Pedagogía y Saberes No. 49
Universidad Pedagógica Nacional
Facultad de Educación. 2018, pp. 151-164
Contribuições da
etnografia educacional
para o estudo de
minorias/maiorias*
Artículo de investigación
Aportes de la etnografía educativa al estudio de
minorías/mayorías
Contributions of Educational Ethnography for the Study
of Minorities/Majorities
Belmira Oliveira Bueno*
Flavia Medeiros Sarti **
Eliana Scaravelli Arnoldi ***
Para citar este artículo:
Bueno, B., Sarti, F. y Arnoldi, E. (2018). Contribuições da etnografia educacional para o estudo de minorias/maiorias.
Pedagogía y Saberes, 49, 151-164.
Fecha de recepción: 15 de agosto de 2017
Fecha de aprobación: 10 de abril de 2018
*
A primeira versão deste texto foi apresentada no xiii Inter-American Symposium on Ethnography and Education, realizado
na Universidade da California-Los Angeles (ucla) de 18 a 20 de setembro de 2013. As pesquisas que dão suporte ao artigo
foram financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (fapesp 01/00487-0 e 08/54746-5).
** Profesora de la Facultad de Educación de la Universidade de São Paulo. Doctora en educación e investigadora del grupo
Políticas e modelos de formação de professores: estudos comparados.
Correo electrónico: bbueno@usp.br
Código Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7839-5263
*** Profesora de la Facultad de educación de la Universidade Estadual Paulista-Unesp. Doctora en educación e investigadora
del grupo Políticas e modelos de formação de professores: estudos comparados.
Correo electrónico: fmsarti@rc.unesp.br
Código Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2926-5873
**** Profesora de la Faculdad Integrada “Campos Salles”. Magister en educación e investigadora del grupo Políticas e modelos
de formação de professores: estudos comparados.
Correo electrónico: eliana.scaravelli@gmail.com
Código Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5411-0908
151
Resumo
O artigo analisa a questão das minorias/maiorias no campo do magistério a
partir de resultados de três estudos etnográficos desenvolvidos no contexto de
um programa especial, oferecido a professores do Estado de São Paulo (Brasil),
entre 2001 e 2008. Autores diversos deram base a esses estudos: Rockwell, Bourdieu, De Certeau, Chartier e Lahire. Considerando os professores da Educação
Básica como um tipo de cross-borders culturais; o artigo discute seus modos de
ler e de se apropriar de textos acadêmico-educacionais e os limites que o tipo
de formação que lhes foi oferecida no âmbito do referido programa impõe para
mudanças mais efetivas em seus habitus profissionais. O artigo conclui que, não
obstante os investimentos em formação continuada realizados nas últimas décadas neste país, seus professores seguem em uma situação de forte vulnerabilidade
social, que só poderá ser revertida se políticas de valorização profissional mais
consistentes forem adotadas.
Palavras-chave
professores; programas especiais; ensino superior; minorias/
maiorias; Brasil
Resumen
El artículo analiza el problema de las minorías/mayorías en el campo del magisterio a partir de los resultados de tres estudios etnográficos desarrollados en el
contexto de un programa especial dirigido a profesores del estado de Sao Paulo
(Brasil), entre 2001 y 2008. Diversos autores fueron la base de estos estudios:
Rockwell, Bourdieu, De Certau, Chartier y Lahire. Considerando a los profesores como un tipo de cross-borders culturales, el artículo discute sus modos de
leer y de apropiarse de textos académico-educativos y los límites que el tipo de
formación que les fue ofrecida en el ámbito del referido programa impone para
cambios más efectivos en sus habitus profesionales. El artículo concluye que, a
pesar de las inversiones en formación continua realizados en las últimas décadas
en el país, sus profesores siguen en una situación de fuerte vulnerabilidad social,
que sólo podrá ser revertida si se adoptan políticas de valorización profesional
más consistentes.
152
Palabras clave
profesores; programas especiales; educación superior; minorías/
mayorías; Brasil
Abstract
This paper analyzes the issue of minorities/majorities in the field of education
based on the results of three ethnographic studies carried out within the context
of a special program for teachers from the State of Sao Paulo (Brazil), between
2001 and 2008. These studies were based on different authors: Rockwell, Bourdieu, De Certau, Chartier, and Lahire. Considering teachers as a type of cultural
cross-borders, the article is about how they read and appropriate academiceducational, and the limits imposed by the type of training offered in the field of
this program for more effective changes in their professional habitus. The article
concludes that, regardless of the investments made in continuous training over
the last decades in this country, its teachers continue to be in a situation of strong
social vulnerability that may be only reverted if more consistent professional
valuation policies are adopted.
Keywords
teachers; special programs; higher education; minorities/majorities;
Brazil
1
2
Aproximações feitas a partir de dados da Sinopse Estatística
da Educação Básica, inep, 2016, pp. 8 e 107. Para maiores
detalhes sobre a projeção da população brasileira, ver site do
ibge: http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/
Em 2014, as estatísticas do mec-inep registravam a presença
de 183.801 professores da Educação Básica sem licenciatura
- 11% do total de docentes do país. (Sinopse Estatística da
Educação Básica, inep, 2016, p. 106 e seguintes).
Minorias-maiorias
No âmbito das ciências sociais, o termo minorias diz
respeito aos grupos submetidos a processos de estigmatização e discriminação que resultam em formas
Artículo de Investigación
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Belmira Oliveira Bueno / Flavia Medeiros Sarti / Eliana Scaravelli Arnoldi
O Brasil tem hoje cerca de 2 milhões de docentes nas
redes públicas de educação básica. Esse corpo de
profissionais, formado por uma maioria de mulheres
(82%), é responsável pela educação de mais de 40
milhões de alunos, total que corresponde a quase
20% da população do país, atualmente estimada em
208 milhões de habitantes1. Os professores estão
entre os grupos profissionais majoritários da população brasileira, entretanto, é uma categoria que
vem sofrendo crescentes perdas sociais e econômicas
ao longo dos anos, cujo processo os tem submetido
a exclusões diversas no âmbito da sociedade mais
ampla e no interior da própria profissão.
Essa condição, não muito diferente daquela que
ocorre em outros países da região latino-americana, é
fruto dos reveses sofridos pelos professores ao longo
dos últimos 50 anos, quando os docentes das escolas
públicas passaram a experimentar uma crescente
desvalorização como profissionais. À acentuada
feminização do magistério, ao rebaixamento dos
salários e às condições adversas de trabalho vieram
se somar as fragilidades decorrentes das imprecisões
do campo e do estatuto profissional dos professores.
