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FranciscoCon tente Domingues

presente. Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do sol. Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo... ANTÓNIO GEDEÃO PRÓLOGO Este livro resulta de uma dissertação de doutoramento concluída em 2000 e apresentada em 2001 na Universidade de Lisboa. A publicação não a resume ou aligeira no aparato erudito, apenas, pois nalguns casos houve até de acrescentar notas e reescrever texto, dado que nos anos transcorridos as publicações da especialidade foram em número e relevância apreciável, isto sem esquecer as dissertações académicas. Por outro lado houve também o ensejo de rectificar questões de pormenor, mas globalmente este volume é mais pequeno que a dissertação em causa; para isso concorre a não reprodução da nova leitura do Livro de Fernando Oliveira, restringindo-se os apêndices aos regimentos gerais e especiais. O livro, como a tese antes dele, beneficiou muito de conselhos e ajudas várias de amigos e colegas exemplares no entendimento e na prática do que pode e deve ser o intercâmbio científico; o número de trabalhos citados a partir de originais dactilografados que pude utilizar ilustra-o bem. Para todos fica aqui expresso o reconhecimento devido, dirigido em primeiro lugar aos membros do júri que apreciou as provas públicas e sugeriu aspectos mais carentes de revisão, a par das palavras de incentivo que tanto significam naquela hora: os Professores Doutores Manuel Villaverde Cabral, Aurélio de Oliveira, Maria do Rosário Themudo Barata, João Marinho dos Santos e António Marques de Almeida. Uma palavra em particular é devida ao Professor Doutor António Dias Farinha, orientador da dissertação além de arguente.

FranciscoCon tente Domingues 1 OS NAVIOS DO j .. t OCEANO Teoria e empirra na arquitectura naval portuguesa dòs séculos XVI e XVII Os NAVIOS DO MAR OCEANO Francisco Contente Domingues Os NAVIOS DO MAR OCEANO Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII LISBOA 2 0 04 FICHA TÉCNICA Título OS NAVIOS DO MAR OCEANO Teoria e empina na arquitectura naval dos séculos XVI e XVII Autor Francisco Contente Domingues © Centro de História da Universidade de Lisboa e Francisco Contente Domingues Capa: José Varandas sobre fotografia de Paulo Alexandrino Depósito legal 208655/04 ISBN 972-98766-9-X Tiragem 750 exemplares Data da publicação Maio de 2004 Execução gráfica BARBOSA & XAVIER, LDA. - Artes Gráficas Rua Gabriel Pereira de Castro, 31 - A e C 4700-385 BRAGA (Portugal) Tel. 253 263 063 / 253 618 919 Fax 253 615 350 e-mail: barbosa.xavier@clix.pt Editor: Centro de História da Universidade de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade 1600-214 LISBOA (Portugal) e-mail: centro.historia@mail.fl.ul.pt uri: www.fl.ul.pt Tel. +351 21 792 00 00 Fax +351 21 796 00 63 Ditribuidor: DINAPRESS - Martins & Coimbra, Lda. Largo Dr. António de Sousa Macedo, 2 1200-153 LISBOA (Portugal) Tel. +351 21 395 52 70 Fax +351 21 395 03 09 Edição patrocinada por FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia MIN1STFR1O DA CIÊNCIA l DO ENSINO SUPERIOR À memória de José Tébar Domingues, meu Pai, e de Luís de Albuquerque, sempre presente. Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do sol. Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo... ANTÓNIO GEDEÃO PRÓLOGO Este livro resulta de uma dissertação de doutoramento concluída em 2000 e apresentada em 2001 na Universidade de Lisboa. A publicação não a resume ou aligeira no aparato erudito, apenas, pois nalguns casos houve até de acrescentar notas e reescrever texto, dado que nos anos transcorridos as publicações da especialidade foram em número e relevância apreciável, isto sem esquecer as dissertações académicas. Por outro lado houve também o ensejo de rectificar questões de pormenor, mas globalmente este volume é mais pequeno que a dissertação em causa; para isso concorre a não reprodução da nova leitura do Livro de Fernando Oliveira, restringindo-se os apêndices aos regimentos gerais e especiais. O livro, como a tese antes dele, beneficiou muito de conselhos e ajudas várias de amigos e colegas exemplares no entendimento e na prática do que pode e deve ser o intercâmbio científico; o número de trabalhos citados a partir de originais dactilografados que pude utilizar ilustra-o bem. Para todos fica aqui expresso o reconhecimento devido, dirigido em primeiro lugar aos membros do júri que apreciou as provas públicas e sugeriu aspectos mais carentes de revisão, a par das palavras de incentivo que tanto significam naquela hora: os Professores Doutores Manuel Villaverde Cabral, Aurélio de Oliveira, Maria do Rosário Themudo Barata, João Marinho dos Santos e António Marques de Almeida. Uma palavra em particular é devida ao Professor Doutor António Dias Farinha, orientador da dissertação além de arguente. Ao Director do Centro de História da Universidade de Lisboa, Professor Doutor João Medina, agradeço o empenho e interesse nesta edição. E à Fundação Oriente, nas pessoas do seu Presidente do Conselho de Administração, Sr. Carlos Monjardino, e Director da Direcção de Cultura e Assuntos Sociais, Eng. João Calvão, o apoio na preparação da tese e na sua publicação. INTRODUÇÃO A historiografia portuguesa tem tido um discurso marcadamente optimista quanto ao nível do conhecimento actual sobre as embarcações da época dos Descobrimentos e da Expansão. Se não são poucas as questões que permanecem em aberto, um olhar em volta mostra que muita coisa mudou nos últimos anos: o aparecimento de um número apreciável de publicações especializadas e, sobretudo, a publicação de fontes essenciais, como os tratados de arquitectura naval, permitem dizer que houve de facto um salto em frente, sobretudo nos últimos dois decénios. Um período que assistiu por igual ao desenvolvimento notório da arqueologia subaquática, cujos frutos se começam a ver, e à prática das condições de navegação em navios plausivelmente similares aos de há cinco séculos, com a construção de réplicas de caravelas latinas destinadas ao treino de vela '. A ponto de ter sido escrito há bem pouco tempo, a propósito da mais emblemática de todas embarcações portuguesas, que «pode finalmente dizer-se que as caravelas dos Descobrimentos não constituem mais o tal enigma impenetrável que poucos ousavam abordar, restando apenas na penumbra alguns pormenores residuais correntemente em estudo» 2. Ora, medeia quase exactamente um século e meio entre os primeiros anos da década de 1420, altura em que o Infante D. Henrique começou a enviar sistematicamente navios para Sul com o objectivo de dobrar o Bojador, segundo no-lo conta Zurara 3 , e o momento em que Fernando Oliveira escreveu a sua Ars náutica (c. 1570), cuja segunda parte é o primeiro texto teórico escrito por um português sobre arquitectura naval. Nesse século e meio, o alcance das naveV. Manuel Leitão, The Portuguese Camvels «Bartolomeu Dias» 1987-1988 - «Boa Esperança» 1989-1990, Lisboa, Auto-Sueco Lda., s/d, com reprodução parcial dos planos da autoria do C/Alm. Rogério Geral dOliveira. Hêrnani Amaral Xavier, As Caravelas dos Descobrimentos. Um Guia para Professores destinado à preparação da visita à caravela «Boa Esperança», Lisboa, CNCDP-Aporvela, 1997, p. 5. «E finalmente despois de doze anos fez o Iffãte armar hua barcha da qual deu a capitanya a huu Gil eanes seu escudeiro/ que ao despois fez caualleiro e agasalhou muy bem/ O qual seguindo a uyagem dos outros, tocado daquelle meesmo temor nom chegou mais que aas Ilhas de canarya... E foe esto no anno de Ihesu christo de mil e quatro centos e trinta e três» (Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos Notáveis que se Passaram na Conquista de Guiné por Mandado do Infante D. Henrique, ed. Torquato de Sousa Soares, vol. I, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1978, pp. 52-53). 14 INTRODUÇÃO gações portuguesas ultrapassou os limites da imaginação dos homens do tempo, como alguns testemunhos da época bem dão conta, desde o catálogo das novas descobertas enunciado por Pedro Nunes, dizendo que se tinham descoberto novos mares, ilhas e terras, novo céu e novas estrelas, até à frase lapidar de Camões que tudo resume, com aquela singeleza que é apanágio do génio: se mais mundos houvera, lá chegara. Como chegaram onde chegaram é a questão que importa aqui. Ou seja, o que é que a época nos deixou sobre as barcas do tempo de Gil Eanes ou o barinel, a caravela que desvendou o Atlântico, as naus e os galeões que percorreram os oceanos, as caravelas redondas que pelejaram aqui e além, ou as galés que serviram junto à costa, tanto no Oriente como no Ocidente? Que sabemos nós das formas destes navios, das suas características, do velame, da morfologia dos cascos, das condições em que navegavam? Muito e muito pouco. Muito, porque os navios estão presentes em todo lado, das cerâmicas decoradas à pintura, de documentos avulsos de todo o género às grandes crónicas, dos versos dos poetas às pedras incrustadas nas casas das povoações ribeirinhas. Muito pouco, porque antes de Oliveira escrever a sua Ars não temos um único documento que certificadamente nos tenha chegado da mão de um perito ou de um profissional do ofício. Uma pintura ou uma descrição de um cronista vale o que vale, e o mesmo se diga do que Sebastião Temudo achava que devia ser uma nau da índia com dezassete rumos e meio de quilha. Para o investigador, todavia, o último destes testemunhos garante-lhe que foi feito um navio similar àquele que foi descrito, que presumivelmente navegou bem, já que o mestre construtor era um profissional com provas dadas, e a sua capacidade de percepcionar as soluções que os homens da época encontraram vê-se subitamente aumentada quando dispõe destes meios de informação. A partir de circa 1570, ou, se se preferir (e talvez mais adequadamente), de circa 1580, com a redacção do Livro da Fabrica das Nãos, primeiro texto técnico escrito em português sobre a matéria, o aparecimento da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval, com os tratados a par dos regimentos gerais e especiais, abre novas possibilidades na definição da tipologia, morfologia e funcionalidade das embarcações portuguesas. É precisamente esse o nosso objectivo: o estudo da documentação técnica e dos navios, no período que abarca o último quartel do século XVI e o primeiro quartel do século XVII, ou, precisando um pouco mais, de circa 1570/1580 a 1616, data do último dos três tratados portugueses de arquitectura naval, o Livro de Traças de Carpintaria de Manuel Fernandes, período este que designamos por época da tratadística. Sem que obviamente se ignore a existência de documentos técnicos que foram redigidos pouco depois ou nos aparecem associados a datas um pouco mais tardias, mas dos quais se podem tirar ilações importantes para a compreensão da tipologia dos navios portugueses na época que está no cerne do nosso estudo. Daí decorreu aliás a necessidade de o subtítulo mencionar os séculos XVI e XVII, em termos genéricos, já que, por outro lado, alguns dos preceitos que aparecem registados no fim de Quinhentos eram prática comum desde havia muito; a técnica de construção de navios de forro liso, por exemplo, Os NAVIOS DO MAR OCEANO 15 evoluiu com certeza de soluções as mais simples possíveis até à sofistificação que se verifica nos regimentos escritos, mas em si é antiga de séculos. A necessidade de definir um período preciso para a incidência deste estudo não podia deixar assim de considerar a sua inserção num espaço temporal mais alargado, algo impreciso embora, como impreciso é quase tudo o que diz respeito ao conhecimento que temos nos dias de hoje da arquitectura naval portuguesa de outrora. O nosso ponto de partida radica na ideia de que os navios portugueses de circa 1420 a 1570/1580 não são conhecidos senão genericamente, enquanto que, se susbistem múltiplas interrogações para o meio século seguinte, já é em contrapartida possível ter uma ideia mais aproximada das suas características. O exemplo do galeão português do século XVI vale por todos: não é com certeza a mesma coisa procurar na documentação a primeira ocorrência da palavra (não se podendo sequer averiguar a correspondência exacta entre o significante e o significado), olhar para um dos desenhos dos Roteiros de D. João de Castro 4 , aliás magníficos, ou comparar a passo e passo cinco ou seis regimentos técnicos para a construção de galeões de várias tonelagens, com indicação precisa do número de mastros e da altura das cobertas, dos lançamentos das rodas de proa e de popa, ou do tamanho do gurupés. Ditas as coisas de outra forma: é possível dizer que uma nau da índia de finais do século XVI, com 600 tonéis de arqueação, tinha 27 metros de quilha; enquanto que das naus de Vasco da Gama, em contrapartida, pouco mais se sabe além disso, que eram naus - mas até essa identificação já foi posta em causa 5. Como objectivo, portanto, a tratadística e os navios da época, definida pela introdução de um corte no nível dos nossos conhecimentos devido ao aparecimento da documentação técnica, e sem passar para além desse período, já que a partir do segundo quartel do século XVII se verifica uma situação curiosa: multiplicam-se os dados informativos mas desaparecem os tratados de arquitectura naval como os que foram escritos por Fernando Oliveira, João Baptista Lavanha e Manuel Fernandes. Ou seja, os navios portugueses de 1600 conhecem-se melhor que os de 1500 ou 1650. Como atitude e método, o depurar da informação, considerando que os documentos técnicos prevalecem sobre todos os outros testemunhos, por muito valiosos que sejam, como são de facto. Mas documentos técnicos são documentos técnicos, e há que separar uns dos outros, o que justamente é um dos principais óbices a apontar a muito do que tem sido escrito sobre a matéria. Não se pode discutir se um determinado tipo de navio tem uma dada característica contrapondo um regimento de Manuel Fernandes ao passo de uma crónica ou ao que escreveu um padre jesuíta em viagem para o Oriente, colocando-os a todos em plano de igualdade. Em nosso entender, reside precisamente aqui o ponto de clivagem necessário com a prática historiográfica mais comum, por Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro, Introdução de Luís de Albuquerque, Lisboa, Edições Inapa, 1988. C. A. Encarnação Gomes, «A viagem de Vasco da Gama: algumas improváveis certezas», A Viagem de Vasco da Gama. Actas IV Simpósio de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, 2001, pp. 215-225. 16 INTRODUÇÃO vezes não tão atenta à crítica da informação quanto seria de desejar: um trecho de Pyrard de Lavai, por muito atento e bom observador que este viajante tivesse sido, não pode ser colocado a par de um documento técnico, para aduzir um outro exemplo aos referidos atrás. Finalmente, a opção tomada foi a de adoptar a perspectiva que se situa dentro dos contornos do percurso historiográfico definido por Lopes de Mendonça nos seus Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI6. O que quer dizer que se procurou identificar tipos de navios, definir as suas características e avaliar a sua funcionalidade. Há outros caminhos possíveis, da arqueologia subaquática à reconstituição do traçado geométrico das embarcações, já consagrados até pela tradição historiográfica 7. São perspectivas diferentes, sem dúvidas complementares e concorrentes para os mesmos fins, mas diferentes: quem se coloca numa socorre-se das outras, sem dúvida, mas não as pratica simultaneamente, em resultado do processo de especialização que se observa nesta área de estudos. Ou talvez seja melhor dizer da diversidade de aproximações consoante interesses específicos, que aliás se tem revelado profundamente enriquecedora. Para a prossecução deste propósito havia em primeiro lugar que definir o corpus da documentação portuguesa de arquitectura naval, partindo daí para a caracterização tipológica, morfológica e funcional dos navios, considerando apenas e tão só aqueles de que efectivamente há informação técnica. O quadro poderá parecer incompleto, mas havia que fazer esta distinção e não cair no que seria voltar ao princípio, como sucederia se procurássemos identificar todos os tipos de navios portugueses deste período, sem considerar a destrinça entre os que foram e os que não foram objecto da informação técnica. De outra forma repetir-se-ia apenas tudo o que já foi feito, e tanto faria abrir um capítulo sobre o galeão de finais do século XVI como outro sobre o barinel de Baldaia - do qual se sabe para o que servia mas não o que era 8. Por outro lado, dentro desse núcleo documental, importa reconhecer que os tratados assumiram uma importância especial pelas suas características próprias de sistematicidade. Obras de autor, revelando a prática do estaleiro ou 6 7 8 Primeira edição: Estudos Sobre Navios Portuguezes dos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892. Dois anos antes o mesmo autor publicara um estudo sobre as caravelas, que recupera no livro: «Estudos sobre caravelas», Anais do Clube Militar Naval, vol. 20, 1890, pp. 84-90, 137-141, 339-346, 377-383; reproduzido parcialmente na mesma revista, vol. 74, 1944, pp. 416-419. Para uma perspectiva geral do percurso da historiografia portuguesa de arqueologia naval desde 1892 até aos nossos dias, e discussão do conceito e seus correlatos, ver Francisco Contente Domingues, Arqueologia Naval Portuguesa (séculos XV e XVI). História, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003. Este texto recupera o essencial da Introdução à nossa tese de doutoramento (Os Navios da Expansão. O Livro da Fábrica das Naus de Fernando Oliveira e a arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, 2 vols., Universidade de Lisboa, 2000), da qual se retoma neste livro apenas a última parte, e com alterações. V. Fernando Gomes Pedrosa, «O barinel», in História da Marinha Portuguesa. Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499, coord. de Fernando Gomes Pedrosa, Lisboa, Academia de Marinha, 1997, pp. 122-133: uma boa ilustração de um estudo monográfico, com os recursos disponíveis, sobre um navio do qual não subsiste qualquer informação na documentação técnica. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 17 a convicção do que esta devia ser de acordo com a ideia de quem os escrevia, os tratados são muito diferentes entre si apesar de serem apenas três, mas é a sua própria existência que marca uma época e distingue o caso português. Este estudo parte da convicção de que havia que lhes dar o devido lugar de relevo, identificando-os, bem como aos seus autores, e analisando-os em conjunto, complementando-os depois com os regimentos técnicos e outra documentação auxiliar. O reconhecimento da primazia da obra de Fernando Oliveira, neste conjunto, resulta em primeiro lugar da própria cronologia, mas também do facto de o seu Livro da Fabrica das Nãos ser único sob vários aspectos, nomeadamente no que tem a ver com a apresentação ao leitor de uma perspectiva integrada do seu objecto. Oliveira não encerra o discurso em torno do navio, antes o projecta numa tentativa de compreender a própria fundamentação do conhecimento, articulando-a com a descrição da fábrica do navio. Por outro lado, o carácter sistemático com que empreendeu a tarefa (embora não concluída), e o cuidado em fixar o respectivo léxico, fazem com que a obra se torne num permanente ponto de referência para o estudioso dos navios da época. O Livro é um ponto de partida obrigatório e muitas vezes o ponto de chegada, para mais agora que as últimas campanhas arqueológicas parecem ir mostrando que, afinal, a lição de Oliveira não estava assim tão longe da prática do estaleiro como se supunha, como se dirá à frente. O texto que segue está dividido em duas partes: a primeira versa a documentação técnica, com um capítulo geral à guiza de introdução a problemas genéricos; três outros sobre cada um dos tratados de arquitectura naval e seus autores, procurando integrar aqueles na vida e na obra destes; e o último dedicado a outros documentos com informação técnica, com o objectivo de completar a apresentação do corpus documental em estudo inserido num âmbito mais alargado, aliás no seguimento do que já tem sido feito por outros autores, embora com parâmetros um pouco diferentes e muito maior brevidade 9. A segunda parte, notoriamente mais pequena em dimensão, trata dos navios, descrevendo as características de cada uma das tipologias que são referidas na documentação técnica. Insista-se: não é de um dicionário de navios que se trata, mas de sínteses da informação contida e com base apenas nos regimentos e tratados. Entendam-se estes subcapítulos como contributos para monografias de outro âmbito, mas também como contraponto das descrições correntes destas embarcações. Seguem-se os apêndices. O primeiro contém o corpus da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval deste período, isto é, todos os regimentos técnicos conhecidos, incluindo os do Livro de Manuel Fernandes. Estando muitos deles publicados (algumas vezes de forma insuficiente), o con9 João da Gama Pimentel Barata, «O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-80 a 1640», Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXTV, 1971, pp. 365-404, e Adolfo Silveira Martins, A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2001, pp. 95-136. 18 INTRODUÇÃO junto encontrava-se disperso por um número razoável de livros e artigos de revista, e talvez por isso nunca tenha sido objecto de uma análise comparativa, ou seja, os estudos sobre os navios tendem a basear-se em um ou outro dos regimentos, mas raras vezes em todos os que existem para cada tipo de embarcação. Estamos em crer que a sua reunião facilita sobremaneira a utilização deste material. Quanto ao segundo, integram-no apenas cinco documentos, todos inéditos, escolhidos pela sua grande importância informativa. Poderiam ser muitos mais, mas como neste capítulo não havia qualquer possibilidade de fazer uma recolha exaustiva, optou-se por uma amostra representativa seleccionando documentos que têm sido menos valorados do que o devido, quando não ignorados. Numa palavra, pretende-se apresentar uma visão global da documentação técnica portuguesa dos finais do século XVI e inícios do século XVTI, tornar a sua consulta acessível e caracterizar os navios da época a partir desse corpus. Cabe agora ao leitor ajuizar do valimento da aposta. PARTE I os NAVIOS EM PERSPECTIVA TEÓRICA CAPÍTULO I DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL Considerando o período compreendido entre os meados dos séculos XVI e XVII, Portugal dispõe de uma das mais ricas colecções de tratados e documentos técnicos de arquitectura naval da Europa. E um estudioso da matéria, João da Gama Pimentel Barata, foi mesmo levado a afirmar que «A notável colecção de documentos técnicos portugueses de 1550-1580 a 1640, [é] em nossa opinião a mais completa que se conhece e a de maior importância, devido a incluir numerosos desenhos de diversos tipos de navios» 1. Este comentário reflecte bem a consciência historiográfica da valia desse conjunto de documentos técnicos de riqueza apreciável2, da qual todavia se pode dizer que radica numa comparação com realidades mal conhecidas: tanto é verdade que a historiografia portuguesa não se tem mostrado particularmente atenta à documentação estrangeira, neste domínio, sendo raras as referências a outras obras que não as de Garcia de Palácio 3 e Tomé Cano 4, como cumpre João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, Lisboa, IN-CM, 1989, p. 156. Citamos os trabalhos de Pimentel Barata a partir desta compilação da sua obra histórica, excepto em situações que seja requerida a referência à publicação original, por exemplo para destacar a data. Os dados bibliográficos completos constarão apenas da primeira citação de cada obra no capítulo respectivo. Que essa colecção seja «a mais completa» é evidentemente um juízo de valor que vale pelo que vale; inquestionável é porém a grande importância do conjunto destes documentos. Diego Garcia de Palácio, Instrvcion Navthica, Para el Bven Vso, y regimiento de Ias Nãos, su traça, y gouierno conforme à Ia altura de México, México, En casa de Pedro Ocharte, 1587. Trata-se do primeiro escrito do género em castelhano, e, excepcionalmente em relação às obras suas coevas e similares, veio a ser publicado na época. Foi depois reeditado com um curto Prólogo de Júlio F. Guillen (Madrid, Ediciones Cultura Hispânica, 1944), que chama a atenção para o facto de apenas a IV parte dizer respeito à construção dos navios, e compara a obra com outros textos em castelhano, sendo embora omisso em relação aos escritos em outras línguas. Tomé Cano, Arte Para Fabricar y Aparejar Nãos. 1611, Edición y prólogo por Enrique Marco Dorta, La Laguna, Instituto de Estúdios Canários, 1964 (a edição princeps é raríssima). Tomé 22 CAPÍTULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL reconhecer que essa mesma documentação é frequentemente de difícil acesso, bastando para o efeito citar o caso do mais importante códice inglês sobre a matéria, intitulado Fragments of Ancient English Shipwrightry5, que se mantém inédito até hoje. Nos últimos anos, a desproporção existente entre os estudos especificamente dedicados aos documentos técnicos de arquitectura naval e a sua própria publicação não tem deixado de crescer, em favor desta última, simultaneamente propiciando e respondendo à atenção particular que os textos portugueses têm merecido de historiadores de várias nacionalidades - facto que, por si só, pode ser entendido como revelador da sua relevância no conspecto europeu. No domínio das publicações de fontes, a edição sistemática dos tratados portugueses levada a cabo pela Academia de Marinha, de Lisboa, não encontrou paralelo em outros países. Um conjunto de importância assinalável, quer pelo seu valor intrínseco, quer agora - e diferentemente do que acontecia quando Pimentel Barata fez o comentário citado acima - pela acessibilidade dos documentos e pelo número de estudos que entretanto vieram a lume. Partindo do princípio de que a documentação técnica deve ser considerada ponto de partida e base fundamental de trabalho dos arqueólogos navais e, em geral, de quantos abordam o estudo do navio nas suas múltiplas possibilidades, há que proceder em primeiro lugar a uma análise genérica dos documentos, procurando obter um critério de classificação e hierarquização que autorize uma visão compreensiva, organizada e integrada do que existe. Um dos problemas metodológicos que nos ocupará reside na imperiosa necessidade de não colocar no mesmo nível vias de informação diferenciadas: um tratado de arquitectura naval não pode ser posto em pé de igualdade com uma passagem ocasional do texto de um cronista, quando se discutem pormenores técnicos ou características dos navios. A precaução metodológica elementar de proceder à avaliação do texto em função do interrogatório a que é submetido tem de passar sempre pelas respostas a perguntas concretas, tais como quem escreCano é citado pelos autores portugueses a propósito das suas observações elogiosas sobre os navios portugueses, mas em um outro passo, do qual se deduz aliás a data de redacção do original, refere-se à sua intervenção numa polémica célebre em torno do suposto processo inventado pelo português Luís da Fonseca Coutinho para determinar a longitude no alto mar: «... como Io a hecho estos dias Fonseca, persudiendo por alguns anos ai Consejo que era muy posible y hazedero, y que daria agujafixapara ello con grande comodidad de Ia navegación, para cuyo exámen y calificación fui yo uno de los llamados dei Consejo este afio de mil y seyscientos y dies» (op. cit., pp. 51-52). Ao assunto voltaremos mais adiante, pois nele teve papel importante João Baptista Lavanha. Magdalene College (Cambridge), Bibliotheca Pepysiana, ms. 2820. Trata-se de um livro de apontamentos que Mathew Baker principiou por volta de 1570 e foi depois continuado por ele e por um discípulo até cerca de 1630. Belamente ilustrado com desenhos excepcionais, os textos porém não lhes correspondem por via de regra: é na verdade um caderno de trabalhos e de notas de um master shipwrighter inglês. Ver a propósito Richard Barker, «Fragments from the Pepysian Library», Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXII, Coimbra 1986, pp. 161-178. A similitude entre um dos desenhos de Mathew Baker e um trecho de Fernando Oliveira far-nos-á voltar com mais pormenor a este manuscrito, no capítulo seguinte. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 23 veu o quê, para quem e quando. Ainda que essas respostas não se encontrem com frequência, o próprio carácter dos textos induz a considerá-los diferentemente. A questão essencial é pois: de que documentos técnicos dispomos, e como poderemos classificá-los num quadro de conjunto que nos permita situá-los relativamente? Segundo Pimentel Barata, o conjunto de documentos técnicos de arquitectura naval conhecidos no período em causa poder-se-ia organizar em quatro grandes grupos 6, a saber: 1) documentos teóricos, cabendo nesta categoria a Ars náutica e o Livro da Fabrica das Nãos de Fernando Oliveira; 2) os documentos teórico-práticos, englobando o Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha, o anónimo Tratado do que deve saber um bom soldado para ser bom Capitão de Mar e Guerra, e as Advertências de Navegantes, de Marcos Cerveira de Aguilar; 3) os documentos práticos, como sejam o Livro Náutico, as Coriosidades de Gonçalo de Sousa, e o Livro de Traças de Carpintaria de Manuel Fernandes; 4) e, por fim, a documentação dispersa, já publicada ou ainda inédita: como exemplos de uma e outra podem citar-se o regimento para a construção de uma nau da índia de 17 rumos, de Sebastião Temudo 7, e o contrato para a construção de um patacho, entre o bailio de Leça e o carpinteiro Pêro Franco 8. Verifica-se que a divisão proposta se organiza em função do que Pimentel Barata considerava ser a adequação dos preceitos expostos à prática dos estaleiros, mas haverá vantagem em considerar uma outra perspectiva de agrupamento 9 . Na realidade, aquela listagem coloca-nos perante tipos muito diversificados de documentos, quer em si mesmos quer na forma como se nos apresentam. Um conjunto coerente de materiais como é o caso do Livro de Traças de Carpintaria não se assemelha, tanto no conteúdo como na forma, à reunião de manuscritos esparsos, como sucede com o códice conhecido pelo nome de Livro Náutico, muito embora se encontrem entre eles documentos técnicos, ou com importantes informações técnicas. Também não se afigura João da Gama Pimentel Barata, op. cit., vol. I, pp. 156-159. Publicado por João da Gama Pimentel Barata, «O 'Livro Primeiro de Architectura Naval' de João Baptista Lavanha. Estudo e transcrição do mais notável manuscrito de construção naval portuguesa do século XVI e princípio do XVII», Ethnos, vol. IV, 1965, pp. 295-296. Arquivo Distrital do Porto, P01, 3." s., liv. 106, fls. 145-148v. Intentámos já fazê-lo anteriormente, embora de forma muito abreviada: Francisco Contente Domingues, «Construção Naval, Tratados de», in Dicionário Ilustrado de História de Portugal, coord. de José Costa Pereira, Lisboa, Publicações Alfa, 1985, vol. I, pp. 154-155. Para uma apresentação geral deste corpus documental v. ainda o nosso texto «Documents on Portuguese naval architecture (late 16th-early 17th century) a general view», in Proceedings. International Symposium on Archaeology of Medieval and Modem Ships of Iberian-Atlantic Tradition, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2001, pp. 229-232. 24 CAPÍTULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL possível que um tratado escrito por um autor identificado, cuja perspectiva é localizável no espaço e no tempo, no mínimo com aproximação razoável, e que procura apresentar uma explicação congruente e integrada da matéria de que se ocupa, possa ser comparado a par e passo com textos avulsos de autoria desconhecida e data incerta. Sobretudo se estes se resumem a róis de materiais ou medidas básicas para a construção de navios, enquanto que os primeiros são mais pormenorizados em certo tipo de explicações, sem prejuízo do facto de o mestre construtor ter a responsabilidade de rematar a obra a seu bom critério: é por exemplo o que sucede com o levantamento dos castelos de popa e proa, que ficava sempre ao seu arbítrio. Este último aspecto iguala simples regimentos ou verdadeiros tratados, mas quase tudo o mais os separa. Por isso torna-se possível dividir este corpus documental de duas formas distintas, assim o encaremos de acordo com a forma com que se nos apresenta, ou com o tipo de documentos propriamente ditos. Na primeira perspectiva temos, a saber, tratados, miscelâneas documentais e documentos avulsos, esta última uma categoria sempre válida por si só. As miscelâneas documentais contêm sempre mais materiais que aqueles que dizem respeito à arquitectura ou construção navais (como veremos no capítulo V desta Parte I). No fundo são incaracterísticas, no sentido em que abundam em todos os períodos, e a sua consideração como um todo faz sentido sobretudo - para não dizer apenas - quando é possível identificar os seus autores ou possuidores, definindo interesse e motivações, conferindo uma lógica própria ao critério que presidiu à reunião dos apontamentos coligidos, e atribuindo-lhes uma data, ainda. Uma miscelânea documental de que não se conhece nem uns nem outros pouco mais é, com efeito, que veículo de conhecimento de documentos que não nos chegaram por outra via. Daí que seja preferível adoptar um critério diferente, que passe pela organização deste mesmo corpus em função do carácter intrínseco dos documentos, agrupando-os por géneros e não em função da tipologia formal. Um critério que revele a espécie e não tanto a funcionalidade, até porque importa reconhecer que não dispomos de informação suficiente para garantir, por sistema, se um determinado preceito se adequava ou não ao que se praticava no estaleiro. Aliás, nos documentos mais complexos não é possível estabelecer rigorosamente esta selecção, pois torna-se evidente que o mais teórico dos autores obedecerá em certos aspectos à prática costumeira, tal como o mais atreito a ela não dispensará a emissão de ideias e soluções estritamente pessoais. Em nosso entender, a documentação técnica portuguesa de arquitectura naval para o meio século que vai de c. 1580 a c. 1630 10 dever-se-á classificar do modo que veremos de seguida n . 10 11 Esta datação decorre da cronologia a estabelecer mais à frente, no quadro da análise casuística dos documentos. A classificação proposta não considera alguns dos documentos citados, por não poderem ser tidos como documentos técnicos de arquitectura naval; deles nos ocuparemos no capítulo V desta Parte I. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 1. 25 TRATADOS Pertencem a esta categoria o Livro da Fabrica das Nãos de Fernando Oliveira, o Livro Primeiro de Architectura Naval de João Baptista Lavanha, e o Livro de Traças de Carpintaria, de Manuel Fernandes. Tratam-se de obras de cariz diferente entre si: de forma sumária dir-se-ia que a primeira está voltada no essencial para a definição e justificação teórica dos preceitos gerais que procura enunciar pela primeira vez; que a segunda é, numa palavra, obra de um engenheiro avant Ia lettre, recorrendo às definições genéricas, com ou sem vertente teórica, apenas nos aspectos indispensáveis; e da última que fica no plano do manual prático, com carácter eminentemente descritivo. Não obstante formam um todo, destacando-se da restante documentação, porque são obras de autores individualizados que exprimem a sua lição sistemática e coerentemente, pelo menos em termos comparativos. Ao contrário do que acontece com róis de materiais, orçamentos e regimentos avulsos, situamos aqueles que escreveram estes tratados no espaço, no tempo e na circunstância, o que lhes confere um carácter próprio neste conjunto. Mas, sobretudo e acima de tudo, são obras de autor: de nenhum outro dos documentos que possamos considerar aqui se poderá dizer o mesmo, ainda que estejamos perante instruções práticas de um mestre construtor identificado para a fábrica de um certo navio. Neste último caso, porém, é uma situação específica que o leva a registar por escrito as medidas que usou para uma determinada obra. Enquanto nos tratados prepondera ou a valorização da regra geral, como no caso do Livro de Oliveira, ou a sistematização global, como sucede com Manuel Fernandes, situando-se Lavanha no meio dos dois. Os tratados têm portanto uma importância muito especial neste corpus da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval. Ainda que um deles, o de Manuel Fernandes, seja na verdade o somatório de um conjunto de regimentos gerais, mais que qualquer outra coisa, tem o valor intrínseco decorrente da reunião sistemática dessas informações. Estas obras devem ser tomadas como fontes privilegiadas no estudo dos navios portugueses, porque sabemos quem os escreveu e podemos conjecturar dos porquês com alguma verosimilhança. Os tratados serão objecto de uma atenção especial nos capítulos que se seguem, não cabendo aqui e por ora mais considerações a esse propósito. 2. REGIMENTOS GERAIS A documentação avulsa, apareça ou não agrupada nas miscelâneas devido à iniciativa e critério dos seus organizadores, divide-se entre dois tipos genéricos de documentos de arquitectura naval: os regimentos gerais para a construção de um tipo de navio, e os regimentos especiais que se referem à arquitectura e construção de um dado navio em particular, para além dos orçamentos e afins. 26 CAPITULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL Consideramos que os regimentos gerais são documentos da maior importância, cujo carácter específico deve ser enfatizado. Dar-se-lhes-á por isso e de seguida, no quadro desta apresentação, o destaque que sem dúvida merecem. Diferentemente das regras dos tratados de arquitectura naval, não se sabe geralmente quem foram os seus autores ou de quando datam: a melhor aproximação que temos a este respeito é a relativa à data de compilação da colectânea em que se inserem - quando assim sucede -, e esta, como veremos, é quase sempre apenas indicativa. De um total de 49 textos que classificamos como regimentos gerais, segundo o nosso inventário, 8 estão inéditos 12, 14 foram publicados uma vez, 26 por duas vezes, e um deles foi até editado três vezes. Números que parecem indiciar que estes regimentos têm merecido a atenção devida. Na verdade não será bem assim: basta verificar que dos 14 documentos publicados uma vez, 13 foram-no apenas no volume complementar da edição facsímile do Livro de Traças de Carpintaria 13, o qual veio a lume seis anos depois desta 14, portanto sem outro critério que não o da reprodução sequencial do original (e diversamente da que seguimos, onde o agrupamento se faz em função do tipo de documentos). É de notar que, desses 13, 5 são regimentos genéricos para todo o tipo de navios, num total de 7 documentos que têm esta característica peculiar. Os regimentos gerais podem classificar-se em duas subcategorias: 42 documentos dizem respeito aos preceitos a observar na construção de um determinado tipo de navio, como por exemplo um galeão de 500 tonéis ou uma caravela de armada; os restantes são genéricos, quer dizer, aplicam-se a vários tipos de navios, embora não digam exactamente respeito à construção das embarcações nos termos dos anteriores. Tratam antes de partes do navio, como a caverna mestra ou o lançamento das rodas para tonelagens determinadas 15, dois deles tratam até de estruturas de suporte das embarcações 16, mas é precisamente este carácter que lhes confere uma importância excepcional, ao garantir a aplicação de preceitos que eram válidos para classes de tonelagem - usando uma expressão que só se vulgarizará mais tarde, mas que se torna operativa neste contexto 17. 12 13 14 15 16 17 Reproduzem-se no Apêndice A. Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, 1995. Liuro de Traças de Carpintaria com todos os Modelos e medidas pêra se fazerem toda a nauegação, assy d'alto bordo como de remo Traçado por Manoel Ffz official do mesmo officio. Na era de 1616. Reedição fac-similada, Lisboa, Academia de Marinha, 1989. São os documentos 1 a 7 do Apêndice A. São os seguintes: «Regimento pêra se fazer hua emvazadura para botar Nãos», Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 53v-55v; «Regimento pêra a grade ou grades para botar Nãos, ou Galiões», ibidem, fls. 55v-56. «Os navios eram classificados em função da tonelagem», escreveu João da Gama Pimentel Barata, a nosso ver com todo o acerto; mas não podemos concordar com a especificação que fez seguir àquela frase: «A tonelagem nominal de uma classe incluía variações dentro de certos limites. Assim, por volta de 1553 a classe de 300 t integrava navios de 270 a 305 t» (Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, p. 104). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 27 Este subnúcleo merece uma atenção especial, mormente o documento que define as regras para a construção de uma classe de navios: a «Regra geral para nauios de alto bordo de setenta ate trezentas toneladas» 18 é única no seu género, no sentido em que documento algum, repetimo-lo, considera a possibilidade de uma regra determinada transcender a aplicação ao tipo de navio concreto a que se reporta (a não ser em aspectos particulares). Pelo contrário, a «Regra geral» pretende a definição de normas globais, embora elas não se possam aplicar mecanicamente a todas as embarcações que caem nos limites de tonelagem que a titulam. Assim, a regra geral para navios de 70 a 300 tonéis de arqueação (apesar de o valor mínimo considerado no texto ser o de 80 tonéis, e não 70) prevê a subdivisão em grupos consoante o pormenor que se estipula; no lançamento da roda de proa, por exemplo, a regra é a mesma para embarcações de 150 a 300 tonéis: «Todos os nauios de cento e cinquoenta toneladas ate trezentas, terão o lançamento da Roda de proa entre o terço e o quarto do comprimento da quilha» 19. Mas sucede diversamente para outros casos, como se verifica num apontamento excepcional para navios de mais de 300 tonéis: «Subindo de trezentas toneladas para cima, sendo de carga, lançarão a terça parte do comprimento da quilha e em todas as medidas se farão por palmos de goa» 20. No final deste documento são dadas as medidas básicas para uma caravela latina de 25 tonéis, um caso também único justamente por ser de 25 tonéis e não 50, como uma leitura apressada poderia fazer pensar 21 . Um documento de grande importância, sem por isso deixar de ser um dos oito que, neste corpus, se tem mantido inédito até hoje. Os restantes 42 regimentos tratam da construção de navios específicos, com natural relevância para as embarcações de grande porte. No quadro I verificam-se as ocorrências por tipologias. Consideramos para este efeito que os 400 tonéis separam as embarcações de médio e grande porte, no caso dos navios redondos, e damos como navios a remos de grande porte todas as galés, sendo as galeotas, fustas e similares consideradas de médio porte dentro desta categoria. Embarcações auxiliares são naturalmente os batéis, esquifes e similares. 18 19 20 21 A documentação da época nunca se refere explicitamente a classes de tonelagem, e se podemos usar o conceito é apenas como reflexo de uma realidade existente, embora não assumida como tal: nos documentos dos séculos XVI e inícios do XVII os navios não se classificam assim. Pena é que o segundo dos passos citados de P. Barata não possa ser comprovado, por a nota que o justificaria ser ilegível no manuscrito (v. a n. 37 do texto e páginas citados). Mas cumpre acrescentar que as acepções deste autor não podem frequentemente verificar-se nas notas de rodapé que lhes apõe. Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC -Reservados, ms. 3074, fls. 5-9v. É o primeiro dos documentos reproduzidos no Apêndice A. Ibidem, fl. 5. Ibidem, fl. 5v. Ibidem, fl. 9v. 28 CAPÍTULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL QUADRO I Regimentos gerais de arquitectura naval (documentos por classes de navios) Classes Navios redondos de grande porte Navios redondos de médio porte Navios a remos de grande porte Navios a remos de médio porte Embarcações auxiliares N.° de documentos 9 13 5 8 7 FONTE: Apêndice A, documentos 8-49. Uma distribuição equilibrada, como se pode verificar: 22 navios redondos, 13a remos e 7 embarcações auxiliares reflectem a importância relativa de cada classe na organização naval dos finais do século XVI e inícios do século XVII. A moda cai nos navios redondos de médio porte, claramente dominantes nas diversas rotas praticadas e funcionalidades requeridas, com excepção da Carreira da índia. Mas se refizermos o quadro anterior em função das designações dos próprios documentos surge um ângulo de observação diferente. O quadro II é deveras revelador: a natural preponderância numérica dos regimentos para a construção de naus e galeões continua a corresponder à prevalência destes navios na grande rota da índia, mais que à sua presença em todos os quadrantes marítimos. QUADRO II Regimentos gerais de arquitectura naval (documentos por tipos de navios) Tipologias Nau Navio de guerra Navio Galeão Patacho/Patacho holandês Caravela [de armada] Caravela antiga meã Galé Galeota Galizabra Bergantim Falua Fragata Batel Esquife FONTE: Apêndice A, documentos 8-49. N.° de documentos 4 1 5 6 2 3 1 3 2 2 1 1 4 3 4 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 29 A designação genérica «navios» corresponde aqui a embarcações redondas com grande amplitude de tonelagem: 80 a 500 tonéis. É possível concluir que tipologicamente são embarcações do tipo da nau, ficando este termo reservado para as maiores de entre elas: as naus de 600 tonéis da índia, ou de quatro cobertas, sendo todas as similares designadas pelo termo genérico. Este é a nosso ver um indicativo precioso de que, pelo menos ao nível da teoria da fábrica dos navios, mesmo que esta «teoria» se resuma ao enunciado de preceitos práticos, havia a intenção de registar uma diferença que se torna visível entre as naus/navios e os galeões. É que neste caso, num total de seis regimentos, as tonelagens são muito mais aproximadas: 200 a 500 tonéis. Quer dizer: o maior dos galeões é mais pequeno, volumetricamente falando, que as maiores das naus, e os galeões de menor tonelagem mais que duplicam a dos navios de menor porte. Há que reconhecer que se trata de um indicativo, apenas: mas a levar em linha de conta na apreciação do problema da especialização funcional de naus e galeões. O dado mais surpreendente do quadro é o número de regimentos dedicados ao esquife, a embarcação auxiliar dos navios de remos, muito menos presente nos registos das actividades navais que o batel. Dos esquifes poucas referências ficaram na documentação, enquanto que os batéis têm uma multifuncionalidade que garante a sua importância relativamente à generalidade das embarcações de pequeno porte. Que concluir, então? Sem prejuízo de outros argumentos a aduzir 22, estes dados ilustram a importância dos navios a remos, sem os quais se não justificavam os esquifes, bem ao contrário, afinal, do que afirmava Fernando Oliveira. 3. REGIMENTOS ESPECIAIS Perante a exiguidade do número de regimentos especiais de arquitectura naval, surge naturalmente a necessidade de procurar inquirir das razões que a podem justificar. São conhecidos muito poucos documentos deste género, ou seja, dizendo respeito à construção de um navio específico, ditando as regras e medidas a seguir em cada um dos casos em apreço, por parte de autores tanto quanto possível identificados e certificados como mestres do ofício. Em outras fontes encontrar-se-ão sem dúvida especificações semelhantes, como o pode sugerir a citada nota de encomenda de um patacho de 70 toneladas ao carpinteiro Pêro Franco, com importantes especificações técnicas sobre a caracterização da embarcação e a sua inserção tipológica; os arquivos notariais serão por exemplo um dos caminhos a seguir na exploração destas pistas, entre as quais se poderão encontrar documentos similares àquele, contratos de apresto, aluguer, ou conserto de navios, todos susceptíveis de deslindar uma ou outra particularidade morfológica ou de construção. 22 Há que levar em conta a eventual distorção deste universo decorrente do peso das embarcações a remos no Livro de Manuel Fernandes. 30 CAPÍTULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL Debalde se procurará porém reflexo da presumível existência desse tipo de documentos nas publicações da especialidade do último século: é claro que não podem dar conta do que não se conhece, mas tão pouco se detecta qualquer interrogação a tal respeito, o que não pode deixar de reflectir a falta de resultados do extenso esforço de investigação feito durante este período. O facto de nunca se ter procedido a uma classificação sistemática do material disponível não permitiu que antes se isolasse com clareza este pequeno subnúcleo e por consequência se aferisse da sua especificidade; e na única excepção a apontar, a de João da Gama Pimentel Barata, verifica-se que a metodologia empregue ainda menos o autoriza, ao tipificar a documentação em função do seu suporte (isto é, pelo tipo de códices em que se insere, porque no fundo é disso que se trata) e não em função das características intrínsecas de cada documento. Decorrentemente, a comparação entre os preceitos da regulamentação geral e aquilo que se aplicava na prática torna-se muito difícil. Escusado será dizer que os arqueólogos navais têm usado essa comparação como método privilegiado, procurando aperceber o carácter próprio dos documentos de cariz eminentemente teórico, mas o ponto de referência é sempre e por sistema um de dois: ou o do modelo do que se entende ser a prática do estaleiro, aferida pela conjugação de fontes as mais diversas, ou (muito mais recentemente) os testemunhos directos da arqueologia subaquática, como se tem verificado com os últimos trabalhos de Francisco Alves e dos membros da sua equipa. Esta segunda via está nos seus primórdios: são poucos os exemplos de navios portugueses de navegação oceânica dos séculos XV a XVII cujos restos estejam devidamente identificados, e nos casos em que isso sucede, as campanhas de escavação arqueológica, sempre muito demoradas, estão apenas no seu dealbar. Ainda que os resultados comecem a parecer ser deveras interessantes, este é um caminho que apenas se inicia 23. No tocante à primeira das vias enunciadas, não podemos deixar de verificar um paradoxo imediato: na ausência da certificação do que era exactamente a 23 O ponto da situação, no que toca ao estudo da relação entre os testemunhos arqueológicos encontrados e os suportes informativos documentais (sobretudo o Livro de Fernando Oliveira), encontra-se em Francisco Alves & Paulo Rodrigues & Filipe Castro, «Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu, Cascais, Patrimónia, 2000, pp. 227-256, com relevantes informações bibliográficas sobre as campanhas arqueológicas mais recentes. Normalmente regista-se um atraso considerável entre o início destas campanhas e a publicitação escrita dos seus resultados em comunicações e artigos científicos, pelo facto de aquelas serem por norma muito demoradas. Um bom exemplo disso mesmo é o caso da nau 'Nossa Senhora dos Mártires', que se afundou em 1606 junto à fortaleza de S. Julião da Barra, e com a qual se identificam os restos encontrados no local desde 1994, em estudo iniciado pela equipa dirigida pelo Dr. Francisco Alves no Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática. É também esta a campanha que se revela mais promissora em relação à perspectiva que nos interessa aqui, a da comparação com os textos técnicos; sobre estas escavações e os seus resultados ver por todos Luis Filipe Castro, The Pepper Wreck: a Portuguese Indiamen at the mouth of the Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University (USA), 2001; idem, «The Pepper Wreck, an early 17th-century Portuguese Indiaman at the mouth of the Tagus River, Portugal», The International Journal of Nautical Archaeology, vol. 32, 2003, pp. 6-23. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 31 prática dos estaleiros, a definição da morfologia e tipologia das embarcações tem de ser feita com recurso a todos os meios informativos passíveis de interesse. Isto é, usando desta precisa forma os mesmos documentos que depois se certificam como de carácter mais teórico ou mais empírico em função do modelo a que se chegou previamente. Um exemplo flagrante entre todos é precisamente o do Livro da Fabrica das Nãos de Fernando Oliveira, obra de recorrência indispensável para a averiguação de tantos pormenores dos navios portugueses da época, mas depois facilmente remissível para a categoria dos documentos de carácter mais teorizante 24 . A terceira via terá de ser a da comparação dos documentos gerais com os regimentos especiais, isto é, a compaginação de todos os enunciados que se referem de maneira mais genérica a tipos de navios com as instruções de construção de um desses navios em particular (ainda que os exemplos conhecidos se reportem a um único tipo de embarcação, o da nau de grande porte). O óbice principal a apontar reside precisamente na escassez destes últimos, que dificilmente podem definir um ou mais padrões de construção na prática dos estaleiros; pelo contrário, na verdade pouco sabemos da medida em que correspondem a essa prática, pois podem ser também casos específicos. É um ciclo vicioso, no fundo, mas não há que os enjeitar e, muito menos, ignorar liminarmente. Em qualquer caso, estamos sempre perante os únicos documentos que dizem especificamente respeito à construção de um navio preciso. Contrariamente a todos os restantes regimentos, destes conhecem-se os nomes dos autores que ditaram as regras para a construção dos navios a que os documentos se reportam em concreto. Dois destes documentos encontram-se no códice 9/1068 da Colecção Salazar da Real Academia de Ia História de Madrid 25 , no qual está também o manuscrito autógrafo do Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha. Tal como este, foram publicados em 1965 por João da Gama Pimentel Barata 26 , mas não acompanham a reedição do Livro levada a cabo pela Academia de Marinha em 199627, em óbvio cumprimento de critério editorial diferente do seguido anteriormente. 24 25 26 27 Ou pelo menos era assim, já que os estudos mais recentes, como os supra itados, evidenciam que a proximidade de Oliveira com a prática dos estaleiros era maior do que se pensava até agora. D. Luis de Salazar e Castro foi cronista régio e de Castela, tendo nessa qualidade reunido uma importante colecção de documentos relativos à História das Américas desde o século XVI até à data da sua morte (1734). Nela avulta o manuscrito da Historia de Ias índias Occidentales de Fernandez de Oviedo, entre muitos outros. Esta colecção passou para os fundos da Real Academia de Ia História de Madrid em 1850 (v. Remédios Contreras, Fondos Americanistas de Ia Colección Salazar y Castro. Catálogo, Madrid, Real Academia de Ia Historia, 1979). A 'descoberta' deste códice para a historiografia portuguesa deve-se a Pimentel Barata, que o encontrou referenciado por Cesáreo Fernandez Duro e indicou sempre nos seus trabalhos a cota que consta no texto do autor espanhol, pela qual é hoje de todo em todo impossível localizar o manuscrito (cf. Disquiciones Náuticas. A Ia mar madera, Volumen V, Edición facsimilar, Madrid, Minis-terio de Defensa/Instituto de Historia y Cultura Naval, 1996, pp. 78-80). Àquele ilustre investigador nunca foi dado ver o manuscrito em primeira mão, o que talvez justifique a imprecisão de algumas das conclusões a que chegou. João da Gama Pimentel Barata, op. cit., pp. 221-298. Referirmo-nos-emos mais à frente a esta edição. 