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 2020. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. A mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Ed. Boitempo, 2016. LERNER, Gerda. A criação do Patriarcado. História da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Ed. Cultrix, 2019. RABINOVICH, Diana. Teórico n° 6 – fecha 22/6/95 – Psicoanálisis: Escuela Francesa, Cátedra I – Universidad de Buenos Aires – Argentina. ROUDINESCO, Elisabeth. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. São Paulo: Ed. Zahar, 2016. ROZITCHNER, León. Freud e o problema do poder. São Paulo: Ed. Escuta 1982. WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Rio de Janeiro: Ed. L e MP pocket, 2012. Nota: este trabalho é fruto do Pós-doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense PPGP/UFF Projeto: Psicanálise profana a clínica entre a causa analítica e a causa feminista, 2020-2021. Sob orientação da professora Doutora Giselle Kosovski Falbo. 285 MAUS HÁBITOS: SINTOMAS ALIMENTARES NO CORPO EM CENA Carolina Carvalho Dutra69 Bianca Bulcão Lucena70 O instigante filme mexicano Maus Hábitos (2008), dirigido por Simon Bross, revela uma trama que diz do corpo em sua relação com comida, sexualidade e desejo. Um som de chuva constante percorre todo o filme e, aos poucos, o diretor apresenta as personagens guias: uma noviça chamada Matilde (Ximena Ayala), uma mãe chamada Elena (Elenia de Haro) e sua filha Linda (Elisa Vicedo). Matilde é apresentada como num prólogo. Uma cena inaugural nos mostra a infância da jovem. À mesa, sua família e um convidado, o novo namorado da tia. O casal está envolto numa atmosfera de prazer, até que o rapaz se engasga. Matilde reza. A menina atribui ao desengasgo à sua oração, fazendo aí uma colagem mística e obsessiva, um ritual em que supostamente controla uma ação, da qual em nada participa. Na sequência, o diretor nos apresenta a imagem religiosa de Jesus Cristo na cruz, evidenciando o sacrifício pelo corpo. Um oferecimento da carne em prol da salvação de algum mal. Assim vai amarrando a relação do divino com a penitência, do pão com o corpo de Cristo, da hóstia insípida com o alimento para a alma. Passado o tempo, Matilde se forma médica. Esse é o mesmo dia em que ela ingressa no convento. Quando fica sabendo da notícia de uma tia hospitalizada com uma grave enfermidade resolve abdicar do prazer de comer. A jovem passa a ir atrás da comida estragada de uma lata de lixo, coloca grande quantidade de sal em sua pró- Psicanalista. Mestra em Psicologia e Estudos da Subjetividade (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/3510369887584090 70 Psicanalista. Mestra em Alimentação e Nutrição (UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/3182922979961172 69 286 Leituras Psicanalíticas pria comida, bebe vinagre. A tia se recupera. A moça atribui sua recuperação à sua autopenitência. Um novo acontecimento convoca a noviça ao seu jejum místico: uma forte tempestade causa uma enchente que destruiu parte de uma cidade vizinha. A personagem resolve parar de comer até que a chuva cesse, levando sua restrição alimentar às últimas consequências, até ser hospitalizada por alterações patológicas decorrentes da desnutrição. Elena é extremamente preocupada com o próprio corpo e o ganho de peso. Acompanhando seu sintoma anoréxico, segue ao longo de todo o filme buscando compulsivamente soluções para compensar qualquer ingestão de calorias. Malha, restringe sua alimentação com rigor, se pesa com inegável prazer ao ver exibido seus poucos quilos. Confere sistematicamente sua silhueta no espelho e notadamente sofre de uma distorção de sua imagem corporal. Seu descontentamento e impossibilidades se estendem para a filha, Linda. Quanto mais se apresentam os fracassos na tentativa de fazer a filha perder peso, mais ela fica severa em sua própria privação de alimentos. A obsessão de Elena em fazer com que a filha emagreça nos leva a acompanhar uma corrida insana para que a menina se ajuste ao padrão estético deturpado da mãe. As tentativas com a menina são muitas; ela é levada a médicos, submetida a tratamentos em clínicas especializadas onde tem suas refeições controladas, entre outros. Linda é uma menina com sobrepeso censurada não só pela mãe, ainda que essa seja seu algoz, mas também pelo olhar social, onde os julgamentos encontram respaldo no discurso médico. DO TRANSTORNO AO SINTOMA O filme apresenta a relação de diferentes mulheres com seu próprio corpo. A constante chuva, que cai no decorrer de todo o filme, pode ser considerada uma metáfora para este comportamento sem-limite que as personagens estabelecem com seus corpos. 287 Flavia Gaze Bonfim (org.) Esse transbordamento aparece como marca do que não cessa, e que insiste por meio de sintomas ligados à alimentação. No tocante à discussão sobre os sintomas alimentares, nos deparamos com essa dimensão implicada no corpo e suas determinações inconscientes. É possível acompanhar através dos hábitos da personagem Elena, que corre horas na esteira, bem como nas cenas de vômito provocado, medidas compensatórias com o objetivo de anular as calorias ingeridas. Em uma festa de aniversário insistem para que ela prove um pedaço do bolo delicioso. Inicialmente, ela resiste, depois acaba cedendo. Come, mas imediatamente vai para o banheiro. No mesmo momento sua filha Linda, sem o olhar constante da mãe, devora um pedaço do mesmo bolo. Elena arruma meticulosamente a pasta, a escova de dentes e a toalha, numa tentativa de eliminar rastros, enquanto Linda esconde a comida em seu coelhinho de pelúcia para comer escondida da mãe. O meio pelo qual a pequena Linda consegue barrar a mãe, diferenciando-se desta, é justamente através do comer. É o modo com o qual consegue posicionar-se enquanto sujeito frente a esta mãe, devastadora. Lalo, amigo de Linda, também é levado por sua mãe a um centro de tratamento para obesidade. As crianças tornam-se parceiras na luta pelo direito de comer. O menino ensina para ela o segredo de como emagrecer sem perder o prazer de comer o que gosta: mastigar, mastigar e cuspir. Assim como Matilde, que segue seu sacrifício alimentar. No momento das refeições, a jovem coloca o alimento na boca para que as irmãs do convento não percebam seu plano de jejum, mas em seguida cospe, escondendo a comida dejeto. Apesar dos transtornos alimentares levarem imediatamente às deficiências nutricionais e comprometimentos biológicos, é através do lugar conferido pela psicanálise que poderemos ponderar sobre o não assimilável que esses sintomas revelam. O corpo para a psicanálise vai além da noção de corpo enquanto organismo e seu 288 Leituras Psicanalíticas funcionamento orgânico, diz também da ideia própria de corpo enquanto afetado pela linguagem. A pulsão foi um dos conceitos fundamentais que permitiram a fundação do campo psicanalítico, diferenciando-se do campo médico, e que marca de forma indelével a especificidade das