Academia.eduAcademia.edu

Quem Cuida De Quem Cuida?

Revista Feminismos

O presente artigo é fruto das reflexões e diálogos entre as autoras durante um ano e meio de isolamento social, em decorrência da pandemia de Covid-19. Selecionamos alguns trechos desse período, trazemos aqui em relato, experiências em que nós – duas mulheres, mães, professoras, divorciadas, pesquisadoras cursando doutorado em Artes Cênicas por diferentes programas de pós-graduação, residentes de localidades distintas (Brasília e João Pessoa), atravessando a pandemia do covid-19 conectadas e enfrentando desafios. O recorte de tempo apresentado aqui foi estabelecido de modo a se concentrar em uma semana o que se vivenciou cotidianamente. Propomos aqui um exercício de f(r)icção (LYRA,2011), onde há um entrelaçamento entre o passado, o presente e o futuro, ficcionado em um breve período de tempo.

QUEM CUIDA DE QUEM CUIDA? Barbara Duarte Benatti1 Joana Vieira Vianna2 Resumo: O presente artigo é fruto das reflexões e diálogos entre as autoras durante um ano e meio de isolamento social, em decorrência da pandemia de Covid-19. Selecionamos alguns trechos desse período, trazemos aqui em relato, experiências em que nós – duas mulheres, mães, professoras, divorciadas, pesquisadoras cursando doutorado em Artes Cênicas por diferentes programas de pós-graduação, residentes de localidades distintas (Brasília e João Pessoa), atravessando a pandemia do covid-19 conectadas e enfrentando desafios. O recorte de tempo apresentado aqui foi estabelecido de modo a se concentrar em uma semana o que se vivenciou cotidianamente. Propomos aqui um exercício de f(r)icção (LYRA,2011), onde há um entrelaçamento entre o passado, o presente e o futuro, ficcionado em um breve período de tempo. Palavras-chave: teatro de animação; pesquisadoras; feminismos; pandemia. Abstract: This article is the result of reflections and dialogues between the authors during a year and a half of social isolation, as a result of the Covid-19 pandemic. We have selected some excerpts from this period, we bring here in a report, experiences in which we - two women, mothers, teachers, divorcees, researchers pursuing a doctorate in Performing Arts for different graduate programs, residents of different locations (Brasília and João Pessoa), through the covid-19 pandemic connected and facing challenges. The time frame presented here was established in order to focus on one week of what was experienced daily. We propose here an exercise in f(r)iction (LYRA, 2011), where there is an intertwining between the past, the present and the future, fictionalized in a brief period of time. Keywords: animation theatre; researchers; feminisms; pandemic. Graduada em Administração com ênfase em Hotelaria pelo Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB (2005). Licenciada em Educação Artística: Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília-UnB (2008). Pós-graduada com especialização em Hotelaria Hospitalar, pela Universidade de Brasília-UnB (2009), dando desenvolvimento a pesquisa iniciada na graduação, ampliando o repertório sobre a inclusão das artes no processo de recuperação. Mestre em Artes Cênicas (2017), pela Universidade de Brasília-UnB. Atualmente é doutoranda em Teatro pela Universidade de Brasília, membro do BASis do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anysio Teixeira. ORCID: https://orcid.org/00000001-8301-6910 2 Doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Tem mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016. É pós-graduada (especialização) em docência no Ensino Superior, UNOPAR, 2015. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília, 2006. Professora de Teatro pela prefeitura municipal de João Pessoa-PB desde 2005. Atriz, professora, pesquisadora e produtora. 1 342 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 Um abraço no futuro Escrevo E experimento a sensação De que um dia meu filho, já velho, Lerá estas páginas sem saber Que dormia em meu colo Enquanto escrevo Na tentativa de capturar Este instante que foge Agora escrevo, meu filho, Somente para te mandar Este abraço no futuro. Um abraço apertado Dizendo vai, segue adiante. Viver é sempre o mais importante. Viviane Mosé Primeiras palavras Após um ano e meio de pandemia, o desânimo, o desalento, a debilidade, a dúvida e o luto ainda estão presentes no dia a dia, o que põe em pauta os cuidados com a saúde mental. Nos perguntamos: quem cuida de quem cuida? Para nós mulheres, as desproporções se acentuam nos diversos contextos em que a pandemia tem sido implacável, escancarando a desigual economia do cuidado. Assim, “a pandemia tem gênero”, como afirmou a professora Dra. Débora Diniz em entrevista publicada na Folha de São Paulo.3 O trabalho doméstico continua centrado sobre as costas das mulheres (quando não as da dona de casa, as de mulheres terceirizadas). Se elas avançam em escolaridade e em muitas profissões no mercado de trabalho, continuam sendo as responsáveis por grande parte dos trabalhos em casa e pelos cuidados com os filhos. Dados do IBGE, de 2012, apontaram que 94,85% das mulheres exerciam dupla jornada (trabalhavam fora e dentro de casa), contra somente 5,2% dos