JANUS
2014
3.30•Metamorfosesdaviolência
Amilitarizaçãodoespaçourbano
O ANO DE 2011 iniciou-se com ruas e praças de
várias cidades no mundo árabe tomadas por milhares de pessoas protestando contra os seus governos ditatoriais. Logo a seguir, as manifestações
apareceram também em vários outros países, embora não necessariamente pelas mesmas razões:
Chile, Espanha, Inglaterra, Grécia, Israel, Portugal e Estados Unidos, entre outros. Embora nossa primeira atitude seja avaliar a inserção desses
movimentos por referência ao Estado nacional
onde ocorrem, na verdade é mais apropriado se
falar em revoltas ocorridas nas cidades (e não
nos países como um todo). São revoltas, portanto, em: Santiago, Madrid, Barcelona, Londres,
Atenas, Tel Aviv, Lisboa e Nova Iorque, indicando que, cada vez mais, as cidades demonstram
que podem “(...) desempenhar papéis importantes na distribuição de poder global no futuro” (Naím, 2011).
A dimensão das cidades como espaço de uso da
violência foi mais intensamente realçada pelos
meios de comunicação nos países desenvolvidos a partir dos atentados terroristas ocorridos
no dia 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, bem como, posteriormente, em solo europeu (Madrid e Londres). As justificativas usadas
para se combater o terrorismo (“guerra ao terror”) revelaram que as cidades tornaram-se os
teatros preferenciais para a guerra assimétrica:
como se viu em Trípoli e Bengazi, Alepo
e Homs, Faludja e Najaf, como antes em Sarajevo e Pristina, ou Mogadíscio e Bangui.
Aliás, a facilidade com que o exército iraquiano
foi destruído em 2003 contrastou, logo depois,
com as ações dos insurgentes nos centros urbanos, que foram capazes de neutralizar a superioridade tecnológica dos Estados Unidos. Enquanto, internacionalmente, as definições do que
constitui o terrorismo estão sob o domínio das
grandes potências e dos tribunais internacionais, internamente, o uso dos discursos sobre
o terrorismo tornou-se não só politizado, mas
passou também a estar ancorado na ampliação
de políticas nacionais de segurança pública.
Após o 11 de setembro de 2001 uma agenda política conservadora, nos Estados Unidos, mas
com repercussões em vários países, tem alimentado o propósito de se acabar com as fronteiras
jurídicas e políticas estabelecidas entre as dissidências, as revoltas, os crimes e aquilo que
é definido como o terrorismo internacional.
Nesse sentido, uma das principais autoridades
em estudos sobre violência armada nas cidades,
Stephen Graham (2004a, 2004b, 2009 e 2010),
alerta para o fato de que projetos de segurança
urbana e prevenção do crime estão sendo transformados a partir da lógica da guerra contraterrorista. Embora a literatura emergente sobre ci-
ReginaldoMattarNasser
dades e violência seja amplamente focada na
vulnerabilidade das cidades ao terrorismo,
é fundamental identificar as maneiras pelas
quais as preocupações com a “segurança nacional” começam a infiltrar-se nos interstícios da
vida cotidiana nas grandes cidades.
A existência de redes transnacionais, incluindo
aquelas que usam a violência política, certamente não é um fenômeno novo. No entanto, como
em períodos anteriores da globalização, os recentes aumentos na mobilidade de pessoas, capitais, bens e ideias têm proporcionado novas
oportunidades para se empreenderem estratégias políticas transnacionais, inspirando-se em
novos tipos de redes transnacionais. Como tal,
a globalização está transformando o ambiente
de segurança internacional, estimulando mudanças na utilização dos recursos, da infraestrutura e das capacidades disponíveis, facilitando
a mobilização política transnacional dos atores
não estatais. Embora isto não conduza necessariamente a uma mudança global no equilíbrio
de poder entre Estados, há um impacto sobre
o ambiente de segurança em que estes operam.
[...] é fundamental identificar
as maneiras pelas quais as
preocupações com a “segurança
nacional” começam a infiltrarse nos interstícios da vida
cotidiana nas grandes cidades.
A guerra é normalmente entendida como um fenômeno que reflete uma forma de organização
espacial, no caso o Estado-nação territorialmente estabelecido. Mas, na história da sociedade
humana, o Estado nem sempre foi baseado exclusivamente na nação: o controle do espaço
urbano tem sido, muitas vezes, crucial para sua
sobrevivência e, mesmo na era do Estado-nação,
a guerra frequentemente girou em torno da exploração ou da captura das cidades. No final do
século XX, como o sistema internacional baseado nos Estados-nação foi redefinido pela política
global, a cidade novamente passou a ter centralidade nas “novas guerras”. Em meio à aceleração
de fenômenos de transnacionalização e aos demais processos de globalização, a multiplicação
de conflitos definidos pelo emprego de modalidades de violência organizada distintas das empregadas nas guerras entre os Estados, assim
como o simultâneo declínio do número de guerras nos moldes clássicos, estabeleceram um
novo padrão de conflitos transnacionais.