32 CAPITULO I: DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA PORTUGUESA DE ARQUITECTURA NAVAL Os documentos em causa são os seguintes: 1) «Traça de uma Nao da índia ordenada por Gonçalo Roiz conforme a nao Conceição» 28; 2) «Traça de uma Nao da índia ordenada por Sebastião Themudo» 29. A data é a mesma em ambos os textos (e que sejam datados é caso excepcional, neste tipo de documentos): 5 de Maio de 1598. E a assinatura também, no sentido em que ao lado dos nomes que surgem na titulação vem o de João Baptista Lavanha. O caso é singular sobre todos os pontos de vista: é que não se tratam apenas de documentos assinados e datados, mas duplamente assinados, e logo pelo autor de uma das obras teóricas de referência. Seria ele co-autor dos regimentos? Não nos parece, apesar de estarem copiados pela sua letra: e talvez tenha sido esse pormenor a induzir Pimentel Barata a pensar o contrário, quando na sua obra de 1965 faz seguir um Apêndice B à publicação do Livro Primeiro com o título «Transcrição de Duas 'Traças' de Naus da índia, de João Baptista Lavanha». O título dos documentos e bem assim o facto de os mestres aí identificados os subscreverem em primeiro lugar 30 sugere-nos que são de sua responsabilidade respectiva, mas neste caso cabe inquirir do porquê da segunda assinatura, tanto mais que não se conhece ocupação profissional ou posição institucional de Lavanha que o habilitasse a apresentar-se como certificador dos regimentos. Uma co-autoria pura, por assim dizer, estará fora de causa: nada indicia qualquer ligação de Lavanha ao mester da construção naval propriamente dita (nem os autores dos regimentos precisariam dela). Restam pois duas hipóteses: ou os regimentos foram feitos em conjugação, no sentido em que beneficiaram do parecer de Lavanha, mas não mais do que isso, ou o seu nome certifica os documentos, por consequência do exercício de qualquer função que desconhecemos; isto deixando de lado a possibilidade da assinatura ter sido posta de motu próprio na cópia constante do códice, com objectivos que não se perceberiam bem. Da capacidade de qualquer deles para fazer um regimento desta natureza não há que duvidar: Gonçalo Roiz servia como «mestre de fabricar naus de carpintaria» para a índia na Ribeira de Lisboa, e em documento régio que o confirma no cargo, datado de 24 de Novembro de 1609, declara-se que tinha 28 Real Academia de Ia História (Madrid), Colecção Salazar e Castro, cod. 9/1068, fls. 14-15. Publicado por João da Gama Pimentel Barata, op. cit., bem como na compilação das suas obras intitu- lada Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, pp. 235-236. 29 30 Real Academia de Ia História (Madrid), Colecção Salazar e Castro, cod. 9/1068, fls. 16-17. Repetem-se as indicações da nota anterior, com a publicação a pp. 234-235 do último título; seguimos a ordem pela qual os documentos aparecem no códice, embora Pimentel Barata tenha preferido a contrária. Logo abaixo dos textos e com as assinaturas encostadas à esquerda, enquanto a de Lavanha está encostada à direita. Os NAVTOS DO MAR OCEANO 33 feito muitas e as melhores que houve na Carreira, como o mostrava a experiência, graças à sua suficiência e destreza. Na origem da necessidade desta confirmação estava o facto de Sebastião Themudo ter pedido também o cargo, o que levou o monarca a decidir que ambos o servissem em simultâneo por carta de 12 de Outubro de 1607, não obstante ter Gonçalo Roiz acorrido à Relação, da qual obteve parecer favorável às suas pretensões. Mas morto Sebastião Themudo o rei reconfirmou Gonçalo Roiz com trinta mil réis de ordenado por ano, quantia idêntica à que auferiam os seus antecessores, mais dois mil por cada nau ou navio de gávea (quer dizer: embarcação de médio ou grande porte) que fosse por si lançada à água sem percalço; e isto porque, seguindo a terminologia do documento, não havia pessoa no Reino mais idónea e suficiente para o dito ofício31. Verifica-se o reconhecimento da valia profissional de Sebastião Themudo, ao ponto de reclamar um posto que estava ocupado e de o rei o nomear para ele a par do detentor 32 , contrariando o próprio regimento do cargo. Não será talvez exagerado dizer que estes seriam dois dos (senão os) homens mais capazes no ofício da construção naval portuguesa dos finais do século XVI, o que, a par do cargo que desempenhavam, o de mestre carpinteiro da Ribeira das Naus, é razão mais do que suficiente para se atender com todo o cuidado aos preceitos dos regimentos especiais de sua autoria. No Apêndice B reproduzimos um terceiro regimento que ficou inédito até hoje. O autor é com toda a probabilidade o Gonçalo Roiz, aqui Gonçalo Rodrigues, que citámos atrás. Tem como curiosidade o facto de tratar do mesmo tipo de navio, mas algo diferente do anterior, e apresentar no fim as medidas respectivas em tabela 33 . 31 32 33 Francisco Marques de Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, reprodução fac-símile, Lisboa, IN-CM, 1988, pp. 471-472. Havia simultaneamente dois mestres da Ribeira: um dos carpinteiros e outro dos calafates, sendo cargos cuja nomeação era vitalícia e passava pela Chancelaria Régia. No exaustivo estudo de Maria Leonor Freire Costa dedicado à construção naval em Lisboa arrolam-se os mestres carpinteiros conhecidos desde João Afonso Chaves (1490-1503) até Sebastião Themudo, de 1593 (?) a 1609, e Gonçalo Rodrigues, a partir desta última data (Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimonia, 1995, p. 271 n. 45). Na realidade o penúltimo mestre desta lista não era Themudo mas sim Gonçalo Roiz, servindo ambos em simultâneo entre 1607 e 1609, como vimos, sendo esta última a data de morte de Sebastião Themudo, com toda a probabilidade. E fica uma interrogação: dever-se-á ou não juntar àqueles o nome de Manuel Fernandes, o autor do Livro de Traças de Carpintaria? Sousa Viterbo supôs que Sebastião Themudo era pai de Valentim Themudo, participante na celebrada Junta que discutiu a questão das três ou quatro cobertas das naus da índia (v. Francisco Marques de Sousa Viterbo, op. cit., p. 93). Documento B.3. O original encontra-se nas Coriosidades de Gonçallo de Sousa, fls. 20v-22. CAPÍTULO II FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL 1. O AUTOR E A SUA OBRA Com a publicação da monografia sobre Fernando Oliveira que incluía o Livro da Fabrica das Nãos, Henrique Lopes de Mendonça não só deu à estampa aquele que é ainda hoje o livro de referência sobre este autor 1 , como revelou que quem escrevera a primeira gramática da língua portuguesa era também tratadista de arquitectura naval. O tema não andava muito longe das preocupações evidenciadas por Oliveira no seu segundo livro impresso em vida, a Arte da Guerra do Mar 2, mas não se sabia que o tivesse tratado em outra obra. Mais do que isso, um passo do Livro revelava que o autor tinha escrito uma arte da navegação em latim, de cuja existência não havia eco na historiografia portuguesa. Lopes de Mendonça deu assim um assinalável contributo para o conhecimento de um autor notabilizado até então apenas pela Grammatica da Lingoagem Portuguesa, assinada Fernão de Oliveira, da qual dizia ser apenas uma primeira anotação, chegando embora para lhe garantir notoriedade apreciável. Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Náutica. Memória, comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo, e a primeira reproducção typographica do seu tratado inédito Livro da Fabrica das Naus, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898. O manuscrito autógrafo encontra-se nos Reservados da Biblioteca Nacional, em Lisboa: é o cod. 3702 do Fundo Geral. Citamo-lo pela moderna numeração a lápis, já que a numeração original não se vê claramente e induz em confusão. Fernando Oliveira, Arte da guerra do mar novamente escrita per Fernando Oliueyra, & dirigida ao muyto magnifico senhor, o senhor dom Nuno da Cunha capitão ao galees do muyto poderoso rey de Portugal dom Iohão o terceyro, Coimbra, Iohão Aluerez Emprimidor dei Rey, 1555 (Biblioteca Central de Marinha - Reservados, Impresso 7275). Citamos a partir de A Arte da Guerra do Mar, 4.a ed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983. 36 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL «Fernão doliveyra», como aparece na Grammatica, ou «Fernando oliveyra», como surge no frontispício da Arte da Guerra e em todos os outros escritos? E, em última análise, um ou dois autores? A dúvida é pertinente mas coloca-se em dois planos distintos: um relativo às obras impressas e outro em relação aos manuscritos. No tocante a estes últimos, a análise directa não suscita dúvida de maior: a mão que escreveu o Livro da Fabrica das Nãos escreveu também a Ars náutica (e os outros manuscritos que se encontram no códice), a Hestorea de Portugal e o relato da viagem de Magalhães. É uma letra «humanística cursiva de traçado muito pessoal», como a descreveu Teresa Duarte Ferreira a propósito do Livro da Fabrica das Nãos 3, «uma letra autografa com traços idênticos que não parece plausível atribuir a mãos diferentes», como concluiu José Eduardo Franco, abonando-se na comparação directa dos vários manuscritos e na nossa própria opinião, entre a de outros autores 4, acrescentando que «a isometria gráfica é, portanto, um forte indicador da unidade autoral da obra em análise» 5. Em relação às duas obras impressas, as grafias divergentes não devem induzir o leitor a pensar que a autoria é diversa de uma para outra. Não o pensaram os bibliógrafos mais antigos que sem excepção assumiram uma só identidade, nem os autores que mais recentemente as estudaram, no seguimento de Henrique Lopes de Mendonça, que aludiu à questão para concluir que «Fernão de Oliveira» só se apresentou assim na Grammatica, assinando sempre «Fernando Oliveira» e identificando-se desta forma na Arte da Guerra. No processo da Inquisição a assinatura autografa segue esta segunda forma, mas o réu é indiferentemente nomeado «Fernão» e «Fernando», uma prova mais de que a pessoa em causa é uma só, segundo Lopes de Mendonça, que considera vulgar a confusão daqueles dois onomásticos na época 6. José Eduardo Franco, que levou mais longe a discussão do problema, veio a corroborar esta ideia generalizada invocando dois argumentos que documenta: primeiramente esse facto, habitual na altura e do conhecimento comum, de se grafar o mesmo onomástico de formas distintas, umas mais arcaicas a par de outras mais modernas; e em segundo lugar a verificação de que o mesmo se aplica a Fernando Oliveira, na grafia de nomes que não o seu próprio, nomeadamente na Hestorea de Portugal7. A pluralidade de interesses da formação humanista que patenteia bem justifica por si a diversidade temática presente no que escreveu. Pode causar alguma estranheza, sim, no quadro normativo que nos rege actualmente, como bem disse Luís Filipe Barreto: «À primeira vista, segundo os nossos quadros classificativos da ciência, estamos frente a uma obra com uma vasta dispersão 3 4 3 6 7 Teresa A. S. Duarte Ferreira, «Descrição codicológica», in Fernando Oliveira, O Livro da Fábrica das Naus, Lisboa, Academia de Marinha, 1991, p. 32. José Eduardo Franco, O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua Função Política, Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d'Orey / Roma Editora, 2000, p. 39. Idem, ibidem, p. 40. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 2 n. 1. José Eduardo Franco, op. cit, p. 36. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 37 temática e problemática que enfrenta campos radicalmente diferentes, mesmo opostos, que vão desde a gramática à estratégia militar passando pela história, a náutica, a cartografia e a construção naval. Na realidade a diferença é bem mais estreita e a dispersão bem mais aparente que real se pensarmos historicamente» 8. Gramática e história, por um lado, arte de navegar, no sentido mais lato, por outro, constituem-se como dois núcleos fundamentais de interesses; mas irmanados nos propósitos gerais, na clareza com que são expostos e de transmissão de ideias, no estilo afirmativo cioso das múltiplas primazias reclamadas sempre que a ocasião o justifica, que se transmuta rapidamente na agressividade patenteada perante quem se torna suspeito de as contestar. A temática é diversa, mas o estilo é uno. Voltemos agora a essa notoriedade granjeada pela publicação do primeiro livro, ao que não foi estranho o debate provocado pelo facto de João de Barros se ter afirmado como autor da primeira gramática, pois os estudiosos da língua portuguesa não podiam naturalmente ignorar a edição de 1536 que, portanto, lhe era anterior. Da edição princeps é conhecido um único exemplar, já desde o século XIX 9 , mas em 1871 o Visconde de Azevedo e Tito de Noronha tomaram a seu cargo uma reedição que tornou o texto acessível e contribuiu para lhe dar outra visibilidade. O interesse pela obra não esmoreceu mais: nova edição em 1936, edição com leitura actualizada em 1975, edição facsímile em 1981, logo reeditada em 1988, e, enfim, vem de aparecer a tão desejada quanto necessária edição crítica 10. Fernando Oliveira ia sendo citado em obras de referência, mas sempre com mais brevidade do que o relevo das suas obras parecia justificar, e algum retardo em relação ao aparecimento de edições e artigos eruditos. Em 1929 Albino Forjaz de Sampaio não ignorou a «famosa e raríssima obra» (referindo-se naturalmente à gramática) na História da Literatura Portuguesa Ilustrada, deixando claro que considerava a sua primazia face a João de Barros n , tal como Jacinto do Prado Coelho o viria depois a fazer no Dicionário de Literatura n, embora a entrada sobre Oliveira contenha apenas uma remissão para artigo de âmbito mais vasto. Mas no Dicionário de História de Portugal não tem artigo próprio 13, o que não deve considerar-se propriamente uma falha, mas sim expressão do critério do organizador - sintomática como eco da percepção historiográfica da época. 8 Luís Filipe Barreto, «Introdução ao pensamento técnico de Fernando Oliveira: em torno do 'Livro da Fábrica das Naus'», Cultura. História e Filosofia, vol. VI, 1987, p. 614. 9 Pertence aos Reservados da Biblioteca Nacional, onde tem a cota Res 274 V. 10 Para as referências completas destas edições v. Fontes Impressas - 1. 1 ' Albino Forjaz de Sampaio, História da Literatura Portuguesa Ilustrada, vol. I, Paris-Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1929, pp. 355-356. 12 Jacinto do Prado Coelho, «Linguística. Em Portugal», Dicionário de Literatura, 3.° ed., Porto, Livraria Figueirinhas, 1984, pp. 531-534. 13 Cf. Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, 4 vols., Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963-1971. 38 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL Este tipo de situações decorre do facto de só a gramática ter tido projecção apreciável, porque o seu outro livro impresso, a já mencionada Arte da Guerra do Mar, nunca mereceu atenção semelhante, apesar de ter sido reeditado em 1937 com estudos de dois dos maiores especialistas da época em História Naval e Marítima: Henrique Quirino da Fonseca e Abel Fontoura da Costa. E quando vem novamente a lume em 1969, e depois em 1983, agora em edição trilingue e com apresentação gráfica deveras cuidada 14 , é como se se mantivesse ainda dentro de um ciclo relativamente fechado, o da historiografia da Marinha, sem suscitar uma curiosidade mais alargada, a não ser muito pontualmente. Neste âmbito Fernando Oliveira é evidentemente um autor consagrado, porque os estudiosos de temas navais, em particular da estratégia e da guerra naval, prestaram desde sempre atenção à obra que consideram pioneira nestas matérias, do que os estudos recentes de António Silva Ribeiro são um bom exemplo 15. Explicou-o Alfredo Botelho de Sousa logo na abertura do «Comentário» da edição de 1937: «Se a permanência dos princípios fundamentais da guerra ainda carecesse de ser demonstrada, a publicação da Arte da Guerra do Mar, do padre Fernando Oliveira, escrita em meados do século XVI, bastaria para convencer os estudiosos da verdade desta afirmação» 16. Ao livro não faltam motivos para justificar a divulgação que em parte lhe escapou. As opiniões expressas são bem distintas do que se poderia esperar ter sido vulgar dizer no século XVI: a crítica desassombrada à escravatura é disso exemplo, bem como a ousada negação do milagre de Ourique, ou até, mais dentro do domínio específico do livro, a surpreendente invectiva contra as armas de fogo, «invenção mais infernal que humana», ao arrepio de tudo quanto era prática firmada na guerra naval, mas não no quadro mental da época. Muitos outros assuntos haveria a destacar como susceptíveis de terem merecido uma atenção mais adequada: o conceito de guerra justa ou o relato de episódios concretos, como o auxílio ao destronado rei de Velez, são apenas mais alguns desses casos. Charles Ralph Boxer foi uma quase excepção entre os historiadores de maior relevo: o alcance da Arte da Guerra não passou ao lado do seu saber enciclopédico, e, embora nunca tenha analisado profundamente a obra, deu conta das ideias «altamente originais e pouco ortodoxas» aí expressas 17, em seu entender razão suficiente para que o livro não tenha sido citado na época, ao mesmo tempo que era ignorado por Roma. Como Boxer concluiu, «o seu esclarecido autor era manifestamente uma voz que clamava no deserto» 18. 14 As referências destas edições encontram-se nas Fontes Impressas - 2. " António da Silva Ribeiro, «Vegécio na Arte da Guerra do Mar», Anais do Clube Militar Naval, vol. CXXIII, 1993, pp. 529-559 e 797-829; idem, Uma Visão Estratégica da Arte da Guerra no Mar, Lisboa, Academia de Marinha, 1996; idem, «O pensamento estratégico de Fernando Oliveira», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 37-49. 16 V. o «Comentário à 'Arte da Guerra do Mar' do padre Fernando Oliveira», in A Arte da Guerra do Mar, 4." ed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983, p. XXXI. 17 C. R. Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1981, p. 47. 18 Idem, ibidem, p. 48. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 39 Um deserto onde olhos vigilantes estavam atentos. A Arte da Guerra saiu com licença da Inquisição, que já condenara o autor anteriormente, mas é de crer que a sua segunda passagem pelos cárceres se possa dever à ousadia dos pontos de vista lá expressos. Ou até a questões mais comezinhas, tais como a crítica cerrada à actuação de Inácio Nunes, o comandante da esquadra que se perdeu na empresa de Velez por inabilidade sua, segundo Oliveira, merecendo por isso vários comentários acerbos, como aliás todo o contingente português. Seja como for, não deixa de ser significativo que na edição de 1983 se tenha optado por reproduzir os comentários de Quirino da Fonseca e Botelho de Sousa, porque «fazem com que não seja necessário acrescentar mais nada acerca do padre Fernando Oliveira e da sua obra» 19, quando na realidade não era bem assim: os textos em causa careciam já de actualização face ao que fora sendo publicado nos anos anteriores por autores como Paul Teyssier, Luís de Matos ou Léon Bourdon, entre outros. O conjunto destes contributos representou um passo em frente para o conhecimento da biografia de Fernando Oliveira, depois dos documentos publicados por Lopes de Mendonça em 1898, com destaque para o processo da Inquisição 20. Este processo levanta o véu sobre passos menos claros de um percurso biográfico ainda não muito bem conhecido, mas não resolve todas as dúvidas que simultaneamente suscita. Ao mérito de o ter revelado, somou Lopes de Mendonça o esforço empreendido na procura de elementos supletivos. A sua junção permite-nos esboçar um retrato não só plausível, como provável, que os estudos mais recentes têm confirmado no essencial. Dificuldades existem sempre, porém, residindo a principal num problema comum para a época: a destrinça dos eventuais homónimos que se confundem na documentação, muitas vezes pouco esclarecedora e não permitindo apurar com rigor o que é que diz respeito a quem. Lopes de Mendonça, por exemplo, aceitou que o padre que lê casos de consciência em Palmeia no ano de 1565 seja o mesmo que escreveu o Livro da Fabrica das Nãos, identificação que merece alguma reserva. O essencial estava feito, apesar de tudo. A um século de distância da publicação de Lopes de Mendonça, o que falta é trabalho de nível semelhante que integre as novas contribuições. Afora o processo da Inquisição, que forçosamente havia entretanto de atrair as atenções dos estudiosos da especialidade 21 , foi por Paul Teyssier, em 1959, 19 20 21 »Nota explicativa» in Fernando Oliveira, A Arte da Guerra do Mar, 4.a ed., página sem numeração assinada pela Comissão Permanente de Acção Cultural da Marinha. V. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 99-128. António Baião, «A Inquisição. Damião de Góes e Fernão d'Oliveira julgados por ella», Serões, 2.a s., vol. III, Lisboa, 1906, pp. 123-135. Republicação: «O Gramático Fernão de Oliveira (1547-1551)», in Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, vol. I: Homens de Letras e de Sciência por ela condenados, Porto, Renascença Portuguesa, 1919, pp. 13-18. O Prof. António Ribeiro Guerra tinha o processo transcrito (de que se servia para as aulas práticas de Paleografia, na Faculdade de Letras de Lisboa) e pensava publicá-lo a curto prazo, quando a morte o ceifou tão cega quanto inesperadamente. 40 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL que se ficou a saber que, além de gramático, teórico da guerra naval e tratadista da arquitectura naval, Fernando Oliveira fora também historiógrafo 22 . Grafado na sua inconfundível letra manuscrita, existe na Biblioteca Nacional de Paris um códice com uma Hestorea de Portugal, conjuntamente com um bosquejo anterior da mesma obra, presumivelmente abandonado em favor da versão mais completa, entre outros textos 23 . Além da revelação em si, Paul Teyssier adiantou dados importantes sobre o autor, nomeadamente o facto de que vivia em Portugal na altura em que redigia a Hestorea e estava vivo quando decorreram as cortes de Tomar. Fernando Oliveira terá sido até o primeiro autor português a reagir à Monarquia Dual, escrevendo um longa justificação do direito histórico de Portugal à independência. Por outro lado certificava-se uma longevidade pouco comum: nascido em 1507, presumivelmente, escrevia ainda em 1581, aliás com a argúcia e o espírito polémico de sempre. Uma contribuição importante que acaba de ter a devida continuidade, com um estudo académico que inclui em anexo a primeira edição do texto 24. Quanto à obra maior de Fernando Oliveira, a Ars náutica 25 - maior pela vastidão das matérias tratadas e pelo volume de texto -, essa tem por si só uma história deveras singular: a existência e localização do manuscrito só foram reveladas em Portugal em 196026, apesar de uma parte do códice em que se insere já estar publicada desde 1937 27. Esse códice inclui um relato da viagem de Fernão de Magalhães, de autoria desconhecida, que em 1976 foi objecto de uma nova edição 28 e que posteriormente apareceu em versão modernizada 29 . Os contornos da vida e obra de Fernando Oliveira iam-se tornando mais nítidos, para o que contribuirá também 22 J á a s s i n a l a d o p o r Diogo B a r b o s a M a c h a d o e I n o c ê n c i o F r a n c i s c o d a Silva, o m a n u s c r i t o d a História de Portugal n ã o t i n h a sido objecto d e q u a l q u e r e s t u d o d e relevo até à p u b l i c a ç ã o d o artigo d e P a u l Teyssier, L "Historia d e P o r t u g a l de Fernando Oliveira d'après le manuscrit de Ia Bibliothèque Nationale de Paris, S e p a r a t a d o vol. I d a s Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Lisboa, 1959, p p . 359-379. 23 Biblioteca Nacional d e Paris, Fond Portugais, m s . 12. J o s é E d u a r d o F r a n c o , op. cit., Anexo I, p p . 349-494. D o m e s m o a u t o r v. a i n d a «A o b r a h i s t o r i o gráfica d e F e r n a n d o Oliveira: a l g u m a s pistas h e r m e n ê u t i c a s » , in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, P a t r i m o n i a , 2000, Humanismo p p . 25-35, e «A História de Portugal d o P a d r e F e r n a n d o Oliveira e a História do Futuro d o P a d r e A n t ó n i o Vieira: d u a s u t o p i a s e m confronto», Ler História, n.° 38, 2000, pp. 87-109. 24 25 26 27 28 B i b l i o t e c a d a U n i v e r s i d a d e d e L e i d e n - R e s e r v a d o s , c o d . V O S S . LAT. F . 4 1 . Luís d e M a t o s , «A Ars Náutica d e F e r n a n d o Oliveira», Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, vol. I, 1960, p p . 2 3 9 - 2 5 1 . M a r c u s d e J o n g , Um roteiro inédito da Circunnavegação de Fernão de Magalhães, Coimbra, F a c u l d a d e d e Letras - Publicações d o I n s t i t u t o Alemão d a U n i v e r s i d a d e d e C o i m b r a , 1937. Pierre Valière, Le Voyage de Magellan racontéparun homme qui fut en sa compagnie. Édition critique, traduction et commentaire du texte manuscrit recueilli par Fernando Oliveyra, Paris, FCG-CCP, 1976. Apesar dos evidentes méritos deste livro, ocorrem nele lapsos estranhos, como seja o de atribuir a nacionalidade italiana a Johannes de Sacrobosco (v. p. 152, n. 11), além de pequenos erros de leitura do manuscrito. 29 A nosso cargo, in Biblioteca da Expansão Portuguesa, dir. de Luís de Albuquerque, vol. 1: As Grandes Viagens Marítimas, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 99-126. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 41 um artigo de Léon Bourdon, de 1951 30 , onde se dava conta do empenho de espanhóis e franceses na contratação dos seus serviços de piloto: afinal, com cerca de sessenta anos de idade, Oliveira estava apto e disposto a voltar ao mar, o que justifica talvez o interesse que manifestara pela viagem de Magalhães, a ponto de tomar nota por escrito de um relato oral ouvido em circunstâncias ignoradas. Conhecido de Diogo Barbosa Machado, que seguindo D. Jerónimo Osório lhe chama «presbítero muito douto» 31 , citado por Inocêncio Francisco da Silva32 e Ricardo Pinto de Mattos 33 , o livro de Henrique Lopes de Mendonça, as sucessivas edições da Grammatica e os estudos surgidos entretanto, justificam algum optimismo quanto a um conhecimento razoável do que foi a vida e a obra de um homem que marcou o tempo em que viveu, pelo pioneirismo do legado escrito. A realização de uma Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia dedicada a «Fernando Oliveira e o Seu Tempo» deu-lhe o relevo devido e significou um passo mais em frente, ao propiciar o aparecimento de estudos importantes 34 . A grande biografia que falta teria ainda assim um importante papel a cumprir. Verifica-se hoje, como há um século atrás, que ao invés da visão completa do homem e da obra, inserida na época em que viveu, parece estarmos sempre perante uma dupla face: a do humanista, gramático e historiador, versus o nauta e arquitecto naval, amiúde vivendo separadamente ou de costas voltadas, quando, se algo o caracteriza, é a «totalizadora visão humanística» 35 perfeitamente integradora dos saberes diferenciados que ocuparam um espírito tão invulgarmente cioso de perceber e viver o mundo que o rodeava, como indubitavelmente foi o seu. 30 31 32 33 34 35 Léon B o u r d o n , «Épisodes i n c o n n u e s d e Ia vie d e F e r n a n d o Oliveira», Revista Portuguesa de História, t. V, C o i m b r a , 1951, p p . 440-453. Diogo B a r b o s a M a c h a d o , Bibliotheca Lusitana, nova ed. revista p o r M. Lopes d e Almeida e César Pegado, vol. II, Coimbra, Atlântida Editora, 1966, p. 47. Inocêncio Francisco da Silva et ai., Dicionário Bibliográfico Português, reedição, vol. IV, Lisboa, IN-CM, 1973, pp. 289-290, vol. IX, p. 221, e vol. XV, p. 129. Ricardo Pinto de Mattos, Manual Bibliographico Portuguez de Livros Raros, Clássicos e Curiosos, Porto, Liv. Portuense, 1878, pp. 472-473; Pinto de Mattos desconhecia a existência de qualquer exemplar da Arte da Guerra. Ignorado por Francisco Vindel, Manual Gráfico-Descriptivo dei Bibliófilo Hispano-Americano (1475-1850), 12 vols., Madrid, F. Vindel, 1930-1934, bem como por Palau y Dulcet, Manual dei Librem Hispano-Americano, 2,aed., 28 vols., Barcelona, Librería Antiquaria de A. Palau, 1948-1977, talvez porque os seus livros sempre estiveram fora do mercado dos antiquários livreiros, Fernando Oliveira não foi esquecido por Nicolau António, Bibliotheca Hispana Nova, Tomus Primus, Matriti, Apud Joachinum de Ibarra Typographum Regium, 1783, p. 385. Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, ed. de Inácio Guerreiro e Francisco Contente Domingues, Cascais, Patrimonia, 2000. António Rosa Mendes, «Fernão de Oliveira», in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. III: No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), coord. Joaquim Romero de Magalhães, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 399. 42 2. CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL AVENTUREIRO, GENIAL E INSUBMISSO36 2.1. Os primeiros anos Da genialidade deu prova bastante na obra escrita, da insubmissão estamos cientes pelo desassombro com que dizia alto o que pensava, o que pelo menos uma vez lhe custou a prisão. E aventureiro sem dúvida alguma, aventureiro de espírito e de acção, em ciranda constante quando nos é possível seguir os seus passos, até à aparente acalmia dos últimos anos de vida. O essencial do que se sabe dos primeiros anos de vida de Fernando Oliveira obtém-se pelo cruzamento das declarações feitas pelo próprio perante o Santo Ofício com passagens curtas das suas várias obras. Ainda assim contradizendose por vezes, como observou monsenhor João Gonçalves Gaspar, autor de vários trabalhos eruditos que sumariam os dados conhecidos e esclarecem algumas questões 37 . Fernando Oliveira era filho de Heitor de Oliveira, juiz de órfãos em Pedrógão, e D. Branca da Costa, segundo Diogo Barbosa Machado 38 , mas nada permite confirmar esta suposição, ou a de Ricardo Pinto de Mattos, que o diz nascido naquela vila 39 , provavelmente apenas por ter associado o lugar de nascimento à localidade onde o abade de Sever dizia que seu pai exercia. O próprio Oliveira se deu nascido em Aveiro, no seu processo perante a Inquisição, e numa localidade de nome Gestosa, junto de Santa Comba Dão, na abertura da Ars náutica, no «Hexâmetro sobre a pátria do autor, os seus pais e os nomes deste»: «Auctoris de pátria, parentibus et nominibus suis, exametrum. Auiger est locus, in quo me genuere parentes. Ordine equestres, more modesti, et re medíocres. At primos uagitur Gestosae edidit ortus. Baptismum fidei dedit ecclesia alma Columbae. Ferdignãdus Oliueris postum est mihi nomen. Sicut oliua ferax, dignos nautae affero fructus» 40 Comparando estas informações com os outros escassos elementos disponíveis, pôde João Gonçalves Gaspar concluir que Fernando Oliveira foi gerado em Aveiro, o que em parte justifica a declaração feita pelo próprio, em outro lugar, 36 37 38 39 40 Este título segue um outro de Luís de Albuquerque: «Fernando Oliveira. Um português genial aventureiro e insubmisso», in Navegadores Viajantes e Aventureiros Portugueses. Sécs. XV e XVI, 2." vol., Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, pp. 128-142. Muito atipicamente em relação a tudo o que escreveu, o autor não poupou os adjectivos para qualificar o biografado: irrequieto, temerário, rebelde, inteligente, determinado, são mais alguns dos que aparecem no corpo do texto. Dos estudos de João Gonçalves Gaspar o que mais detalhadamente se reporta aos aspectos biográficos é: «Fernão de Oliveira - O primeiro gramático. Aveiro - Terra do seu nascimento... ou da sua família ?...», Boletim Municipal de Aveiro, Ano IX, n.° 18, 1991, pp. 9-17. Diogo Barbosa Machado, op. cit., vol. II, p. 47. Ricardo Pinto de Mattos, op. e loc. cit. Ars náutica, fl. 7v. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 43 de que nascera naquela terra, presumível local de origem e residência de seus pais; que estes teriam ido para a Beira Alta em momento e por motivos ignorados (note-se que monsenhor Gaspar não deixa de lado a hipótese da filiação apontada por Barbosa Machado, mostrando que Oliveira e Costa são nomes de família antigos e vulgares na Aveiro da época, indo até ao ponto de esboçar a possibilidade de parentesco com um ramo conhecido dos Oliveiras da terra); que numa localidade de nome Gestosa, da freguesia do Couto do Mosteiro, então do bispado de Coimbra, teria nascido o seu filho Fernando, sem que saibamos se tinha ou viria a ter mais irmãos; e que este foi baptizado na respectiva igreja matriz, dedicada a Santa Columba 41 . Quanto à data, Lopes de Mendonça foi afirmativo na indicação do ano de 1507; na maioria dos casos os autores têm preferido circa 1507, como fez por último José Eduardo Franco, e cremos que com razão 42. Compreende-se o raciocínio do responsável pela publicação do processo do Santo Ofício, que nele baseou em boa parte a biografia que antecede este e outros documentos revelados no seu estudo monográfico, o qual evidencia bem o cuidado e a atenção com que Lopes de Mendonça trabalhou os textos que editou. Chega-se a 1507 pela articulação de dois passos distintos das declarações de Oliveira: no dia 29 de Novembro de 1547 declara que deixara a Ordem de São Domingos havia quinze anos, o que remete para 1532 43; e quase um mês depois, a 21 de Dezembro, diz que esteve na Ordem desde os nove ou dez anos até aos vinte e cinco, pouco mais ou menos 44. Logo, 1507 é o ano do nascimento, mas a prudência obriga a anteceder a data de um circa. Filho de gente de origem humilde, afirmou na Ars e na dedicação da obra gramatical a D. Fernando de Almada: «sou hum homem baixo e estende-se a pouco meu animo» 45. A origem beira certificou-a num passo em que dá conta da zombaria de que foi alvo pela sua pronúncia: «com tudo sendo eu moço peqno fui criado em são domingos Deuora onde fazião zombaria de my os da terra porq o eu assi pronúnciaua segúdo q aprendera na beira» 46. Teria então uns dez anos quando foi estudar para São Domingos em Évora, onde se manteve até perto dos vinte e cinco anos. Aí obteve a sólida cultura humanista de que os seus escritos dão conta, apesar de citar de cor com fre41 42 João Gonçalves Gaspar, op. cit., pp. 12 e 13, sobretudo. A possibilidade de Oliveira ter de facto nascido em Aveiro para vir a ser baptizado em Santa Columba é posta de lado por este autor. J o s é E d u a r d o F r a n c o , O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua Função Política, p.27. 43 44 45 46 V. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 102 (esta, como todas as referências às páginas 99 a 128 do livro em questão, reporta-se ao processo da Inquisição de que foi réu Fernando Oliveira). Idem, ibidem, p. 108. Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção com um estudo introdutório do Prof. Eugênio Coseriu, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000, pp. 14-15, p. 81. Idem, ibidem, pp. 232-233. 44 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL quência e não dar conta correcta de algumas referências eruditas 47 . Mas teria sido aluno de André de Resende, como afirmou Lopes de Mendonça 48 e tem sido repetido sistematicamente desde então? Há entre os dois uma comunhão de interesses evidente, a começar pelo sugestivo facto de Resende ter sido aluno de António de Nebrija em Alcalá de Henares, o mesmo Nebrija de cuja gramática (publicada em Salamanca no ano de 1492) Oliveira fez uma cópia manuscrita. Do conhecimento entre os dois testemunhou o livreiro que o denunciou no Santo Ofício, afirmando que fora André de Resende a chamar-lhe a atenção para aquele homem que estava na sua loja, trajando vulgarmente, quando se lembrava dele de São Domingos de Évora, onde lhe dera lições de gramática 49 . É conhecida a primazia alcançada por aquele prestigiado humanista no meio intelectual de Évora, como se sabe que se dedicou a dar lições aos mais jovens 50. Mas quando é que foi professor deste suposto discípulo em particular é a pergunta que se coloca, porquanto a cronologia desse possível encontro resulta algo obscura: Resende esteve longos anos fora de Portugal, embora não se conheçam ao certo os seus passos até ao retorno definitivo em 1533 51. Cabe perguntar se não terá havido antes um desacordo no plano das ideias, hipótese que se afigura mais sugestiva: em 1536 Oliveira escreve uma gramática que se afasta pontualmente de Nebrija, o mestre de Resende, e não parece que possamos encontrar nas suas obras traços do erasmismo resendiano 52, cuja não simpatia total pelo aristotelismo era por seu lado patente 53 , ao contrário do que sucedia com Oliveira. Um confronto no plano mais elevado das ideias, ou talvez apenas no patamar mais baixo da disputa de espaços que Oliveira pode ter encetado com a publicação da gramática (ou assim ter sido entendido por outrém), ou realmente a sequela de um encontro - porventura desencontro - mestre-discípulo em oportunidade que não é possível apurar com precisão, ou, ainda, qualquer outro pomo de discórdia insuspeito; fosse o que fosse, acabou no nível mais comezinho das denúncias pessoais. Em 1532 Fernando Oliveira parte para Espanha, em circunstâncias desconhecidas; tão pouco se sabe porque motivo e para fazer o quê. «Fuga» foi 47 48 49 50 51 52 53 Foi o que mostrou José Eduardo Franco na longa e cuidada anotação da Hestorea (op. e Anexo cit. ,passim). Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 3-4. Idem, ibidem, p. 102. José Sebastião da Silva Dias, A Política Cultural da Época de D. João III, 1.° volume [único publicado], tomo**, Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade, 1969, p. 466. Joaquim Veríssimo Serrão, Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal, Lisboa, IN-CM, 1994, p. 350. Amadeu Torres e Carlos Assunção consideram que este encontro se deu entre 1521 e 1528-1529 («Abordagem Pontual e Situacional», na edição da obra gramatical de Fernando Oliveira citada acima, pp. 14-15). Da longuíssima bibliografia sobre André de Resende v. Odette Sauvage, Vltinéraire Érasmien d'André de Resende (1500-1573), Paris, FCG-CCP, 1971; José V. de Pina Martins, Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do Século XVI, Paris, FCG-CCP, 1973; e Raul Miguel Rosado Fernandes, «André de Resende e o Humanismo Europeu», in O Humanismo Português 1500-1600, Lisboa, Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1988, pp. 593-616. José V. de Pina Martins, op. cit., pp. 104 e ss. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 45 o termo empregue por Lopes de Mendonça, e de facto Oliveira afirmou que fora dispensado da Ordem, mas nunca exibiu a prova documental respectiva, o que gera a suspeita de que essa saída tenha sido intempestiva. Poucos anos depois estava em Portugal e empregou-se no ensino das primeiras letras a filhos de gente nobre, o que por sua vez levanta uma dúvida que importava esclarecer: como é que o trânsfuga aparece subitamente como professor, entre outros, dos filhos de João de Barros, do poderoso barão do Alvito, ou de D. Antão, filho de D. Fernando de Almada, que lhe encomendou a gramática e o alojou? A vertente mais nebulosa da vida de Oliveira é precisamente esta, a que diz respeito à forma como surge relacionado com figuras importantes do reino, sem que se tenha encontrado até agora a mais leve sugestão das oportunidades que lhe facultaram esses conhecimentos. 2.2. A Grammatica da Lingoagem Portuguesa Em 1536 saiu dos prelos da casa impressora de Germão Galhardo a Grammatica da Lingoagem Portuguesa 54, primeira obra do género publicada em Portugal. Como foi dito acima, teve grande notoriedade e mereceu mais atenção dos estudiosos que todas as outras do mesmo autor. Os motivos que estiveram na origem da redacção são-nos desconhecidos, inclinando-se os responsáveis pela última edição a considerá-la sobretudo um suporte para as aulas que leccionava, «o que explicaria bastante satisfatoriamente o arranjo dispositivo, um tanto apressado e a necessitar de complementos» 55; Oliveira teria escrito o livro já depois do regresso a Lisboa, e não durante a estada em Castela, embora o pudesse ter iniciado aí 56 . Quanto ao que pretendia, pelo menos de acordo com a justificação dada aos seus leitores, era apontar algumas partes da ortografia, acento, etimologia e analogia da linguagem, sem nada particularizar; com o objectivo de a língua portuguesa se estender pelo mundo - como se entende da dedicatória a D. Fernando de Almada, da qual resulta ainda claro que esta era uma «primeyra anotação», e o resto ficaria «para outro tempo e obra» 57. Outras passagens do livro revelam que não considerava esta uma primeira anotação por qualquer acesso de modéstia (que por via de regra não perpassa pelos escritos de Oliveira, diga-se em abono da verdade), mas porque a intenção de escrever obra mais desenvolvida era suficientemente firme para ser aludida repetidas vezes: «como a seu têpo em outra obra mayor q desta materea espero de fazer direi» 5 8 54 55 56 57 58 Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portuguesa, Lisboa, em casa de Germão Galharde, 1536. Amadeu Torres e Carlos Assunção, op. cit., p. 25. Idem, ibidem, pp. 24-26. Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), pp. 163-164. Idem, ibidem, p. 195. 46 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL cá>rammatíca Da lingoagem poi* tuguefa* Fig. 1 - Frontispício da Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernando Oliveira. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 47 «mas donde isto naçe eu direi mais alghúa parte disso ê outro tempo» 59 «hauemos de falar mais largamête em outra obra» 60 «e nos dos nossos faremos memorea a seu têpo: mas não nesta obra» 61 «da lingua não dizemos mais por q temos começada hua obra em q particularmente e cõ mais comprimento falamos delia» 62 Seis referências explícitas, se contarmos a da dedicatória, mas sem levar em linha de conta umas três mais em que a referência a esse livro futuro é apenas indirecta. Futuro ou presente, pois na última remissão diz que a obra mais desenvolvida que planeava fazer estava já iniciada. Se Fernando Oliveira a escreveu, dela não sobrou notícia, mas é bem possível que não tenha passado do plano das intenções, ou do eventual início de redacção enquanto terminava esta «anotação». Por aquilo que veremos de seguida podemos constatar que os seus interesses desviaram-se de seguida para a matéria náutica, e quando volta a este campo temático fá-lo com uma obra histórica. Continuando no domínio das hipóteses, é evidente que a avançada idade com que se lançou a escrevê-la prova que ânimo não lhe faltava, mas, embora tivesse espaço ideológico, perdera entretanto a oportunidade. Retomar um livro iniciado havia muito, ou escrevê-lo desde o início, seria tarefa particularmente grata dada a perspectiva de defender o valor específico e intrínseco da língua portuguesa (que assoma em várias passagens da Grammatica), e em virtude do notório empenho em demonstrar a legitimidade da independência portuguesa, do que deu prova bastante após 1580. Só que nessa altura já havia outras gramáticas, e o seu espaço de intervenção estava por isso visivelmente reduzido. A ideia de escrever esta obra veio da sua congénere castelhana, sem que isso ponha em causa a novidade que trazia, segundo Eugênio Coseriu: «O impulso para a descrição do português veio certamente da gramática espanhola de António de Nebrija, publicada quarenta e oito anos antes, ao qual ele se refere explicitamente na sua obra. Isto, porém, não diminui a sua originalidade, pois ele não segue Nebrija como um simples imitador, como na maioria das vezes o fez João de Barros, alguns anos mais tarde» 63. E aqui estava precisamente o motivo do afastamento: a defesa da língua castelhana em Nebrija é tomada como modelo para a defesa da língua portuguesa, mas contraditada em relação à afirmação concreta, já que Oliveira afirma a supremacia do português. Esta proximidade dos motivos não passa muito além disso: Nebrija («Nebrissa») é citado uma vez apenas no capítulo VI, enquanto Quintiliano o é vinte e duas 59 I d e m , ibidem, p . 206. 60 Idem, ibidem, p. 214. Idem, ibidem, p. 234. Idem, ibidem, p. 235. Eugênio Coseriu, «Apreciação global», in Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), p. 31. 61 62 63 48 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL vezes ou Marco Varrão oito. De Nebrissa tomou Oliveira o modelo, mas não a lição: «the Gramática da Linguagem Portuguesa by Oliveira... was a reaction not only against the Latin grammatical structure but also against the Spanish as well as any foreign influence» 64. A questão da primazia de Oliveira tem sido também abordada por este prisma: segundo Maria Leonor Carvalhão Buescu, que dedicou largo número de estudos à gramaticografia quinhentista, as relações de «amizade e convívio» entre João de Barros e Oliveira, o segundo professor dos filhos do primeiro, não podiam justificar que Barros reclamasse a sua primazia no pôr da língua em arte quatro anos depois, por querer lançar o véu do esquecimento sobre obra que ele seguramente tinha de conhecer: «o problema parece solucionar-se muito simplesmente, se tivermos em conta o facto de que o próprio Fernão de Oliveira chama à sua obra uma primeira anotação» 65. Já Carmen Radulet propõe outra visão deste possível desencontro, atribuindo a João de Barros a intenção clara de valorizar a sua própria imagem, o que nem sequer se pode atribuir a um comportamento extraordinário, lembrando o labéu de plagiador que o celebrado humanista lançou sobre Rui de Pina, depois de usar os manuscritos deste sem o reconhecer 66. Seja como for, o certo é que tudo indica que a aventura gramatical de Oliveira se quedou por aqui. Os anos seguintes são marcados pelo seu interesse por outras áreas do saber e por outras actividades profissionais que não o ensino das primeiras letras, ao qual não voltou, pelo menos tanto quanto se sabe. 2.3. A experiência naval A década mais nebulosa da vida de Fernando Oliveira é justamente a que se segue, nos anos 40. Não é que não saibamos por onde andou ou o que fez, pois, paradoxalmente, trata-se do período de vida sobre o qual estamos melhor informados; mas porque os acontecimentos que se seguem no traçado biográfico que se vai debuxando são por vezes bastante difíceis de explicar. Fernando Oliveira aparece nesta década de 1540 como piloto ao serviço das galés francesas estanceadas em Marselha, onde Francisco I baseava a sua esquadra mediterrânica. Na Inquisição declarou que tinha embarcado de 64 65 66 José António Neto, A comparative study of the first Spanish grammar by António de Nebrija and the first two Portuguese grammars by Fernão de Oliveira and João de Barros, Ann Arbor (USA), University Microfilms International, 1992. Maria Leonor Carvalhão Buescu, «Introdução», in A Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, introdução, leitura actualizada e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, IN-CM, 1975, p. 19. Da mesma autora ver-se-ão outros estudos onde reafirma a sua interpretação do problema da primazia, em particular Gramáticos portugueses do século XVI, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978; e sobretudo Babel ou a Ruptura do Signo. A gramática e os gramáticos portugueses do século XVI, Lisboa, IN-CM, 1984. Carmen Radulet, «Fernando Oliveira: a primeira anotação da língua portuguesa», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, p. 21. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 49 Barcelona para Génova, num navio que fora depois apresado pelas galés francesas, e sido feito prisioneiro. Mais tarde teria ido para Itália e regressado a Portugal com o bispo de Modena, Lúcio Lippomani, o núncio apostólico a cuja enviatura se opunha D. João III; o monarca português só o recebeu em Março de 1543, apesar de ter sido designado em Maio do ano anterior e ter saído de Roma em Junho. Lopes de Mendonça, que considerou a estadia em Itália um facto «fora de dúvida», procurou justificar os acontecimentos destes dois anos urdindo uma especiosa teia de situações da qual resulta o envio de Oliveira como agente secreto, porventura até encoberto pelo uso de um pseudónimo (Fernão Coutinho) 67 . Há de facto muita coisa por explicar: porque é que saiu de Lisboa e com que destino e, sobretudo, como é que aparece a servir de piloto nas galés francesas, situação a que passou logo depois de ter sido capturado o navio em que seguia, dada a utilidade dos seus conhecimentos de navegação. Léon Bourdon, com base nos documentos que encontrou em Simancas relativos a um episódio mais tardio que comprova as ligações de Oliveira ao meio marítimo francês, sugeriu que o relato dos acontecimento perante a Inquisição tivesse sido arquitectado de modo a escamotear, com a ida a Roma, aquilo que foi de facto uma aventura, iniciada não se sabe como, mas que poderia indispor os inquisidores 68. O mais inexplicável de tudo é, porém, o engajamento como piloto, para mais de galés, uma profissão ou prática que não se aprende num ápice e pressupõe exercício continuado. Em que altura e circunstâncias concretas se pode «encaixar» essa aprendizagem são perguntas que ficam sem resposta. Para a primeira pode aventar-se o período final da década anterior (1535/6-1540/1541, talvez), mas para a segunda nem uma simples suposição se consegue urdir. Oliveira volta a Lisboa, não dá mais aulas e passa por dificuldades económicas que justificam o passo seguinte. Henrique VIII declarara guerra a Francisco I que, em resposta ao pedido do seu almirante d'Annebant, manda que 24 navios redondos, 20 galés e 4 vasos de aviso venham do Mediterrâneo para se juntarem ao resto da frota francesa no Havre, de modo a organizar uma força naval para atacar a Inglaterra 69 . O comandante das galés era o barão de La Garde, que capitaneava a «La Réale» 70, «magnifique quinquérème, capable de transporter 490 soldats, outre de chiousme», na descrição de Charles de Ia Roncière 71 , com certeza um pouco exagerada. Uma galé capaz de transportar 900 pessoas teria de ter dimensões demasiadamente fora do comum. 67 68 69 70 71 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 10-12. Léon Bourdon, op. cit., pp. 440. Sobre a campanha no quadro da história político-militar naval britânica v. o estudo de grande síntese e erudição de N. A. M. Rodger, The Safeguard ofthe Sea. A Naval History ofBritain, Volume One 660-1649, Londres, Harpers Collins, 1997, pp. 176-189. Esta galé tinha o mesmo nome da que foi comandada por D. João de Áustria na batalha de Lepanto, e cuja data de construção se ignora (cf. Lincoln Paine, Ships ofthe World. An Historical Encyclopedia, Londres, Conway Maritime Press, 1998, pp. 423-424). Charles de Ia Roncière, Histoire de Ia Marine Française, vol. III, Paris, Librairie Plon, 1906, p. 413. 50 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL La Garde, aliás Antoine Escalins des Aymars, aliás o Capitão Paulino, nome pelo qual era também conhecido, sobretudo antes do baronato, e que Fernando Oliveira usa para se lhe referir na Arte da Guerra, foi um dos mais célebres marinheiros franceses do século XVI. Nascido na vila de La Garde, no Dauphiné, em 1497 ou 1498, alistou-se na marinha com 12 anos, contra a vontade dos pais, onde teve uma carreira rápida e brilhante 72 . Passou por Lisboa em 1545, e é numa das galés que segue sob seu comando, a capitaneada por Saint Blancard, que Fernando Oliveira embarca como piloto, acompanhado do também dominicano frei Miguel Lobo. Do seu companheiro de aventura nada se sabe, mas sobre Fernando Oliveira há um dado seguro: não poderia embarcar naquela galé e na qualidade em que o fez se não fosse pessoa conhecida e da confiança dos marinheiros franceses, para mais considerando a responsabilidade da missão que lhes estava cometida. Léon Bourdon alvitra mesmo que o embarque deve ter sido feito a convite expresso de Saind Blancard, como parece natural 73 : a simples ideia do frade doublé de nauta se acercar da galé a inquirir da possibilidade de necessitarem de um piloto é tão irreal que nem merece consideração. O capitão Paulino era conhecido de Oliveira, sem dúvida do tempo em que já andara embarcado: na Arte da Guerra explica como uma galé quinquirreme foi passada a quadrirreme por sua indicação, depois de ter constatado que o navio não tinha largura suficiente para evitar que os cotovelos dos remadores tocassem uns nos outros 74. No ano seguinte Oliveira está em França e participa nas hostilidades navais entre os navios franceses e ingleses que têm lugar no canal da Mancha. Num desses recontros, a galé de Saint Blancard é apresada por ter avançado demais contra os navios ingleses, ficando isolada das outras dezassete com que seguia. Para Oliveira foi um problema de manobra que impediu a retirada, mas a razão fundamental do insucesso residiu na evidente desvantagem dos navios a remos, que não puderam enfrentar dez navios de vela, que «nam eram dos mays escolhidos» 75. Bernard d'Ornezan (barão de Saint Blancard) era também ele um dos mais prestigiados comandantes da marinha de guerra francesa, filho de um marinheiro de grande reputação com o mesmo nome, de quem herda o baronato 76. 72 73 74 75 76 Seguimos a mais extensa biografia de La Garde, que data do século XVIII (M. Micher, Viés du Capitaine Cassará et du Capitaine Paulin, Connu sous le nom de Baron de La Garde, A Paris, Chez Belin, Librairie, 1785), e uma ficha informativa do Musée de Marine em Paris, que nos foi possível consultar graças à gentileza de um funcionário da instituição, o Dr. Alberto Costa. Léon Bourdon, op. cit., p. 442. Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 71. Isto significa que o número de remadores por remo foi passado de cinco para quatro. Idem, ibidem, p. 68. Bernard d'Ornezan (pai) foi também marquês, mas este título não passou para o filho, tendo sido mais tarde dado por Henrique II a um nobre alemão (Jean Vuillet, Au Temps des Galères. Bernard d'Ornezan Marquis des lies d'Or, Toulon, s/ed., 1939; com uma Addenda publicada em 1941, s/l es/ed.). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 51 O apresamento da sua galé deu-se no quadro dessas campanhas navais de que o episódio mais célebre é o da perda de um dos navios mais importantes da marinha inglesa, o «Mary Rose» (1545). O «Rose», depois de disparar toda a artilharia de um dos bordos, pretendeu efectuar uma meia volta para usar as bocas de fogo da outra banda, e afundou-se subitamente quando a água entrou de rompante pelas portinholas, sem dúvida por a manobra ter sido feita com pano a mais, fazendo o casco inclinar-se demasiado por força da acção do vento. É pelo menos assim que todas as fontes conhecidas descrevem o que aconteceu e, na sua esteira, os muitos historiadores navais britânicos que se lhe referiram 77. Um pormenor que não deixa de ser curioso, mas apenas isso, com certeza: na biografia setecentista de La Garde diz-se que ele avançou com tanto ímpeto contra os navios ingleses que afundou o «Rose» 78. Seja como for, é possível que Oliveira tivesse assistido a esse afundamento, ao leme de um navio francês 79. Fernando Oliveira nunca se refere em concreto às circunstâncias da sua captura pelos ingleses, mas isso terá acontecido na ocasião descrita acima; o piloto de Saint Blancard estava naturalmente no seu lugar quando a galé foi capturada. A presa era importante; o combate de Ambleteuse travou-se a 18 de Maio de 1546 e, logo a 27, uma carta escrita de Londres dá conta dos acontecimentos: «The King's ships recently defeated sixteen French galleys, and captured one with the Baron de St. Blancard on board, which will be brought to London in a day or two» 80 . O que se passou a seguir permanece no domínio da simples conjectura. Em Janeiro de 1547 há notícia de um «Portuyese pilot» 81 que estava envolvido em negociações com os Franceses, situação que lembra, pelo evidente paralelismo, o que se passou depois do episódio de Velez. Poderá ser Fernando Oliveira, assim como é bem possível que seja o «Fernando Olivetan» a quem são pagas 10 libras esterlinas por serviços prestados no dia 9 de Março desse ano 82. Fora de dúvida está o merecimento que soube ganhar na corte inglesa, voltando a Portugal como portador de uma missiva do monarca inglês para D. João III. O regresso deu-se ainda nesse ano de 1547, sendo preso pela Inquisição pouco depois. Lopes de Mendonça publicou o processo e comentou-o com tanta minúcia que se torna escusado repetir as suas palavras. Ficaremos pelo mais 77 78 79 80 81 82 Por exemplo N. A. M. Rodger, op. e loc. cit. M. Micher, op. cit., p. 155. Richard Barker, «A Portuguese witness to the loss of the Mary Rose?», Newsletter ofthe Mary Rose Society, n.