formações sintomáticas relacionadas ao corpo. Esse é um corpo pulsional, que se revela para nós por meio de uma imagem corporal. Os mais diversos registros dos fenômenos de repetição levaram Freud (1920) a propor a existência de uma pulsão de morte, sendo essa uma afirmação do que há de mais radical no desejo inconsciente. A dimensão compulsiva que se apresenta como estranha e não simbolizável seria uma característica fundamental da pulsão de morte, ou seja, uma saída possível para o excesso pulsional que se faz presente por meio de uma compulsão a repetir. Deste modo, Freud ampliava o conceito de satisfação substitutiva passando a comportar os paradoxos da pulsão como sendo algo de estranho e irreconhecível. O que começava a acenar nas formações sintomáticas e que não se sujeitavam à cura, mas se prestavam a permanentes deslocamentos. Para Lacan, a linguagem é o que circunscreve o real do corpo, real este que está para além do nosso acesso direto. Nos casos de sintomas alimentares, o corpo captura a atenção. Fica evidente nos sintomas de anorexia e bulimia que, na busca pelo emagrecimento, o controle sobre o corpo ocupa um lugar privilegiado. Neste sentido, há uma inversão em relação ao domínio do Outro, trata-se, nos termos de Recalcati (2008), de um curto-circuito na demanda que, ao não interagir com o Outro, acaba sendo uma maneira de anular o Outro. Por isso mesmo, Lacan (1956-1957/1995) entende o sintoma anoréxico como um “comer nada”, e não como um não-comer. Sobre o sintoma da compulsão alimentar, segundo Birman, essa seria uma modalidade de agir caracterizada pela repetição, já que o alvo da ação não é jamais alcançado: “Daí a sua repetição 289 Flavia Gaze Bonfim (org.) incansável, sem variações e modulações, que assume o caráter de imperativo” (BIRMAN, 2012, p. 84). Recalcati (2002) afirma que a dinâmica em jogo na compulsão alimentar estaria, em última análise, referida à instauração da referência à alteridade, o que forneceria ao sujeito recursos simbólicos para lidar com a frustração resultante da impossibilidade de preenchimento e satisfação da demanda. Nesse sentido, Recalcati nos aponta que o corpo obeso e a própria fome parecem manifestar o real acéfalo da pulsão, no ponto em que não há a captura pela linguagem, evidenciando a estreita relação entre o corpo somático e o corpo pulsional da psicanálise. Os sintomas contemporâneos evidenciam os sintomas alimentares, onde há a presença recorrente de episódios de compulsão por comer, assim como casos de anorexia e bulimia, em que a compulsão é seguida de métodos compensatórios, que fazem com que não haja uma alteração significativa de peso. Tais sintomas sugerem que já não se trata de saber se é possível ampliar a margem do que pode ser simbolizado, o que seria coerente com a estratégia freudiana, mas de ampliar a própria noção de sintoma, que já não seria um representante simbólico do sujeito, mas uma forma de gozo pulsional, sem mediação discursiva (BARROS, 2002). Na conferência “Os caminhos da formação dos sintomas” (1917), Freud faz claramente uma distinção entre os sintomas e a doença, sustentando que a eliminação dos sintomas não é a cura da doença, pois permanece a capacidade de gerar novos sintomas. Em qualquer sintoma há algo de compulsivo, uma vez que surge como algo que escapa ao sujeito, que excede. A clínica dos sintomas alimentares nos coloca frente a um vazio que demanda articular as mudanças na pós-modernidade a esses impasses clínicos, necessitando muitas vezes do psicanalista o manejo na elaboração da construção da demanda. 290 Leituras Psicanalíticas Os corpos também estão inseridos segundo o contexto social, cultural, religioso, entre outros. É possível observar reiteradamente durante todo o filme a cobrança social. Outro discurso que aparece é o médico, um discurso assimilado socialmente que sugere normas de saúde e alimentação que valha para todos. É notório que, atualmente, há a predominância de intervenções terapêuticas voltadas para a mudança comportamental, sem que haja uma escuta mais atenta que possa acolher a complexidade dos sujeitos, seus comportamentos e seus hábitos. CIÊNCIA E CULTURA CONTEMPORÂNEAS No filme, as mães levam suas crianças a um centro de tratamento que é anunciado na mídia como oferecendo a solução permanente para obesidade. A campanha publicitária da milagrosa “Betty Lang” tem pegada caricata e oferece um emagrecimento efetivo, rápido e sem esforço. Lê-se na tela: “Chega de batalha!” A promessa é de que, aderindo ao programa, seria possível facilmente emagrecer, assim como pessoas do mundo todo que conseguiram. Elena pede que a meta de emagrecimento semanal de sua filha seja dobrada e ouve após um segundo de hesitação: “Ok. Vamos tentar agradar a mamãe. Se você conseguir, vai ganhar um prêmio. O sorvete com calda vermelha da Betty!” Após o fracasso em suas infindáveis tentativas de fazer a filha perder peso, Elena resolve em seu desespero apelar para a busca de uma intervenção cirúrgica. A patologização da obesidade é construída disfarçada de discurso sobre saúde e cuidados médicos a partir da hipótese de que um corpo não obeso é livre de doenças, excluindo a problematização da moralidade sobre este corpo (SEIXAS; BIRMAN, 2012). A sociedade atual reflete as incidências do discurso da ciência. Este discurso foi sendo incorporado aos modos de vida, gerando uma demanda de quantificação. A linguagem matemática traz paz, afirma 291 Flavia Gaze Bonfim (org.) Miller (2007-2008), propondo uma reflexão acerca do discurso da ciência contemporânea. Supõe-se que esta ciência seja imaculável, que uma vez comprovada não há mais nada a fazer a não ser aceitá-la. Embora seja inquestionável a importância dos avanços científicos para a nossa era, a dinâmica do inconsciente não se presta a essas leis, escapando. Cabe ao psicanalista sustentar esse ponto frente a uma suposta possibilidade de empresariamento dos seres, propagada pela lógica neoliberal que deixa marcas na subjetividade de seu tempo. Essa intenção da homogeneidade do discurso tende a quantificar a qualidade, tendo implícita a ideia de um suposto medir de subjetividade, encontrando variáveis em sentimentos, pensamentos, entre outros. Disto resulta uma popularização de conceitos e uma série de distorções, bem como a criação de crenças e práticas a partir dessas. O ser humano contemporâneo é levado a se imaginar como uma máquina e, deste modo, a buscar um suposto conserto para seus maus hábitos. Como se fórmulas assertivas propostas por esses ditames e por discursos incisivos pudessem dar conta de controlar o sujeito, seu inconsciente e seu desejo. As ciências humanas e sociais tratam a alimentação como um fenômeno de difícil abordagem justamente pela importância social da comensalidade. Portanto, é preciso trilhar o caminho traçado pelo desejo para desvincular da demanda de cura – o que pode ser endereçado ao analista, e que constitui um aspecto importante na