Ainda hoje, no Brasil, a docência é exercida por grande número de professores sem a devida formação e
licença para exercê-la2.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996 (Lei 9394/96), buscou criar dispositivos para minimizar essa situação. Entre outras
medidas, a Lei determinou que a partir de 2007
todos os professores da educação básica deveriam
ter a habilitação em nível superior. Isso provocou
uma corrida sem precedentes de professores em
busca do ensino superior, dando ensejo à criação
de programas especiais que se multiplicaram por
todas as regiões do país. Esses cursos obedeceram
a um novo modelo de formação em serviço, de tipo
semipresencial, oferecidos por meio de consórcios
celebrados entre universidades públicas e privadas,
secretarias da educação e fundações de caráter privado. Tais programas, de duração mais breve que os
cursos regulares de licenciatura, se estruturaram,
em muitos casos, com base no uso das Tecnologias
de Informação e Comunicação (tic) e em princípios
emprestados da Educação a Distância. Em virtude
da alta demanda, as atividades presenciais tiveram
que ser realizadas fora dos campi universitários, em
geral à noite e em prédios de escolas públicas, alugados para tal fim. As atividades pedagógicas foram
divididas entre diversas figuras docentes (tutores,
assistentes, orientadores, entre outros), em geral
profissionais das redes públicas e alunos de cursos de
pós-graduação, os quais mantém vínculos precários
de trabalho com as instituições promotoras desses
programas. Por meio desse processo, milhares de
professores têm obtido em tempo recorde o diploma
do ensino superior no Brasil.
O estudo e o acompanhamento desse processo por
parte de nosso grupo de pesquisa, nos últimos quinze
anos, se fez por meio de vários estudos etnográficos,
três dos quais tiveram como foco as atividades de
leitura e escrita das professoras. O interesse por
essa temática decorreu da relevância que atribuímos
à leitura e à escrita para o exercício da cidadania e,
também, por entendermos que a aprendizagem e o
desempenho dos alunos dependem em grande parte
das relações que as próprias professoras mantêm com
essas práticas culturais. O envolvimento obrigatório
das professoras com tais práticas no contexto desse
novo modelo de formação, por meio do uso de diferentes suportes, como o caderno, o livro, o teclado,
a tela, a internet, bem como a convivência cotidiana
e prolongada com seus pares, levaram-nos a dar
atenção a esses processos e a entender que essa
temática iria permitir um maior entendimento da
cultura das professoras e, além disso, identificar os
possíveis benefícios dessa experiência para o trabalho
pedagógico dos grupos estudados.
As pesquisas realizadas descortinaram muitas facetas da vida e do trabalho das professoras,
conduzindo-nos à indagação que hoje trazemos para
este artigo: a despeito dos ganhos que o diploma de
ensino superior traz para os professores, não estariam eles e elas, como categoria profissional, sendo
integrados paulatinamente ao grupo das minorias
sociais? Ao retomarmos os dados dos estudos atrás
referidos, tivemos em vista realizar um novo esforço
analítico buscando integrar as análises de caráter
local e avançar em direção a uma compreensão mais
ampla sobre as condições do exercício do magistério
no Brasil, hoje, por meio da consideração da questão
das minorias/maiorias.
Contribuições da etnografia educacional para o
estudo de minorias/maiorias
Introdução
Número 49 / Universidad Pedagógica Nacional / Facultad de Educación / 2018 / Páginas 151-164
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de desigualdade e exclusão sociais. Dentre esses
grupos, os negros, os indígenas, os homossexuais, os
imigrantes e as mulheres são os que têm sido mais
investigados em nosso contexto. Todavia, em tempos
recentes essa lista vem sendo ampliada, para incluir
os idosos, os obesos, os sem-teto, dentre outros grupos surgidos no contexto das políticas econômicas
neoliberais produtoras de desigualdades e de novas
formas de exclusão. Deste modo, não é improvável
que outros grupos estejam sob o risco de passar para
a faixa dos excluídos, uma vez que submetidos a processos de perdas contínuas de seus direitos sociais,
sonegados e subtraídos pelos grupos de maior poder.
Falar em minorias significa, portanto, falar de
relações de poder desigual no âmbito da sociedade
e da posição subordinada que certos grupos experimentam. Rosso, Strey, Guareschi e Bueno (2002)
buscam mostrar que o termo diz respeito a “segmentos das sociedades que possuem traços culturais ou
físicos que são desvalorizados e não inseridos na
cultura da maioria, gerando um processo de exclusão
e discriminação”. Baseando-se em Moscovici (apud
Rosso, Strey, Guareschi e Bueno), eles enfatizam que
as minorias existem na fronteira social, ou mesmo
fora dela, compondo
um grupo ao qual foi negada autonomia e responsabilidade, que não conta com confiança, nem é
reconhecido por outros grupos. Tal grupo não se reconhece nos sistemas existentes de poder e crença e
ele não representa tal sistema para ninguém. (p.78).
Prosseguindo a análise, esses autores nos ajudam
a perceber que os processos de estigmatização e
discriminação das minorias implicam em formas
diversas de violência física e simbólica. Nesse âmbito, o estereótipo ocupa papel essencial, visto operar
como uma das estratégias de manutenção da ordem
social e simbólica, distinguindo os que estão “dentro”
e os que estão “fora” das normas. Outro aspecto que
os autores destacam é o papel da mídia na criação
de desejos padronizados em relação a determinado
estilo de vestimenta/tecnologia, operando como
padronizador de um modelo de consumo que dá a
ilusão de que cada um é um ser diferenciado e único.
Ao trabalharmos com professores da educação
básica por longos anos, observando suas práticas
e formação, passamos a indagar se esse grupo de
profissionais não estaria, em nosso país, situando-se
nessa fronteira. As pesquisas que temos realizado
durante mais de uma década sobre os programas
especiais voltados para a formação em serviço de professores/as das séries iniciais do ensino fundamental,
nos deram muitos elementos para desenvolvermos
uma análise sobre essa questão, por ora, uma especulação dessa hipótese.
Tais estudos apontaram que a maioria das professoras que frequentou tais programas exercia jornada
dupla de trabalho, lecionando em duas escolas distintas. A faixa etária a que pertenciam na época em
que os estudos foram realizados variava de 20 até
mais de 60 anos. Contudo, seus percursos de vida se
assemelham em muitos aspectos: a grande maioria
é oriunda de famílias de nível socioeconômico baixo,
muitas vindas de áreas carentes do pais, filhas/os
de pais analfabetos ou com poucos anos de escolarização, tendo começado a trabalhar cedo para auxiliar
no orçamento familiar. As professoras pertencentes a
esse grupo foram alfabetizadas somente por ocasião
do ingresso na escola e tiveram pouco acesso a livros
e outros materiais escritos quando eram crianças
e adolescentes. Algumas viveram a experiência
escolar com grande dificuldade devido à rigidez de
certos professores, punições severas, reprovações,
problemas de saúde tais como deficiência visual não
identificada, enfim, problemas diversos de adaptação
ao cotidiano escolar. Apenas cerca de 5% é oriunda
de família com nível socioeconômico mais favorecido, tendo, com isso, maior acesso a livros, revistas,
obras de arte etc. Esse pequeno grupo contou com o
incentivo dos pais à prática de leitura, uma vez que
eles também possuíam esse hábito. O capital cultural
herdado da família mostrou-se flagrante (ver Bueno,
Souza e Bello, 2008).