° 37, Portsmouth, The Mary Rose Society, 1989, s/numeração de páginas; e Fernando Oliveira: the english episode, 1545-7, Lisboa, Academia de Marinha, 1992. Letters and Papers Foreign and Domestic of the Reign of Henry VIII, vol. 21 (1546/7), L o n d r e s , Gairdner and Brodie, 1905, p. 460. Letters and Papers Foreign and Domestic ofthe Reign of Henry VIII, Corresp., n.° 1 0 3 . Acts of the Privy Council of England, New Series, vol. II: A.D. 1547-1550, ed. by John Roche Dasent, Londres, Eyre and Spottiswoode, 1890, p. 60. 52 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL relevante, os motivos da prisão e as declarações prestadas a propósito do episódio inglês. Segundo Lopes de Mendonça, Oliveira foi vítima de uma verdadeira maquinação operada por alguns inimigos a quem não foi difícil obter declarações algo escandalosas sobre matéria religiosa, com André de Resende envolvido na trama, ou até responsável por ela. Tudo começa quando Fernando Oliveira se dirige a uma tenda de livros na Rua Nova, e inquirido por conhecidos sobre as suas andanças revela ter estado em Inglaterra. No seguimento da conversa recusa-se a condenar Henrique VIII por se ter afastado da Igreja de Roma, e o livreiro João de Borgonha, o principal suporte da acusação, testemunha que até o terá ouvido dizer que bem fizera o monarca inglês. Tudo está exarado no longo e circunstanciado processo de onde se respiga uma informação importante: Oliveira diz recusar-se a condenar o rei inglês por ter sido seu criado e ter comido do seu pão; mais, abandonara o hábito religioso (o que fora estranhado pelos que o conheciam quando o viram na Rua Nova e se tornou uma das acusações que teve de enfrentar), porque era o rei a fornecer-lhe a própria roupa. Resulta destas declarações a enorme frontalidade com que foram defendidas opiniões que não podiam deixar de ser vistas como uma fuga à ortodoxia vigente pela concordância patenteada com a atitude de um monarca herético. Perante os seus inquisidores, Oliveira afirmou até que considerava os Ingleses bons cristãos e acreditava na sua salvação, mesmo negando obediência ao Papa. Procurando defender as atitudes de Henrique VIII, foi obviamente declarado autor de afirmações heréticas, temerárias e escandalosas 83, e por isso condenado. De pouco valeram os apoios de que eventualmente poderia gozar: não se conhece o teor da carta de Eduardo VI (que entretanto sucedera a Henrique VIII) dirigida a D. João III, que tanto podia tratar de assunto diplomático importante como ser uma mera nota de recomendação, tal como Lopes de Mendonça alvitrou e parece mais provável84. Ignora-se por igual o pretexto ou ocasião que lhe permite dirigir-se por escrito ao todo poderoso D. António de Ataíde, conde da Castanheira 85, com avisos relativos ao interesse de Portugal em manter boas relações com a Inglaterra dada a importância do comércio da Flandres, cujo acesso aquela controlava de alguma maneira através do canal da Mancha 86. Já preso pelo Santo Ofício tentou subornar um dos carcereiros para lhe fazer sair uma outra carta para o mesmo destinatário, pedindo agora que atendesse à sua situação; sem sucesso, porque foi denunciado 87. Nada lhe evitou os dois anos de cárcere depois de abjurar em forma, seguidos pela transferência para o mosteiro de Belém por tempo indeterminado, 83 84 85 86 87 V. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 124. Idem, ibidem, p. 28. Trata-se do Vedor da Fazenda de D. João III, avô do 5.° titular do condado, seu homónimo, o qual possuiu uma valiosa colecção de códices de marinharia e a quem nos referiremos com algum detalhe no capítulo V desta Parte I. Como habitualmente, Lopes de Mendonça escapelizou este passo do processo (v. a obra citada nas páginas 28-29 e 109, sobretudo). Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 107-108. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 53 graças à interferência do Inquisidor Geral, o cardeal infante D. Henrique, a quem Fernando Oliveira solicitou que atendesse ao seu arrependimento e débil estado de saúde. A comutação da pena é de 3 de Setembro de 1550 88, mas o condenado permaneceu pouco tempo no local para onde foi transferido, já que logo de seguida aparece envolvido no episódio de Velez. D. João III acedeu de bom grado ao pedido de auxílio que lhe foi endereçado pelo desapossado rei de Velez 89, também ele vítima da investida dos xarifes de Marrocos 90, que já obrigara à retracção da presença portuguesa no Norte de África, levando ao abandono de algumas praças. Pode dizer-se por isso que D. João e Bu Hassun tinham um inimigo comum, e tanto o pedido de ajuda como a resposta positiva que mereceu se percebem no contexto político-militar da época 91 . No ensejo de conduzir o monarca de volta ao seu reino, onde o apoio local esperado poderia conseguir que recuperasse o poder, primeiro, e viesse a servir de aliado dos interesses portugueses contra o xarife triunfante, depois, organizou-se uma expedição naval cujo comando foi entregue a Inácio Nunes, dito o Gato; tratava-se de um homem com experiência e conhecimento do Norte de África, que pouco tempo antes dos acontecimentos em causa fora nomeado intérprete de árabe 92. A expedição deve ter saído de Lisboa pelos finais de Julho ou inícios de Agosto de 1552: era composta por duas caravelas (de armada, especificou Fernando Oliveira) e um caravelão descoberto que levava os cavalos de Bu Hassun, e juntaram-se-lhes mais duas caravelas que andavam na vigilância do Estreito. Não começou bem: uma das caravelas abriu água, provavelmente por ser navio velho, e tiveram de arribar a Portimão. Resolvido o problema rumaram então ao Norte de África, e zarparam de Ceuta no dia 30 de Agosto, incorporando então nos efectivos um pequeno navio de remos (um fragatim de quinze ou dezasseis remos por banda, ainda segundo Oliveira). 88 89 90 91 92 I d e m , ibidem, p p . 127-128. V. The Encyclopaedia of Islam, N e w E d i t i o n , E d . H . A. R. G i b b et ai., vol. I, L e i d e n - L o n d r e s , E. J. Brill, 1960, p. 997. A cidade foi alvo de um ataque bem sucedido em 8 de Setembro de 1564, conduzido por tropas portuguesas, castelhanas, italianas, saboianas, maltesas e alemãs; para a questão no quadro das relações luso-castelhanas à época v. Maria do Rosário de Sampaio T h e m u d o B a r a t a de Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural, II vol., Lisboa, IN-CM, 1992, p p . 142-149. N u m conspecto m a i s geral, Henri Terrasse, Histoire du Maroc, vol. II, Casablanca, Éditions Atlantides, 1930, s o b r e t u d o a s p p . 158-178. S o b r e a questão v. António Dias Farinha, «Os Xarifes d e M a r r o c o s (Notas sobre a expansão p o r t u g u e s a n o Norte de África)», in Estudos de História de Portugal. Homenagem a a. h. de oliveira marques, volume II - sécs. XVI-XX, Lisboa, E s t a m p a , 1983, p p . 57-68. P a r a u m a visão de síntese sobre a presença p o r t u g u e s a e m M a r r o c o s n o século XVI v. «Introdução II - A Época», in António Dias F a r i n h a (estudo crítico, i n t r o d u ç ã o e notas), Crónica de Almançor Sultão de Marrocos (1578-1603), t r a d u ç ã o francesa d e Léon B o u r d o n , Lisboa, IICT, 1997, p p . XLIII-XCV, e d o m e s m o a u t o r Os Portugueses em Marrocos, 2. a ed., revista, Lisboa, Instituto Camões, 2002. V. Robert Ricard, Les Sources lnédites de VHistoire du Maroc. Portugal, t. IV, Paris, Paul Geuthner, 1951, p. 409. 54 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL Os acontecimentos que se seguiram foram narrados com bastante pormenor numa carta que os Portugueses cativos enviaram a D. João III em 15 de Outubro 93. O documento é circunstanciado no relato, mas pode dizer-se que constitui uma espécie de versão oficial do sucedido: entre outros, é assinado também pelo comandante da hoste, Inácio Nunes. Resumidamente, o que se passou foi o seguinte: reunida a totalidade da frota rumaram para Velez, e começaram o desembarque numa praia algumas léguas adiante. Talvez devido ao desejo expresso por Bu Hassun, no dia seguinte ao da chegada, 2 de Setembro, retrocederam até à cidade, onde então o monarca deu entrada, e ficaram um dia mais a seu pedido, pois queria escrever uma carta de agradecimento e preparar um presente de quatro cavalos para D. João III. Mas o alcaide da fortaleza localizada no pequeno morro sobranceiro (conhecido por Penhol de Velez), adversário do rei, enviou um emissário que deu as novas a uma armada de vinte e quatro galés argelinas que andava perto, sob o comando do próprio governador de Argel. Os Portugueses foram apanhados desprevenidos perante uma frota muito mais poderosa: a carta especifica que eram doze galés de Constantinopla, dez reais e duas bastardas, e as outras doze eram de Argel, todas muito bem artilhadas e com 5000 turcos a bordo. Resistiram, lutando, como e enquanto puderam, mas as caravelas ficaram imobilizadas quando o vento caiu subitamente pelas três horas: assaltadas cada uma por cinco ou seis galés, depois de violento bombardeio, duas afundaram-se e os sobreviventes foram forçados à rendição. Daí foram levados para Argel, e procuraram negociar um resgate conjunto: eram mais de duzentos, contando com outros portugueses que lá se encontravam presos, incluindo alguns matosinhenses, aprisionados anteriormente pelas mesmas galés. Foi com esse propósito que Inácio Nunes e três outros escreveram a carta ao rei português, enviada pelos emissários libertados para o efeito: entre eles estava o padre Fernando Oliveira. Oliveira embarcou seguramente na qualidade de capelão da armada ou de um dos navios, pois não se compreende que o pudesse ter feito noutras circunstâncias dada a situação em que se encontrava anteriormente; presumimos por isso, e já que foi escolhido para esta missão, que seria de facto capelão da armada. Não se conhece bem o desenrolar do processo, mas há um apontamento curioso. A 29 de Novembro D. Pedro de Menezes escreve ao rei dando conta da passagem pela cidade dos enviados de Inácio Nunes, e tece este comentário elucidativo: 93 Publicada por Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 130-132, e por Francisco Contente Domingues, «A expedição de auxílio ao rei de Velez em 1552: o relato oficial versus o testemunho de um participante», in Francisco Contente Domingues e Jorge Semedo de Matos (org.), A Guerra Naval no Norte de África (Séculos XV-XIX), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003, pp. 167-169. Reproduzimos neste estudo, cujo texto pouco difere do deste sub-capítulo, todos os documentos já revelados por Lopes de Mendonça, em nova leitura, pelo que nos dispensamos de para ele continuar a remeter o leitor. Para um descrição completa da documentação conhecida sobre o episódio v. Robert Ricard, op. cit., pp. 408-409, n. 1. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 55 «hu padre q veo ê sua cõpanhia q se chama frey fernãdo dolyura lembro a V. A. q he homê muyto desasesegado e segudo o q pasey co ele e synto de seu juizo he homê aparelhado pêra fazer mais mal q bem» 94. Fica por se saber o que Oliveira terá dito ou feito para ser alvo de tal juízo; talvez tenha apenas expresso a opinião que exarou depois por escrito. É claro que a carta dos cativos de Argel tinha de apresentar uma versão dos acontecimento conforme ao que o rei esperaria ouvir, para mais quando essa descrição antecedia a explicação dos encargos em que importavam os resgates. Se as coisas se passaram assim ou não é difícil de saber: certo é que Oliveira as descreveu de forma bem diferente. Todo o capítulo doze da segunda parte da Arte da Guerra do Mar trata do episódio de Velez. O tom geral, para o caracterizarmos com uma palavra apenas, é simplesmente corrosivo. Depois de comparar o castelo de Velez a uma cuba de cem almudes, no seguimento do tom depreciativo com que se refere sempre à terra, a descrição da forma como a armada foi conduzida indicia, nesta versão, algum desleixe do comando: Oliveira explica como voltaram atrás para desembarcar o rei dentro da sua cidade, onde se mantiveram dois dias a comer uvas e figos que aquele lhes mandou de presente, como quem diz que tardaram a tomar o caminho de volta. E quando o quiseram fazer, no fim do jantar do terceiro dia, tinham pela frente as vinte e cinco galés (mais uma que no relato de Nunes) de Argel: bem artilhadas e cheias de gente de guerra animosa, segundo Oliveira. A descrição do que se segue é algo longa, mas vale a pena deixar a palavra com este homem que não temeu usá-la para dizer o que pensava: «Nas nossas carauellas nã hauia quatro homês q soubesse atacar hú arcabuz, e dos q hauia nem era comprido o numero q elrey manda nã as qualidades. Os marinheyros lauradores boçães dãtre doura minho, os soldados vagabundos de Lisboa que se contentam coa primeyra paga/ e entram na conta o criado do capitam e o seu negro/ porq he elle pobre e quer forrar, que para isso pedio esse carrego a sua alteza. Desta feyção esquipadas as nossas carauellas, coa a vista dos turcos desatinou a gente delias de tal maneyra q feruiam dhu a parte pêra outra sem ordem, como formigeyro esgrauatado. Hús fazião vela sem hauer vento, q o nam hauia tal que veto se podesse chamar, outros cortauam as amarras sem olhar pêra onde virauam as proas, outros deyxauam os nauios e metiãose nas bateys pere se lançarem ê terra, e logo se tornauam os nauios como homês que nam cuydaram o q faziam» 95. Acusações várias e em vários sentidos: mau apresto da armada, má condição dos embarcados para a missão, corrupção do comando da empresa, comportamento inaceitável perante o inimigo. Mas Oliveira não ficou por aqui, e remata o capítulo desta forma: 94 95 Carta publicada por Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 134-135. F e r n a n d o Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 125. 56 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL «Muytas cousas d'stas deyxo porq me enfado de as trazer por memória, e nê estas digo senão por respõder aos q me qrião estoruar quãdo vim buscar o resgate, aos quaes porq então não era têpo, agora respõdo, q algus elles mereciam ficar laa poios innocêtes q laa estauão, porq elles são os q pede a elrey officios pa homês q dão as taes perdas. Porq não gostão do amorgoz do trabalho o tê em pouco, e nas suas camarás pelejam co as garda portas pintadas. Não ha torre nê muro q não derribe dhúa focinhada. A sua cana de bêgalla he mays ryja q a lança de Golias. Engollê elles boofee o mar, e os vetos/ e cõ duas carauellas desbaratão as armadas do grão turco. E mays não querê que lho digão, ca sam senhores» 96. Críticas directas, quiçá certeiras, dirigidas a Inácio Nunes e aos que o apoiavam na corte - ou pelo menos assim o sugere a parte final do trecho; mas no início, a menção «aos que me queriam estorvar quando vim buscar o resgate», será muito provavelmente dirigida a D. Pedro de Menezes, como o sugere o comentário deste sobre o emissário dos cativos, que o não poupou às suas críticas. Quem as escreveu denotou um notável desassombro, mas não podia deixar de suscitar reacções muito negativas por parte de quem se via tão violenta e publicamente atingido. Nos finais de 1554 o licenciado Fernão de Oliveira aparece nomeado revisor dos livros impressos pela Universidade, função a que corresponde o vencimento de vinte mil réis anuais, a auferir depois de 1 de Janeiro de 1555. As suspeitas de que este possa ser um caso de homonímia suscitaram a contradita de Teófilo Braga, com o argumento de que o título de licenciado dado ao novo revisor não era incompatível com a situação do ex-dominicano, que o poderia ter tomado entre 1551 e 1554, sem a frequência dos estudos universitários, valendo para tanto os anos que cursara em Évora. Em suporte desta hipótese invocou o caso em tudo paralelo de frei Bartolomeu dos Mártires, a quem foi reconhecido o passado escolar em S. Domingos de Lisboa para justificar idêntico título académico 97. É verdade que o Fernando Oliveira autor do Livro da Fabrica das Nãos inicia a redacção com as palavras «Começa o liuro da fabrica das nãos composto de nouo pello licenciado Fernando oliueyra» (itálico nosso), que a grafia é a mesma da Ars náutica, como vimos acima, e que naquela obra faz alusão directa à Arte da Guerra; e que tudo, portanto, parece indicar que estamos perante uma mesma personagem, tanto mais que, não sendo invulgares nem o nome próprio nem o de família, não se encontra rasto de outro Fernando Oliveira que com ele seja confundível. Frades homónimos na Ordem dos Pregadores houve-os, mas em épocas totalmente diferentes 98, e as tentativas de o localizar quer na 96 97 98 Idem, ibidem. Teófilo Braga, Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrucção publica portugueza, Tomo II, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1895, pp. 162-174. Cf. frei A n t ó n i o d o Rosário, OP, Dominicanos em Portugal. Reportório do Século XVI, Porto, Instituto Histórico Dominicano, 1991. V. as entradas 599 e 2586 para Fernão de Oliveira, sem qualquer confusão possível com aquele de quem se trata aqui, e o mesmo se aplica ao Fernando de Aveiro (entrada 293), cujo nome tomado na Ordem é deveras sugestivo, mas apenas isso, pois ainda menos se confunde por estar perfeitamente identificado o seu percurso dentro dos Os NAVIOS DO M A R OCEANO 57 Universidade de Coimbra, com excepção do cargo acima citado, quer no grupo dos apoiantes de D. António, prior do Crato " , ou em outro qualquer lugar 10°, têm falhado até hoje. Isto não autoriza a identificação automática de todas as ocorrências documentais com a mesma pessoa, e se há que convir na forte probabilidade de o revisor de Coimbra ser o mesmo de que tratamos, também não deixa de ser bom critério aceitá-lo como hipótese muito plausível, apenas. Pela contrária conclui Vênancio Deslandes, com muita ênfase mas sem aduzir qualquer justificação: «se não insista na inconsideração, e quasi leveza, com que os nossos bibliographos têem confundido o licenciado Fernão d'Oliveira, clérigo de missa, revisor da imprensa da universidade, com o padre Fernão d'Oliveira, mestre da grammatica portugueza na corte e cidade de Lisboa, que apenas tem de commum com o primeiro o nome, e haverem estado ambos nos cárceres da Inquisição» 101. Nomeado a 18 de Dezembro de 1554, permaneceu pouco tempo no cargo, pois há nova nomeação para o lugar em 26 de Outubro de 1555 a favor de um Cristóvão Nunes, a quem o rei depois chama para o seu serviço, fazendo-o substituir a 3 de Março de 1557 por Sebastião Stocamer, cavaleiro fidalgo da sua Casa e, ao tempo, estudante em Coimbra. O alvará de nomeação deste último alude ao acontecimento que esteve na origem da rápida sucessão, explicando que o lugar fora dado ao licenciado Fernão Oliveira para que nele servisse, o qual fora depois preso pelo Santo Ofício, situação em que se mantinha dois anos volvidos 102. Dois anos no cárcere, portanto, e pelo menos. Que Oliveira passou por Coimbra parece seguro, já que nessa cidade acabou de se imprimir a Arte da Guerra do Mar a 4 de Julho de 1555, na casa do impressor João Álvares. E o humanista Jerónimo Cardoso envia-lhe então uma carta em tom francamente encomiástico, considerando-o como responsável pela recuperação de Fábio Quintiliano, que andava esquecido, e era agora relembrado pelas suas aulas 103. Dominicanos entre 9.10.1517 e 29.10.1575. De viva voz, o autor desta obra revelou-nos nunca ter achado identificação possível entre o autor do Livro da Fabrica das Nãos e qualquer outro membro da Ordem. 99 Apenas repetimos o insucesso de Lopes de Mendonça, procurando encontrar um vínculo que facilitaria algumas explicações. 100 Há por exemplo dois homónimos na Casa de D. João III, ambos moços da câmara, não podendo nenhum deles ser este de que tratamos (v. D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da casa Real Portuguesa, nova edição revista por M. Lopes de Almeida e César Pegado, Tomo VI, II Parte, Lisboa, Atlântida, 1954, p. 303). 101 Venâncio Deslandes, Documentos Para a História da Tipografia Portuguesa nos Séculos XVI e XVII, reprodução fac-símile, Lisboa, IN-CM, 1988 (l. a ed. 1888), p. 83. Com reprodução do documento de nomeação nas pp. 83-86. Este documento foi também publicado por Mário Brandão, Documentos de D. João III, vol. IV, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1941, pp. 228-229. 102 Mário Brandão, op. cit., vol. IV, pp. 318-319. 103 A carta foi publicada por Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., pp. 143-144, na versão latina original. 58 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL O elogio de Jerónimo Cardoso é particularmente significativo, vindo como vem do autor gramatical com maior sucesso de mercado em todo o século XVI português 104. A referência a Quintiliano não surpreende: é o autor mais citado na Grammatica e é o primeiro a ser referido na Arte da Guerra, logo na quarta linha do prólogo; em número de citações perde para Vegécio, com quinze ocorrências, mas trata-se de uma autoridade sempre presente em toda a obra. Fernando Oliveira dava pois aulas de retórica, o que aconteceu necessariamente por pouco tempo, mas sem que saibamos onde e a quem. Apesar desta tão ténue indicação todos os autores a têm tomado por boa, desde Lopes de Mendonça até Amadeu Torres e Carlos Assunção 105. Qualquer que fosse a sua situação viu-se interrompida pelo encarceramento, porventura em consequência directa da publicação da Arte da Guerra do Mar. 2.4. A Arte da Guerra do Mar Fernando Oliveira aceitou a hospedagem de D. António da Cunha na sua casa da Beira, tendo dedicado o novo livro ao terceiro filho do seu anfitrião, D. Nuno da Cunha, capitão de galés. Justifica-se duplamente a atitude, sem dúvida prova de reconhecimento pelo favor devido a seu pai, e porque a Arte da Guerra trata também dos combates navais com galés, a ponto de o livro só se compreender inteiramente tendo presente a experiência naval do autor ao serviço de França. É aliás notório que, ao escrever sobre navios de remo, Oliveira fá-lo de uma maneira bem distinta daquela que utiliza quando se refere a navios redondos, dos quais tem um conhecimento mais característico da posição de quem pretende transmitir juízos normativos, ao passo que o discurso sobre os navios de remo aparece bem mais ligado à realidade concreta das coisas, tal como o próprio a viveu e com recurso continuado a essa experiência para ilustrar situações várias. Esta destrinça é a nosso ver fundamental para entender a especificidade de cada um destes escritos. A segunda prisão bem pode estar associada à radicalidade dos pontos de vista expressos no livro, mas os documentos publicados por Lopes de Mendonça deixam bem claro que não houve qualquer reacção precipitada: a prisão foi resultado de uma manobra cuidadosamente preparada pelo mesmo D. António da Cunha que o hospedava 106. Da cronologia dos acontecimentos temos pouca informação, mas é possível que tudo se tenha passado no Verão de 1555. Tendo tomado posse do cargo de 104 Teimo Verdelho, As Origens da Gramaticografia e da Lexicografia Latino-Portuguesas, Aveiro, INIC, 1995, p. 116. É fundamental ter presente que houve muitas gramáticas publicadas em Portugal no século XVI, como este erudito estudo no-lo diz, sendo a de Oliveira a primeira portuguesa, pois na maioria - e antes da de 1536 já tinha havido outras a sair dos prelos - eram gramáticas latinas. 105 Amadeu Torres e Carlos Assunção, op. cit., p. 15. 106 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 142-143. 59 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Arte da guerra DO MAR NOVAMENTE eferita per Fctnandooliucyta>& di rígida ao mu yto mamfico Penhor ofenhordomNunodacunha capitáo das galets do enuy topo derofo rcy de Portugal dom Ioháo o terceyro. Vifía & amicicJa pellos fenhores deputados da fan&a in^ui. n íiçani. EMCOIMBRA. ': V M. D. LV./" "7/ .. Fig. 2 - Frontispício da Arte da Guerra do Mar, de Fernando Oliveira. 60 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL revisor a 1 de Janeiro desse ano e sabendo-se que em Outubro já estava preso, poder-se-á deduzir que a denúncia perante a Inquisição teve lugar depois do livro sair dos prelos, altura em que se encontrava na Beira. Mas não é de pôr de lado a hipótese de haver outro motivo na origem desta detenção, inclusive, até, a simples expressão de opiniões por um homem que já tinha provado ser capaz de defender com frontalidade e convicção ideias que iam ao arrepio do pensar e sentir daqueles com quem convivia. Sem querer entrar nos frequentes juízos de carácter em que a obra de Lopes de Mendonça é pródiga, bem ao jeito da historiografia oitocentista, a convivência com os escritos de Fernando Oliveira, a par do conhecimento dos acidentes do seu percurso biográfico, deixam patente que era pessoa de carácter difícil, senão mesmo colérico. Quanto à Arte da Guerra do Mar, a obra divide-se em duas partes: a primeira trata da intenção e «apercebimento» da guerra do mar e desdobra-se por quinze capítulos, de cuja temática damos de seguida conta breve. Os capítulos I a V desta primeira parte podem ser considerados uma introdução teórica à arte da guerra, discorrendo sobre quem, como e quando a pode praticar, o que acaba com naturalidade por desembocar no problema da guerra justa (cap. IV). No capítulo V, em remate do que bem poderia ser considerada uma parte autónoma da obra, trata do que poderíamos chamar uma ética da guerra, iniciando-se com as seguintes palavras: «Nam abasta ser a guerra justa, mas também o modo delia deue ser justificado, e as tenções dos que a fazem dirigidas a bõ fim, e desta maneyra acabara de ser justa a guerra» 107 . Oliveira não inova no que diz acerca da justeza da guerra, no plano teórico, mas sim nos exemplos que toma para análise concreta, nomeadamente na denúncia da escravatura 108, que em rigor é uma denúncia das condições em que esta se pratica. Mas já voltaremos ao assunto. Os restantes dez capítulos versam matéria mais concreta, relativamente à preparação específica que é necessária para a guerra. O capítulo VI define as qualidades e atributos dos Almirantes, que devem ser homens diligentes e prudentes: tal como fará sempre nas suas obras, o autor acentua as qualidades morais dos cabos de guerra, bem ao jeito humanista (lembrando irresistivelmente o Maquiavel da Arte da Guerra, escrita uns quarenta anos antes), sem se referir às qualificações técnicas, o que o afasta decididamente de João Baptista Lavanha. Depois segue-se o capítulo sobre as taracenas, com as recomendações devidas ao seu provimento para poderem suportar o esforço de guerra, que o mesmo é dizer a preparação adequada e a reparação dos navios. Os capítulos 107 108 Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 27. Luís Andrade, A «Guerra Justa» em Portugal. A mentalidade de Cruzada e a Doutrina do Direito Natural na Expansão Ultramarina, Relatório para uma Aula Teórico-Prática, Universidade de Aveiro, 1990, p. 41. V. ainda Rui Bebiano, A pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII), Diss. de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1977, pp. 179-228. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 61 VIII e IX antecipam o que será escrito com mais desenvolvimento no livro sobre a fábrica das naus a propósito dos tipos de madeira que aquela requeria, e o período ideal para o corte. Os capítulos X e XI versam os armazéns e o apetrechamento das naus, e os três últimos desta parte primeira a escolha, qualidades e funções dos embarcadiços, e bem assim a estrutura de comando a bordo. Mais uma vez, são as qualidades morais e pessoais que caracterizam a aptidão para o exercício de comando, como se comprova pelos requisitos que o capitão devia preencher: esperto no entender, acautelado no fazer, magnânimo no sofrimento, animoso para acometer, destro e constante no combater 109 . A segunda parte divide-se por igual em quinze capítulos, e trata das frotas armadas, batalhas marítimas e seus ardis. O subtítulo é um pouco enganador quanto ao que se segue, pois os três primeiros capítulos versam a preparação das armadas - com informação importante -, os últimos, a partir do décimo, tratam do combate propriamente dito, com especial destaque para os acontecimentos de Velez, mas do capítulo IV ao capítulo IX Fernando Oliveira inova ao dedicar especial atenção aos condicionalismos físicos de navegação, tratando das precauções a tomar quanto ao conhecimento dos regimes de marés e ventos, em termos que reforçam o ineditismo e carácter pioneiro da obra, como acentou Alfredo Botelho de Sousa no comentário à edição de 1937 n o . Um estudo sobre as origens da teoria da guerra no mar concederia sem dúvida lugar proeminente a este livro, pioneiro em muitos aspectos face ao que se escrevia na Europa, ao tempo. Essa notoriedade que lhe escapou em vida ganhou-a depois, embora à custa de passagens que fogem ao seu tema central. Por várias vezes o autor passou por assuntos que se desviam do propósito fundamental do livro, expressando opiniões normalmente radicais, como é timbre de todas as obras onde se nota essa capacidade (ou vontade?) de desafiar directamente o status quo. Mas não sigamos esse trilho cheio de desvios constantes, e vejamos apenas alguns desses aspectos em que a sua palavra foi ainda mais diferente. Célebres sobre quaisquer outros são os comentários a propósito da escravatura. Fernando Oliveira foi um crítico em tempo e lugar onde não havia vozes ao lado da sua, em circunstâncias idênticas; o que escreveu tem sido citado e glosado à exaustão, mas não é possível deixar de relembrar um passo que João Medina descreveu como um «lucidíssimo texto de uma grande coragem moral e religiosa, escrito em termos de uma franqueza invulgarmente destemida» m : «Os quaes milhor converteremos aa fee, e mays edificaremos nella cõ exemplo de paz e justiça, que com guerra nê tyrania. Tomar as terras, empedir a franqueza delias, cativar as pessoas daquelles que não blasfemão de Jesus Christo, nem resis109 Fernando Oliveira, op. cit., p. 50. Alfredo Botelho de Sousa, «Comentário à 'Arte da Guerra do Mar' do padre Fernando Oliveira», in Fernando Oliveira, op. cit., pp. XXXI-XLI. 111 João Medina, «África Cativa. A escravidão vista e julgada pelos Europeus, nomeadamente pelos Portugueses (sécs. XV e XVI)», in João Medina e Isabel Castro Henriques, A Rota dos Escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro, Lisboa, CEGIA, 1996, p. 48. 110 62 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL tem aa pregação de sua fee, quãdo com modéstia lha pregão/ he manifesta tyrania. E não he nesta parte boa escusa dizer, que elles se vendem hus a outros, que nam deyxa de ter culpa quem compra o mal vendido e as leys humanas desta terra e doutras e cõdenão, porque se não ouuesse compradores não haueria mãos vendedores, nem os ladrões furtarião pêra vender. Assi q nos lhe damos occasiam pêra se enganarem hús a outros e se roubarê, e forçarê, e venderem/ poylos imos comprar o que não fariam se laa não fossemos a isso, nê jamays o fezerã senã despoys que os nos a ysso induzimos. Nos fomos os inventores de tam mao trato, nunca vsado nê ouuido antre humanos. Nam se acharaa nem rezam humana cõsinte, que jamays ouvesse no mundo trato pubrico e liure de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias/ boys ou cauallos e semelhantes» 112. Semelhante ponto de vista era inabitual mas não completamente isolado no seu tempo europeu, como Hugh Thomas lembrou, dando nota da posição especial do escritor português, que considera um antecessor do abolicionismo113. Talvez esta interpretação seja também ela radical: não há uma linha em Fernando Oliveira que assuma a condenação directa da escravatura propriamente dita, mas sim do seu comércio, como bem viu João Medina U4. O alvo principal das duras palavras de Oliveira é o pretexto desse comércio, ou seja, a escravização do corpo como contrapartida pela salvação da alma, assunto que deixava de interessar particularmente a quem comprava escravos mal entrava na sua posse. Subentende-se, se não se entende, até, uma crítica acerba à forma como eram praticados os ensinamentos do cristianismo, querendo isto dizer, por palavras mais chãs, que Oliveira apontava o dedo à hipocrisia dos seus contemporâneos, o que fez em mais de uma ocasião. No outro passo que particularmente o celebrizou, não há espaço para grandes interpretações sobre o que queria dizer: Fernando Oliveira negou a existência do milagre de Ourique, o mito fundador que emerge dos textos escritos a partir do século XIV, e que é agora pela primeira vez posto directa e frontalmente em causa I15. Neste particular não há nada a assinalar senão a ironia mordaz que lhe serve de arma, pondo na boca de D. Afonso Henriques o dito a Jesus Cristo que não tinha tempo de lhe rezar, porque também o servia em pelejar116. Uma última observação é devida às armas defogo,com as quais um homem com experiência da guerra no mar tinha de estar familiarizado. Mas se a guerra é como é isso não significa que o combatente não deva agir com elevação e justiça na defesa de uma causa justa. Depois de ter abordado esse aspecto em 112 Fernando Oliveira, op. cit., p. 24. Hugh Thomas, The Slave Trade. The History ofthe Atlantic Slave Trade: 1440-1870, ed. corrigida, Londres, Papermac, 1998, pp. 126-127. Foi graças ao Prof. João Medina que tivemos conhecimento desta referência de Hugh Thomas a Oliveira, o que agradecemos. 114 João Medina, op. cit., p. 42. 115 V. Carlos Coelho Maurício, «Na manhã fértil - sondando o milagre de Ourique na cultura portuguesa», Ler História, n.° 16, 1989, pp. 3-28; e «Entre silêncio e ouro - sondando o milagre de Ourique na cultura portuguesa», Ler História, n.° 20, 1990, pp. 3-37. 116 Fernando Oliveira, op. cit., p. 112. 113 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 63 lugar próprio, voltou a ele no capítulo sobre os armazéns para verberar as armas de fogo: «Os tiros mays acostumados sam de fogo, inuençam por certo mays infernal que humana, chea de grade crueldade e ódio, mays pa destruir como imigos, q pêra cõtêder sobre justiça» 117. Há no pensamento de Fernando Oliveira uma noção ética da guerra que importa apreciar. Mas a frase pode muito bem traduzir também algum inconformismo pela radical alteração das modalidades tradicionais do seu exercício, pelo abandono de uma prática antiga regida por outras normas (e acrescente-se: muito mais económica em termos de vidas humanas), como o tempo em que viveu ainda sentia, na sequência do choque que a muitos níveis representou o aparecimento das armas de fogo nos campos de batalha europeus 118. 2.5. A enciclopédia do mar Não se sabe a data em que Fernando Oliveira saiu da prisão, como não se sabe muito mais da sua vida nas décadas seguintes. Um ou outro apontamento esparso lança mais dúvidas que certezas, quando o período corresponde à redacção de três obras importantes: a Ars náutica, o Livro da Fabrica das Nãos e a Hestorea de Portugal. Lopes de Mendonça identificou com o autor destas obras o licenciado e clérigo de missa que recebeu uma tença de vinte mil réis anuais de D. Sebastião, em 1565, altura em que estava em Palmeia a ler casos de consciência, ou seja a cursar moral. Esta identificação é a mais problemática de todas, sem dúvida, mas em seu abono cumpre notar um pormenor, que aliás escapou à argúcia de Lopes de Mendonça: é que este ilustre investigador propôs a identificação em causa sem se coibir de urdir tramas complicadas em torno de acontecimentos mal conhecidos, como fez muitas vezes, libertando até um pouco demais a imaginação, mas não reparando que o cargo de revisor em Coimbra dava o nomeado por licenciado e clérigo de missa. Portanto, uma e a mesma pessoa. Ou não. Venâncio Deslandes afirmou a existência de dois Fernando Oliveira perfeitamente destrinçáveis, o segundo o revisor de Coimbra e leitor em Palmeia, preso pela Inquisição por motivos desconhecidos. Contra esta hipótese milita a notória simpatia do autor da Grammatica por Quintiliano e a carta de Jerónimo Cardoso em que este o felicita pela recuperação do grande retórico, e pela qual ficamos a saber que o destinatário lia cursos de retórica; cumpre todavia 117 118 Fernando Oliveira, op. cit., p. 41. Uma outra dimensão deste verdadeiro distúrbio da ordem estabelecida tem uma raiz social, conforme deu conta Jacob Burckhardt no seu estudo clássico sobre o Renascimento: em Itália, o condottieri Paulo Vatelli mandava cortar as mãos e vazar os olhos aos arcabuzeiros inimigos que capturava, «pois lhe parecia monstruoso que um valente e nobre cavaleiro fosse ferido e morto por um vulgar e vil infante» (O Renascimento Italiano, trad. de António Borges Coelho, Lisboa, Presença, 1973, p. 83). 64 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL Fig. 3 - Desenho do casco de um navio redondo, na Ars Náutica, e assinatura autografa de Fernando Oliveira. ter presente que, ao contrário do que é norma nas gramáticas renascentistas e acontece com as de Nebrija e Barros, Oliveira omite precisamente a retórica na sua obra U 9 . Não há que esquecer este pormenor, embora só por si não chegue para contrariar a hipótese mais forte de ser uma só pessoa a estar em causa, porque de facto seria uma enorme coincidência que o segundo Fernando Oliveira fosse denunciado à Inquisição pelo pai do capitão de galés a quem o primeiro dedicava a Arte da Guerra. Encontramo-lo portanto em Palmeia, de volta à vida religiosa, eventualmente, mas por pouco tempo, ao que se pode supor. No que passou a ser o mais importante contributo publicado desde o livro de Lopes de Mendonça sobre a biografia de Fernando Oliveira, Léon Bourdon deu conhecimento da parte da correspondência do embaixador de Castela em Lisboa, D. Hernando Carrillo de Mendoza, em que este presta contas ao seu monarca dos contactos diversos que Oliveira manteve ao longo dos anos de 1566 e 1567 com os meios navais franceses, os quais, segundo o próprio teria confessado ao embaixador, tinham tentado aliciá-lo para entrar novamente ao seu serviço 120. Saint Blancard podia ter sido um dos interessados, já que morreu em 1559 e Oliveira parece ter-se referido a contactos longos no tempo, 119 Amadeu Torres e Carlos Assunção, op. cit., p. 19. 120 Léon Bourdon, op. cit., pp. 439-453. A documentação em causa encontra-se no Archivo General de índias, Estado, Legado 385, sem numeração dos documentos: Léon Bourdon extractou os documentos que inclui no artigo citado, mas pudemos verificar caso a caso que, como seria de esperar, não omitiu qualquer passagem relevante. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 65 a avaliar pelo que escreveu o embaixador; e uma das coisas de que tomou nota foi precisamente da história do embarque em 1545, que resultou de um convite daquele 121. Das peripécias diplomáticas que se seguem pouco há a dizer aqui, excepto que, no fim de tudo, instado por um lado e outro, Fernando Oliveira acabou por prometer a franceses e espanhóis que entraria ao seu serviço, mas parece ter-se quedado por Portugal, tolhido por uma doença ou pretextando-a 122. Poucos anos depois escreve a mais importante e completa das suas obras, tanto pelo volume, como pela extensão temática, como ainda pelo cuidado que o manuscrito evidencia, ilustrado por belas figuras de instrumentos náuticos e as duas únicas cartas que se lhe conhecem 123: referimo-nos a Ars náutica, manuscrito que se guarda na Biblioteca da Universidade de Leiden, como já foi dito, e se mantém inédito até hoje. Embrenhado em suas múltiplas ocupações na terra e no mar, como disse o próprio na altura em que se disputou o seu concurso como piloto, Fernando Oliveira foi compondo o manuscrito no decurso ou pelo final dessa década de 1560: seria uma das tarefas que lhe tomavam o tempo? Seguro é, sobre a história da Ars, que na realidade nada se sabe sobre os motivos, a ocasião e a oportunidade que levaram à sua redacção. A retoma de alguns dos assuntos versados na Arte da Guerra, o desenvolvimento dado às matérias, o carácter global dos temas - que praticamente tocam todos os aspectos técnicos da navegação - e, sobretudo o facto de ter sido escrita em latim, indiciam o propósito de chegar ao círculo específico dos eruditos. Tal nunca veio a acontecer: de todas as obras que escreveu esta foi indubitavelmente a menos visível, tanto no seu tempo como em qualquer momento até aos nossos dias. Nada sabemos do que sucedeu ao manuscrito durante cerca de um século, e muito menos como saiu de Portugal. Não é impossível que isso tenha acontecido pela mão do próprio autor (se efectivamente respondeu a algum dos convites que lhe vieram de França e Espanha), como pode ter sido vendido ou cedido depois da sua morte para alguém interessado nos assuntos que nele se tratam. Em algum momento mais tarde chegou à posse de um homem que estava nestas condições e para quem foi seguramente de utilidade: referimo-nos a Isaac Vos, dito Vossius. Neto de um teólogo distinto, sétimo filho de Gerard John Vos (1577-1649), famoso humanista tido como oráculo do saber clássico e professor de História na recentemente fundada Universidade de Amesterdão, Vossius nasceu em Leiden em 1618, tendo recusado suceder a seu pai em 1649, não obstante até lhe 121 Idem, ibidem, p. 442. Idem, ibidem.p. 448. 123 V. «Fernando Oliveira, duas cartas na 'Ars Náutica'», in Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, Portugaliae Monumenta Cartographica, reprodução fac-símile da edição de 1960, vol. V, Lisboa, IN-CM, 1987, pp. 9-10 e Estampa 525 A & B. Também reproduzidas in Pierre Valière, op. cit., pp. 217-218. Estas imagens (ambas polícromas, o que não se percebe nas reproduções em causa) encontram-se nos fls. 42 e 47 do manuscrito original. l22 66 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL ter sido prometido um aumento de salário, preferindo uma vida de estudo e de viagens à estabilidade da cadeira universitária. Reputado humanista, considerado um grande sabedor de latim e grego, a sua reputação firmou-se sobretudo como editor e comentador de textos clássicos. Depois de uma breve estadia na Suécia, ao serviço da rainha Cristina (1649-1650), de quem foi professor de grego e bibliotecário, segue-se um período de dez anos na Holanda, durante o qual produz a melhor e mais conhecida parte da sua obra 124. Feito membro da Royal Society em 1664, tido por Henry Oldenburg como um dos mais famosos filósofos do tempo 125, Vossius veio a fixar-se em Londres a partir de 1670, passando em Inglaterra o resto dos seus dias. Embora se tivesse notabilizado sobretudo no domínio das letras, deixou dois trabalhos que aqui nos interessam particularmente. O De motu marinum et ventorum, 1663, com uma versão inglesa em 1677, tratou um tema que não mereceu muitas obras que lhe fossem especificamente dedicadas no século XVII126; Vossius foi alvo de várias críticas - talvez também devidas ao seu anticartesianismo -, embora o livro revele informação sólida e conhecimento do meio marítimo 127. O outro tema que lhe interessou neste âmbito, popular entre os humanistas, foi o da propulsão rémica: numa colectânea publicada durante os seus últimos anos de vida incluía-se um opúsculo intitulado «De Triremium et Liburnicarum Construcione» 128. Foi conhecido embora não muito divulgado 129, escapando inclusive à atenção de autores recentes 13°. 124 Margaret Deacon, «Introduction» a Isaak Vossius, A treatise concerning the motion of the seas and winds (1677). De motu marinum et ventorum (1663), facsimile reproductions, Delmar, N.Y., Published for the John Cartes Brown Library by Scholar's Facsimiles and Reprints, 1993, p. 12. 125 Secretário da Royal Society, e uma das suas personalidades mais marcantes, Henry Oldenburg foi o fundador das Philosophical Transactions, que viriam mais tarde a ser o órgão periódico científico daquela Sociedade, e porventura a mais importante publicação do género na Europa dos séculos XVII e XVIII. Nesta revista colaboraram vários portugueses, com destaque para os relatórios de observações astronómicas publicados pelo oratoriano João Chevalier nos meados de Setecentos. 126 V. para o efeito Thomas R. Adams e David W. Waters, English Maritime Books Printed Before 1801 Relating to Ships, Their Construction and Their Operation at Sea, Providence, Rhode Island, The John Cárter Brown Library / Greenwich, The National Maritime Museum, 1995, sobretudo pp. 594 e ss. 127 Margaret Deacon, op. cit., p. 19. 128 Issac Vos, «De Triremium et Liburnicarum Construcione» in Variorum Observationum Liber, Londini, Prostant apud Robertum Scott Bibliopolam, 1685, pp. 95-139. Trata-se de um livro que inclui uma extensa primeira parte sobre História Clássica, outro tema bem ao gosto dos humanistas, a que se seguem sete pequenos opúsculos sobre assuntos vários, incluindo-se neste o citado. 129 As concepções de Vossius sobre a propulsão rémica foram discutidas por James Smith of Jordan Hill, The Voyage and Shipwreck of St. Paul with Dissertations on the Life and Writings of St. Luke, and the Ships and Navigation of the Ancients, Fourth edition, revised and corrected by Walter E. Smith, Londres, Longmans, Green, and Co., 1880, sobretudo nas pp. 222-223. 130 Não aparece referenciado por Adams e Waters, op. cit.; Pierre Valière cita-o apenas a partir de Graevius (Le Voyage de Magellan raconté par un homme qui fut en sa compagnie. Édition critique, traduction et commentaire du texte manuscrit recueilli par Fernando Oliveyra, Paris, FCG-CCP, 1976, p. 206). Ao contrário v. «Vossius, Isaac», in Dictionary of National Biography, ed. by Sidney Lee, vol. LVIII, Londres, Smith, Elder & Co., 1899, p. 395. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 67 Vossius foi ainda celebrado como um incansável coleccionador de livros e manuscritos, para o que se deslocou a locais como Paris ou várias cidades em Itália. Nos Fasti de Oxford vem mesmo escrito que acumulou a melhor biblioteca privada do mundo, contando-se nela um total de 762 manuscritos 131. A Ars náutica de Fernando Oliveira contava-se entre eles, e uma de duas hipóteses poderá com alguma plausibilidade explicar as circunstâncias da sua aquisição. A primeira, a eventual ida de Oliveira para França justamente na altura em que escrevia a sua obra, que bem poderia ter oferecido, vendido ou deixado aí (por exemplo: entregue a um impressor para uma edição que nunca se concretizaria). A ser assim Vossius poderia tê-la obtido numa das viagens que fez a Paris com o propósito declarado de comprar livros e manuscritos. Em rigor, nada nos diz que Oliveira escreveu a Ars em Portugal; pode muito bem tê-lo feito em França ou em outro lugar qualquer. O respectivo conteúdo mostra que não teria sido escrita como uma espécie de paga ou justificação para a contratação do piloto português, de quem se requeria a participação em viagens que não tinham muito a ver com o tipo de navegação a que se refere a Ars, cuja leitura indicia também que esta abertura interpretativa poderá será algo forçada; as virulentas críticas a Pedro Nunes entendem-se melhor se pensarmos que o manuscrito se escrevia em Portugal e era para ser lido em primeiro lugar por homens ligados às actividades marítimas portuguesas. De qualquer maneira permanece a hipótese inicial: a ida de Fernando Oliveira para França, durante ou a partir dos finais da década de sessenta, levando consigo o manuscrito, que lá teria sido deixado por motivo desconhecido, e a sua posterior aquisição por Vossius no decurso de uma das suas viagens. A segunda hipótese é, naturalmente, a compra em Inglaterra, depois de 1670. Fosse qual fosse o destino que mereceu durante esse século que medeia entre a redacção e o momento em que Vossius o adquiriu, não custa a crer que possa ter passado de mão em mão, quiçá de país em país, entre especialistas ou simples interessados na vida marítima, cuja curiosidade tinha muito por onde se alimentar em páginas repletas de novidades e juízos polémicos. Como tivemos ocasião de ver, é forte a presunção de que Fernando Oliveira deixou boas referências em Inglaterra, embora seja difícil admitir que o facto tenha relação directa com o destino da Ars. Nesta altura devemos ter presente que Nicolaas Witsen copiou os desenhos da Ars em livro publicado em 1671 132, o que, por seu turno, coloca outras inter131 Anthony A. Wood, Athenae Oxoniensis. An Exact History of ali the Writers and Bishops Who Have Had Their Education in the University of Oxford, to Which Are Added the Fasti, or Annals ofthe Said University, A new edition, with additions, and a continuation by Philip Bliss, vol. III, Londres, F. C. and J. Rivington, et ai, 1817, e vol. IV, Londres, Lackington, et ai, 1820, com várias referências a este autor (III, cols. 1004 e 1143, e IV, cols. 244 e 453). 132 Nicolaas Witsen foi um dos directores da Câmara de Amesterdão da Companhia das índias Orientais neerlandesa, e portanto um dos seus membros mais influentes. Escreveu obras importantes sobre vários assuntos diferentes, que lhe garantiram um lugar na história intelectual dos Países Baixos no século XVII: v. P. J. A. N. Rietbergen, «Witsen's World: Nicolaas Witsen 68 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL ll.-ji. Pitf «S Fig. 4 - Desenhos da Ars Náutica de Fernando Oliveira reproduzidos por Nicolaas Witsen, Aeloude en hedengaegsche scheeps-bouw en bestier, de 1671: os desenhos estão invertidos em relação ao original. rogações: teria tido acesso ao manuscrito na Holanda, já na posse de Vossius? Teria sido ele o anterior proprietário? Ou tê-lo-ia conhecido, podendo manusear a obra antes de Vossius a ter adquirido em Inglaterra depois de 1670? São muitas perguntas para as quais não há resposta. O certo é que em Setembro de 1710 a Universidade de Oxford propôs-se adquirir a biblioteca de Isaac Vossius por 3000 libras, mas no mês seguinte foi vendida por 36000 florins para a Universidade de Leiden 133, em cujo fundo de reservados perma(1641-1717) between the Dutch East índia Company and the Republic of Letters», Itinerário, Leiden, vol. IX, n.c 2, 1985, pp. 121-134. Com trinta anos de idade publicou o primeiro tratado de arquitectura naval escrito no seu país, onde reproduziu as imagens da Ars náutica: Aeloude en hedengaegsche scheeps-bouw en bestier: Waer in wijtloopigh wert verhandelt, de wijze van sheeps-timmeren, by Grieken en Romeynem:..., Amesterdão, Casparus Commelijn, Broer en Jan Appelaer, 1671. 133 Dictionary of National Biography, vol. e p. citados. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 69 nece desde então a Ars Náutica 134, dada por perdida durante muito tempo e revelada à historiografia portuguesa apenas em 1960. Oliveira refere-se-lhe directamente logo no Prólogo do Livro da Fabrica das Nãos: «Da qual ninguém escreueo ateegora, em nossa lingua, nem grega, nem latina, nem outra algua que eu sayba: nem ha outra escriptura que trate desta materea, soomente a segunda parte da minha arte da nauegação, que escreui em lingua latina» 135. E mais à frente acrescenta: «os homens sempre nauegarão desdo começo do mundo, como prouamos no prólogo da premeyra parte desta arte em latim» 136. Lopes de Mendonça deu de imediato conta de que estava por apurar o paradeiro do trabalho anterior àquele que tratava então de publicar, uma obra de maior vulto onde Oliveira tratava da arquitectura naval na segunda parte, desconhecendo-se o eventual conteúdo das restantes, assumindo o insucesso das pesquisas empreendidas no sentido de a localizar: «Quanto ao manuscripto, se ainda existe, não logrei descobrir-lhe o paradeiro em nenhum dos catálogos de bibliothecas que me foi dado consultar. Talvez que um acaso providencial ainda o depare aos olhos de qualquer observador consciencioso» 137. O alerta estava dado de forma inequívoca, mas não serviu de muito. O que acontece depois é deveras extraordinário: em dois anos sucessivos (1937 e 1938), Marcus de Jong 138 e o Visconde de Lagoa 139 citam o códice onde se encontra o manuscrito, bem como o seu título. Em ambos os casos se tratava de estudos sobre a viagem de Magalhães; os dois extensos volumes deste último autor referiam o assunto exaustivamente, enquanto o opúsculo de Jong tratava apenas da primeira publicação de um relato até então desconhecido dessa viagem, cujo autor é ignorado. Contudo identifica-se a grafia do dominicano português, que o escreveu a partir do testemunho de um dos sobreviventes da viagem 140. 134 A cota «cod. VOSS. LAT. F . 41», indica q u e se trata d e u m códice latino in folio, p e r t e n ç a d e Vossius. 135 F e r n a n d o Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, B N L - Reservados, cod. 3702, p . 3. 136 Idem, ibidem, p. 7. 137 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 76. 138 Marcus de Jong, op. cit., 1937. 139 Visconde d e Lagoa, Fernão de Magalhãis (A sua vida e a sua viagem), 2 vols., Lisboa, Seara Nova, 1938. 140 Sobre este relato v. «Relato da viagem de Fernão de Magalhães», texto modernizado e comentário por Francisco Contente Domingues, in Biblioteca da Expansão Portuguesa, dor. de Luís de Albuquerque, vol. 1: As Grandes Viagens Marítimas, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 99-126, nomeadamente o comentário nas pp. 115-126: supomos que o relator da viagem que Fernando Oliveira passou à escrita possa ter sido Gonzalo Gomez Espinoza, o capitão da «Trinidad». 70 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL Todos os dados relevantes estão na primeira das quatro escassas páginas de comentários com que Marcus de Jong antecedeu o documento: «A Viagê de Magalhães que hoje... pela primeira vez publicamos, pertence à colecção de manuscritos reunida no século XVII pelos cuidados de Isaac Vossius, eruditíssimo bibliófilo holandês. O Roteiro, anónimo, escrito provavelmente na segunda metade do século XVI, ocupa as fls. 239-254 (numeração moderna) dum códice (Cód. N" 41 Cat. Voss. Lat. Fo. Bibl. Univ. Lugduno-Batavae.), onde se encontra também Femandi Oliverii de Sancta Columba Ars Náutica» 141 . Nem Jong nem o Visconde de Lagoa se aperceberam do facto de terem entre mãos os dados que revelavam o paradeiro da Ars náutica, cuja importância resultava clara do livro de Lopes de Mendonça; nem tão pouco qualquer dos seus leitores o assinalou posteriormente. A localização da obra só veio a ser conhecida da historiografia portuguesa por um artigo de Luís de Matos publicado em 1960 142, dando finalmente conta de ter sido localizada no decorrer dos trabalhos preparatórios da Portvgaliae Monvmenta Cartographica, onde se publicaram as duas únicas cartas geográficas conhecidas da autoria de Fernando Oliveira. Um atraso notável, convenhamos. Passavam então 244 anos sobre o registo impresso da localização do manuscrito, exarado no Catálogo da Biblioteca da Universidade de Leiden logo a seguir à sua entrada no espólio desta instituição; a descrição, correcta e suficientemente extensa para permitir identificar de imediato o interesse do códice em causa, vem nestes termos na rubrica «Bibliothecae Quondam Vossianae mss Latini...»: «Ferdinandi Oliverii de Sancta Columba ars náutica, distincta in três partes. I de quibusdam instrumentis ad primam nautarum institutionem conducentibus. II de nauipegia, & ejus adminiculus. III de officio nautarum. Viagem de Fernão do Magalhanes. In charta.» 143 Passando esta menção totalmente desapercebida, passou também a que revelava a existência de dois comentários, aliás com erro manifesto 144. 141 Marcus de Jong, op. cit., p. 5; como se vê, não ocorreu ao autor que a mão que escrevera a Ars e a Viagem era uma só. Por sua vez, ao arrolar todas as versões dos relatos da viagem de Magalhães, o Visconde de Lagoa citou parte deste trecho de M. de Jong, incluindo a totalidade das referências relativas à Ars, na «Notícia Bibliográfica» inclusa no Livro II (II volume) da sua obra (v. a p. 286). 142 Já citado acima: Luís de Matos, «A Ars Náutica de Fernando Oliveira», Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, vol. I, 1960, pp. 239-251. Não se pode concordar com o parecer de Altino Magalhães Gomes, segundo o qual este artigo «faz crer que o precioso documento tem relativamente pouco valor histórico» («Acerca da 'Ars Náutica'», Revista de Marinha, n.° 752, 1986, p. 35). 