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Desafios contemporâneos da psicanálise

2017, ECOS - Estudos Contemporâneos da Subjetividade

ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 E ENTREVISTA: François Richard Desafios contemporâneos da psicanálise Renata Mello, Regina Herzog Durante o meu período sanduíche de estágio doutoral em Teoria Psicanalítica (UFRJ), realizado em Paris entre janeiro e julho de 2011, sob a orien tação da professora Regina Herzog, nós tivemos a oportunidade de entrevistar um dos grandes psicanalistas em atividade na França: François Richard, professor da Université Paris 7 (Denis Diderot), pesquisador do Centre d’Études en Psychopathologie et Psychanalyse e membro da Société Psychanalytique de Paris (SPP). Além da qualidade dos trabalhos publicados, Richard se destaca pela atualidade e diversidade das temáticas contempladas. Ao longo dos últimos anos, ele vem desenvolvendo várias linhas de investigação, articulando, sobretudo, o campo da clínica com o da cultura. Dentre suas diversas pesquisas, destacam-se os estudos voltados para os processos de subjetivação, relações estabelecidas entre psicanálise e psicoterapia, casos-limite, psicopatologia do adolescente e mal-estar da cultura. Nossa motivação especial, na realização da entrevista, esteve centrada nos desafios enfrentados no fazer psicanalítico hoje, com ênfase na articulação da teoria psicanalítica com o campo da clínica e da cultura. O modo como compreender as formas contemporâneas de sofrimento psíquico e suas condições de tratamento pela psicanálise foi o ponto de partida para a realização dessa entrevista. A entrevista foi realizada em francês, revisada por Richard e, em seguida, transcrita para o português. Em função da atualidade das questões abordadas na entrevista, nós três resolvemos retomá-la em 2017. As formas contemporâneas de sofrimento psíquico – funcionamentos limites – estão em cena de forma privilegiada. A distância em relação à sintomatologia histérica, centrada no conflito edípico e na culpa, a partir da qual a psicanálise forjou seus principais conceitos, nos leva à problematização de seus pressupostos teóricos. Como o Sr. pensa a atualidade de metapsicologia freudiana frente às novas patologias? François Richard: O atual mal-estar na cultura não é exatamente aquele que Freud retratou em 1930 em seu famoso “Mal-estar na civilização”. Ou, então, temos novas formas do mesmo mal-estar, com as mesmas causas, expressando-se, porém, de forma diferente. Ou, há, sim, algo novo nessas patologias contemporâneas. É assim que venho pensando. As formas de regressão que podemos observar, por exemplo, nos funcionamentos primários, um pouco sem limites, ou em uma economia libidinal que busca a qualquer custo se satisfazer imediatamente, não é exatamente o retorno à barbárie e o retorno das pulsões reprimidas, das quais falava Freud. Ele tinha, especialmen- 121 Renata Mello UFRJ/PUC-RIO Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Regina Herzog UFRJ Psicanalista, professora associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ, coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (IPUB/ UFRJ), pesquisadora do CNPq. ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 te, em vista a economia libidinal do fascismo como retorno da barbárie. O retorno atual da barbárie, como podemos observar, não é exatamente assim. Aliás, não o é de forma alguma, mesmo que, sem dúvida, a causa profunda seja a mesma. Essas novas patologias entram, então, em cena de forma privilegiada. “Entrar em cena” é uma excelente expressão, pois, de fato, trata-se de algo que os sujeitos apresentam como um tipo de identidade sintomática. É possível que, por trás dessas novas patologias, exista, no fundo, um conflito muito duro do sujeito que não consegue assumir, introjetar ou subjetivar suas pulsões, seus desejos e, em particular, seu conflito edípico. Talvez, es sas novas patologias sejam então uma máscara, assim como houve no passado outras máscaras: a máscara da psicose, a máscara da neurose obsessiva, a máscara da histeria. Ou, quem sabe também, exista por trás de todas essas máscaras, uma forma atemporal e eterna disso que Freud via como conflito antropológico do ser humano: o eu em conflito com o isso, de um lado, o eu em conflito com o supereu, de outro, e o sujeito submetido à triangulação antropológica e atemporal dos complexos de Édipo e da proibi ção do incesto. Mas, no centro da cena, haveria outras formas de expressão para mascarar essa cena. O dito “estão em cena de forma privilegiada” corresponde também ao que muito retomei, depois de outros, da ideia segundo