volume 03 _ n. 01
Michelle Sales> A matriz colonial de poder e o campo da arte:
Marta Lança>> e nós? Como existir? Como re-existir?
The Colonial Matrix of Power and the Arts: what about us,
how to exist, how to resist?
Resumo
Esta conversa é motivada pelo desejo de pensar um espaço de troca entre Brasil, Portugal e África tendo em conta os desdobramentos, contradições e críticas do pensamento pós-colonial. Transitando livremente entre
o cinema, artes visuais e plataformas discursivas, tentamos vislumbrar os
tópicos de agitação no campo das artes e do debate público em nome de
formas emancipatórias, contra práticas e simbologias de matriz colonial.
Michelle Sales (CEIS20/UFRJ).
Pesquisadora e curadora independente, professora da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro desde 2009. Investigadora
em estágio pós-doutorado do Centro
de Estudos Interdisciplinares do
Século XX da Universidade de Coimbra,
Coordenadora Científica do projeto À
Margem do Cinema Português: estudo
sobre o cinema afrodescendente
produzido em Portugal. Coordenadora
do Seminário Temático Cinemas
Pós-Coloniais e Periféricos da Socine,
Sociedade Brasileira de Estudos de
Cinema e Audiovisual, e do Grupo de
Trabalho Cinemas Pós-Coloniais e
Periféricos da AIM, Associação de
Investigadores da Imagem em
Movimento, de Portugal. Faz parte
da Comissão Organizadora do I
Intersectional Conference, a realizar-se
em 2020, em Portugal.
Editora, investigadora e programadora. É doutoranda em Estudos
Artísticos na FCSH-UNL sobre o
debate pós-colonial nas artes em
Portugal. Criou as publicações
V-ludo, Dá Fala (em Cabo Verde) e,
desde 2010, é editora do BUALA,
portal de reflexão sobre questões
do sul global. Em Luanda, entre 2005-8, lecionou na Universidade
Agostinho Neto, colaborou com a I
Trienal de Luanda e com o Festival
Internacional de Cinema, em
Maputo no Dockanema (2009), e
temporadas no Brasil. Organizou o
Roça Língua, encontro de escritores
lusófonos (S. Tomé e Príncipe, 2011);
o ciclo Paisagens Efémeras dedicado
a Ruy Duarte de Carvalho (Lisboa,
2015); o programa Vozes do Sul
para o Festival do Silêncio (2017); as
conferência do projeto NAU! (Porto
2018); com Raquel Lima, o ciclo
‘Para nós, por nós’ produção cultural
africana e afrodiaspórica em debate
(2018). Faz pesquisa e produção em
filmes rodados em África.
Palavras-chave: Brasil. Portugal. África. Arte. Pós-colonial.
Abstract
This conversation is motivated by the desire to think of a space of exchange between Brazil, Portugal and Africa taking into account the unfoldings, contradictions, and criticisms of postcolonial thinking. Moving freely
between cinema, the visual arts and discursive platforms, we glimpse
the topics of agitation in the field of arts and public debate in the name
of emancipatory forms, against practices and symbologies of colonial
matrix.
Keywords: Brazil. Portugal. Africa. Art. Postcolonial.
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Esta conversa é motivada pelo desejo de pensar um espaço de
troca entre Brasil, Portugal e África tendo em conta os desdobramentos, contradições e críticas ao pensamento pós-colonial.
Transitando livremente entre o cinema e as artes visuais tentamos
vislumbrar um cenário comum em que questões semelhantes no
campo das artes emergem de forma concomitante em várias partes do mundo.
Em 2014, vim morar em Portugal com uma bolsa de investigação para estrangeiros da Fundação Calouste Gulbenkian com um
projeto intitulado Fronteiras Estéticas cujo objetivo, em linhas bem
gerais, era pensar o espaço de circulação cultural entre os países
de língua oficial portuguesa. Na época, havia acabado de escrever
sobre a “lusofonia” e a maneira com a qual o uso político deste
conceito adota um viés e uma postura neocolonial no mundo de
hoje. Um pequeno grupo do qual fazia parte começava a articular-se na SOCINE, congresso sobre cinema e audiovisual do Brasil,
com o nome “Cinemas em Português” e havia ali um esforço real
de pensar o cinema produzido em países de língua portuguesa,
bem como o contexto cultural e político em que surgiam essas
produções. Resolvi transpor algumas questões que advinham de
problemas do campo cinematográfico para a imagem, de modo
mais abrangente, e o projeto Fronteiras Estéticas assumiu em fase
mais madura um interesse central nas artes visuais com foco no
trabalho de três artistas angolanos, então radicados em Portugal:
Yonamine Miguel, Kiluanji Kia Henda e Délio Jasse. Falarei brevemente dos dois primeiros.
Partia então de dois pontos: de um lado, a instalação de
Yonamine Tuga Suave e, de outro, a maneira com a qual as ideias
lusotropicalistas de Gilberto Freyre haviam sido transformadas
num fértil campo de representação neocolonial de cunho racista
no campo da imagem.
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Em toda a instalação, como na imagem acima, o artista angolano nascido em 1975, enfrenta o tema do apagamento. No
maço de cigarro, “português prejudica gravemente a sua saúde e
a dos que o rodeiam”, Yonamine transforma, de maneira sarcástica, a orientação geral de consumo num enfrentamento e toca
o cerne político da lusofonia: o português. E não só como língua,
mas também como nação/instituição num claro posicionamento
anti-colonial. Essa exposição de Yonamine de abril de 2008, questiona também, a meu ver, o projeto em curso de fins dos anos
1990 que configurou a CPLP (Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa), cuja intenção é fomentar um espaço cultural e político de trocas em nome de uma suposta “irmandade linguística”.
Cicatriz do passado colonial, a língua torna-se um espaço de luta
e contestação cultural e política através do trabalho de Yonamine.
Além disso, a ideia de que “português prejudica gravemente a sua
saúde” faz alusão, ou tem como lastro, à luta anti-colonial de pensadores como o psicanalista Frantz Fanon, que sempre defendeu
que o colonialismo causa danos crônicos, traumas, por vezes irreversíveis, à saúde mental dos colonizados.
Aquilo que dá unidade geral à exposição de 2008 são os jornais espalhados pela galeria e a serigrafia impressa por todo lado: a
imagem gravada de um congresso africano após a guerra colonial.
Num dos vídeos, uma mão negra com luva que tenta apagar uma
notícia de jornal. Há um clima geral neste trabalho de Yonamine
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Yonamine, Tuga Suave, 29 de
fevereiro a 19 de abril de 2008, 3+1
Arte Contemporânea, Lisboa (foto de
divulgação, internet)
que confronta o passado colonial, as lutas de libertação e o presente caótico contemporâneo que sugere o convívio harmonioso
entre ex-colonos e ex-colonizados no tal mundo lusófono. O título
geral do trabalho de 2008, Wash and Go, é uma menção direta ao
passado colonial, como comentei, mas também ao apagamento
sistemático das culturas e identidades negras ao longo do processo
colonial, como foi explicitado por diferentes pensadores africanos
como Amílcar Cabral, para quem a luta pela libertação nacional era
substancialmente um embate cultural.
De forma semelhante, a série de fotografias Balumuka
(Ambush) de Kiluanji Kia Henda expõe questões relativas ao passado colonial e à tensão política e cultural em face ao mundo (do)
português. As fotografias feitas na Fortaleza de São Miguel, antigo
ponto estratégico do tráfico negreiro durante o período colonial,
colocam em lados opostos D. Afonso Henriques e rainha Nzinga.
Assim como no trabalho de Yonamine, no de Kiluanji vamos perceber muitas camadas da história de Angola, entre o passado colonial, as lutas pela libertação, o período da Guerra Fria, e um caótico
presente contemporâneo no qual a diáspora e a relação com o
mundo europeu-português é tema constante.
Algo que em 2014 não estava presente no meu trabalho de
investigação, mas que se afirmava de maneira contundente no trabalho dos artistas acima, é a questão do racismo, sempre apresentada de maneira irônica e violenta em trabalhos de Yonamine,
Kiluanji e também Délio – que vai trabalhar com questões mais diretas em relação à imigração e à diáspora africana contemporânea,
como na série Schengen (2010).