determinação das práticas alimentares. A psicanálise pressupõe um sujeito singular, que está agarrado ao significante sendo, deste modo, um sujeito não homogeneizável, não categorizável. O diagnóstico, por exemplo, como pertencente ao método psicanalítico, é apenas um indicador como possível direção de tratamento. O corpo que não se deixa domar é também deduzido da lógica capitalista, da biopolítica e do controle religioso – enquanto meio para ascender à pureza e transcender a própria humanidade. O drama 292 Leituras Psicanalíticas contemporâneo se manifesta em toda uma série de táticas e estratégias de estilização corporal. Tais práticas obsessivas buscam concretizar um sonho que ainda continua parecendo impossível: o de dominar essa carnalidade inefável e incômoda, submetida à dinâmica abjeta das secreções e da decomposição orgânica. A luta desigual contra a teimosia da carne, visa atingir uma virtualização imagética tão descarnada como desencarnante (SIBILIA, 2004). OUTROS HÁBITOS Gustavo (Marco Antonio Treviño), pai de Linda, aparece na história não para barrar as intervenções de Helena em relação à filha, mas sim como o marido insatisfeito que encontra em outra mulher sua satisfação sexual. Gordinha (Milagros Vidal), como era chamada, ao contrário de sua esposa, é uma jovem com formas curvilíneas. Em uma das cenas de sexo do casal a comida contorna a relação, ganhando ares de prazer e erotismo. Revelada esta outra face, essas delícias espalhadas pelo corpo são devoradas, o que confere sensualidade e uma nova nuance no comer junto. O alimento, comumente, é tratado como utilitário e funcional, representado como um combustível que alimenta a máquina-corpo. Sua função seria a de melhorar o funcionamento da engrenagem e turbinar a performance humana. A psicanálise tem nos mostrado que a existência de tal unidade funcional chamada de corpo é uma ilusão com a qual também nos identificamos. Por sua implicação em uma estrutura de discurso responsável pelo laço social, o corpo para este ser de fala e de sexo perde sua condição natural, ficando submetido a uma estrutura discursiva. O corpo que sofre a ação de uma trama simbólica é um corpo submetido ao desejo. Nos desafios da clínica atual estão os sintomas alimentares, o que evidencia uma posição do sujeito contemporâneo diante da pouca 293 Flavia Gaze Bonfim (org.) unidade dos significantes-mestres, um gozo pulsional sem mediação discursiva. No que diz respeito à constituição da imagem corporal, algo desse excesso pulsional do corpo retorna para o sujeito como uma estranheza, imagem vista como imperfeição. Ainda que não se esgote a compreensão das questões relacionadas ao corpo, os sintomas alimentares denunciam um suposto ideal de corpo que ocupa lugar central na nossa cultura e conduz a elaborações importantes nesse cenário saturado de imagens. Por trás do imperativo de um determinado modelo tido como belo, há um grande mercado que sugere ao mesmo tempo que o sujeito deve atingir essa transcendência impossível para um corpo sem suas corporeidades, lidando com esse como a gestão de um corpo máquina e se mantendo saudável dentro de uma “adaptação compulsiva à norma” (SIBILIA, 2004, p. 73). A continuidade da vida pode ser colocada em risco para os que seguem obstinadamente essa imagem de corpo vendido como ideal, sinônimo de uma aparição espetacularizada. Essa lógica da estetização da saúde porta em si um aspecto cruel e perverso do modo de viver. A psicanálise, no entanto, está interessada em algo que se apresenta de maneira muito singular na história de cada um, no que tange ao corpo e na relação com o Outro. Assim, as consequências da perspectiva do inconsciente permitem situar a relação do sujeito a uma outra cena, de sua experiência singular com o desejo. REFERÊNCIAS BARROS, R.R. Compulsões, desejo e gozo. In: Revista Latusa, n. 7, 2002. BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. FREUD, S. Além do Princípio de Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1987. p. 13-85 FREUD, S. Conferência XXIII Os caminhos da formação dos sintomas (1917). In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 294 Leituras Psicanalíticas LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. MILLER, J.A. Curso de Orientação Lacaniana, lição VI e VII. 2007-08. RECALCATI, M. Clinica del vacío: Anorexias, dependencias y psicosis. Madrid: Editorial Síntesis, 2008. RECALCATI, M. O “demasiado cheio” do corpo: por uma clínica psicanalítica da obesidade. In: Revista Latusa, n. 7, 2002. SEIXAS, C.M.; BIRMAN, J. O peso do patológico: biopolítica e vida nua. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 13-26, 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/ S0104-59702012000100002. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 59702012000100002&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 18 fev. 22. SIBILIA, P. O pavor da carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo-imagem contemporâneo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 25, p. 68-84, 2004. 295 NOTAS SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA DA OBESIDADE: O CORPO GORDO, O GOZO E O FEMININO Daiana Macharet Soares71 Maycon Rodrigo da Silveira Torres72 Júlia Reis da Silva Mendonça73 INTRODUÇÃO O tema obesidade é discutido mundialmente devido ao aumento de pessoas obesas, sendo definida como o acúmulo excessivo de gordura no corpo: “uma pessoa obesa é definida, convencionalmente, como aquela que pesa 20% a mais do que o peso padrão específico com relação ao sexo, altura e estrutura corporal.” (FLAHERTY & JANICAK, 1995). Ainda que haja diversos campos de estudo em relação a obesidade, a psicanálise se interessa por investigar os fatores emocionais, subjetivos, inconscientes, relacionados à obesidade, dentre eles a compulsão alimentar, em que os sujeitos sentem a necessidade de comer excessivamente mesmo quando não está com fome, sem vontade, sem prazer: “nos casos dos pacientes ditos obesos a compulsão comporta uma satisfação que ultrapassa o princípio de prazer” (SEIXAS, 2019). O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o tema a clínica da obesidade para a psicanálise a partir de um caso clínico de uma mulher, que evidencia a relação do corpo gordo com a presença excessiva de sua mãe, com o gozo e com o feminino. Sobre a sexualidade feminina, Freud (1931/1996) ressalta que a psicanálise não tem como objetivo dizer o que é a mulher, e sim questionar Psicóloga. Psicanalista. Pós-graduanda em Fundamentos da Clínica Psicanalítica (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/3186486945875512 72 Doutor em Psicologia (UFF). Psicólogo. Psicanalista. Professor e Coordenador (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/7552210600986070 73 Doutora em Psicologia (UFMG). Psicóloga. Psicanalista. Professora (UNESA e FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/3734634648624758 71 296 Leituras Psicanalíticas como a mulher se