homens. Esse relatório também apontou que a média de horas semanais gastas com trabalho doméstico para as mulheres é de 27,7 h, enquanto os homens trabalham apenas 11,2h. (ZANELLO, 2018, p. 140) Matéria Folha de São Paulo, “O mundo pós-pandemia, terá valores feministas no vocabulário comum” disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-teravalores-feministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-debora-diniz.shtml 3 343 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 A responsabilidade, com a sobrecarga do trabalho doméstico e dos cuidados com doentes, crianças e idosos, na maioria das vezes, é das mulheres. Em abril de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um documento fazendo uma previsão sobre os impactos para as mulheres e refletindo sobre possíveis orientações de políticas públicas que poderiam ser adotadas para atenuá-las. A nova realidade frente à pandemia de covid-19 nos obrigou a adaptar rotinas e mudou o nosso modo de trabalhar, de estudar e de nos reunir. Tudo acontece por meio de videoconferência, aplicativos de celular e programas de computador, ou como coloca Maria Homem (2021), o “modo zoom de viver”. Ferramentas como Whatsapp, Telegram, ZOOM, Google Meet, assim como as redes sociais como Tik Tok, Instagram, o Facebook e o Youtube se tornaram fundamentais para o trabalho, estudo e a vida social. As alterações provocadas pela crise da covid-19 modificaram a nossa relação com o ambiente doméstico, o lugar que antes passávamos pouco tempo, não mais se caracteriza como dormitório ou lugar de descanso nos finais de semana. A casa tornouse também restaurante, trabalho, escola, academia para exercícios físicos, lazer e sala de espetáculos. Diante das ameaças do mundo externo, o nosso lar representa “segurança”. Gaston Bachelard (1993), no capítulo I da Poética do espaço, reflete sobre as relações simbólicas da realidade e imaginação e nos leva à reflexão em torno dos encadeamentos oníricos que transcendem o espaço físico e a materialidade. Dessa forma a simbologia da “casa” ─ abrigo, refúgio, aposentos, ─ como também espaços que representam o porto de emoções ─ sótão, porão, corredores ─ são desvendados. Trata-se dos vínculos entre ambiente e inconsciente, cruzando a relação entre o ser e o espaço: Seguindo nosso método, quisemos guardar a colagem das imagens que recusa uma anatomia absoluta. Tivemos que evocar incidentalmente a cosmicidade da casa. Mas será preciso ainda voltar a esse caráter. Devemos agora, depois de ter examinado a verticalidade da casa onírica, estudar, como anunciamos anteriormente, os centros de condensação de intimidade em que se acumula o devaneio. (BACHELARD,1993, p. 374) Com a mesma rapidez que o vírus ultrapassou as fronteiras e tomou conta do mundo, fomos obrigadas a repensar modos de agir e tornar possível, não só a nossa sobrevivência como também a continuidade dos projetos em andamento, de modo a 344 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 caber tudo dentro de casa. Como realizar criações e produções artísticas, eventos e pesquisas de campo, sem colocar em risco a nossa saúde e a de outras pessoas? O presente artigo é fruto das reflexões e diálogos estabelecidos entre nós, pesquisadoras, durante o período de um ano e meio de isolamento. Trazemos aqui em relato, experiências em que nós, autoras – duas mulheres, cis, hétero, monogâmicas, divorciadas e mães. Uma branca, gorda e hipertensa, uma negra que tem dificuldade em se entender negra porque passou muitos anos achando normal ser parda. As duas professoras: uma concursada, de licença remunerada para estudo e outra desempregada, demitida logo no início da pandemia; duas artistas em adaptação às novas tecnologias, doutorandas de Artes Cênicas por diferentes programas de pós-graduação (UnB e Udesc), residentes de localidades distintas (Brasília e João Pessoa), atravessando a pandemia do covid-19, conectadas e enfrentando desafios. O recorte de tempo apresentado aqui foi estabelecido de modo a se concentrar em uma semana o que se vivenciou cotidianamente, durante o período de quase um ano e meio de convivência diária, mesmo que à distância. Selecionamos alguns trechos desse período, como também a ocasião em que nos preparávamos para palestrar4 no II Encontro de Lambe-lambe. Propomos aqui um exercício de f(r)icção 5 (LYRA,2011), onde há um entrelaçamento entre o passado, o presente e o futuro, ficcionado em um breve período de tempo. O passado se faz presente no que vivemos, no que viveram nossas antepassadas, nossas mães, nossas avós e as mulheres que vieram antes, que nos inspiram a seguir adiante, nos movendo cotidianamente, em direção ao futuro, ao que sonhamos para nós, para os nossos filhos e para o mundo. A meta é sempre a estrela: é a profissão, a pesquisa, a relação com a arte, com o teatro; a meta é ter os filhos saudáveis, felizes, plenos em suas existências; a meta é a esperança na vacina; a meta O II Encontro de Teatro de Lambe-Lambe - ocupação 508 Sul foi realizado pelo grupo As Caixeiras Teatro de Bonecas, de Brasília DF, no período de 1 a 12 de fevereiro de 2021, com recursos do Fundo de Apoio à Cultura/DF. O evento foi composto por palestras, oficinas, apresentações e rodas de conversa. Na palestra As Mulheres no Teatro de Animação, nós, autoras deste artigo, compartilhamos nossas pesquisas em processo, problematizando preconceitos e desafios que nós mulheres artistas, mães e pesquisadoras enfrentamos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XhVUIlHqLIE 5 O termo f(r)icção foi utilizado por Luciana Lyra (2011) em sua tese de Doutorado, para designar o entrelaçamento entre atrizes e atores e outras pessoas, como figuras históricas ou pessoas que colaboram com estudos etnográficos, ficcionados em personagens. O termo alia fricção, atrito, encontro à ficção. 