143 Catalogus Librorum Tam Impressorum Quam Manuscriptorum Bibliothecae Publicae Universitatis Lugduno-Batavae, Lugduni Apud Batavus, Sumptibus Petri Vander Aa, Bibliopolae, ut & Academiae & Urbis Typographi Ordinarii, 1716, p. 372. 144 Na p. 492 do Catálogo citado na nota anterior referenciam-se dois outros títulos (incompletos e incorrectos) que o índice final diz explicitamente, com erro evidente, serem relativos a Fernando Os NAVIOS DO MAR OCEANO 71 Os bibliófilos portugueses não tiveram de certeza acesso a qualquer exemplar do catálogo de Leiden, pois a detalhada notícia de Inocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário Bibliográfico Português, não faz menção a este manuscrito 145, enquanto Ricardo Pinto de Mattos, já se viu, desconhece até a existência de exemplares da Arte da Guerra. O mesmo não aconteceu com a historiografia alemã. A reputação da Universidade de Leiden e a proximidade geográfica explicam que já no século XIX se tivesse dado conta da existência de uma versão da viagem de Fernão de Magalhães diferente das restantes, que foi o que chamou desde logo a atenção dos estudiosos, um dos quais, o reputado bibliófilo P. A. Tiele (1834-1889), deixou um apontamento manuscrito no códice 146. A partir de Tiele, os registos da Biblioteca mostram que o códice foi manuseado por um número crescente de utilizadores 147; Vogel e Schuck, no princípio do século, e Miiller mais recentemente, publicaram artigos a propósito da arte da navegação ou da viagem de Magalhães 148. Em finais da década de sessenta gizou-se em Portugal o plano de publicar a Ars, em edição crítica, no quadro de actividades do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical 149 . O projecto gorou-se 15°, razão pela qual a mais notável das obras portuguesas de marinharia (no sentido lato do termo) do século XVI permanece ainda inédita. Oliveira de Sancta Columba: Opus Valerii Maximi cum nova ac praeclara Oliverii Arzignanensis viri praestantissimi examinata interpretatione, Impressum Venetiis arte & impensis Bernardini de Bernalils anno salutis M.CCCC.LXXXVIII, die VIII Novembris; e Explicit opus Valerii Maximi cum corrimento Oliverii Arzignanensis, Mediolani impressum apud Alexandrum Minutianum, M.CCCCC.V. Tratam ambos de história clássica e não dizem obviamente respeito à Ars nem ao seu autor, que tão pouco era nascido nas respectivas datas de impressão. 145 Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, reed., vols. II, IX e XV, Lisboa, IN-CM, 1973, pp. 289-290, 221 e 129, respectivamente. 146 Está reproduzido no opúsculo de Marcus de Jong, op. cit., pp. 5-6. Foi esta anotação que induziu os interessados no relato a pensar que teria sido recolhido de um testemunho oral. 147 Aquando da nossa primeira visita à Secção de Manuscritos da Biblioteca da Universidade de Leiden, em 1988, o seu Director na altura, o Prof. P. F. J. Obbema, teve a gentileza de nos mostrar todas as fichas de requisição do códice desde a consulta efectuada por Tiele. 148 Walther Vogel, «Ein neuentdecktes Lehrbuch der Navigation und des Schiffbaues aus der Mitte des 16. Jahrhunderts», Hansische Geschchtsblátter, vol. 17, Leipzig, 1911, pp. 370-374; idem, «Ein unbekannterBericht von Magelhães' Weltumsegelung», Marine-Rundschau, 1911, p. 454; A. Schuck, « Zur Entwickelung des' Jakobsstabes'», Mitteilungen der Geograph. Gesellschaft in Múnchen ,8,1913, pp. 2-7; I. Múller, «Die Schiffshygiene in einem lateinishen Manuskript des 16. Jahrunderts uber Schiffahrtskunde(Arsnautica)»,Forsc/?Mng-Praxts-ForíW/du)ig,n.07,Dusseldorf, 1966, pp. 234-240. 149 Segundo as designações actuais. 130 Inicialmente anunciado como uma edição a cargo de Avelino Teixeira da Mota e Pimentel Barata (segundo a menção nas badanas dos primeiros volumes da série Memórias publicadas por aquele Centro), o projecto veio a ser assumido também por Luís de Albuquerque, que anotaria a primeira parte, Pimentel Barata a segunda e Teixeira da Mota a terceira. Estes dois investigadores falecerem antes de poderem iniciar o trabalho, e o que ocupou o último Verão de Luís de Albuquerque antes de o acometer a doença que se revelaria fatal, em Outubro de 1991, foi justamente a revisão da tradução da primeira parte. Essa tradução tinha sido levada a cabo pelos padres Rodrigo Esteves e Manuel de Figueiredo nos inícios da década de 1970, por 72 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL A espaços, entretanto, alguns autores portugueses foram publicando estudos sobre aspectos parcelares 151 . Numa das mais prestigiadas revistas internacionais da especialidade saiu em 1987 e 1988 uma série de três artigos, especificamente dedicados a aspectos da arquitectura naval tratados no manuscrito de Leiden 152. Recentemente retomou-se o projecto de publicação, condição essencial para garantir à opus magnum de Oliveira a projecção devida. A questão a considerar em seguida diz respeito à data da composição. As obras manuscritas de Fernando Oliveira colocam problemas sérios de da tacão, como é normal nestas circunstâncias: as referências dos textos não são suficientemente precisas para nos permitir apontar hipóteses sem grandes margens de erro, e a análise dos códices não é tão afirmativa quanto se desejaria, por via de regra. A Ars náutica nunca suscitou muitas dúvidas, depois de ter sido datada de 1570 por Luís de Matos, que teve ocasião de consultar directamente o manuscrito: «Fernando Oliveira declara na Ars náutica que este trabalho foi composto em 1570 ('Desde aquele tempo até ao presente, isto é, o ano de 1570')» 153- A partir daqui 1570 tornou-se uma data geralmente aceite, aparecendo múltiplas vezes citada em trabalhos historiográficos 154; com duas excepções. Sem qualquer alusão a esta data avançada por Luís de Matos 155, Pierre Valière localizou a redacção do «manuscrito de Leiden» entre 1542 e 1563, comentando desta forma uma referência ao Japão no texto da Viagem de Magalhães: conta da edição que já então se planeava, e o original dactilografado mostra algumas correcções introduzidas pelo punho de Teixeira da Mota. A publicação da Ars náutica é um dos próximos projectos editoriais da Academia de Marinha. Apesar da consulta feita em Leiden, o nosso trabalho foi grandemente facilitado pelo facto do Prof. Luís de Albuquerque, enquanto Director do Centro, nos ter facilitado a cópia da tradução e o empréstimo das fotografias do original, que continuámos a usar com permissão da sua sucessora no cargo, a Dr.a Maria Emília Madeira Santos. 151 Por exemplo: João da Gama Pimentel Barata, A «Ars Náutica» do Pe. Fernando Oliveira. Enciclopédia de conhecimentos marítimos e primeiro tratado científico de construção naval (1570), Lisboa, Centro de Estudos de Marinha, 1972; Francisco Contente Domingues, Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: os tratados de Fernando Oliveira, Lisboa, IICT, 1985; idem, «A obra técnica do Pe. Fernando Oliveira (Alguns aspectos)», Arquivo Histórico Dominicano Português, vol. TV/2, Porto, 1989, pp. 209-217; Altino Magalhães Gomes, «Acerca da 'Ars Náutica'», Revista de Marinha, n.° 752, Lisboa, 1986, pp. 33-37. I52 Eric Rieth, «Les écrits de Fernando Oliveira», Neptunia, n.° 165, Paris, 1987, pp. 18-27, idem, «Remarques sur une série de illustrations de YArs Náutica (1570) de Fernando Oliveira», Neptunia, n.° 169, Paris, 1988, pp. 36-43; idem, «Un système de conception des carènes de Ia seconde moitié du XVIe. siècle», Neptunia, n.° 166, Paris, 1987, pp. 16-31. 153 Luís de Matos, op. cit., p. 240. 154 Como sucede com Pimentel Barata ou Eric Rieth, que citamos apenas a título de exemplo. Pela nossa parte temos preferido circa 1570, desde que pudemos analisar o manuscrito, pelas razões que se aduzirão à frente. ' 5 5 Cujo artigo é todavia citado na bibliografia do seu livro. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 73 «Cette dernière allusion au Japon nous permet de da ter, du moins approximativement, le manuscrit de Leiden. Celui-ci aurait été écrit après 1542 et avant 1563 date de Ia parution du tome II de Ia Ásia de João de Barros. Car Fernando de Oliveyra, auteur du prologue de ce récit du Voyage de Magellan, et qui connaissaít personnellement João de Barros, pour avoir servi, chez lui, en qualité de précepteur, n'aurait pas manque de faire allusion à cette oeuvre» 156. Esta proposta de datação não se aplica apenas ao relato em apreço, como se nota de uma passagem da Introdução à edição do texto: «On sait que 1'oeuvre dans son ensemble, 1'Art Nautique et Le Voyage de Magellan, date du milieu du XVF siècle, soit une trintaine d'années après le retour de 1'éxpedition» 157. Em face do códice, é difícil aceitar que estas duas partes possam ser liminarmente datadas do mesmo período, sem justificação adequada. E o argumento evocado não convence por duas razões distintas: por que razão havia Fernando Oliveira de citar forçosamente João de Barros, em qualquer circunstância? Para mais, quando este já tinha omitido o seu nome na gramática que escreveu anos depois da sua? Posteriormente, o cruzamento das constantes remissões que Fernando Oliveira faz entre os seus escritos mereceu particular atenção a Luís Filipe Barreto, permitindo discutir novamente as datas hipotéticas da tríade de obras de marinharia 158: a Arte da Guerra, a Ars e o Livro da Fábrica das Naus, entendidas como resultado da partição em três momentos distintos de um interesse global que se manifestou em diversas vertentes, mas todos confluentes no mesmo propósito. Já vimos atrás que tal prática não é exclusiva dos trabalhos de marinharia, não implicando forçosamente que o autor tenha de facto redigido as obras a que alude, ou que o tenha feito nos termos em que o afirma, pelo menos de acordo com o estado actual dos nossos conhecimentos: as repetidas remissões da Grammatica para obra similar mais desenvolvida são disso prova suficiente. Antes da discussão dos novos argumentos que equacionam as datações tradicionais, julgamos fundamental ter presente uma outra ressalva: o Livro da Antiguidade do Reino de Portugal foi iniciado, e depois interrompido, para dar lugar a uma obra em tudo similar (nos conteúdos e nos propósitos), a Hestorea de Portugal, mais desenvolvida e estruturada. Uma obra, note-se, escrita de novo desde o princípio, e não uma reescrita ou aproveitamento parcial do que já tinha sido feito, não obstante - insista-se - se repitam conteúdos e objectivos. Neste caso a «primeira versão», que o é de facto, chegou até nós. Sem o podermos afirmar com segurança, nada nos impede também de avançar a hipótese de se ter verificado o mesmo com as obras de marinharia, pelo menos com a Ars, já que, se com o Livro da Fabrica das Nãos o manuscrito evidencia por igual 156 Pierre Valière, op. cit., p. 149 n. [6]. Sublinhado nosso. Idem, ibidem, p. 4. Sublinhados nossos. 158 Luís Filipe Barreto, op. cit., pp. 616-618. 157 74 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL uma permanente intervenção do autor, bem visível no número de rasuras feitas, o todo é notoriamente mais uniforme. As intertextualidades assinaladas por Luís Filipe Barreto (para o que releva no tocante à datação da Ars) dizem respeito a duas citações da Arte da Guerra do Mar: «como mays per extenso pratiquey na Arte de nauegar e fabrica das nãos. Porem sem embargo de jaa laa o ter dicto...» 159 «do que tudo na arte da nauegação fiz comprida relaçam» 160. O que suscitou o seguinte comentário: «O tipo de intertextualidades expressa já uma organização sistemática das duas obras manuscritas... Na década de cinquenta, a Ars Náutica, em título português oscilante (Arte da Navegação e Arte de Navegar) e a Fábrica das Nãos, já existem em forma organizada e são chamadas pelo seu autor a desempenhar um papel de textos de Marinharia mais desenvolvidos a propósito de questões problemáticas especializadas» 161. A nosso ver estão aqui presentes duas questões diferenciadas: o grau de elaboração das obras citadas antes de 1555, e a data em que terão sido compostas na forma que conhecemos. A separação destas interrogações permitir-nos-á porventura chegar a uma resposta única, possível para ambos os casos. Não tendo sido antes notado que Oliveira tinha em 1555 pelo menos o esboço de um livro anterior (ou até dois), que retoma a propósito de um determinado assunto, não obstante «jaa laa o ter dicto» 162, fica por se saber se podemos falar de livros organizados sistematicamente. O que foi prática documentada a propósito das outras obras, o «título português oscilante», como escreveu L. F. Barreto, e, sobretudo, o teor exacto do primeiro dos dois passos citados acima da Arte da Guerra do Mar, levam-nos a concluir que estaremos perante uma situação que poderá ser definida do seguinte modo: a) em algum momento antes de 1555, Fernando Oliveira encetou a redacção - muito provavelmente em português - de uma única obra que continha duas partes fundamentais, a saber, a arte da navegação e a fábrica das naus; 159 Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 73. Idem, ibidem, p. 97. 161 Luís Filipe Barreto, op. cit., p. 617. 162 No «Comentário Preliminar» à edição de 1937 da Arte da Guerra, Quirino da Fonseca escreveu a dado passo que a Ars se conhecia apenas de uma referência no Prólogo do Livro da Fábrica das Naus. Mais que fruto de uma desatenção, isso deverá querer apenas dizer que Quirino da Fonseca não considerou que os dois trechos que estão aqui em discussão remetessem efectivamente para essa Arte de Navegar então dada como perdida. 160 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 75 b) essa obra não terá sido concluída, tendo-se-lhe sucedido a preparação da Arte da Guerra do Mar, impressa em 1555, na qual se retomam assuntos já tratados naquela, como sejam os relativos aos navios de propulsão rémica; c) posteriormente a 1555, Fernando Oliveira, tal como já poderia ter feito com a Grammatica e fez atestadamente com a Hestorea de Portugal, deixou de lado essa primeira versão em favor da redacção de uma obra mais extensa e completa e, sobretudo, destinada a um público erudito, escolhendo para isso o latim. Assim se justificaria que às duas partes anunciadas se juntassem outras tantas, ou seja, aquela que é de facto a terceira parte da obra, «Nautarum Officia», e o «Libellus de classe armata et bello nauali», que conclui a Ars ao jeito de adenda ou opúsculo distinto do seu corpo principal. Duas componentes que obviamente não estavam previstas na versão inicial: a terceira parte retoma pontualmente aspectos apenas aludidos na Arte da Guerra, desenvolvendo-os extensa e autonomamente; enquanto o «Libellus...» é na realidade um texto que abreviadamente dá conta do que ficara escrito no tratado da guerra naval. Na forma final, que hoje conhecemos, tudo aponta para que a Ars revele sobretudo o desejo de tratar sistemática e coerentemente um conjunto alargado de temas relativos à vida no mar, incompleta ou apenas parcialmente focados em trabalho anterior. Ao que se juntou o «Libellus...», aproveitando a circunstância de a Arte da Guerra já ter sido impressa, para conferir à obra a feição pretendida. Quando é que Fernando Oliveira escreveu o seu tratado enciclopédico, exactamente? É uma questão de resposta impossível. Estabelecido por Luís de Matos que pelo menos um passo data de 1570, será esta data válida para todo o manuscrito? As citações dos autores contemporâneos, susceptíveis de nos oferecerem balizas de referência de acordo com as cronologias biobibliográficas, de tão raras acabam por pouco ou nada adiantar. O caso mais interessante reporta-se a uma situação que não é inédita na obra de Oliveira, ou seja, a reclamação da primazia dos seus inventos; ao contrário do que sucedeu com Pedro Nunes, frontalmente acusado de se ter apropriado de uma ideia sua relativa a um instrumento náutico (muito embora o nome do cosmógrafo nunca seja citado, é violentamente criticado em várias ocasiões, como se dirá à frente), Oliveira demarca pela diferença um invento de Gema de Frísia similar ao seu 163: 163 Gemma Reynierszoon nasceu a 8 de Dezembro de 1508, na localidade de Dokkum, na Frísia (daí o seu nome ter sido latinizado para Gemma Frisius) e faleceu a 25 de Maio de 1555. Teve uma notável actividade como matemático e cosmógrafo em Lovaina, e em 1529 publicou o seu primeiro livro, que nos importa aqui. A sua obra mais importante data do ano seguinte, e leva por título Deprincippis astronomiae & cosmographiae. Notabilizou-se ainda como professor, tendo conhecido como alunos pelo menos duas figuras cuja reputação ultrapassaria a sua própria: o inglês John Dee e Gerard de Kremer, que o assistiu no desenho de um par de globos e se celebrizaria mais 76 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL «O presente invento, por modesto que seja, mas todavia não de desprezar, é nosso, não se confundindo com o que Gema da Frísia expôs na Segunda parte acerca do uso da esfera» 164. Oliveira pôde sem dificuldade compulsar uma edição da Cosmografia de Pedro Apiano devida ao cosmógrafo frísio, editada pela primeira vez em 1529 165, que alcançou grande reputação ao tempo: comprovam-no as dezoito edições feitas em vida do comentador, ou seja, até 1555 166. O códice onde se insere a Ars Náutica parece abonar a ideia de um trabalho em permanente reelaboração, embora resultante de núcleos algo diferenciados 167: o simples compulsar do manuscrito evidencia uma relativa uniformidade de escrita nas primeira e segunda partes (correspondentes aos fls. 1 a 174v), em tudo similares ao relato da viagem de Magalhães (fls. 238-255): a caligrafia é um pouco menos cuidada do que o habitual, a tinta está algo esvaída, mas o papel é basicamente da mesma dimensão (na realidade um pouco mais pequeno a partir do fl. 151). Outro tanto não sucede com a terceira parte (a que dizem respeito os fls. 175-237v), onde a caligrafia do autor é mais regular e «limpa», por assim dizer, a tinta mais escura e o formato do papel diferente. Mesmo em relação a esse primeiro conjunto de cadernos (até ao fl. 174) é possível distinguir algumas diferenças: verifica-se uma mudança de papel e de mancha a partir do fl. 117, menos acentuada que as restantes; a partir daqui o papel é ligeiramente mais encorpado e a caligrafia parece mais regular 168 . Sem dúvida alguma a Ars resultou de textos escritos em momentos diferentes, como o mostram ainda as constantes rasuras e alterações que apresenta, tarde com o nome latinizado de Gerardus Mercator [cf. C. A. Davids, «Introduction», Gemma Frisius, De princippis astronomiae & cosmographiae (1553), A Facsimile Reproduction With an Introduction by..., Delmar, N.Y., Scholars Facsimiles & Reprints, 1992, pp. 7-12], ' 64 Árs Náutica, fl. 75: «... nec esse idem quod Gemma frisius tradit in secunda parte de usu globi». 165 Cosmographicvs Líber Petri Apiani Mathematici, studiose correctus, ac errocibus vindicatus per Gemam Phrysium, Antuérpia, 1529; citamos a partir de Fernand Van Ortroy, Biobiliographie de Gemma Frisius Fondateur de VÉcole Belge de Géographie de son fils Comeille et de ses neveux les Arsenius, Amesterdão, Meridian Publishing, 1966, pois só nos foi dado ver a edição de 1553: Cosmographie Peter Apiani, per gemmam Frisium apud Louaniensis Medicum e Mathematicum insigne;-, iam demum ab omnibus vindicata mendis, ac nonnullis quoque heis aueta, figurisque nouis illustrata: Additis eíusdem argumenti libellis ipsius Ge;~mae Frisii, Parisiis. Vaeneunt apud Viuantium Gaultherot, via Iacobeia: Sub intersignio D. Martini, 1553. 166 p a r a a biografia de Gemma Frisius, v. Fernand Van Ortroy, op. cit., pp. 9-90; e para as edições da Cosmografia de Pedro Apiano, as pp. 165-189. Esta referência daÁrs remete pois para pós-1575 (Luís Filipe Barreto, op. cit., p. 618)? Talvez não necessariamente, pois a data em questão é a da vigésima quarta edição, primeira espanhola, da Cosmografia de Apiano na versão de Gema de Frlsia; em 1555 já corriam edições com a referência que interessava a Oliveira. Os argumentos aduzidos pelo autor citado a propósito da datação da Ars foram reafirmados em A Ordem do Saber no Universo Cultural dos Descobrimentos Portugueses, 2 vols., Diss. de Doutoramento, Universidade de Lisboa, 1990, pp. 210-213. 167 p a r a a análise codicológica v. Códices Vossiani Latini, descripsit K. A. Meyier: Pars I. Códices in Folio, Leiden, Universitaire Pers Leiden, 1973, pp. 87-89. 168 Estas observações em nada pretendem assimilar-se a uma análise codicológica, e resultam apenas do que nos foi dado observar pelo manuseio do próprio manuscrito. 77 Os NAVIOS DO MAR OCEANO bastando um exemplo para se ver a constância do processo: entre os fólios 12 e 13 foi intercalado um outro, onde se reescreveu o texto do fl. 12v, cujas últimas cinco linhas foram, por sua vez, reescritas posteriormente sobre um papel colado. Por dezasseis vezes o autor intercalou novos fólios ou colou-os por cima de outros, corrigindo e acrescentando textos e gravuras 169. Curiosamente, as emendas parciais são menos frequentes. O expediente foi o de colar tiras de papel por cima do que se pretendia substituir, o que ocorre onze vezes 170. A ideia de uma obra em constante reestruturação acentua-se pela análise das marcas de água, cuja variedade acaba por não nos elucidar significativa- QUADRO III Marcas de Água da Ars náutica (de acordo com Briquet) N.° 1027 3477 4854 5927 13767 13769 13995 13996 13997 13998 13999 14000 14001 14002 14003 14004 14005 14006 14007 14008 14009 14010 14011 14012 14013 14014 140151a) 14015(b) Cidade * Poitiers Pádua Udine Salzburgo Londres BernergernenJOsnabriick) Bordéus Agen Míré Agen Pau Périgueux Périgueux Périgueux Pau Pau Périgueux Pau Navarreinx Montreuil Tarbes Tours Agen Angoulême Angoulême Angoulême Nantes Bavonne Data* 1568 1547 1564 1525 1555 1568 1550 1553 1553 1553 1553 1553 1553 1553 1553 1553 1553 1555 1559 1559 1566 1567 1568 1570 1570 1570 1572 1590 Uso ** Variantes 1570-79 1534-65 1566e1569 1533e 1559 1561-1570 1554e1555 1560e1562 Segue-se a lista de ocorrências assinaladas por K. A. de Meyier, op. cit., pp. 87-88. * Local e data do documento analisado por Briquet. ** Datas entre as quais se atesta a ocorrência da marca de água. (a) Não é exactamente esta, mas uma marca de água muito similar a que se vê no fólio 238, o primeiro da viagem de Magalhães. (b) Ocorre nos fólios com o texto da viagem de Magalhães. 169 Ars Náutica, fls. 12v, 16v, 29v, 35v, 36v, 37v (?), 30, 53, 88, 96, entre os fls. 128 e 129, não numerado, 165, 171v, 172, 173 e 190. 170 Ibidem, nos fls. 12v, 15v, 32, 94, 96v, 123v, 152v, 154v, 156, 157v e 158v. No fl. 49A da numeração a lápis há uma gravura que nos pareceu também ter sido intercalada. 78 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL mente. Vinte e nove ocorrências diferenciadas segundo o catálogo de Briquet m , ou com variantes muito próximas, não permitem realmente conclusões de grande realce, até porque é relativamente elevado o número daquelas para as quais se conhece apenas uma data, como se pode aferir pelo Quadro III. Que conclusões se podem então tirar? Não havendo certificação segura por qualquer critério (análise interna do texto, codicológica, referências de autoridades e marcas de água), será de manter a datação avançada por Luís de Matos. Não como data firme, por tudo o que ficou dito atrás: logo, em vez de 1570, circa 1570. Uma datação plausível tanto mais que não é de pôr em dúvida que a Ars Náutica, na forma em que chegou até nós, foi escrita entre a impressão da Arte da Guerra e o Livro da Fabrica das Nãos que, em nosso entender, deverá ser datado de circa 1580. Uma datação plausível - mas apenas isso. Uma obra enciclopédica, portanto, com uma tal abrangência temática que a simples apresentação obrigaria a tocar todos os aspectos fundamentais da navegação e do que com ela está relacionado. Não tendo paralelo na documentação técnica europeia do século XVI, a Ars náutica carece, tanto quanto da edição que tarda, de uma aproximação pluridisciplinar capaz de revelar a extrema complexidade e diversidade das matérias que versa. Das três partes que a constituem, a que se soma o opúsculo final, o autor dedicou o melhor da sua atenção à primeira, relativa à arte de navegar em geral, a qual ocupa mais de metade do códice. Nela trata longamenteda arte da navegação, quer dizer, da náutica propriamente dita, mas ao contrário do que é vulgar encontrar nas obras da época, Oliveira detém-se na explicação do modo de construção das cartas e dos instrumentos náuticos. Trata-se de um aspecto que está por estudar, pois a obra não chegou ao conhecimento dos especialistas de náutica e cartografia, e assim carece de um enquadramento adequado em domínios técnicos onde os Portugueses pontificavam, à época. Excepção feita a Luís de Albuquerque, em cuja opinião nos louvamos: neste aspecto a Ars não prima pela novidade nem pelo acerto da lição 172. Grande novidade não se encontra por igual na terceira parte e no opúsculo final, por retomarem assuntos sobre os quais Oliveira já escrevera, embora desenvolvidamente, e com escopo temático mais alargado. Mas outro tanto não se pode dizer da segunda parte, que ocupa os fólios 137 a 174v do manuscrito. Esta segunda parte corresponde ao primeiro texto teórico escrito por um português sobre arquitectura naval, teórico aqui no sentido em que vai mais além da regra para a construção de navios. É portanto um texto estruturado, completo, que trata de assunto inédito pelo tema. Só por isso tem uma importância especial que deve ser assinalada. 171 Charles-Moíse Briquet, Les Filigranes. Dictionnaire Historique des Marques du Papier Dès leur Apparition vers 1282 jusqu'en 1600, A facsimile of the 1907 edition with supplementary material contributed by a number of scholars, Edited by Allan Stevenson [The New Briquet. Jubille Edition. General Editor: J. S. G. Simmons], Amesterdão, The Paper Publication Society (Labarre Foundation), 1968. 172 Este comentário ouvimo-lo de viva voz e por várias vezes ao Prof. Luís de Albuquerque. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 79 O que Fernando Oliveira escreveu e desenhou apresenta-se-nos como uma curiosa mistura de novo e antigo, estando a inovação mais nos desenhos do que na parte do texto propriamente dita. É excessivo considerar este «o primeiro tratado científico de construção naval», mas Pimentel Barata tinha razão ao afirmar que contém novidades que tardaram a aparecer nos tratados teóricos da especialidade, «como seja a representação ao modo moderno das secções tranversais do navio» 173. Foi precisamente esse aspecto da obra, tão profundamente inovador, que levou Nicolaas Witsen a copiar as imagens quase exactamente um século mais tarde, embora através da adopção de um processo curioso: é de presumir que as imagens tenham sido copiadas à vista com a mesma orientação do original, legendadas e depois gravadas em chapa, resultando que na impressão saíram com colocação inversa do original. Quanto ao texto propriamente dito, o que se encontra decorre dos propósitos de quem o escreveu e em atenção aos destinatários finais. Fernando Oliveira não escreveu uma obra «abstracta», por assim dizer, com valimento universal independentemente do leitor que a ela pudesse vir a ter acesso. Apesar de os desenhos serem quase todos de navios redondos, o livro em si dedica muito mais atenção aos navios a remos, às galés. E compreende-se bem que assim seja, não por ser expressão de um conhecimento mais apurado e prática recente, como à evidência sucede com a Arte da Guerra, mas porque a obra está escrita em latim a pensar no mundo dos humanistas, dos homens que poderiam ler com facilidade uma obra técnica em língua erudita. A galé é por natureza o navio dos humanistas, pois é a expressão naval dessa herança clássica que é a sua. Um século mais tarde, enquanto Witsen escreve sobre navios redondos no primeiro tratado holandês de arquitectura naval, o que é portanto bem conforme aos interesses e necessidades da Companhia que serve e da navegação de longo curso dos seus conterrâneos, Issac Vossius escreve sobre galés, correspondendo exactamente ao perfil de leitor para o qual Oliveira dirigiu a Ars; e por isso adquiriu ou obteve uma obra original que lhe seria preciosa. Assim se justifica o facto de Fernando Oliveira tratar em especial das galés e a forma como o faz. Ao leitor nosso contemporâneo pode assomar alguma perplexidade ao percorrer páginas e páginas que versam assuntos aparentemente fora da aplicação concreta que se dava aos meios navais mas, tendo em vista o público destinatário, compreende-se perfeitamente que Oliveira revele uma preocupação acentuada com o rigor terminológico de tudo o que tem a ver com as galés, procurando, mais do que descrever as coisas como eram e as conhecia, explicar como elas deveriam ser; é por isso que uma das suas preocupações fundamentais é a etimologia dos termos técnicos, bem no seguimento do que mostrara ser um dos seus domínios favoritos na Grammatica. Ora, Oliveira é mau etimologista, perfilhando com frequência soluções ingénuas ou erradas, como escreveu Eugênio Coseriu 174 a propósito daquela obra, comentário que se 173 174 João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, IN-CM, 1989, p. 134. Eugênio Coseriu, op. cit., p. 32. 80 CAPÍTULO II: FERNANDO OLTVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL aplica na perfeição à Ars. Se somarmos a isto a tentativa sistemática de propor novos termos em substituição dos consagrados para assegurar que as designações (por exemplo de peças ou partes do navio) correspondam melhor ao que o autor supõe que era o termo correcto em latim, compreender-se-á que esta segunda parte da Ars não prima também ela por ser um texto técnico de primeira importância. Ainda assim, o tratamento de alguns temas perde apenas em face do maior desenvolvimento que lhes foi dado no Livro da Fabrica das Nãos. A Ars náutica é uma obra capital, sobretudo pelo conjunto, muito mais que pelo valor individualizado das partes que a compõem. É o que lhe garante lugar sem paralelo no domínio europeu, à época. Obra alguma mostrou igual abrangência temática e profundidade no tratamento das questões, ainda que outras a possam ultrapassar pontualmente. Mas não há sequer muitas mais que se lhe comparem, se excluirmos todos os livros ou manuscritos que tratam apenas de parte das matérias aqui versadas. Na verdade só se lhe equiparam obras escritas ou publicadas na Península Ibérica, mais no plano formal que no tratamento de conteúdos. É precisamente o que separa a Ars das obras de Diego Garcia de Palácio, os Diálogos Militares 175 e a Instrvcion Navthica 176, que formam um todo, complementando-se temática e formalmente, tendo até sido publicadas no mesmo local e ano. Os dois livros de Palácio sobrelevam em importância a Ars por isso mesmo: são livros, foram impressos e conhecidos na época, enquanto o manuscrito de Oliveira não teve qualquer influência assinalável, se exceptuarmos os casos tardios - embora qualquer deles notável - de Vossius e Witsen. Comparando a Instrvcion com a Ars ressalta tanto a ampla cobertura temática de ambas como a diferença de tratamentos. Palácio dividiu a sua obra em quatro partes, e, tal como Oliveira, dedicou a primeira e mais extensa à náutica, denotando maior ligação à prática que o português, mas sem que nada de particular haja a assinalar, como notou Júlio Guillén no prólogo da edição moderna 177: dito de outra maneira, sem novidade de maior. Nas partes (aliás livros) II e III continua o autor a tratar da náutica e da astrologia, incluindo também instruções para o fabrico de uma carta de marear. Mas é na parte IV que se ocupa da arquitectura e construção naval. Chamam a atenção os planos dos navios 178, os primeiros impressos que se conhecem em obras modernas, mas também a extrema brevidade com que o assunto é tratado, pois ocupa apenas os fls. 89 a 95v, e isto já incluindo algumas das gravuras. 175 Diego Garcia de Palácio, Diálogos Militares, ed. facsímile com Prólogo de Júlio F. Guillen, Madrid, Ediciones Cultura Hispânica, 1944. Esta obra não é tão original como a que se lhe segue, pois há livros impressos anteriores a ela sobre o tema (v. Maurice J. D. Cockle, A Bibliogmphy of Military Books up to 1642, Londres, The Holland Press, 1978 - 1." ed. 1900). 176 Diego Garcia de Palácio, Instrvcion Navthica, Para el Bven Vso, y regitniento de Ias Nãos, su traça, y gouiemo conforme à Ia altura de México, México, En casa de Pedro Ocharte, 1587. Edição facsímile: Prólogo de Júlio F. Guillen, Madrid, Ediciones Cultura Hispânica, 1944. 177 Júlio F. Guillen, «Prólogo» a Diego Garcia de Palácio, Instruccion náutica, Madrid, Ediciones Cultura Hispânica, 1944. 178 Diego Garcia de Palácio, Instrvcion Navthica, fls. 93v, 94, e 96 a 97. 81 Os NAVIOS DO M A R OCEANO *t. T.. . t .1* Fig. 5 - Desenhos técnicos na Instrvction Navtica de Diego Garcia de Palácio. Palácio escreve sobre a traça de um navio redondo, mas com tal parcimónia que se queda pelo nível das meras generalidades. Todo o resto do Livro IV trata de outros aspectos igualmente importantes, como os homens de mar ou os preceitos de guerra (extremamente sucintos), para terminar com um extenso e útil «Vocabulário de los nombres que usa Ia gente de Ia mar», também pioneiro em livro impresso, e agora sim com pormenores explicativos e extensão apreciáveis 179. Neste particular Palácio ultrapassa Oliveira, mas não no resto. Uma grande diferença em relação à Ars náutica: a ausência de equivalente à parte III, relativa aos aspectos logísticos. Também Alonso de Chaves não produziu obra paralela. Um dos mais celebrados técnicos de navegação ao serviço da Casa de Ia Contratación, em Sevilha, Chaves é o autor de um trabalho a que apôs um título que teve grande fortuna: Espelho de Navegantes 18°. Haveria muito a dizer da sua biografia, da qual todavia não nos ocuparemos 181, pois para o efeito basta notar que Alonso de Chaves é um técnico ao serviço de uma estrutura oficial de apoio à navegação e formação dos seus profissionais, o que por um lado lhe propiciaria o acesso à mais completa e actualizada informação então disponível em Sevilha e, por outro, sugeriria que a obra se ativesse ao plano prático da arte de navegar. Não foi bem assim: a parte I do Livro I versa a astrologia, e todo o resto, até ao fim do Livro III, trata então da náutica, nomeadamente de cosmografia e da agulha de marear, com excursos sobre assuntos laterais, como os naufrágios e modos de 179 Nosfls. 129-156v. Alonso de Chaves, Qvatri Partitv En Cosmographia Practica I Por Otro Nobre LLamado Espeio De Navegantes. Obra Mvi vtilissima I Cõpendiosa En Toda La Arte De Marear I Mvi Neccesaria I De Grand Provecho En Todo El Cvrso De La Navegado principalmente de Espana Agora nueua mente ordenada y compuesta por..., Biblioteca de Ia Real Academia de Ia Historia, Madrid, Colecção Salazar y Castro, cod. 9/2791. Edição moderna a cargo de Paulino Castafieda Delgado, Mariano Cuesta Domingo y Pilar Hernandez Aparicio, Madrid, Instituto de Historia e Cultura Naval, 1983. 181 Para o efeito v. o estudo que antecede a edição citada na nota anterior, e Ursula Lamb, The Quarti Partitu en Cosmographia by Alonso de Chaves. An interpretation, Coimbra, JIU, 1969. 180 82 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL os evitar (no terceiro tratado do Livro III) ou a guerra no mar. O Livro IV é um verdadeiro roteiro da navegação para as índias Ocidentais. O manuscrito revela de imediato a intenção do autor em apresentar obra particularmente bem cuidada: trata-se de um volume de grande formato, escrito com apuro - caligrafia apurada e margens largas -, enfim, um trabalho que vale também pelo aspecto formal. Destinar-se-ia aos prelos, provavelmente, mas só foi publicado em 1983 (o original é de 1536-1537). É possível que a causa da não publicação tenha sido o conteúdo do Livro IV, pois sabe-se que o Consejo de índias não permitia a publicação de livros que pudessem revelar aspectos mais importantes da navegação para as índias Ocidentais 182. Foi isso que comprovadamente aconteceu com o importante manuscrito de Escalante de Mendonza, em 1575 183, mas é possível que o caso aqui seja diferente: como exemplo do state-of-the-art, o livro de Chaves deixa muito a desejar, e talvez não seja absurdo pensar que a sua publicação poria até em causa o prestígio dos meios navais espanhóis. Alonso de Chaves, com efeito, mais não faz que passar levemente pela maior parte dos assuntos, cujo tratamento fica ao nível da generalidade, como bem o exemplifica o que escreve relativamente aos navios e às obrigações dos tripulantes, a começar pelo piloto, e incluindo também um vocabulário: tudo cabe em dois fólios e meio 184, limitando-se na parte dos navios a uma simples listagem de nomes. Longe ficou pois do seu contemporâneo português, cuja Ars náutica, repete-se, pode não ter primado pela grande novidade ou especial acerto das acepções defendidas, mas revela uma profundidade sem paralelo no tratamento das matérias. A extensão desta obra, o cuidado no desenvolvimento pormenorizado de muitas das questões aí tratadas, a insistência nas críticas aos teóricos que delas falavam, e ainda a ênfase com que Oliveira afirma a eficácia e validade das soluções por si propostas, mostram que a chave para algumas das dúvidas que se nos colocam a propósito deste livro e dos seus objectivos pode estar eventualmente ligada ao que ficou expresso no articulado de um trecho particular do Capítulo Primeiro. Já no Prefácio Oliveira fora incisivo na crítica àqueles que escreviam sobre náutica sem conhecerem a arte de navegar por experiência própria: «Raras vezes, com efeito, se encontrará quem saiba ensinar o que pessoalmente não aprendeu. Agiria, aliás, com excessiva impertinência quem tentasse ensinar esta disciplina vastíssima sem dispor de longa experiência. Alguns há, todavia, tão estranhos à náutica que até enjoam em estaleiros secos e nem sequer distinguem numa nau a proa da popa; que, não obstante, emitem, por vezes, frivolidades ridículas sobre a arte da navegação». 182 Esta é a hipótese dos responsáveis pela edição moderna, expressa a pp. 37-38 do estudo introdutório. 183 Jhoan Escalante de Mendonza, «Itinerário de Navigacion de los Mares y Tierras Occidentales» [ 1575], in Cesáreo Fernandez Duro, A La Mar Madera. Libro Quinto de Ias Disquisiciones Náuticas, Madrid, Imprenta, Estereotipia y Galvanoplastia de Ariban & C, 1880, pp. 413-515. 184 Alonso de Chaves, op. cit., fls. 65v-67. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 83 O remoque é dirigido ao cosmógrafo-mor Pedro Nunes, o qual, por seu turno, estava perfeitamente ciente da animosidade que suscitava aos homens do mar, como o revela o passo de abertura do seu Tratado em defensam da carta de marear. «Eu fiz senhor tempo ha hum pequeno tratado: sobre certas duuidas: que trouxe Martim afonso de Sousa: quando veo do Brasil. Pêra satisfaça das quaes me conueo trazer nam somente cousas praticas da arte de nauegar: mas ainda pontos de geometria e da parte theorica. E sou tam escrupuloso em misturar com regras vulgares desta arte / termos e pontos de sciencia: de que os pilotos tanto se rim-» 185. A questão é conhecida: Nunes, um dos maiores matemáticos do seu tempo, cuja obra suscitou a maior admiração entre os seus pares 186, deu um importante contributo para a teoria da arte de navegar. Mas as suas soluções surgiam aos olhos dos pilotos como processos demasiadamente complicados a quem procurava soluções expeditas para resolver problemas concretos no alto mar; nasceu daí um contencioso que deixou marcas nos escritos da época, com críticas de parte a parte. Teixeira da Mota terá até chegado à conclusão de que a intervenção do cosmógrafo-mor foi prejudicial para o desenvolvimento da náutica, quer dizer, da náutica prática, a dos pilotos; e Luís de Albuquerque, não querendo subscrever opinião tão radical, afirmou todavia que Nunes não contribuiu positivamente para essa mesma prática 187. Conforme já defendemos em outro lugar 188 , não podendo embora reclamar-se como homem do mar, Fernando Oliveira invocou essa condição para criticar acerbamente o cosmógrafo-mor. A Ars náutica tem várias passagens de grande dureza para com este, que partem da convicção de que a experiência de mar é fundamental para a discussão da teoria da navegação, permitindo que essa experiência avalize ou não soluções concretas. «Desde o início nos propusemos, com efeito, a confiar na experiência, tanto mais que até os maiores filósofos nela se fundamentam, não apenas em assuntos naturais mas sobretudo nos da arte. A náutica é uma arte, e baseia-se principalmente na experiência, banindo e repudiando, muitas vezes e com razão, fantasias abstractas (...) Mas os matemáticos pretendem arrogar-se o conhecimento da ciência náutica, que é exercida principalmente na matéria. E homens que nem sequer podem aguentar os mais leves solavancos do mar, prometem explicá-la. São realmente temerários, porque desconhecendo a realidade, de modo algum poderão interpretá-la». 185 p ec l r o Nunes, «Tratado que ho doutor Pedro nunez Cosmographo dei Rey nosso senhor fez em defensam da carta de marear», in Obras, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1940, p. 175. Sublinhado nosso. 186 Henrique Leitão, «Sobre a difusão europeia da obra de Pedro Nunes», Oceanos, n.° 49, 2002, pp. 110-128. 187 Luís de Albuquerque, «Pedro Nunes e os homens do mar do seu tempo», in A Náutica e a Ciência em Portugal. Notas sobre as navegações, Lisboa, Gradiva, 1989, p. 156. Reeditado in Oceanos, n.°49, 2002, pp. 143-147. 188 Tratámos mais desenvolvidamente o problema de que nos ocupamos de seguida em «Fernando Oliveira crítico de Pedro Nunes», Oceanos, n" 49, 2002, pp. 86-94. 84 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL «Os matemáticos, por conseguinte, que não viram o mar, não andaram embarcados nem praticaram a arte de navegação, terão mau conhecimento dos temas náuticos e podem sustentar pior interpretação deles (...) Não metam foice em seara alheia homens que, encerrados em seus gabinetes como tartarugas entorpecidas, desconhecem por completo navegações e viagens». «Os matemáticos, porém, pretendendo alardear ciência com suas argúcias, apenas conseguem convencer-nos de que nada sabem. Nenhuma ciência, com efeito, parece estar no seu propósito, ao afirmarem que percursos das derrotas não podem efectuar-se pelos círculos menores, quando com evidência é sabido que as estrelas e até o próprio sol quotidianamente descrevem tais círculos na abóbada celeste. Não só pelos paralelos do mundo, mas por onde quer que se pretenda, existem tais círculos menores: quando se contornam ilhas e rochedos no mar, ou cidades e províncias em terra, é, sem dúvida, pelos círculos menores que se avança, e não pelos máximos» 189. Oliveira só poderia ter ganho alguma prática de mar (entenda-se: de navegação em mar alto) durante um dos períodos do seu percurso biográfico que permanecem obscuros - e valha a verdade que o à vontade revelado nos passos acima parece indicá-lo, embora esteja longe de ser por si só convincente. O contacto com os marinheiros experimentados nas viagens de longo curso, ou até a simples reflexão, permitiram afirmar a impraticabilidade da navegação pelos círculos máximos defendida por Nunes. Mas em nosso entender não é esta a questão. Tudo os separa, do sucesso na carreira profissional ao reconhecimento dos pares, passando pela retribuição em benesses várias dos respectivos merecimentos. Nunes, com costela provável de cristão-novo, gozou do apoio permanente dos monarcas, sobretudo de D. João III 190 . Oliveira, que não teria esse labéu, viu-se por duas vezes encarcerado pela Inquisição. Como não pensar que a Ars náutica possa ter sido composta pouco depois, e em jeito de resposta, à publicação da Opera de Nunes, editada em Basileia em 1566, o livro que consagrou definitivamente o seu autor? Ao escrever em latim Fernando Oliveira podia estar simplesmente à procura do mesmo público alvo, e perante este a apresentar provas de uma mais valia que não lhe era geralmente reconhecida. Ao criticar Nunes da forma como o fez, esgrimia uma proximidade com os meios navais que invocava em tom de legitimação dos juízos expendidos. Nas polémicas em que os homens se envolvem o combate das ideias fica amiúde em segundo plano. A mira de um desforço pessoal, a par da busca de um reconhecimento que não faltava ao seu «rival», podem bem ter estado na origem da redacção da Ars náutica. 189 Todos estes trechos são tirados da Primeira Parte, Capítulo Primeiro, Parágrafo segundo do Artigo quarto da Ars náutica, na versão já citada. 190 A melhor síntese biográfica de Pedro Nunes é a devida a Henrique Leitão, no estudo introdutório ao comentário à navegação a remos: O Comentário de Pedro Nunes à Navegação a Remos in Problema mechanicum Aristotelis de Motu nauigij ex remis, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2002, pp. 13-26. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 85 Se assim é, pelo menos em parte, explica-se por outra via a atenção dada aos navios a remos. A popularidade do tema entre os humanistas deve-se também ao facto de o assunto ter sido discutido por Aristóteles, em duas das questões da sua Mecânica, sobre as quais se interessou Pedro Nunes, daí resultando um importante estudo matemático que lhe permitiu criticar o Estagirita, e que apareceu publicado na sua obra de 1566 191. Oliveira estava longe da competência matemática de Nunes; ao escrever sobre as galés acentua os aspectos os quais se sente mais à vontade, como sejam os problemas práticos ou as questões filológicas, como que a marcar a sua esfera de competência específica. Um factor mais a sugerir a não coincidência na sucessão da escrita da Ars náutica à publicação da Opera de Nunes. 2.6. Historiador por uma causa Fernando Oliveira foi historiador por uma causa: a da independência de Portugal. Conforme no-lo revelou Paul Teyssier em 1959 192, como ficou atrás dito, existe na Biblioteca Nacional de Paris um códice que contém uma história de Portugal, um livro da antiguidade de Portugal, a cópia da gramática de Nebrija e uma tradução parcial do De Re Rústica de Lúcio Júlio Moderado Columela. Tudo pela mão de Fernando Oliveira, excepto uma parte da cópia de Nebrija 193. Não nos deteremos sobre estes últimos escritos, dado que o manuscrito da Hestorea vem de ser editado e estudado por José Eduardo Franco, pelo que a propósito se seguirá este trabalho com toda a vantagem. O que interessa neste momento é dar conta da longevidade algo invulgar do seu autor. Não tanto por ter vivido até quase aos oitenta anos, mas porque manteve uma actividade e agilidade de espírito deveras notáveis durante todo o período de vida que podemos acompanhar. É que o empreendimento da Hestorea não é coisa pequena: ultrapassa os 150 fólios e foi iniciado por um homem já septuagenário. Do que fez Fernando Oliveira nos dois últimos decénios de vida pouco ou nada se sabe, mas logo no início desta última grande obra apresenta-se como capelão dos reis de Portugal do seu tempo 194, o que pode significar que acabou por não se afastar em definitivo da Igreja. À parte isso, importam dois outros dados revelados por Teyssier: o autor estava em Portugal e a obra é posterior às cortes de Tomar. A estadia no país comprova-se pelo uso repetido de advérbios 191 Publicado e comentado por Henrique Leitão no estudo citado na nota anterior. Paul Teyssier, op. cit., pp. 359-379. 193 V. José Eduardo Franco, op. cit., vol. I, pp. 28-29. 194 Biblioteca Nacional de Paris, Fonds Portugais, n.° 12, fl. 1 (trata-se da nova cota; a anterior era Ms. 10). Inocêncio deu notícia de que o original se encontrava na biblioteca do marquês de Valença (op. e loc. cit), mas tratar-se-ia com certeza de uma cópia de cujo paradeiro o actual representante da Casa não tem conhecimento. Uma outra cópia, acabada em 1831, devida a António Nunes de Carvalho, foi descoberta por José Eduardo Franco num dos fundos da Biblioteca João Paulo II da Universidade Católica. 192 86 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL como «cá» ou «aqui», sempre que se refere a «este reino» 195. A cronologia possível decorre da intenção declarada de provar o direito de Portugal a ser nação livre e independente, o que sugere que a Hestorea (como o Livro da Antiguidade antes dela, depois abandonado a meio para dar início à obra mais completa) foi escrita em jeito de resposta à confirmação de Filipe II como rei de Portugal, ocorrida em 1581. Fernando Oliveira pode ter vivido uns anos mais, ou pelo menos assim o indicia uma passagem onde voltou atrás em relação ao que escrevera antes: prende-se com o milagre de Ourique, agora necessário na lógica que presidia à razão de ser deste livro, e por isso aceite sem mais. Mas o milagre não aparece no De Vera Regum Portugaliae Genealogia Liber, de Duarte Nunes de Leão, publicado em Lisboa no ano de 1585, como igualmente brilha pela ausência na versão castelhana, Genealogia Verdadera de los Reys de Portugal, também de Lisboa mas editada cinco anos mais tarde. É muito provável que se lhe refira a seguinte frase: «[há] nesta terra hú homem nouo nella que nega este aparecimento... pode Portugal dizer... criey filhos alheos e elles me desprezarão» 196. Activo e mordaz como sempre, embora na circunstância fique melhor dizer sibilino: «homem novo nela» e «filhos alheios» são labéus de suspeição sobre a ascendência judaica de Duarte Nunes de Leão, ainda hoje por confirmar197, mas particularmente graves na altura e vindos de um homem que já provara o rigor dos cárceres do Santo Ofício. Se é verdade que o remoque se dirigia a Nunes de Leão, então Fernando Oliveira estava vivo em 1585. Cumpria o lema de uma vida, se tomarmos como tal a frase com que fechou o primeiro livro que escreveu: «tudo tem o seu tempo, e os ociosos o perdem». O tempo chegou-lhe efectivamente para tudo o que quis fazer. 3. O LIVRO DA FABRICA DAS NÃOS O manuscrito autógrafo do Livro da Fabrica das Nãos pertenceu à livraria do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, da Ordem de Cister, à qual foi oferecido pelo padre Mestre frei José Sanches 198. Deu entrada nos fundos da então Real Biblioteca Pública da Corte após 1834 (a partir de 1836 Biblioteca Nacional de Lisboa), segundo se presume 199, mas isto é tudo o que se sabe da história do códice. Na edição de 1991 foi incluído um estudo codicológico que o descreve com minúcia, e revela as consequências do restauro a que foi sujeito em 1988 200, 195 Paul Teyssier, op. cit., p. 371. Biblioteca Nacional de Paris, Fonds Portugais, n" 12, fl. 87v. 197 Cf. Orlando Gama, «Duarte Nunes do Leão. Elementos para uma Biografia», in Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino de Portugal, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, pp. 29-31. 198 Aparece identificado nestes exactos termos num dos fólios de guarda do códice. 199 y Xeresa Duarte Ferreira, op. cit., p. 34. 200 Idem, ibidem, pp. 29-34. 196 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 87 sendo a mais importante a possibilidade de leitura dos fólios colados sob aqueles com que o autor pretendeu substituir ou corrigir versões mais antigas de partes do texto. Essas alterações não têm significado de maior do ponto de vista doutrinal, mas o mesmo já não se poderá dizer quanto ao primeiro problema que se coloca perante o manuscrito: de quando é que data, exactamente? É posterior à Arte da Guerra do Mar e à Ars náutica, conforme se comprova de uma simples leitura de passagens como as citadas acima, em que Fernando Oliveira revela os seus objectivos com este novo texto. Portanto posterior a 1570 e muito presumivelmente anterior a 1585, na forma final que conhecemos (e sem pôr em causa a elaboração de um livro de temática próxima iniciado muito antes, como já ficou também dito). Mas não será possível detalhar um pouco mais? O restauro mostrou uma dedicatória a D. Sebastião numa das folhas recentemente descoladas, mas em letra diversa do autor do manuscrito, senhor de uma escrita «humanística cursiva de traçado muito pessoal», relembremo-lo, enquanto a dedicatória «é em letra humanística de chancelaria» 201 . O facto pode constituir uma ajuda preciosa: podemos deduzir que uma primeira versão da obra poderia ter estado pronta entre 1568 e 1578, se quisermos contabilizar apenas os anos em que D. Sebastião foi rei sendo maior de idade, intervalo temporal que deve ser reduzido para 1570-1578 pelo motivo já invocado. Teria sido dedicada ao monarca mas depois essa dedicatória desapareceu debaixo de um fólio colado entretanto, o que deve ter acontecido após Alcácer-Quibir (talvez com a ideia de o dedicar ao sucessor do rei desaparecido): a preparação da versão final fica assim situada entre 1578 e 1585, talvez mesmo entre 1578 e 1580-1581, pois é lícito admitir que os acontecimentos deste ano levaram o autor a orientar os seus escritos numa outra direcção, podendo muito bem não ter voltado à arquitectura naval. É bem certo que Oliveira demonstrou estar activo e com viveza de espírito suficiente nos anos terminais de vida, mas talvez seja excessivo aceitar que entre 1581 e 1585 escreveu duas das suas maiores obra, tanto mais que esta decorre tematicamente da que escrevera circa 1570. Pelo menos é uma hipótese menos crível que colocar a obra de arquitectura naval em 1570-1580, voltanto portanto aos anos de 1578-1580. Fica patente uma dificuldade, a letra manuscrita em que se encontra grafada a dedicatória a D. Sebastião. Poder-se-iam com certeza urdir algumas hipóteses mais ou menos engenhosas, mas também é possível deixar a resposta em aberto e admitir que não há solução satisfatória que não seja rebuscada em demasia: que por exemplo o manuscrito teria mudado de mão e voltado ao dono, o que é pouco provável e continua a não explicar porque é que seria dedicado ao monarca por outrém. Mais significativo para a questão que interessa apurar é o facto de a dedicatória ter sido tapada. Dois outros elementos justificam a escolha de uma data mais ou menos coincidente com o intervalo de tempo definido: as duas marcas de água identifi- 1 Idem, ibidem, p. 32. 88 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE AROUITECTURA NAVAL cadas apontam para 1580 e 1589, por semelhança com duas marcas do catálogo de Briquet 202 , e, a nosso ver, há uma passagem reveladora no próprio texto: «Mays louuor se deue nisto aos nossos, que aos gregos, nem latinos: por que mays tem feyto pella nauegação em oytenta annos, do que elles fezerão em dous mil que reynarão» 2<B . Por via de regra Fernando Oliveira é bastante vago nas referências que faz a factos já ocorridos: «nos dias passados», por exemplo, é uma frase que ocorre com frequência. Um pouco inesperadamente, a citação precisa um número de anos certo contado a partir de uma data não identificada, mas julgamos que não é difícil adivinhá-la: o autor compara o âmbito e alcance das navegações dos Portugueses às dos povos mais antigos, para mostrar como se sabia muito mais pelo que fora entretanto descoberto e navegado. Mas entretanto quer dizer desde quando? Muito provavelmente desde a viagem de Vasco da Gama, que marcou mais que qualquer outra a extensão das navegações portuguesas, e impressionou vivamente os homens do século XVI, perante os quais se abriram portas marítimas até então apenas suspeitadas - e com elas o rico comércio oriental, com todas as consequências que trouxe, seguramente parecendo ser o ponto de viragem decisivo em relação à história recente do reino. Oitenta anos é uma referência muito explícita, e fará todo o sentido considerar que se deve reportar à data da chegada da Vasco da Gama à índia, ou à data do seu retorno a Portugal. Se é assim, é mais uma indicação de o texto se situa nos finais da década de setenta, no século XVI. Cremos por isso que circa 1580 pode servir para datar o Livro da Fabrica das Nãos com uma proximidade muito razoável em relação à data em que foi concluído 204. Estamos perante uma obra em construção. É importante acentuar de novo este aspecto, porque esta ou outra data que eventualmente se possa propor com mais acerto é sempre aproximada. O Livro não foi escrito de uma só vez, e com os conhecimentos de que dispomos é impossível saber-se quanto tempo demorou a ser preparado. Um exemplo ilustrativo é a referência a Martim Afonso de Sousa feita numa primeira versão, depois emendada, e mais tarde anulada pela colagem de um fólio por cima daquele em que se encontrava. Fernando Oliveira escreveu: «E soo a magestade do grande atemoriza os imigos, que não ousão acometello, e contra o pequeno afountanse mays: como fezerão o anno passado contra o em que uinha Martim afonso de sousa capitão da mina: o qual cuydou que se rebuçaua uindo em nauio pequeno, e por isso se perdeo» 205 . 