Nossas pesquisas identificaram, ainda, outros
aspectos que nos instigaram a levar adiante nossa
indagação, como será mostrado adiante, neste artigo.
Abordagem metodológica
Visando construir novas análises, o presente texto se
desenvolve a partir dos resultados de três pesquisas
realizadas sob enfoque etnográfico (Sarti, 2005; Oliveira, 2009; Arnoldi, 2014) tendo agora como foco
a questão das minorias/maiorias, como informado
acima. O trabalho de campo de cada uma dessas pesquisas foi realizado em três diferentes momentos da
execução do primeiro programa especial oferecido
a professores da educação básica do Estado de São
Paulo, o pec Formação Universitária3, desenvolvido
de 2001 e 2008 na modalidade semipresencial. Nessa
perspectiva, ainda que o presente artigo não se caracterize, ele próprio, como uma etnografia, é importante
considerar que seu ponto de partida foram estudos
dessa natureza. Assim sendo, é necessário descrever
3
Programa de Formação Continuada – Formação Universitária,
também identificado como pec Estadual ou pec for prof.
4
Universidade de São Paulo (usp), Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (pucsp) e Universidade Estadual Paulista
Julio de Mesquista Filho (unesp).
5
Ver também Bello (2011) e Bello e Bueno (2012) para maiores
detalhes.
6
Optamos por usar o feminino pelo fato de 95% do total das
matrículas no programa serem de professoras.
7
No Brasil, os professores de educação infantil e das séries
iniciais do Ensino Fundamental são formados nos cursos de
Pedagogia.
Artículo de Investigación
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Belmira Oliveira Bueno / Flavia Medeiros Sarti / Eliana Scaravelli Arnoldi
entrevistas em profundidade, complementando os
dados colhidos com análise documental que envolvia:
a legislação que passou a regular esses programas e o
material didático (apostilas) oferecido às professoras
em substituição aos textos acadêmicos utilizados
nas universidades. Também nos detivemos na análise
da “escrita de memórias”, uma atividade desenvolvida pelo programa com o propósito de instigar as
professoras a narrarem seus percursos escolares e a
refletirem sobre os mesmos (ver Bueno, 2006; Bueno,
Souza e Bello, 2012).
O primeiro estudo de campo foi desenvolvido
durante a execução do pec Estadual, com duração de
15 meses, visando observar as professoras durante
as atividades de leitura obrigatória e analisar suas
apropriações dos textos acadêmicos (Sarti, 2005;
Sarti e Bueno, 2007). Tais atividades eram coordenadas pelo tutor de cada turma, que assumia um papel
semelhante ao de um docente polivalente. Orientava
as professoras sobre todos os conteúdos tratados, os
quais buscavam contemplar os conteúdos das disciplinas dos cursos regulares de Pedagogia, oferecidos
pelas universidades.7
O trabalho de campo da segunda investigação (Oliveira, 2009; Bueno e Oliveira, 2008; Oliveira e Bueno,
2013) foi realizado durante a execução do pec-Municípios, focalizando entre outros aspectos a relação
das professoras com as mídias eletrônicas e o uso do
computador, equipamento que naquela época não
era de uso generalizado entre os docentes das escolas
públicas. O trabalho se desenvolveu ao longo de 18
meses, por meio de observações realizadas na sala de
trabalho online, enquanto as professoras respondiam
as questões das unidades de conteúdo e contavam
com a correção e orientação de assistentes a distância.
A presença de assistentes, tutores e orientadores
no pec insinuava para nós o surgimento de um novo
grupo de profissionais, que já nascia em condições
precárias de trabalho, sobretudo, por não possuírem
vínculo formal com as instituições contratantes. Devido à ausência de uma denominação mais precisa,
passamos a designá-los de novos agentes pedagógicos
ou novas figuras docentes. Ao longo das sucessivas
análises que desenvolvemos, viemos a problematizar
a questão da precarização do trabalho docente, optando pelo uso dos conceitos de profissionalização e
desprofissionalização. Esse par de conceitos nos pareceu potente para explicar as configurações desse novo
modelo de formação de professores, uma vez que tais
processos se manifestaram de modo concomitante,
Contribuições da etnografia educacional para o
estudo de minorias/maiorias
as principais características do programa que acolheu
os estudos empíricos, bem como os procedimentos
de análise, tanto os originais como os que são apresentadas neste artigo.
O pec Formação Universitária foi viabilizado por
meio de uma parceria entre a Secretaria da Educação
do Estado de São Paulo, três grandes universidades4
e fundações de caráter privado5 (2003). Após sua
primeira edição, o programa foi reeditado mais duas
vezes para atender a demanda dos professores das
redes municipais de ensino. Na segunda edição, foi
oferecido aos professores das redes municipais (pec
Municípios) do estado e, na terceira, apenas aos professores de educação infantil da cidade de São Paulo
(pec Município II). Essas reedições foram favorecidas
pela infraestrutura deixada pelo pec Estadual, constituída por uma plataforma online, estúdios para
videoconferências, salas com computadores para
uso das professoras, dentre outros equipamentos
instalados nas universidades e nos polos. Estes, como
locais físicos, eram frequentados pelas professoras6
diariamente para desenvolverem as várias atividades previstas: trabalho offline acompanhado por um
tutor em salas comuns; trabalho online realizado em
salas equipadas com 20 computadores e acesso
intranet; acompanhamento de videoconferências,
duas vezes por semana; e de teleconferências, uma
vez por mês. O material herdado do pec Estadual
incluía, ainda, as apostilas oferecidas às professoras,
acrescidas na segunda e terceira edições de conteúdos de educação infantil.
Esse programa provocou muita polêmica, não
apenas por suas similaridades com a Educação a
Distância, mas também por conta de durar apenas
dois anos, e, ainda, por associar formação continuada e formação em serviço em um mesmo processo,
com isso gerando uma sobrecarga de trabalho aos
professores.
Tal cenário propiciou o desenvolvimento de estudos empíricos de tipo etnográfico, assentados em
trabalho de campo prolongado, com vistas a acompanhar alguns dos processos que ali começaram a se
desenhar. As professoras frequentavam os polos das
19 às 22h30, após suas jornadas de trabalho diário,
e aos sábados, pela manhã. Adotamos, então, como
procedimentos básicos a observação participante e
Número 49 / Universidad Pedagógica Nacional / Facultad de Educación / 2018 / Páginas 151-164
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parecendo se constituírem em duas faces de uma
mesma moeda. Com efeito, o percurso profissional
subsequente dos tutores, assistentes e orientadores
se mostrou bastante diverso entre si, configurando
a presença de processos de maior profissionalização
para os assistentes do que para os dois outros grupos
(Bueno, 2014).