4 345 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 é um país comprometido com a justiça, combatendo os preconceitos e as desigualdades sociais. Nossas pesquisas e as questões sociais que nos dizem respeito serão aqui tratadas e a nossa proposta é fruto do nosso esforço em conjunto para refletirmos sobre alguns temas que nos são importantes. As referências que usamos para nos ajudar a compor esse trabalho são Ana Maria Amaral (2007), Maria Homem (2021), Valeska Zanello (2018), Gaston Bachelard (1993) e bell hooks (2019). Um abraço no futuro6 Cursamos a graduação em Artes Cênicas na Universidade de Brasília (UnB) e fizemos parte como extensionistas no Projeto de Extensão de Ação Contínua do Laboratório de Teatro de Formas Animadas (LATA). O Teatro de Animação é um campo que inclui diversas linguagens, tais como máscaras, sombras, formas, bonecos e objetos. Estas quando mescladas, compõem o Teatro de Formas Animadas. Marionete, boneco, figura, objeto ou forma. Qualquer que seja sua nomenclatura, estamos falando de um teatro onde o inanimado é personagem central. Assim, Teatro de Bonecos é um termo insuficiente para abranger todas as manifestações que se pretende expressar, isto é, não apenas a representação do quotidiano humano, mas também ideias simbolicamente colocadas através de objetos e formas abstratas. Daí o nome: Teatro de Animação. (AMARAL, 2007, p. 16) Amaral, referida acima, usa o termo Teatro de Animação e o conceitua como aquele que abrange por princípio todo o teatro onde o foco da cena não está no ator, está nas figuras que representam os seres humanos, animais ou ideias abstratas, por meio de bonecos, sombras, máscaras, objetos ou qualquer ser inanimado. Durante a graduação, sem filhos, experimentamos diversas linguagens teatrais, atuamos, criamos. Encontramo-nos encantadas pelo teatro de objetos, uma das linguagens do teatro de animação, onde objetos da vida cotidiana são ressignificados em cena. Optamos por fazer referência ao poema de Viviane Mosé nos subtítulos do artigo, com exceção da introdução (Primeiras palavras) e os dias da semana que compõem o subtítulo, Capturando um instante que foge. 6 346 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 Fizemos experimentações com objetos de cozinha: uma bucha que passeia por ímãs de geladeira, conhecendo diversos lugares, retorna à pia e comete suicídio ao se deparar com a quantidade de louças acumuladas. Brincadeiras despretensiosas que aconteciam em ensaios programados. Nos formamos e a vida se incumbiu de nos afastar. Tomamos rumos e caminhos diferentes, nos reencontrando depois de treze anos, novamente no LATA. No reencontro, percebemos que nossas pesquisas estavam caminhando com temas similares: Mulheres no Teatro de Animação e Mulheres no Teatro de Bonecos Popular do Nordeste, o Mamulengo. Uma com o olhar específico sobre o fazer artístico das mulheres na Cultura Popular na cidade de Glória do Goitá-PE e outra com o olhar macro sobre a atuação das mulheres no campo do Teatro de Animação no Brasil. O Mamulengo se estabeleceu em torno de uma tradição oral, de encontro e comunicação, que tem como característica marcante a participação do público que funciona como co-criador do espetáculo. Essa manifestação faz parte do que se entende como Teatro de Bonecos Popular do Nordeste, que em 2015 foi reconhecido pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil. Adaptando-se através do tempo, o Mamulengo trabalha com elementos capazes de se fixarem e de se combinarem a outros, porém, conservando códigos próprios. A inserção das mulheres na tradição é algo relativamente recente, dos bastidores a protagonistas, a nova geração de bonequeiras modifica o Mamulengo de forma mais dinâmica, criando novos temas, histórias, personagens, utilizando novos materiais para confecção dos bonecos e objetos de cena, na perspectiva de tornar a brincadeira mais atual. Há uma ressignificação das passagens, na busca por desconstruir narrativas de violência, preconceito, machismo e homofobia, por exemplo. Temas como violência doméstica e discriminação racial entraram em pauta, trazendo a legislação vigente à cena. Em um contexto mais amplo, muitas transformações aconteceram nas diversas linguagens do teatro de animação, impulsionadas pelos avanços tecnológicos e a globalização. Com o início da pandemia, mulheres que se dedicam ao Teatro de Animação no Brasil conectaram-se em uma rede de apoio sem liderança fixa, criando a Rede de Bonequeiras Brasileiras (RBB), da qual as pesquisadoras fazem parte. 