No Brasil, a questão do racismo explode no campo das artes,
mais ou menos ao longo dos últimos cinco anos. Então resolvi
olhar outra vez para estes artistas, agora tendo em conta uma necessidade de revisão crítica do meu próprio trabalho. O sistema da
arte contemporânea, em seu desejo de “atualização e inovação”,
bem como no seu interesse pelos países emergentes, esconde e
recolhe questões relativas ao branqueamento do mundo das artes,
às tensões culturais entre ex-colonos e ex-colonizados, temas aliás
que, em 2018, tornaram-se o eixo central do debate em relação à
devolução de obras africanas por parte de instituições europeias
aos seus países de origem em África. O tema das restituições movimentou setores diferentes da sociedade francesa e alemã, como
as áreas de museologia, patrimônio, história e crítica das artes assim como da cultura em geral. Entretanto, em Portugal, o debate
acerca do colonialismo, sobre a história do colonialismo e as consequências culturais deste processo, além da relação atual com os
antigos colonizados ainda é uma conversa a fazer-se.
Recentemente, assim como no Brasil, além de uma forte presença negra na intelectualidade portuguesa, as mulheres negras
impuseram uma nova agenda para o debate em torno do racismo, capaz de contemplar também questões de gênero, nacionalidade, classe social e etnia. Nos últimos dois anos, em Portugal,
são várias as instituições e coletivos de mulheres negras que irão
se articular e já conquistar visibilidade política, caso da Djass,
Associação de Afrodescentes (2016), da FEMAFRO — Associação
de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes (2016) e da
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Jota Mombaça, A gente combinamos de não morrer, Galerias
Municipais de Lisboa, 2018
(Crédito: Michelle Sales)
INMUNE — Instituto da Mulher Negra (2018), todos liderados por
mulheres negras afrodescendentes.
Meu trabalho hoje está fortemente marcado por essa presença e busca também por uma nova determinação conceitual,
novas referências bibliográficas, novas fontes e novas matrizes de
pensamento. Pensar, de forma ampla, a relação entre a produção
de arte contemporânea feita por artistas negros, brasileiros ou
africanos (de colonização portuguesa), com o trabalho de artistas
portugueses que, de outra forma, partem para uma revisão crítica
do período colonial.
Aponto, por isso, para a artista brasileira Jota Mombaça e
seu trabalho realizado na Galeria Municipal da Avenida da Índia,
em Lisboa, em setembro de 2018. A performance parte da exposição A gente combinamos de não morrer, inspirada na obra de
Conceição Evaristo, homenageando Gisberta, uma brasileira transexual que foi violentamente assassinada por um grupo de adolescentes em 2007 na cidade do Porto, onde vivia.
Entre peças em vídeo, a performance reclama um lugar central, consistindo num trabalho minucioso de quebrar garrafas de
vidro, organizar cacos com pedaços de madeira e manusear e direcionar o olhar para o público. É uma performance randômica e sistemática, rodeada de textos-manifesto nos quais Jota Mombaça
reclama também as memórias e as histórias, além dos modos de
sobreviver dos corpos negros, transexuais e femininos, apesar de
toda a persistência de morte.
O trabalho conceitual de Jota Mombaça é um exemplo claro do trânsito, ou da diáspora artística, dos muitos brasileiros ou
africanos que optam por desenvolver um percurso de trabalho em
Portugal e Europa para tratar de questões exatamente acerca desse trânsito, mas não só. Na obra e no breve texto “Não existe o
pós-colonial”, Jota questiona “Como a colonialidade está presente
na relação das corporalidades marcadas pela geopolítica da racialidade?” e atualiza, no campo das artes, um debate que se tornou o
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epicentro das manifestações mais candentes de 2018, como a exposição História Afro-Atlânticas do MASP, a individual de Rosana
Paulino The sewing of memory, na Pinacoteca de São Paulo, entre
outros.
Em Portugal, além da produção no campo mais amplo das
artes, há uma substantiva agitação no meio audiovisual que faz
surgir novas e novos realizadores negros afrodescendentes, sobretudo em Lisboa, a reunirem-se em novos coletivos e associações,
a fim de produzir e distribuir seus filmes, ainda bastante marginalizados pela crítica e história do cinema português. São exemplos,
entre outros, o luso-guineense Welket Bungué, Silas Tiny, Vanessa
Fernandes, Ana Tica e Lolo Arziki.
Retomo a performance da Jota Mombaça, A gente combinamos de não morrer, e também uma entrevista da artista ao
grupo de pesquisa África nas Artes (CAHL/UFRB), na ocasião da
Conferência Ecos do Atlântico Sul, realizado pelo Instituto Goethe,
em Salvador, em 2018. Queria partir de um ponto específico desta
entrevista: a fala da artista sobre a autodefinição e os desdobramentos da questão identitária no mundo das artes. Reclamar para
si uma auto-definição, no caso de Jota, “artista bicha, nordestina,
não-binária”, que foge às definições normativas que o mundo da
arte dispõe, e, em contrapartida, reagir à hiper-definição da sua
prática artística, abordando temas e questões que estão muito
além do binômio raça-gênero é um esforço ambivalente e “violento”, na tentativa de performar outras experiências, outras vidas
e outros mundos, que não aqueles que o cotidiano e o imaginário
cisheteronormativo prevêem, inclusive para a própria experiência
estética. Chamo portanto atenção para essa resistência à hiper-definição como força de travessia em direção a novos horizontes pós-coloniais ou decoloniais diante de um mundo em crise, ou seja,
como forma de atravessar o caos político-social em que vivemos,
e fazer perdurar agendas progressistas contidas na luta identitária
tão presente na obra de Jota, mas não só:
Tem um duplo movimento. Auto-definir, para reclamar um lugar historicamente apagado e um lugar tendencialmente subsumido pelas narrativas
hegemônicas e ao mesmo tempo lutar contra a
hiper-definição, lutar contra a hiper-circunscrição
do meu trabalho a uma zona muito pequena quando na verdade eu estou interessado em muitos
outros assuntos que excedem essas minhas definições. (MOMBAÇA, 2018, on-line)
Acho que esse duplo movimento é um ponto importante a
ser desenvolvido enquanto pensamento estratégico para uma atitude decolonial, enquanto artista brasileira, mas não só. A questão
levantada, de forma muito habilidosa, por Jota, não é a de simplesmente marcar uma fala enquanto corpo negro-bicha-nordestina, mas também (e principalmente) a partir daí produzir um lugar
de enunciação que gera por si “violência” ou, como ela prefere
definir, que redistribui a violência. Violência em oposição à ideia
de segurança – e por segurança me refiro ao desejo incontido da
consciência branca, em preservar sua vida em detrimento de ou
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tras, capaz de erguer literalmente um mundo sólido a seu favor em
detrimento do outro racializado e periférico.
É a língua bifurcada, a inteligência malandra, pouco óbvia, da
ironia e do sarcasmo, tão presente na cultura popular brasileira que
é resgatado no projeto de Jota, não só como estética de criação,
mas como forma de resistência e existência política para corpos e
vidas negras – constantemente em jogo e em risco.
A complexidade da vida em risco e das estratégias racistas
da necropolítica (MBEMBE, 2018) dos estados exige uma reconfiguração das agendas que buscam representatividade e o não-apagamento. Em que sentido? No sentido de que, em sabendo que
“a visibilidade não nos protege”, é preciso entender os espaços
de enunciação de corpos negros, trans e subalternizados como
espaços de potência de atuação no mundo de forma pouco óbvia:
“não ser silenciada e ainda assim não ser completamente traduzida. Incorporar uma forma de resistência que está nessa ambiguidade, nessa opacidade. Chegou a hora, já passou da hora talvez
de reivindicar também junto com o direito à visibilidade, ao direito
à representatividade, o direito à opacidade” (MOMBAÇA, 2018,
on-line).
É importante construir aqui também um certo percurso sobre
o modo como essa “agenda pós-colonial” insere-se no contexto
artístico “lusófono” e vou começar a referir o caso português. Em
2006, a Exposição Réplica e Rebeldia, comissariada por António
Pinto Ribeiro e financiada pelo Instituto Camões, reuniu 35 artistas provenientes do Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde.