O terceiro estudo (Arnoldi, 2014; Arnoldi e Bueno,
2014) foi realizado após o encerramento do programa,
por meio de observações feitas nas salas de aula de
oito professoras egressas do pec Municípios. Interessava-nos encontrar elementos que permitissem identificar possíveis contribuições desse programa para a
atuação docente, especialmente, no que diz respeito
às práticas de alfabetização. Afinal, essa foi uma das
principais ênfases do programa e isso se mostrava
instigante para as pesquisas do grupo de pesquisa.
Tendo constatado alguns paradoxos ao longo de
nossos estudos, perguntamo-nos se os professores
da educação básica não estariam vivendo hoje, no
Brasil, um processo que os conduz, ou empurra, para
situações limítrofes do espaço social das minorias.
Não seriam eles e elas um tipo de cross-borders culturais? Para ensaiar essa análise, levamos também
em conta o argumento frequentemente reiterado por
teóricos e políticos educacionais de que a formação
superior eleva o nível de profissionalização, propicia
a valorização dos professores e assegura a melhoria
da qualidade da educação básica.
Do ponto de vista teórico, as principais balizas
conceituais vieram de Bourdieu (1979, 1983), Lahire
(2001, 2004), Chartier (1990) e De Certeau (1994),
agregando outras referências conforme a questão em
exame. As bases fornecidas por esses autores permitiram matizar nosso referencial teórico, partindo
do pressuposto formulado por Rockwell e Ezpeleta
(1986)8 de que o Estado não é ator único na realização
das políticas educacionais, “capaz de transformar a
sociedade de raiz, criar culturas nacionais e moldar as
mentes de crianças e adultos” (Rockwell, 2009, p. 12).
Ao endossarmos a tese dessas autoras de que os
processos sociais são construídos e transformados,
também, pelas ações que ocorrem no âmbito da
vida cotidiana, reconhecemos que o estudo de tais
processos encontrou na etnografia seu principal suporte metodológico. Em tais estudos, bem como na
presente análise, buscamos estabelecer um diálogo
analítico entre as esferas micro e macrossociais a
fim de melhor compreender as relações entre essas
duas esferas e o modo como determinados contextos
macroestruturais têm sido traduzidos pelas micropolíticas educacionais, tais como as que se dão no
8
Veja também Rockwell e Mercado (1986).
âmbito do cotidiano escolar e aquelas que tomaram
forma na dinâmica dos cursos especiais de formação
de professores.
Cruzando fronteiras: os
professores e o consumo cultural
Os programas especiais de formação docente têm
possibilitado no Brasil o acesso de milhares de
professores brasileiros ao nível superior sem, no
entanto, oferecer-lhes garantias de uma inclusão
mais efetiva no sistema e na cultura universitária.
Embora finalmente atendidos pelas universidades,
esses professores compõem um grupo diferenciado
no interior das instituições, segregado dos demais
estudantes e da vida universitária. Essa condição os
torna vulneráveis socialmente.
Para eles, foram (e continuam a ser) oferecidos
cursos especiais no que se refere: à carga horária,
quase sempre reduzida; à grade curricular, frequentemente organizada em módulos temáticos; ao corpo
docente, composto não por docentes da universidade,
mas por outras figuras (tutores, assistentes, orientadores) que dividem entre si as atividades de ensino;
aos materiais de leitura, elaborados especialmente
para mediar e facilitar a eles o acesso aos textos; ao espaço físico, com aulas realizadas em polos localizados
fora dos campi das universidades. Assim, o Estado,
em parceria com o mercado, impõe aos professores
não uma identidade de estudantes universitários,
mas sim de “alunos-professores”, designação comumente atribuída aos professores cursistas e que
nos parece reveladora dos processos de exclusão
e discriminação por eles vivenciados no interior
desses programas. Nessa conjuntura, a passagem
dos professores por tais programas especiais ocorre
de maneira intranquila. Com percursos biográficos
e profissionais impregnados por uma racionalidade
pragmática relacionada ao dia-a-dia da sala de aula,
suas culturas profissionais, bem como suas origens
sociais são desprezadas no contexto acadêmico. Para
grande parte desses professores, a maioria formada
por mulheres, a realização das atividades comumente
valorizadas na universidade, como é o caso da leitura
e da escrita, representa um grande desafio.
O interesse pelo modo como esses professores
se apropriam do lugar discente que lhes é reservado
nesses programas e como enfrentam os desafios
que os motivou a se inscreverem no curso, deu
ensejo ao primeiro estudo que serve de base a este
artigo (Sarti, 2005; Sarti e Bueno, 2007), por meio
do qual buscamos investigar os modos pelos quais
Já as alunas-professoras da turma ii mostravam razoável desenvoltura na leitura, inclusive em
textos com os quais vinham estabelecendo contato
em outras oportunidades de formação continuada.
Algumas delas ressaltaram seus hábitos de leitura já
constituídos., como mostra o depoimento enfático
de uma das professoras dessa turma: “... acontece o
seguinte, se eu tiver um minuto na minha casa, esse
minuto eu estou lendo”. Sobre as leituras relativas ao
pec, outra colega de classe dessa professora explica:
(...) eu leio aqui com o pessoal, a gente se divide
em grupos, às vezes, lê todo mundo junto, mas essa
leitura para mim não é suficiente. Porque eu gosto
de ler sozinha, eu gosto de ficar grifando, eu gosto
de ficar anotando e rabiscando, e... às vezes, a leitura
[em classe] é muito rápida e é meio vaga. Então, eu
fico assim, lendo geralmente de domingo à tarde; de
sábado, quando eu saio daqui, eu procuro ler tudo
em casa. (entrevista, 07/08/2002).
9
Havia apenas um único homem entre as alunas-professoras
das duas turmas focalizadas.
Artículo de Investigación
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Belmira Oliveira Bueno / Flavia Medeiros Sarti / Eliana Scaravelli Arnoldi
(...) eu não conseguia dar conta das leituras! Daí a
Vivian [tutora da turma], coitada, dava tempo para a
gente ler aqui [no curso]... a gente não se concentrava...(...) eu acho que é a falta de costume da linguagem do texto. Inclusive teve uma vez que o pessoal
reclamou: “Esses textos são muito difíceis...A gente
não entende...” Aí, a professora [tutora] falou assim:
“Mas, na escola, a gente não tem que trazer o aluno
para o nosso mundo? Quando a gente pega aluno de
várias regiões do Brasil, respeitando a sua diversidade, não tem que tentar trazer para a escola? É o
que a gente está tentando fazer aqui!” (...) eu falei:
“Sabe que é isso verdade!” E, aí, a gente teve que
ler! Não teve outro jeito! (entrevista, 2/10/2002).
Essas diferenças no que se refere aos hábitos e
às experiências prévias de leitura das professoras
chamaram atenção, mas logo cederam lugar para
outras impressões, obtidas durante as visitas ao
polo. Notamos que várias similaridades nas práticas
de leitura daquele grupo de professoras as uniam no
tocante aos seus modos de ler os textos acadêmicos.