desenvolve e como este se relaciona com a separação do sujeito do Outro materno. Diante do fenômeno que marca a clínica da obesidade, o comer compulsivo, a psicanálise formula conceitos importantes para o manejo clínico com esses sujeitos tais como a compulsão à repetição, o prazer e o desprazer, a posição do sujeito diante da demanda do Outro, o sintoma e o corpo. Contudo, na clínica com mulheres obesas há um ponto a mais a investigar, como a relação desses sujeitos com o Outro materno se relaciona a compulsão por comer? DESENVOLVIMENTO A pergunta “o que quer uma mulher?” orienta os estudos de Freud sobre o feminino e o direciona para o desenvolvimento das particularidades do complexo de Édipo da menina. O complexo de Édipo se coloca para ambos os sexos, mas o que os diferencia é a dialética da castração, ou seja, como cada um se posiciona em relação ao falo - falo enquanto um significante -, um representante do órgão, mais-além do pênis. Freud (1923/1996), no texto “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, introduz um acréscimo à teoria do complexo de Édipo ao pontuar que a organização da sexualidade infantil ocorre em torno da fase fálica e não do primado dos genitais: “para ambos os sexos, entra em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (FREUD, 1923/1996, p. 158). Desse modo, a menina, ao se deparar com a falta do falo, visto que os meninos o possuem e ela não, será tomada pela “inveja do pênis” e assim irá em direção ao pai, abandonando, assim, seu primeiro objeto de amor. A teoria freudiana dirá que a menina terá que fazer um duplo esforço de transformação para tal, pois o desapontamento gerado pela falta fálica não só gera o afastamento da mãe, como também cessa a masturbação clitoriana dirigindo-se para a vagina. No entanto, essa 297 Flavia Gaze Bonfim (org.) ruptura do laço afetivo com a mãe não é uma tarefa fácil, e sim atravessada pela hostilidade. Marcada, assim, pela falta-a-ter, as mulheres buscam diferentes saídas (CAMPISTA & CALDAS, 2013). Contudo, faz-se importante destacar que as formulações sobre a sexualidade feminina apresentam acréscimos e avanços na teoria psicanalítica, principalmente com as contribuições lacanianas (LACAN, 1972-73/1982) apresentadas em O seminário, livro 20: mais ainda. Lacan apresenta nesse seminário as fórmulas da sexuação, em que apresenta o lado do homem e da mulher para além dos aspectos anatômicos. Trata-se de posições subjetivas que os sujeitos podem ocupar em face da sexualidade. A divisão do sujeito ante o sexual não é uma divisão entre os dois sexos, mas entre dois modos gozos: enquanto do lado do homem o gozo aparece limitado pelo significante fálico, um todo fálico, do lado da mulher encontra-se um gozo que vai além do falo, um gozo Outro, suplementar, o gozo não-todo (LACAN, 1972-73/1982). Quando retomamos algumas referências na história da obesidade, observa-se a existência de estátuas de mulheres obesas encontradas na Babilônia e Egito. Então, na antiguidade havia uma admiração pelo corpo feminino obeso, que estava ligado a um ideal de abundância e fertilidade, tal como descrito por Varela (2006). Com o passar do tempo esse ideal de um corpo obeso simbolizando abundancia será visto pela medicina como um distúrbio emocional causado pelo estresse. Segundo a autora, o aumento do número de pessoas obesas atingiu vários países durante o século XXI e se tornou uma questão de saúde pública. Soma-se a este problema, nos dias atuais, a pressão da cultura à adequação do corpo a um ideal de beleza do corpo magro, de forma que a obesidade passou a ser vista de forma negativa, gerando um mal-estar diante das cobranças exigidas pela sociedade. A obesidade na clínica psicanalítica não está somente ligada ao excesso de peso adquirido pelo alto consumo de calorias através de alimentos, especialmente os industrializados, mas considera-se também a relação do sujeito com esse objeto privilegiado de satisfa298 Leituras Psicanalíticas ção e de prazer (a comida). Relação esta que aponta para um comer compulsivo, que os sujeitos definem como um descontrole. Em função dessa característica de compulsão e impulsividade em relação ao objeto-comida, podemos depreender uma fixação no objeto e uma repetição em seu consumo que não se satisfaz, afinal, conforme afirmado por Freud e retomado posteriormente por Lacan ao desenvolver o conceito de objeto da pulsão: não há nenhum objeto que satisfaça completamente a pulsão, “nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão. A boca que se abre no registro da pulsão não se satisfaz com alimento” (LACAN, 1964/1985, p. 150). O comer compulsivo e repetitivo evidencia, assim, uma posição passiva do sujeito obeso, que se expressa em diversos aspectos de sua vida expressa através de uma dificuldade de dizer não para o Outro; e, em mulheres obesas, uma difícil relação com o Outro materno, para qual o sujeito ocupa a posição de objeto de gozo. Desse modo, considerando os estudos de Freud acerca da sexualidade feminina, o presente capítulo tem como objetivo pensar uma direção de tratamento em relação ao fragmento de caso clínico apresentado neste capítulo, cujo “tornar-se mulher” parece depender dessa separação em relação à mãe. Da mesma forma, pretende discutir como o difícil manejo clínico passa pela construção de uma demanda de análise que possa articular o mal-estar do corpo-gordo no contemporâneo, que não se adequa aos ideais de beleza, com um sintoma analítico (RECALCATI, 2003). RECORTE DE UM CASO CLÍNICO: “BUSCO NA COMIDA UMA COMPENSAÇÃO” Jéssica, nome fictício, é uma jovem de vinte e sete anos, que apresenta como queixa principal o ciúme que sente do seu namorado. Em uma situação específica ela sente muita raiva e ciúmes quando o namorado conversa com uma amiga sua que é “gorda”, e ela diz “não me conformo em ser trocada por uma pessoa pior do que eu”, “mais gorda do que eu”. 299 Flavia Gaze Bonfim (org.) A paciente mora com sua mãe e um irmão mais novo. A diferença de idade entre ela e o irmão é superior a dez anos e a paciente relata que sua relação com o irmão é permeada de conflitos, na medida em que ela, por vezes, ocupa o lugar de educadora dele. Foi ela quem ajudou sua mãe na criação do irmão, quando ela se separou de seu pai. Jéssica levava seu irmão para a escola, para passeios etc. Em alguns momentos da sessão, Jéssica reclama da mãe cobrar dela os cuidados pelo irmão, a tal ponto que ela muitas vezes se sentia mais responsável por ele do que a mãe. Contudo, apesar de se queixar do excesso de cobrança, ela também assume o lugar de parceria com ela, no que se refere aos cuidados com ele. Muitas vezes, em discussão com a mãe, escutava “você é igual ao seu pai”, o que a incomodava a ponto de chorar desesperadamente. Ao ser questionada pela analista em que ela seria igual ao pai, a paciente responde “no físico”, “no corpo”. Parece que sua mãe fala essa frase toda vez que ela a contraria. A paciente dizia que