140
No bojo do debate a respeito desta nova realidade e de suas implicações para os policymakers
e as comunidades epistêmicas emerge a questão
dos elementos sociológicos de urbanidade presentes nas novas modalidades de violência organizada.
De acordo com Sassen, há “(...) um número ainda pequeno, mas crescente, de pesquisadores
trabalhando nisso que faz interface com um
campo de estudo que poderíamos chamar de
‘novas guerras’, e inclui pesquisadores sobre as
guerras dos últimos vinte anos e sobre o terrorismo contemporâneo e conflitos semelhantes”
(Sassen, 2009, p. 1, tradução do autor).
A URBANIZAÇÃO GALOPANTE
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a população urbana passou de 13%
do total mundial em 1900 (220 milhões de pessoas) para 29% em 1950 (732 milhões), saltando
para 49% em 2005 (3,2 bilhões). Atualmente, e
pela primeira vez na história da humanidade, os
espaços urbanos albergam a maioria da população mundial: cerca de 3,5 bilhões de habitantes
vivem, atualmente, em cidades. Alguns chegam a
projetar que, em 2050, de cada dez seres humanos na Terra, sete estarão vivendo em uma cidade. Em 1950, existiam 86 cidades com população
superior a 1 milhão de habitantes; atualmente,
existem 400, e, de acordo com estimativas da
ONU, existirão, em 2015, pelo menos 550 cidades desse porte (Davis, 2010, p. 1). Há que se
mencionar ainda as megacidades com mais de 8
milhões de habitantes: em 2005, estas eram em
número de vinte e constituíam 9% da população
urbana do mundo (UN-HABITAT, 2007). Esta realidade urbana tem implicações econômicas e
políticas enormes e é repleta de problemas, que
vão das necessidades de transportes, água, saúde, eletricidade e habitação às questões relacionadas ao tráfico de drogas e à criminalidade.
As cidades, os Estados e as guerras
Tilly (1996) argumenta que, para defender ou
para estabelecer a soberania nacional, isto é,
a monopolização legítima dos meios de coerção, o Estado moderno teve que se envolver em
luta armada, seja interna, seja externamente.
Para travar e vencer ambas as guerras com sucesso, o Estado teve que criar novas instituições
(burocracias governamentais), novas fontes de
receita (impostos) e novos processos para garantir a sua legitimidade (direitos de cidadania),
o que lhe permitiu extrair fundos e apoio moral
dos cidadãos e empregar atores armados nesse
processo de construção institucional. Essas instituições, as receitas e a reivindicação à legitimi-
dade são as condições básicas para a construção
do moderno Estado-nação, provendo-o da capacidade de exercer efetivamente sua soberania.
As cidades, em nome do Estado, desempenharam um papel fundamental na geração de aliados e de receitas para a montagem dessa estrutura, fazendo do comércio e de outras atividades
relacionadas à dinâmica econômica urbana
a chave para o sucesso do empreendimento da
guerra e para o estabelecimento do Estado-nação (Tilly, 1996). À medida que as cidades passaram a se constituir em proeminentes pontos
nodais das redes de comércio e investimento,
e à medida que os governantes foram capazes
de obter acesso a esse capital como um recurso
para a construção do Estado, o desenvolvimento das cidades moldou, de certo modo, as trajetórias do Estado moderno. As cidades são muito
mais do que simples recipientes para o capital,
como é a percepção dos capitalistas; elas também são locais de interação social, de intercâmbio econômico e de concorrência, e, potencialmente, de mobilização política (Tilly, 2011).
Quando essas tendências ocorrem em um contexto de violência urbana crescente, associada
à atividade criminosa descontrolada, cresce
a insatisfação dos cidadãos com o Estado e, por
essa razão, o monopólio do Estado sobre a força
coercitiva é reduzido, alimentando, assim, o ciclo vicioso da privatização da segurança e da
falta de legitimação governamental. O resultado
é um terreno urbano repleto de atores armados
não estatais, em concorrência entre si e com os
atores estatais, gerando entre os cidadãos uma
permanente sensação de insegurança. Tais desenvolvimentos não só estabelecem as bases
para desafiar as tradicionais funções do Estado,
como a legitimidade, a capacidade coercitiva e a
lógica territorial, mas podem sinalizar o surgimento de novas redes de lealdades urbanas:
uma variedade de comunidades ou grupos com
diferentes agendas econômicas e sociais que dirigem a sua atenção local e transnacionalmente
mais do que nacionalmente. Às vezes, suas atividades subnacionais e transnacionais formam
a base para novas comunidades de fidelidade
e de redes alternativas de compromisso ou coerção, que são territorialmente transversais ou
que enfraquecem as antigas alianças de um Estado nacional soberano.