Isso nos levou a pensar que tais práticas, pela similaridade, haviam se consolidado no âmbito de uma
cultura docente do grupo a que as professoras estavam referidas. Suas leituras eram caracterizadas pela
presença marcante da oralidade durante a discussão
de assuntos relacionados à vida cotidiana escolar,
assumindo, com isso, feições específicas bastante
próximas da docência diária. Ao invés de se concentrarem na aprendizagem de valores, procedimentos
e posturas próprias do ambiente acadêmico (para o
qual o programa atuava como uma ‘porta de entrada’),
as professoras dos dois grupos estudados traziam
consigo seus próprios modos de ler e de se aproximar
de temas educacionais. Com isso, subvertiam a ordem
dos discursos acadêmicos presentes nos textos lidos,
de modo a assumir uma perspectiva prática que não
estava prevista nos textos.
Essa conduta foi por nós interpretada como um
tipo de táticas de consumo (De Certeau, 1994) que
visavam converter essas leituras em ocasiões de
reflexão e de questionamento sobre fatores que se
impõem à atividade condição profissional docente.
Mesmo sem capitalizarem um espaço naquele território estrangeiro (o programa de nível superior que
estavam frequentando), as professoras introduziam
uma perspectiva própria, trazida da cultura docente.
Subvertiam assim a ordem dos discursos proferidos,
tornando-os, deste modo, mais próximos de seus
interesses e necessidades de trabalho. Com tal engenhosidade, resistiam às investidas da universidade
em suas tentativas de reinventá-las (Bueno, 2006)
e conferiam valor para seus próprios saberes e práticas profissionais. Revelavam-se, com isso, traços
da dimensão política que Michel de Certeau (1994)
atribui às práticas cotidianas, como é o caso da leitura.
As relações que as professoras estabeleciam com os
textos eram pautadas em seu valor de uso para o atendimento de suas necessidades, visando a resolução
de problemas que enfrentavam no exercício diário de
seu ofício. Colocavam-se, assim, na cena.
Claro está que essa perspectiva pragmática presente no modo como as professoras liam os textos
educacionais, chocava-se com as maneiras acadêmicas de ler ancoradas em uma lógica discursiva.
Contrapunha-se, também, aos objetivos formativos
do programa, voltados para a instauração de hábitos,
procedimentos e valores mais próximos da cultura
Contribuições da etnografia educacional para o
estudo de minorias/maiorias
as alunas-professoras9 se apropriavam dos textos
acadêmicos que liam naquele ambiente peculiar de
formação. As atividades de campo dessa pesquisa
foram realizadas em duas turmas escolhidas em virtude das diferenças significativas que apresentaram.
De qualquer forma, é importante dizer que dizem
respeito a práticas que se consolidaram na escola
e se integraram à cultura do magistério das séries
iniciais, no Brasil.
As professoras da turma I revelavam diversas
dificuldades no contato com os textos acadêmicos
—estranhamento em relação ao léxico empregado,
desconhecimento quanto aos processos de produção
e divulgação dos mesmos, insuficiência conceitual,
entre outras, como pode ser percebido no depoimento de uma das alunas-professoras:
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acadêmica universitária. Formar os professores como
“novos leitores” constituía, pois, uma meta a ser alcançada pelo programa, e a instauração desse “novo”
modo de ler contava com o suporte de alguns dispositivos, enquanto estratégias de controle (Foucault,
1994). Entre tais dispositivos, dois se destacavam:
a) os protocolos de leitura presentes nas apostilas
do programa, que visavam orientar e conformar as
leituras realizadas pelos professores; b) a atuação
dos tutores, cujos gestos de leitura poderiam ser
percebidos pelas professoras como um modelo a ser
aprendido (o que foi observado especialmente no
grupo I). Tais dispositivos objetivavam desenvolver
nas professoras modos de leitura considerados mais
legítimos e, portanto, mais valiosos do ponto de vista
simbólico.
Com efeito, observou-se que a leitura de tipo
intensiva, exaustiva e pessoal —e, portanto, não coletiva e oralizada, como as professoras preferiam até
então— foi-lhes imposta cada vez com maior ênfase
como o modelo mais legítimo de contato com os
textos educacionais. A partir de então, as professoras
das duas turmas mostravam-se cada vez mais críticas
quanto aos hábitos de leitura partilhados entre seus
pares e, também, sobre suas próprias possibilidades
de leitura fora do ambiente do programa. A avaliação
que passaram a fazer a esse respeito foi sendo crescentemente influenciada pelos padrões acadêmicos,
que apontavam um ideal de professor-leitor bastante
exigente, mas que em muitos aspectos se distanciava
da imagem que elas faziam de si mesmas bem como
de suas condições objetivas de leitura. Configurava-se,
assim, uma situação de violência simbólica (Bourdieu,
1998), na qual os dominados passam a enxergar a
si próprios através da perspectiva dos dominantes,
instituindo-se a partir disso uma “violência suave e
frequentemente invisível.” (p. 41).
A adesão aos modelos de leitura mais valorizados no programa em estudo parecia impedir que as
professoras atribuíssem maior valor às leituras que
costumavam realizar, consideradas por elas como
superficiais em função da falta de condições mais
favoráveis. A esse respeito, uma das professoras
parecia perceber com clareza diferenças em seus
hábitos de leitura após o término do programa.
Referindo-se à tutora, disse:
(...) ela foi ensinando a grifar, a anotar o que tinha
dificuldade, fazer anotações do lado...e a gente foi
aprendendo com ela! Hoje, eu não consigo ler nem
riscar alguma coisa.... sem anotar (...) hoje eu leio
bem. (...) se o assunto me interessa muito, eu consigo ler mais. Não sei se é porque a gente entende
mais... eu tenho mais facilidade de ler. (entrevista,
2/10/2002).
Assumir essas leituras —efetivadas muitas vezes
na urgência, na desordem e na incerteza de ter memorizado e compreendido as informações— como
aceitáveis ou uma bricolagem imposta pela necessidade, colocaria em questão suas próprias representações sobre a legitimidade universitária. Para as
professoras estudadas, uma formação profissional em
nível superior requereria a aprendizagem de novas
posturas, valores e práticas relacionadas à leitura de
textos, assim como a outras atividades acadêmicas.
Mesmo considerando que elas assumiam uma
margem de liberdade nas leituras que realizavam
no programa, apropriando-se dos textos por meio
de táticas que as faziam dialogar com seus interesses e necessidades mais prementes, e escolhendo as
leituras que mais “valiam a pena”, é forçoso admitir
a existência de limites para suas resistências. As
professoras estavam, sim, incorporando novos procedimentos e padrões de leitura profissional, esperavam se tornar, como queria a universidade, “novas
leitoras” de textos acadêmicos. E o modelo de leitura
aprendido no programa impunha-se com força, como
parte de sua própria profissionalidade docente, como
sugere o depoimento de uma professora:
Eu acho que só essa leitura, só essa busca, só esse
interesse...de saber mais é que vai levar a gente para
uma coisa melhor, para uma prática que a gente
deseja sempre. (entrevista, 07/08/2002).