Uma das primeiras exposições de artes plásticas que traz consigo
a ideia ou o desejo de cooperação internacional entre países “lusófonos” e que, após a abertura em Maputo, esteve disponível
para visitação nos outros países. O título por si levanta uma série
de questões: ao colocar a ideia de réplica, o curador sugere (e sustenta textualmente) que a arte africana em seus inícios foi muito
devedora da arte europeia, tendo funcionado quase sempre como
uma tentativa de cópia (quase sempre mal feita), um pouco à maneira como a educação no campo das artes pensa o processo de
aprendizagem do ofício das artes, através da repetição da feitura
de cópias e moldagens de obras artísticas europeias.
A rebeldia só viria depois, numa segunda fase. Numa fase
em que, supostamente, os artistas “lusófonos” voltavam costas
a essas referências europeias. Entretanto, pensar a construção de
uma cultura nacional a partir da rebeldia, sabendo que os países
africanos ex-colonizados, apenas muito recentemente após a descolonização é que conseguiram efetivamente organizar estruturas
e instituições nacionais livres da dominação colonial, coloca novamente no centro a matriz europeia – que está lá para ser negada.
A exposição de António Pinto Ribeiro não consegue fugir a essa
armadilha pós-colonial. Mesmo tendo servido para promover artistas africanos até então marginalizados no circuito global das artes
(como o Yonamine que abre esse texto, por exemplo), é uma curadoria que não foge à tentação eurocêntrica e, de certa perspectiva,
ainda colonial. Tem o mérito de ter sido uma das primeiras exposições a sinalizar que, também do ponto de vista artístico, temos
aqui um grave problema no que diz respeito às práticas culturais
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produzidas entre as ex-colônias ou entre a antiga “metrópole” e
suas ex-colônias.
O cinema africano (termo absolutamente vago e genérico),
exibido regularmente na França, na Alemanha e no Reino Unido,
só a partir dos anos 20001 passaria em algumas salas mais voltadas ao cinema experimental, após terem sido exibidos e premiados em grandes festivais de cinema. Portugal é um dos países
da União Europeia com menor presença de cinema estrangeiro
(de forma geral) e mesmo nacional nas salas comerciais – quase
a totalidade das salas está dominada pelo mercado norte-americano. Numa entrevista com Manthia Diawara, disponível na Doc.
online, João Rapazote confronta o intelectual e realizador africano
com a existência de clichês sobre África e a presença de fortes
estereótipos quanto aos africanos. Diawara, além de ser professor,
é ex-aluno de Jean Rouch e realizou importantes documentários,
entre eles Rouch in Reverse (1985), no qual tenta desconstruir e,
ao mesmo tempo, homenagear a figura de Rouch e sua presença e importância incontornável no cinema africano. O modo de
Diawara responder a essa contestação oferece uma perspectiva
muito interessante:
Na verdade, muitos dos intelectuais africanos foram criados com a antropologia, na medida em
que o processo de conhecimento próprio e das
suas culturas se baseou nas leituras de Lucien
Lévy-Bruhl, de Leo Frobenius ou de Marcel
Griaule. Por isso, em certo sentido, estes antropólogos inventaram uma África em que os africanos
acabaram por se integrar e adoptar. Todavia, também existe uma abordagem de origem marxista
a este fenómeno, uma espécie de desconstrução
dessa oposição binária entre o ocidente e o Outro,
o civilizado e o primitivo, entre a dita religião africana e a religião ocidental, pois o marxismo é todo
ele iluminismo – ou se aceita a modernidade ou
não. Os desenvolvimentos destas concepções
trazem-nos aos dias de hoje e à questão aqui em
causa: como é que se pode trabalhar hoje? Existe
um Outro autêntico, que se possa opor ao “outro”
dito essencialista ou estereotipado? (…) De qualquer maneira, não penso que exista esse Outro
autêntico e irredutível, no sentido radical em que
Homi Bhabha ou Jacques Derrida o põem com a
sua différance, com esse sucessivo diferimento
que posiciona o Outro num lugar sempre inalcançável. Aliás, considero que entre os seres humanos existe uma relação poética, que é mais importante mas muitas vezes esquecida (DIAWARA,
2007, p.212-214).
Essa ideia reificada de que há um outro autêntico, de certa
forma puro, com quem é preciso estabelecer contato e desvendar
os mistérios, as subjetividades e os interesses tem perseguido um
certo cinema documental africano que, como bem pontua Manthia
em sua entrevista, é um cinema cuja referência de linguagem e
de gramática visual é o cinema francês, mas não só: as próprias
estruturas e instituições de financiamento, produção e circulação
de muitos desses filmes também são francesas. Como fugir dessa
1
Em 1995, já tinha havido os Encontros Africanos, um grande ciclo de cinema de África,
com 114 filmes, desde os primórdios aos mais atuais. Organizado por António Loja Neves
e António Pinto Ribeiro, na Culturgest, Lisboa.
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encruzilhada? Tendo em conta que a própria invenção da antropologia, ou seja, do outro, cria e condiciona referências, estereótipos e
imaginários que já fazem parte de nós? Que já nos constituem efetivamente e nos compõem de forma ambígua, colonial e reificada,
mas que emprestam, nas suas brechas, possibilidades de criação
e subversão?
Tenho a sensação de que é essa mesma ideia do outro (reificado, puro ou autêntico) que existe no imaginário também de um
certo cinema brasileiro. Desde os anos sessenta, a invenção do cinema novo catalisou, dinamizou e centralizou em seus filmes duas
frentes: um cinema de oposição ao cinema industrial narrativo hegemônico e que, por isso, reclamava-se como cinema anti-colonial, e
a valorização de referências culturais nacionais, entre as quais a presença de personagens até então marginais da identidade brasileira.
Como se articulam imagens pós-coloniais, anti-coloniais
e decoloniais? O que quer dizer cada um desses conceitos
e ideias? Como chegaram ao campo das artes? E qual a
genealogia desses termos?
Sem pressa na produção de respostas, ativo, dessa forma, o campo do cinema porque para o fenômeno atual do campo das artes
de forma mais alargada creio que é fundamental perceber algumas dinâmicas do eixo cinematográfico-cultural de forte atuação
na América Latina e também em África a partir dos anos 1950 e
daí em diante.
Se na América Latina, após a Revolução Cubana de 1959,
vivíamos o florescer de um projeto revolucionário de cinema – e
que contava com o aparato pedagógico-institucional da criação
da famosa Escola San António de Los Baños, em Cuba (que se
consolida em 1986) – e que se afirmava como um aparato de desconstrução narrativa e anti-colonial em defesa da soberania e da
identidade latino-americana, nos países africanos em luta pela descolonização o cinema também era motor imprescindível na guerra
contra o colonizador.
Enquanto o Terceiro Cinema firmava-se como via de transformação social e valorização identitária do povo latino-americano, desdobrando-se em cinemas como o Cinema Novo brasileiro,
os cinemas emergentes que surgiam concomitantemente às nações descolonizadas em África, tais como Guiné-Bissau, Angola
e Moçambique, a agitação em torno da criação de uma imagem
cinematográfica fiel ao seu povo foi um fator preponderante de
todas as organizações culturais e políticas ao lado da guerra contra
as tropas portuguesas coloniais (1961 – 1974).
Em lugar da representação, a luta pela desconstrução narrativa
e estética que movimentou o Terceiro Cinema da América Latina, e
que passa a influenciar os cinemas emergentes dos países descolonizados em forte contexto anti-colonial nos anos 1960 e 1970 (apenas para referir o caso das ex-colônias portuguesas), é disputada
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pelo protagonismo na criação do discurso, na auto-representação
ou, como tratam alguns autores2, na auto-apresentação.
O contexto pós-colonial africano vai estar, por isso, fortemente determinado por alguns marcos temporais, como, por exemplo,
o fim da guerra colonial, a descolonização, a saída das tropas portuguesas e, em termos simbólicos, a retirada de monumentos, objetos simbólicos e identitários inventados pelo colonizador, como
é o caso dos pedestais, que abrigavam lideranças portuguesas,
navegadores, etc., localizadas em espaços públicos na região de
Luanda, em Angola, e rapidamente esvaziadas com o fim da guerra colonial. Kiluanji Kia Henda foi um dos primeiros artistas em
Angola a falar de um certo “lack of memory” deixado pelo vazio
desses pedestais de Luanda.