não gostava de se olhar no espelho por enxergar tamanha semelhança física com o pai, que também era obeso. A paciente identifica que a semelhança física com o pai se localiza principalmente na barriga. Além disso, lembra de inúmeras brigas entre seus pais, em que muitas vezes ela própria intervinha para defender a mãe. Essa posição também se repete em outras relações, principalmente no trabalho, em que comenta que sua chefe vive pedindo para que ela realize suas tarefas e quando não faz, fica insatisfeita. Ela diz que percebe essa “insatisfação” do outro pela sua expressão facial, definida por ela como “cara de cu”, “um bico que se faz com a boca”, mesma frase usada em relação à expressão facial que sua mãe faz quando é contrariada pela filha. Essa expressão parece revelar à paciente que ela não está agradando o outro. Com o avançar da análise, a paciente reconhece que se preocupa demasiado em agradar o outro, que tem dificuldades de dizer não e que quando percebe que o outro está insatisfeito, ou seja, quando não 300 Leituras Psicanalíticas consegue responder a demanda do outro, ela busca “na comida uma compensação”, ainda que não saiba dizer o quê estaria buscando compensar. A partir daí a paciente começa a falar da dificuldade de olhar-se no espelho e das críticas que recebe do outro, principalmente da mãe e de ex-namorados, em relação ao seu excesso de peso, alegando ter vergonha de seu corpo. Como solução, começou a usar camisas mais largas para esconder o seu corpo. Nesse sentido, Recalcati (2003) afirma que a clínica da obesidade aponta para uma clínica do olhar e nos surpreende por seu caráter obsceno, pois “o corpo obeso produz vergonha e marginalização (...) a evidência horrorosa da obesidade se configura mais como uma autêntica devastação da imagem, como um triunfo do obsceno em relação ao ideal” (p. 274). A paciente relata que desde a infância é “gorda” e que a mãe a submetia a dietas rigorosas e a idas constantes a nutricionistas e academias. Ela se recorda que chorava por estar com fome, e que quando conseguia ficar sozinha, comia compulsivamente, o que revela a marca da compulsão à repetição e um empuxo a um gozo mortífero. Esse corpo-gordo indica uma queda do domínio do eu e uma posição de objeto de gozo do Outro materno, em que o sujeito ao se manter “sob o imperativo massivo da demanda do Outro” (GUIMARÃES, 2007, p. 5) se afasta do campo do desejo. Diferente da anorexia onde o corpo-magro é um significante da beleza feminina e que guarda uma relação estrutural com a castração, mas pela via da recusa, do não, a obesidade, de modo contrário, está orientada pela “lógica fálica do masculino” (RECALCATI, 2003, p. 289), pela incorporação/retenção dos objetos, de modo que “o cheio do corpo-gordo é simplesmente o índice unilateral de uma negação brutal da subjetividade” (p. 276). Desse modo, Recalcati (2003) assinala que a obesidade está mais próxima do masculino do que do feminino, pois se trata da apropriação ou do gozo do objeto ao invés de buscar a falta do Outro. 301 Flavia Gaze Bonfim (org.) OS PROCESSOS DE ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO NA CLÍNICA DA OBESIDADE No texto “Sexualidade Feminina”, de Freud (1931/1996), a temática do feminino já era acompanhada de certo enigma. Sua descrição como “um continente negro” revela que há uma diferença no complexo de castração para o menino e a menina. O menino, assim como a menina, tem como primeiro objeto de amor a mãe. Contudo, com o advento da castração, a menina substitui a mãe pelo pai como seu novo objeto de amor e toma sua mãe como rival, sendo tomada por um sentimento de raiva pela mãe. Lacan (1957-58/1999), ao retomar Freud para analisar o complexo de Édipo, apresenta o pai como uma função: a função paterna. Esse pai, nomeado como pai simbólico, é aquele que, através de uma operação simbólica, proíbe o incesto e interdita o desejo da mãe e, dessa forma, possibilita a dissolução do complexo. Assim, ao ser barrado pelo pai, que instaura tanto a Lei como o desejo para o sujeito, o menino acaba se identificando com o pai, o que marca a dissolução do complexo de Édipo, em que põe fim ao desejo erótico pela mãe. Para Freud (1931/1996), a compreensão da sexualidade feminina passa pelo complexo de Édipo, mas tem suas vicissitudes. O complexo de Édipo exigirá da menina um duplo esforço para o seu processo de tornar-se mulher, em que terá de abandonar a erotização clitoriana para a erotização vaginal. Essa travessia também deverá ser feita pela mudança de objeto amoroso, na medida em que a menina substitui seu primeiro objeto de desejo, a mãe, pelo pai. Essa transição se coloca como um movimento importante para seu desenvolvimento como mulher. Zalcberg (2003) apresenta que para Freud a menina é um menino antes de se transformar em mulher. A primeira formulação da sexualidade da menina é inicialmente viril, expressa pela zona erógena do clitóris, por meio da qual obtém satisfação erótica. Essa atividade sexual está relacionada diretamente aos impulsos sexuais dirigidos à mãe. Con302 Leituras Psicanalíticas tudo, ao abandonar a mãe como seu primeiro objeto de amor e dirigir ao pai seus investimentos pulsionais, a menina terá que abrir mão de sua sexualidade ativa, passando da satisfação do clitóris para a vagina. Nessa relação com o pai, a menina renuncia a sexualidade ativa (masculinidade) e também a satisfação em corresponder a mãe ativamente. Ao retomar o caso clínico da paciente Jéssica, a analista percebe, através de seu discurso, um retorno dessa sexualidade ativa ao corresponder o Outro materno quando a mesma diz que: “não me sinto valorizada, faço tudo que ela me pede, mas nunca está satisfeita...”. Isso mostra o quanto a paciente está ainda voltada para as demandas da mãe. Parece que no momento edípico em que a paciente faz um percurso em direção ao pai, há também um retorno em direção a mãe, a qual permanece fixada. Freud (1931/1996) assinala que na fase do complexo de Édipo normal, a criança está ligada amorosamente ao genitor do sexo oposto e mantém uma relação de hostilidade com o genitor do mesmo sexo. No caso da paciente Jéssica, esta relata que sente “raiva” tanto do pai como da mãe; do pai, pois o culpa por fazer a sua mãe sofrer quando a traía com outras mulheres, e da mãe, que permanecia casada com um homem que “não a valorizava”. A raiva em relação à mãe retorna em diversos momentos, quando ela sente que não recebe o olhar de valorização da mãe apesar de todo o esforço que ela faz para agradá-la. Freud (1905/1996) faz algumas ponderações acerca da inveja do pênis no texto “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, em que alega que a menina ao ver que seu genital é diferente do menino, reconhece imediatamente que ela não tem (o falo), porém mantém um intenso desejo de tê-lo. Se no menino o complexo de castração é regido pela angústia, na menina é a inveja do pênis, como podemos observar no caso da paciente, que