A situação resultante das tensões entre coerção
e liberdade, adesão e resistência, trazia sentimentos
controversos para as professoras. Ainda que se orgulhassem de seus novos hábitos e práticas de leitura e
os reconhecessem como caminhos para o estabelecimento de relações simbolicamente mais vantajosas
com sua profissão, elas se ressentiam da expropriação
de seus próprios gestos, saberes e práticas profissionais. A perspectiva discursiva que fundamentava as
relações a serem estabelecidas com os textos educacionais no contexto do pec requeria, por vezes, que
as professoras se afastassem de suas preocupações
mais imediatas concernentes ao ensino e passassem
a considerar a centralidade de novos objetivos e
procedimentos para a atuação docente, tais como: a
pesquisa sobre o próprio ambiente de trabalho, com
a identificação de indicativos estatísticos e a perspectiva dos diversos grupos da comunidade escolar; o
exame teoricamente subsidiado da aprendizagem de
seus alunos; a adoção de uma postura mais reflexiva
diante da prática docente; e as tentativas de explicar
suas escolhas e atitudes. Ao realizarem atividades
desse tipo, as professoras mostravam-se satisfeitas
por terem mais informações sobre o ensino, mas se
ressentiam da falta de discussões mais centradas nos
Ainda no contexto polêmico da execução dos programas especiais, um dos eixos de nossa pesquisa
consistiu na observação do trabalho de oito professoras egressas do pec, após o término desse programa
(Arnoldi, 2014; Arnoldi e Bueno, 2014). Em uma
perspectiva de inclusão social por meio do ensino
superior, buscamos verificar em que medida o pec
se constituiria como uma oportunidade de maior
profissionalização, conferindo às professoras não só
um diploma de nível superior, mas, oportunizando
que as mesmas se apropriassem de conhecimentos
mais específicos para um exercício mais competente
da profissão. Paralela e consequentemente, portanto,
a pesquisa problematizou a garantia dos direitos de
aprendizagem da leitura e da escrita dos alunos das
escolas públicas, pertencentes, majoritariamente,
aos grupos desprivilegiados da população, uma vez
que tal aprendizagem se encontra relacionada diretamente à profissionalização das professoras. Nesta
pesquisa, como será ressaltado, foram identificadas
práticas que parecem ter se consolidado na cultura
docente, porém, compondo um todo matizado, e não
uniformizado, decorrente do capital cultural das
docentes investigadas.
Partindo do material didático oferecido pelo
programa, de acentuada tônica construtivista em
oposição às concepções tradicionais, buscou-se analisar de que modo esse dispositivo de socialização
profissional poderia colaborar na transformação das
Artículo de Investigación
159
Belmira Oliveira Bueno / Flavia Medeiros Sarti / Eliana Scaravelli Arnoldi
A leitura e a escrita depois do
curso: o que ficou?
disposições docentes referentes ao ensino da leitura e
da escrita, uma vez que o programa apresentava, em
seu discurso, uma grande intencionalidade na direção
das mudanças das práticas docentes. É dentro deste
contexto que buscamos conhecer como tal grupo de
docentes realizava seu trabalho diário, visando identificar possíveis efeitos do pec sobre suas práticas.
As quatro professoras do 1º ao 3º ano que foram
acompanhadas demonstraram ter conhecimento do
discurso teórico relativo às hipóteses de escrita preconizadas por Emília Ferreiro. Apesar disso, todas, em
maior ou menor grau, ainda se valiam, na época das
observações, de exercícios preconizados pelo antigo
método silábico.
A professora que apresentou a maior quantidade
de vivências pedagógicas de cunho construtivista
em suas práticas justificava a mistura de métodos
que vinha fazendo, afirmando que “é preciso fazer
adaptações e ajustes, pois, tem criança que aprende
de um jeito e criança que não aprende daquele jeito,
do construtivismo. Tem criança que demora, que
precisa do be-a-bá. Não tem como, elas precisam ter
essa decodificação”. O uso das parlendas e cantigas
infantis como recurso alfabetizador, propostas pelo
construtivismo, apareceu nas práticas de três das
quatro professoras observadas, porém, enquanto
duas professoras utilizavam esse recurso privilegiando a interação com os alunos para a construção de
conhecimento de cunho linguístico, com momentos
de reflexão e análise, uma delas o utilizava somente
como subsídio para as atividades de cópia.
O mesmo foi observado na prática da escrita coletiva que, de recurso de palavras estáveis conhecidas
para fomentar a escrita de novas palavras, transformava-se na sala de aula de uma das professoras
em uma monótona e repetitiva atividade diária, que
ocupava, no geral, os primeiros cinquenta minutos da
aula. Quanto às listas de nomes, material considerado
essencial para a alfabetização de base construtivista,
constatamos que em três das quatro salas tais listas
existiam, porém, somente uma professora foi observada realizando reflexões de análise fonológica com
os alunos a partir desse material. A produção de
pequenos escritos, pautada no trabalho com gêneros
textuais nos anos iniciais de escolarização, foi observada apenas na prática de uma docente. Somente
duas fizeram uso de recursos didáticos diferenciados,
como, por exemplo, letras móveis e crachás de nomes
próprios que fugiam da tríade caderno-giz-lousa.
No geral, as professoras quase não davam atenção
à leitura em suas aulas, atrelando essa atividade ao
ensino da escrita e distanciando-se, portanto, da
Contribuições da etnografia educacional para o
estudo de minorias/maiorias
saberes para o ensino. A atividade de ensinar, que
realizavam há tantos anos, parecia-lhes cada vez mais
complicada e algumas delas mostravam-se inseguras
para o retorno ao trabalho na escola.
Todavia, esse processo não é linear e nem mesmo
homogêneo. A autoestima positiva das docentes tem
sido reiterada por elas continuamente, durante e após
terem concluído o curso, pelo fato de terem um diploma de ensino superior concedido por uma universidade de grande reputação e pelo reconhecimento
social que passaram a gozar. Esse é um dos ganhos
mais evidentes desse processo, que, no entanto, não
é suficiente para permitir que nossas mestras ultrapassem as barreiras sociais que lhes foram impostas
e nem para o necessário enfrentamento dos desafios
cotidianos em suas escolas. O programa foi finalizado,
mas a vida e o trabalho continuam nas escolas, quase
sempre de forma solitária e, quase sempre sem o
reconhecimento por terem obtido um diploma de
ensino superior.
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perspectiva de formar o leitor literário desde a mais
tenra infância.
As outras quatro professoras pesquisadas (dos
anos finais do Ensino Fundamental I) apresentaram
práticas ainda mais heterogêneas entre si. Uma delas
privilegiava as atividades do ensino de gramática,
preocupando-se sobremaneira com a nomeação dos
fenômenos linguísticos, não tendo sido flagrada em
nenhum momento realizando atividades de produção
de textos com seus alunos. Suas aulas se organizavam
quase sempre da mesma maneira: colocava um breve
exercício na lousa, retirado de um caderno de páginas
amareladas e, a seguir, dava cinco minutos para os
alunos responderem. Durante o desenvolvimento da
correção de tais exercícios, mesmo quando os alunos
acertavam as repostas, a professora as rejeitava privilegiando uma resposta correta: aquela que se achava
em seu caderno! Embora esta prática privilegiasse
as nomenclaturas gramaticais, muitos alunos ainda
pareciam não as ter interiorizado e/ou compreendido
seus significados.