Entretanto, o que impulsiona os estudos pós-coloniais ao redor do mundo é a corrente acadêmica anglo-saxã de influência
pós-estruturalista e pós-modernista que surge nos anos 1970,
movimentada por vozes que vieram das diásporas, consequências
também de processos de descolonização nas Américas, no Caribe
e na Índia. É nesse contexto que surgem nomes como Homi
Bhabha, Edward Said e Stuart Hall. E a análise dos discursos nestas teorias recai muito sobre a constituição do outro no Ocidente
e da formação (e forte crítica) de um olhar eurocêntrico que se
afirma universal.
A decolonialidade, por sua vez, é um campo do saber que
se consolida nos anos 1990, liderado por pensadores latino-americanos em grande parte emigrados para os Estados Unidos, cujas
análises partem em direção à crítica do binômio modernidade/colonialidade, pois “a revisão da constituição histórica da modernidade
e de suas transformações na América Latina foi o modo a partir
do qual essas questões se articularam, à luz da categoria colonialidade como o reverso da modernidade” (QUINTERO, 2018, p.4).
A consolidação daquilo que Arturo Escobar intitula de
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade influencia e impulsiona a criação de um campo de saber interessado na história e no
profundo impacto da colonialidade, já que, para nós latinos, foi-se o colonialismo, mas permaneceu a Matriz Colonial de Poder,
segundo o peruano Aníbal Quijano (2005). O lastro histórico da
decolonialidade é, por isso, mais amplo que os estudos pós-coloniais, uma vez que o processo de descolonização nas Américas
inicia-se no século XIX e com forte cariz anti-colonial, em busca de
uma identidade nacional soberana para os povos latinos. Além da
crítica ao eurocentrismo, o grupo decolonial dos anos 1990 reclama também o fortalecimento e a valorização identitária dos povos
originários da América, como as populações indígenas e os povos
da floresta, além de reclamar a necessidade de incorporação e
integração acadêmica e científica dos saberes populares e das periferias latinas. O outro permanece como o eixo central de análise,
mas aqui como irradiador catártico de novas potências. Resistência
ao colonialismo sempre houve, é dessa forma que o olhar decolonial recairá para as produções que explodem nas periferias, nas
margens do sistema das artes, entre tantas manifestações desde
2
Ver MELEIRO, Alessandra; BAMBA, Mahomed. Filmes da África e da Diáspora. Salvador:
EDUFBA, 2012
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a literatura marginal, a poesia, o hip-hop, o cinema das quebradas,
os atuais quilombos urbanos e suas criações.
Como se articulam hoje?
Por outro lado, também é dinâmica dessa invenção e reinvenção
neocolonial do outro, o surgimento de novas instituições nos anos
2000 de viés conservador e colonialista no âmbito do campo das
artes, e falo propriamente de museus como o Quai Brainly, de
Paris, inaugurado em 2006 por Jacques Chirac. Este projeto ambicioso consiste na atualização e na renovação de novas narrativas
neocoloniais de caráter conservador em meio ao cenário de crise
aguda em que se insere o continente europeu nas últimas duas
décadas. O acervo do museu é constituído por 300 mil obras, muitas provenientes do Musée de l’Homme e do Museu Nacional de
Artes da África e da Oceania. Além da exposição permanente, dez
exposições são realizadas anualmente e mais de quatro milhões
de turistas já estiveram a visitar o Quai Brainly.
Um dos temas fundamentais no contexto pós-colonial dos
países africanos, e que diz respeito à cultura, relaciona-se com
projetos neocoloniais como este. Desde os anos oitenta, organiza-se, através de instituições africanas, um grande movimento pela
restituição cultural dos bens espoliados e pelos bens roubados
em contextos coloniais e de guerra. A enorme quantidade desses
acervos foi adquirido através da pilhagem dos países africanos em
sua maioria no período que compreende o intervalo entre 1870 e
a I Guerra Mundial. Museus como o Quai Brainly, como o British
Museum de Londres, o Metropolitan Museum de Nova Iorque,
o Museu do Prado de Madrid, o Museen Dahlem de Berlim são
importantes instituições que nos permitem pensar não apenas a
cultura “dos outros”, já que todas as instituições acima têm departamentos e/ou setores de museologia em suas estruturas muito
imbricadas com ideias etnográficas ou antropológicas.
Desde os anos oitenta, surgem diversos movimentos culturais a favor das restituições dos bens culturais espoliados a instituições africanas. Nos anos noventa, a Organização para a Unidade
Africana passou a falar em reparação, uma ideia que é mais ampla
pois exige, para além da devolução dos bens culturais roubados,
a indenização pela escravidão e pelo colonialismo como forma de
reconciliação dos países europeus com o solo africano. Há uma
tensão nessa disputa, pois as velhas e novas estruturas coloniais
dos países europeus também rapidamente se organizaram num
cenário de crise pós-colonial a fim de manter e deter a hegemonia
deste debate. Poucas obras até hoje foram devolvidas aos seus
contextos de origem e à luz do fim desta segunda década, agora
é Lisboa que vive e revive o frenesi em torno da discussão sobre
a hipotética construção de um novo Museu das Descobertas, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa, e acompanhando o
boom do turismo local. Uma nova onda de migração brasileira em
Portugal organiza-se, em parceria com movimentos negros e progressistas em torno de pautas anticoloniais e antirracistas, o que
nos leva a pensar e prever que está tudo posto, mas o futuro não
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está garantido e, tampouco, assegurado. Que Jota Mombaça ofereça suas facas e façamos nossas travessias.
Marta Lança:
Nasci em Lisboa em 1976, na ressaca do período revolucionário
que se seguiu ao fim da ditadura de Salazar e Caetano. Desfrutei
das “conquistas de Abril”: educação e saúde públicas de qualidade, curiosidade e o sentido de liberdade e, com a entrada na União
Europeia em 1986, mais consumo, culturas urbanas, o privilégio da
circulação num continente que abria as fronteiras internas. Cresci
achando que o cosmopolitismo e o experienciar outros mundos
e modos de ser e estar era a maior aprendizagem. Não éramos
tão globalizados a ponto de andar com o mundo dentro de um
telemóvel. Mais tarde, por rumos da vida, passei a deslocar-me
regularmente a países africanos e perceber algumas assimetrias.
Do lado de cá, numa cidade na qual vivem e transitam tantos africanos e afrodescendentes (Lisboa), é gritante a sua invisibilidade ou imagem distorcida. Mais assustador é a maior parte das
pessoas nem reparar. É suposto haver negros no desporto (para
vanglória das equipas portuguesas), na música e outras “cenas
cool”, nas profissões que sustentam a vida urbana (faxina, construção civil, cozinha); naturalizou-se a representação de negros como
marginais (na mídia), tal como, numa geografia segregada, é “evidente” que as zonas residenciais dos negros serão as periféricas
e não espanta que proporcionalmente sejam presos. Também a
sua ausência como agentes de opinião e de comunicação, nas universidades (poucos alunos e quase zero professores), nas lideranças ou no governo, e a dificuldade de ascensão social era, até há
pouco tempo, uma espécie de condição. Assim como o escasso
horizonte de expectativas quanto à participação negra nos meios
intelectuais e artísticos. No entanto, o discurso oficial e individual,
política e socialmente, não reconhece a evidência da desigualdade
com base racial, elogia a diversidade da nossa sociedade e veste
o mito lusotropicalista de uma mestiçagem luso-perfilhada, desvalorizando o racismo, relativizando e, inclusive negando, as consequências e continuidades da ampla e violenta história colonial e
imperial portuguesa. A afirmação de eu cá não sou racista mas…
espreita na língua dos portugueses. A adversativa, depois do aviso prévio, cumpre o papel da exceção, um comportamento, uma
ressalva, nenhuma vontade de desfazer a diferenciação. Terá algumas semelhanças ao discurso da “democracia racial” aí do Brasil.