347 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 Com a pandemia, os encontros e as apresentações passam a ser mediados por plataformas tecnológicas, veiculados por redes sociais como o Youtube e o Instagram. A pesquisa em arte também busca a reinvenção e o reencantamento. Neste momento, as pesquisadoras se reconhecem e percebem haver inúmeras afinidades, não só na vida cotidiana de mulheres-mães-pesquisadoras-em-tempos-pandêmicos, mas também na interface dos temas de suas pesquisas. A partir deste reencontro, passaram a se comunicar diariamente, estabelecendo uma relação de amizade, parceria e apoio mútuo. Aos poucos foram percebendo que além das pesquisas, fatores das vidas cotidianas estabeleciam um diálogo enriquecedor e bem-humorado, exemplificado na narrativa a seguir. Capturando um instante que foge Tudo em minha casa tem existência. Todas as coisas significo. Com os olhos. Ou com as mãos. Minha casa tem silêncios. Que às vezes ouço. Em meu corpo Tem silêncios maiores ainda. Que às vezes ouço. E faço poemas. Faço poemas dos silêncios que ouço. (Viviane Mosé) madrugada de sábado para domingo Perdi o sono, fui ver esse vídeo maravilhoso que você me mandou pelo Instagram7. A modelo está interpretando uma andróide no programa da Xuxa. Estamos falando do final dos anos 80? A música de ficção científica tocando no Xou da Xuxa, me fez querer ver o diálogo mais de uma vez para poder transcrever. Xuxa pergunta: - Vem cá, me diga uma coisa. Como é que é lá em 2023? A mulher robô usando lentes de contato brancas, mais ou menos com os olhos do Marilyn Manson responde com sua voz robótica cheia de ecos futurísticos: 7 Vídeo disponível em: https://www.instagram.com/p/CRmad6DD_ix/ 348 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 - Estamos muito felizes, a natureza está em ordem. Estamos todos bem, não há guerra, os seres humanos se conscientizaram da paz. Xuxa incrédula insiste na pergunta: - E os baixinhos então eles vão poder viver em um mundo muito melhor, sem violência, sem drogas? - Sem drogas. Sem violência. O futuro é belo. Gostaria de me apegar à ideia oracular de um futuro belo para o planeta Terra. Como faz para manter o otimismo com tantos desafios que existem nesse presente? A evolução da pandemia, a ascensão de governos de extrema direita e o próprio aquecimento global, que evoluiu para uma crise climática que ameaça destruir o equilíbrio dos ecossistemas. O passado e o presente não são belos. Semana passada me deparei com a notícia da Paola Amaral, uma travesti negra que foi torturada. A andróide falou que estamos bem, em 2023. Mas em 2021 se amarra uma pessoa pelos pés! Paola recebeu pancadas impiedosas de homens que se alternavam no espancamento com pedaços de pau. Pedaços de pau. E a patroa que despachou um baixinho no elevador de serviço, lembra? O menino Miguel Otávio. E o João Alberto Silveira Freitas, com aquele tanto de gente no supermercado, filmando o espancamento sem dizer nada? Espero que o futuro seja belo, porque o presente é uma distopia. Domingo Era para ser um dia de desanuviar. Um domingo para descansar vendo aquele filminho de fim de tarde. Queria um filme para anestesiar, sem pensar. Colcha de Retalhos é um filme dos anos 90 em que vamos acompanhar um pedaço da história de Finn (Winona Ryder), uma jovem que precisa terminar sua tese de doutorado, ou pode ser mestrado, na narrativa não ficou muito claro. Enfim, trata-se de uma pesquisadora que, depois de ter mudado três vezes o tema de sua pesquisa, agora irá falar sobre trabalhos manuais realizados por mulheres. Assim, decide ir para a casa da avó, no interior, passar o verão, buscando por paz e tempo para escrever. O filme começa com aquele glamour que, óbvio, me projetei. Também sou jovem doutoranda. Somos jovens doutorandas. Mas voltando para Finn, além da pesquisa em andamento, ela acabou de receber uma proposta de casamento e está noiva, mas está em dúvida se deve se casar ou não. 349 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 Encontra o grupo de amigas de sua avó, que se reúnem regularmente para fazerem colchas de retalhos à mão. Ao tomarem conhecimento de que Finn está noiva, decidem que seu próximo projeto será uma colcha, como presente de casamento. Colocam o tema: “Onde vive o Amor?” E a partir daí cada trabalho conta uma história. As mulheres mostradas no filme, com suas histórias de amores, me lembraram o livro da Valeska Zanello. Continua sendo sobre como nos subjetivamos em nossa cultura em relação a nós mesmas. Você percebeu que no filme a história de cada mulher é contada não por suas profissões, sonhos, amores pela vida, mas sim diversas histórias de corações partidos? A rivalidade entre as mulheres também está lá, com as irmãs disputando entre si, o amor dos amantes. O dispositivo materno e o amor de mãe e filha, cada uma delas representada por um dos quadrados da colcha. Uma colcha costurada sobre muitas mágoas e assuntos mal resolvidos. Achei que seria um filminho bom, mas o que temos foi mais do mesmo: a mulher que dispõe de si para o outro, o processo de subjetivação mediado pelo olhar do outro que a escolhe. Enfim, depois me diz o que você achou. Segunda-feira Oi querida, assisti o filme e fiquei com a impressão de que meu olhar nunca mais