a qual vivemos em uma sociedade do espetáculo, em uma sociedade midiática, em uma socie dade da imagem. Afirmar isso se tornou quase uma banalidade quando se trata, na verdade, de um fenômeno bastante novo. Guy Debord foi um dos primeiros a dizê-lo com seu livro sobre a sociedade do espetáculo em 1967. Em seguida, o sociólogo Jean Baudrillard e toda a corrente da Escola de Frankfurt na Alemanha nos anos 1930. Bastante próxima dos psicanalistas, eles trabalharam muito em cima dessa alienação da imagem às fantasias, uma forma reificada da mercadoria que se torna quase uma forma psíquica. Existe, então, toda uma tradição do pensamento que permite colocar em relação o sintoma, no sentido freudiano, com algo da ordem da imagem no sentido social. É claro que a psicanálise forjou esses conceitos, como você diz, com uma sintomatologia manifestamente e visivelmente edípica. Isto é, a histérica coloca no centro da cena o espetáculo excessivamente dramatizado do conflito edípico. De certa forma, a histérica está inteiramente no Édipo; seria talvez preciso nos perguntarmos o que isso pode esconder. Freud mesmo nos mostra que nesses pacientes totalmente edípicos, o Homem dos Lobos, Dora, o Pequeno Hans, existem, às vezes, funcionamentos limites e momentos um pouco psicóticos. Não há somente Édipo na vida desses freudianos! O Édipo ocupa o centro da cena em Viena quando Freud, em 1900, elabora sua metapsicologia. A forma cultural dominante, digamos assim, da expressão do sofrimento psíquico era o Édipo. O Édipo, hoje, na minha opinião, continua a existir, mas não é mais a forma culturalmente dominante que podemos tomar emprestada para expressar um sofrimento subjetivo. Acredito que temos que lidar hoje, em termos de novas patologias, não apenas com os casos-limite. É preciso conservar a teoria dos casos-limite – os verdadeiros casos-limite existem – mas, o que observamos com mais frequência nos consultórios é o que Freud chamava de psicopatologia cotidiana, a neurose mista, ou seja, uma patologia mista entre a neurose – no sentido tradicional – e os estados limites. Isso que devemos chamar de funcionamentos limites, a partir de um conflito edípico ou de um conflito pulsional, é mais dominante do que acreditamos. Hoje, os próprios sujeitos acreditam estar mais além do conflito pulsional, à vontade com sua sexualidade, por exemplo. Na verdade, olhando de perto, sabemos que não é bem assim. Lidamos então com patologias da complexidade. O novo talvez seja isso. E o fato também que, nesta complexidade, os sujeitos contemporâneos passam de uma posição psíquica a outra com muito mais 122 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 facilidade do que no passado. Eles são múltiplos e aceitam sê-lo e, ao seu re dor, é aceito que o sejam. Este, sim, talvez seja o fenômeno novo. Podemos dizer que nunca houve um consumo tão grande de remédios para evitar o sofrimento psíquico como nos dias de hoje. A partir da perspectiva que o Sr. adota em “Médicament, économie libidinale et psychanalyse” (Remédios, economia libidinal e psicanálise), como pensa a relação entre psicanálise e farmacoterapia na prática clínica? No contexto cada vez mais saturado de soluções supostamente imediatas, como a psicanálise pode intervir? O Sr. acha que há um mal-estar entre o pedido de análise e a resposta analítica? François Richard: Esta última frase me parece bastante importante. Vou repeti-la: “O Sr. acha que há um mal-estar entre o pedido de análise e a resposta analítica”? Ou, consideramos que sempre houve um mal-estar entre o pedido de análise e a resposta analítica ou estamos um pouco mais conscientes disso hoje. No fundo, durante muito tempo, os psicanalistas acreditaram, talvez demais, sem percebê-lo, na potência de sua ciência – suas respostas analíticas sendo uma excelente resposta –, uma vez que se tratava de algo totalmente novo. Em relação a todos os cuidados psíquicos e teorias do psiquismo humano anteriores, a psicanálise foi genial. É um grande passo, certamente. Ao mesmo tempo, existe, sem dúvida, uma idealização da resposta, da cura analítica, da interpretação certeira. Se a cura não funciona é porque a interpretação não foi boa ou o paciente tem uma grande resistência e não é analisável. Ou, ainda, porque o psicanalista não era um bom psicanalista. Creio que não íamos muito além disso. Começamos agora a nos fazer perguntas mais sutis a respeito das modalidades das nossas boas respostas. A boa resposta não é simplesmente ficar em silêncio, fazer boas interpretação e nos expurgar de nossas parasitagens contratransferenciais, zonas não suficientemente analisadas em nós e que nos impedem