Em termos de políticas públicas de “integração”, parte-se de uma
falsa ideia de sociedade nacional unificada (a ‘sociedade de acolhimento’) e os vários grupos minoritários (etnicamente marcados),
ou seja, há sempre um “nós” e “outros”, serão sempre estrangeiros ou imigrantes, mesmo se cá nascidos. Por todo o mundo
se assiste ao regresso do velho racismo sem pejo, e ao inflamar
de discursos do ódio, assim como ao nano-racismo (MBEMBE,
2017): racismo cultural banalizado e infiltrado na sociedade, que
se pratica inconscientemente, tratado como atos inofensivos e insignificantes, expressando o preconceito em gestos do dia-a-dia,
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insinuações, lapso, uma anedota, um subentendido, provocação
deliberada, estigmatizando e humilhando aquilo que não é considerado dos nossos. Por outro lado, e Michelle Sales já referiu, o
momento é de confronto e de pôr as cartas na mesa, e o ativismo
negro3 tem ganho espaço mediático, grupos de acção e discussão, novos léxicos, encontros, medidas concretas como a nova
lei da nacionalidade, a revisão dos currículos escolares, a recolha
de dados étnico-raciais, a expressão de feminismo negro e intersecional, e toda uma luta travada contra o racismo institucionalizado, nomeadamente a denúncia à violência policial. Alguns passos
pela representatibilidade estão sendo dados. Além de termos uma
mulher negra como ministra da Justiça, a Francisca Van Dunem,
acabámos de eleger para a assembleia, pela primeira vez, três candidatas negras de partidos de esquerda. Mamadou Ba, histórico
do movimento antirracista em Portugal, postou no FB: “Temos
um presente a construir e um futuro a conquistar coletivamente.
A esperança é que a nossa cor de pele sirva apenas e tão só, para
sermos vistas, reconhecidas, representadas e respeitadas enquanto pessoas, cuja humanidade jamais será diminuída, ofendida e
violentada por causa da cor de pele.”
Continuando o meu percurso biográfico. Desde sempre me
dedico a criar pontes entre pessoas e projetos, reunindo afinidades, acompanhando o que se produz em vários circuitos culturais e
meios artísticos, ampliando e cruzando as vozes que vão surgindo.
Bicho carpinteiro, tentáculos mil e facilidade em lidar com a estranheza e o novo, saltito de projeto em projeto, em várias áreas e
geografias, entregando-me obsessivamente sobretudo a projetos
independentes. Formei-me em Literatura na Universidade Nova,
onde sou doutoranda em Estudos Artísticos. Tenho pesquisado sobre o debate pós-colonial nas artes em Portugal, processos de memorialização, plataformas discursivas e estudos africanos. Passo
temporadas em países de língua portuguesa executando projetos
culturais: no Mindelo (Cabo Verde), com jovens caboverdianos,
criámos a revista cultural Dá Fala; em Luanda colaborei com a I
Trienal de Luanda e com o Festival Internacional de Cinema, lecionei na Universidade Agostinho Neto e escrevi para vários jornais
angolanos; em Maputo no festival Dockanema; em São Tomé e
Príncipe acompanhei a Bienal Internacional de Artes e programei
o Roça Língua, encontro de escritores lusófonos, do qual resultou
um livro de contos. Organizei ciclos dedicados ao antropólogo e
cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho E agora… vamos fazer mais como? (Maputo, 2009) e Paisagens Efémeras (colóquio,
exposição e filmes, Lisboa, 2015). Vários regressos a África foram
acontecendo a pretexto nomeadamente de cinema, como as
séries: Eu Sou África (2010), sobre dez personalidades que viveram as independências e que lutaram pelas fragilidades dos seus
países. E No Trilho dos Naturalistas (Terratreme 2012-16), sobre as
expedições botânicas em África do início do século XX — a ciência
ao serviço da missão colonial, e o regressar à actualidade desses
contextos, em filmes de autor sobre botânica tropical.
3
SOS-Racismo, Djass- Associação de Afro-descendentes, os coletivos feministas que
Michele refere, o projeto Afro-Port, a Conferência Afro-Europeans (Lisboa 2019) que foi
marcante pela ocupação negra de espaços académicos marcadamente brancos.
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Outra linha de trabalho tem sido a concepção de programas
públicos ligados a projetos artísticos, na articulação arte e teoria,
sem que nenhum lado anule o outro. Aliás, na sua capacidade de
imaginar e ousar, muitas vezes a arte precede a teoria, exponenciando o capital crítico. Refiro apenas dois exemplos de 2018: O
projeto NAU!, com o Teatro Experimental do Porto que, antecipando a comemoração dos 500 anos passados sobre a “circum-navegação” marítima de Fernão de Magalhães (1519), o ponto de partida foi — alinhado com o amplo debate crítico ao eventual Museu
da Descoberta — o de questionar a transmissão da memória pública da história: uma narrativa de glorificação, expansionista, colonialista e imperialista. Pretendeu-se tentar saber histórias paralelas ao
que representa esta historiografia, o lado violento e anulado, usando a expressão de Walter Benjamin (1940), tentámos “escovar a
história a contrapêlo”. Também, em conjunto com a investigadora
e poeta-slammer Raquel Lima, organizámos o ciclo Para nós, por
nós: produção cultural africana e afrodiaspórica em debate (2018)
que reuniu coletivos, criadores e investigadores de diversas linguagens, com percursos que consideramos emancipatórios, para
averiguar o estado das artes: a criação, as condições e políticas
culturais, de modo a fortalecer alianças no meio cultural.
Outra abordagem interdisciplinar tem sido a elaboração e edição de publicações independentes, juntando autores firmados e
emergentes, cruzando discursos, tempos e lugares de enunciação diversos. A motivação em criar espaços de diálogo teve início
no meio cultural português, com a revista V-ludo, na viragem do
milénio, em fase de vida universitária e de boémia lisboeta, num
formato entre a fanzine e a revista de arte. De seguida abriu para
o universo lusófono (com a revista Dá Fala, feita a partir de Cabo
Verde 2004-5), que seria o pontapé de saída de um percurso profissional itinerante, ligado ao sector cultural em vários contextos.
Essas vivências fizeram-me questionar as bases de uma falsa universalidade da produção teórica e artística, e decidi criar a plataforma BUALA. Se as duas revistas eram impressas em papel e
gravitavam em torno de temas abstratos (na V-ludo, o optimismo,
inutilidade, festa, conflito, tempo, biografia e lixo, e na Dá Fala a
independência, cidade e sexualidade), o BUALA, pela sua natureza global, só podia existir de modo digital, aproveitando a amplitude de colaboradores e leituras que o acesso livre da internet
possibilita.
Lançada na Bienal de São Paulo de 2010 (em conjunto com
a curadora Marta Mestre), a plataforma BUALA (www.buala.org)
tem vindo a criar a sua identidade à medida que o arquivo de artigos e imagens abrangem assuntos pós-coloniais e do Sul global: enquanto resistência a um poder opressor, de lugares com
experiências históricas e políticas mais ou menos semelhantes,
nomeadamente a colonial (SANTOS e MENESES, 2010). Esta ferramenta de reflexão, construída a várias vozes, obedece a uma
“curadoria aberta” e metodologia de trabalho informal, impactante e persistente. A minha defesa é que, se ambicionamos uma
abordagem pós-colonial, terá de ser polifónica, colocando no tabuleiro vários enfoques históricos, geográficos, políticos e culturais.
Assim, BUALA é esse lugar de encontro, gerador de visibilidade
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e de fricções, incentivando discursos que abarcam realidades
simultâneas, de urgências diversas. Deve o seu nome à palavra
bwala, usada em quimbundo e lingala de Angola e dos Congos,
no sentido de aldeia e periferia, salientando o sentido de comunidade. A sua geopolítica enquadra-se na relação entre Europa,
África e Américas, antigo triângulo atlântico, olhando para as tensões e continuidades de exploração em países atravessados por
uma história colonial, cujos impactos interessa problematizar pela
via artística e das ciências humanas. Na época em que o BUALA
foi pensado, começava a crescer a influência de redes sociais e
tinha ainda algum peso o dispositivo dos “blogues” de enfoque
territorial, nacional e personalizado. Era necessário um lugar que
não fosse uma revista científica e sistematizasse a diversidade da
produção cultural e de pensamento produzido em várias frentes,
reunindo materiais que estariam dispersos noutros registos, atribuindo novas leituras e criando conexões — gesto que fortalece
a memória cultural, aparentemente desordenada e desconectada
— contribuindo para a emancipação e alargamento do debate descolonizador dos saberes.