será impune, não conseguirei, jamais, me desvencilhar da leitura da Valeska Zanello, dos dispositivos amoroso e materno. Em um primeiro momento pensei que era um filme bom, leve, tipo as comédias românticas que servem para descansar a mente da realidade atroz, mas depois, refletindo com calma, pude perceber que é uma tecnologia de gênero, que continua reforçando o lugar da mulher que só será feliz, se tiver ao lado de um homem. As crises da personagem não se resolvem, ela passa por cima e acaba fazendo o que a sociedade espera dela: casar e se preparar para ter filhos. Por um momento pensei que ela largaria os dois pretendentes e ficaria com a tese, mas parece que a realização por meio da carreira fica em segundo plano, como as outras mulheres que contam de suas experiências, na trama. O filme toca em alguns temas interessantes, como o encontro das gerações, o cuidado e a costura como atribuições “femininas”, a rivalidade, a traição masculina sendo entendida como natural, a submissão das mulheres, mas não aprofunda, pelo contrário, só reforça o dispositivo amoroso. Fiquei 350 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 pensando em qual final seria ideal, qual seria a resposta para a pergunta da colcha: Onde mora o amor? Por um momento também penso se este olhar tão duro para esta narrativa não está impulsionada pela minha vida amorosa, recentemente desfeita pelo fim de um casamento. O fato é que hoje é difícil para mim pensar em um final feliz nesta área. Sabe que quando eu estava perto de me separar tive que morar um tempo na casa da minha mãe, enquanto não alugava um apartamento novo. Três adultos, duas crianças e uma gata, em um espaço que antes ela vivia só com a gatinha dela, em isolamento. Dizem que as visitas têm prazo de validade, depois de três dias começa a feder. Ficamos nessa situação por um mês. Foi muito difícil, principalmente porque era fim de casamento, muita desarmonia e pouca cooperação. No final minha mãe estava tão irritada com tudo que eu passava diariamente que escreveu esse texto para mim: Figura 1: Texto8 que a mãe escreveu sobre o trabalho da filha (2021). Foto: Rejane Vieira. O texto diz: Impossível esperar que alguém dê o que não tem. A fada não tem mais saco para fazer o serviço que ninguém gosta. A fada limpa o lixo e a lixeira. A fada troca os sacos de lixo da cozinha e do banheiro. A fada lava a louça e os copos de água em cima do filtro. A fada enche o filtro de água. A fada guarda a comida da mesa, do fogão. A fada limpa o chão dos farelos de bolacha. A fada lava o banheiro. A fada coloca a roupa na máquina. A fada recolhe a roupa no varal. A fada quer sonhar, quer ser livre e voar. A fada paga as contas, a fada trabalha fora também. A fada precisa de paz, a fada não quer mais. (VIEIRA, 2020) 8 351 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 Entre segunda e terça Meus dias são muito parecidos. O despertador toca Gonzaguinha cantando “Não dá mais para segurar” às 6h30 e vou desligando de oito em oito minutos. Minha gata começa a morder meus pés e fica impossível enrolar mais. Queria dormir mais. Preparo o café dos meninos, após eles comerem, tomo o meu café, normalmente em pé e arrumando a cozinha. Até as 11h fico no suporte técnico e sendo bedel da escola deles. Eu brigo, reclamo e limpo o chão da minha casa. Queria bater no imbecil que inventou cerâmica branca. Ontem falei no grupo de pesquisa que vou colocar no currículo Lattes a minha habilidade de congelar comida, mas é mentira, eu não tenho essa habilidade. Todo dia eu faço almoço, o arroz branco de ontem, vira arroz com ervilha de amanhã, conforme ele vai minguando, vou adicionando ingredientes novos até o arroz acabar. O arroz tá muito caro. Peguei sol na varanda, achei engraçado ver na janela do meu vizinho uma bandeja de carne congelada, estava lá pegando sol. Igual eu. Fui me deitar às 21h, pois eis que às 3h da madrugada de terça-feira, levantei. Não estava conseguindo dormir coabitando no mesmo lar do ralo entupido, não estava conseguindo esperar amanhecer para ligar para o bombeiro hidráulico. Me deu uma leve aflição ter que chamar alguém para prestar um serviço em plena pandemia. Logo eu que estava me achando tão brava e valente por ter conseguido abrir o ralo, olhar para aquele minipoço seboso, enfiar a mão no buraco e tirar manualmente os tufos de cabelo. Apesar da minha valentia, não resolvi o problema. Depois outra tentativa e o sentimento de valentia volta por eu ter conseguido despejar o "Diabo Verde" líquido sem acidentes. Não funcionou e a água continuou voltando. Às 3h da manhã me levantei e fervi 5 livros d'água, dissolvi bicarbonato e fui despejando aos poucos no ralo. A pia do banheiro arrotou, o lodo desceu e a água escoou. Para ter certeza que resolveu, decidi tomar banho. Depois, voltei a deitar e não consegui dormir. Fiquei pensando nas lições da vida e nos lugares onde elas resolvem se mostrar, nos lugares mais inesperados em que se revelam. Mas é só um ralo, você pode me dizer. Não, não é só um ralo. Vai soar cafona, mas acho que é sobre persistência. Persistência, será mesmo? Não sei mais se é, não sei mais o que foi. Sei que na madrugada fiquei pensando que é sobre se informar 