A segunda professora observada enfatizava a
prática de produção de texto, porém, sem se preocupar com a reescrita e a revisão dos textos. Sua
opção era pela escrita espontânea dos alunos, dando
atenção apenas a correções de ortografia, mesmo
que o discurso escrito se apresentasse sem coesão
ou coerência. No que tange à leitura, essa docente
se restringia à prática oralizada, realizada por ela
própria ou pelos alunos com maior fluência leitora.
Eram comuns pequenos exercícios de leitura em voz
alta, aos quais se seguiam diversos comentários da
professora, tais como:
Tudo o que fazemos na sala exige leitura. [...]. A
leitura é para ser bonita! Para vocês entenderem o
que vocês estão lendo, vocês precisam dar pausas...
[...] Luís Paulo, você não pode ler tudo sem parar!
Quando tem ponto e vírgula, precisa respirar!
Outra professora ocupava a maior parte de suas
aulas com atividades de interpretação de textos realizadas a partir de um livro didático. A leitura, portanto,
era vista como pura decifração do código, mas sem o
viés oralizado do exemplo anterior. Já a quarta professora desse subgrupo apresentava de forma contínua
momentos de produção textual com reescritas que
envolviam discussões prévias e planejamento. Em
uma das aulas, por exemplo, essa professora leu duas
versões da fábula “A cigarra e as formigas” e questionou os alunos sobre as diferenças entre ambas antes
de partirem para a proposta da reescrita. Foi uma
rica discussão sobre a importância do estilo no texto
literário que evidenciou a perspectiva leitora dessa
mestra, tal como pode ser visto no seguinte diálogo
da professora com os alunos:
-
É a mesma história?
-
Sim.
-
O que muda?
-
Os detalhes da história... A história do “num
belo dia”... “num dia...”. Não é isso, prô?, arrisca
Gabriel.
-
Isso. É a mesma coisa, mas, de um jeito mais
curto. Quando vocês escutam as duas histórias, qual é a que você mais gosta de ler?
Aquela com detalhes e informações ou a mais
simples?
-
A mais curta, porque tem menos palavras,
diz Leandro.
-
Mas é só por causa da quantidade de letras que
vocês gostam mais ou menos de uma história?
Qual é o jeito que vocês gostam mais?
-
Da segunda [a mais curta], respondem Áurea
e Carlos.
-
Então, vocês gostam da mais curta, porque tem
menos detalhes. Eu, particularmente, gosto de
uma história mais elaborada. Quando ele fala
“num dia de inverno”, eu vejo... Mas, quando
ele fala “um belo dia de inverno”, eu consigo
imaginar esse dia...
As descrições acerca do trabalho pedagógico
desenvolvido por essas professoras exibem a diversidade de práticas que atravessa nossa estrutura
educacional. Levam-nos também a pensar que os
conhecimentos de cunho construtivista sobre o ensino da leitura e escrita trabalhados ao longo do pec
foram como que se perdendo pouco a pouco ou sendo
(re)apropriados de maneira até mesmo divergente
do que foi proposto pelo programa.
Todavia, o mais importante foi perceber que as
professoras não apenas “filtram e selecionam os conteúdos propostos, além de interpretá-los de acordo
com sua experiência” (Rockwell, 1995, p. 93), mas que,
independentemente de suas orientações pedagógicas,
poucas se mostram capazes de oferecer a seus alunos
oportunidades de aprendizagem mais efetivas que
lhes garantam o direito de aprender a ler e a escrever
com proficiência. Assim, embora submetidas durante a
execução do programa a um intenso ritmo de estudos
para se apropriarem do arcabouço construtivista da
alfabetização, apenas duas das oito professoras observadas revelaram ter deixado para trás suas crenças
metodológicas. Talvez, até porque tenham fortalecido
crenças que de alguma forma já as tinham.
Nosso estudo apontou que as lacunas e deficiências no ensino da leitura e da escrita são também
devidas à falta de condições objetivas de trabalho
que favoreçam a recriações das práticas pedagógicas
assentadas nas teorias com as quais as professoras
entraram em contato durante o curso especial de
nível superior. Bernard Lahire (2004, p.333) observa
que esse aspecto contextual acaba por provocar o
fenômeno da frustração, levando a que o sujeito se
sinta “impotente, pois não encontra as condições
disposicionais favoráveis à sua concretização”.
Por fim, o estudo evidenciou que o habitus leitor e
o habitus escritor de cada professor/a influi, em grande medida, no habitus docente relativo ao ensino da
leitura e escrita. Duas professoras que em suas entrevistas apresentaram percursos de formação literária
e escritora diferenciados, revelando, por exemplo,
assiduidade a bibliotecas públicas no período da infância e juventude e momentos de compartilhamento
de leitura com seus filhos, são justamente as professoras que mais parecem fomentar, por meio de suas
Conclusões
As análises apresentadas neste artigo explicitam um
dos grandes paradoxos que caracteriza o processo
de democratização do ensino superior no Brasil no
campo do magistério. Pois, ao mesmo tempo em que
as professoras conquistam o direito de cursar o ensino superior, elas se vêm subtraídas de seu direito
de receber uma formação em condições de maior
igualdade com aqueles que ingressam em cursos
superiores regulares. O Estado busca reparar uma
dívida social, já que a maioria dos professores que
frequenta tais cursos vem de extratos sociais mais
desfavorecidos, porém, vale-se de um dispositivo que,
além de submeter as professoras a duras jornadas de
trabalho e não permitir que elas possam se dedicar
com afinco ao curso, fomenta a (re)criação de hierarquias sociais na universidade e na educação básica.
Artículo de Investigación
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Belmira Oliveira Bueno / Flavia Medeiros Sarti / Eliana Scaravelli Arnoldi
a variedade de capitais na estruturação dos habitus,
decorrente da frequência com que os agentes se
movem e “jogam” em vários campos, dota-os de
[volume e estrutura de capital e, consequentemente
de] uma maior plasticidade que se desdobra em
uma crescente e mais pronta possibilidade de conversões e reconversões das disposições para pensar,
agir, sentir e gostar, revestindo-as de roupagens
cada vez mais complexas e distintas.
práticas, o gosto pela leitura e escrita em seus alunos.
Pareceu-nos pouco provável, desta forma, que uma
docente possa despertar o gosto pela leitura e escrita
de seus alunos e ensiná-los de maneira adequada se
ela própria não carrega consigo o gosto por essas
práticas culturais (Bueno, Souza, e Bello, 2008). Isso
não significa que a ausência do gosto pela leitura e
escrita por parte das docentes seja um impedimento
para que elas estabeleçam uma relação positiva com
o ensino e a aprendizagem nessas áreas. Contudo,
aponta para uma perspectiva muito restrita à manipulação de signos.