de trabalhar bem. Penso que avançamos um pouco em relação a esse ponto de vista. Entendemos que existe um tipo de mutualidade interpsíquica entre nós e o paciente, sendo que o próprio paciente percebe que estamos verdadeiramente presentes ou implicados como sujeitos, ainda que enquanto analistas. Com certeza, os pacientes não nos contam isso e respondem de forma completamente enviesada. No entanto, existe agora uma ideia de uma presença sensível do analista com sua formação analítica, sua história de vida, sua história pessoal e sua história de analisando que encontra, no fundo, outro analisando. Temos também a ideia de que existe mais do que a contratransferência dos psicanalistas, de fato, presente. Contratransferência criada pela neurose do paciente, criada por essa parte de sua neurose que ainda não entendemos bem e que se deposita por identificação projetiva em nós ou que vem criar vivas reações em nós em relação ao paciente. Isso é a contratransferência clara. Durante toda nossa vida, temos, permanentemente, transferências com todo o mundo. E, todos os dias, sendo analistas, temos também nossas transferências em relação aos pacientes. Temos talvez uma visão mais equilibrada desta questão nos dias de hoje. Chego à parte da sua pergunta que tem relação com os remédios. Depois deste artigo, publicado no Carnet Psi, comecei a fazer um dossiê a respeito, que me parecia importante, e convidei alguns colegas para trabalhar comigo nisso: psicofarmacólogos e psiquiatras. Eu, de minha parte, tinha feito um artigo pensando sobre a relação dos sujeitos com os remédios como uma possível adicção e sobre a dimensão placebo dos remédios psicotrópicos, antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, tal como evidenciada por estudos realizados faz alguns anos. Foi toda uma polêmica. Estudos feitos por apoiadores da psicofarmacologia, e não psicanalistas, mostravam que grande parte da eficácia dos medicamentos, mais precisamente os antidepressivos, se justificava em função do efeito placebo. 123 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 Isso não quer dizer que os remédios não tenham nenhum valor, mas que se deve, também, considerar o efeito de auto hipnose e autoconvicção engendradas na relação com aquele que os prescreve. Grande parte da eficácia está aí. Por outro lado, os remédios antidepressivos ou ansiolíticos, agiam não somente no alvo depressivo, como também sobre o conjunto da personalidade do sujeito. Um pouco como acontece com a cannabis e a cocaína ou com o álcool e o tabaco, que criam a ilusão de uma energia reencontrada, a ilusão de uma potência, a ilusão de um prazer. Então, criava-se com o uso do antidepressivo um efeito momentâneo e não durável, que incidia sobre o conjunto da personalidade, não somente sobre o sintoma depressivo. Em todo caso, na mai oria dos pacientes que o tomaram, assim como para uma categoria de pacientes totalmente diferente, o remédio não produzia efeito algum. Partimos desse estudo para levantar este tipo de questão. Isto é, a forma como alguns colegas psicanalistas, muito favoráveis aos ansiolíticos e aos antidepressivos, encaminhavam rapidamente seus pacientes deprimidos aos colegas para que tomassem medicamentos, buscando, assim, prevenir-se de toda e qualquer queixa que pudesse lhes ser feita, caso não os tivessem en caminhado. Fiquei me perguntando se este era também um pouco o sinal de que esses colegas talvez não acreditassem muito na eficácia de sua própria terapêutica, uma vez que mandavam seus pacientes se tratarem com remédios tão rapidamente. Esta é primeira questão. A segunda questão é como gerenciamos, sutilmente ou não, no trabalho analítico, o fato de que nossos pacientes usem, por exemplo, remédios em um momento dado. Temos, então, o remédio como um tipo de pensamento mágico muito revelador e que pode, às vezes, ser muito útil no trabalho analítico, permitindo ao paciente evocar o que sente a respeito do efeito do remédio de forma mais ou menos hipocondríaca. Dou vários exemplos disto nesse artigo: a paciente que entende, de forma muito inteligente, que os remédios que foram receitados, depois de um episódio delirante e de uma hospitalização, não são adaptados para ela e vão lhe impedir de fazer seu traba lho analítico. De modo sagaz, ela resolve não tomar os remédios e os esconde de todos, de mim inclusive. Esse fato a reenvia para um segredo a respei to de uma história incestuosa que tinha vivido na infância. Compreendendo o que aconteceu em torno do remédio como um tipo de trapaça, algo que não podia ser dito, desvela-se o segredo do traumatismo da infância. Temos, também, o exemplo extremamente