352 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 como resolver e mesmo com toda a informação, perceber que não existe um manual exato sobre as coisas. Não existe um plano certo garantindo que ao executar o passo a passo, irá funcionar. Não existe: leia o rótulo, converse com essa pessoa, veja esses vídeos, com isso você terá o alicerce para… Não, não existe um manual. A vida não é como na engenharia. Não existe a certeza de que com essas ou aquelas informações você terá a evidência do resultado esperado. Pode até ter algumas pessoas que consigam esse nível de ciências exatas. Mas eu acho que até quando a gente acorda, como naquele filme do dia da Marmota 9 , você percebe que mesmo lá, havia algo que não fora revelado. Continuo achando que se o caminho fosse para ser fácil, a gente não encarnava num planeta chamado "Provas e Expiações." Terça-feira A casa é um ser vivo em mutação, refletindo e interferindo no que seus habitantes são ou estão passando. Minha história com casa é no mínimo algo em transição, dado o número de mudanças que minha família já fez, interestaduais inclusive. Penso nas pequenas transformações diárias que presenciamos - em cada canto que insiste em se empoeirar diariamente, à revelia de todas varridas, passadas de pano e aspirador, nossa abençoada rotina de: mulher-mãe-pesquisadora-artista-e-uma-série-de-outras-coisasmais-que-não-vem-ao-caso-agora; as coisas que quebram, amarelam, descascam, entopem… A casa da gente é um pouco como o nosso corpo. Este pensamento deve ser coisa de quem trabalha com teatro de animação e está acostumado a ver vida em tudo. Se é assim, podemos pensar em adoecimento psicossomático da casa? Será que a bagunça generalizada é proporcional ao meu stress, que é retroalimentado pela bagunça? As marcas na pintura são como as rugas na pele, revelando a passagem do tempo, diferente das manchas de infiltração e mofo, pois estas já são doenças crônicas, quem sabe até autoimunes. Agora eu te pergunto, minha amiga, o que será que você não está deixando fluir nesse processo, que sapo é este que você se recusa a engolir e “Feitiço do Tempo” é um filme de 1993, um repórter (Bill Murray) de previsões de metereologia vai a uma cidade no interior fazer uma matéria especial sobre o celebrado "Dia da Marmota". Planejando ir embora do lugar o mais rápido possível, ele inexplicavelmente fica preso no tempo, condenado a vivenciar para sempre os eventos daquele dia. 9 353 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 digerir para seguir em frente? Dizem que dor de garganta se dá por algo que não foi dito… Quem sabe agora, com o desentupimento do ralo, as energias possam fluir melhor, deixando o caminho mais leve, assim espero! Lembro do vídeo10 que fiz para a disciplina de metodologia, no início da pandemia, em que estou fazendo uma receita de pão, utilizando os ingredientes da receita como metáfora para os elementos da minha pesquisa. A lembrança veio por conta do final do vídeo, quando, mesmo com o pão pronto, chego à conclusão de que não tem receita, tudo pode acontecer, inclusive uma pandemia, e tudo mudar radicalmente. Esta parte do vídeo ainda me emociona e cada dia faz mais sentido. O nó na garganta geralmente se desfaz com a imagem da minha filha, tão pequena ainda, comendo pão e oferecendo bolo. Acho isso genial, todo o esforço para fazer um pão e ela come pensando que é bolo. A pesquisa pode ser assim também, você pode pensar que está fazendo uma coisa e depois quem lê, vê outra. Se eu fosse elencar aqui todas as reviravoltas da minha vida desde esse vídeo, daria um outro filme, um longa, desta vez. O problema é que a história ainda não terminou e o roteiro ainda é incerto. Quarta-feira Falando em roteiro incerto, você acredita que na hora do almoço, o meu filho me vendo prepará-lo, aproveitou para avisar do seu trabalho sobre a Espanha? Aquela piada clássica da criança lembrando a mãe no domingo à noite que tem que levar cartolina azul para o colégio. Foi tipo isso. Primeiro ele me mostrou um desenho que fez da bandeira do país e exibiu orgulhoso o seu caderno com a sua letra cursiva, de garoto recém alfabetizado via escola remota. Sentou à mesa, leu os ingredientes da Paella Valenciana e disse: “Tenho que cozinhar com você, gravar um vídeo e postar no Google Classroom amanhã.” Essa frase desencadeou em mim uma espécie de arritmia cardíaca, respirei fundo, disse bem baixo e lentamente, isso porque estou tentando evitar gritar: “meu filho, por que você não me avisou isso antes?” Paella Valenciana, amiga. E olha, ele se deu ao trabalho de pesquisar no Google quais são os ingredientes e sozinho, transcreveu-os em seu caderno. Disse que ela é feita originalmente com arroz, pimentão, açafrão, frango, carne de porco, linguiça, frutos do mar, vagens, coentro, 10O vídeo Pão-squisa em arte está disponível em https://youtu.be/ficvtFVW700 354 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 azeite, cebola, alho, dentre outros ingredientes. Todos estavam lá desenhados. Respirei fundo. Te pergunto: que raio de prato leva tanta coisa diferente numa única panela? Meus pensamentos tentaram em frações de segundos cogitar sair para comprar esse tanto de coisa. Isso porque