diz não entender o que sua mãe enxerga nos homens que não a valorizam. Em “A Dissolução do Complexo de Édipo”, Freud (1924/1996) conclui que o término da fase edípica no menino se dará pela cas303 Flavia Gaze Bonfim (org.) tração quando este for movido pelo medo de que o seu pai o castre por desejar a mãe, pondo fim, assim, ao referido complexo. Porém, na menina, este é o início do complexo, vivenciando assim um destino diferente do menino diante da trama edipiana. A menina então, ao se ver castrada, consola-se com a esperança de que mais tarde terá a posse fálica de volta. Contudo, observamos que a saída edípica da paciente revela um retorno à mãe, agarrando-se à posição de masculinidade, e que, ao se fixar nessa posição, a menina pode se identificar à mãe fálica ou ao pai (ANDRÉ, 1987). A paciente Jéssica parece ter uma identificação ao pai, ao se ver algumas vezes na posição de marido da mãe, em que traz para si o peso da responsabilidade de ter que pagar as contas da casa e cuidar do irmão. A mãe cobra dela que ensine os deveres de casa ao irmão. Essa identificação é reforçada pelo discurso da mãe que sempre a compara com o pai, o que a incomoda. Contudo, ao mesmo tempo que se identifica ao pai e assume uma posição fálica, ela sente raiva por ficar neste lugar. Os sentimentos de raiva e frustração são “compensados” por ela pelo comer em excesso. Podemos associar esse comer sem limites com o conceito de afânise, de fading, de desaparecimento do sujeito, apresentado por Lacan (1964/1985) em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ao discorrer sobre a alienação e a separação. Essa referência nos permite entender o excesso de peso como um sintoma que revela uma escassez de recursos simbólicos para lidar com a castração, com a falta (ZUCCHI, 2002). Assim, em função da tentativa de escapar da castração, os sujeitos obesos se mantêm alienados ao Outro e através do fading escapam da responsabilidade no ato compulsivo de comer. A constituição subjetiva se inicia, em um primeiro momento, a partir do processo de alienação, ou seja, da identificação do sujeito com um ideal. Essa identificação precipita a possibilidade de um reconhecimento primitivo de si como indivíduo e unidade psíquica. Lacan (1964/1985) utiliza a teoria dos conjuntos a fim de elucidar a lógica 304 Leituras Psicanalíticas presente na operação de alienação. A alienação se funda na reunião, em que, não importa o que se escolha, há por consequência um nem um nem outro. Parte-se, então, de dois conjuntos: o do ser (sujeito) e o do Outro (sentido). O sujeito deve escolher entre o ser ou o sentido. Se escolher o sentido, que remete ao Outro da linguagem, ele se constitui como tal, como dividido, sujeito do inconsciente. Mas, se escolher ser, ou seja, não se alienar ao campo do Outro, não se constitui como sujeito. Barros & Ligeiro (2020), no artigo “O que é ser uma mulher? Entre o enigma e o desamparo”, diz que o Outro é o lugar de significantes, conjuntos de termos que não aparecem sozinhos, mas remetem a outros termos. Assim, ao nascer o bebê já está inserido na linguagem, marcado pela fantasia dos pais, da cultura ou da época. É então no campo do Outro que o sujeito se constitui e em que o pequeno outro se configura como semelhante a partir das relações imaginárias e especulares. Segundo a autora, o desejo do sujeito está relacionado diretamente ao desejo do Outro, o que gera o sentimento de angústia, na medida em que não se sabe o que esse Outro quer dele, não sabe que objeto ele quer para saciar o desejo. A experiência de alienação caracteriza, então, uma “dependência significante ao lugar do Outro” (LACAN, 1964/1985, p. 196); esta petrificação do sujeito é correlata a seu desaparecimento, ou, a sua afânise. Essa dependência pode ser observada no caso de Jéssica, que fica fixada na demanda materna, na tentativa de completar a falta desse Outro que lhe causa tanta angústia. Cunha (2017) aponta que mulheres obesas tem uma relação a céu aberto com o Outro materno e a presença paterna é uma figura apagada. São mulheres que se deixam devorar por suas mães, por suas demandas e também a dos seus familiares. Sustentam na relação com o Outro uma posição de que sempre tem para dar, não conseguindo dizer não. Assim, encarnam a fantasia de um Outro que tudo provê. De modo contrário, a operação de separação se funda na interseção, ou produto, em que a circularidade da relação entre o sujeito e o 305 Flavia Gaze Bonfim (org.) Outro tem fim. O que possibilita a separação é o furo nessa relação de interseção, que surge a partir do encontro com o desejo do Outro, com a falta do Outro, que revela ao sujeito um Outro barrado, e que permite ao sujeito sair do lugar de objeto e assumir a condição de sujeito desejante. Assim, enquanto a anorexia é marcada por uma recusa, pelo não, por uma tentativa de separação do Outro, a obesidade traz uma impossibilidade de recusa, de dizer não ao Outro (materno), colocando assim o sujeito no campo da alienação, em que fica preso a demanda do Outro: “na obesidade o que se destaca principalmente é a devoração, a incorporação infinita, a impossibilidade de recusar o objeto-alimento, o ter que dizer sempre ‘Sim!’” (RECALCATI, 2003, p. 281). No caso de Jéssica, ela se identifica a essa nomeação dada pelo outro “sou gorda”, que traz uma marca identificatória com o pai, afastando-se, assim, do campo do feminino, da falta e do desejo. Como uma das saídas do Édipo apontadas por Freud (1924/1996) é que podemos pensar que Jéssica se agarra a uma masculinidade. Então, ao assumir uma posição fálica ela mascara sua feminilidade, o que a impede de migrar para a feminilidade, dificultando assim seu processo de tornar-se mulher. Essa separação/corte é tão difícil de ser feita em relação ao Outro materno, que toda vez que Jéssica ameaça sair de casa, a mãe coloca inúmeros obstáculos que acabam pondo em dúvida o seu desejo. A paciente apresenta angústia diante da hipótese de separação, ao mesmo tempo que diz querer sair de casa. Parece não conseguir sustentar seu lugar de sujeito desejante, fazendo-a retornar à posição de objeto de gozo. A aposta do trabalho analítico é tentar sustentar o desejo da paciente e possibilitar um apaziguamento da angústia que aparece toda vez que quer se separar da mãe, a fim de que se aproxime do campo do feminino, do desejo e de uma construção singular de um savoir-faire (saber-fazer) com o real. Zalcberg (2003) fala que essas fixações podem impedir o desenvolvimento da feminilidade, criando conflitos internos que impeçam a mulher de seguir no seu processo de tornar-se mulher. Esta pode manter 306 Leituras Psicanalíticas uma falsa segurança com sua masculinidade, o que a arrastaria para um naufrágio, dificultando sua separação com a mãe. Essa dificuldade de separação explicaria a expressão de uma ligação profunda para ambas, gerando um ressentimento do qual a filha não consegue se desatar. OUTRAS PERSPECTIVAS