Seria difícil fazer justiça a um tão amplo enfoque dos artigos
do BUALA. Interessa relevar o seu potencial de documentação
acessível ao longo do tempo, no qual podemos perceber como
certos assuntos e epistemologias têm circulado. Por exemplo, no
que toca às alteridades, cidadania e hospitalidade, deslizamentos
identitários e de pertença. Artigos sobre as violências e acontecimentos dos impérios coloniais, mas também a resistência cultural
transnacional do Black Atlantic (GILROY, 1995) e a criatividade que
proliferou por toda a diáspora negra. Falamos de afrofuturismo,
da cultura popular (por exemplo o Carnaval, o Tchiloli de São Tomé
e Príncipe, práticas religiosas na Colômbia), cultura urbana da expressão musical à arquitectónica. Artigos a partir de exposições,
filmes, peças de teatro ou conferências, em diálogo com associações e instituições. O debate sobre a descolonização dos museus,
o activismo da cultura visual e a restituição do património africano.
Disputas de memória e processos de memorialização, conflitos
em curso, tais como as questões indígenas, negras, queer e as
lutas interseccionais. Como desdobramento do pensamento feminista, editámos um livro sobre Este corpo que me habita (2014), no
qual têm lugar temas como o género, a morte, a precariedade, as
cidades e a biopolítica. E tantos outros temas e protagonistas de
vários cantos da Europa, das Américas, do norte de África à África
subsaariana, que o melhor é o leitor acompanhar.
Temos ainda as galerias do BUALA (http://www.buala.org/
pt/galeria) que funcionam como mostra dinâmica de artistas em
diálogo com os temas do site. Encontra-se exposições virtuais
Francisco Vidal (diário gráfico), Mauro Pinto (fotógrafo moçambicano sobre Portos de convergência e as relações das culturas da
África Austral com o resto do mundo), Ruy Duarte de Carvalho
(a série de aguarelas “Os cadernos do celibatário” e a exposição
Sob uma delicada zona de compromisso), Pascal Marthine Thayo
(acompanhada por uma entrevista imaginária de Simon Njami),
os pintores caboverdiano e santomense Tchalé Figueira e René
Tavares, o fotógrafo Jordi Burch apresenta retratos de boers
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sul-africanos, Mourad Charrach sobre a interseção da educação
ocidental e muçulmana, as fotografias muito implicadas nas questões de género de Zanele Muholi e Andrew Esiebo, e um fotógrafo
sul-africano, John Liebenberg, que cobra a guerra civil em Angola.
Também séries organizadas por artistas ou curadores, como a
de Jota Mombaça sobre a artista trans brasileira Castiel Vitorino
Brasileiro, “Aqui foi o Quilombo do Pai Felipe”; o “Negócio forçado:
um roteiro em expansão pelo império português”, organizada por
Hugo Dinis com artistas que trabalham a visualidade do passado
e do presente; a banda desenhada O “Churrascão Tupinambá” da
autora brasileira Cecília Silveira, sobre o ciclo da vingança geradora
entre índios e europeus, e “A-Terrar”, ensaio-galeria da autoria de
Rita Natálio, que mostra trabalhos de artistas brasileiros, indígenas ou que tratam de direitos indígenas, em contraposição aos
modelos extrativistas e globalizantes. Ou ainda o projeto “Álbuns
de Guerra”, que desafia antigos combatentes na absurda guerra
colonial em África (1961-75) a mostrarem as suas fotografias de
guerra, fazendo um testemunho retrospectivo (e catártico). Ou o
artista angolano Lubanzadyo Mpemba que reside em São Paulo e
fez uma composição fotográfica a partir da cidade como espaço
e o mundo como corpo. Assim, pretende-se dar a conhecer
visualidades e apresentar um mosaico de narrativas que revela
as várias agendas que estão em jogo na luta pela coexistência
e pelo comum. Funciona também como chamada de atenção
contra as homogeneizações e gavetinhas, por exemplo no que
toca ao movimento negro (composto por fricções, perspectivas e
referências nem sempre consensuais) ou à ideia de África, que
normalmente é criada de fora. O trabalho do BUALA inscrevese na tentativa de um “equilíbrio de histórias”, estamos com o
escritor nigeriano Chinua Achebe (1988), contra a ameaça de sucumbir ao “caminho, verdade e vida únicos”. Estamos também
com Gabi Ngcobo (curadora 10ª Bienal de Berlim e cofundadora do
Center for Historical Reenactments) quando refere a importância
de “investigar como as narrativas históricas têm sido construídas
– especialmente quando escritas a partir de uma posição que glorifica aqueles que historicamente causaram muito dano a outros”
(NGCOBO, 20174).
Em 2012 acabava de regressar de uma viagem por terras moçambicanas de predominância macua. O português, língua (oficial)
pela qual tentamos comunicar, faz sobressair mal-entendidos, timidez na expressão e disparidade no domínio da mesma. Relações
de poder que vêm de outros tempos, desconfiança velada ou servilismo exagerado para com a equipa de brancos que, por outro
lado, não conhecendo os ritmos e códigos da terra, ou manifestam
condescendência bacoca ou arrogância que vem de uma certa
ideia de progresso e modelo de desenvolvimento. O desencontro
é visível, o diálogo e a horizontalidade desejada nem sempre são
possíveis.
Percorremos sucessivas aldeias de cubatas, de onde saem,
matutinos, os camponeses para as machambas e as crianças para
as suas escolas distantes, aldeias nas quais a interferência da
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ideia de “progresso” parece ser somente o uso do celular. Vida
auto-subsistente, refém dos ritmos da natureza e da capacidade
humana: tudo o que se vê construído e alimenta essas aldeias,
parece estar indiferente aos governos ou a uma noção de Estado.
Romantismo e nostalgia que lugares simples e harmoniosos invocam, ou um ingênuo afrocentrismo que promove uma divisão
essencial entre África e o Ocidente, e recorta a imagem de África
anterior à modernidade. Esta visão romântica e exótica do continente provoca até uma imagem folclórica de si mesmo. Difícil
será estar fora da equação do progresso, nem que seja pelo reverso. Já nas cidades e capitais de província, as elites abusam dos
seus privilégios, com vícios de corrupção e aproveitamentos tanto
maiores quanto menos justa é distribuição da riqueza, reproduzindo modelos numa lógica endo-colonialista. As elites naturalizam
hierarquias, mergulham em preconceitos classistas e raciais. No
entanto, muita coisa de positivo acontece: classes médias vão surgindo, restabelecem-se as feridas e o tecido social das guerras,
uma juventude desperta para os seus direitos reivindicando liberdades, a criatividade e solidariedade vão atenuando fossos profundos das sociedades. A África das cubatas que nos surpreende
pela ancestralidade e alheamento, com elefantes a atacar a mandioca da população e rituais de iniciação, coexiste com as grandes
metrópoles, de crescimento económico acelerado, de desfiles de
moda, de mestiçagem cultural e padrões ocidentalizados. Todos
estes segmentos, economica e politicamente diferentes, convergem para a mesma contemporaneidade das identidades africanas
persistindo, como em todo o lado, versões contraditórias do que
se é africano. Ruy Duarte de Carvalho escreveu sobre a necessidade de os africanos se inscreverem fora do que tem sido importado,
“a possibilidade de também sermos capazes de inventar qualquer
coisa dentro dos horizontes de uma modernidade, de uma dinâmica de mudança acelerada e valorizada, que nos redima em lugar
de nos condenar a uma perpétua sujeição, como consta, precisamente, dos programas alheios que adoptámos como referência
monolítica e como modelo” (CARVALHO, 2003, p. 143).