Esses aspectos nos levam a reafirmar que mudanças significativas das práticas docentes, sobretudo
as relacionadas à leitura e escrita, requerem investimentos contínuos e por tempo prolongado. Em que
pese o intenso discurso teórico do pec, com grande
ênfase sobre a importância da leitura e da escrita no
mundo atual para os alunos de todos os níveis, isso
não foi suficiente para transformar o habitus docente.
Fomos levadas a pensar que, enquanto alunas do pec,
as professoras ‘forjaram’ apenas um habitus leitor e
escritor temporário visando responder às demandas
do curso, mas não o mantendo nos anos seguintes. As
atuais condições objetivas financeiras e temporais das
docentes, representadas por jornadas duplas ou até
mesmo triplas, em alguns casos, além de mal remuneradas, também colaboram para o distanciamento de
tais professoras das práticas culturais, excluindo-as,
por exemplo, do meio cultural literário e colocandoas, mais uma vez, sob o risco de se aproximarem de
uma condição de minoria marginalizada, que consequente e paradoxalmente reproduz e amplia esta
condição cultural para seus alunos.
Contribuições da etnografia educacional para o
estudo de minorias/maiorias
Entendemos que isso se deve a várias razões. Em
primeiro lugar, porque as representações sobre as
práticas docentes se estruturam desde muito cedo,
até mesmo em momentos anteriores à entrada na
escola, estendendo-se por todo o percurso da vida
escolar e profissional (Bueno, 1996). No caso das
mestras focalizadas neste estudo, esse aspecto
mostrou-se relacionado às experiências formativas
realizadas em contextos diversos e às interações
com seus pares no trabalho. As professoras apontadas como mais eficientes, e que mais modificaram
suas práticas de acordo com o ideário proposto pelo
programa, apresentaram um percurso de estudos
muito mais amplo e diversificado que as demais. Elas
mencionaram suas leituras de livros teóricos, feitas
por interesse próprio, e a participação em cursos de
pós-graduação, especialização e de formação profissional oferecidos pela própria rede de ensino na
mesma linha teórica do pec. Além disso, relataram
experiências positivas com coordenadores que as
auxiliaram a transformar suas práticas. Brandão e
Altmann (2005, p. 5) ao analisarem a transformação
do habitus, observaram que
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A desqualificação do curso e a exclusão daí decorrente sentida pelas professoras desde o início do
programa — “Ah! Você faz o pec...!” — foi tão somente
o primeiro sintoma de um processo de inflação dos
títulos escolares e da consequente reclassificação
dos grupos que concorrem ao diploma de educação
superior. Segundo Bourdieu (1998, pp. 149-50),
Um diploma tem todas as chances de ter sofrido
uma desvalorização todas as vezes que o crescimento do número de portadores de títulos escolares é
mais rápido do que o crescimento do número de
posições às quais esses diplomas conduziam no
início do período.
A despeito disso, as professoras reiteraram
unanimemente que se sentiam muito felizes com o
diploma. Como pesquisadoras, nos curvamos ante tal
sentimento de êxito —ou de vitória, como muitas o
definiram— sobretudo, pela autoestima elevada que
essa experiência e esse título lhes trouxeram. Todavia,
nossas indagações permanecem: de que modo essa
satisfação se repercute no fazer docente cotidiano e
em suas carreiras?
As pesquisas aqui reunidas sugerem que durante
a vivência no pec as professoras aderiram a modelos
de leitura e de escrita bem como a concepções profissionais que lhes eram então apresentadas como sendo
mais valiosas do ponto de vista simbólico e, portanto,
capazes de aproximá-las de uma profissionalidade
mais legítima e vantajosa no campo educacional. No
entanto, a adesão a tais modelos e concepções demandava esforços significativos por parte delas, posto
que deveriam conciliá-los a suas rotinas intensas de
trabalho na escola e na vida familiar. Enfrentavam,
também, conflitos diversos relativos, de um lado, a
sentimentos de expropriação de seus próprios saberes
e práticas profissionais e, de outro, ao enfrentamento das condições objetivas de trabalho, em muitos
aspectos discrepantes das expectativas alimentadas
pelo programa. É possível supor que tais condições
lhes dificultavam a efetiva incorporação dos capitais
culturais relativos a esses modelos e concepções vivenciados no pec, restringindo suas possiblidades de
apropriação de um novo habitus profissional.
Chegaram, pois, ao final do programa satisfeitas
com os ganhos de capital cultural institucionalizado
(Bourdieu, 1979) na forma do diploma superior outorgado por instituição de prestígio, mas, reduzidos
foram seus rendimentos no que diz respeito ao capital
cultural incorporado. Assim, ao lado dos sentimentos de êxito pessoal que as professoras revelavam
em seus depoimentos, emergiam novas angústias
profissionais ligadas à percepção da distância que as
separava do modelo de profissionalidade assumido,
inclusive por elas mesmas, como mais valioso. A identificação desses processos vividos pelas professoras
no pec nos leva a questionar se a aceitação de um
modelo ideal de profissionalidade, em vários aspectos inacessível em seu cotidiano profissional, não as
tornaria mais suscetíveis às artimanhas do discurso
da (in)competência (Souza, 2006) e a sentimentos
de incompletude que as incitam ao consumo de produtos formativos, sob a aceitação de que cada qual é
“um professor sempre a formar” (Bocchetti e Bueno,
2012). Se assim for, em que pesem os benefícios
obtidos como alunas do programa, as professoras
dele egressas estão vulneráveis aos processos de
desvalorização cultural que desde há muito tempo
vem acometendo o magistério no Brasil. Distantes
do modelo de profissionalidade mais vantajoso no
campo educacional, discriminadas e estigmatizadas
por seus habitus profissionais, e subordinadas como
consumidoras de um amplo mercado formativos dirigido ao magistério (Souza e Sarti, 2014), as professoras, e professores, se vêm cada vez mais próximos da
fronteira social. Os riscos de cruzarem as fronteiras
e ingressarem na faixa das minorias são grandes se
políticas de efetiva valorização e desenvolvimento
profissional docente não forem adotadas. Entendemos que a formação continuada nos moldes em que
vem sendo feita forja um imaginário de inclusão social que, na realidade, não se concretiza nem para os
docentes que dela participam nem para seus alunos
que, supostamente, se beneficiariam das aprendizagens de seus mestres. Por isso, vale lembrar uma
afirmação de Azanha (1998) que, apesar de singela,
ainda não foi devidamente convertida em fato “são
as escolas que precisam ser melhoradas. Sem este
esforço institucional, o aperfeiçoamento isolado de
docentes não garante que essa eventual melhoria do
professor encontre na prática as condições propícias
para uma melhoria de ensino.” (p.58).
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