pertinente de pacientes que se automedicam, de alguma maneira, com certa mistura de tabaco, álcool, antidepressivos, ansiolíticos, cocaína etc., desviando o uso inicial do remédio e fazendo deste um uso verdadeiramente aditivo. Esta adicção compreendida como um tipo de perversão da sua libido. Trata-se, assim, de um jeito de dessexualizar a libido sexual, tornando-a não sexual em momento, devido ao uso deste tipo de medicamento. Poderia dar outros exemplos disto. Podemos intervir aí? Não sei. Podemos permitir aos pacientes que chegam aos nossos consultórios que acreditem um pouco menos no efeito do medicamento. Não faremos, certamente, uma propaganda contra o medicamento. Vamos deixar que nos falem disto. Podemos, então, falar disto com eles e estar em contato com os colegas que estão prescrevendo etc. Temos uma atitude suficientemente liberal. É esta atitude que vai permitir a nossos pacientes se extraírem, gradativamente, da crença no efeito mágico dos pharmakon, retomando o termo usado na Grécia Antiga. Uma substância que pode ser boa ou má, de acordo com a forma como ela vai ser incorporada. Esta atitude vai permitir, também, que o paciente passe da crença no pharmakon à crença na própria elaboração psíquica, através da crença nas interpretações analíticas, substituindo assim pharmakon por interlocução. Na minha opinião, o remédio é algo que incorporamos na medida em que algo da verdadeira incorporação, isto é, a oralidade da palavra com o outro, não funciona. 124 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 Em “Le travail du psychanalyste en psychothérapie” (O trabalho do psicanalista em psicoterapia), o Sr. propõe a hipótese de uma dialética entre emaranhamento e dualidade dos processos analíticos e psicoterapêuticos. Quais são as particularidades de um processo terapêutico na situação “face a face” em contraposição ao dispositivo clássico e como o Sr. trabalha essa dialética? François Richard: Você tem razão ao usar o termo “dialética”. Nesta obra de 2005, dirigida por mim, participaram René Roussillon, André Green, Bernard Brusset, Catherine Chabert, assim como outros colegas que trabalharam muito no intervalo dos últimos 15 ou 20 anos, a respeito das verifica ções do que chamamos de psicoterapia. Sendo a psicanálise uma psicoterapia, mas não se reduzindo a isso. No livro, enunciei, de fato, a ideia de uma copresença em todo trabalho analítico. Uma parte psicoterapia e, outra parte, psicanálise pura. Tomei ao pé da letra a metáfora freudiana a respeito do “ouro puro” da psicanálise e do “cobre” vulgar da psicoterapia. No final das contas, Freud acrescentava que havia muito frequentemente uma mistura entre o ouro da psicanálise e o cobre da psicoterapia. Tal mistura se dava, então, em função dos efeitos curativos que se obtinham a partir da hipnose e da sugestão no trabalho analítico, por meio da potência da transferência e da influência que o psicanalista exerce sobre seu paciente. Mas, Freud dizia isso desconfiado da parte excessiva que a sugestão poderia tomar no fazer analítico. Reivindicava, assim, que tentássemos, ao máximo, ir na direção de um trabalho no sentido do método analítico propriamente dito. Isto é, no sentido da desconstrução dos sintomas, das crenças e das fantasias do paciente pela análise, cujo modelo paradigmático seria o da análise do sonho, por um lado, e da análise da transferência, por outro. Poderíamos pensar que Freud queria ir nesse sentido, primeiramente, por motivos éticos. Por um tipo de repugnância do que poderíamos obter pela influência de uma pessoa sobre a outra e porque ele realmente pensava que o método analítico era o único que, a longo prazo, traria resultados. Freud pensava que talvez a psicanálise fosse um método relativamente mais lento do que outros quanto aos resultados, mas que estes, uma vez estabelecidos, eram suscetíveis de transformar efetivamente a estrutura do sujeito. Não é exatamente assim que Freud falava, mas existe certo limite do vocabulário à época. Ele pensava poder modificar, a posteriori, o recalque originário. É uma forma de dizer que se podia garantir estruturas duráveis na linguagem contemporânea. Eu então retomo, neste livro, um pouco esta ideia e tento mostrar que há certas formas de trabalho do psicanalista, nas quais é o aspecto analítico propriamente dito que domina. Embora, haja sempre certos aspectos de psicoterapia. É a ideia que encontramos em Bernard Brusset e René Roussillon. O psicanalista deve aceitar a ideia de fazer, sobretudo, psicoterapia e um pouquinho só de psicanálise. Tento, assim, dialetizar estas duas ideais, mostrando as diferentes formas de dispositivo