ainda lido com saídas para o supermercado como se voltasse de Chernobyl. Você sabe que eu não saí da fase de passar álcool em tudo. Ainda mais com a variante Delta já ativa por aí. Respirei fundo. Decidi declarar e tornar oficial o novo prato típico da Espanha: chips de batata doce na AirFryer. Meu filho reticente, queria pesquisar no Google e ver se é um prato típico mesmo: “mamãe, tem batata doce na Espanha?” Tem a partir de hoje, pensei. Minha arritmia quase que se configurava numa crise de raiva, selecionei mentalmente diversos palavrões para a atividade lúdica que inclui cozinhar, filmar e postar. Várias coisas que a criança precisa de ajuda. Lembrei que no retorno, na reunião de volta às aulas via Google Meet, pedi quase que chorando para que as professoras considerassem os diferentes lares. No lar daqui, além da mãe solo, existem diversas limitações para além do campo tecnológico. Enquanto meu filho descascava a batata, temi pensando que a professora poderia lhe dar uma nota ruim, que iria explicar sobre batatas doces na Espanha, imediatamente eu já pensei em respostas desaforadas para enviar por email. Ali, fingindo para o meu filho que batata doce na AirFryer é um prato típico espanhol. Você teve aquela boneca “quem me quer”? Acho que era mais fácil brincar de boneca, sem inclusive problematizar o péssimo nome do produto. Olha o nome dessa boneca: quem-me-quer! Não é quem eu quero, o quê eu quero, porque a mensagem codificada me diz para ficar feliz com quem me quer. Mas enfim, deixa eu ficar feliz aqui e cozinhar na minha cozinha Bankuka da brinquedos Bandeirantes. Quinta-feira Tenho pensado nos impactos que a ausência da escola vai ter, ou já está tendo, na vida da pequena e resolvi começar a fazer algumas atividades pedagógicas de forma mais sistemática com ela. Sabe que ela insiste em trazer para a aula os colegas de turma? Ela coloca todos eles sentadinhos com uma folha em branco na frente: um lobo de pelúcia, o cachorrinho arco-íris e a bebezinha. Enquanto eu faço as vozes de cada um deles, ela, que deseja entender, que sonha com letras e palavras, aos poucos vai trilhando sua 355 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 alfabetização, sendo impulsionada por filminhos do YouTube e por mim, que além de relógio da casa, sempre pontuando a hora disso e daquilo, sou também tutora do outro, o mais velho. Ele, diferente da pequena, está na escola, tem aulas on-line, em casa. Na escola de cá, do lado de cá do celular, a aula às vezes é na rede. Na escola de cá, do lado de cá do celular, não precisa de uniforme, nem sequer camisa precisa. O menino assiste aula de cueca, e tudo bem, porque na escola de cá, a câmera muitas vezes está fechada e quando se abre é para mostrar, estrategicamente, só o rosto. Se a câmera está aberta e os olhos abertos, o aluno está. Será? Na escola de cá, do lado de cá do celular, o lanche está acessível a qualquer momento, se a câmera estiver fechada. O que aparece na escola de lá é só um fragmento, é o que é possível ver, pela tela do celular, quando a câmera está aberta; é o que é possível ouvir, somente quando o microfone está ligado. O que acontece na escola de cá, enquanto a câmera e o microfone estão desligados, faz parte da escola de lá? Na escola de lá, do lado de lá do celular, a professora se desdobra e tenta descobrir o que acontece do lado de cá, mas ela nunca saberá! Assim pensa o menino, deitado na rede, de cueca, assistindo aula do lado de cá. E no balanço dessa rede, pra lá e pra cá, me pego pensando, quando isso tudo vai mudar? Sexta-feira Amiga, o que você acha da gente focar na nossa palestra de amanhã falar do nosso encontro com os feminismos? Vamos lembrar do momento chave, o pulo do gato, naquele momento que a gente sentiu que o único caminho possível são os feminismos. Aí a gente fala do compromisso ético, político, teórico e prático com a transformação da sociedade na luta antiracista, antissexista, antilgbtqia+fóbica e anticapilalista. - Combinado! Viver é sempre mais importante Cada uma em sua casa, uma em Brasília/DF, outra em João Pessoa/PB, cada uma em sua casa e cada corpo uma casa. A casa se ressignifica e passa a ser espaço público e privado, a casa é sala de aula, é universidade, é parquinho, sala de ensaio, 356 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 restaurante, entre outros. Em casa nos ressignificamos, sem deixarmos de ser mães, somos tutoras, auxiliares de limpeza (auxiliares de nós mesmas), merendeiras, bedéis da escola que agora virou casa. A palestra que fizemos sobre As Mulheres no Teatro de Animação no II Encontro de Teatro de Lambe-Lambe - ocupação 508 Sul realizada pelo grupo As Caixeiras Teatro de Bonecas, de Brasília DF, mais do que compartilhar nossas pesquisas em processo, problematizando preconceitos e desafios que nós mulheres artistas, mães e pesquisadoras enfrentamos não só no ambiente acadêmico, mas no âmbito de nossos lares. Falamos sobre a sobrecarga de tarefa, sobre o cuidado que temos com nossos filhos, falamos que o cuidado não deveria ter gênero, sobre o desafio de educar crianças feministas, sobre o fato que não querermos ser definidas apenas pela maternidade, falamos sobre pedir ajuda, sobre