202 203 204 205 Idem, ibidem. F e r n a n d o Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, p . 13. A marca de água identificada por Briquet como sendo de 1589 não constitui problema de maior: as datas deste tipo de referências são indicativas, e como vimos a propósito da Ars podem até resultar em acréscimo de dúvida, já que o erudito autor francês deu naturalmente conta das datas dos manuscritos em que encontrou as marcas. Na realidade não se pode por aí determinar o espaço temporal exacto a que dizem respeito. Idem, ibidem, colado por baixo da página 66. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 89 Em momento posterior cortou o nome: «E soo a magestade do grande atemoriza os imigos, que não ousão acometello, e contra o pequeno afountanse mays: como fezerão o anno passado contra o em que uinha hu nosso capitão da mina: o qual cuydou que se rebuçaua uindo em nauio pequeno, e por isso se perdeo» 206. Este tipo de intervenção é frequente, o que mostra o nível de reelaboração da obra, mas o caso importa por aduzir mais um elemento para a datação do códice. Este Martim Afonso estava na Mina em 1573, como se vê num parecer de Jorge da Silveira para o rei, datado de 28 de Agosto: «a fazenda de V. A. tem perdido e gastado nestes três escusados annos de Martim Affonso e António de Saa mais de quatrocentos mil cruzados, porque levarão armada e soldados bastantes para fazer muita despesa e tolherem e danarem os tratos da Mina e não bastantes para povoar e conquistar a Mina» 207. O comércio da Mina estava em crise, segundo Vitorino Magalhães Godinho, que regista os esforços inúteis das armadas de Jorge de Sá e Martim Afonso para inverter a situação 208; mas aqui importa-nos a cronologia dos acontecimentos, mais uma vez aproximada da data que pensamos dever ser considerada para situar o livro de Oliveira. Quanto ao conteúdo da obra, divide-se em nove capítulos antecedidos de um prólogo, onde o autor explica os motivos que o levaram a escrevê-la. O primeiro decorria da necessidade de Portugal ter bons navios por serem necessários à navegação, a qual era por sua vez indispensável para a manutenção das muitas possessões ultramarinas: «E por quanto os nauios são necessários para a arte da nauegação, e a nauegação para a gente desta terra de Portugal, cujas uiuendas em munta parte pendem do mar: não soomente as do pouo, mas também a do estado real, que pollo mar tem muntas ilhas, e terras, e conquistas: as quaes se não podem conquistar, nem gouernar sem nauegação» 209. Em vista do que Fernando Oliveira se propõe um segundo objectivo, reduzir a arte de fazer navios a regras claras e ordenadas que sejam perceptíveis para qualquer pessoa. Há uma crítica directa aos práticos, que são explicitamente acusados de praticar o secretismo no seu exercício profissional, além de 206 Idem, ibidem. Monumento. Missionaria Africana. África Ocidental, coligida e a n o t a d a pelo Padre António Brásio, l. a série, vol. III, Lisboa, AGU, 1953, p. 115. 208 Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol. I, 2." ed., Lisboa, Presença, 1981, p. 175. Os factos reportam-se a uma data posterior à que normalmente se indica para a defunção do Martim Afonso de Sousa conhecido do Brasil e da índia, mas Magalhães Godinho considera esta referência como dizendo-lhe respeito: v. o índice onomástico no vol. IV, pp. 325 e 333 (agradeço ao meu amigo e colega José da Silva Horta o ter-me posto na pista desta identificação). 209 F e r n a n d o Oliveira, op. cit., p . 1. 207 90 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL não cumprirem adequadamente. Estava em causa o segredo profissional característico das formas tradicionais de organização do trabalho, em que os saberes eram passados de mestre para aprendiz (que o mesmo é dizer, muitas vezes, de pai para filho) e ciosamente guardados os processos peculiares de cada um, tanto mais importantes nesta fábrica quanto ela deixava uma larga margem de intervenção ao mestre construtor naval. Mas Oliveira vai mais longe, ao denunciar que a razão última que o anima é afinal uma revelação pública desses procedimentos, de modo a possibilitar o seu aperfeiçoamento por homens de «bom entendimento»: «Desta maneyra andaua esta arte aas escondidas, e não uinha a lume para se emendar, e acrecentar pellos juizos dos homens de bos entendimentos» 210. Os mestres, dizia Oliveira, ensinavam pouco e por palavras e práticas vulgares: propunha-se então cotejar a experiência que ganhara em estaleiros de diversos locais e reduzi-la à escrita, o que era o primeiro a fazer. Excepção feita à Ars náutica, claro está, também de sua autoria. O que tudo junto quer dizer que pretendeu redigir um texto que revelasse por completo os segredos da arte, determinando as suas regras gerais por oposição à empiria reinante, e tratando de todos os aspectos da fábrica dos navios, desde o princípio da sua construção até ao lançamento à água. Percebe-se que o projecto ficou a meio, ou menos do que isso, já que a parte do Livro que chegou até nós só trata de uma parcela desse programa de intenções; ou a obra ficou por concluir ou se perdeu parte importante, como se pode ver: «A ordem que leua este liuro, he tratar premeyro das madeyras accommodadas para a fabrica naual, e de suas qualidades; e do tempo em que deuem ser colhidas, e per que modo; Despoys trata dos achegos que co a madeyra são necessários: que são pregadura, estopa, breu, e outros semelhantes. Despoys das medidas, e symmetria das nãos, e suas partes, em cada género, e especia delias; e de seus aparelhos, que são gouernalho, mastos, uergas, uelas, remos, enxarceas, cabres, ancoras, bombas, e outras machinas, e instrumentos necessários para o seruiço das dietas nãos, e das taracenas, e uaradouros. Dos quaes também por derradeyro se diraa algua cousa: e do modo, e engenhos, de uarar, e lançar as nãos» 2H . Um outro aspecto deste prólogo merece ainda ser considerado: a revelação de que as relações entre o tratadista e os práticos não seriam as melhores. Fernando Oliveira diz que procurou cotejar a experiência adquirida no estrangeiro com o que vira na Ribeira de Lisboa, mas confessa que as suas intenções não eram bem entendidas. Adivinha-se o potencial de conflito entre aqueles que estavam encarregues de fazer os navios usando as regras básicas que encontramos exaradas nos regimentos gerais, completando-as (e com certeza modificando-as) a seu bei prazer e de acordo com a sua experiência prática, e um homem que se propunha tudo reduzir à expressão escrita em termos por vezes 210 211 Idem, ibidem, p. 2 Idem, ibidem, pp. 6-7. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 91 diversos dos até então consignados. Chocam-se dois mundos, o do artesão e o do teórico, o dos procedimentos práticos e o das formulações genéricas, em parte expressão do conflito entre a ordem antiga do saber e fazer e essa tendência normalizadora e regularizadora que marcou o Renascimento, notadamente no domínio da técnica: «E para que a doutrina deste liuro fosse mays certa, cotegey o que uy polias outras terras com o estilo da rybeyra de lisboa, que agoora precede a todas as que eu uy» 212 «tanto que zombão de mym, por que escreuo delia; e são estes os mesmos a que ella mays releua; delles por que não sintem sua perda, e delles por que não querem que seja sentida» 2 1 3 . É certo que uma passagem fala dos «homens graves» a que estava cometida a construção dos navios, mas dever-se-á seguramente referir aos que se encontravam no nível acima, e não tanto aos que executavam directamente os trabalhos; com estes o desencontro de ideias e intenções tinha por força de ser patente. Oliveira, não obstante, deu boa conta da prática. Teórico nas intenções, o Livro não se afastou muito, em vários aspectos, do que se fazia naquela Ribeira. O primeiro capítulo funciona como uma introdução geral ao tema, justificando a antiguidade da navegação e o que de novo se passava nos tempos modernos por via das viagens portuguesas, o que pretexta novo remoque aos que cuidavam que tudo sabiam - sem dúvida os artífices da arte. São páginas escritas por um humanista, com alarde de erudição que se torna lógico na arquitectura do discurso e em função das suas intenções últimas, mas que sem dúvida teriam provocado a perplexidade de um eventual leitor que procurasse aprimorar os seus conhecimentos concretos. No segundo capítulo começa verdadeiramente a exposição do processo de fabrico dos navios, e começa pelo princípio, passe a redundância: é das madeiras que trata, tal como fará Lavanha mais tarde 214. Nesta matéria não há muito a dizer: aquilo que Oliveira escreve condiz perfeitamente com a generalidade dos textos técnicos, quanto aos tipos de madeira empregues. A diferença está no pormenor, formulação e justificação dos elementos informativos215, já que no Livro se explica que se devem usar dois tipos de madeira e porquê: uma, 212 Idem, ibidem, p. 5. Idem, ibidem, p. 3. 214 Do livro de Lavanha disse John Dotson ter um carácter sistemático, característico de um verdadeiro tratado, por justamente se iniciar com o capítulo das madeiras (John E. Dotson, «Treatises on Shipbuilding Before 1650», in Conway's History ofthe Ship. Cogs, Caravels and Galleons. The Sailing Ship 1000-1650, Londres, Conway Maritime Press, 1994, p. 167). 215 Éric Rieth deixou bem clara esta especificidade de Oliveira: «La sélection des bois selon le Livro da Fabrica das Nãos (1570-1580) de Fernando Oliveira», in A. Corvo! (ed.), Forêt et Marine, Paris, 1999, pp. 33-40. Estudo mais extenso, com discussão das variedades de madeira e suas aplicações, é o de Richard Barker, «What Fernando Oliveira did not say about cork oak», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 163-175. 213 92 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL mais dura e resistente, para o casco e estruturas do navio; e outra, mais macia e de melhor trabalho, para se poder encaixar perfeitamente com a primeira, devia ser empregue no tabuado. Sobro para o liame e pinho para o tabuado são as primeiras opções, sendo depois consideradas as várias alternativas possíveis. Todavia, se fosse exercer o seu mester em terras distantes, o carpinteiro naval devia procurar outras soluções, e o melhor seria até perguntar aos locais que madeiras usavam. Oliveira estava bem ciente de que mudavam os hábitos mas também as próprias características da madeira, em função do clima: o carvalho português, por exemplo, era desaconselhado por ser seco, duro, gretado e com nós, mas em Inglaterra servia para o liame dos navios 216 . No fundo, Fernando Oliveira ia ao encontro de um princípio geral e invariável no tempo e no espaço, e que se pode enunciar de modo muito simples: os navios fazem-se com a madeira que há. As recentes campanhas de arqueologia subaquática mostram que os restos dos navios encontrados revelam a utilização de madeiras variadas; pelo menos num caso em que a construção revela ser de tradição ibérica, o do navio descoberto em 1995 no Cais do Sodré, o casco é feito sobretudo de carvalho e o forro interior de pinho; enquanto em destroços de tradições diferentes (encontrados na Ria de Aveiro e no Corpo Santo, respectivamente em 1992 e 1996) se verificou o emprego extensivo do carvalho. A recuperação pela mesma equipa de investigadores dos restos da nau «Nossa Senhora dos Mártires», naufragada no estuário do Tejo nos inícios do século XVII, a única descoberta recente e relevante dos restos do naufrágio de uma nau da Carreira da índia, evidencia que os materiais de construção empregues foram exactamente os recomendados pelo primeiro tratadista português de arquitectura naval: sobro para as peças estruturais, quilha, roda de popa e balizas, pinho manso para o tabuado 217 . O terceiro capítulo complementa o segundo: trata das condições do corte das árvores para a madeira estar em condições para a fábrica das naus. A primeira frase é quase um catálogo das queixas que se fizeram ouvir sobre o emprego de madeiras verdes: «A madeyra para a fabrica dos nauios deue ser colhida madura, e em boa sazão: por que não apodreça, nem faça mudança na obra, torcendo, ou encolhendo e abrindo as juntas, como faz a madeyra uerde, ou colhida fora de tempo» 218. 216 217 218 F e r n a n d o Oliveira, op. cit., p . 17. Os resultados destas escavações têm sido apresentados em diversos artigos e comunicações a colóquios científicos, os mais relevantes dos quais citamos na Bibliografia. O apanhado geral das conclusões foi feito num importante estudo de 1998, onde os autores procedem à comparação sistemática dos resultados de escavações arqueológicas com os textos técnicos: Francisco Alves & Paulo Rodrigues & Filipe Castro, «Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 227-256. Sobre o naufrágio: Francisco Alves & Filipe Castro & Paulo Rodrigues & Catarina Garcia & Miguel Aleluia, «Arqueologia de um naufrágio», in Nossa Senhora dos Mártires A última Viagem, Lisboa, Pavilhão de Portugal-Expo'98 / Ed. Verbo, 1998, pp. 183-215, e sobretudo os trabalhos de Filipe Castro citados no cap. I, com remissão para mais bibliografia. Fernando Oliveira, op. cit., p. 27. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 93 Semelhante preocupação será também patente em Lavanha, pelas mesmas razões: a preparação adequada da matéria prima é condição essencial para o bom resultado da obra. O capítulo quarto trata dos outros «achegos»: «Para a fabrica naual, alem da madeyra são também necessários outros achegos, como são pregos, estopa, breu, alcatrão, seuo, e outras cousas que logo diremos. [37] As quaes cousas he necessário prouer logo no começo da obra em abastança, assy como a madeyra, e também boas, e escolhidas, como fica dicto, que ella deue ser; de maneyra que não faltem ao tempo do mester; assi por que se não detenha a obra, como também por que as cousas buscadas depressa são mays caras, e piores» 219. Qualidade do material e organização do trabalho são, em suma, as recomendações do autor neste particular. A parte mais curiosa é precisamente a inicial, onde se revela que os pregos mais vulgares são de ferro, dada a sua relação qualidade/preço (dito em outros termos), mas os melhores eram os de cobre, bastante mais caros. Grande parte do capítulo trata da calafetagem e dos cuidados a ter, mas é curioso notar que, apesar da preocupação evidenciada pelo autor com a estanquecidade do navio, não alude ao emprego do chumbo que frequentemente se punha por cima e em jeito de reforço do calafeto, como aconteceu com a «Nossa Senhora dos Mártires»: «A calafetagem foi feita com grande cuidado. Rolos de tiras de chumbo de 5 a 9 mm de diâmetro foram colocados entre cada tábua, incluindo nas respectivas faces de topo, durante a fase de construção. As juntas, preenchidas pelo calafate, eram então protegidas com longas e estreitas tiras de chumbo, pregadas com pequenos pregos de ferro de secção quadrada de 4 mm, intervalados de 4 a 8 cm» 220. Oliveira fala do chumbo apenas uma única vez e bem mais à frente no texto, mas refere-se às placas que aparecem também mencionadas nos regimentos e orçamentos, e não às tiras para complemento do calafeto: «Sobre o breu, e estopa, per cima das juntas, ou fendas, nos nauios que hão de fazer nauegações longas, acostumão pregar chapas de chumbo, para emparo contra o bater do mar» 221. O quinto capítulo é porventura o mais interessante do livro. Oliveira define os tipos de navios existentes, pronuncia-se sobre a mudança dos nomes das embarcações, e sobre a correspondência entre as denominações e as tipologias. No tocante aos navios, o capítulo começa por uma definição genérica: «Este nome nauio he geeral, e comprende tudo aquillo em que se anda ou leua algúa cousa per cima daogua. Hora seja bem feyto, hora seja desafeyçoado, hum 2l9 ldem,ibidem,pp. 36-37. 220 221 Francisco Alves & Paulo Rodrigues & Filipe Castro, op. cit., p. 232. Fernando Oliveira, op. cit., p. 141. 94 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL pao, húa tauoa, húa gamella, em que alguém anda, ou leua outra cousa per cima daogua, he nauio. Porem propriamente se chama nauio, aquelle que tem feyção formada per certas medidas, pellas quaes tem suas partes concertadas húas com outras, com deuida proporção, e conueniencia» 222. Na verdade um pouco genérica de mais. O autor explica de seguida que há dois tipos de navios, como são, e para que servem. Não há muito a acrescentar ou, sequer, a comentar. Podemos por isso seguir, com vantagem, as partes mais elucidativas do próprio texto. Sobre os dois tipos de navios Oliveira escreve o seguinte: «O nauio assy formado per medidas ordenadas, he de duas maneyras, ou géneros. Hum delles he de uela, outro de remo. O de uela per outro nome se chama de carrega, e o de remo se chama longo» 22-\ E continua: «Nestes dous géneros se comprendem todas as maneyras de nauios que ha na arte da nauegação. No de uela, nãos, carauelas, barcos, esquifes, e todos os que tem proporção de três por hum, ou menos. No de remo, galees, galeotas, fragatas, fragatins, e todos os que tem em longo sete, ou quasi sete larguras. Como passar de quatro larguras em comprido, eu o julgaria por nauio longo, e o daria a este género, assy como se pode dar ao género de uela, ou carrega todo o que teuer em longo menos de cinco larguras» 224. De excepcional importância é também a parte final do capítulo, onde ficou escrito em letra de forma aquilo que aparece explícita e implicitamente nos documentos técnicos, ou seja, a ampla margem de decisão que era deixada ao livre arbítrio do mestre construtor. Com efeito, os documentos tornam claro que as regras não contemplam mais que a construção do casco, podendo embora detalhar certas particularidades, como a colocação dos mastros, mas nada dizem quanto às superestruturas. O mestre decidia o modo de erecção dos castelos de popa e proa, tal como outras particularidades: o traçado geométrico do navio era limitado pelas almogamas de proa e popa, as cavernas que se definem como sendo as últimas cuja colocação se obtém por métodos geométricos. Ao mestre competia rematar as extremidades do navio, segundo critérios que eram próprios de cada um, e de certeza faziam a diferença entre os profissionais do ofício. A documentação técnica deixa perceber tudo isto por omissão: a constância dos elementos presentes contrasta visivelmente com as ausências sistemáticas, indiciando o que não estava no âmbito das possibilidades da época. Mas o Livro da Fabrica das Nãos di-lo claramente: 222 Idem, ibidem, p . 43. Idem, ibidem, pp. 43-44. 224 Idem, ibidem, p . 46. 223 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 95 «posto que tenha regras por onde se ha de gouernar no principal, nas meudezas, e partes em que se comete ao entendimento dos mestres, tem tanta uariedade, que quasi he infinita: por que não abasta ser tanta como são os mestres, conforme ao prouerbio uulgar, que diz, quantas são as cabeças tantos são os sentidos; mas nem os mesmos mestres se conformão consigo mesmos: por que muntas uezes acontece, hum mestre fazer dous nauios juntamente em hum tempo, em hum uaradouro, a par hum do outro, da mesma madeyra, com as mesmas medidas, e do mesmo tamanho, e sair hum milhor que outro; e não soomente, hum bo e outro milhor, mas hum munto bo, e outro munto ruym: quero dizer, que hu nauega munto bem, e outro nauega munto mal, sem o mestre entender o por que disto» 225. O capítulo sexto tem um conteúdo mais marcadamente teórico: a Fernando Oliveira interessou na circunstância explicar alguns pressupostos teóricos e definir alguns conceitos. Deixaremos por ora o assunto de lado, já que a ele voltaremos depois. Neste passo encontram-se dois passagens para a quais cumpre chamar a atenção. Dizem o seguinte: «Não faraa o nosso carpenteyro, por nauio, gamella, nem uirote; não faraa o nauio mays largo do diuido com achaque de munta carrega, nem estreyto com achaque de ligeyreza; nem trocaraa hum género por outro. Não faraa os nauios de uela tão longos, e estreytos, como os de remo, nem os de remo, tão largos e curtos como os de uela» 226. Esta citação é típica do tom que marca o desenvolvimento do capítulo, onde se alinham a par e passo elementos importantes para a compreensão do pensamento de Oliveira, com outros que podem ser tomados como uma espécie de conselhos gerais, cujo nível não ultrapassa o do mais elementar bom senso. O trecho acima exemplifica bem o tipo de conselho de que o profissional de construção naval não precisaria, seguramente; porém ganha significado acrescido ao considerarmos uma outra passagem que surge um pouco mais à frente: «Por que se hão de seruir para carrega, e mercancia, hão mester hua fabrica, e pêra guerra outra» 227. Não é completamente linear a leitura que se pode fazer do Livro da Fabrica das Nãos enquanto expressão das ideias do autor no tocante às diferenças entre navios de guerra e navios de comércio. Algumas passagens, como a que se refere ao esporão (uma das questões que tem sido mais discutidas a propósito das características do galeão português), parecem sugerir que o autor considerava haver uma distinção radical entre navios redondos para o comércio e para a guerra. Este capítulo sexto, nomeadamente pela frase citada acima, permite-nos pelo contrário concluir que, em geral, navios de guerra eram os de remo, para Fernando Oliveira, e navios de comércio eram os redondos. Mas não era sempre assim, como veremos. 225 F e r n a n d o Oliveira, op. cit., p p . 49-50. Idem, ibidem, p p . 53-54. 227 Idem, ibidem, p. 54. 226 96 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL No capítulo sétimo, o mais curto de todos, o autor trata da semelhança entre os navios e os peixes. É uma das partes do livro que melhor espelha o seu horizonte gnosiológico, marcado pela concepção da primazia da Natureza como ponto de referência para a arte dos homens, com remissão directa para Aristóteles. Face à perfectibilidade da Natureza, o Homem só tem que buscar aí a matriz da cópia que será tanto melhor quanto mais próxima for do original, pois esse é o limite do desenvolvimento das suas próprias capacidades. O modelo natural oferece assim, por comparação, todas as normas da fábricas das naus: o casco do navio assemelhando-se aos peixes e o leme à cauda, por exemplo. A matriz antropomórfica serviu por igual de referência, dada a comparação que imediatamente sugere com a fábrica dos navios: «Ensina a natureza isto nos corpos dos animaes sensitiuos, nos quaes também ha duas partes que parecem responder ao que digo, e dar manifesto exempro destes dous mesteres das nãos: htia são os ossos, que representão o liame, por que sostentão, endereytão, e enformão o corpo do animal, como o liame faz no casco da nao; a outra he a pelle, que cobre os ossos, como o tauoado cobre o liame» 228. O que não deixa de ser curioso é o facto de não haver ilustração neste capítulo, mas os preceitos de Fernando Oliveira estão patentes num dos desenhos dos Fragments of Ancient English Shipwrightry 229, de Mathew Baker: aí figura um casco de navio envolvido, ou que envolve um peixe representado na mesma escala. Tanto quanto se sabe, Baker iniciou a composição dos Fragments circa 1570, que foram depois continuados por um discípulo até circa 1630. Os Fragments não se nos apresentam como um tratado, mas sim como caderno de apontamentos 230, sem remissão do texto (inexistente em muitas folhas) para as figuras, e vice-versa. Na imagem em que Baker parece ilustrar as concepções de Oliveira não há qualquer sintonia com o que aparece escrito em baixo, mas talvez seja forçado pretender encontrar explicações complexas. De facto, Fernando Oliveira estava em Inglaterra quando o pai de Mathew, James Baker, desempenhava as funções que foram depois cometidas ao filho: as de superintendência na construção naval. Nada, porém, nos autoriza a pensar que houve contacto directo entre os dois, e muito menos que isso possa ter influenciado Mathew Baker. O que há de comum entre este e Fernando Oliveira é um mesmo horizonte de conhecimento, que é o de uma época em que as regras geométricas eram ainda insuficientes para assegurar o desenho de todo o navio. O oitavo capítulo é o mais extenso, e trata da fábrica e medidas das naus de carrega. O que quer dizer que, para explicar o processo de construção das embarcações, Fernando Oliveira toma a nau da índia como referência. Da razão 228 Idem, ibidem, pp. 14-15. Magdalene College (Cambridge), Bibliotheca Pepysiana, ms. 2820. 230 V. Richard Barker, «Fragments from t h e Pepysian Library», Revista da Universidade vol. XXXII, Coimbra 1986, pp. 161-178. 229 de Coimbra, Os NAVIOS DO MAR OCEANO 97 de ser desta escolha deu conta suficiente, por considerar que eram os maiores e mais fortes navios que se faziam então. O autor pronuncia-se logo de início sobre uma questão polémica, a de se saber se os navios para a índia deviam ser grandes, ou de dimensão moderada: «As uiagens longas hão mester nauios grandes: por que os pequenos, não forrão a despesa. A uiagem longa ha mester muntas uictualhas: as quaes, se o nauio he pequeno, tomão todo o nauio, e não fica lugar para as mercadarias. Aqui me lembra, que ouuy dizer, que alguas pessoas dizião, que se fezessem nauios pequenos para a uiagem da índia; mas a mym não me parece o seu conselho acertado; assy polia rezão que dixe, da despesa ser mayor que a recepta, como também, por que os nauios pequenos não são seguros naquella uiagem, tanto como os grandes; digo seguros, do mar, e dos ladrões» 231. É difícil não ver aqui uma referência directa à determinação legal de os navios da índia não puderem ter menos de 300 tonéis, ou mais de 450, como ficou expresso no «Regimento do Trato da Pimenta, Drogas e Mercadorias da índia», de 1570 232, medida que foi tomada mais para garantir a adequação dos meios empregues às viagens, que para evitar o gigantismo excessivo dos navios, do qual há ecos em diversos tipos de fontes mas não nos documentos técnicos. Importa ter presente que, proporcionalmente falando, os navios cresciam mais em altura que em volume. Ao pretender aumentar a capacidade de transporte por razões económicas e fiscais, o armador tinha mais interesse em mandar elevar apenas os castelos, já que os impostos eram pagos pela mercadoria transportada abaixo do convés, e a arqueação do navio só se contava também até à coberta superior. O que está em causa é pois um problema de fundo, opondo aqueles que consideravam que navios mais pequenos eram mais veleiros, aos que clamavam pela superioridade dos maiores, mais robustos e melhores de sofrer o mar, e mais rentáveis em face do rácio tripulante-carga. Fernando Oliveira opina decididamente pelos segundos, por considerar que os navios resistiam melhor às vicissitudes da viagem, por motivos económicos, e por acreditar que havia vantagens militares nesta opção: «O mar naquella uiagem requere nauios grandes: por que assi coome elle hum nauio de quinhentos toneys na costa da cafraria de Moçambique atee o cabo, como no adarço de Sacauem para Villafranca hum barco de punhete; e mays asinha comeraa hum nauio pequeno. Poys de ladrões, muyto milhor se defende o grande, que o pequeno: por que o grande traz mays gente, e mays armas para se defender»233. Um outro argumento invocado é o costume estabelecido desde os inícios da Carreira da índia, embora o trecho que segue dê lugar a pensar que tem mais 231 Fernando Oliveira, op. cit., pp. 64-65. Leis, e Provisões que El Rei Dom Sebastião fez, Coimbra, n a Real I m p r e n s a d a Universidade, 1816, pp. 68-85. 233 Fernando Oliveira, op. cit., p. 65. 232 98 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL valor argumentativo que testemunhal. Para a primeira metade do século XVI os números indicados caem no domínio do excepcional, que por definição é contrário à regra: «Em tempo delrey dom Manei [sic], e delrey dom Iohão seu filho, quando começou, e floreceo a uiagem da índia, teuerão carrego delia homens singulares de entendimento e saber, e não esquecidos do proueyto; e as rezões que os então mouerão agora não são mudadas; por tanto me parece, que se não deue mudar o estillo, que nos deyxarão. Des daquelle tempo atee gora sempre se fez aquella uiagem com nãos de quinhentos toneys para cima, e alguas doytocentos, e de mil; e estas são, as que sempre fezerão milhores uiagens, e mays seguras» 234. Logo após esta parte, introdutória ao tópico central do capítulo, Oliveira inicia a explicação do processo de construção propriamente dito, afirmando que a medida da quilha determina todas as outras, e que por ela o construtor tira o volume, ou vice-versa. Quer dizer, se lhe encomendarem uma nau de 600 tonéis, a quilha terá de ter 18 rumos: «Por tanto quando pedem, ou mandão que lhe facão hua nao de seyscentos toneys, sabem os carpenteyros, que hão de lançar a quilha de dezoyto rumos, dos quaes resulta hua nao daquelle porte» 235. Dezoito rumos de quilha é exactamente o valor máximo que se encontra nos documentos técnicos, e também o maior que é levado em consideração por Oliveira; u m indício mais de que há u m a diferença entre os números que são citados e aqueles que se pode saber corresponderem à fábrica dos navios. O facto disto acontecer no Livro da Fabrica das Nãos é revelador do que se pode esperar de outro tipo de fontes. O tema central do capítulo propicia novo comentário a propósito de assunto que já vinha de trás: a diferença entre navios de guerra e comércio. As duas passagens que transcrevemos de seguida resolvem a questão, no que diz respeito à forma como Oliveira se lhe refere: «A estes accrecentamentos chamão os nossos carpenteyros, lançamentos. Dos quaes o de proa he mayor, tamanho como a terça parte da quilha, pouco mays ou menos. Pouco mays para nauios de guerra: aos quaes acostumão dar figura longa, e enrastada como para enuestir; e pouco menos para nauios marchantes, os quaes acostumão fazer mays recolhidos» 236. «O modo de sobir a roda este pouco a cima do conues, he nos nauios communs quasi dereyta, mas nos de guerra lançaraa tamalaues para fora, para que comece dar geyto ao esporão, que lhe acostumão acrecentar para enuistir os contrayros» 237. Ao explicar como se acrescentava a roda de proa aos navios, Oliveira faz duas distinções importantes. No primeiro trecho determina que o lançamento 234 Idem, Idem, 236 Idem, 237 Idem, 235 ibidem, p. 66. ibidem, p. 70. ibidem, pp. 78-79. ibidem, p. 80. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 99 da roda de proa deve ser de cerca de um terço do comprimento da quilha, um pouco mais curto para navios de comércio, e um pouco mais longo para os de guerra, os quais tinham linhas mais finas, como para investir; mas em ambos os casos fala inequivocamente de navios redondos. No segundo estabelece a diferença entre navios comuns, com a proa quase direita, e navios de guerra, com a proa lançada para vante, para dar jeito ao esporão que se acrescentava para investir os contrários. A uns navios, faziam-nos longos como se fossem para investir; a outros, prolongava-se a proa para suportar o esporão, que servia para investir os inimigos. A diferença, reforçada pela utilização da expressão «navios comuns» na segunda passagem, ilustra claramente que nesta o autor alude a navios redondos e a navios de remo, as embarcações de guerra por excelência, que de facto se serviam do esporão como arma de ataque. Não é pois no Livro de Fernando Oliveira que se pode sustentar a tese de que os galeões portugueses tinham esporão, como pensaram Lopes de Mendonça 238 e outros autores na sua esteira, baseando-se nesta passagem. No Livro ressalta ainda o constante diálogo com as obras anteriores, quer explorando tópicos idênticos, quer acrescentando o que já deixara explicado, ou até corrigindo o que escrevera no passado 239. Neste capítulo não perdeu o ensejo de voltar a um deles, voltando a atacar Pedro Nunes, pois é ele que está na mira do comentário jocoso a propósito da ignorância prática dos teóricos: «E não tenha alguém isto por sobejo, por que tudo he necessário; em especial para alguas pessoas, que presumem ensinar esta arte de nauegação sendo tão rudes nella, que não sabem qual he a popa nem a proa: por que nunca entrarão em nauio para nauegar. Dos quaes quero contar húa graça, que aconteceo ha poucos dias a hum delles, que com titolo de cosmographo come salayro de [sic] rey 240. Este preguntou a hum seu amigo, qual era a causa, por que o gouemalho fazia andar o nauio derredor, dizendo, que a não podia entender. E dizia, que bem entendia, como fazia tornar a proa, mas que não podia alcançar, como a fazia andar derredor» 241. Nunes morreu a 11 de Agosto de 1578, mas a frase «que aconteceo ha poucos dias» não deve ser lida no sentido literal, dada a forma imprecisa como Oliveira situa os acontecimento no tempo. Por outro lado isto também pode querer dizer que esta parte da obra foi escrita quando o cosmógrafo-mor ainda estava vivo, o que em nada contraria a nossa proposta de datação, que se refere à forma final do manuscrito. No capítulo oitavo haveria ainda que chamar a atenção para o vocabulário que nele aparece inserto, como explicação de alguns termos e, sobretudo, das 238 H e n r i q u e Lopes d e Mendonça, Estudos Sobre Navios Portuguezes dos Séculos XV e XVI, reed., Lisboa, Ministério d a Marinha, 1971, p . 31. 239 Como exemplo: «Finalmente abies n ã o h e faya posto q u e o elles digão; e n o liuro d a guerra do m a r que eu escreuy os dias passados, emende se este erro, por que foy feyto confiando nos grammaticos pouco lidos» (Fernando Oliveira, op. cit., p . 21). 240 Com certeza querendo dizer «salayro dei rey». 241 Fernando Oliveira, op. cit., pp. 84-85. 100 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL medidas de construção naval. O assunto virá com mais oportunidade a propósito da construção das naus, e convém por outro lado que esta exposição das linhas gerais do livro não se arraste em demasia. Cumpre ainda falar do capítulo nono, que traria dos aparelhos necessários para os navios, mas ficou interrompido depois de praticamente só falar do leme e das suas peças, sem novidade de maior. Em vista desta apresentação global do primeiro tratado português de arquitectura naval, cabe inquirir acerca do que o distingue de obras similares. As obras de arquitectura naval foram por excelência lugares de afirmação de um tipo de discurso eminentemente técnico, marcado pela primazia da eficácia na prossecução do objectivo imediato comum a todas: a estipulação dos procedimentos teóricos da construção naval. Mas quando se fala em «procedimentos teóricos» tem-se em vista apenas a caracterização do estágio anterior à fase do estaleiro, no que diz respeito ao processo que culmina com a construção do navio. O que estas obras procuram, de forma mais ou menos explícita, é regular o «como fazer» dessa primeira fase, sob o primado da eficácia, não evidenciando por norma qualquer preocupação de fundo pelo «porquê» dos preceitos da arte. Fernando Oliveira ocupa um lugar ímpar precisamente pela fuga a esta regra. Na sua obra estão presentes preocupações constantes no que diz respeito à fundamentação das regras que discute, ou seja, não se limita a expor soluções que funcionam, porque em regra fá-las anteceder da explicação destinada a provar ao leitor a validade do fundamento em que essas mesmas regras se baseiam, ou do qual emanam. Arquitecto de navios, Oliveira arquitecta também um estrutura piramidal do saber encimada por princípios que são afinal as bases substantivas do conhecimento em si, de onde retira depois as regras gerais cuja aplicação concreta resulta no objectivo pretendido: fazer navios, e o melhor possível. Poderá parecer que o discurso produzido nestes termos reveste uma perspectiva mais alargada que a comum em relação ao objecto em si, resultando numa reflexão que espelha um pensamento hierarquicamente estruturado e atento à dedução dos princípios normativos a partir de uma fundamentação filosófica do conhecimento; mas não é bem assim: no fundo, o que o texto do Livro da Fabrica das Nãos revela (muito mais que a Ars náutica) é justamente a busca dessa eficácia que constitui o objectivo último de todos os arquitectos e construtores navais. A diferença está no ir mais longe, na procura desse fundamento a que os textos técnicos se mostram alheios, desde que as normas práticas funcionem como pretendido. Oliveira parte de um universo de referência: a cultura clássica, os autores da Antiguidade cuja recuperação é tão característica da atitude intelectual dos humanistas no Renascimento 242. E se o que caracteriza o Humanismo é a adap242 Para esta questão, tanto em geral como na relação específica com os_ Descobrimentos, v. Reyer Hooykaas, O Humanismo e os Descobrimentos na Ciência e nas Letras Portuguesas do século XVI, Lisboa, Gradiva, 1983. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 101 tacão dos modelos antigos aos problemas contemporâneos 243, então Oliveira foi um humanista exemplar, ao buscar nessa lição clássica os modelos em que travejou o seu discurso. Regular essa esfera do saber que se encontrava nas mãos de quem pouco explicava, e explicava mal, quando o fazia, tal como os técnicos que a ocultavam como se de um saber hermético se tratasse, implicava a subida a um nível teórico superior, vir dele armado com regras fundamentadas e impor a normalização desejada. Oliveira não se aproxima da arquitectura naval como um filósofo que perspectiva de cima: o seu plano é também o do concreto, porque ofimpretendido é idêntico ao dos profissionais. Traz sim uma visão específica, aurida na educação erudita que soube potenciar neste aspecto concreto; mas que almeja a excelência no plano prático resulta patente da afirmação do primado da aprendizagem e da certificação do conhecimento através da experiência. Oliveira fundamenta o seu saber na prática constante e na experiência ganha, como tem o cuidado de realçar. Nos textos que escreve estão amiúde presentes referências concretas a circunstancialismos vividos, dos quais bebe os ensinamentos que essa experiência lhe ministra; uma experiência aqui entendida como prática vivencial que é sempre o sentido dominante em todo o seu discurso, e primeiro recurso argumentativo quando se trata de desafiar os teóricos de gabinete. Assim se compreende também a necessidade de mostrar ao leitor que aprendera os ensinamentos da prática dos estaleiros nas diversas partidas do mundo por onde andara. Como construtor naval e como nauta, interessou-lhe tomar nota dos procedimentos usuais em outros lugares para confrontar com as práticas que já conhecia, e logo acertar sobre a forma mais correcta de fazer as coisas. É esta noção de um pragmatismo imediato a fundamentar o radicalismo empírico que ressalta nitidamente dos sentidos em que aparece a palavra experiência no seu tratado de construção naval. Damos conta de dezasseis ocorrências do termo (já o conceito é muito mais frequente). Compreender o seu exacto sentido passa por as analisar uma a uma 244: «Considerando estas, e outras cousas, que a experiência ensina, poderaa o carpenteyro fazer o nauio pouco mays ou menos daquilo que mandão as regras da arte sem sair munto delias» (54). «Arte digo que he, doutrina de palaura, ou de exempro, fundada em boa rezão, e confirmada per experiência» (56). «E tanto me daa per húa uia como per outra, sempre a arte depende de doutrina aprendida, e posta era experiência, sem as quaes cousas não he arte o que sabemos, 243 244 «II est faux de prétendre que 1'humanisme européen s'est caractérisé avant tout par un retour à Ia culture antique gréco-latine.... En réalité, le terme le plus important est 1'adjectif nouveau. Ce qui caractérisé le mouvement.... cest une adaptation des modeles antiques aux problèmes de civilisation contemporains» (Jean-Claude Margolin, LHumanisme en Europe au temps da Ia Renaissance, Paris, Presses Universitaires de France, 1981, p. 17) Para evitar a aposição de notas de rodapé a cada citação, limitamo-nos a indicar a página do manuscrito citado no final de cada uma. 102 CAPÍTULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL ou fazemos. O que entendemos ou imaginamos sem o esprementar nem por per obra, chama se sciencía, que quanto aos homens não he saber acabado: por que o remate do saber humano he a experiência» (56). «Claro estaa, que as cousas que imaginamos, ainda que nos pareção certas, e o sejão no entendimento, se as não esprementamos sempre estamos sospensos no effeyto delias. E poys a imaginação, sem embargo de ser certa, e demostrada per argumentos infalibles, nos não satisfaz, mas sempre nos tem sospensos, atee ueremos a experiência, a qual para nos certeficaremos desejamos uer, e quando a uemos, ficamos contentes, e descansa o entendimento, por que então uee que o que elle entendia na sua espiritualidade abstraía he certo, posto na materea e sojeyto da experiência, sinal he que essa experiência he o remate do nosso saber. E por que os documentos das artes estão jaa esprementados, e da experiência são tirados, por isso lhe damos mays credito, que aas imaginações dos entendimentos, posto que sejão sotiis, e conformes a boa rezão» (56-57). «Se me dizem os auarentos, que perdendo se hum nauio grande, perde se munto, respondo lhe, que mays se perde em muntos pequenos: os quaes nas uiagens semelhantes tem mays certo perderen se, que os grandes; e assi o uemos cada dia per experiência» (65). «Quanto mays, que se não daa ao nauio toda a carrega, que nelle pode caber, senão quanto boamente pode leuar, segundo juizo dos bos mestres marinheyros, que sabem per experiência, o que pode cada nauio. E esta he hua das cousas, que nos nauios se não acaba de saber sem experiência» (77). «Lia este hua lição da sphera e arte da nauegação.... e passando hum dia polias taracenas uio jazer no chão hum gouernalho, e perguntou munto de siso, de que seruia aquella tauoa nos nauios: e respondeo lhe hum trauesso, que naquella tauoa açoutauão os pilotos quando errauão seu officio. Tanta rudeza como esta ha nos escolásticos sem experiência» (87). «por que sabendo as regras geeraes, com seu bo entendimento poderão fazer discursos particulares, e emendar as uelhices erradas, e acrecentar primores, e perfeyções nouas, e necessárias, como sempre fezerão, e fazem os homens engenhosos em todas as artes, cada hum na sua, de que tem experiência, e doutrina» (110). «Mas por que a grossa parece contra rezão, abrir milhor o caminho, que a delgada, quero alegar algus exempros, nos quaes a natureza, e a experiência mostrão ser isto conforme a rezão, e não contra ella» (117). «E a experiência ensinou aos homens munto ha, que toda esta fortaleza era necessária nos nauios» (138). «o mouimento do nauio he quasi natural: por que he mouido pollo uento, que naturalmente se moue derredor deste globo inferior do mar, e da terra, segundo sinte Aristoteles, e outros philosophos; e nos o uemos per experiência» (157). Quão longe estamos da experimentação, ou sequer da observação sistemática e metódica. O sentido dominante em que a palavra experiência é empregue refere-se à percepção imediata e directa da realidade física com a qual se vê confrontado; um outro sentido, o de certificar a razão, decorre daí também, porque Os NAVIOS DO MAR OCEANO 103 o processo de clarificação do entendimento passa sempre e em primeiro lugar pela verificação experiencial, isto é, pela percepção empírica. A experiência torna-se assim no aval do conhecimento, na chave-mestra que estrutura basicamente a possibilidade de conhecer. A arte imita a Natureza, mas o postulado de raiz aristotélica 245 e definidor da capacidade (limitada) do Homem está condicionado à caução da experiência como aval do conhecimento, ou seja, processo de verificação dos enunciados teóricos; não que Fernando Oliveira rejeite estes últimos, antes pelo contrário: quando um homem (como é o seu caso) alia a formação da escola com a sabedoria que só a prática dá, poder-se-ia estar perante a condição ideal. A mera afirmação de qualquer enunciado teórico sem esse aval é que é causa de inúmeros erros grosseiros, questão em que insiste enfaticamente. Eis pois o que é a experiência para Fernando Oliveira: «descanso do entendimento» depois da verificação empírica dos enunciados teóricos, abstractos, logo condição de certeza desses enunciados, logo condição e remate do saber humano. O conceito expressa portanto três possibilidades diferentes de percepção da realidade que confluem no sentido que temos vindo a ver: «(I) vivência e acção individuais de cada ser humano; (II) acumulação informativa de dados da realidade; (III) evidência da percepção imediata e qualitativa, em especial, visual» 246 . Segundo Luís Filipe Barreto, a definição destes campos coloca Fernando Oliveira mais próximo do nível do empirismo sensorial de um Duarte Pacheco Pereira que do racionalismo crítico-experiencial de D. João de Castro ou Pedro Nunes 247. Se recordarmos o processo de averiguação das causas do desvio da agulha, levado a cabo por D. João de Castro 248 , compreendemos o fosso que separa um e outro, já que este chegou mais próximo que ninguém, no Renascimento português, ao procedimento crítico e sistemático que havia de dar lugar à chamada «Revolução Científica» do século XVII - expressão questionável embora, no que simplifica quanto aos conteúdos específicos que na acepção corrente são considerados responsáveis pelo devir científico. Num estudo recente, Onésimo Teotónio de Almeida localizou a novidade trazida pelas navegações naquilo a que chamou a erupção da novidade, e, a partir de quatro casos exemplares (Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes, D. João de Castro e Garcia de Orta), sistematizou os critérios de inovação em cinco pontos: a) rejeição da Autoridade dos Antigos per se; b) aceitação da experiência como critério de verdade; 245 V. M i c h e l A m b a c h e r , Les Philosophies de Ia Nature, P a r i s , P r e s s e s U n i v e r s i t a i r e s d e F r a n c e , 1974, p.25. 246 247 248 L u í s Filipe B a r r e t o , A Ordem p. 247. I d e m , ibidem, p . 2 4 6 . do Saber no Universo Cultural dos Descobrimentos Portugueses, Tratado por Luís de Albuquerque num dos seus estudos magistrais: Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, sobretudo nas páginas 110-119. 104 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE AROUITECTURA NAVAL c) desenvolvimento de uma perspectiva e metodologia científicas; d) interface teoria-prática, artesãos-teóricos; e) consciência perfeita da importância dos novos conhecimentos adquiridos pelos navegadores portugueses na abertura de novas fronteiras 249. Fernando Oliveira ficou num meio termo, por assim dizer: se os seus escritos respondem pela positiva a alguns destes critérios, evidenciam também que se posicionou contra outros. Da relação entre teoria e prática pouco se pode falar, pois integrou-as apenas ao nível da experiência pessoal, mas não no plano articulado a que se refere Onésimo Almeida; e não houve qualquer rejeição dos clássicos, antes pelo contrário: a lição bebida nas autoridades que enformam a sua cultura humanista é uma constante emblemática dos livros que escreveu. Partindo daí e do critério de atribuir à experiência um peso determinante como factor de certificação do conhecimento, no sentido que vimos, Oliveira procede a uma desvalorização sistemática da contemporaneidade enquanto fonte informativa, que se alicerça na profunda desconfiança nutrida pelos teóricos que tratavam da navegação, por um lado, e pela menor consideração por aqueles que se reduziam à prática, por outro. A ponto de nem sequer citar os coevos, fossem naturais ou estrangeiros, tratassem do navio ou de qualquer outro assunto, com uma notável excepção. No Livro da Fabrica das Nãos nomeia explicitamente catorze autores, a saber e por número de ocorrências: Vitrúvio, Plínio, Aristóteles (este muito mais presente que o número de vezes que é citado pressupõe), Aulo Gélio, Lúcio Columela, Marco Catão, Paládio, Vegécio, Virgílio, Cícero, Lucrécio, Salústio, S. Tomás de Aquino, e finalmente Budeu, ou seja Guillaume Budé, o célebre humanista francês que propõe a Francisco I a criação de uma das primeiras escolas trilingues da Europa (para o ensino do latim, grego e hebraico) que viria a estar na origem do CoUège de France. Nem sequer citou Andrea Palladio, o renomado arquitecto renascentista, a quem podia ir buscar preceitos da arquitectura civil para inspirar o da arquitectura naval, comparação a que alude expressamente (para isso serve-se do De Architectura de Vitrúvio). Este Paládio é o mesmo Paládio Rutilto da Arte da Guerra do Mar, portanto Paládio Rutílio Tauro Emiliano (século II), autor de um livro sobre agricultura com referências aos tipos e qualidades da madeira 250, aproveitadas 249 250 Onésimo Teotónio de Almeida, «Portugal and the dawn of modern science», in Portugal-the Pathfinder, ed. George Winius, Madison, WI, The Hispanic Seminary in Medieval Studies, 1995, pp. 341-361. Do autor v. ainda:»Sobre o papel de Portugal nas etapas preliminares da Revolução Científica do século XVII», in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, vol. II, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1986, pp. 1173-1222; «Sobre a «revolução da experiência» no Portugal do Século XVI: na pista do conceito de «experiência, a madre das cousas», in T. F. Earle (ed.), Actas do V Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, vol. 3, Oxford/Coimbra, 1998, pp. 1617-1625; e «... fique a dúvida para Pedro Nunes: sobre a cooperação entre 'cientistas' e navegadores», Oceanos, n.° 49, 2002, pp. 9-17. The Fourteen Books of Palladius Rutilius Taurus Aemilianus on Agriculture, trad. T. Owen, Londres, printed for J. White, Bookseller, 1807, em particular o Livro XII. Oliveira pode ter consultado as edições de 1541 ou 1543. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 105 para a discussão das que devem ou não servir na construção de navios, e seus tempos de corte. Assim, Fernando Oliveira evoca três tipos de fundamentos que certificam o discurso: a existência de um modelo natural, mais perfeito que tudo o mais, que se deve imitar; as opiniões de autores clássicos; e a experiência pessoal. Estamos perante textos polvilhados de referências eruditas, citações bibliográficas, recorrências a nomes e obras que revelam uma certa constância. São os autores que se prendem mais directamente com o objecto da escrita que são maioritariamente invocados, como se poderia esperar: Quintiliano em relação à Grammatica, Vegécio na Arte da Guerra do Mar, Plínio e Vitrúvio na Livro da Fabrica das Nãos. A evocação da autoridade vem corroborar um juízo já emitido ou reforçar o peso do argumento invocado ou da doutrina expressa. Ou então são os preceitos doutrinais que se vão buscar directamente às fontes, a que por sistema se segue a evocação da experiência prática como factor de verificação do enunciado expresso (condição para assegurar a validade doutrinal, como se disse). A discordância ocorre embora muito raramente, como acontece neste passo da Arte da Guerra do Mar onde Plínio é negado: «Donde Plinio allega ser opiniam de muytos, que o mar mayor, q elle chama ponto, he fõte donde nace todo essoutro mediterrâneo, porquanto de laa corre sempre o esto e nuca torna pêra laa. Sem embargo de ser Plinio, elle chama aqui esto o que o nam he como logo quero declarar» 251. Todavia, é completamente outra a posição de Fernando Oliveira quando se trata de pensar a herança clássica no seu conjunto. É fundamentalmente aos Gregos que se refere, e sempre da mesma forma: rejeitando a possibilidade do saber Antigo ser ainda o principal padrão de referência para o saber de Quinhentos. No que toca concretamente à navegação, nega que tenham sido os percursores, pois esta resulta do acumular de experiências e da sabedoria nascida de uma prática secular. Não se trata de algo para se inventar, e dar por acabado. Há um processo contributivo que vem de longe, e o saber não pode ser apanágio das civilizações que pontificaram na Antiguidade Clássica. Mas não é também um exclusivo dos europeus; neste aspecto como noutros Oliveira afirma uma quase horizontalidade antropológica que não é muito vulgar na época; o Outro também pode ser civilizado isto é, ter polícia, embora variável de caso para caso. E, naturalmente também, aprendeu a navegar. Afinal, o modelo básico a imitar era igual para todos - a Natureza: «em muntas partes do mundo, onde elles nunca forão, nem doutrina sua, achamos nauios, e arte de nauegar: em húas milhor que outras, segundo a policia, ou rudeza das gentes que nellas morão. Na china, e Iapão achamos nauios arrezoados, sem jamays laa ir noticia nem doutrina de gregos, nem do seu Neptuno. Em guinee, e no brasil nunca ouuirão nomear gregos, e sem elles nauegão a seu modo qualquer que seja, que lhe a natureza ensina» 252. 251 252 F e r n a n d o Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p . 101. Idem, Livro da Fabrica das Nãos, p . 13. 106 CAPITULO II: FERNANDO OLIVEIRA E O PRIMEIRO TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA NAVAL Esta quase horizontalidade antropológica radica no facto de todos os homens serem intrinsecamente capazes de usar a razão, possibilitando-lhes a aprendizagem pelo modelo natural: «aquillo que he necessário a todos, he o may necessário; assy como ser racional he mays necessário para ser homem, que ser branco nem preto» 253. Os tempos, esses, variam; uns concorrem mais que outros para se aperfeiçoarem os resultados do engenho humano; o contributo das civilizações é desigual, como se vê no caso da navegação, e os tempos modernos sobrepujam claramente a Antiguidade - mas vêm buscar a esta o essencial da formação erudita. Definindo por consequência uma solução de concomitante ruptura e continuidade, que a muitos níveis marca o pensamento de Fernando Oliveira. 253 Idem, ibidem, p. 147. CAPÍTULO III JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL O nome de João Baptista Lavanha tem um relevo particular no ambiente cultural ibérico, no meio século que vai dos anos setenta de Quinhentos aos anos vinte da centúria seguinte, como o evidenciam as posições institucionais ocupadas e a extensão da obra que deixou. Autor de um dos tratados portugueses de arquitectura naval, a sua biografia é-nos razoavelmente conhecida, ao contrário do que sucede com a de Manuel Fernandes e, em parte, com a de Fernando Oliveira. Deve-se a Armando Cortesão um estudo fundamental sobre a vida e obra Lavanha, ainda hoje ponto de partida e referência obrigatória : , mas o interesse pelo autor tem vindo a crescer nos últimos anos, dando azo a publicações sobre alguns dos seus trabalhos e actividades. Lavanha viveu no período da Monarquia Dual, e a carreira que desenvolveu levou-o a percorrer os caminhos da Península Ibérica, quer no sentido físico quer no domínio estritamente intelectual, cruzando dois universos culturais e técnicos que, em certos aspectos, viviam separadamente. A obra que deixou, extensa e polifacetada, tinha por força de suscitar a atenção dos estudiosos: engenheiro, matemático, cosmógrafo, cronista, genealogista, cartógrafo, historiador, teórico da arte de navegar bem como da arquitectura naval, professor de discípulos ilustres e de méritos reconhecidos, às múltiplas actividades que desenvolveu nem sequer estiveram alheias algumas das grandes questões do tempo. Assim aconteceu com a determinação da validade do método da agulha fixa proposto por Luís da Fonseca Coutinho para o cálculo da longitude no alto mar, como por igual não evitou a polémica acerba, que se abateu sobre a questão da verdadeira autoria da Década Quarta da Ásia de João de Barros, cujo Armando Cortesão, «João Baptista Lavanha», in Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos Séculos XVe XVI, vol. II, Lisboa, Seara Nova, 1935, pp. 294-316. 