que podem ser tomadas. A cura clássica no divã, a análise com um analista um pouco mais presente e interativo com seu paciente, a análise “face a face”, a análise onde encontramos as pessoas uma, duas e até mesmo três ou quatro vezes por semana. Dou supervisão a jovens psicanalistas ou psicoterapeutas iniciantes que, às vezes, são muito bons neste tipo de trabalho, mas que teriam muitas dificuldades em conduzir uma cura clássica com alguém no divã, organizado neuroticamente com processos psíquicos bastante complexos. Sentem-se, assim, muito à vontade no “face a face”, no atendimento de pessoas deprimidas, borderlines ou traumatizadas, com um olho digno e extremamente forte, acrescentando, de vez em quando, algumas interpretações da transferência, das histórias de infância e dos sonhos. Um pouco de psicanálise no sentido clássico do termo, mas, na maior parte do tempo, uma interação de excelente qualidade para a qual, devo dizer, penso ser preciso ser psicanalista para conseguir fazer. Ora, isso não era exatamente o que Freud tinha defini- 125 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 do como sendo psicanálise. Essas diferentes formas de adaptação e de dispositivos podem ir até, é claro, à psicoterapia de família, aos grupos terapêuticos, ao psicodrama e talvez a outras formas de psicoterapias. Nestas formas, as partes que dizem respeito à psicoterapia e à psicanálise estariam presentes em proporções variáveis, embora sempre praticadas por um psicanalista e funcionando psiquicamente com o método analítico. Não tem nada a ver com outras formas de psicoterapia que, aliás, não são obrigatoriamente ruins, mas se sustentam com base em outro paradigma, outro dispositivo. Podemos então nos aproximar das ideias de René Roussillon ao pensar que o “face a face” é, de fato, mais adaptado para pessoas que sofreram uma falha no reconhecimento primordial pelo olhar ou pela atenção psíquica da mãe. Tais pessoas precisam ser vistas e refletidas para que a retomada da in tersubjetividade primária do contato interpsíquico seja bem-feita. Estas pessoas se sentiriam completamente abandonadas no divã, em um deserto sensorial, como peixes fora da água. Esta é uma ideia muito importante. Mas, penso que podemos, também, ter no divã curas de pacientes borderlines ou até mesmo psicóticos, uma vez que o divã é uma ferramenta formidável de relaxamento e regressão. Isso supõe, ainda, por parte do psicanalista não visto pelo paciente, sentado em uma poltrona atrás dele, um tipo de trabalho diferente daquele com neuróticos. Assumo agora uma vista mais global onde distinguiríamos, de forma menos formal, o que seria da ordem da psicotera pia e o que seria da ordem do puramente analítico, como eu dizia em 2005. Era útil na época, creio eu, para fazer avançar essa discussão. Acredito agora que nosso interesse tem a ver com uma visão que localiza o que é propriamente analítico em todas as formas de trabalho e que, no fundo, é isso que importa. Foi o que desenvolvemos no colóquio que tinha organizado com René Roussillon e Steven Wainrib na Universidade Paris Diderot e que se chamava “Os diferentes terrenos do encontro analítico”. Realizado no final de 2010, este colóquio teve um grande sucesso e, no final das contas, a ideia dominante da maior parte dos que interviram foi a seguinte: como especificar, teorizar e bem localizar o que é propriamente analítico em todas as intervenções possíveis que a psicanálise pode fazer, incluindo nisso até mesmo o que está fora das psicoterapias, em outras formas de interven ção, no campo hospitalar, social, educacional. Como permanecer e ser psicanalista nessas intervenções? Podemos distinguir de forma dualista psicoterapia e psicanálise. O que me permite ir nesse sentido é, eu creio, o passo que tentei dar no meu último livro O encontro psicanalítico. No encontro, são fundamentalmente dois. Há dois psiquismos e estes dois psiquismos são radicalmente singulares e autônomos. Eles se encontram ou não se encontram. Com a noção de encontro e a referência à noção do ser humano próximo, Nebenmensch, retomada da obra freudiana de 1895, acredito que obtenhamos algo mais equilibrado entre a ideia de que tudo está no interior do sujeito ou de que tudo está no encontro entre o sujeito e seu meio ambiente e os outros. Com essa ferramenta, esta forma de ver mais equilibrada, vamos poder pensar a relação entre psicoterapia e psicanálise menos como “ou um ou outro”. Em “La subjectivation: enjeux théorique et cliniques” (A subjetivação, apostas teóricas e clínicas), o Sr. considera que a subjetivação é uma noção central na produção da mudança engendrada pela cura