a dificuldade de tirarmos um tempo para nós mesmas e a dificuldade de atender nossas necessidades pessoais que sempre ficam em última instância. Compreendemos que o pessoal é político e ao mostrar um pouco do que é, foi e será (não sabemos quando a pandemia irá acabar), a nossa vida cotidiana, na relação com a casa, os filhos, as pesquisas, os processos artísticos, os amores e nós mesmas, podemos falar também com outras mulheres. Ao expor um pouco de nós, tocaremos em outras tantas, dessa forma a nossa proposta com esse artigo foi também um exercício da alteridade, onde a sororidade é possível. Percebemos nesse ínterim dos acontecimentos que nossa relação uma com a outra nos enriquece, e entendemos a necessidade de desprogramar do que fomos ensinadas: Fomos ensinadas que as mulheres são inimigas “naturais” umas das outras, que a solidariedade nunca irá existir entre nós porque não sabemos nem devemos nos unir. E essas lições foram muito bem aprendidas. Precisamos, por isso, desaprendê-las, caso queiramos construir um movimento feminista duradouro. Precisamos aprender a viver e trabalhar em solidariedade. Precisamos aprender o verdadeiro sentido e o verdadeiro valor da irmandade. (bell hooks, 2019, p. 79) Por consequência, perceber o comportamento da suposta rivalidade entre as mulheres, entender que esse estereótipo foi construído e problematizar que esse comportamento trouxe diversos efeitos para nossa sociabilidade, tais como: 357 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 desmerecimento de nossos trabalhos, busca por validação masculina, entre outros, pensamos que é sobre propor outra práxis nas relações, transformando o que poderia ser rivalidade em parceria. Durante o evento II Encontro de Lambe-lambe, pudemos encontrar ecos do que é ser mulher e desempenhar funções como a de artista e/ou pesquisadora, sem deixar de se realizar também como mãe (quando é o caso), como mulher, como companheira. Nossos relatos pessoais encontraram acolhimento na narrativa de outras mulheres que, como nós, conciliam o trabalho reprodutivo com o trabalho produtivo. Reconhecendo que o trabalho reprodutivo é indissociável da sociedade salarial estando ligado às necessidades humanas básicas, em sua dimensão objetiva (limpeza da casa, cuidados com as roupas, com a alimentação, com a educação das crianças, etc) e subjetiva ( cuidado com as pessoas, principalmente filhos, marido e idosos, os afetos, a segurança psicológica, a criação de laços, a gestão e organização do lar, entendido como carga mental, etc). Reconhecemos o privilégio de poder estar em isolamento, de ter um teto sob o qual manter a família, mesmo sabendo que não estamos seguras. Enquanto houver o desmonte do país, não estaremos seguras, enquanto as universidades públicas tiverem suas verbas cortadas, enquanto a educação e a arte não forem reconhecidas e legitimadas como áreas de conhecimento essenciais, enquanto a cultura do país for dizimada por falta de condições de sobrevivência de Mestres e Mestras, enquanto a saúde pública for sucateada, enquanto houver corrupção, não estaremos seguras. Nossas vidas passaram a transcorrer sob a tensão de polos opostos, que por vezes se entrelaçam. De um lado, sentimentos de esperança e gratidão, pelas experiências vivenciadas e do outro, a angústia, a revolta e o extremo desgaste, de tudo o que envolve sermos mulheres brasileiras, buscando formas de (re)existir, confinadas e ainda mais atarefadas do que antes. Nutrimos a esperança, como coloca Tatiana Nascimento, no poema presságio11: o presságio : nesses tempos tão sombrios conservemo-nos serenxs O poema presságio, de Tatiana Nascimento https://palavrapreta.wordpress.com/, acesso em 30/07/2021 11 está disponível no site 358 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 cada movida da luta sempre é mais, nunca menos o fascismo é apenas uma face do medo, e não do poder enquanto nutrimos a esperança eles não vão nos vencer Tatiana Nascimento REFERÊNCIAS AMARAL, Ana Maria. Teatro de animação: da teoria à prática. 3. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019. HOMEM, Maria. Lupa da Alma: Quarentena Revelação. 1ª ed., 2020. São Paulo: Todavia, 3ª reimpressão, 2021. LEAL, Tatiane. O sentimento que nos faz irmãs: construções discursivas da sororidade em mídias sociais. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação. ISSN 2175-8689 v.23, n.3, 2020. LYRA, Luciana de Fátima Pereira Rocha de. Guerreiras e Heroínas em performance: Da artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2010. Tese (Doutorado em Artes Cênicas), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2011. OMS (Organização Mundial da Saúde), ONU Mulheres lança materiais com diretrizes para inclusão de mulheres e meninas na resposta à pandemia de COVID-19. Disponível em:<http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-lancamateriais-com-diretrizes-para-inclusao-de-mulheres-e-meninas-na-resposta-apandemia-de-covid-19/> Acesso em: 18/06/2021. VIEIRA, Rejane. Acervo pessoal, não-publicado. João Pessoa, 2020. ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018. 359 Vol.9, N.3/Vol.10, N.1, Set2021 - Apr 2022 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932