O BUALA seria engendrado no seguimento de vivência e trabalho nesses países, onde me deparei, tanto em Luanda, Maputo,
Bissau, São Tomé, sobretudo da parte de jovens, com a dificuldade, no acesso à informação e ao conhecimento (inclusive aquele
que é produzido sobre os seus próprios contextos, numa atitude
algo predadora de cineastas, académicos de não devolução às fontes) e/ou a asfixia às liberdades de expressão. Constatei igualmente o potencial de massa crítica, ações da sociedade civil e acontecimentos — ausentes nos meios de comunicação ou apenas de
um modo muito intermediado. Reflectindo sobre o contexto de há
dez anos atrás, apesar das suas políticas culturais debilitadas, aspectos da criatividade, mais ou menos informal, não eram conhecidos em profundidade nem em Portugal nem nestes países entre
si (à excepção da música e de alguns artistas) e, menos ainda,
num âmbito mais amplo. Assinale-se a marginalização, evidente
na academia geral, dos estudos africanos ou da literatura de língua
portuguesa fora de Portugal e Brasil, consequência do parco investimento na internacionalização. Ou seja, a lusofonia, disseminada
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enquanto discurso identitário de língua de coesão, não promove
um conhecimento integrado, apelativo e horizontal sobre as singularidades dos países que a compõem. É preciso incentivar o
confronto histórico entre tempos, combatendo o lado nostálgico
(ainda que não descurando a parte afetiva) muitas vezes neocolonialista, para chegarmos à verdadeira interculturalidade não anuladora. Como Michelle Sales refere acima, a propósito da obra de
Yonamine, a língua torna-se um espaço de contestação cultural e
política.
Quando imaginei um espaço como o BUALA foi também
para complexificar o conhecimento sobre realidades enquadradas numa história comum, digamos, mal contada — a construção do “espaço lusófono”— para emancipar estas relações para
lá de apontamentos folclóricos, saberes académicos ou evasivos
discursos políticos que não equacionam reparações ou pedidos
de desculpa (como foi o caso do discurso do presidente Marcelo
Rebelo de Sousa em Gorée, entreposto de escravos no Senegal,
em 2017). Um “multiculturalismo acrítico” denunciado por Miguel
Vale de Almeida no Atlântico Pardo (ALMEIDA, 2002), cuja associação entre o lusotropicalismo de ontem e a lusofonia de hoje
se dilui no emproar de aventuras no mar ou na harmonia entre os
povos. Sendo que muitos dos problemas sociais atuais destes países serão ainda também consequência do passado esclavagista,
colonial e extrativismos vários.
Apesar da manifesta dificuldade na análise do passado colonial português (um tabu social ou um orgulhoso reavivar), tem-se
vasculhado nos arquivos e nas memórias e produzido conhecimento sobre o colonialismo, o trabalho forçado, a ditadura, as guerras
(de pacificação e colonial) e a resistência, tanto nas ciências sociais (nomeadamente com novas gerações de historiadores) como
nas artes. Vários artistas trabalham a partir da história colonial e
do império (conflituosa, e por isso interminável), porém sente-se
a falta do olhar para as suas continuidades, espremendo as relações de ex-poder colonial com ex-colónias em todas as suas perversidades. Em termos de artistas visuais, vale a pena perceber
como estas e outras questões têm emergido nas obras de Ângela
Ferreira (a pioneira de trabalho sobre o império português e as independências, nascida em Moçambique e crescendo na África do
Sul) e dos portugueses Vasco Araújo, Maria Lusitano, Filipa César,
Manuel Santos Maia, Daniel Barroca, Catarina Simão e Francisco
Vidal e Mónica de Miranda (com ascendência africana); no cinema
de Margarida Cardoso, Pedro Costa, Pedro Pinho, Miguel Gomes,
Ivo Ferreira, Filipa Reis e João Miller; nas peças dos grupos Teatro
do Vestido, Hotel Europa, Teatro Praga e Mala Voadora.
Um privilégio do meu trabalho tem sido, desde 2005, acompanhar o percurso das artes em Angola, que têm um particular
vigor. As edições da Trienal de Luanda (em 2007, 2010 e 2013)
dinamizaram a vida cultural de Luanda, com conferências e exposições acessíveis a todos, erguendo-se um mercado com colecionadores e artistas que iniciavam a sua carreira dentro e fora do país.
Algumas galerias angolanas, tais como a Jahmek Contemporary
Art, o Ela - Espaço Luanda Arte, a Mov’Art, This is Not A White
Cube, o Colectivo Pés Descalços criaram o seu próprio nicho. As
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linguagens estéticas foram-se ampliando, como sinal dos tempos.
De uma primeira geração de pintores como António Ole (também
autor de fotografia e instalações), Van, Mário Tendinha, Jorge
Gumbe, Fernando Alvim, Etona, sucedem-se nomes já reputados
(alguns referidos pela Michelle Sales) como Yonamine, Kiluanji
Kia Henda, Edson Chagas, Nelo Teixeira, Ana Silva, Thó Simões,
Keyezua, Alice Marcelino, Januário Jano, Nástio Mosquito, Binelde
Hyrcan, Délio Jasse, Toy Boy, Ery Claver. Residentes em Angola
e/ou circulando na diáspora, trata-se de uma geração globalizada,
resultado de várias influências de tempos e lugares e que se exprime pela fotografia, escultura, videoarte, instalação, música, sem
se fixar num só estilo.
Alguns artistas angolanos que haviam participado na 1ª
Trienal de Luanda, em início de carreira internacional com a Bienal
de Veneza de 2007, mostravam uma postura que agitava as expectativas da arte dita africana, influenciando a percepção nos circuitos portugueses. Nascidos no pós-independência, e embora nunca deixem de ser evocadas as suas origens que muito pensam no
modo como são curatoriados, descobrem o seu estilo e temáticas
de trabalho, nas quais diferentes vivências, tais como a guerra civil,
o pós-guerra, as diásporas, as culturas urbanas com várias casas, a
influência pop e a globalização, figuram como matéria-prima, tanto
como os vínculos coloniais, mas desenvencilhando-se de estereótipos. Como já referido, o caso de Kia Henda, é interessante pelo
modo como tem reformulado artisticamente a narrativa histórica a
partir da arte pública e monumental confrontando símbolos de regimes e de poder político, as transformações da cidade de Luanda,
sempre jogando com as ironias da história.
Em 2008, visitei a Trienal de Guangzhou (China) que tinha
como tema Farewell to Post-Colonialism, a “despedida do pós-colonialismo” e o “recomeço a partir da Ásia”. A iniciativa dos três
curadores – Gao Shiming, Sarat Maharaj e J. Chang Tsong-zung –
não recusava a tradição intelectual do pós-colonialismo como teoria cultural de vanguarda, na sua importante reflexão sobre história
e política, ou a revisão crítica ao eurocentrismo vigente (apesar
das outras críticas ao pós-colonial que não contraria a predominante anglo-saxónica, indiferente à América Latina e à natureza
colonial e imperial dos Estados Unidos). Talvez reivindicassem novos protagonismos geopolíticos (como o gigante asiático). Mas
o que achei interessante foi interrogarem os limites do discurso
pós-colonial e multicultural enquanto cultura dominante no mundo
da arte (numa altura em que Portugal começava a falar do assunto). De algum modo, a defesa de um pós-pós-colonial derivava da
insatisfação perante determinadas tendências de um certo tipo de
“politização” da arte na qual o potencial de ferramenta crítica do
pós-colonialismo — desconstruir preconceitos e relações de poder, pensar o presente à luz do passado colonial no sentido de
averiguar continuidades — tornara-se uma espécie de língua franca da retórica curatorial e da globalização. Nesse processo de institucionalização, esvaziava o seu sentido político e revolucionário,
assim como comprometeria a emergência da criatividade artística
e de outras teorias. “Pretendemos alcançar um recomeço para
a arte e reinventar modos para a criatividade”, explicava Chang
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Tsong-zung; “Pretendemos pensar pelo visual”, propunha Sarat,
professor de teoria de arte no Goldsmiths College. Remeto para
esta chamada de atenção de há já onze anos atrás, vinda de uma
Trienal com reputação de perspicácia quanto ao momento vivido
pela arte contemporânea, para contextualizar que o pós-colonial
nas artes inspirava algumas ressalvas. O repto era o de libertar os
artistas dos chavões do multiculturalismo e de determinada instrumentalização da arte que a esvaziava da verdadeira arte política
que destabiliza. Para Gao Shiming, mais do que uma experiência
histórica de pós-colonialismo —“não existem artistas pós-coloniais, mas todos existem num contexto pós-colonial” (SHIMING,
2008) —, vivíamos uma experiência institucional e ideológica do
mesmo, empolado pelas exposições internacionais, como se operasse por termos-chave (identidade, o outro, tradução, imigrante,
migração, diferença, indígena, hegemonia, marginalização, minoria, opressão, visível-invisível, classe e sexo) sem mudanças de
paradigmas.