analítica. No entanto, esse processo subjetivo implica o engajamento em um tempo e em um espaço “potencial”, como sugere Winnicott, fora de moda nos dias de hoje. Assim, como conduzir a análise dada a velocidade e a recusa de interioridade próprias da contemporaneidade? François Richard: Acredito que seja preciso não se deixar impressionar pela aceleração da velocidade no vivido social contemporâneo do qual falam muito bem os autores que cito particularmente em meu livro “O atual mal- 126 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 estar na cultura”; autores como P. Virilio na França e como H. Rosa na Alemanha. A aceleração da velocidade é uma velha história! Se você tomar o artigo de 1908 de Freud a respeito da doença nervosa dos tempos modernos, ele cita não somente Biswanger, como também um psiquiatra conhecido que se chama W. Erb e outras pessoas que, desde o fim do século XIX, olhavam um pouco aterrorizados para a aceleração da vida nas grandes cidades modernas. As pessoas que se empurram para tudo quanto é lado, a circulação de carros na cidade. Já havia a poluição à época, já havia pessoas que sempre estavam viajando, que estão em um tipo de nervosismo ligado à velocidade da vida moderna e cuja ilustração na época era Nova York, a vida americana, algo assim. Os tempos modernos nos filmes de Chaplin trabalham a ideia de uma excitação do sistema nervoso na vida urbana que se afastaria das condições naturais de existência e jogaria as pessoas em um tipo de nervosismo que reforçaria a causalidade puramente individual das neuroses. Esta seria uma causalidade pulsional e o complexo de Édipo (o fato de a civilização não poder aceitar todas as pulsões) seria reforçado também por essa aceleração, por esse desenvolvimento da civilização nas grandes cidades. E é verdade que, talvez, teríamos, hoje, passado para uma etapa ainda maior desse processo, já que agora se tornou, não diria exatamente moda, mas é preciso ser dinâmico e rápido, é preciso fazer mil coisas durante nosso dia, é preciso ser ativo, é preciso viajar, é preciso ser sempre forte. A experiência clínica nos prova também que as pessoas que recebemos, mesmo as pessoas treinadas nesta dinâmica, estão um pouco fartas disso. Se elas procuram um psicanalista, o que de alguma forma elas já sabem ou intuem é que vão encontrar em nossos consultórios uma temporalidade um pouco diferente. Sob o verniz desta grande aceleração, a maioria dos cidadãos também não se deixa enganar pelos supostos valores trazidos por essa nova “Comédia Humana”, parafraseando Balzac, da sociedade do espetáculo, do bling bling. Fazer a todo custo uma comédia assim, desfiles fálicos, onde todos estão de fio dental, enfim, algo nesse sentido. Acredito que a maioria das pessoas sabem que os verdadeiros fatos não são encontrados obrigatoriamente aí. Isto dito, é, no entanto, verdade que isso pode nos colocar, sim, alguns problemas. Os sujeitos vão, antes, consultar psicoterapeutas que lhes permitem resultados mais rápidos. Já falei disso, há pouco, a respeito de sua pergunta sobre remédios. Com frequência, as pessoas têm uma vida tal que é difícil para elas virem mais do que duas vezes por semana. Dificilmente, é possível instaurar as três sessões que seriam úteis para produzir um verdadeiro processo analítico. Sem dúvida, isso é muito mais complexo que no passado e por razões que são também razões sociais. Mas, não somente razões sociais práticas, são razões sociais ideológicas, a forma como o sujeito representa as coisas para si mesmo. E estas representações podem mudar através do encontro psicanalítico. Em “La rencontre psychanalytique” (O encontro psicanalítico), o Sr. diz que o que está em jogo na psicanálise contemporânea pode ser, de certa forma, entendido como “crise de crescimento” que chega no limite do campo. O que isso quer dizer e quais foram os papéis das obras de Winnicott, Anzieu e Green na compreensão dessa problemática. François Richard: Então, o que isso quer dizer, você me pergunta. Isso não está claro, explique-se. Sim, porque, de um lado, falo de crise de crescimento para dizer que, de certa forma, há uma crise da psicanálise, como diz “O livro negro”, como diz Onfray, como diz muita gente que considera que a psicanálise estaria culturalmente fora de moda ou, de um ponto de vista terapêutico, seria pouco eficaz, até mesmo uma impostura. Eu, pessoalmente, prefiro dizer que isso dá testemunho do fato de que a psicanálise deve trabalhar 127 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 sobre si mesma, deve se adaptar ao contexto novo e crítico, para se adaptar também a um contexto de epistemologia, na cultura