Os novos espaços sociais:
as cidades globais
Os fundamentos estruturais da argumentação
de Sassen (2001) advêm das formas contemporâneas da mundialização econômica, elemento
essencial para a compreensão da formação de
um sistema de poder transnacional. A autora
observa, no entanto, que seria necessário falar
em um “reposicionamento do Estado no campo
do poder”, em vez de um simples debilitamento
deste. Sassen nega a ideia, amplamente difundida pelos teóricos da globalização, de que os espaços do nacional e do global são domínios
mutuamente exclusivos (Sassen, 1999). A mundialização está, em parte, arraigada no nacional,
mais especificamente nas cidades globais,
e, nesse sentido, necessita que o Estado regule
certos aspectos específicos de seu papel em nível nacional. Trata-se de um campo de transações estratégicas transfronteiriças que demanda
interações específicas com os atores privados
e estatais. Estamos, portanto, diante de uma reconfiguração do espaço – cada vez mais institucionalizado – de relações entre agentes e atores
privados transfronteiriços, o que se traduz em
uma transformação fundamental em matéria de
soberania, com novos conteúdos e novas espacializações (Sassen, 1999).
blages pertencem e funcionam em uma cultura
transfronteiriça inserida de diversas maneiras
em uma rede global de “localidades”, onde se
constituem e operam um conjunto de núcleos
financeiros internacionais com grande circulação de pessoas, informação e capital. Não se
trata propriamente de um espaço territorialmente estabelecido, mas de uma característica
de redes, uma forma de proximidade desterritorializada. n
DIVERSIDADE DA VIOLÊNCIA URBANA
Uma das consequências dessas considerações de
Sassen para o tema da violência urbana pode ser
visto no papel desempenhado pelo Hezbollah
no Líbano, o qual deve ser visto como um assemblage específico de território, autoridade e direitos. Não pode ser facilmente reduzido a qualquer
um dos conceitos mais familiares como: Estado-nação; região controlada por uma minoria
(como a região curda no Iraque); área de quase--separatistas, como a região basca na Espanha;
ou como uma organização terrorista. Da mesma
forma, os papéis emergentes das gangues ou do
crime organizado nas grandes cidades contribuem para produzir e/ou fortalecer os tipos de
demarcações territoriais que o projeto de construção de um Estado-nação procurou eliminar
ou diluir. Além de suas atividades criminosas
locais, eles agora funcionam frequentemente
como segmentos “do global”. Mas, o mais importante é que eles também estão cada vez mais assumindo funções de governo, como
“policiamento” e assistência social, acrescentando, portanto, novos elementos de direitos e
de autoridade nas áreas que controlam.
Em clara negação das teorias clássicas das relações internacionais que assumem os Estados
como entes de caráter homogêneo, sem distinguir sua composição interna e suas dinâmicas
entre os diferentes níveis de governo, Sassen
chama a atenção para uma transformação fundamental do sistema global por meio da proliferação de assemblages, de fragmentos do território, da autoridade e dos direitos. Embora seja
verdade que a globalização desestabilize a montagem tradicional do Estado-nação em favor de
instituições globais como o mercado, também
é verdade que, paralelamente, são constituídas
assemblages (nacionais, regionais e globais)
dentro de um aparato estatal altamente formalizado. Ou seja, os componentes-chave da economia global são estruturados dentro do nacional,
produzindo uma espécie de desnacionalização
de certas estruturas. De outro lado, tanto o espaço como a autoridade e os direitos são re-assemblages em novas configurações globais dentro do Estado-nação a que pertencem.
Há que se fazer, portanto, uma reconsideração
das hierarquias espaciais – local/nacional/global
– nas relações entre a política e a economia
(Sassen, 2008, cap. 6). Na verdade, essas assem141
* Adaptação de um texto já publicado em Defesa nacional para
o século XXI: política internacional, estratégia e tecnologia
militar / Edison Benedito da Silva Filho, Rodrigo Fracalossi
de Moraes: organizadores. – Rio de Janeiro : Ipea, 2012.
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