108 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL neto acusou Lavanha de se ter apropriado do trabalho do avô para o apresentar como trabalho seu 2. Uma obra de relevo invulgar num período efervescente, mas desse Lavanha não participou, vistas as coisas de um modo convencional: no processo que haveria de levar à chamada Revolução Científica não consta o seu nome como 'descobridor' ou autor de algum trabalho fundamental no domínio das ciências que, embora nem sempre directamente assumidas como tal, são consideradas normalmente como 'motor de arranque' de processos de transformação radical da mundividência de uma época. Lavanha não deixou nenhum estudo inovador sobre a cinemática do Universo ou qualquer coisa similar; a sua obra inscrevese na esfera das que foram capitalizando conhecimentos cada vez mais extensos sobre o mundo físico, se pensarmos na componente mais técnica (como a náutica ou a cartografia), a par das contribuições para aquelas áreas que acabam sempre por ser desconsideradas nesse processo, das belas letras, como se lhes chamaria mais tarde, à pedagogia. Um cientista, técnico e pedagogo não 'revolucionário', portanto? Numa época em que se discute vivamente o próprio conteúdo do conceito de 'Revolução Científica', talvez faça todo o sentido equacionar este antes de o empregar como método de classificação da relevância do que foi sendo produzido. Afinal, Steven Shapin não vem de afirmar que a Revolução Científica não existiu? 3 No fundo, são homens como Lavanha que marcam uma época, dando conta do estado dos conhecimentos, dos avanços mais importantes, quando os próprios os protagonizam, como foi o caso, e, quando a questão se coloca, da articulação entre os domínios técnico-científicos e político-institucionais. Em todos estes aspectos a obra em apreço é deveras notável. Uma figura bem conhecida, apesar de tudo, em comparação com os outros autores de tratados portugueses de arquitectura naval; mas não se pode dizer o mesmo face a alguns dos seus contemporâneos, que têm merecido mais atenção. Se considerarmos o ambiente técnico-científico da Península Ibérica nesta época, a figura de Lavanha parece subitamente obscurecida face à que manifestamente foi a sua influência no tempo e a consideração que granjeou em todos os meios, a ponto de Sousa Viterbo ter dito dele que «não teve todavia a queixar-se, como tantos outros de elevado valor intelectual, da inconstância e da ingratidão da fortuna» 4. Nesse estudo que baliza grande parte do que sabemos a seu respeito, Armando Cortesão afirmou com toda a justeza que «está ainda por fazer o V. Joaquim Veríssimo Serrão, A Historiografia Portuguesa. Doutrina e Crítica, vol. II, Lisboa, Verbo, 1973, pp. 260-265, com argumentos a favor da clareza de intenção e procedimento de Lavanha. «A Revolução Científica não existiu, e este livro é acerca disso»: Steven Shapin, A Revolução Científica, Lisboa, Difel, 1999, p. 25 (ed. orig.: The Scientific Revolution, Chicago, University of Chicago Press, 1996). Francisco Marques de Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, reprodução em facsímile, Lisboa, IN-CM, 1988, p. 171. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 109 estudo completo da biografia e obra notabilíssima deste sábio português» 5, observação que mantém plena validade. A biografia para a qual não faltam até elementos, como aquele ilustre historiador da cartografia deixou patente, não apareceu ainda; e quanto aos historiadores espanhóis, a quem se devem as últimas contribuições significativas 6, este interesse é relativamente recente 7, «quizá por el hecho de ser de origen português», como vem de afirmar Alfonso Ceballos 8. O que se averiguou até hoje da biografia e da obra deste notável homem de ciência dos séculos XVI e XVII chega porém para o propósito que importa neste momento, ou seja, o entendimento da inserção do Livro Primeiro de Architectura Naval no quadro da produção do seu autor e das circunstâncias de vida deste. O que escreveu, e porque escreveu, decorre quase sempre de funções ou obrigações inerentes a cargos desempenhados. Mas pode não ter sido assim com este tratado que dedicou à arte de fazer navios, como se verá na altura devida. 1. O COSMÓGRAFO DO REI João Baptista Lavanha nasceu nos meados do século XVI, em data incerta, provavelmente em Lisboa. Barbosa Machado deu-o primeiro como natural da cidade e filho de um homónimo falecido a 5 de Fevereiro de 1555, mas Armando Cortesão teve ensejo de apurar mais exactamente os dados relativos à família de que provinha 9: a naturalidade de Lisboa é provável mas não segura, e foram Armando Cortesão, op. cit., p. 295. Dos estudos de Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pifieiro dedicados à História da Ciência ibérica dos séculos XVI e XVII (citados mais à frente) pode e deve com toda a justiça dizer-se que a erudição que patenteiam não ignora a contribuição portuguesa para a ciência ibérica, antes a valoriza devidamente, como fica patente no caso de Lavanha. Não que fosse desconhecido: o decano dos historiadores da ciência espanhóis, José Maria López Pifiero, refere Lavanha mas apenas em duas curtas linhas, num capítulo dedicado à arte de navegar, incluindo a declinação magnética, a determinação das longitudes e a construção naval, no seu estudo Ciência y Técnica en Ia Sociedad Espanola de tos Sigíos XVI y XVII, Barcelona, Labor, 1979 (v. aspp. 196 a 211). Numa obra de maior divulgação, El arte de navegar en Ia Espana dei Renacimiento (Barcelona, Labor, 1979), tanto Lavanha como toda a contribuição portuguesa para a arte de navegar espanhola são praticamente ignorados. Alfonso Ceballos-Escalera Gila, «Una navegación de Acapulco a Manila en 1611: el Cosmógrafo Mayor Juan Bautista de Labana, el inventor Luis de Fonseca Coutinho, y el problema de Ia desviación de Ia aguja», in Revista de Historia Naval, Ano XVII, n.° 65, Madrid, 1999, p. 9. Baseando-se num documento de 1745, Diogo Barbosa Machado começou por atribuir a filiação de Lavanha ao avô seu homónimo, levando Armando Cortesão a afirmar que «a irreflexão (que nos perdoe a memória do douto Abade de Sever, tão grande benemérito das Letras!), de Barbosa Machado foi origem de idênticas afirmações de vários outros autores» (op. cit., p. 315). A quem escreveu estas linhas escapou na altura que no vol. IV da Bibliotheca Lusitana se corrigia a afirmação do vol. II, atribuindo a Lavanha a filiação correcta {Bibliotheca Lusitana, 3." ed. org. por Manuel Lopes de Almeida e César Pegado, vol. II, Coimbra, Atlântida Editora, 1965, p. 598, e vol. IV, 1967, p. 174). O mesmo aconteceu a Inocêncio Francisco da Silva no Dicionário Bibliográfico Português, vol. III, reed., Lisboa, IN-CM, 1973, p. 306, informação não corrigida por Brito Aranha ou Martinho da Fonseca. 110 CAPITULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCMTECTURA NAVAL seus pais Luís de Lavanha, escudeiro fidalgo ao serviço da Casa Real, falecido em 1604, e D. Jerónima Daça, cuja defunção terá ocorrido uns dez anos mais tarde, pois data de 25 de Julho de 1613 o seu testamento e de 2 de Outubro a procuração que o filho passou para que se tratasse da venda de um solar que possuía em Lisboa, ao que tudo indica herdado de seus pais 10. Era Luís de Lavanha filho de João Baptista Lavanha, assim avô do nosso cosmógrafo. Quanto à presunção do local de nascimento, esta decorre de um documento de 19 de Dezembro de 1587, assinado pelo Doutor Miguel de Lavanha, seu irmão, vizinho e natural de Lisboa, que deu procuração para que outrém tomasse posse de uma herdade que possuía nas cercanias da cidade de Lisboa, num local conhecido pelo nome de Pampulha, onde se situava também o solar que João Baptista pretendeu vender posteriormente; dever-se-iam portanto situar aí a ou as propriedades de Luís de Lavanha, dado como vizinho de Lisboa neste documento n. Miguel de Lavanha tomou ordens sacras por volta daquela data de 1587 e por 1613 já era falecido, pois D. Jerónima Daça diz no seu testamento ter apenas um filho vivo. Este veio a assumir dívidas antigas do irmão no seu próprio testamento 12. Sendo o irmão natural de Lisboa e o pai vizinho da mesma cidade, talvez aí nascido, pode presumir-se que João Baptista o seria também. Nasceu portanto no seio de uma família que ao menos vivia na cidade, próxima da Casa Real e com algumas posses, não obstante a ascendência judaica, porventura longínqua, mas aludida expressamente no documento em que Filipe III fez escrever que tinha concedido o hábito de Cristo ao seu cosmógrafo-mor, «sem embargo de ser descendente da nação hebraica» 13. Lavanha casou com D. Leonarda de Mesquita, de quem teve numerosa prole 14. Há alguma informação sobre a sua descendência mas não a seguiremos aqui - é tarefa para o biógrafo que Lavanha ainda não tem - a não ser na medida em que nos auxilie a situar melhor a pessoa do progenitor. O valimento do pai junto do rei continuou com o filho Tomás, o mais novo, nascido em 1598 ou 1600; pertenceu às Casas do Príncipe das Astúrias e do rei, de quem foi secretário desde 1648 até ao falecimento de Filipe IV, ocorrido três anos depois. Tomás casou com D. Maria Ladrón de Guevara y Vallejo, dama da Casa da rainha, de quem teve dois filhos e duas filhas (uma outra filha havida fora do matrimónio veio a ser abadessa do convento onde eram monjas as suas 10 11 12 13 14 V. Armando Cortesão, op. cit., pp. 315-316: os oitenta documentos em que o autor se baseou para traçar a biografia de Lavanha, e para os quais remete a par e passo, publicou-os neste estudo a pp. 295-315. Parte desta documentação fora publicada por Sousa Viterbo, op. cit., pp. 171-183. Parcialmente transcrito por Armando Cortesão, op. cit., pp. 297-8. Idem, ibidem, pp. 315-6. Consulta da Mesa da Consciência e Ordens datada de 10 de Abril de 1607, citada por Sousa Viterbo, op. cit., p. 172. Armando Cortesão (op. cit. p. 316) e Alfonso Ceballos (op. cit., p. 13) desacertam nesta questão; seis filhos segundo o primeiro, três varões e quatro filhas de acordo com o segundo. É possível que a mais velha das filhas tenha morrido muito cedo, e daí a diferença; certo é que a documentação conhecida não o permite esclarecer em definitivo. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 111 meias irmãs). À boda assistiram os monarcas, os príncipes e dez Grandes de Espanha, obtendo então Tomás uma comenda da Ordem de Cristo, tal como seu pai, e bem assim uma alcaidaria perpétua na Sicília e um título em Itália 15. As irmãs Maria da Conceição e Filipa entraram no convento da Concépcion Francisca de Madrid no dia 1 de Janeiro de 1623, levando como madrinhas a condessa de Olivares (mulher do conde-duque de Olivares) e a marquesa de Castelo Rodrigo. Ao acto assistiram também o monarca e os príncipes, tendo o Infante Cardeal pago os 500 cruzados de um dos dotes. Tudo junto, como diz Alfonso Ceballos, dá-nos bem uma ideia da consideração merecida por Lavanha junto da Corte e dos mais elevados meios sociais e políticos de época 16. O tempo era evidentemente propício à valorização do trabalho técnico e científico, verificada a partir do século XVI, sobretudo quando se torna patente que as observações e experimentações decorrentes dos trabalhos mais práticos se traduzem em mais valias significativas do duplo processo de conhecimento e intervenção sobre a Natureza, deixando o estudo e compreensão deste meio natural de ser apanágio principal dos filósofos e da reflexão teórica 17. Esta valoração da técnica e do estatuto social dos seus cultores foi um dado do Renascimento em geral, observável por igual em Espanha, conforme apontou José Maria López Pinero 18. Sinal dos tempos, sem dúvida, mas a consideração merecida por Lavanha deveu-a por igual aos méritos que evidenciou desde cedo na condução das missões e dos trabalhos de que foi encarregue. No testamento deixou escrito que servira durante 52 anos continuados, o que nos remete para o ano de 1572 como data da sua entrada ao serviço de D. Sebastião, de quem foi professor de matemática, ainda segundo o seu próprio testemunho, sugerindo todavia Armando Cortesão que «mais provavelmente, o serviu como matemático» 19. É todavia isso que está escrito pela mão do próprio: que fora mestre de matemática do rei (Filipe IV), do seu pai e do avô, e de D. Sebastião 20. Apesar da pouca idade que tinha na altura deve realmente ter ministrado algumas lições ao monarca português 21, que o terá mandado a Roma para prosseguir os 15 16 17 18 19 20 21 Alfonso Ceballos, op. cit., p. 13 e em particular n. 13. Idem, ibidem, pp. 13-14. Paolo Rossi, Os Filósofos e as Máquinas 1400-1700, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, sobretudo a Parte I. José Maria López Pinero, «El papel social dei científico en Ia Espana dei Renacimiento», in Pedro González Blasco, José Jiménez Blanco, e José Maria López Pinero, Historia y sociologia de Ia ciência en Espana, Madrid, Alianza Editorial, 1979, pp. 16-40. Armando Cortesão, op. cit., p. 317. O testamento de Lavanha, entre outros documentos de importância vital para este registo biográfico, foi publicado por Cristóbal Pérez Pastor, Bibliografia madrilena 6 descripción de Ias obras impresas en Madrid, vol. II, Madrid, Tipografia de los Huérfanos, 1891-1907, pp. 316-321; há uma reedição moderna: Amsterdão, Géreard Th. Van Heusden, 1971. Note-se que Cortesão cita estes documentos directamente dos originais (que se encontram no Arquivo Histórico de Protocolos de Madrid, com a referência Joan Gomes, 1624, fls. 567-569) por considerar pouco fiáveis as versões publicadas (op. cit., p. 296, n. 2). Maria Isabel Vicente Maroto, «Juan de Herrera, científico», in Juan de Herrera, Arquitecto Real, Barcelona, Ed. Lunwerb, 1997, p. 159. Mas não se vê como sustentar a ideia da existência de «um 112 CAPÍTULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL estudos 22 . Este facto é sempre tido como dado adquirido, mas Lavanha não o menciona no testamento ou em qualquer outro dos seus escritos: antes se abona apenas no testemunho tardio do editor da mais conhecida das suas obras de genealogia, o Nobiliário de D. Pedro, publicado em Roma em 1640 por conta do marquês de Castelo Rodrigo 2i. A elevação de Filipe II de Castela a rei de Portugal viria a alterar consideravelmente o quadro técnico e científico do país no que toea aos aspectos relativos à arte de navegar, e em relação a João Baptista Lavanha representou o ponto de viragem de uma carreira já iniciada, agora aberta a outros rumos e possibilidades. Ao tornar-se rei de Portugal, Filipe II passou a ser também soberano do país onde pontificavam muitos dos mais experientes e conhecedores especialistas em matérias técnico-científicas relativas à arte de navegar, e outros assuntos com ela relacionados. A utilização destes recursos humanos por parte do monarca espanhol, agora sem a recorrência aos subterfúgios da espionagem ou da contratação mais ou menos subreptícia de cartógrafos e astrónomos, entre outros, como foi visível ao longo do século XVI no que ao interesse espanhol pelos técnicos portugueses diz respeito, evidencia por si só que o cumprimento dos objectivos propostos não podia ser satisfeito recorrendo apenas aos especialistas espanhóis. Algumas das nomeações de que Lavanha beneficiou podem bem ser justificadas pela conjugação dos méritos do nomeado com a sensibilidade política de quem o ordenava: a carta patente que regulou juridicamente parte dos termos em que se deu a integração de Portugal, promulgada em 15 de Novembro de 1582, consagrava um certo número de garantias ao reino, entre as quais se contava a nomeação de nacionais para os cargos mais relevantes 24, embora no caso das sucessivas nomeações de Lavanha pesassem por igual (ou sobretudo) quer o óbvio favor pessoal do monarca quer a competência demonstrada. E ao procurar um professor para ler matemáticas na academia que queria criar em Madrid, Filipe II recorreu à melhor solução a que teve acesso, possível 22 23 24 ensino formal da Arquitectura» em que Lavanha teria um papel de relevância, ou como a substituição de Pedro Nunes por aquele, durante a ausência em Coimbra do então cosmógrafo-mor, para leccionar matemáticas e cosmografia a D. Sebastião, poderia consubstanciar a existência de uma «lição» ou «escola particular de moços fidalgos», como quer Rafael Moreira, em estudo de resto importante para o conhecimento da ambiência técnico-científica da época (v. Rafael Moreira, «A Escola de Arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid», in As Relações Artísticas entre Portugal e Espanha na Época dos Descobrimentos, coord. Pedro Dias, Coimbra, Livraria Minerva, 1987, pp. 65-77, em especial as pp. 66-68). Importa deixar claro que não se podendo ter a certeza da ida de Lavanha para Roma, ainda menos se sabe o que teria ido aí estudar: se aprofundar os seus conhecimentos matemáticos, cultivar as humanidades, ou até as duas coisas. Brito Aranha dá conta da afirmação imputada ao bispo do Pará, fr. João de S. José, segundo a qual o patrono desta edição pretendeu com ela apagar traço do judeu Rui Capão, «de quem descende muita fidalguia portuguesa» (cit. no Dicionário Bibliográfico Português, vol. X, ed. cit., p. 176). Carlos Margaça Veiga, «O governo filipino (1580-1640)», in História de Portugal dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias, dir. de João Medina, vol. VII: Portugal Absolutista, Lisboa, Ediclube, 1994, p. 49. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 113 apenas porque o novel professor, tal como todos os seus compatriotas, era agora seu súbdito. A ideia de criar uma Academia de Matemática em Madrid não era nova, e inscrevia-se na continuada preocupação dos monarcas espanhóis na preparação dos seus oficiais de navegação - os pilotos -, tendo como seguro que tal desiderato só podia conseguir-se elevando o nível dos estudos teóricos e práticos das matérias correlatas da arte de navegar. Os recursos humanos disponíveis eram insuficientes: já em 1551 ^e registara notória dificuldade em encontrar quem tivesse perfil adequado para ocupar o lugar de Piloto Mor da Casa de Ia Contratación de Sevilha, uma vez que Sebastião Caboto estava então ausente. O lugar de cosmógrafo de fazer cartas e instrumentos de navegação, adstrito à mesma instituição, tinha ao invés dois titulares, Alonso de Chaves e Alonso de Santa Cruz, mas o segundo raras vezes estava presente, por ser chamado a desempenhar outras missões com dispensa daquele serviço; e o visitador real chegou a informar o Consejo de índias da vantagem de suprimir o lugar de Piloto Mor, criando uma cátedra com a verba assim disponível. A instituição do cargo em 1508 tivera uma finalidade bem definida, a de propiciar conhecimentos teóricos e práticos adequados aos mestres e pilotos da Carreira das índias, mas quase meio século depois tal desiderato estava por cumprir, como reconhecem Mariano Esteban Pifleiro e Francisco José González 25; conclusão esta que veio a^ér confirmada por um estudo realizado sobre um universo de cerca de 800 tripulantes da Carreira, o qual evidenciou que, não obstante terem a obrigação de seguir as lições pelo menos durante um ano, e depois obter aprovação no exame que dava acesso à cédula profissional, 26% dos pilotos nem sequer eram capazes de assinar o seu nome 26; e essa percentagem sobe para 56% se se considerarem os mais oficiais de bordo (mestres, contramestres, guardiães e outros) 27 . Filipe II acompanhou o problema da formação dos seus homens de mar com interesse continuado, e em 1563 foi criado o lugar de Cosmógrafo Mor da Casa de Ia Contratación, o que pressupunha a extinção do de Piloto Mor; mas aquele lugar foi efémero, e não passou de 1567. As Cortes de Tomar vieram resolver a questão, indirectamente embora, mas já antes disso o monarca procurara informações onde as poderia encontrar com a melhor qualidade e mais facilidade: exactamente no vizinho reino 25 26 27 Mariano Esteban Pifleiro, «Los cosmógrafos ai servido de Felipe II. Formación científica y actividad técnica», Maré Liberum, n.° 10, Lisboa, 1995, p. 527; Francisco José González, Astronomia y Navegación en Espana. Siglos XVI-XVIH, Madrid, Editorial Mapfre, 1992, p. 50. A falta de capacidade dos pilotos para aproveitarem os textos técnicos de que se poderiam servir como auxiliares de navegação podia ser suprida pela memória: de Roque Lopes, piloto português dos meados do século XVI, disse-se que sabia a carreira da índia de cor, e sempre navegara com feliz sucesso (Abel Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, A." ed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983, p. 290, n. 394). Pablo Emílio Pérez-Mallaína Bueno, Los Hombres dei Oceano, Vida cotidiana de los tripulantes de Ias flotas de índias. Siglo XVI, Sevilla, Sociedad Estatal para Ia Exposición Universal Sevilla 92, S.A., 1992, p. 241. 114 CAPÍTULO III: JOÀO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL de Portugal. Neste processo teve papel decisivo o cosmógrafo napolitano Juan Bautista Gesio, arvorado em espião para o efeito, condição na qual jordaneou por Portugal duas vezes: a primeira até 1574, a segunda em 1578-9, regressando enfermo. A primeira viagem foi particularmente proveitosa, já que reuniu um valioso espólio de informação documental que provavelmente reflectia o que de melhor se tinha produzido em Portugal: além de ter obtido a colaboração do cartógrafo Luís Jorge de Barbuda, que veio a ser preso antes de conseguir fugir para Castela, trouxe mais de dez roteiros, dois relatos da viagem de Magalhães, um tratado sobre o Brasil, e ainda cópias de um roteiro de D. João de Castro e do Esmeraldo de Situ Orbis, esta última a mais antiga versão da obra de que há notícia 28. O principal objectivo de Filipe II com esta missão era municiar a pretensão espanhola na já longa polémica sobre a localização das Molucas com base em dados portugueses, e Gesio prestou valiosos serviços a um monarca que o recompensou de forma algo estranha: 30 ducados para ajuda nos gastos da primeira viagem, aquando do termo da mesma, acrescidos de mais 10 para se sustentar enquanto estivesse em Madrid: o necessário e suficiente para que viesse a morrer na maior das misérias, depois de ter chegado ao ponto de ter de vender os seus livros em leilão, onde apurou 45 ducados destinados a pagar parte das dívidas que fora entretanto obrigado a contrair para sobreviver29. Foi no ano seguinte ao regresso da primeira viagem a Portugal que Gesio se propôs a Filipe II para ler cosmografia em Madrid, com toda a probabilidade sem o intuito de contribuir para o processo de criação de uma academia, ou ainda menos iniciá-lo, mas simplesmente para obviar à difícil situação em que se encontrava. Aponta-se 1575, porém, como a data em que se referiu pela primeira vez essa possibilidade, coarctada pela insustentável situação financeira do erário real 30 . Mas o passo em frente era inevitável. Tal como Gesio, e como ele por igual mal pagos, Filipe II tinha ao seu serviço alguns cosmógrafos que residiam na corte e eram encarregues de missões de ordem vária, sempre com o propósito de acorrer às necessidades de uma monarquia que entendia perfeitamente a premência de ter técnicos capazes na arte da navegação para resolver os problemas de uma potência que, em certo sentido, dependia da capacidade dos seus homens do mar. O próprio monarca mostrou interesse pessoal pelas matérias de navegação 31 e, como mostrou David Goodman, um pouco ao arrepio da ideia que fez escola na historiografia, este foi um reinado atento a estas necessidades 32. Para mais Filipe II estava bem 28 Luís de Albuquerque, «A projecção da Náutica Portuguesa Quinhentista na Europa», in Estudos de História, vol. I, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1974, pp. 209-210. V. ainda Joaquim Barradas de Carvalho, A Ia recherche de Ia specificité de Ia renaissance portugaise: l'«Esmeraldo de situ orbis» de Duarte Pacheco Pereira et Ia litterature portugaise de voyages à Vépoque des grandes decouvertes, vol. I, Paris, FCG-CCP, 1983, pp. 207-208. 29 Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pifleiro, Aspectos de Ia Ciência Aplicada en Ia Espana dei Siglo de Oro, s/l, Junta de Castilla y Léon, 1991, pp. 77-78. 30 Idem, ibidem. 3 ' David Goodman, Poder y penúria. Gobienio, tecnologia y ciência en Ia Espana de Felipe II, Madrid, Alianza Editorial, 1990, pp. 72 e ss. 32 Idem, ibidem, p. 109. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 115 assessorado por Juan de Herrera, que funcionava como supervisor dos cosmógrafos do rei 33 . Foi Herrera que delineou a Academia de Matemática de Madrid, quer tratando de dirigir o processo que levaria à sua criação, segundo tudo o leva a crer, quer explicando os objectivos que se pretendiam atingir numa obra publicada em 1584, onde realça a importância da matemática como ciência da qual derivavam todas as outras; uma obra que veio a lume com a aprovação de João Baptista Lavanha 34 . Não era um ensino teórico que estava na mente dos promotores da Academia: a partir de 1607 todas as cartas de nomeação dos catedráticos explicitavam que o curso completo de matemáticas se devia ler em três anos, tratando como assuntos principais a esfera, a geometria e a cosmografia e navegação, respectivamente nos primeiro, segundo e terceiro ano 3 5 . A Casa de Ia Contratación estava longe da corte e os recursos humanos mal chegavam para suprir as suas próprias necessidades 36 , e, por sua vez, a Casa não esgotava as do Estado. A Academia representava o estabelecimento da complementaridade desejada. A partir de 1580 os problemas tornam-se mais complicados ainda e resolvem-se, a um tempo. A coroa de Portugal traz consigo uma prática de navegação que, somada à espanhola, se traduz num espaço marítimo que tem agora uma escala verdadeiramente planetária: bem vistas as coisas, a Carreira da índia, a nau do trato, o galeão de Manila e a Carreira das índias davam a volta ao mundo. E traz também os práticos dessa navegação, e os homens que até então melhor que ninguém tinham perspectivado teoricamente a arte de navegar. Sem ter de recorrer a espiões ou outros expedientes, como se disse, Filipe II tinha agora a possibilidade de fazer os recrutamentos necessários para dar corpo aos seus projectos. O monarca entrou em Portugal no dia 5 de Dezembro de 1580, foi jurado rei a 15 de Abril de 1581, e não saiu senão já entrado o ano de 1583. Entretanto tomara contacto directo com os meios técnico-navais portugueses, e terá sido seguramente Juan de Herrera 37 a apontar o nome de João Baptista Lavanha para o lugar que se queria criar, perante a nova situação que agora surgia: a união das coroas esbatia um dos problemas que mais prementemente exigira a atenção do monarca, o do prolongamento oriental do semi-meridiano acordado em Tordesilhas 38, e resolvia por outro lado a escassez de gente qualificada. 33 34 35 36 37 38 Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pifieiro, op. cit., p. 76. Maria Isabel Vicente Maroto, «Juan de Herrera, científico», pp. 159-160. Idem, ibidem, p. 160. O que poderia justificar a transladação para Lisboa, como foi aventado depois de 1580 (Manuel Fernández Álvarez, Felipe IIy Su Tiempo, Madrid, Espasa Calpe, 1998, p. 531). Sobre este período v. Jorge Segurado, «Juan de Herrera em Portugal», in As Relações Artísticas entre Portugal e Espanha na Época dos Descobrimentos, coord. Pedro Dias, Coimbra, Livraria Minerva, 1987, pp. 99-111. O tratado de Tordesilhas apenas definiu uma raia de pólo a pólo que separava as áreas de influência portuguesa e castelhana no Atlântico, não havendo lugar a que se possa falar da «divisão do mundo», como resulta claro do articulado: v. o texto em João Martins da Silva Marques, 116 -CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL O rei nomeia Lavanha no dia de Natal de 1582, com entrada em funções a partir de 1 de Janeiro do ano seguinte pelo tempo que aprouvesse ao monarca, auferindo um salário de 400 ducados anuais: «Sabed que deseando el aprovechamiento de nuestros vassalos, y que en nuestro reyno haya hombres expertos que entiendan bien Ias Matemáticas y Ia Arquitectura y Ias otras ciências y faculdades á ella anejas, y teniendo aprobada relacion de Ia habilidad y suficiência de Juan Bautista de Labafia, hemos acordado de recic birle en nuestro servicio para que se ocupe en nuestra corte y donde se le ordenare en cosas de Cosmografia, Geografia y Topografia, y en leer Matemáticas...» 39. Além de um vencimento muito alto, maior que o do cronista mor e cosmógrafo do Consejo de índias e sensivelmente o dobro do dos catedráticos da Universidade, que garantia a Lavanha o melhor ordenado pago em Espanha ao titular de um cargo científico (excepção feita ao próprio Juan de Herrera, que percebia 1000 ducados, além de outras benesses), a qualidade de criado do rei então concedida garantia-lhe ainda vários outros privilégios, como a moradia na Corte ou uma verba substitutiva caso não houvesse alojamento disponível, o acesso gratuito à botica real e isenção da prestação de contas à máquina judicial: na presunção de crime, o criado do rei só podia ser julgado pelo próprio monarca 40. No mesmo dia foi nomeado para ajudante de Lavanha e com metade do vencimento um jovem de nome Pedro Ambrosio de Ondériz, que nessa altura se encontrava também em Lisboa. A concepção desta academia comportava uma novidade radical: o ensino em vernáculo. O objectivo era formar o maior número possível de cosmógrafos e peritos em navegação, para obviar à sua continuada falta, fazendo-o com a melhor preparação possível e a máxima rapidez 41 . Como se tornava imprescindível o domínio do latim e do grego para ler as obras de geometria e astronomia, facto que alhearia muitos de uma possível vocação ou disposição para o estudo destas matérias, Ondériz foi enviado para Lisboa pelos meados de 1581, sob orientação de Juan de Herrera, para estudar matemáticas e iniciar a tradução de alguns textos considerados prioritários para o ensino. 39 40 41 Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, reed., vol. III, Lisboa, INIC, 1988, pp. 432-440; ou, em nova leitura, Luís Adão da Fonseca e Maria Cristina Cunha, O Tratado de Tordesilhas e a Diplomacia Luso-Castelhana no Século XV, Lisboa, INAPA, 1991, pp. 81-91. Poucos anos depois da chegada ao Oriente, passou a discutir-se entre as duas potências ibéricas a transformação desse semi-meridiano num meridiano completo, definindo o direito de cada parte à navegação e comércio das terras orientais; não obstante os confrontos que se registaram, acabou por se chegar a um clima de entendimento que só iria ser radicalmente posto em causa pela chegada dos Holandeses ao Oriente (António Dias Farinha, «A Fixação da Linha de Tordesilhas a Oriente e a Expansão Portuguesa», in El Tratado de Tordesillas y Su Época. Congreso Internacional de Historia, vol. III, Madrid, Sociedad V Centenário dei Tratado de Tordesilhas, 1995, p. 1482). Diploma citado por Armando Cortesão, op. cit., p. 295. Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pineiro, op. cit., pp. 81-82. Mariano Esteban Pineiro, op. cit., p. 533. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 117 Os cursos na nova Academia tiveram início em Outubro de 1583, com uma lição matinal de Lavanha, que ensinou, tudo leva a crê-lo, os aspectos mais práticos da arte de navegar. Ondériz começou no ano seguinte uma aula à tarde, mais voltada para a geometria 42 . Lavanha foi o único professor da cátedra que ficou dispensado de proceder a traduções de textos, obrigação imposta a todos os que se lhe seguiram. Havia um «terceiro homem» na Academia? No mesmo dia, 25 de Dezembro de 1582, em que foram passadas as cédulas que firmaram a contratação dos serviços de Lavanha e Ondériz, Filipe II tomou ao seu serviço o cartógrafo português Luís Jorge de Barbuda 43, talvez em recompensa dos bons serviços por este prestado anteriormente: Luís Jorge fora o grande auxiliar de Gesio durante a primeira estada deste em Lisboa, recrutado para o serviço de Castela pelo próprio ou por D. Juan de Borja, embaixador em Lisboa, quiçá a troco de um lugar na Corte de Madrid. Ao pretender abandonar Portugal foi descoberto e preso, situação em que se manteve por dois anos, até conseguir reunir-se novamente a Gésio, o qual o recomendou vivamente a Filipe II. Este tomá-lo-á a seu serviço com o soldo de 150 ducados anuais, verba relativamente importante na altura, mas que veio a sofrer de pronto os efeitos erosivos da inflação. Barbuda viveu vinte anos em Madrid, trabalhando sob a jurisdição de Juan de Herrera, até lhe ser dada ordem para fixar residência em Lisboa, porventura em consequência de um conflito com o então prestigiado Garcia de Céspedes. Tal como Gésio acabou na miséria, carecendo de um auxílio de 80 ducados para poder custear as despesas da mudança para Lisboa 44 . Assim se completaria a tríade que constituía o pessoal da Academia, composta pelo professor, Lavanha 45 , pelo assistente e tradutor, Ondériz, e pelo mestre de fazer cartas de marear, Barbuda. Este deve realmente ter trabalhado perto, ou quiçá nas próprias instalações da Academia, e em parte para ela: mas os documentos não permitem concluir pela certeza da sua afectação directa à nova instituição 46. Na Academia não se deve ter ensinado mais que cosmografia e arte de navegar 47 , dado que o número de horas de aula era insuficiente para mais: 42 43 44 45 46 47 Idem, ibidem, p. 534. Pouco se conhece da obra de Luís Jorge de Barbuda, mas está fora de causa que não fosse de primeira qualidade, conforme concluíram Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota: v. do primeiro, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos Séculos XV e XVI, vol. II, pp. 276-285, e de ambos os autores, Portugaliae Monumenta Cartographica, reprodução facsimilada da edição de 1960, vol. II, Lisboa, IN-CM, 1987, pp. 123-125. Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pifleiro, op. cit., pp. 83-86. Apesar de se lhe referirem pontualmente como catedrático, e assim seja apontado por quase todos os autores que versam o assunto, importa notar que Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pineiro deixam claro que nunca lhes foi dado ver um só documento em que Lavanha seja oficialmente denominado como tal, antes dele se dizia sempre que lia as matemáticas (op. cit., p . 87). Idem, ibidem, p. 84. Para Luís de Albuquerque, «Lavanha, além de historiador e cosmógrafo, era essencialmente um engenheiro geógrafo; na 'aula de matemática', que regeu em Madrid, dedicava algumas lições à 118 CAPÍTULO III: JoAo BAPTTSTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL umas dez ou doze por semana 48. Quanto aos alunos, poucos se conhecem na década de oitenta, sendo de assinalar que Lope de Vega foi um deles eficoucom a melhor impressão do «doctíssimo português», o «Mathemático insigne» que foi seu professor, como normalmente referem os biógrafos de Lavanha; mas o mesmo não terá acontecido com Miguel de Cervantes, ao contrário do que é também usual ver escrito 49. Lavanha passou os anos oitenta em Madrid, lendo as suas lições: deve portanto entender-se que a nomeação para engenheiro do reino de Portugal significou sobretudo a possibilidade de ver crescer os seus réditos, talvez como forma de o recompensar pelos bons serviços prestados. Coincidência ou não, a própria Academia em que dava aulas foi remodelada (no sentido de diminuir os custos de funcionamento e, até, a sua importância relativa) logo depois da saída do primeiro professor. O documento de nomeação como engenheiro do reino de Portugal data de 4 de Novembro de 1586 50 e trata sobretudo de estabelecer o soldo (200 cruzados anuais) e regular as datas e mecanismos de pagamento, com notória omissão ao que se poderia esperar do exercício destas funções, ou sequer da respectiva definição51, tanto mais que o cargo era desempenhado pela primeira vez 52 . A reforçar esta ideia, Armando Cortesão anota a existência de uma procuração que o cosmógrafo passou a seu pai, com data de 6 de Junho de 1587, para que este pudesse cobrar tudo o que se lhe devia naquele reino 53 - com certeza os salários do novo posto, que deveriam ser pagos no local. Haveria lugar a uma nova nomeação em 1591, mas desta feita com objectivos bem diferentes, e o assunto, que se prende com a formação dos técnicos de navegação, bem merece que nos detenhamos nele. Luís de Albuquerque enunciou com acerto um facto que não deixa de ter o seu quê de paradoxal: «Apesar da organização com que em Espanha se procurou estruturar muito cedo todas as actividades de carácter técnico relacionadas com as navegações (arte náutica, desenho de cartas, construção de instrumentos, elaboração de roteiros, etc), esse exemplo não teria sido imediatamente 48 49 50 51 52 53 arquitectura e à topografia; e para os trabalhos da topografia prática inventou um goniómetro, depois conhecido pelo seu nome...» («Origem da profissão de engenheiro em Portugal», in Para a História da Ciência em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1973, p. 157). Porém, o autor não indica as fontes em que se baseou para alicerçar esta informação. I d e m , ibidem, p p . 93 e 95-96. V. p o r todos: i d e m , ibidem, p p . 96-97. 1587, segundo A. Cortesão, op. cit., p. 318, certamente por lapso tipográfico. Este autor, como Sousa Viterbo e Luís de Albuquerque, dá-o por engenheiro-mor, mas o documento não diz tal. IAN/TT, Chanc.de Filipe I, Doações, liv. 17,fl.78;publicadoporSousaViterbo,op.«?.,pp. 173-174. Viterbo não dedicou nenhuma entrada ao primeiro engenheiro do reino de Portugal no seu Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses (reed. facsimilada, 3 vols., Prefácio de Pedro Dias, Lisboa, IN-CM, 1988), facto um pouco estranho, pois a primeira edição, cujos volumes foram editados entre 1899 e 1922, é posterior aos Trabalhos Náuticos. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 156. Armando Cortesão, op. cit., pp. 297 e 318. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 119 seguido em Portugal; pelo menos, não dispomos de qualquer indicação que nos permita afirmar que a Corte de Lisboa tivesse posto em prática qualquer organização análoga àquela que para esse fim existia na Casa de Ia Contratación de Sevilha» 54. Um paradoxo, sem dúvida alguma: a tão propalada superioridade da arte de navegar portuguesa do século XV é de facto uma realidade objectiva, por um motivo simples - o da primazia na exploração atlântica. Tendo-se iniciado pela progressão lenta e cautelosa ao longo da costa africana, as explorações marítimas henriquinas, numa primeira fase, não careceram de mais do que das normas práticas de navegar usuais no Mediterrâneo e aí desenvolvidas no decorrer dos séculos XIII e XIV55. Mas tudo muda de figura quando essa progressão costeira, sempre para Sul, leva os navegadores a engolfarem os navios no oceano quando as correntes e os ventos que facilitavam a ida tornavam cada vez mais difícil o retorno, obrigando-os ao retorno pelo largo e implicando a aprendizagem de métodos cada vez mais complexos de localização dos navios e cálculo de rotas no alto mar. A passagem da arte de navegar mediterrânica para a astronáutica - ou navegação astronómica - foi sem dúvida a grande contribuição portuguesa, no século XV, para a história das navegações 56. É sabido que a historiografia portuguesa, e não só, tem debatido longamente a questão dos primórdios da navegação astronómica, ou, mais exactamente, a determinação do momento a partir do qual os nautas portugueses recorreram à observação da altura dos astros para auxílio do cálculo da posição do navio, o que é uma primeira fase desta nova técnica de navegação. Não é evidentemente nosso propósito relembrar uma questão que sai fora do âmbito do que importa considerar neste momento. Fiquemo-nos pois pelo essencial, incontestado e suficiente neste caso - a afirmação da primazia portuguesa. Mas reduzi-la às dificuldades notadas em primeiro lugar pelos navegadores portugueses nas explorações marítimas do século XV é esquecer que o verdadeiro desafio, esse, esperava os navegadores do século XVI, quando a Carreira da índia se instituiu numa base regular. O que distingue a náutica espanhola da portuguesa não é apenas o problema de saber quem teve primeiro de enfrentar o mar aberto. Quando as duas grandes carreiras marítimas da era da navegação à vela se estabeleceram, revelaram diferenças notórias na perícia e no nível de conhecimentos que exigiam aos homens encarregues de levar os navios a bom porto. A Carreira da índia era muito mais extensa (no espaço e no tempo) que a Carreira das índias, cruzava dois oceanos 54 55 56 Luís de Albuquerque, «Livros de náutica portugueses de Pedro Nunes até 1650», in A Náutica e a Ciência em Portugal. Notas sobre as navegações, Lisboa, Gradiva, 1989, p. 101. V. Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, 3.a ed. revista, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1983, pp. 46-69. V. Luís de Albuquerque, Historia de ia Navigación Portuguesa, Madrid, Editorial MAPFRE, 1992, cap. II, e Luís Semedo de Matos, «A navegação: os caminhos de uma ciência indispensável», in História da Expansão Portuguesa, direcção de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, vol. I: A Formação do Império (1415-1570), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, pp. 72-87. 120 CAPITULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL com sistemas muito diferentes de ventos e correntes, e, sobretudo, atravessava latitudes e longitudes muito díspares. A navegação para as Américas, como ficou demonstrado logo desde a viagem inaugural de Cristóvão Colombo, acabava por ser mais simples do ponto de vista técnico: os pilotos espanhóis atravessavam o Atlântico com os ventos alíseos a favor, numa latitude constante (comparando com o que experimentavam os que navegavam para a índia), e o cálculo da longitude, feito nesta época empiricamente, não constituía de maneira nenhuma dificuldade tão premente como na Carreira da índia, em face das condições de navegação. Porventura esta perspectiva simplifica em excesso os problemas concretos da Carreira das índias, mas a questão não pode deixar de se pôr assim se a compararmos com a Rota do Cabo 57. Um exemplo é suficiente: a importância de medir a longitude com a máxima correcção na aproximação à costa do Brasil, de modo a permitir a volta pelo largo que levaria os navios a dobrar o cabo da Boa Esperança, pois os navios tinham de voltar para trás, perdendo a viagem e longos meses de navegação se porventura fizessem essa aproximação demasiadamente a norte. A primazia da náutica portuguesa não resulta meramente da cronologia: os avanços verificados no século XV tiveram perfeita continuidade na centúria seguinte, porque os novos desafios eram muito maiores do que os encontrados até então 58. E a roteirística e a cartografia náutica de Quinhentos estão aí para o provar. É aqui que reside o paradoxo enunciado, pois o enquadramento institucional da preparação técnica dos pilotos mereceu desde sempre uma atenção muito maior em Espanha do que em Portugal, pesem embora as reticências apontadas acima à eficácia das medidas tomadas: mas elas existiram, revelando o interesse político e a compreensão da importância vital que a adequada preparação dos técnicos do mar tinha para o sucesso das navegações, por parte da Coroa espanhola. Logo em 1508 foi criado o cargo de piloto-mor, a quem foi dada a atribuição de examinar os pilotos e supervisionar as cartas e instrumentos usados nas viagens; as aulas eram dadas na sua habitação, o que dá bem ideia do carácter precário do ensino ministrado, e só pelos meados do século passaram para as dependências da própria Casa. Entretanto, em 1523 era criado o lugar de cosmógrafo-mor, a quem foram entregues algumas das responsabilidades até 57 58 Esta diferença não se alterou com a viagem do «Galeão de Manila», que atravessava o Pacífico de Manila até Acapulco: era também uma navegação feita em latitutes mais ou menos constantes (nos 10° de Acapulco a Manila, nos 35° a 40° no sentido inverso). E esta carreira é muito mais tardia, tendo sido estabelecida já no termo do terceiro quartel de Quinhentos: v. Montserrat Léon, «Descubrimiento de Ia ruta de vuelta desde Filipinas a Acapulco», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 555-566. Francisco Contente Domingues, «Horizontes mentais dos homens do mar no século XVI. A arte náutica portuguesa e a ciência moderna», in Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Primeiras Jornadas de História Ibero-Americana, coord. Maria da Graça M. Ventura, Lisboa, Edições Colibri, 1996, pp. 203-218. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 121 então atribuídas ao piloto-mor, libertando este de obrigações que já se tornavam excessivas. É certo que uma coisa eram as intenções e outra os recursos humanos disponíveis: evidencia-o o facto de os primeiros titulares não serem espanhóis, antes um italiano (Américo Vespúcio) e um português (Diogo Ribeiro). Mas essa carência de técnicos nacionais qualificados não impediu a acção da Coroa: ambos os cargos acima referidos são pré-existentes à nomeação do primeiro cosmógrafo-mor português, Pedro Nunes, que só se faria muito mais tarde, a 22 de Dezembro de 1547 59. O caso em Portugal era bem diferente: de pessoal qualificado não havia falta, mas o seu enquadramento institucional estava bem aquém do que a Coroa espanhola poderia achar desejável, em função do que já fora feito para a Carreira das índias. É face a esta situação que a nosso ver se compreende perfeitamente a vinda de João Baptista Lavanha para Lisboa, para a qual não se encontrou até agora explicação dada pelo próprio ou documento que a explicite, conforme apontou Armando Cortesão: «^Porque passaria Lavanha de Madrid para Lisboa? Mercê ou desfavor? Não encontrámos documento que no-lo deixe perceber. Apenas o seu Regimento náutico, publicado em Lisboa em 1595, começa por estas palavras: 'Depois que vim a esta cidade por mandado de Vossa Magestade...'» 60. Favor sem dúvida alguma, e na incumbência de uma missão importante: regularizar a instrução dos homens do mar. Criada e já estando em funcionamento a Academia de Madrid, Filipe II podia fazer deslocar Lavanha para Lisboa obedecendo à necessidade de responder a dois problemas em simultâneo: o mais imediato residia na substituição do cosmógrafo-mor, o outro na de regulamentar de novo e promover a formação dos homens do mar. Nomeado Pedro Nunes em 1547, como vimos, o cargo de cosmógrafo-mor ficou-lhe entregue até à data da morte, ocorrida em 1578: e é bem provável, como afirmou Luís de Albuquerque, que só depois da primeira destas datas se tenha iniciado a certificação do exercício da profissão de piloto através do exame presidido pelo cosmógrafo-mor, que havia de ser regulamentado mais tarde 61 . A Pedro Nunes sucedeu Tomás de Orta no ano de 1582, uma nomeação que surge quatro anos depois da vacatura do lugar, sem que haja informação do seu preenchimento interino. Aliás, e ao contrário do que mais tarde se verifica ter sucedido por norma, Pedro Nunes nunca foi substituído nos períodos em que não pôde assegurar cabalmente as tarefas inerentes ao cargo. Os quatro 59 60 61 Pedro Nunes foi inicialmente nomeado cosmógrafo por D. João III, a 16 de Novembro de 1529, não se registando no documento de nomeação qualquer estipulação das obrigações inerentes ao cargo; foi depois feito cosmógrafo-mor, na data indicada no texto. Os documentos de ambas as nomeações foram já publicados repetidas vezes, nomeadamente por Luís de Albquerque, «A projecção da Náutica Portuguesa Quinhentista na Europa», pp. 129 e 129-130, respectivamente. Armando Cortesão, op. cit., p. 318. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 101. 122 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL anos que tarda a nova nomeação são em si prova suficiente de que o posto de cosmógrafo-mor não era ainda entendido como indispensável para a formação dos pilotos, ou talvez mais acertadamente se possa dizer que não se entendia a imprescindibilidade da componente teórica desta formação. Tomás de Orta foi nomeado por Filipe II no mesmo ano em que Lavanha foi apontado para o lugar de Madrid (embora uns meses antes). Quererá isto dizer que houve uma primeira escolha, privilegiando o projecto que se arquitectava para Madrid e deixando a instrução dos pilotos portugueses em segundo plano? Orta era físico, e no documento em que o empossa Filipe II refere que servira como médico da princesa sua mulher (D. Maria, com quem casou em 1543, e veio a falecer dois anos volvidos) e depois fora «mandado vir» de Castela para ficar junto de D. João III na mesma qualidade 62. Este facto, além da referência aos mais de trinta e nove anos contínuos de serviços prestados, sugere fortemente que a nomeação tinha o seu quê de recompensa a um servidor antigo, para mais de idade avançada: tanto que é aposentado logo no ano imediato 63 - aposentado como físico, entenda-se - mantendo as regalias já concedidas anteriormente, bastante importantes para a época e reveladoras da estima em que os seus serviços eram tidos, como notou Luís de Albuquerque 64. Entretanto foi desempenhando as novas funções e veio a falecer a 6 de Junho de 1594 65. A carta de nomeação de Tomás de Orta contém uma passagem elucidativa quanto ao que se esperava do novo cosmógrafo mor. Estipulou o rei: «seraa obrjguado a requere homde pertemser que se lhe reforme o Regymento do dito carguo de cosmógrafo mor no que toqua has cartas de marear he estromentos de nauegação obriguamdo o no tal Regymento a ter comferencia com hos pilotos e mestres das naaos y navyos acerqua da dita nauegação» 6 6 . O regimento em causa é o de 1559, portanto do tempo de Pedro Nunes e talvez escrito com assistência do detentor do cargo, ou até de sua inteira autoria, como aventou Teixeira da Mota 67. A sua existência foi estabelecida por 62 63 64 65 66 67 O documento foi publicado por Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos, p. 234, e José Augusto Frazão de Vasconcelos, Subsídios para a história da Carreira da índia no tempo dos Filipes, Lisboa, sep. do Boletim Geral do Ultramar, 1960, pp. 111-112. Documento publicado por Sousa Viterbo, op. cit., pp. 234-235. Luís de Albuquerque, «Orta, Tomás de», in Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 839. Sousa Viterbo publicou o documento que conferia a aposentadoria a Tomás de Orta, «meu fysico», do qual se deduz que foi reformado desta função, já que tinha duas e o texto não diz claramente a qual delas se dá a aposentação. O comentário de Sousa Viterbo parece querer significar de deixou de exercer como cosmógrafo-mor (op. cit., p. 234), o que Armando Cortesão repete (op. cit., p. 318, n. 3). Já Luís de Albuquerque não se equivocou neste pormenor, deixando claro que Orta continuou a exercer este último ofício depois daquela data (op. e loc. cit.). IAN/TT, Chanc. Filipe I, Doações, liv. 6, fl. 71v. Publicado por Sousa Viterbo, op. cit., p. 234 (parcialmente) e José Augusto Frazão de Vasconcelos, op. cit., pp. 111-112. Avelino Teixeira da Mota, Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as Origens do Ensino Náutico em Portugal, Coimbra, JIU, 1970, p. 12. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 123 este ilustre investigador, que publicou o regimento que se lhe seguiu, o de 1592, acompanhado de um estudo extenso e documentado 68. É lícito supor que Tomás de Orta não cumpriu cabalmente com a sua missão: além de não ter deixado qualquer obra escrita relacionada com a náutica, bem ao contrário do seu predecessor e dos que se seguiram no cargo, fez poucos exames, tanto quanto nos é dado saber, e pelos vistos a reforma do regimento ficou por realizar. Teixeira da Mota revelou a existência de sete exames a mestres de fazer cartas de marear e instrumentos náuticos anteriores ao regimento de 1592, dos quais quatro foram examinados por Tomás de Orta: Marcos Fernandes (1582), Pedro de Lemos (1586), Francisco de Góes (1587) e Francisco Luís (1591)69; quatro exames apenas no espaço de dez anos 70 . Números que dão conta da situação a que se tinha chegado, com um escassíssimo número de pilotos certificados para o exercício da profissão de acordo com as regras instituídas. A acção de João Baptista Lavanha vai ser decisiva na inversão deste estado de coisas. Para o explicar não colhe a invocação da decadência da marinha portuguesa neste final do século XVI por consequência da união das coroas ibéricas, mito caro a alguns historiadores ainda não há muito, que não se revê na realidade dos factos e no que concretamente se passava no mar. Em particular, nada permite afirmar que passou a haver mais naufrágios, em consequência do aumento brusco de erros de pilotagem graves. Qualquer menção às causas dos naufrágios da Carreira da índia faz-nos encarar de frente uma das mais controversas e intrincadas questões relativas à história das navegações portuguesas: e ao interessado é tão fácil embrenhar-se como perder-se nela. Pontificam ideias feitas e conclusões aprioristicas onde faltam informações concretas e dados confirmáveis, o que distorce a perspectiva e obnubila a reflexão. E o discurso sobre a menor valia dos pilotos é um bom exemplo. É importante reconhecer que não faltam testemunhos sobre situações em que os pilotos deram provas bastantes de pouco saberem do ofício 71. Os casos chegavam a ser simplesmente anedóticos, como o do piloto Marcai Luís, que navegou durante vinte e oito anos, onze dos quais para a índia, antes de ser subitamente proibido de o tornar a fazer por se descobrir que não sabia ler nem escrever (e portanto não podia sequer cartear), apenas no seguimento da arribada de uma nau que pilotava - mas um ano depois foi novamente chamado ao serviço por falta de profissionais capazes, evidenciando que não lhe foi assacada culpa pelo sucedido 72. É claro que podiam também ser trágicos, e algumas 68 69 70 71 72 Avelino Teixeira da Mota, op. cit. Idem, ibidem, pp. 15-16. Idem, ibidem, pp. 16-17. Maria Benedita Araújo, «'Naus da índia, Deus as leva, Deus as traz'», in Revista da Faculdade de Letras, n.os 13-14, 5.° série, 1990, pp. 349-360, com múltiplos exemplos nas pp. 353-354. Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro, «D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da índia de 1611», in A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos Europeus em Homenagem a Luís de Albuquerque, org. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, vol. II, Lisboa, Presença, 1987, p. 59. 124 CAPITULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCMTECTVRA NAVAL naus perderam-se ou estiveram perto disso por causa de erros de pilotagem. A nau «S. Paulo», cujo relato de naufrágio foi inserido por Bernardo Gomes de Brito na História Trágico-Marítima, era pilotada por um profissional muito pouco experiente que terá sido o principal responsável pela sua perdição; aliás, o título completo da relação recolhida por Gomes de Brito (pois há uma outra, da autoria de um sobrevivente), contém uma peculiaridade muito pouco habitual e porventura reveladora: «Relação da Viagem, e Naufrágio da Nao S. Paulo Que foy para a índia no anno de 1560. De que era Capitão Ruy de Mello da Camera, Mestre Joaõ Luis, e Piloto António Dias» 73; ou seja, o piloto aparece nomeado depois do mestre, sobre o qual tinha precedência na hierarquia de bordo. António Silva Rego foi mesmo ao ponto de escrever que «devemos distinguir entre pilotos de fins do século XV até, digamos, aos tempos de D. João de Castro, e os pilotos posteriores. Os primeiros, preocupados com o avanço da ciência, estudavam observavam e ensinavam. A partir de D. João de Castro encontram-se várias referências pouco lisonjeiras à habilidade e ao saber de certos pilotos» 74; uma observação que poderia ser subscrita por outros autores, e os ecos do que pensavam os embarcados parecem confirmá-la: vejam-se os aforismos populares do género «se queres aprender a orar entra no mar», ou «naus da índia, Deus as leva e Deus as traz», este parecendo querer significar que os pilotos pouco tinham a ver com a navegação, da qual mais se encarregaria a Providência. E um dos mais cultos e ilustres passageiros da índia, o mártir do Monomotapa D. Gonçalo da Silveira, que escreveu aquela que é talvez a mais punjente e dramática de todas as descrições de viagens na Carreira, serviu-se dos seus superiores dotes estilísticos para recortar na paisagem de bordo a figura de um piloto que pouca tranquilidade dava a quem viajava com ele. O passo é longo, mas vale bem a pena apreciar a fina ironia de D. Gonçalo: «Non hé nada, senão que os fisiquos sam para confiar e consolar, digo os pilotos que governão as naoos. Dizem-vos que vedes a Asenção, vedes as ilhas dela: senão quando, a 150 legoas, vos tornão a dizer que não erão as ilhas d'Asemção, senão as de Martim Vaz! Olhai que comparação d'Asemção que meteo aa Deos no paraiso, para as ilhas desertas de Martim Vaz, que não sei se o meterão no fumdo, ao menos dizem que lhe pesou de as ter vistas. Diziam os mediquos da nossa naao que o erro destas sangrias ou samgraduras não lhes enlearião mais que 150 legoas. O fisiquo-moor da capitaina, digo o seu piloto, por consolar ao nosso e aa nós, dizia, se me mal não lembra, que a sua nao lhe furtara 200 legoas ou mais. Nom hé nada, senão que em dereitas por linha ao porto que governavão e desejávamos, In Bernardo Gomes de Brito, Historia Trágico-Marítima, Tomo I, Lisboa Occidental, Na Officina da Congregação do Oratório, 1735, pp. 315-442. O relato original foi escrito por um dos passageiros, o padre Manuel Álvares, que lhe acrescentou um debuxo da perda da nau: Manuel Álvares, S.J., Naufrágio da Nau «S. Paulo» em um ilhéu próximo de Samatra no ano de 1561: narração inédita escrita em Goa em 1562, pref. e notas de José Augusto Frazão de Vasconcelos, Lisboa, Bertrand, 1948. Já havia uma notícia anterior deste texto, devida ainda a Frazão de Vasconcelos: «O naufrágio da nau 'S. Paulo' (1561). Narração e desenhos inéditos», Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, n.