filosófica, nas ciências sociais e também nas ciências. Devemos retrabalhar os conceitos fundamentais da psicanálise para torná-los audíveis em um contexto cultural específico, em mutação, e trabalhar também nosso método de trabalho para transmitir algo socialmente e mostrar que temos uma proposta para responder, um pouco ao menos, às preocupações atuais. Mais profundamente, penso que as premissas deste crescimento e desta crise de crescimento estão no fato de que o próprio Freud transformou sua obra permanentemente. Da primeira teoria das neuroses em 1895 à primeira tópica clássica freudiana – a teoria do inconsciente, da transferência, da interpretação do inconsciente, das fantasias etc. Daí à segunda tópica clássica, que teve por eixo a dialética entre o isso, o eu e o supereu e a distinção entre pulsões de vida e pulsão de morte. Incluindo, ainda, o pequeno intermédio entre as duas tópicas, localizado pela busca do narcisismo, mas, sobretudo, pelo texto central “Luto e melancolia”, onde Freud aborda as psiconeuroses do narcisismo e distingue as neuroses narcísicas propriamente ditas. Então, já existe aí, nesse movimento freudiano, uma modificação permanente, ainda que sempre fiel ao que já tinha encontrado. Ele acrescenta um andar a mais que conserva o que já tinha encontrado, incluindo-o em um conjunto a cada vez mais vasto. Não há motivo para não que continuemos a trabalhar assim. Alguns falam de uma terceira tópica, ao lado de uma teoria do vínculo, como Bernard Brusset, ou ainda, de uma teoria da intersubjetivação. Não penso que seja necessário chegarmos a uma terceira tópica, pois teríamos de novo algo que correria o risco de se tornar uma verdade ou uma doutrina. Estamos, antes, em um momento de crise de crescimento no qual tenhamos que estar nela, tomando o tempo de refletir. Nesta crise de crescimento, precisamos de autores que trazem novas noções, como Didier Anzieu, com sua metacomunicação, onde retoma as ideias da terapia sistêmica, por exemplo; André Green, com a teoria da negatividade e o trabalho do negativo; e Winnicott, evidentemente, com o espaço transicional e do jogo, assim como outras noções indispensáveis. Ouvi recentemente as conferências de Julia Kristeva, psicanalista de língua francesa, consagradas ao tema do materno, nas quais falou sobre um conceito novo chamado “religância materna”. Acredito que precisamos de conceitos novos para pensar o mundo contemporâneo e os sujeitos do mundo contemporâneo. E, ao mesmo tempo em que devemos en contrar novos conceitos metapsicológicos, devemos ficar voltando sempre à obra de Freud e lê-la com atenção. Temos assim a surpresa de nos renovar a cada vez que ele nos traz alguns fatos de forma simples, o mais simples possível, sem preconceito. Temos a surpresa de encontrar aqui e ali, passagens inteiras ou frases que parecem, simplesmente, premonitórias. Acho que já havia citado, em uma parte de nossa conversa, uma frase de Freud de 1938. À beira da morte, muito doente, deitado na sua cama em Londres, jogava sobre pedacinhos de papel, ideias que ele escrevia rapidamente. Em uma dessas pequenas anotações, ele fala do drama desses sujeitos do mundo contemporâneo que, não somente não conseguiriam expressar plenamente suas pulsões, uma velha ideia freudiana, como também não conseguiriam ser felizes, fechados em um tipo de autarquia. E, justamente, a partir daí, encontrariam e inventariam todos os produtos substitutivos que podemos imaginar, adicções etc. Isto é formidável! Ele antecipa tudo o que podemos dizer dos sujeitos de hoje; sujeitos que se fecham narcisicamente sobre si mesmos, com uma grande dificuldade em ser feliz no encontro com os outros. Não se trata, obrigatoriamente, de uma dificuldade de viver suas sexualidades. Talvez seja uma outra coisa. E, nesta dificuldade, vão buscar um monte de outros substitutos do lado sem fim das adicções, mas também das passagens ao ato, buscando situações extremas, etc. Para concluir, ao mesmo 128 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 tempo em que há, na obra freudiana, mil coisas que não foram suficientemente lidas, após sua morte, nos anos 1940, 1950, 1960, 1970, pelas primeiras gerações da psicanálise, depois de Freud, devemos também, buscar noções novas. Temos o habito de descrever as subjetividades contemporâneas pela via da insuficiência: “falta a ser” (René Roussillon), “inibição fantasmática” (Julia Kristeva), “desertificação psíquica” (André Green). O Sr. acha possível extrair alguma positividade dessas subjetivações? François Richard: Aí está, pois, uma pergunta muito boa, é claro. Os autores que você cita estão eles mesmos muito