Atualmente, Jéssica pensa em fazer a cirurgia bariátrica. Parece que esse desejo comporta uma tentativa de se separar da mãe, ainda que esta insista que ela não faça, pois tem medo que ela morra. A paciente começa a falar do desejo de fazer a cirurgia após um diagnóstico médico que conclui que seu excesso de peso está afetando algum de seus órgãos, principalmente o fígado, que se encontra com aumento significativo de gordura com risco de desenvolver cirrose. Segunda a opinião médica, fazer a bariátrica seria sua melhor opção, devido ao estado crítico do fígado. Diante dessa avaliação, Jéssica fica assustada, mas se reposiciona ao falar que deseja fazer a cirurgia não só por uma questão estética, mas principalmente por causa de sua saúde que se encontra debilitada. Percebe-se que, quando algo esbarra na saúde faz com mova-se em direção ao desejo, saindo um pouco desse lugar de objeto de gozo do Outro, pois mesmo diante da negativa da mãe com relação a operação, a paciente não recua. Se antes a vontade de fazer bariátrica aparecia na intenção de agradar o Outro materno, devido às cobranças excessivas de emagrecer, agora, mesmo com a desaprovação materna, a paciente não parece desistir do que quer. A paciente ainda não fez a operação, devido aos processos burocráticos do seu plano de saúde, porém é perceptível ver sua mudança subjetiva indo em busca do que deseja. Em análise a paciente começa a questionar sua posição tão passiva diante do Outro, e o quanto é impossível agradá-lo. Isso parece abrir uma brecha para que a paciente comece a bancar o que deseja independente se vai deixar esse Outro materno satisfeito ou não. 307 Flavia Gaze Bonfim (org.) REFERÊNCIAS ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Zahar, 1987. BARROS, R. M. M.; LIGEIRO, V. M. “O que é ser mulher?”-entre o enigma e o desamparo. Trivium (online), v. 12, n.1, p. 3-13, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18379/ 2176-4891.2020v1p.3. Acesso em: 8 dez. 2021. CAMPISTA, V. R.; CALDAS, H. Feminilidade: enigma e semblante. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 65, n. 2, 2013, p. 258-273. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000200008. Acesso em: 04 fev. 2022. CUNHA, M. C.C. A obesidade e o desmentido da castração: uma posição religiosa. Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana. Rio de Janeiro, v.12, n.24, p. 103-112, 2017. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_24/pdf/9-a_obesidade_e_o_desmentido_da_castracao.pdf. Acesso em: 17 jan. 2022. FLAHERTY, D. & JANICAK, P.G. Psiquiatria, diagnóstico e tratamento. Artes Médicas. Porto Alegre, 1995. FREUD, S. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924). FREUD, S. (1996). A organização genital infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923). FREUD, S. (1996). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905). FREUD, S. (1996). Sexualidade feminina. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1931). GUIMARÃES, L. (2007). Sou gorda. Agente-digital / Revista eletrônica da Escola na Bahia, v.1. Disponível em: http://www.institutopsicanalisebahia.com.br/agente/001/agente_ digital_01.pdf. Acesso em: 20 jan. 2022. LACAN, J. (1957-58). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. LACAN, J. (1972-73). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982. 308 Leituras Psicanalíticas RECALCATI, M. Clínica del vacío, anorexias, dependencias, psicosis. Buenos Aires: Manancial, 2003. SEIXAS, M.C. Dimensões clínicas do ato na obesidade: compulsão por comer e sintoma na perspectiva psicanalítica. Psicologia em Estudo, 2019. VARELA, A. P. G. Você tem fome de quê? Psicologia, ciência e profissão, Brasília, v.26, n.1, p. 82-93, 2006. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932006000100008&Ing=pt&nrm=isso. Acesso em: 17 jan. 2022. ZUCCHI, M. Algumas observações sobre a clínica da obesidade em psicanálise. Latusa, n.7, Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2002. ZALCBERG, M. A Relação Mãe-Filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. Nota: trabalho de conclusão de curso apresentado à coordenação de Pós-Graduação da FAMATH em Fundamentos da Clínica Psicanalítica. 309 SOBRE A ORGANIZADORA FLAVIA GAZE BONFIM Psicanalista. Doutorado em Psicologia (UFF). Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ). Especialização em “Psicanálise e Laço Social” (UFF). Graduação em Psicologia (UFF). Autora de artigos publicados em revistas científicas na área de Psicologia e Psicanálise. Fundadora e Responsável Técnica da SINGULAR – Centro de Psicologia e Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576 E-mail: flaviabonfimpsi@yahoo.com.br 310 ÍNDICE REMISSIVO A Adolescência 9, 48, 64, 65, 233, 237, 238, 240-242, 262 Amor 9, 24, 29, 45, 60, 86, 87, 105, 127, 152-155, 180, 182, 189, 197, 199, 217, 218, 221, 225-231, 257259, 280, 297, 302, 303 Angústia 7, 12, 18, 23, 25, 28, 31, 34, 36, 37, 39, 41-47, 49, 50, 73-76, 80, 102, 110, 172, 210, 214, 226, 227, 229, 263, 303, 305, 306 Corpo 10, 16, 20, 50, 56, 73, 74, 76, 77, 91, 112, 123, 124, 137, 138, 140, 146, 155, 156, 158, 163, 169, 171174, 177, 180, 183, 184, 200, 209, 214, 218, 219, 221, 223, 224, 226, 227, 234-243, 246, 248, 250, 251, 253-259, 262, 264-268, 277, 280, 283, 285-298, 300, 301 Cultura 32, 51, 69, 82, 110, 114, 124-128, 136, 138, 148, 165, 174, 179, 189, 199, 200, 213, 214, 226, 241, 244, 246, 250, 252, 253, 255, 256, 258-260, 270, 272, 282, 284, 291, 294, 298, 305 D DSM 7 Anorexia 289, 290, 301, 306 Demanda 10, 23, 71, 72, 79, 91, 118-121, 129, 134, 168, 176, 181183, 194, 198, 207, 213, 221, 229, 239, 240, 289-292, 297, 299, 301, 305, 306 Ansiedade 7, 12, 38-41, 44-46, 48-50, 102, 128 Democracia 101, 139, 140, 199, 200, 212, 216, 271 Análise 14, 16, 23-25, 34-36, 48-50, 56, 62-65, 72, 74, 77, 86, 90, 91, 103, 104, 110, 137, 162, 174-176, 180189, 191-194, 196, 197, 199, 202, 205, 207-209, 211, 215, 216, 224, 225, 235, 249, 260, 274, 276, 278, 281, 284, 290, 299, 300, 307 Denegação 9, 175, 182 Atualidade 47, 50, 126, 130, 139, 166, 170, 191, 194, 196, 240, 243, 275, 276 B Bulimia 289, 290 C COVID-19 7, 8, 11, 12, 26, 32, 38, 39, 41, 44, 46, 47, 49, 51, 52, 54, 65, 66, 73, 75, 96, 97, 109, 111, 146 Capitalismo 8, 53, 96, 102, 110, 114, 115, 119, 120, 134, 136, 144, 149, 151-153, 156, 157, 159-161, 163, 169, 177, 191, 199, 200, 269, 274, 276, 278, 281 Ciência 13, 17, 20, 55, 82, 93, 99, 103, 112, 114, 132, 133, 143, 145, 159, 163, 166, 168-170, 172-174, 191, 192, 200, 202, 203, 233-235, 240-243, 260, 270, 291, 292, 309 Clínica 7-14, 16, 18, 22-24, 26, 33, 37, 38, 41, 44, 46-48, 50, 52, 55-57, 62, 64, 65, 67, 74, 82-84, 86, 89, 94, 112, 123, 137, 138, 175, 181, 183, 184, 187, 190, 196, 199, 218, 222, 225, 231, 233-237, 240, 241, 263, 268, 277, 282, 284, 285, 290, 293, 295-298, 301, 302, 309 Desamparo 7, 12, 16, 23, 26, 43-51, 58, 78, 79, 82, 92, 102-104, 200, 209, 213, 219, 305, 308 Falta 8, 16, 19, 20, 23, 26, 