Com o apelo dos movimentos sociais, com a evidência multicultural das nossas cidades, com os problemas que emergiram
nos últimos anos da subida da direita e do discurso do ódio e de
políticas destrutivas, entre tantas fracturas, a arte contemporânea
reforça a problematização dessas questões e enreda-se em discursos culturais. As teses pós-coloniais, adaptadas às problemáticas
artísticas, contribuíram involuntariamente para a objetivação do
“outro”, por parte de instituições artísticas e de poderes políticos,
na lógica da tal sociedade formalmente livre, que elogia a diferença mas que não cria a diferença, transformando os indivíduos em
objetos sociais. Uma espécie de tendência baseada na self-other-isation, assentando num sistema que cria as suas “culturas curadoras” e as “culturas curatoriadas” (síndrome Marco Polo, identificado por Gerardo Mosquera).
Uma das tarefas para o artista seria então escapar à espetacularização da política à qual os lugares artísticos internacionais
(como o circuito das Bienais e das redes de programação internacionais) convidam, num jogo político cultural, autogerador e criador de mitos para o negócio global, midiático, de turismo cultural.
Apesar de sujeitas a lógicas mercantis, as Bienais expressam a
vontade de formação de uma esfera pública e capitalizam as agendas teóricas para as suas linhas temáticas e influenciam tanto a
produção e recepção da arte contemporânea (as tendências e os
novos protagonistas nas artes). As novas cartografias das exposições e o alargamento do mercado para inúmeras bienais em países do “sul” funcionam também como uma vitrine — de artistas
locais e “tendências” do pensamento crítico (muitas vezes atualizado e “traduzido” para o mundo artístico).
Voltando ao “caso português”. Por cá o discurso pós-colonial
tardou a firmar-se. Primeiro, uma longa fase de silêncios, tabus e
desinteresse por assuntos de um passado traumático (nomeadamente o processo de descolonização, para muitos) e pelas culturas
extra-Europa-América (entre a revolução e o final dos anos 90, a
Europa passou a ser a nossa visão de futuro e a América o modelo
cultural de todos). Depois, eventos institucionais ligados às comemorações dos “Descobrimentos” (nomeadamente a Exposição
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Mundial de 1998), e às “outras culturas” numa perspectiva multicultural pouco transformadora. 2008,, de novo, o Ano Europeu do
Diálogo Intercultural. Esta mudança de léxico talvez assinale uma
tentativa de quebrar o círculo fechado de vivências de culturas minoritárias nas cidades europeias.
A reflexão foi-se tornando eminentemente transdisciplinar,
destacando-se as contaminações entre a história, a antropologia,
as artes e, muito recentemente, estreitou-se a conexão ao ativismo negro (sobretudo o combate à violência de Estado e ao racismo) e da descolonização (dos saberes, da história e da cultura
visual), tendo os sujeitos racializados passado a ocuparem mais
espaços público sobre as suas próprias questões.
Em termos artísticos, o interesse foi sendo alargado também
devido às dinâmicas da globalização e a um afropolitanismo emergente (MBEMBE, 2014). Talvez o pós-colonial tenha passado da
marginalidade à banalização, arriscando-se a perder a capacidade
disruptiva (de desconstrução de preconceitos e relações de poder), como diagnosticado pela bienal chinesa. Mas mesmo assim,
tenho dúvidas porque é uma teoria com tantos tentáculos que
muito ainda há a explorar-se. O que é mais importante reflectir
é se o modo como os temas são colocados é ainda da ordem da
alteridade — de novo um “nós” e um “eles” (aqueles que “pensam” e aqueles que são pensados, ontem objeto de dominação),
pela valorização da diferença como algo que separa (primeiro o
desinteresse e invisibilização do “outro”, no momento seguinte a
sua inclusão subordinada), ou se já podemos estar noutra fase de
exigir participação dos vários modos de habitar o mundo, e evidentemente também no campo artístico.
Entre outros aspectos que nos interessam reactivar no património de estudos pós-coloniais, enquanto teoria herdeira do espírito crítico do maio 68 e do pensamento pós-estruturalista, é o facto de agitar o sistema de conhecimento-poder da história europeia,
deslocando visões fechadas e reavaliando as complexas conexões
sobre globalização, economia, precariedade, direitos humanos, política, cultura, classe, género e ambiente. No fundo, trata-se de
entender as ligações que emergem nos desafios contemporâneos, e a articulação entre identidade pessoal e destinos colectivos.
O problema de programas multiculturais ou das alteridades é que,
muitas vezes, ocultam ou dissimulam problemas muito reais das
nossas vidas para colocar do lado do exótico ou longínquo.
Por outro lado, apesar da oferta cultural em diálogo com temáticas pós-coloniais, africanas e sul-americanas, se ter alargado
no país, o interesse se reduz por vezes a um público especializado,
mas isso é um problema geral da elitização dos meios artísticos.
No entanto, penso que o público e as instituições estão mais aware, atento em nome de quem se fala, o acesso aos meios de programação e produção, contestando a guetização das culturas em
nichos, por exemplo a arte africana como algo à parte. Estamos
mais exigentes contra os discursos condescendentes ou que revelem um certo “oportunismo temático”, mais familiarizados com
outras produções e alertados para as nossas limitações, relações
de poder e “vícios” de curadoria, coleção, pesquisa e museus, o
que implicará igualmente subverter o paradigma moderno/colonial
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de visualidade e as hierarquias próprias da arte ocidental. As novas
condições da globalização económica mudaram a prática cultural, a
produção está mais desterritorializada e os artistas mais libertos da
retórica de nação. Sem deixar de relevar o nosso lugar de produção
e recepção da arte e do discurso (e sem esquecer alguns modos
de produção, muitas vezes informais, com carências de informação e de meios, integrando as obras nos seus contextos), o local e
tradicional circulam a uma escala mais global. O desafio será o de
se exercitar uma cultura internacional, já não baseada no exotismo
mas na curiosidade genuína.
Em Lisboa tem havido oferta cultural com novas abordagens estéticas e visuais na arte contemporânea, artistas e pensadores oriundos de África e da América Latina com problematizações das urgências do mundo (por exemplo, a partir dos programas Próximo Futuro na Fundação Gulbenkian (2009-2015), do
Festival Alkantara, e de instituições como o Teatro Maria Matos e
Culturgest). Trabalham-se pautas, no discurso e na estética, como
questões da terra, pertença, antropoceno, descolonização, arquivos, pós-memória, etc. É preciso articular tudo isso com as injustiças clássicas do capitalismo, a assimetria da qualidade de vida, na
circulação e cidadania. É preciso que o debate tenha mais protagonistas directamente imersos nas consequências do processo de
colonialidade e que estes acedam às artes e academia (porque não
há quase negros portugueses no circuito da arte contemporânea?
Porque os professores e alunos de estudos africanos são maioritariamente brancos? Isto diz muito sobre a implicação, alheamento e
condições).
Algumas conclusões. Observa-se algum engajamento no
debate sobre a colonialidade, ainda que num circuito minoritário
da academia, da arte e da comunicação. Podemos afirmar que o
debate aqui na velha Europa está em curso? Todos os dias se avança um pouco, sempre que alguém exige fazer ouvir a sua voz, e
é um facto que as novas gerações, globalizadas e atentas — e aí
as resistências brasileiras feministas, gay, trans, pretas, indígenas,
sem terra, têm sido um grande modelo no discurso e na atitude
— já não “voltam para o armário” nem para a invisibilidade. As
instituições públicas e a dita sociedade civil estão num momento
de reflexão que pode incentivar mudanças estruturais com efeitos
diretos na vivência das populações racializadas? Por um lado sim,
as forças emancipatórias têm estado a urdir o seu trabalho, por
outro emerge o racismo e retrocesso. Vejamos a própria relação
com a História, na qual só recentemente se tornou debate público a ferida colonial portuguesa, o reconhecimento da violência e
da desumanidade enquanto programa, nomeadamente nos séculos de escravização massiva em África e comércio transatlântico.
Uma maior horizontalidade nesta grande conversa de mundos? O
algoritmo dar-nos-á uma imagem distorcida certamente. Mas as
ferramentas de discurso e de linguagem têm-se construído e são
muitas as vozes que interessa ouvir e ampliar.
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Referências
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Farewell to Post- Colonialism: The Third Guangzhou Triennial Reader 3.
Vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=vztLJfJYPYs
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