atentos em respeitar seus pacientes, abertos à diferença e à alteridade, da qual acabo de falar, preocupados em não impor à força suas ideias prontas a respeito da saúde psíquica, da felicidade, do amor. Estes autores que você cita, Roussillon, Kristeva ou Green, não têm a ideia que todos precisariam viver de forma monogâmica, heterossexual, com crianças na mais absoluta fidelidade a uma vida longa. Não são tomados pelos ideais da Igreja Católica, por exemplo. Faço um pouco uma caricatura. Mas, sei que estão muito atentos, justamente, aos pacientes que têm um funcionamento limite, que têm dificuldades de se sentir suficientemente vivos, de se sentir existindo. Têm todos uma grande simpatia para com estes sofrimentos bastan te sutis que não são exatamente sintomas ou patologias. A psicanálise contemporânea, enfim, dá um passo em relação a uma visão anterior muito psicopatológica. Especialmente, considerando que se pode muito bem se beneficiar enormemente de uma análise para lidar com dificuldades de se sentir sendo o suficiente ou com dores difusas e existenciais, e não somente para fazer desaparecer um sintoma. Acredito, então, que seja um passo muito importante, mas, no entanto, uma vez dado este passo importante, corremos o risco de cair em uma segunda teoria do déficit e da insuficiência. Não se trata de dizer que as neuroses atuais, os estados limites, as psicoses, as perversões são formas inferiores do psiquismo humano em relação à organização neurótica edípica. Corremos o risco de cair em uma segunda visão do déficit ao pensar que estes sujeitos que sofrem de uma forma um pouco existencial, de uma forma um pouco misteriosa, sofreriam ainda assim de um tipo de densidade ontológica menor, densidade subjetiva menor e logo, de uma capacidade de reflexão, de simbolização, como diria Roussillon, menor do que os outros. Reencontramos, então, o ponto de vista deficitário anterior que pretendíamos ter ultrapassado. Penso que hoje estejamos neste ponto, justamente com esta dificuldade. No entanto, não vamos negar que muitos destes sujeitos da vida moderna, no mundo contemporâneo, quer sejam nossos pacientes ou outros que não chegam aos nossos consultórios, sofrem precisamente por se sentirem deficitários. É a palavra deles e esta palavra tem valor. Se eles mesmos se sentem insuficientes em suas existências, não vamos lhes dizer: “não, meu senhor, não, minha senhora, não é verdade”. É um ponto de vista moralizador, igualitarista, que não serve para nada em psicanálise e que, além de tudo, não é honesto. É preciso ouvir a palavra dessas pessoas que se sentem insuficientes em suas vidas e em suas felicidades. Assim, como extrair uma positivação destas subjetivações insuficientes, destes avatares da subjetivação, destas dores subjetivas. Esta é toda a questão da técnica do encontro psicanalítico, como tento teorizar no meu livro sobre o encontro psicanalítico. Trata-se de um tipo de contato interpsíquico entre dois sujeitos que não são iguais, não estão em simetria exatas, como Sándor Ferenczi acreditou ser possível no fim de sua vida, mas onde, no entanto, não temos de um lado um técnico, um especialista do inconsciente que faz interpretações, e do outro um doente que vem se tratar. Temos um verdadeiro encontro interpsíquico entre dois sujeitos humanos, uma situação antropológica fundamental, como Laplanche assim nomeou. Ou, ainda, como Freud teorizou em 1895, com sua intuição a 129 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 7 | Número 1 respeito do infans. O sujeito humano que está tendo acesso à fala, que ainda não sabe falar, e encontra fundamentalmente um outro ser humano, um ser humano próximo, geralmente representado pela mãe, mas que pode também ser o pai, o entorno em geral. E existe aí uma dimensão ética, uma vez que Freud postula que este ser humano próximo introduz os temas morais e o senso ético ao infans. No entanto, face às patologias da negatividade mais radicais há uma espécie de epidemia de sujeitos que, a priori, não são pacientes borderlines, psicóticos ou perversos, pelo menos num primeiro tempo. São pacientes relativamente ordinários e socialmente adaptados, com os quais temos a sur presa de vê-los cair muito facilmente em funcionamentos limites. Existe en tão aí algo talvez um pouco diabólico nessa queda na negatividade, algo que tende a nos mostrar que nem sempre é possível reverter esse movimento da negatividade. Devemos, a priori, ter um certo pessimismo, uma certa modéstia em nosso trabalho. E acredito que seja talvez a melhor chance que nos damos de chegar a alguma coisa a partir de um ponto de vista bastante modesto no trabalho. 130