° 3, 1934, pp. 261-262. Apud Maria Benedita Araújo, op. cit., p. 353. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 125 huns nos achávamos caminho de Comgo, aonde foi ter a nao Framemga, outros amanhecia-lhes a terra do Natal, aonde diz que hé o adro ordinário das naaos que se perdem, outros avemdo-se de chegar para Maçambique, que está bem vezinha dos calores da linha, hião dar consigo pouquo menos do polo» 75. Poder-se-iam invocar outros exemplos, mas cabe inquirir acerca do multiplicar de referências a tantos pilotos de categoria mais que comprovada, que se observa na segunda metade do século XVI e ainda no século XVII, ao menos no primeiro quartel. Que dizer, pois, dos profissionais que compilaram os livros de marinharia conhecidos pelos nomes de André Pires, Manuel Álvares, Gaspar Moreira ou Pêro Vaz Fragoso? E dos vários pilotos que deixaram roteiros de navegação ou escreveram diários de bordo que chegaram até nós e atestam da competência de quem os assinou? Ocorrem os nomes de Vicente Rodrigues, Gaspar Ferreira Reimão, Gaspar Manuel ou Aleixo da Mota, no grupo dos primeiros, ou Simão Castanho Pais e Sebastião Prestes, no dos segundos, entre tantos mais 76. Seguramente é possível contrapor a esta uma outra lista, a daqueles que quase seguramente, ou até de certeza, foram responsáveis pelos naufrágios. Mas uma e outra são consequência apenas de o nosso conhecimento do mundo da pilotagem crescer na proporção dos testemunhos remanescentes, em muito maior quantidade para os finais do século XVI do que para os princípios, como é natural. Ou seja, há mais notícias de erros de pilotagem quando também há mais testemunhos da valia desta classe profissional. Ao argumento que invoca a escassez de pilotos hábeis nos finais de Quinhentos e inícios de Seiscentos, pode contrapôr-se o nosso desconhecimento dessa realidade nos inícios da centúria, quando o número de navios enviados para a índia foi o maior de sempre, se considerarmos por exemplo a década de 1500 a 1509. Quer isto dizer que em Portugal se descobriu subitamente um grande número de pilotos capazes para a Carreira da índia? Há excelentes pilotos nas navegações quatrocentistas, mormente no seu período final, mas isso significa que Vasco da Gama teve de procurar um piloto no e para o Índico, e poucos anos depois eles já existiam em quantidade suficiente para prover a média de 14 ou 15 velas anuais que partiu para o Oriente naquele decénio 77? É muito difícil aceitar que possa ter sido assim, por todas as razões, sobretudo porque um bom piloto demora anos 75 76 77 José Wicki (ed.), Documenta Indica III (1553-1557), Roma, Apud «Monumenta Histórica Soe. Iesu», 1954, pp. 623-4. V. Abel Fontoura da Costa, op. cit.: as reedições desta obra publicada em 1934 bem se justificam por continuar a ser obra de referência inultrapassada na colecção de notícias de escritos relativos à arte de navegar dos Portugueses. Os números variam consoante os cálculos de cada autor: na média de 14 navios por ano concordam Vitorino Magalhães Godinho, «Os Portugueses e a 'carreira da índia' 1497-1810», in Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar séculos XIII-XVIII, Lisboa, Difel, 1990, p. 338, e Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, s/d, pp. 363-364 (138 partidas para cada um); com valores um pouco mais altos: António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, «O Movimento da Carreira da índia nos Sécs. XVI-XVIII. Revisão e propostas», Maré Liberum, n.° 4, 1992, p. 234 (152 partidas). 126 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL e anos a formar, já que boa parte do exercício da sua arte se baseava na recorrência à experiência e à intuição, como quando tinha de calcular a longitude, por exemplo, ou abordar uma costa desconhecida e encontrar o melhor local para fundear o navio a fim de o reabastecer. O menor número de naufrágios ocorrido na pimeira metade do século XVI em contraposição com a segunda metade justifica-se de várias formas, e aqueles que apontaram o dedo às deficiências da Carreira, grupo em que pontificou Lavanha, não identificaram os erros técnicos dos oficiais de navegação como causa relevante 78 . Estes não são por vezes facilmente reconhecíveis: bom número de perdas da Carreira deve-se a um conjunto de factores que confluem negativamente para traçar o destino final de um navio. A situação típica de um navio sobrecarregado, revelando deficiências estruturais de construção ou conserto, e enfrentando uma tempestade violenta, ilustra-o bem; na verdade, o navio perde-se pela conjugação das causas mais que por qualquer delas considerada isoladamente. Nos relatos dos naufrágios das naus «S. Paulo» e «S. Tomé», o primeiro escrito por Lavanha e o segundo por Diogo de Couto, o leitor encontra fortes sugestões de que pelo menos a causa próxima de ambas as perdas foi uma decisão que só ao capitão cabia tomar - permitir o corte parcial de uma baliza para chegar ao local do casco por onde jorrava a água com grande intensidade, o que por sua vez era devido à técnica de conserto utilizada, pelo menos segundo a opinião de Lavanha, como se verá. É um universo tão complexo quanto nebuloso, este, mas cabe voltar agora ao cerne da questão sem tergiversar mais: os pilotos da Carreira da índia foram ou não responsáveis pelo aumento do número de perdas que se foi verificando na Rota do Cabo, à medida que o século XVI ia avançando? Não parece ser possível responder pela positiva, até porque em rigor não se podem apurar as causas de todos os naufrágios. Da investigação levada a cabo por António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, resulta que boa parte se deve a causas desconhecidas: 38,4%, mais exactamente, o valor mais elevado encontrado pelos autores. E com 16% do total, o segundo é a má navegação 79 - uma expressão que encobre múltiplas possibilidades 80. A má navegação pode ser imputada ao piloto, o técnico de navegação a bordo, mas isso não significa que fosse sempre responsável pelos erros cometidos. O facto de os capitães serem por norma alheios à arte de navegar não quer dizer que não se imiscuíssem na definição do curso da rota. Uma das situações mais frequentes é o desejo de aproximação de terra, expresso pelo capitão contra a vontade do piloto. Aparece por exemplo na História Trágico-Marítima, 78 79 80 Este assunto é tratado no subcapítulo seguinte. António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, Naufrágios e Outras Perdas da «Carreira da índia». Séculos XVI e XVII, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 437. Para a discussão das teses em presença e destes números em particular v. António Costa Canas, Naufrágios e Longitude, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003, pp. 121-127. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 127 e terá sido a causa da perdição de Sancho de Tovar em 1501, no regresso para o reino da armada de Cabral, segundo diz Gaspar Correia: «Sancho de Toar foy tanto a terra, contra a vontade do piloto, que encalhou em huma restinga, ao que tirou bombardas, e acodirão as outras nãos, que por ser de noite sorgirão; e ao outro dia a nao estaua chea d'agoa, ao que se nom pode mais fazer que recolher a gente e fato meudo polas outras nãos, e nom lhe tirarão nenhuma fazenda, que nom hauia em que se metter, e lhe tomarão os mestres as ancoras e amarras e quanto houverão mister, e lhe poserão o fogo» 81. Outra ingerência, verificável em 1611, não teve consequências de maior, mas foi suficientemente grave para que o piloto-mor e o capitão-mor a anotassem no diário de bordo: falamos de D. António de Ataíde e de Simão Castanho, que se desentenderam na viagem de ida para Goa. O piloto não hesitou em registar o seu enfado pela interferência do capitão: «também me tem Enfadado muito querer o Capitão môr ir a MonSambique Sendo tão Tarde E Ventando trauesia calmão» 82. Apesar da redacção do diário ser tarefa do piloto, D. António anotou-o e a este propósito escreveu: «oje me fez o piloto hú protesto q não fose a moçãbique delle E de minha reposta tenho autos» 83. Este diário, que é a diversos níveis um dos mais interessantes documentos do género, ilustra perfeitamente o que pretendemos demonstrar: o piloto, responsável pela navegação, não decidia tudo sozinho. Portanto nem sequer é possível assacar-lhe por sistema a responsabilidade pelos erros de navegação, que com certeza seriam seus na grande maioria dos casos, mas nem sempre, repita-se. As anotações de Simão Castanho deixam claro que foram tomadas decisões contra sua vontade, que teve de se vergar a opiniões contrárias, que não pôde decidir no que em princípio era questão de sua exclusiva lavra, e que até o contramestre opinou acerca do que havia de se fazer por a nau não ser boa de leme 84. Vejam-se as situações: «oJe dise o contramestre q auiamos de arribar a Angola p q a nao não gouernaua. rebati a pratica fortemen.tt» 85. «oJe fis hu Requerimen.to o Capitão môr Sobre hir por fora por Respeito desta Nao dar pouco p o Leme ficou asentado que fossemos por dentro de que Se fes asento no L.° da Nao» 86. 81 82 83 84 85 86 Gaspar Correia, Lendas da índia, vol. I, ed. de Manuel Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1975, p. 227. Sublinhado nosso. «Diário da viagem da nau Nossa Senhora de Guadalupe do Reino para Goa, no ano de 1611. Escrito por Simão Castanho», in Humberto Leitão (Introdução e Notas), Viagens do Reino Para a índia e da índia para o Reino (1608-1612). Diários de Navegação Cologidos por D. António de Ataíde no Século XVII, vol. II, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1958, p. 161. Idem, ibidem. A bordo, o mestre estava encarregue da manobra e era o terceiro elemento da hierarquia, a seguir ao capitão e piloto (portanto o segundo na escala dos tripulantes propriamente ditos); ao contramestre estava reservado um lugar secundário, por consequência. «Diário da viagem da nau Nossa Senhora de Guadalupe», p. 130. Idem, ibidem, pp. 144-145. 128 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL «E o pior de tudo he que não me deixão hir por fora como quizera tendo Ja feito .2. Requerimentos não me defere a elles E todos os officiais desta Nao tenho contra my Senão o Sota Piloto» 87. É verdade que a situação era deveras peculiar: o cpaitão-mor interferia mas sabia o que fazia, tal como é evidente que acabou por se gerar um notório mal estar nas suas relações com o piloto-mor, bem patente nesse «enfado» que Simão Castanho extravasou (esta passagem do diário é a última na sucessão cronológica da série). Sabedor das coisas do mar e ciente da sua posição hierárquica, cumpre reconhecer que pode ter sido a atitude de D. António a dar azo à manifestação de outras opiniões contrárias à do piloto. Seja como for, o resultado foi o mesmo: o piloto não pôde tomar sozinho as decisões que eram da sua competência, porventura para além do limite do que seria razoável, e se não houve consequências de maior ao nível do curso da navegação cabe perguntar se em outros casos não se pode ter passado o inverso. Um capitão opinoso face a um piloto inexperiente ou pouco seguro da sua posição podia gerar situações gravíssimas; para mais se outros oficiais se imiscuíam também, e não temos notícias de que por regra fossem sabedores de navegação, como não tinham de o ser. Estes exemplos ajudam a explicar o articulado do regimento do cosmógrafo-mor que resultou da elevação de João Baptista Lavanha ao cargo. Estando cientes de que má navegação não quer dizer por força erro do piloto, sabemos também que ninguém a bordo tinha total autonomia sobre a sua jurisdição. As situações variam consoante os casos concretos, a época, e as instruções régias expressas nos regimentos, mas em muitos casos é o conselho dos oficiais a bordo, de um ponto de vista mais formal, ou o concerto de opiniões, mais informalmente, que decide o curso dos acontecimentos. Célebre sobre todos é o bem conhecido caso de Bartolomeu Dias, impedido pelos da sua armada de se internar no Índico como pretendia. Os dados passíveis de apuramento não são suficientemente precisos para desenhar tendências seguras, em vista do elevado número de perdas devidas a causas desconhecidas: mas do que Lopes, Frutuoso e Guinote puderam apurar, o número de navios perdidos por causa de erros de navegação foi baixando no período de 1497 a 1650, e não o contrário, como se crê normalmente. É o que revela o quadro IV. Mais haveria ainda a dizer, evidentemente. Mas fossem ou não os pilotos considerados os principais responsáveis pelos naufrágios, que de facto não eram e não temos indicações de que institucionalmente fossem encarados como tal, não havia que duvidar do interesse em prover as naus de outros oficiais que estivessem instruídos pelo menos nos rudimentos básicos da arte de navegar. E assim determinou o regimento de 1592. Lavanha sucedeu a Tomás de Orta como cosmógrafo-mor, desempenhando as funções respectivas desde 12 de Fevereiro de 1591 88 por impedimento do 87 88 Idem, ibidem, p. 150. IAN/TT, Chanc. Filipe I, Doações, liv. 24, fl. 76; documento publicado por Sousa Viterbo, p. 175 (parcialmente), e por José Augusto Frazão de Vasconcelos, op. cit., p. 113. 129 Os NAVIOS DO M A R OCEANO QUADRO IV Perdas da Carreira da índia até 1650. Causas dos naufrágios Período Desconhe- Má navecida gação Tempestade Mau estado Sobrecarga Ataque inimigo 2 5 80 Incêndio TOTAL 42 16 12 2,5 0,5 1551-1600 18 10 6,5 9,5 11,5 5,5 4 65 1601-1650 24 9 9,5 10 0 15,5 6 74 TOTAL 84 35 28 22 12 23 15 219 1497-1550 FONTE: António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, Naufrágios e Outras Perdas da «Carreira da índia». Séculos XVIe XVII, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 437. Os números fraccionados decorrem de situações em que os autores imputam os naufrágios a mais de uma causa. titular, mas tomando posse efectiva do lugar apenas em 1596 89, após a morte do seu antecessor (1594), como passou a ser norma. Neste caso o hiato de dois anos não teve qualquer significado porque o lugar estava entregue, e bem. No documento de posse efectiva do cargo não há menção à reforma do regimento, mas apenas duas passagens em que o rei manifesta o seu desejo de que a função fosse desempenhada de acordo com o regimento que lhe mandava dar portanto o regimento que acabara de ser reformulado, o de 1592. Em contrapartida, o provisionamento do cargo em 1591 requererá a execução da tarefa antes cometida a Tomás de Orta, em termos praticamente idênticos. O trabalho estava por fazer ou, no mínimo, por concluir. Teixeira da Mota supôs que a redacção do novo regimento tivesse sido da autoria de Lavanha, como parece lógico 90. O texto integral do regimento, já o dissemos, foi estudado com grande minúcia e competência por Avelino Teixeira da Mota 91 . Importa notar a proficiência de Lavanha, que mal se encarrega da nova função dá azo à reforma do regimento, seguramente uma adaptação do de 1559 ao mundo das navegações e dos seus técnicos, mas também à nova realidade política e institucional. Seria fundamental dispor desse texto de 1559 para avaliar a medida em que serviu de inspiração ao novo regimento; desta forma temos de ficar pelo nível das suposições. Do que não restam dúvidas é do empenho político em alterar o estado das coisas relativamente ao ensino da náutica em Portugal, que como se tem visto tinha um carácter muito pouco profissional, por assim dizer. A máquina administrativa de Castela, centralizadora e reguladora, chega às navegações portu89 90 91 IAN/TT, C h a n c . Filipe I, D o a ç õ e s , liv. 3 1 , fl. 181v.; d o c u m e n t o p u b l i c a d o p o r S o u s a Viterbo, op. cif., p p . 175-176. Avelino Teixeira d a Mota, op. cit., p . 12. V. também Rita Cortês de Matos, «O Cosmógrafo-Mor: O Ensino Náutico em Portugal nos séculos XVI e XVII», Oceanos, n.c 38, 1999, pp. 55-64, e «O regimento do cosmógrafo-mor e a prestação dos pilotos na Carreira da índia», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimónia, 2000, pp. 87-98. 130 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL guesas e à preparação e registo dos seus técnicos. O cargo de cosmógrafo-mor não vai ficar mais por ocupar: nas alturas em que lhe foram cometidas outras tarefas Lavanha é substituído por Manuel de Figueiredo (1608) e por Valentim de Sá (1623), em ambos os casos apenas durante os seus impedimentos, já que será D. Manuel de Menezes que vem a ocupar o lugar depois do falecimento do seu detentor92. A transferência para Lisboa e as incumbências atribuídas ao até então professor da Academia de Madrid não se justificam pela necessidade súbita de solver a suposta perda de eficácia dos pilotos portugueses. De resto, seria estranho que a verificar-se anteriormente nada tivesse sido feito; que essa fosse a razão para encomendar a reforma do regimento a Tomás de Orta, e em face da inoperância deste, nada sefizesse;e que os pilotos portugueses passassem subitamente a ser considerados ineficazes no desempenho da sua profissão. Lavanha vem para Lisboa porque é um técnico qualificado e há um lugar que carece de preenchimento por alguém com as suas habilitações, e porque a sua missão em Madrid estava terminada, já que a Academia não só funcionava como foi redimensionada depois da saída do primeiro professor. A partir de Lavanha assiste-se a uma regularização do ensino e do exercício da pilotagem, multiplicando-se os exames e terminando a época em que o acesso à profissão se fazia por regra sem a certificação adequada ao nível teórico. Noutro plano as coisas mantinham-se como sempre tinham sido: o ensino prático era dominante no processo de aprendizagem e fazia-se a bordo, dentro do quadro normal de organização do trabalho à época. O aprendiz, ou seja o jovem candidato a piloto, aprendia ao lado do mestre, um piloto experimentado na arte. Na verdade, como bem viu Maria Leonor Freire Costa, o regimento do cosmógrafo-mor só se entende perfeitamente se for posto a par com um documento do ano anterior, cujo treslado se guarda até no mesmo códice onde Teixeira da Mota localizou aquele regimento93: trata-se do «Regimento sobre os officçiaes da Nauegação, e da Ribeira, e bombardeiros que se hão de matricular» 94. Fica nele expresso o propósito de regular a inventariação das disponibilidades em recursos humanos das especialidades em causa para assegurar o seu provimento nas armadas da índia, sempre que necessário; e no regimento de 1592 estipula-se que haveria um livro para o registo dos pilotos por carreira95, complementando assim o alcance daquele. Esta iniciativa pode ser vista como uma forma de combater a falta de pessoal qualificado, mas se por um lado não são medidas legislativas que solvem este tipo de problemas, por outro encontra92 93 94 95 O essencial do que se sabe da vida e obra destes cosmógrafos encontra-se compendiado nas obras citadas anteriormente de Sousa Viterbo, Frazão de Vasconcelos, Fontoura da Costa e Luís de Albuquerque. BA, cod. 44/XIII/56, fls. 188-196v (treslado do regimento do cosmógrafo-mor) e fls. 180-188 para o documento que citamos de seguida. V. Maria Leonor Freire Costa, «Os regimentos sobre a matrícula dos oficiais da navegação, da ribeira e bombardeiros de 1591 e 1626», Revista de História Económica e Social, n.° 25, 1989, pp. 99-125 (o documento nas páginas 99-107). É o título 17.°: v. Teixeira da Mota, op. cit., p. 48. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 131 mos a marca de um aparelho de Estado que à evidência pretendia controlar os meios de que dispunha, fazendo-o em várias frentes. Há uma disposição do regimento do cosmógrafo-mor que a nosso ver esclarece esta questão. Ninguém porá em causa que se pretenda resolver a falta de pessoal habilitado (até porque nunca seria demais), como não se questiona que as modalidades de funcionamento do aparelho de Estado mudaram de facto depois de 1580. Mas qual prepondera sobre qual? O pendor controlador e centralista? Ou ele é somente consequência da necessidade premente de arregimentar e ensinar os técnicos de navegação? Se assim fosse apenas, o título 11.° seria motivo da maior estranheza, pois nele se estipula que o cosmógrafo-mor deve ministrar uma lição de matemática destinada aos pilotos, sota-pilotos, mestres, contramestres e guardiães, «a cujo cargo esta o gouerno das ditas viagens e nauegação delias e de cuja insufficiencia e falta de experiência prodecem muitos dos desastrados sucessos delias» 96. Só que ninguém era obrigado a frequentá-la, nem pilotos nem a «gente nobre» convidada a habilitar-se para melhor servir o rei, antes servia para a «ouuirem de sua liure vontade» 97. Trata-se sem dúvida do reconhecimento de que em Portugal os hábitos eram diferentes, mas permitia-se que os pilotos exercessem sem fazerem mais do que prestar provas num exame, o que torna muito difícil aceitar a ideia de que o objectivo era instruí-los para responder a carências de formação teórica. Há um outro aspecto que importa tomar em consideração: além de tudo o mais, este tipo de medidas contribui para a elevação da condição do piloto, como Amélia Polónia da Silva lembrou a propósito da deliberação de Filipe IV determinando que não se considerassem mecânicos os filhos de pilotos, mestres e oficiais de marinha, apesar de mais tardia (1625)98; mas já anteriormente um alvará de Filipe III (26.7.1608) isentara pilotos, mestres e mais oficiais da Carreira de responderem em processos judiciais até regressarem ao reino". Nada disto é novo no sentido em que os pilotos podiam até ser nobilitados como prémio pela excelência dos seus serviços, o que acontecia havia muito 10°, mas indubitavelmente estas iniciativas atendem aos interesses dos técnicos de navegação; de modo idêntico se pode ver a regulamentação da sua actividade. Convém notar que o cosmógrafo-mor tinha várias outras atribuições além de formar e examinar pilotos, e uma delas, pelo menos tão importante como 96 Idem, ibidem, p. 32. Idem, ibidem. Sublinhado nosso. 98 Amélia Polónia da Silva, Vila do Conde. Um Porto Nortenho na Expansão Ultramarina Quinhentista, Diss. de Doutoramento, Universidade do Porto, 1999, p. 403; anteriormente referida por José Augusto Frazão de Vasconcelos, op. cit., p. 9. 99 Idem, ibidem, p. 403 e p. 493 n. 284. A autora interpreta este documento de forma diversa da nossa: «Medida de carácter tão excepcional só se justifica pela drástica diminuição de contingentes técnicos disponíveis para integrar essas armadas» (p. 403). 100 V. José Augusto F r a z ã o d e Vasconcelos, Os pilotos dos séculos XV e XVI e a nobreza do reino, sep. d e História, Lisboa, 1932. 97 132 CAPÍTULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL esta, era a de certificar os mestres de fazer cartas de marear e os fabricantes de instrumentos náuticos. É até com as normas relativas a estes profissionais que se inicia o regimento, cujo título 2.° deixa claro que tinham de passar no exame antes de se poderem dedicar ao seu ofício. Mas agora não há a mínima menção sequer a aulas ou qualquer tipo de formação teórica prévia: os mestres apenas tinham que provar a sua suficiência no exercício do mester; um elemento que comprova o sentido da intenção primeira da legislador, o da regulação e disciplina profissional. Os números provam que tudo mudou: João Baptista Lavanha examinou nada menos de 42 pilotos e mestres (ou seja, 42 pessoas habilitadas para ambos os ofícios), 31 pilotos e 6 sota-pilotos, realizando um total de 79 exames entre 1596 e 1619 101. A frequência destas provas espelha a actividade do cosmógrafo-mor, permitindo detectar os períodos em que exerce o cargo de facto e aqueles em que se afasta dele: 52 destes exames datam de entre 1596 e 1600, o que pode querer dizer que havia um grande número de pilotos a exercer sem qualificação reconhecida, situação a que o cosmógrafo-mor começou a tentar pôr cobro quando tomou conta do lugar e durante o período em que a ele mais se dedicou. A partir dos inícios do século XVII as actividades de João Baptista Lavanha multiplicam-se, e o evidente prestígio e confiança que foi merecendo aos monarcas que serviu justificaram a atribuição de novas tarefas e missões que o desviaram do meio naval. Lavanha produziu o essencial da sua obra náutica nessa última década do século XVI, quanto muito à excepção do Livro Primeiro de Architectura Naval, e foi-se afastando destes assuntos a que apenas voltou episodicamente, embora com o maior significado, como sucedeu quando foi incumbido de verificar o método proposto por Luís da Fonseca Coutinho para determinar o valor da longitude. Pouco depois da morte de Filipe II voltou para Madrid, com certeza por ordem do seu sucessor, já que esta deslocação implicou o abandono das funções de cosmógrafo-mor. Armando Cortesão supôs que procurou esse favor junto do novo monarca, em busca de maior projecção, que só poderia atingir em Madrid, mas nada há que sustente tal ideia 102 - ou a sua contrária. Lavanha foi para Madrid e continuou a servir dedicadamente a Filipe III, tal como fizera com seu pai. Em 1602 foi enviado para a Flandres a colher notícias de pendor histórico e genealógico sobre os reis de Espanha, levando em seu poder cartas de recomendação para o embaixador de Filipe III em França e para o cardeal arquiduque Alberto de Áustria, que foi vice-rei de Portugal durante alguns meses de 1583 (a seguir à saída para Madrid de Filipe II), e era desde 1596 governador dos Países Baixos; cartas em que o apreço do monarca era bem visível, ao escrever que era «muy eminente en buenas letras, y exemplar en su trato» 103. É neste 101 Dados de um estudo inédito sobre o ensino dos oficiais de navegação nos séculos XVI e XVII. Armando Cortesão, op. cit., 319. l03 Idem, ibidem, p. 300. 102 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 133 mesmo ano que Lope de Vega lhe dedica um soneto que se inicia com o verso «Maestro mio, ved si ha sido engano...» 104. A viagem ter-se-á prolongado até finais de 1604, quando vários documentos o localizam em Valladolid, nomeadamente os que dão contas de dificuldades financeiras cuja origem é obscura 105. Se lá residia não é certo, porque a partir de 1607 aparece Madrid como cidade de moradia. Lavanha esteve participou ainda em trabalhos hidrográficos. Em Setembro de 1597 participou nas tarefas de estudo e sondagem da barra do Tejo, que se receava pudesse vir a assorear (com resultados obviamente catastróficos para a navegação do reino de Portugal) 106, e em 1606, com Geronimo de Soto e Mateo Quadrado, averiguou da navigabilidade dos rios próximos de Valladolid por encomenda da cidade, aliás bem paga: 500 ducados contra 300 e 100, respectivamente, para cada um dos seus colaboradores 107. Nos anos seguintes encontramo-lo envolvido em duas actividades de grande importância. Uma, a carta de Aragão, cujo contrato assinou em 1609 e pela qual percebeu 2500 ducados, levou-o a sair em trabalho de campo, para recolha de elementos, entre 25 de Outubro de 1610e 16 de Abril de 1611. A carta só foi entregue em 1615, porque outras tarefas interromperam a sua elaboração, mas trata-se de uma obra exemplar: atestam-no onze edições tiradas das chapas primitivas até tão tarde quanto 1777, facto excepcional para um trabalho desta natureza 108. Um dos motivos do atraso da carta teve seguramente a ver com o envolvimento na apreciação de uma nova proposta de cálculo da longitude, como veremos à frente. Entretanto multiplicavam-se os sinais de apreço régio: em 1611 ou 1612 acompanhou em viagem o príncipe Felisberto Emanuel de Sabóia, sobrinho de Filipe III, e em 1612 foi nomeado professor de matemática do futuro Filipe IV, para o qual escreveu uma belíssima Descripción dei Universo, um pequeno volume de 34 fólios ricamente ilustrado, com destaque para a esfera do mundo e a rosa dos ventos (respectivamente nos fólios 8 e 25v)109; obra que espelha os mais actualizados conhecimentos cosmográficos da época, apesar do seu carácter didáctico. No fim da dedicatória aparece a data de 20 de Agosto de 1613, ou seja, é outro trabalho feito simultaneamente com a carta de Aragão. Poucos anos volvidos Lavanha escreveu um compêndio de geografia para o seu jovem discípulo, mas muito menos interessante que a Descripción: apesar do título trata-se de um pequeno caderno de 7 fólios com uma descrição muito sumária do mundo. Uma frase aí contida é reveladora de como a abertura dos oceanos à navegação e as explorações geográficas não deixavam de lado a 104 Idem, ibidem. ^Idem, ibidem, p. 301. 106 José Augusto Frazão de Vasconcelos, op. cit., pp. 105-121. 107 Armando Cortesão, op. cit., 302. 108 Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, op. cit., pp. 69-70 e Estampa 423. 109 Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 9251. 134 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTVRA NAVAL geografia tradicional, na mentalidade dos homens da época: «Ia Mar se diuide en Mediterrâneo y occeano» 110. Os últimos anos da vida de João Baptista Lavanha foram predominantemente ocupados pela redacção de trabalhos de História e Genealogia. Em 1615 saiu dos prelos a Quarta Década de Barros (cuja preparação coincidiu portanto e novamente com a carta de Aragão), «reformada, ilustrada e acrescentada», à qual Lavanha juntou cartas de Java, Guzerate e Bengala, apoiando-se em informações recolhidas por via indirecta já que nunca saiu da Europa l n , e em 9 de Março de 1618 sucedeu a frei Bernardo de Brito como cronista-mor de Portugal, concorrendo em seu favor o talento, a notícia dos factos históricos e bom trabalho feito com a obra de Barros 112 . Foi nessa qualidade que acompanhou Filipe III a Portugal e redigiu a relação da viagem 113. A 19 de Março de 1624 Lavanha ditou o testamento ao seu confessor, porque com certeza já não se sentia capaz de o escrever. Nele manifestava a sua preocupação com o pagamento das dívidas e com a situação dos que deixava, por quem intercedeu junto de Filipe IV; e o monarca, que seguramente tinha o seu antigo mestre em grande consideração, satisfez-lhe os pedidos. Morreu no dia 31 de Março, pobre apesar das recompensas recebidas por mais de cinquenta anos de muitos serviços prestados, ao rei e a outros, como o duque de Aveiro, mas não se sentindo adequadamente pago pelo que fizera. 2. A OBRA NÁUTICA A compilação da obra completa de João Baptista é tarefa difícil, já que tudo leva a crer que os seus escritos estejam espalhados por vários núcleos ou colecções documentais de arquivos e bibliotecas diversas: o caso da Colecção Salazar y Castro, da Real Academia de Ia História, de Madrid, é um excelente exemplo de um conjunto documental onde muito provavelmente há mais textos do que os detectados até agora, como o comprova o facto de ser possível encontrar trabalhos inéditos e desconhecidos sem sequer proceder a uma pesquisa exaustiva. Mas mesmo sem essa listagem não restam dúvidas quanto à sua grande produtividade e diversidade temática. O autor do segundo tratado de arquitectura naval escrito em português redigiu outras obras relevantes no domínio da náutica, usando este termo para designar o que genericamente se prende com a arte de navegar, e não no seu sentido estrito. Debruçarmo-nos-emos de seguida sobre algumas delas, apenas, 110 Compendio de Ia Geographía Ordenado Por el erudito varón Juan Bautista Lauana Cauallero Português Comendador de Ia orden de Christus: Cronista Mayor dei Reyno de Portugal e Maestro en Ia Geograffía dei muio alto y Muy Poderoso Senor Don Phelipe quarto, Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 18646, n.° 11 (a frase citada no fl. 266 da numeração moderna). 1 '' Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, op. cit, p. 71 e Estampas 424-424D. 112 V. o documento de nomeação em Sousa Viterbo, op. cit., pp. 213-214. 113 Viagem da católica real magestade dei rei D. Filipe II. N. S. ao reino de Portugal e relação do solene recebimento que nele se lhe fes S. Magestade, Madrid, por Tomas Junti, 1622. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 135 já que a questão que verdadeiramente subjaz ao que se segue tem a ver com a determinação da oportunidade e circunstâncias que levaram à preparação do Livro Primeiro de Architectura Naval. Na obra náutica de Lavanha destacam-se um relato de naufrágio, os roteiros de navegação, o envolvimento na apreciação da agulha fixa proposta para determinar a longitude no alto mar, e a obra cartográfica. A esta última não nos referiremos, por poder ser considerada lateral em relação ao núcleo definido pelo conjunto das restantes, e também porque não serve ao nosso propósito último. É apenas de lembrar que Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota atribuíram a Luís Teixeira e a João Baptista Lavanha a autoria de um atlas-cosmografia de trinta e duas folhas, provavelmente iniciado em 1597 e concluído em 1612, que sob todos os pontos de vista pode ser considerado um dos monumentos da cartografia portuguesa 114. Seguindo estes autores podemos dar conta das principais obras náuticas de Lavanha 115, que são (com os títulos sumariados e modernizados): Tratado da arte de navegar- 1588 Tratado de gnomónica - 1595 Tratado do astrolábio - 1595 Regimento náutico - 1595 (com uma segunda edição em 1606) Naufrágio da nau «S. Alberto» - 1597 Parecer sobre o conserto da querena da nau «S. Alberto» - s/d, circa 1597 Relação do porto do Senegal - anterior a 1600 Tábuas da largura ortiva do sol - 1600 Roteiro das ilhas Primeiras e Angoche - 1600 Roteiro da Carreira da índia - 1600 Roteiro da Carreira da índia - desaparecido Regimento do instrumento para saber a altura a qualquer hora - anterior a 1608 Regimento de Gaspar Jorge do Couto - 1608 Regimento da Costa do Cabo Negro - 1608 Passados quarenta anos sobre a publicação do livro de onde respigamos estas notícias, não se pode dizer que haja muito a acrescentar às notícias bibliográficas que os autores deram sobre cada título. Numa apreciação rápida de alguns destes títulos, cumpre dizer em primeiro lugar que nem todos são da autoria de Lavanha, quer dizer, escritos de seu punho, embora expressem as suas ideias. O mais conhecido dos que se encontram nestas circunstâncias é o Trattado dei arte de Nauegar, como se percebe logo pelos dizeres que se seguem ao título: «Começase a leer este trattado dal sr. Juan Battista Lauana, Mathematico dei Rey N.S. en Ia Academia de Madrid a 14 de Março de 1588 anos». Trata-se de uma anotação das aulas ouvidas em 114 Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, «Anónimo — João Baptista Lavanha e Luís Teixeira, Atlas-Cosmografia, de trinta e duas folhas, 1597 e 1612», ibidem, vol. IV, pp. 73-76, Est. 425a-425c, 426, e 427a-427d a 440a-440d. 115 Idem, ibidem, pp. 65-66. 136 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL Madrid por um aluno italiano, de nome Camilo Medea, cuja fidelidade aos dizeres do mestre foi tão grande que se reflectiu num texto perfeitamente ordenado e sistematizado, com certeza muito próximo dos apontamentos que Lavanha lia nas aulas; denota claras preocupações pedagógicas, começando por definir o que é a arte de navegar e versando depois os seus aspectos principais, incluindo a determinação da longitude (no capítulo IX). O códice original guarda-se na Biblioteca do Palácio Nacional, em Madrid U6 , e abre com as notas de outra lição, «Uso de Globos leydo em Madrid el Ano de 1592 Dal Sr. Ambrosio Ondariz, Letor de Mathematicas e Cosmographo mayor dei Rey N.S.», embora tiradas por letra diferente. Isto significa portanto que foi encadernado posteriormente por alguém que reuniu apontamentos das aulas da Academia de Madrid, provavelmente um aluno que a cursou mais tarde. Das restantes obras de náutica, aparte as já publicadas 117 , devem destacar-se os tratados da gnomónica e do astrolábio, praticamente ignorados 118, apesar de António Barbosa ter revelado há muito a sua existência e localização (os manuscritos guardam-se no Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra) 119 . São ambos versões portuguesas de lições proferidas na Academia de Madrid. Os trabalhos roteirísticos de João Baptista Lavanha são da maior importância para o conhecimento de «um dos mais valiosos contributos que dessa época das grandes navegações inovadoras [a marinha dos Descobrimentos] deu à Marinha de todo o mundo» 120. Mas também neste caso há que considerar o problema da autoria. Lavanha foi apontado como autor de dois regimentos para a Carreira da índia, um dois quais conhecido há muito e que leva por título: «DeRotas de Ia navegacion de Ia índia con Ia aguja que tenga los hierros debaxo de Ia flor de lis. los senales comentes i vientos qu een diversos parages se hallan. Hecho en Lisboa por Manuel Mintero [sic] i Gaspar Ferreira Pilotos de Ia carrera de Ia índia. Estando presente Juan Bautista de Labana Cosmographo mayor dei Rey 116 Tem a cota 1910, segundo Cortesão e Teixeira da Mota; usamos a fotocópia integral existente na Biblioteca Central de Marinha. Foi parcialmente reproduzido por Armando Cortesão, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos Séculos XVe XVI, pp. 328-335. V. também Armando Jorge Pereira Lourenço: «O Tratado da Arte de Navegar de João Baptista Lavanha: seu contributo para a Náutica dos Séculos XVI e XVII», in Limites do Mar e da Terra, Cascais, Patrimonia, 1998, pp. 245-254. 117 Há múltiplas referências a Lavanha em Abel Fontoura da Costa, op. cit., por exemplo nas pp. 190, 253, 254, 330, 331 e 442. 118 Mas não escaparam à vastíssima erudição de Luís de Albuquerque, que deles deu conta num artigo em que estudou um outro manuscrito inédito do mesmo códice: «Notícia de dois manuscritos portugueses do rádio latino de Orsini», in As Navegações e a Sua Projecção na Ciência e na Cultura, Lisboa, Gradiva, 1987, pp. 163-180. O autor atribuiu a Lavanha o tratado da gnomónica, sem hesitações, mas não o do astrolábio (v. pp. 167-168). 119 António Barbosa, «Dois inéditos de João Baptista Lavanha», Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, vol. IX, 1929, pp. 88-93. 120 Luís de Albuquerque, «O 'Corpo' roteirístico português», in Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, 2.a Parte, Lisboa, Vega, 1991, p. 75. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 137 nuestro sefior en los Reynos de Portugal a 25 de março de 1600» 121. Foi publicado por Abel Fontoura da Costa, que considera que Lavanha foi revisor e não autor do texto 122, quanto a nós com acerto; Cortesão e Teixeira da Mota dão notícia deste roteiro reproduzindo a opinião do responsável pela sua edição 123. Pode supor-se que os autores em causa não tiveram ensejo de analisar directamente o manuscrito, que não é um autógrafo de Lavanha, mas tem notas, acrescentos e correcções que bem podem ser de sua lavra 124. As assinaturas apostas são, por esta ordem, as de Vasco Fernandes César, Lavanha, Manuel Monteiro e Gaspar Ferreira. Tudo leva pois a crer que a autoria deste extenso roteiro (que se divide em onze capítulos) pode ser assacada a Monteiro e Ferreira Reimão, devendo os dois primeiros ter assinado para certificar a validade técnica do texto; fica porém por apurar em que qualidade o fizeram exactamente, já que não há notícias relativas ao desempenho de qualquer cargo que oficialmente obrigasse a este tipo de actuação, nomeadamente por parte de Vasco Fernandes César, nome em relação ao qual é (ou melhor, era) desconhecida qualquer ligação ao universo da roteirística. O segundo roteiro da índia atribuído a Lavanha foi dado como perdido tanto por Fontoura da Costa 125, como por Cortesão e Teixeira da Mota 126. Na verdade encontra-se num códice pertença da colecção Salazar y Castro, à qual aludimos acima, e tem por título: «Derrotas da viagem de índia, com Agulha ferrada debaixo da flor de lis, as differenças, os sinaes, correntes, e ventos que em diversas pasagens se achão» 127, mas quanto a nós não deve considerado de sua autoria, pelo menos com base apenas no manuscrito em causa: trata-se de uma versão um pouco mais resumida do roteiro que citámos antes, com apenas seis capítulos (que condensam a matéria que ocupa os onze do anterior), e de Lavanha é apenas a assinatura. No artigo que temos seguido com frequência, Alfonso Ceballos escreveu, a propósito da apresentação das obras de Lavanha: «Roteiro da índia, datado en 1608 (obra inédita, perdida hace más de un siglo, que yo he localizado en Ia Real Academia de Ia Historia)» 128. E mais à frente: «yo he hallado papeies suyos en Ia aludida colección Salazar y Castro... concretamente, el manuscrito F-16 pertenció sin duda a Labana... Se trata de um volumen en cuarto compuesto de unas 170 hojas manuscritas, que contiene catorce documentos fechados entre 1596 e 1611. Entre ellos destacan los titulados... Derrotas dei viaje a Ia índia, 121 Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 3176, fls. 1-27: reproduzimos ipsis verbis o título do original manuscrito, já que surge com variações nas diversas referências bibliográficas. 122 A. Fontoura da Costa, Roteiros portugueses inéditos da carreira da india do século XVI, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1940, pp. 126-32. 123 Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, op. cit, vol. IV, p. 66. 124 É difícil garantir que são de sua mão, dado que estes curtos apontamentos foram escritos em letra mais pequena e abreviada do que é usual ver-se nos manuscritos autógrafos conhecidos. 125 A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, p. 330. 126 Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, op. cit., vol. IV, p. 66. 127 Cod. 9/424 da Colecção e Biblioteca referidas no texto, fls. 31-53. 128 Alfonso de Ceballos-Escalera Gil, op. cit., p. 11. 138 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCMTECTURA NAVAL partendo de Lisboa (que ya he dicho que se consideraba perdido desde hace más de un siglo)» 129. Estas citações causam uma certa perplexidade a quem pôde ver o manuscrito. Em primeiro lugar, a cota F-16 não existe: trata-se de uma catalogação topográfica, incompleta, como se usava naquela Biblioteca no tempo de Cesáreo Fernandez Duro - pelos finais século XIX -, que cita alguns manuscritos assim, mas já não se pratica há muito; e o título do roteiro citado pelo autor do artigo não corresponde ao do documento, que é «Derrotas da viagem de índia» e não «Derrotas dei viaje a Ia índia», e o «partendo de Lisboa» não figura em parte alguma. Estamos em crer que Alfonso Ceballos viu outro roteiro, ou, eventualmente, outra cópia do mesmo 13°. Este códice contém mais manuscritos de interesse, sobretudo os relativos à utilização da agulha de marear, incluindo um texto em português 131, além de outros que versam matéria sobre a qual há muita informação, notadamente entre os papéis que foram de João Baptista Lavanha: as agulhas de Luís da Fonseca Coutinho. O problema do cálculo da longitude ocupou os navegadores desde muito cedo, já que a localização do navio no alto mar é determinada por dois pontos: a latitude e a longitude. A experiência náutica portuguesa ao longo do séc. XV foi fundamental para o estabelecimento dos processos de cálculo no mar da primeira destas coordenadas, como é sobejamente conhecido. Mas o cálculo da segunda coordenada carecia da existência de relógios de precisão que pudessem «conservar» o tempo do meridiano de origem 132, para obter o valor da longitude no meridiano de chegada, o que quer dizer que os navegadores tiveram de esperar pela invenção do cronometro para poderem ver o problema resolvido de vez; isso aconteceu apenas em 1761-1762, quando o quarto protótipo desenvolvido pelo inglês John Harrison provou ser suficientemente preciso, depois de ter sido testado numa viagem experimental de Portsmouth para a Jamaica 133. 129 Idem, ibidem, pp. 11-12. Não nos foi possível confirmá-lo uma vez que não só a cota dada não existe, como não há tabela de correspondência com as cotas actuais. 131 «Declaração das agulhas varias reguladoras e de como se deuem tocar», fls. 142-147 do códice citado, sem data e sem assinatura. 132 Só se reconheceu oficialmente um meridiano de referência universal em 1888, sendo então considerado o de Greenwich para o efeito: mais exactamente o meridiano imaginário que passa pelo observatório astronómico que se situa numa pequena elevação desta cidade, nos arredores de Londres. Até essa altura os navegadores usavam normalmente o meridiano do local de partida para o cálculo da longitude (v. Wilcomb Washburn, «The Canary Islands and the Question of the Prime Meridian: The Search for Precision in the Measurement of the Earth», The American Neptune, vol. XLIV, n.° 2, 1984, pp. 77-81; em versão portuguesa, «As Ilhas Canárias e a Questão do Meridiano de Referência: A Busca do Rigor na Medição da Terra», in A Abertura do Mundo, coord. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, vol. I, Lisboa, Presença, 1986, pp. 213-220). 133 A edição em paperback de um livro sobre este assunto, de grande divulgação (como logo o título o deixa antever), tornou-se um dos maiores best-sellers do ano em Inglaterra: Dava Sobel, Longitude. The True Story ofa Lone Genius Who Solved the Greatest Scientific Problem ofHis Time, Londres, Fourth Estate, 1998 (a edição original norte-americana é de 1995). 130 Os NAVIOS DO M A R OCEANO 139 Durante mais de três séculos, desde que os navegadores portugueses se internaram decisivamente no mar alto, até à segunda metade de Setecentos, o meio de determinar a longitude foi empírico e a navegação baseou-se na capacidade e experiência dos pilotos no que a esta questão dizia respeito, devendo dizer-se que a precisão dos cálculos efectuados nestes termos era por vezes surpreendente 134. A história da longitude e dos processos usados para a sua determinação tornou-se num dos capítulos mais extensos e apaixonantes da história da navegação em geral; e também dos mais conhecidos, graças ao empenho posto pelas coroas europeias na sua resolução. Compreende-se com facilidade a importância que a questão tinha para o sucesso das navegações a longa distância, e por decorrência para a definição das áreas de influência marítima dos países envolvidos nessa disputa (de que o tratado de Tordesilhas é o primeiro grande exemplo). Com a crescente extensão das rotas usualmente praticadas pelos navios das principais potências europeias, a preocupação de encontrar um processo rigoroso de determinar a longitude foi crescendo por igual, a ponto de vários países oferecerem grandes recompensas monetárias a quem provasse poder fazê-lo em primeiro lugar. A miragem dos prémios trouxe concorrentes de todos os lugares e propostas as mais variadas. Em 1598, já no reinado de Filipe III, foi oferecido um prémio de 2000 ducados, mais 6000 de renda anual perpétua, iniciativa depois seguida em Inglaterra, França e Holanda: ao concurso espanhol apresentaram-se todo o género de candidatos e, entre eles, por quatro vezes, de 1612 a 1632, o próprio Galileu Galilei135. Um dos concorrentes foi o português Luís da Fonseca Coutinho, que propôs uma agulha fixa para determinar a longitude pelo recurso a um fenómeno que já era conhecido desde os inícios do século XVI: o nordestar ou noroestar da agulha magnética aumentava regularmente a partir da linha ou meridiano agónico, até chegar a um valor que depois ia diminuindo com a aproximação de outra linha agónica, chamada «meridiano vero» por os pilotos terem percebido que sobre ele essa variação era inexistente. Luís Fonseca pensou que o desvio da agulha seria então proporcional à progressão para leste ou oeste de um navio, o que permitiria calcular directamente o valor da longitude com o recurso a uma agulha que traduzisse o valor de desvio. A essa proposta juntou mais tarde a de uma outra agulha para obter mais facilmente o valor da latitude. Este problema está estudado de maneira que nos leva a dizer que é o que melhor se conhece da acção de Lavanha 136, apesar de haver ainda documentação inédita que lhe diz respeito, nomeadamente nos códices que citámos. 134 Para a descrição dos métodos de determinação da longitude v. António Costa Canas, Naufrágios e Longitude, pp. 59-87. 135 José Maria Lopéz Piflero, Ciência y Técnica en Ia Sociedad Espanola de los Siglos XVI y XVII, p. 209. 136 V. Humberto Leitão, Uma Carta de João Baptista Lavanha a Respeito das Agulhas de Luís da Fonseca Coutinho, Coimbra, JIU, 1966; e António Costa Canas, «Os Portugueses e a Determinação da Longitude», Anais do Clube Militar Naval, vol. CXXV, 1995, pp. 249-273, e Naufrágios e Longitude, cit. 140 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL Cumpre apenas chamar a atenção para um aspecto que ressalta de todos estes documentos (e que Humberto Leitão já assinalou), o do interesse e empenho de João Baptista Lavanha no processo de apreciação do invento de Luís Fonseca. Na qualidade de cosmógrafo-mor teve um papel determinante na avaliação do mérito da proposta, quer fazendo parte da Junta que se reuniu sob a direcção do conde de Salinas, quer preparando os regimentos para as viagens de verificação que se seguiram, matéria sobre a qual há ainda alguma coisa a dizer. Mas o balanço está feito: a conclusão foi evidentemente a de que a agulha de Luís Fonseca não resolvia a determinação da longitude, apesar de Lavanha ter mostrado a sua simpatia pela solução avançada pelo seu conterrâneo. Quiçá por isso mesmo: outro aspecto a ter em conta é a possível menor atenção que uma proposta desta natureza poderia merecer por ser oriunda de um português, apesar da carreira do próprio cosmógrafo-mor testemunhar que o favor régio não seguia sempre semelhante critério. Mas neste caso é o próprio João Baptista Lavanha que expressa o seu desencanto pela falta de consideração que entendeu dever-se à origem do proponente, estando por outro lado ciente que se tivesse vindo de um estrangeiro não faltariam mercês para o recompensar 137 . Face à evidente inutilidade do método avançado, cabe perguntar se tal juízo não estaria viciado por um preconceito nacionalista, ou se, pelo contrário, o cosmógrafo-mor nunca acreditou na ineficácia da solução apresentada. Ou se, simplesmente, nunca quis acreditar. No mais que haveria a dizer dos textos náuticos de Lavanha ressalta o acerto com que opinou a propósito da localização das Molucas 138. 3. O NAUFRÁGIO DA NAU «S. ALBERTO» A publicação da História Trágico-Marítima em 1735 e 1736 139, pela reunião de doze relatos de naufrágios que corriam autonomamente, foi muito ao gosto de uma sociedade setecentista ávida de papéis volantes, folhetos e opúsculos em que o fantástico e o maravilhoso andavam de mãos dadas com o horrendo e o bestial, o que já foi dito ser «um dos fenómenos culturais mais curiosos da primeira metade do século XVIII» 140. Os relatos de acontecimentos relacionados com a vida no mar tiveram neste conjunto um sucesso particular, 137 V. Alfonso Ceballos, op. cit., p. 15. O assunto foi estudado por Francisco Paulo Mendes da Luz, «Um parecer inédito do cosmógrafo João Baptista Lavanha sobre as Molucas e o Tratado de Tordesilhas», Garcia de Orta, vol. III, n.° 1, 1955, pp. 63-77. 139 Bernardo Gomes de Brito, Historia Trágico-Maritima Em que se escrevem chronologicamente os Naufrágios que tiveraõ as Nãos de Portugal, depois que se poz em exercício a Navegação da índia, 2 tomos, Lisboa Occidental, Na Officina da Congregação do Oratório, 1735-1736. Mais tarde apareceu um outro volume com mais seis naufrágios, que ficou conhecido por «pseudo-terceiro volume», já que não era da responsabilidade de Gomes de Brito nem correspondia exactamente à forma dos que organizou. 140 Violeta Crespo Figueiredo, «Papéis volantes do século XVIII - 1», História, n.° 1, 1978, p. 54. 138 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 141 com abundância de notícias sobre combates navais, muitos nem sequer envolvendo navios portugueses - mas quase sempre armadas cristãs contra inimigos turcos -, acidentes vários, perdas de navios, aparecimento de monstros, ou até notícias de descobertas de ilhas fantásticas, prefigurando a literatura utópica mas sem chegar ao nível de elaboração das obras que caracterizaram o novo género literário, inaugurado com a Utopia de Thomas Moore, na qual, não por acaso, o protagonista é um navegador português; pois, algo estranhamente, em Portugal não houve utopias, nem o episódio da Ilha dos Amores, riOs Lusíadas, pode ser considerado como tal 141 . Mas houve o relato nú e cru do reverso da medalha, nas dezenas de descrições de navios perdidos, com o estendal de misérias humanas que se seguiam quase sempre à tragédia no mar 142 . A colectânea de Gomes de Brito agrupa textos com características diversas, quer sob o ponto de vista estilístico, quer na forma de tratar os acontecimentos, indo das descrições mais ou menos secas dos factos até às páginas carregadas de dramatismo, como são logo aquelas que abrem o primeiro volume e narram o chamado naufrágio de Sepúlveda. São também diferentes entre si num outro aspecto: alguns dos textos revelam um profundo conhecimento das realidades do mundo naval por parte de quem os escreve e, nesse núcleo, avulta a Relação do Naufrágio da Nao S. Alberto, de João Baptista Lavanha 143. O que distingue este relato de quase todos os outros é precisamente o profundo conhecimento evidenciado pelo autor sobre os problemas técnicos com que se deparou o navio na sua rota de regresso ao reino, bem visível no texto, apesar de este ser um homem sobre o qual não há notícia de alguma vez ter embarcado. Ou, em rigor, do qual só há notícia de ter navegado no estuário do Tejo, aquando dos trabalhos hidrográficos que aí se realizaram debaixo da sua direcção, e eventualmente numa outra ocasião similar; experiência bem pobre e que de nada valia comparada com a da navegação para o Oriente, sob todos os pontos de vista. Mas nem por isso Lavanha deixou de descrever e analisar as circunstâncias que rodearam a perda da nau «S. Alberto» em termos que tornam o relato num dos mais interessantes e úteis de toda a compilação, considerando a análise dos aspectos técnicos 144, muito embora não se afaste do padrão comum, 141 João Medina, Não há utopias portuguesas, Coimbra, Centro de História da Cultura e da Sociedade da Universidade de Coimbra, 1979. 142 Da muito extensa bibliografia sobre os relatos de naufrágios poder-se-ão talvez destacar, nesta perspectiva: Giulia Lanciani, Tempeste e Naufragi sulla via delle Indie, Roma, Bulzioni Editore, 1991; António Manuel de Andrade Moniz, A História Trágico-Marítima. Identidade e Condição Humana, Lisboa, Colibri, 2001; e Kioko Koiso, Mar, Medo e Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História Trágico-Marítima e nos testemunhos inéditos, Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002. 