31, 34, 44, 47, 48, 58, 61, 64, 68, 69, 71, 73-75, 108, 119-121, 129, 133, 135, 136, 141, 142, 145, 151, 168, 173, 185, 214, 217, 221, 223, 226, 229, 237, 267, 283, 297, 301, 304-306 Família 8, 29, 32, 33, 53-55, 57, 59, 61, 68, 76-78, 81, 91, 93, 101, 172, 186, 234, 264, 274, 276, 286 Feminino 10, 227, 229, 230, 234, 236, 238, 244, 245, 247-250, 257, 259, 270, 271, 281, 284, 285, 296298, 301, 302, 306 Feminismo 10, 189, 243, 259, 270, 273, 277, 284, 285 Freud 7, 13-18, 24-29, 31, 33-36, 41-43, 45, 46, 48-50, 53, 56, 57, 60, 62, 65, 66, 68, 70, 71, 73, 74, 77, 80, 82-90, 93, 94, 102, 104-110, 112, 116, 117, 122, 124-127, 129, 132, 136-139, 148, 154, 155, 162-165, 174, 175, 177-180, 182, 184, 186, 188, 189, 191, 193, 194, 196-200, 205, 207, 208, 210-215, 217-224, 226-232, 243, 245, 247-249, 260, 269, 271, 273-275, 277-281, 283, 285, 289, 290, 294, 296, 297, 299, 302, 303, 306, 308 G Desejo 7, 8, 10, 14, 19, 21-24, 26, 28, 29, 34, 36, 37, 45, 62, 64, 67, 68, 70-75, 77-79, 95, 100, 114-116, 119-122, 133, 135, 136, 145, 152, 153, 166, 168, 170, 173, 181, 186, 196, 202, 208, 209, 217, 221, 223, 224, 227-230, 255, 268, 271, 286, 289, 292-294, 301-303, 305-307 Gozo 9, 10, 22-24, 32, 69, 72, 78, 126, 130, 132, 133, 136, 137, 145, 147, 149, 152, 153, 155, 156, 159161, 163-174, 178, 202, 208-211, 213-218, 222-224, 226, 227, 230, 242, 244, 247, 250-259, 267, 268, 290, 294, 296, 298, 299, 301, 306, 307 Desigualdade social 159, 160, 276 Gênero 9, 33, 37, 169, 178, 188, 195, 209, 234, 235, 237, 238, 242-247, 249-251, 253, 259, 260, 262, 271, 272, 274, 275, 278, 279, 281, 283 Diferença sexual 10, 77, 241, 242, 244-247, 249, 253, 254, 272, 276 Direção de tratamento 7, 11, 33, 34, 292, 299 I Discurso do analista 9, 114, 132, 149, 164-166, 170, 171, 173, 174 Infância 43, 45, 48, 49, 56-58, 60, 64, 66, 68, 70, 71, 79, 112, 172, 237, 241, 242, 255, 261, 269, 286, 301 Discurso universitário 114, 165-168, 172-174 Intersexo 9, 233-237, 241-243, 245 Docilidade 8, 104, 106, 138 Dominação masculina 10, 270273, 276 E Eficácia 8, 59, 109, 110, 138, 145, 146 Empresa-de-si 8, 145-147 F Fake news 9, 26, 200, 201, 203, 209, 214-216 L Lacan 7, 12, 13, 15-21, 23, 25, 26, 28-31, 35-37, 50, 68, 69, 71, 73-75, 77, 80, 82, 83, 86, 90-92, 95, 107, 111, 114, 115, 120-122, 130-132, 137-139, 142-145, 148-153, 155157, 159, 160, 162-168, 170-172, 174, 179-182, 187, 189, 191, 193, 195-200, 210, 217, 222-224, 226, 227, 229-236, 243, 245, 249, 250, 254, 255, 260, 263, 267-269, 271, 272, 276, 289, 295, 298, 299, 302, 304, 305, 308 311 Laço social 7, 8, 76, 79, 83, 93, 101, 103, 114, 115, 122, 128-130, 133, 138, 140, 145, 149, 152-155, 160, 162-166, 168, 180, 182, 183, 187, 191, 196, 198, 200, 208, 252-254 Liberdade 8, 47, 48, 59, 62, 92, 96, 98, 101, 109, 110, 128, 144, 155, 169, 213, 214, 240, 277, 283 Luto 7, 8, 12, 22, 26-37, 49, 52-55, 57, 58, 60, 62-65, 81, 83-95, 102, 108, 110 M Masculino 223, 227, 229, 234, 236, 238, 239, 244, 247-250, 252, 271, 297, 301 Melancolização 8, 96, 97, 99, 107-110 Mercados comuns 8, 138, 139, 143, 147, 159 Morte 8, 16, 26, 29, 35, 36, 44, 46, 48, 52-66, 82, 85, 91-94, 108, 125, 126, 143, 146, 148, 155, 191, 197, 222, 226, 246, 252, 289 Mulher 29, 72, 183, 218, 224, 226228, 232, 246-248, 250-254, 260, 265, 270, 272-275, 277-285, 293, 296-299, 302, 305, 306, 308 Mídias sociais 8, 9, 44 N Neoliberalismo 8, 96-101, 108-110, 139, 144, 158 O Obesidade 10, 288, 291, 295-298, 301, 302, 306, 308, 309 Objeto a 18, 19, 28, 29, 36, 73, 75, 115, 133, 142, 147, 150, 153, 165167, 169, 171, 197, 224, 226, 255257, 259 Objetos de consumo 8, 32, 118, 128, 132, 135, 152, 168 Outro 7, 10, 18, 22, 26, 28, 32-36, 41, 42, 47, 54, 57, 58, 60, 62, 67-71, 73-75, 77-79, 93, 94, 105-107, 109, 113, 115, 116, 119-121, 124, 126, 127, 129-133, 138, 140, 148, 150, 151, 154-156, 160, 161, 164, 165, 167, 168, 170-172, 176, 179, 180, 183, 187, 188, 192, 193, 196, 197, 202, 205, 206, 208-211, 214, 218221, 223-230, 234, 237, 242, 249252, 254-257, 259, 261-264, 267, 271-273, 277-279, 282, 289, 291, 294, 297-301, 303-307 P Pandemia 7, 8, 11, 12, 21, 22, 24, 26, 30, 33, 38, 39, 41, 43, 44, 46-49, 52, 54-57, 60, 62-66, 73, 75, 76, 91, 96, 109, 111, 146 Parcerias amorosas 9, 218, 224 Perda 26-32, 34, 35, 45-48, 53, 59-61, 63, 73, 84-86, 89-92, 94, 95, 104, 108, 109, 127, 131, 138, 150, 156, 164, 165, 169, 210, 215, 222, 227, 279 Política 9, 32, 33, 37, 82, 83, 90, 93, 98, 99, 101, 103, 107, 110, 112, 139, 140, 142, 144, 145, 148, 149, 153, 157-159, 163, 169, 177-179, 182, 184, 188, 191, 192, 194, 198, 199, 204, 205, 207, 214, 216, 244, 270, 277, 284 Pornografia 10, 261, 262, 268, 269 Psicanálise 7-15, 18, 20, 21, 23-25, 29, 35-38, 41, 46, 48, 55-57, 61, 62, 65-68, 72, 80, 82, 83, 86, 87, 90, 94, 99, 112, 114, 122, 123, 135-137, 142, 161-164, 171, 173, 174, 176, 177, 179, 180, 182-189, 194, 199, 200, 202, 203, 208, 210, 212, 215-217, 222-224, 230-234, 237, 240-243, 245, 247, 248, 253, 260, 263, 268, 270-274, 276, 277, 282-285, 288, 290, 292-294, 296, 297, 304, 308, 309 Psicologia das massas 103, 104, 110, 162, 177, 194, 199, 205, 207, 211, 215 Pânico 7, 38-41, 44, 46, 49, 50 Pós-verdade 9, 201-205, 207-209, 215, 216 R Racismo 8, 9, 149, 151, 155-158, 160-163, 174-177, 179-184, 188, 189, 211, 214, 246, 252, 260 Separação 10, 26, 32, 34, 45, 58, 67, 68, 70, 73, 75, 78, 86, 87, 154, 201, 265, 297, 299, 302, 304-307 Servidão apaixonada 9, 191 Sexo 61, 209, 225, 226, 229, 233238, 241, 242, 260, 261, 265, 284, 293, 296, 303 Sexualidade 9, 13, 23, 57, 58, 186, 217-221, 223, 235, 243, 245, 246, 249-251, 253, 259, 260, 262, 265, 277-281, 285, 286, 296-299, 302, 303, 308 Sexuação 9, 10, 217, 233, 237, 241, 242, 244, 245, 250-254, 256, 258260, 284, 298 Singularidade 8, 14, 41, 49, 88, 115, 142, 160, 185, 215, 234, 259, 284 Sujeito 7-10, 12-20, 22-24, 27, 28, 30-32, 35, 36, 39-43, 45-49, 52, 55-57, 59, 61, 62, 64, 67-75, 77, 83, 85-89, 92-94, 96, 99, 100, 107, 108, 114-116, 118-123, 127, 129131, 133, 136, 142-147, 149, 150, 152-156, 160, 163-172, 179, 181, 182, 184-187, 196, 197, 199, 202, 203, 208-211, 214, 217, 219-223, 228-230, 233-235, 237, 240-242, 244, 248, 249, 251, 253, 254, 256, 271, 274, 277, 288, 290, 292-294, 297-299, 301, 302, 304-306 T Tecnopopulismo 9, 191, 192 Transferência 9, 14, 34, 62, 142, 175, 176, 179-182, 184, 187, 189, 208, 217, 222, 277 U Universalização 143, 147, 159-161, 170 Real 7, 11, 12, 16, 18-21, 23-25, 28, 30, 34-36, 39, 42, 62, 73, 75, 77, 92, 97, 130, 134, 143, 164, 165, 171, 173, 174, 179, 195, 208-210, 212, 214, 217, 224, 229, 233-235, 237, 240, 241, 263, 268, 272, 289, 290, 306 Relações raciais 9, 175, 176, 189 Resistência 9, 17, 175, 176, 178, 182-184, 187 Rito 10, 261 S Segregação 8, 9, 107, 134, 138, 139, 142, 143, 147, 149, 153-156, 159161, 163, 164, 169-171, 173, 174, 176, 177, 195, 205, 214, 236, 246, 249, 252, 254 312 Este livro foi composto pela Editora Bagai. www.editorabagai.com.br /editorabagai /editorabagai contato@editorabagai.com.br