143 «Relação do Naufrágio da Nao S. Alberto, No penedo das Fontes no anno de 1593. E Itinerário da gente, que delle se salvou, athè chegarem a Moçambique. Escrita por Joaõ Baptista Lavanha Cosmographo mòr de Sua Magestade No anno de 1597», in Bernardo Gomes de Brito, op. cit., t. II, pp. 215-313. 144 E não só: «O presente relato merece talvez ser considerado o mais bem escrito de toda a colecção» (António Sérgio, História Trágico-Marítima compilada por Bernardo Gomes de Brito, Anotada, Comentada e Acompanhada de um Estudo por..., vol. 3, p. 12; o texto é reproduzido nas pp. 9-76). 142 CAPITULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITÉCTURA NAVAL já que na sua maior parte descreve as vicissitudes por que passaram os sobreviventes em terra depois do acidente que interrompeu a jornada marítima. A nau «S. Alberto» foi para a índia em 1592, como capitânea da armada que saiu sob o comando de Francisco de Melo Canaviado, e regressou no ano seguinte, capitaneada por Julião de Faria, com 347 pessoas e muita carga a bordo 145. A viagem iniciou-se sem problemas, mas a nau começou a meter água logo que alcançaram os 10° Sul, ainda que pouca, mas quando atingiram os 27° a situação piorou. Nessa altura, quando procuravam fugir da ponta austral da ilha de S. Lourenço, sobreveio o primeiro acidente e partiu-se o mastro do gurupés, mas continuaram e a bomba não dava ainda muito trabalho. À vista da Costa do Natal a água começou subitamente a entrar com muita força, e depararam com uma das piores situações possíveis: «Foraõ logo abaixo a reconhecella, e entendeo-se que entrava pelas picas de popa, por baixo de huma caverna, lugar muy perigoso, e de difficil remédio» l46. A água entrava por um dos pontos de pior acesso, a zona do casco que revestia as cavernas ou balizas da popa; este tipo de avaria poderia eventualmente ser consertado sem problema de maior num porto ou em seco, mas não no alto mar, que tornava praticamente impossível aceder às zonas submersas do casco para operações mais complicadas. O remédio encontrado não foi o melhor, para não dizer que pode bem ter sido causa directa da perdição da nau: determinou-se o corte de uma parte da caverna para se poder chegar ao casco na parte onde a água entrava, e momentaneamente essa solução pareceu ter resultado, mas logo de seguida a água encontrou aquele ponto fraco e começou a entrar em grande quantidade, conforme diz Lavanha quase por estas palavras 147. O caso não era para menos: o corte de uma caverna não podia deixar de afectar a rigidez estrutural do navio, apesar dos reforços internos e externos do casco, com consequências muito graves para a navegação. Consequências essas que eram conhecidas e já tinham provado poder ser catastróficas. Um dos factos que mais impressona o leitor da História Trágico-Marítima, ou dos relatos de naufrágios em geral, reside justamente no aparente subaproveitamento da experiência dos acidentes anteriores, que parecem ser esquecidos menos por aqueles que se confrontam novamente com as mesmas situações. Isso ficou bem patente no relato do naufrágio da nau «S. Bento», escrito por Manuel de Mesquita Perestrelo, um dos outros poucos autores da Históría com bom conhecimento do meio naval 148 . Quando a nau em que seguia avistou terra, 145 Henrique Quirino da Fonseca, Os Portugueses no Mar, 2.a ed, Lisboa, Instituto Hidrográfico, 1989, Lisboa, p. 377. Há mais informação conhecida sobre esta nau e as suas viagens para a índia: v. Luís de Figueiredo Falcão, Livro em que se contém toda a fazenda e real património dos Reinos de Portugal, índia e Ilhas Adjacentes e outras particularidades ordenado por..., Lisboa, IN, 1859, p. 180. 146 João Baptista Lavanha, op. cit., pp. 219-220. 147 Idem, ibidem, p. 220. 148 Dionísio David, «Perestrelo, Manuel de Mesquita», in Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pp. 884-886. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 143 já ia com água a cobrir duas cobertas; o que era por um lado um alívio, era por outro motivo de apreensão, por todos se recordarem que iam parar à costa perto do sítio onde se perdera Manuel de Sousa Sepúlveda, havia apenas dois anos 149. Lavanha escreveu o relato com dois objectivos, declarados logo na abertura: ensinar os viajantes a proceder perante os eventos e a acautelar a jornada por terra; e analisar a causa de perdição da nau, igual à de quase todas as que se perdiam - no que ia avançando as conclusões a que pretendia chegar 15°. O que sucedera antes à nau «S. Tomé» não aproveitou aos que seguiam na nau «S. Alberto», mas o relator dos acontecimento apontou de imediato o paralelismo das situações: «E assim tem mostrado a experiência, por este successo, e pelo da Nao S. Thomè, que foy quasi a elle semelhante, que se devem procurar e fazer todos os outros remédios para tomar a agoa, mas naõ este de cortar madeira, sendo mais necessário accrescentalla que tirá-la, porque posto que em boa apparencia, he depois muy danado, como se vio nestas duas Nãos, que se se naõ cortara em Santo Alberto huma caverna, em S. Thomè hum pedaço da escota, e ponta de pica, naõ se senhoreara delias tanto a agoa» 151. Segue-se a descrição das tentativas desesperadas no sentido de adiar o inevitável. Tal como era usual nestas circunstâncias, atirou-se ao mar a carga em excesso para aliviar o peso da nau. Como pareceu conseguir-se evitar a entrada de mais água alguns tripulantes e passageiros pararam o trabalho de descarga, tentando salvar ainda uma parte dos seus pertences. Só continuaram porque Nuno Velho Pereira, o antigo capitão de Sofala que vinha a bordo, ofereceu os seus 45 quintais de pimenta aos que traziam a sua carga na coberta. Passou-se isto no dia 22 de Março, e no dia seguinte já não conseguiam tirar os caixotes da 2.a coberta, tanta era a água, pelo que os partiam a machado e faziam subir os conteúdos pela escotilha, entretanto alargada, para serem lançados ao mar. Nessa noite levavam 12 palmos de água e as bombas entupiram com a pimenta, outra situação frequente nestas situações. O navio encalhou na manhã de dia 24, e da sorte dos sobreviventes, 125 portugueses e 160 escravos, como diz a relação, não cabe tratar aqui. As causas profundas do sucedido mereceram um longo comentário a Lavanha, que cumpre transcrever apesar da sua extensão: «Tal foy a perdição desta Nao Santo Alberto, taes os successos do seo Naufrágio, causado naõ das tormentas do Cabo de Boa Esperança (pois sem chegar a elle, com prospero tempo se perdeo), mas da querena, e sobrecarga, que como a esta 149 Manuel de Mesquita Perestrelo, Sumario da Viagem que fez Femão dalvarez Cabral..., BNL Reservados, colecção Pombalina, n.° 490, fl. 7. Seguimos o manuscrito em vez da versão impressa (este o é segundo relato compilado na História Trágico-Marítima, logo a seguir ao do naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda): embora não haja diferenças de grande relevo, as existentes ilustram bem o tipo de intervenção editorial feita por Gomes de Brito sobre os textos que publicou. 150 João Baptista Lavanha, op. cit., pp. 217-218. 151 Idem, ibidem.p. 220. 144 CAPÍTULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTVRA NAVAL Nao, assim a muitas outras no fundo do mar haõ sepultado. Ambas poz em pratica a cobiça dos contratadores, e navegantes. Os contratadores, porque como seja de muito menos gasto dar querena a huma Nao que tiralla a monte, folgaõ muito com a invenção Italiana, a qual posto que serve para aquelle mar de Levante, a cujas tormentas e tempestades podem parar Galés, e onde cada oito dias se toma porto: neste nosso Oceano he o seo uso huma das causas da perdição das Nãos: porque, alem de se apodrecerem as madeiras (posto que sejaõ colhidas em sua sazaõ) com a continua estancia no mar, e desencadernarem-se com as voltas da querena, e grande pezo de tamanhas Carracas, calafetando-as por este modo, recebem mal a estopa por estarem húmidas, e pouco enxutas: e quando depois navegando saõ abaladas de grandes marés, e combatidas de rijos ventos, despedemna, e abertas daõ entrada a agoa, que as soçobra. E assim tem mostrado a // experiência, que quando desta danosa invenção se não usava, fazia huma Nao dès ou doze viagens à índia, e agora com ella naõ faz duas» 152. Além da principal causa do mau estado a que tinham chegado os navios, que Lavanha atribuía ao processo da querena à italiana, o regime de contratos e o corte de madeiras fora da estação eram igualmente apontados como factores profundamente negativos. A política de construção de navios por contrato fazia com que os arrematadores do encargo poupassem no tempo, já que não o podiam fazer nos materiais. Os consertos por contrato tinham as mesmas consequências, por idênticas razões: os oficiais disfarçavam as situações mais graves de modo a parecer que tudo estava bem, e debaixo do disfarce «fica a perdição escondida e certa» 153. As naus perdiam-se ainda porque as madeiras eram cortadas fora de tempo, pelo que eram pesadas, verdes e «desasonadas», e «trocem, encolhem, e fendem, e desencaixaõ-se do seo lugar: com que despedindo a pregadura, e estopa, abrem: e com a humidade da agoa de fora, e grande quentura da pimenta, e drogas de dentro, logo se apodrecem e corrompem na primeira viagem: e assim basta huma só taboa colhida sem vez, para causar a perdição de huma Nao» 154. Poderia ser o caso presente, segundo Lavanha, porque Nuno Velho partiu a quilha, dada à costa, com uma pequena bengala. A cupidez dos viajantes tinha o seu quinhão de culpa, por arrumarem mal a mercadoria, com as leves em baixo e as pesadas em cima: «E por enriquecerem brevemente, de tal maneira a sobrecarregaõ, que passaõ a devida proporção da carga à Nao, a qual excedida, he forçado que fique incapaz de governo, e155 que precendendo qualquer das couzas apontadas, abra e se và a pique ao fundo» . 152 Idem, Idem, 154 Idem, 155 Idem, 153 ibidem, pp. 226-227. ibidem, p. 227. ibidem. ibidem, p. 228. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 145 O que se passara com a «S. Tomé» fora em tudo semelhante, excepto que o relato de Diogo do Couto fica longe deste que temos vindo a seguir: mais curto e seco na descrição dos factos, e muito mais parcimonioso na análise do naufrágio, sem procurar um conjunto de explicações genéricas, como fez Lavanha. Ainda assim vale a pena reter um passo, justamente o alusivo à decisão que pode ter estado na origem da perda do navio. Couto considerou contraproducente o corte das balizas, «por ser aquelle lugar o em que se fecha toda a Nao, e nella naõ hia pregadura para se tornar a remediar, porque as mais, ou todas estas Nãos andaõ a Deos misericórdia, por pouparem quatro cruzados» 156 . Repetiu-se a história: a água a entrar cada vez com mais força, as bombas a entupir, e o navio perdido de vez. O relato de Lavanha constitui uma das mais sérias tentativas de escalpelizar as razões que estavam na origem do crescente número de perdas da Carreira da índia. Não há alusão no texto a factores que não possam ser assacados a erros ou opções técnicas, aparte a sempre presente invocação da cupidez dos viajantes, de facto responsável por algumas perdas: os navios viam as suas capacidades de manobra afectadas quando era necessário fazê-la com celeridade e o convés se encontrava ocupado pelas caixas e fardos das liberdades 157. Embora numa ou noutra situação isso pudesse ser resolvido com presteza, tal não seria a regra, seguramente; mesmo no caso da nau que se perdeu em 1622 à vista da costa portuguesa, episódio que será visto à frente com pormenor 158 , na qual se limpou o convés em quinze minutos, segundo o relator, é de suspeitar de tamanha rapidez. O que normalmente se apontava como consequência principal era o efeito que o carregamento excessivo provocava em naus cujas condições de navegabilidade já não eram as melhores. Em função do que sabemos hoje sobre as perdas dos navios da Carreira da índia, a sobrecarga pode, genericamente, ser considerada a primeira causa identificada na origem dos inêxitos das viagens na segunda metade do século XVI, já que nos primeiros cinquenta anos do século preponderam muito significativamente os casos em que se desconhece de todo em todo o motivo da perda 159. 156 Diogo do Couto, «Relação do Naufrágio da Nao S. Thomè Na Terra dos Fumos, no armo de 1589. E dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima Nas terras da Cafraria athè sua morte. Escrita por Diogo do Couto Guarda mòr da Torre do Tombo. A rogo da Senhora D. Anna de Lima irmãado dito D. Paulo de Lima no Anno de 1611», in Bernardo Gomes de Brito, Historia Tragico-Maritima, t. II, p. 156. 157 Sobre as formas de pagamento em géneros, v. Maria do Rosário Sampaio Themudo Barata de Azevedo Cruz, O Sistema de Distribuição das Cargas nas Armadas da índia, Lisboa, INIC, 1988, pp. 16 ss.; António Augusto Marques de Almeida, «Quintaladas», in Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, pp. 929-930; e Rui Landeiro Godinho, «Soldos e formas de pagamento na Carreira da índia (séculos XVI e XVII)», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 505-526. 158 V. o Capítulo V, nesta parte. 159 António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, Naufrágios e Outras Perdas da «Carreira da índia». Séculos XVI e XVII, pp. 112 ss. 146 CAPITULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL O relato do naufrágio da «S. Alberto» é notável, dizíamos, pela enumeração das causas técnicas dos acidentes, cuja simples descrição faz crer que podem estar na origem de motivos mais evidentes para as perdas que se verificaram. Mas o rigor técnico de Lavanha sobreleva o discurso de contornos mais imprecisos que normalmente impera. A crítica à querena à italiana, os cortes de madeiras fora da época própria, e o regime de contratos, são os principais factores invocados, em termos que evidenciam o quão ciente estava Lavanha da realidade das navegações em geral e da Carreira da índia em particular. O problema das madeiras é recorrente, e na crítica ao regime de contratos não está isolado: no parecer escrito nesta altura por Diogo da Fonseca (um documento interessante que se mantém inédito), atribuem-se os males da navegação ao mesmo motivo 160. A crítica de Lavanha mais relevante para os nossos propósitos é também a que tem contornos menos claros. Dizer que a querena à italiana é uma espécie de raiz de todos os males pode fazer todo o sentido à primeira vista, mas uma leitura mais atenta revela que poderá não ser bem assim, em última análise, e isto por dois motivos diferentes: primeiro porque Lavanha não dá qualquer alternativa, ou seja, não diz qual é o método que supostamente se usava antes, e que pelos vistos considerava ser melhor; em segundo lugar, este passo induz o leitor a pensar que se tratava de uma solução nova, quando na verdade era praticada em Portugal pelo menos desde os finais do século XV. Estas duas incongruências do texto, argutamente apontadas por Richard Barker, levaram este investigador a perguntar se Lavanha não estaria a desculpar-se perante o insucesso sofrido por uma nau de que ele próprio tivesse sido responsável, ou co-responsável161; é uma explicação possível mas algo rebuscada, que passa pela necessidade de atribuir ao relator do naufrágio responsabilidades ao nível da arquitectura ou construção naval, pelo menos uns dez anos anteriores às datas que podemos documentar. O certo é que o processo era antigo, o que significa que provara repetidas vezes; e, por outro lado, não era forçosamente mais barato que as alternativas, nem menos perigoso. Richard Barker ilustrou-o bem no artigo que dedicou ao assunto: a querena à italiana, que implicava adornar o navio para fazer emergir partes do casco normalmente submersas, incluindo a quilha, de modo a permitir o acesso e reparação dessas partes, era uma manobra que podia ter os seus inconvenientes 162; mas outras soluções que sabemos terem sido praticadas tinham-nos também. O «pôr os navios a monte», como então se dizia, isto é, consertar o navio em seco aproveitando o jogo das marés, não se podia fazer em toda a parte e tinha os seus riscos próprios. O recurso à doca seca seria sempre o melhor, mas só se documenta para Portugal tão tarde quanto 1788 163. 160 BNL - Reservados, ms. 285, n.° 55. Richard Barker, «Careening: art and anedocte», Maré Liberam, n.° 2, 1991, p. 189. 162 Idem, ibidem, passim. 163 A. Estácio dos Reis, O Dique da Ribeira das Naus, Lisboa, Academia de Marinha, 1988. 161 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 147 Há pois que reconhecer que estes comentários de Lavanha carecem de ser adequadamente explicados, mas isso não retira ao texto esse carácter tão próprio de procurar nas questões de natureza técnica a razão da perda das naus da índia. 4. O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL Entre as mais de cem séries que integram o acervo da Biblioteca da Real Academia de Ia História, em Madrid, avulta a Colecção Salazar y Castro, cuja dimensão pode avaliar-se pelo facto do índice respectivo ocupar nada menos de 49 volumes impressos. Resulta da grande biblioteca reunida por D. Luís de Salazar y Castro, cronista régio, de Castela e das índias, que foi incorporada em 1850 nos fundos da instituição a cuja guarda se mantém desde então. A parte mais importante diz respeito a genealogias de famílias espanholas e ibero-americanas, mas contém espécies muito diversas de documentos, entre os quais alguns portugueses ou relativos a Portugal. Justificava-se a existência de um catálogo dessa parte, tarefa complexa já que se encontra espalhada por toda a colecção, mas que seria fundamental para recuperar do olvido documentação importante. De vários deles deu conta Cesáreo Fernandez Duro, nesse imenso monumento da História Naval e Marítima que dá pelo título de Disquisiciones Náuticas: e ao erudito autor espanhol não escapou o Livro Primeiro de Lavanha. O melhor, porém, é dar a palavra a João da da Gama Pimentel Barata, a quem se deve a primeira publicação do manuscrito em 1965, e que na ocasião descreveu o modo como deu com o seu paradeiro: «Por uma discreta referência de Barbosa Machado, na sua Biblioteca Lusitana (Tomo II), sabia-se que João Baptista Lavanha escrevera um trabalho intitulado Architectura Naval, cujo paradeiro se desconhecia, até que tivemos a satisfação, no decurso dos nossos estudos sobre a arqueologia naval portuguesa, de o descobrir, pela simples leitura duma obra espanhola, o Tomo V das Disquisiciones Náuticas (1880), de Cesáreo Fernandez Duro, o qual a pág. 87 declara que compulsou o manuscrito, cujo índice transcreve, e não esconde a sua admiração pelos magníficos desenhos do Autor. O extraordinário do caso não é termos descoberto o paradeiro do manuscrito, ao cabo de cerca de 300 anos de desconhecimento: o extraordinário é ele não ter sido descoberto há mais tempo, pois a obra de Cesáreo Duro é conhecida em Portugal desde a sua publicação e até o exemplar de que nos servimos foi da biblioteca de Gago Coutinho» 164. 164 João da Gama Pimentel Barata, «O 'Livro Primeiro de Architectura Naval' de João Baptista Lavanha. Estudo e transcrição do mais notável manuscrito de construção naval portuguesa do século XVI e princípio do XVII», Ethnos, vol. IV, 1965, pp. 221-298 (p. 221 para a passagem citada). Reimpresso in Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, IN-CM, 1989, pp. 151-236. 148 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL É de justiça lembrar que dificilmente o Livro Primeiro prenderia a atenção daquele ilustre oficial da marinha portuguesa, cujo interesse directo pelos navios se restringiu às caravelas e na perspectiva que sempre dominou os seus trabalhos, a da náutica; assim como Marcus de Jong e o Visconde de Lagoa não descobriram a Ars náutica quando estudaram o relato da viagem de Magalhães. Fernández Duro não consultou directamente o manuscrito 165, do qual fez apenas um resumo breve, embora indique a sua localização 166, o que explica que não se tenha apercebido tanto da valia do texto como da dos outros manuscritos insertos no códice. Mas assumiu que aquele correspondia a essa obra de arquitectura naval até então dada como desaparecida, tal como fez Pimentel Barata. O primeiro problema que o Livro coloca é o da sua datação. O manuscrito não contém quaisquer sinais ou passagens que ajudem a enquadrá-lo cronologicamente, mesmo que vagas, como sucede com o de Oliveira. João da Gama Pimentel Barata datou este tratado de circa 1600, quando o publicou pela primeira vez. É pelo menos o que se pode deduzir dos trechos com que procurou situá-lo em relação a outros documentos técnicos, recorrendo à crítica interna do manuscrito; quer isto dizer exactamente que, como era seu hábito e ficou bem patente em estudo posterior a que já nos referiremos, Pimentel Barata datou a obra em função das técnicas de construção naval aí descritas no quadro da grelha que traçou para a sua evolução no período compreendido entre c. 1550 e 1640. Esta atitude é perfeitamente compreensível, de acordo com o pensamento de um autor que expressou ao longo dos seus estudos a convicção de que os procedimentos técnicos seguiram uma progressão natural, sendo as soluções mais avançadas posteriores no tempo às mais arcaicas. A existência de regras e procedimentos técnicos com diferente nível de elaboração, na arquitectura e construção navais, é um facto que não carece de demonstração: comprova-o, por exemplo, a simples leitura comparada dos livros de Oliveira e Lavanha. Daí a assumir que o posicionamento cronológico da evolução técnica se pode fazer sem sobressaltos vai um passo arriscado: a História das Técnicas não é um caminho linear em progressão constante dirigido para a perfectibilidade absoluta, como meta última, ainda que utópica, em qualquer dos seus capítulos; e não o é seguramente neste de que tratamos. A adopção de soluções técnicas decorre de vários factores, muitos deles exógenos, de que o simples peso da tradição é exemplo suficiente, dado ser observável a persistência de técnicas antigas ao lado de outros muito mais «modernas» ou «avançadas», conceitos que encerram em si alguma perigosidade quando está em causa a plena satisfação pelos resultados de técnicas concretas em relação 165 166 Conforme uma nota de rodapé o deixa entender e a descrição do códice o confirma. Com a cota topográfica da altura: «Est. 7, Gr. 2, núm. 63» (Cesáreo Fernández Duro, Disquisiciones Náuticas, edición facsimilar, vol. V, Madrid, Instituto de Historia y Cultura Naval, 1996, p. 78 - tal como na primeira edição, e não p. 87, como aparece por lapso em Pimentel Barata, que deu como referência a cota «códice 63», a qual não existe). A cota actual do códice é 9/1068, e o Livro Primeiro encontra-se a fls. 41-78. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 149 aos objectivos pretendidos. Na construção das embarcações há exemplos sobejos da persistência secular, e até milenar, de soluções consagradas, como Basil Greenhill mostrou no seu estudo clássico intitulado Archaeology of the Boat167: uma técnica tende a manter-se se e enquanto funciona. Pelos meados da década de 1980, John Patrick Sarsfield deparou em estaleiros da Baía, no Brasil, com a utilização quotidiana de técnicas e instrumentos de construção anteriores aos conhecidos para o século XVI 168 . A introdução de novas tecnologias verifica-se em primeiro lugar nos pólos de maior crescimento económico, comparando com as regiões periféricas, onde chegam tarde ou podem nem penetrar. Os locais de fabrico dos navios de grande porte que nos séculos XVI e XVII fizeram as grandes viagens oceânicas foram naturalmente os cadinhos onde fermentaram novas soluções, enquanto a construção tradicional podia permanecer ligada às tradições arreigadas, sem qualquer perda de eficácia na fábrica de embarcações de navegação fluvial ou costeira, como o mostra a persistência dos tipos de navios tradicionais de pesca. Porém isto não significa que os grandes estaleiros andem a um mesmo ritmo: a própria forma de organização do trabalho na Idade Moderna; o já citado secretismo dos mestres; a sua amplíssima margem de decisão na fábrica dos navios, para lá de todas as regras escritas; e o primado da eficácia garantem que, face ao aparecimento de uma nova técnica, não era de todo forçoso que os mestres a adoptassem a um tempo. Pelo contrário, esta época de que tratamos é precisamente marcada pela lenta introdução das regras escritas, que de maneira nenhuma preponderam sobre as tradicionais. Por outro lado, há um óbice de peso quanto à possibilidade de usar os preceitos expressos nos textos técnicos como factores determinantes para a sua datação cronológica: é que no caso dos tratados não temos informação precisa nem sobre as motivações dos seus autores, nem sobre a real correspondência com o que era mais regularmente praticado no estaleiro. Em relação a Oliveira, como já vimos, é seguro que o Livro da Fabrica das Nãos o reflecte melhor do que se pensava inicialmente, mas no tocante a Lavanha o caso é mais complexo. Apesar do método seguido e de não o afirmar em parte alguma no seu estudo introdutório ao Livro Primeiro da Architectura Naval, não há dúvida de que Pimentel Barata se apercebeu das dificuldades: «A comparação do Livro Primeiro com o texto das duas 'traças' [de Sebastião Themudo e Gonçalo Roiz, no mesmo códice] mostra que aquele é posterior a estas: vê-se nelas que Lavanha não aplica todas as suas regras e cinge-se mais à prática empírica. O traçado da caverna é semelhante ao que se aprende no Livro de Traças (galeão de 350 t) e o traçado da roda de proa segue as regras de Manuel Fernandes, que era um prático. E o número de pares do fundo é ainda o correspondente à regra do 3o quartel do século XVI. É claro, temos de encarar a hipótese de se limi167 Basil Greenhill, Archaeology of the Boat. A new introductory study, Londres, Adam and Charles Black, 1976. 168 John Patrick Sarsfield, «Survival of Pre-Sixteenth Century Mediterranean Lofting Techniques in Bahia, Brasil», in Octávio Lixa Filgueiras, Local Boats, Oxford, British Archaeological Reports, International Series 438, Part I, 1988, pp. 63-86. 150 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL tar, como perito, a verificar se as 'traças' estavam conformes com os regimentos e as variantes que apresentassem serem aceitáveis, como se depreende do texto da 'traça' de Sebastião Temudo» 169 . Ou seja, pouco se adianta: parece portanto que a obra é de certeza posterior a 1598 (data das «traças»), e até ao Livro de Fernandes, pois segundo Pimentel Barata «o traçado da roda de proa segue as regras de Manuel Fernandes» (sublinhado nosso). Se segue é porque foi escrito depois, já que não é mencionada a hipótese de ambos resultarem de uma mesma matriz, que parece a mais óbvia. Logo depois o autor citado escreve: «A minúcia das descrições e instruções de Lavanha, origordos seus desenhos, são tais que se pode construir em todos os pormenores o que chamaríamos hoje a Ia fase do liame de uma nau de 1600» 170. Como, pois, 1600, se pelo menos uma regra segue Manuel Fernandes? Em estudo publicado uns anos depois do comentário à obra de Lavanha, esta aparece descrita como um «manuscrito autógrafo incompleto, escrito no 1.° quartel do século XVII» m : uma proposta muito mais cautelosa. As tentativas posteriores no sentido de precisar um pouco mais a data de realização do manuscrito revelaram-se pouco convincentes. Segundo Jesus Varela Marcos, realizou-se um Conselho de Guerra a 30 de Janeiro de 1607, que propôs a Filipe III a criação de uma Junta para preparar um documento técnico, regulador da construção dos navios para as armadas da Carreira das índias e do Mar Oceano. Varela Marcos supõe que, embora os seus nomes não constem da composição da Junta efectivamente reunida em consequência da pronta anuência do rei, Tomé Cano e Lavanha não podiam ter deixado de ser chamados a opinar a tal respeito 172; achava-se então que os navios feitos em Portugal para a Carreira da índia eram demasiadamente grandes, e seria necessário determinar a redução do seu porte para melhor responderem aos propósitos pretendidos. Dos trabalhos dessa Junta resultaram as Ordenanzas de 1607 173, em consequência das quais Tomé Cano e Lavanha teriam escrito a Arte para Fabricar 169 João da Gama Pimentel Barata, «Estudo», in João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p. 73. Neste subcapítulo usamos esta edição para citar o estudo de Pimentel Barata, já que nela se encontra também o texto de Lavanha e outros comentários que serão igualmente citados; torna-se assim mais vantajoso recorrer a um único volume para as referências em apreço. 170 Idem, ibidem, p. 74. 171 Idem, «O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-80 a 1640», / Reunião Internacional de História da Náutica (23-26 de Outubro, 1968). Discursos e Comunicações, Universidade de Coimbra-Estudos de Cartografia Antiga, 1970. Deste volume tiraram-se apenas dez exemplares, mas o texto foi reproduzido várias vezes, incluindo nos Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, pp. 153-202. 172 Tomé Cano afirma que esteve presente, mas não menciona o nome de Lavanha (Tomé Cano, Arte Para Fabricar y Aparejar Nãos. 1611, Edición y prólogo por Enrique Marco Dorta, La Laguna, Instituto de Estúdios Canários, 1964, p. 62, n. 3), 173 O texto pode ver-se em: Colección de Documentos y Manuscriptos Compilados por Fernandez de Navarrete, vol. 23, Part One, Nendeln (Liechtenstein), Kraus-Thomson, 1971, pp. 575-593. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 151 y Aparejar Nãos e o Livro Primeiro, respectivamente, ainda de acordo com o autor que temos vindo a seguir. Varela Marcos aponta com justeza a diferença entre um e outro, nomeadamente o facto de Lavanha já não adoptar a forma do diálogo na escrita, ao contrário de Tomé Cano, por privilegiar a precisão e o rigor das medidas, ao invés da exposição amena 174. Todavia, procurar-se-á debalde a justificação para a ideia avançada, quanto à redacção daqueles livros em consequência das Ordenanzas; e no texto destas, qualquer correspondência com o Livro de Lavanha que suporte tal tese. A simples sequência cronológica não chegaria para estabelecer tal filiação, mas, ao contrário do caso de Tomé Cano, não há também nada que prove que Lavanha escreveu depois de 1607 175. Posteriormente, José Maria Cruz Apestegui avançou a ideia de que a redacção do Livro Primeiro teria sido interrompida por Lavanha, quando se apercebeu que tinha ficado subitamente desactualizado pela introdução da técnica da joba, determinada nas Ordenanzas de 1613 176. Richard Barker contrapôs que a técnica portuguesa do espalhamento cumpria exactamente o mesmo objectivo l77 ; por outro lado, nada garante que Lavanha considerasse a técnica espanhola mais adequada que a portuguesa, e se escrevia a pensar nos navios portugueses não poderia simplesmente considerar senão esta última, donde resulta que o argumento não é sustentável. O problema da datação do manuscrito tem de ser visto de outro modo, e em função dos seguintes considerandos: a) documento algum faz qualquer ligação formal de Lavanha ao círculo profissional da construção naval; b) que essa ligação existia, contudo, prova-o o facto de a sua assinatura ter sido aposta às traças de Sebastião Themudo e Gonçalo Roiz, de 1598, que estão no mesmo códice em que se guarda o Livro Primeiro; c) a suficiência de Lavanha em relação à matéria comprova-se por esse facto, e pelo relato do naufrágio da «S. Alberto»; d) é lógica a conexão do Livro às traças citadas, como fez Pimentel Barata, mas há que acrescentar que o relato do naufrágio data de apenas um ano antes, ou seja 1597; 174 Jesus Varela Marcos, «La pretendida reforma naval de Felipe III: Ia política de protección de bosques, saca y elaboración de maderas para Ia construcción naval», Revista da Universidade de Coimbra, vol. 34, 1987, p. 124. 175 Varela Marcos inclina-se até a pensar que o Livro Primeiro é de 1614-1615, porque todos os outros documentos do códice seriam posteriores a 1607, com manifesto erro, pois lá se encontram as traças de 1598 (v. Richard Barker, «Comentários», in João Baptista Lavanha, op. cit., p. 13). 176 V. o texto in Gervasio de Artifiano, La Arquitectura Naval Espanola, Barcelona, Oliva de Vilanova, Impressor, s/d [1920], Apêndice IX, pp. 287-299. São regras determinadas para a construção de navios espanhóis, obedecendo a normas diferentes dos portugueses, embora aproveitando estas pontualmente, como se vê por exemplo pela frase: «Las mesas de guarnizión han de ser a Ia portuguesa» (p. 293). 177 Idem, ibidem, p. 14, com referência ao comentário de Cruz Apestegui, que o próprio no-lo confirmou de viva voz. 152 CAPÍTULO III: JoAo BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTVRA NAVAL e) Lavanha está em Lisboa na década de 1590, e não voltará durante muito tempo, depois de sair para Espanha nos inícios do século XVII; e a partir de 1602 os seus já múltiplos interesses e actividades profissionais diversificar-se-ão notoriamente; f) é portanto nesta década, particularmente na segunda metade, que verificamos a maior ligação de Lavanha aos problemas da navegação, o que se espelha bem nos seus escritos náuticos; Lavanha não voltou a dar mostras de ter continuado a escrever regularmente sobre esta matéria, ou a exercer actividades com ela relacionadas, senão em situações pontuais; g) as assinaturas dos regimentos especiais e o relato do naufrágio datam precisamente desta altura. Somos levados a concluir que João Baptista Lavanha poderá ter escrito o Livro Primeiro no decorrer da última década do século XVI, mais provavelmente ainda no decorrer dos últimos cinco anos, e pode-se ainda aventar a hipótese de ter interrompido o manuscrito quando foi chamado para Espanha, nos inícios do século XVII, deixando-o em Lisboa e não tendo mais oportunidade ou interesse em o retomar. Circa 1600 é a nosso ver a possibilidade mais acertada de datar este manuscrito, quase a sua única obra escrita sem que haja notícia de isso decorrer de uma incumbência profissional: estamos todavia em crer que Lavanha foi chamado a expressar a sua opinião acerca da construção naval e a certificar o trabalho dos mestres do ofício, dada a sua grande e reconhecida competência nas matérias náuticas, o facto de ser cosmógrafo-mor, e o interesse que mostrou pelos problemas da navegação e da fábrica dos navios. Desse interesse, mais pessoal que estritamente profissional, terão resultado tanto o relato do naufrágio da nau «S. Alberto» como o seu tratado de arquitectura naval, deixado a meio devido aos afazeres profissionais que lhe eram constantemente cometidos. Aliás, dificilmente se compreenderia que o livro tivesse ficado por acabar se fosse escrito por missão em vez de ser resultado de uma vocação; Lavanha poderia evidentemente ser desviado para outras tarefas pelos mesmos mandatários, mas nenhuma das obras que se ligam directamente à sua vida profissional ficou por acabar. O Livro desdobra-se por doze capítulos, os sete primeiros numerados sequencialmente, o oitavo sem qualquer notação, e os restantes quatro com a palavra «Capitulo» escrita na linha de baixo do título, mas sem número à frente. O índice é como segue (com os títulos modernizados): Cap. I Cap. II Cap. III Cap. IV Cap. V Cap. VI -Daarquitectura e do arquitecto universal - Das partes de que consta a arquitectura - Da divisão da arquitectura - Da arquitectura e do arquitecto naval - Das matérias que se usam nesta arte, e primeiramente das madeiras - Do [tempo] em que se deve cortar as madeiras Os NAVIOS DO M A R OCEANO 153 Cap. VII - Das outras achegas necessárias - Como se traçará a quilha, a roda, o codaste, a caverna mestra, braços e aposturas, o gio, e os reversados, e se tirarão as suas formas - Como se marcam as madeiras, se fazem e assentam as atacadas, e se lavra a quilha, a roda e os couces de popa, e proa - Como se lavra o codaste, o gio e os revesados, e se faz a grade - Como se faz o graminho, e por ele se marcam as cavernas de conta - Como se marcam, e lavram os braços, e aposturas, e se embaraçam, as cavernas O livro está incompleto, como já vimos, mas ainda assim permite a reconstituição do traçado do casco de uma nau até à primeira coberta. Ao contrário do que sucede com Oliveira, não existe plano de intenções que permita ao leitor saber até onde Lavanha pretendia ir. É provável que ficasse pelos aspectos estritamente ligados à arquitectura do casco, à qual se aplicam os juízos emitidos nos primeiros capítulos sobre o que é esta arte, quem e como deve praticá-la. A simples leitura do índice revela que a obra está dividida em duas partes fundamentais, a segunda das quais desdobrada em duas outras subpartes, por sua vez: os primeiros quatro capítulos dão um enquadramento genérico à matéria, antecedendo o tratamento específico da fábrica dos navios, de que se trata no resto do texto. Na segunda parte, e antes de entrar na construção naval propriamente dita, os capítulos cinco e seis dizem respeito à escolha das madeiras e precauções a tomar desde o corte até à sua preparação. Não há uma única linha que não pudesse ter sido subscrita por Fernando Oliveira, o que é compreensível na medida em que ambos os tratadistas mais não fazem que registar factos de conhecimento comum, resultantes de uma experiência acumulada longa de séculos. As madeiras de sobro e pinho voltam pois a ser aconselhadas, e, tal como Oliveira, Lavanha insurge-se contra o que chamaríamos hoje uma gestão danosa dos recursos florestais, verberando o costume de produzir carvão a partir da queima de um bosque de grandes sobros, como se não servissem para mais nada. Era uma preocupação justificada, sabendo-se como a construção de um navio podia requerer enormes quantidades de madeira 178. É difícil apurar números para esta época mas, segundo Carlos Rogenmoser Lourenço, um navio de linha de 74 peças do século XVIII exigia o abate de 2000 a 4000 árvores de bom porte m . Os navios do século XVI exigiriam um número mais baixo, mas ainda assim impressionante, se considerarmos que não há uma relação directa 178 E não só a construção: a estrutura em madeira erguida para manter em posição o casco da fragata «D. Fernando e Glória» requereu 500 toneladas de madeira, segundo nos informou Mestre Alberto, o responsável técnico pela recuperação do navio. 179 Carlos Rogenmoser Lourenço, A Floresta Portuguesa e os Descobrimentos Marítimos, Lisboa, Academia de Marinha, 1990; para a distribuição da floresta endémica portuguesa v. Orlando Vasconcelos de Azevedo, A Floresta e o Domínio do Mar, Lisboa, Academia de Marinha, 1997. 154 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL entre tonelagem e número de abates: há peças a requer que se use uma única árvore para obter uma forma determinada. Estes capítulos mostram que Lavanha estava bem ciente das dificuldades verificadas na obtenção de matéria prima para a construção naval, levando ao uso de madeiras verdes, com as consequências que se adivinham, e tornando cada vez mais complicada a tarefa de encontrar peças inteiras para a quilha, os mastros, e outras partes estruturais do navio 180. Dois apontamentos separam este livro do de Oliveira: uma referência às madeiras orientais (teca e angelim), consideradas ideais para o fabrico dos navios 181, que o autor do Livro da Fabrica das Nãos parece não conhecer; e a afirmação de que no Norte da Europa se usava o carvalho em substituição do sobro e do azinho, sem quaisquer problemas para a navegação em águas frias 182 . Neste aspecto Oliveira mostra como se mantém preso à lição dos clás-sicos, enquanto Lavanha tem a prática e conhecimento concreto de uma situação como primeiro referente. O capítulo sétimo trata com brevidade dos outros materiais necessários para a fábrica naval, como sejam pregadura, linho, estopa, breu, alcatrão, graxa e chumbo. Lavanha estipula os cuidados a ter para garantir a boa conservação das madeiras, evitando que os vermes o perfurem, para o que recomenda especiais cuidados nas junções, e o uso de chumbo para chapear a parte inferior do casco. Tal como acontece em Oliveira, não há aqui novidade nem nada que um bom construtor naval não soubesse já. Os últimos cinco capítulos explicam o processo de lançamento da construção de uma nau de carga de quatro cobertas, e 17,5 rumos de quilha. O motivo da escolha e o que pretende com ela explica-o logo de início: «E porque na edificação de uma Nao de quatro Cubertas para carga de 17. Rumos e 1/2 de quilha (que he o comprimento mais conueniente para a grandeza das Nãos deste porte) há mais dificuldade que em todas as outras, tomaremos uma por exemplo, na qual praticaremos as regras desta Arte. Para que adestrado nelle o Artifice posa emprender afoutamente a fabrica de qualquer Nauio do mesmo género» 183. Do ponto de vista técnico, segue-se uma descrição rigorosa e exaustiva das diversas etapas do fabrico até à primeira coberta. O texto contém normas que não aparecem em mais nenhum documento técnico, revelando preocupações que estão muito longe das evidenciadas por Fernando Oliveira. São justamente estes cinco capítulos que marcam a distância entre os dois autores, no que diz respeito ao conhecimento de cada um acerca 180 Sobre a questão das madeiras para a construção naval v. Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimonia Histórica, 1997, pp. 307-333. A autora mostra que os problemas enunciados datavam já dos meados do século XVI. 181 João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, p. 26. 182 Idem, ibidem, p. 27. 183 Idem, ibidem, p. 35. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 155 do processo da fábrica das naus. Enquanto Oliveira revela que tinha uma boa noção do que se fazia nos estaleiros, Lavanha foi mais longe, e seguramente assistiu desde o início à construção de navios, reflectindo sobre todos os passos que via sucederem-se. Oliveira projectou no seu livro o que pensava das regras gerais, Lavanha explicou a par e passo o que devia ser feito no estaleiro. Novidade é o enunciado da perfeita ordenação das diversas etapas do trabalho do artífice, que são estipuladas deste modo: determinação da grandeza e uso do navio a construir; corte das madeiras; reunião das «achegas» necessárias; marcação das peças; lavrar das madeiras; início da construção propriamente dita 184. No livro de Lavanha encontram-se as únicas referências da documentação técnica à marcação e lavrar das peças de maneira. Entende-se bem que os outros textos partam do pressuposto de que estas tarefas teriam de ser feitas antes da aplicação das regras preconizadas, seja pela lição mais teórica de Oliveira, seja pelo regimento de teor mais prático. Este rigor patenteado por Lavanha evidencia por outro lado que empregou uma terminologia muito específica, para o que não é fácil descortinar uma explicação plausível185. E não só específica, como pontualmente contrária ao significado dos termos consagrados: assim, «galivar» quer dizer marcar a madeira, em vez de a desbastar, como é usual, acto que aqui é designado por «lavrar». Noutros casos usa termos que não ocorrem senão no seu livro, como «capelo» para designar o topo da roda de proa 186. O cuidado posto nas explicações dadas revela evidente preocupação didáctica, no sentido em que o texto procura ser facilmente compreensível para o não iniciado, embora requerendo o domínio de conhecimentos técnico-científicos a um nível que não estava ao alcance de qualquer um, e que quase seguramente não seria atingido pela maioria dos práticos. A par das normas escritas surgem no manuscrito vários desenhos de um pormenor e rigor verdadeiramente notáveis, auxiliares preciosos para a compreensão do texto. Pelo que fica exposto entende-se o comentário de Pimentel Barata, a propósito destes cinco capítulos terminais: «Quanto ao restante texto, não podemos esconder a nossa admiração pela notável clareza de exposição, pela sistematização e pormenorização das matérias e pela feição eminentemente prática e técnica com que estão tratadas» 187. Entende-se e compreende-se: na óptica do especialista que procurava elementos informativos para reconstruir o traçado geométrico dos navios, a leitura do Livro Primeiro de Architectura Naval deve ter sido uma verdadeira revelação. Por essa mesma razão, todavia, o texto é até pobre na perspectiva do estudo da tipologia das embarcações portuguesas: queda-se pela nau de quatro cobertas, 184 Idem, ibidem, pp. 34-35. Pimentel Barata detectou esta especificidade dos termos usados por Lavanha, mas não procurou justificá-la: veja-se o «Estudo» citado, passim. 186 p a r a m ais exemplos v. João da Gama Pimentel Barata, «Estudo», pp. 100-101. 187 Idem, ibidem, p. 71. 185 156 CAPITULO III: JOÃO BAPTISTA LAVANHA E O LIVRO PRIMEIRO DE ARCHITECTURA NAVAL e nem sequer há alusão alguma a outras embarcações ou à forma como devem ser classificadas, bem ao contrário do que se passa com o Livro da Fabrica das Nãos. Nos primeiros quatro capítulos, pelo contrário, Lavanha destaca-se notoriamente do que está escrito em quaisquer outros textos da época, sejam eles os dos portugueses ou os dos seus contemporâneos espanhóis, como Tomé Cano, cujo trabalho conhecia muito provavelmente. A forma de diálogo adoptada por este autor na exposição, tanto quanto o próprio conteúdo, parecem subitamente mais antigas do que na realidade são, pois cronologicamente a Arte para Fabricar y Aparejar Nãos é posterior ao Livro Primeiro, se a nossa proposta de datação está certa. Aplica-se o mesmo ao Diálogo entre um vizcayno y un montanés sobre Ia fábrica de navios, este de certeza mais tardio, já que menciona as Ordenanzas de 1618 188, e a fazer lembrar o português Tratado do que deve saber um bom soldado. O Livro Primeiro inicia-se com algumas considerações gerais sobre a arquitectura, o que é e para que serve. Esta introdução define o trajecto que vai do arquitecto universal ao arquitecto naval, na feliz expressão de José Carlos Costa Valente 189, e é justamente na definição do que era requerido ao arquitecto naval que inova, para além da ocorrência extremamente significativa destas duas expressões: «arquitectura naval» e «arquitecto naval». Pois é efectivamente do arquitectar do navio que trata, e não da sua fábrica - que é uma consequência, não o princípio em si; é o arquitecto naval o principal responsável, e não o mestre construtor ou o simples carpinteiro, que são remetidos para a condição de artífices, meros executores do projecto que aquele delineou. Para tanto o arquitecto naval tem de possuir um conjunto de habilitações específicas, o que requer o domínio de campos do saber como a Astronomia, a Aritmética, a Geometria, a Mecânica e as Matemáticas. Armado com estes conhecimentos pode desenhar o navio, projectá-lo geometricamente, saber quando se deve cortar a madeira («Da Astronomia ha mister o conhecimento dos tempos accomodados para o corte das madeiras» 190 ), ou como usar os aparelhos de esforço 191. Posto isto, surgem outras duas novidades de monta. O primeiro passo na construção do navio é o lançamento do plano da obra em papel, o que, segundo John Dotson, marca uma ruptura em relação ao que era conhecido até então: o uso do desenho como ilustração do texto 192, sem reflectir a concepção inicial do navio. A outra novidade é a determinação de uma segunda etapa, que deve consistir na construção de um modelo que espelhe fielmente o navio a construir, a e x c e l e n t e edição de Maria Isabel Vicente Maroto (ed.), Diálogo entre um vizcayno y un montanés sobre Ia fábrica de navios, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1998. 189 José Carlos Costa Valente, «Mentalidade Técnica no Livro Primeiro de Architectura Naval de João Baptista Lavanha (c. 1600-1620)», Maré Liberum, n.° 10, 1995 [1996], p. 598. 190 João Baptista Lavanha, op. cit., p. 22. 191 Idem, ibidem. 192 John E. Dotson, «Treatises on Shipbuilding Before 1650», in Conway 's History ofthe Ship. Cogs, Caravels and Galleons. The Sailing Ship 1000-1650, Londres, Conway Maritime Press, 1994, p. ??. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 157 pondo «em Perspectiua toda esta sua fabrica» 193. Assim poderia o arquitecto desta arte corrigir os erros que o modelo lhe permitira detectar, antes de se tornarem irremediáveis ou extremamente onerosos de reparar. Os modelos, sabemo-lo hoje, tiveram uma outra função muito importante: a apresentação do projecto da obra ao contratador 194 . A utilização de modelos na arquitectura naval não parece ter sido frequente em Portugal, a avaliar pela total ausência de notícias a esse respeito, com a notável excepção de João Baptista Lavanha, que dá conta da atitude geral perante esse útil instrumento de trabalho: «Mas como o Modello custe tempo, e dinheiro, ha se por mal gastada a despesa de ambos e não se faz consideração do muito que importa a fabrica de uma Nao da Jndia, para com cem cruzados mais (que he o que pode custar o seu modello) fazer se acertada e sem erros» 195. O quadro das habilitações do arquitecto naval, segundo os requisitos de Lavanha, significa a prevalência de uma cultura técnica sobre uma cultura humanística. Mas como aquela se tardou a impor e Lavanha foi uma voz avisada antes do tempo, é bem possível que tivesse encontrado resistências várias se acaso as suas ideias pudessem ter sido aplicadas. Desenhar navios e construir modelos eram actividades que seguramente não estavam nos hábitos regulares dos seus contemporâneos que fabricavam as embarcações. 193 João Baptista Lavanha, op. cit., p. 23. Sobre modelos de navios a obra de referência é o livro de Brian Lavery e Simon Stephens, Ship Models. Their Purpose and Development from 1650 to the Present, Greenwich, The National Maritime Museum, 1996. 195 João Baptista Lavanha, op. cit., p. 23. 194 CAPÍTULO IV MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA 1. MANUEL FERNANDES, MESTRE DA RIBEIRA O Livro de Traças de Carpintaria ! abre com o retrato de um homem de cerca de 30 a 40 anos, empunhando com ar serenamente afirmativo dois instrumentos da profissão: a régua e o compasso 2, este na mão direita, levantada, como se o mostrasse a quem olha. A moldura está dividida em duas partes e vêem-se na inferior os seguintes dizeres: Liuro de Traças de Carpintaria com todos os Modelos e medidas pêra se fazerem toda a nauegação, assy d'alto bordo como de remo Traçado por Manoel Ffz official do mesmo officio. Depois da identificação do autor e da obra figura a data: Na era de 1616. Trata-se de uma obra de carpintaria naval, como logo se vê pela listagem de matérias da «Taboada da escretura deste liuro», que surge no fólio seguinte. Todavia o autor não pode ser um simples artífice; a pose, o traje, e, sobretudo, a forma como é retratado sugerem antes que é alguém importante na arte. A imagem deve representar um mestre da Ribeira, um dos homens encarregues de assegurar a boa arquitectura dos navios que então se faziam. O lugar tem um detentor, apenas (só por uma vez e durante dois curtos anos foi ocupado BA, cod. 52-XIV-21. Foi publicado em duas partes, um volume com o facsímile do manuscrito: Manuel Fernandes, Livro de Traças de Carpintaria, Lisboa, Academia de Marinha, 1989; e outro com a transcrição do texto e respectiva tradução para inglês, sem as imagens: Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, 1995. Ambos muito simples: na época já havia instrumentos bem mais elaborados do que o compasso que se vê empunhado por Fernandes, como o ilustra uma gravura da obra Geometria Prattica de Giovanni Pomodoro, publicada em 1599 (v. Maya Hambly, Drawing Instruments 1580-1980, Londres, Sotheby's, 1988, p. 34). É frequente encontrar este tipo de instrumentos representados na pintura da época. Por exemplo, vêem-se vários no conhecido quadro de Hans Holbein que retrata o astrónomo Nicolas Kratzer (1528; Museu do Louvre, Paris), o qual segura um compasso de modelo relativamente complexo. 160 CAPÍTULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA simultaneamente por dois mestres 3 ), o que lhe confere especial responsabilidade. Pelo que se pode apurar dos casos conhecidos ascenderam a ele os mais reputados especialistas na arquitectura e construção dos navios de grande porte. O livro, por outro lado, é um género de compêndio onde estão registados todos os principais tipos de navios da época, tanto por escrito, com os regimentos para a sua construção, como em desenho, alguns tão largos que vão em folhas dobradas, apesar da grande dimensão do volume; e quase todos policromáticos. Permanecem muitas interrogações: quem foi Manuel Fernandes? Com que finalidade fez o livro? E para quem? As perguntas não ficam por aqui, mas não se pode escamotear uma última, que a lógica manda equacionar, muito embora o assunto nunca tenha sido discutido propriamente: o Livro de Traças de Carpintaria é mesmo de Manuel Fernandes? Ou, no mínimo, é um autógrafo? À primeira questão não há em rigor nada a acrescentar ao que está escrito na abertura do livro: era mestre de arquitectura naval (neste caso, o mesmo é dizer construção naval) e com certeza devia estar vivo em 1616. No que toca ao resto, esta figura tem-se mantido estranhamente renitente ao apuramento de mais pormenores sobre a sua vida e obra; alguns dados biográficos mais poderão dizer-lhe respeito, plausivelmente. Mas só isso: com plausibilidade mas sem certezas de espécie alguma. Na origem destas dificuldades e incertezas está também um factor normal em relação à época, a impossibilidade de destrinçar o que é que diz respeito a quem, numa floresta de homónimos tanto maior quanto se lida com nomes comuns; e Manuel Fernandes é um nome comum, assim o atesta a profusão de referências as mais díspares, desde o grande número de documentos que se podem encontrar na Biblioteca do Palácio da Ajuda sobre um confessor do rei com este nome (embora um pouco mais tardio), até aos vários Manuel Fernandes que surgem citados em documentos do Arquivo Municipal de Vila de Conde, entre outros. Já se escreveu que o autor do Livro de Traças tinha nascido nesta localidade, apesar de não se encontrar a mínima alusão documental que o permita confirmar; mas pode ter havido alguma ligação entre o homem e a terra, centro tradicional de construção de navios e de apetrechos variados para a navegação, avultando a qualidade dos panos para velas que aí se produziam 4. Francisco Marques de Sousa Viterbo publicou o primeiro conjunto de notícias que eventualmente poderão ter a ver com o autor do Livro de Traças, embora não tenha assumido a possibilidade de identificação do tratadista com o mestre de construção naval que foi nomeado para a Ribeira de Goa; Sousa Viterbo separou as ditas referências entre um primeiro e um segundo Manuel Fernandes, como amiúde fez nos Trabalhos Náuticos sempre que duvidava da identificação dos homónimos. E daquele último diz apenas: «É porventura o Gonçalo Roiz e Sebastião Themudo, como ficou dito no capítulo I. O pano de treu era também conhecido por pano de Vila do Conde, e era aí produzido, bem como em Azurara, Barcelos, Porto e Maia (Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVIpara a Rota do Cabo, Cascais, Patrimónia, 1997, p. 368, Fig. 4). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 161 mais celebre tratadista de construcção naval, de que nos podemos orgulhar, e por infelicidade não encontramos d'elle nenhuma referencia official. O seu nome passaria ao mais completo esquecimento, se d'esse ultrage não o resalvasse um importante manuscripto...» 5. Na primeira entrada com este nome, Sousa Viterbo averbou dois documentos cuja conexão com a mesma pessoa também não quis garantir. O primeiro diz respeito à nomeação para mestre de carpintaria da Ribeira de Goa, por oito anos, de um Manuel Fernandes que ia substituir Valentim Themudo, o qual regressava ao reino, embora não tenha ocupado o cargo para o qual fora também apontado Diogo Luís, profissional reputado que mais tarde foi um dos intervenientes na disputa em torno das naus de três e quatro cobertas 6. O documento atesta a suficiência e experiência do nomeado como mestre carpinteiro de naus e navios de alto bordo, assim como de remos, e está datado de 30 de Março de 1621 7. O segundo documento diz respeito à mercê de dois moios de trigo por ano a um contra-mestre da Ribeira das Naus e mestre das galés, e tem data de 20 de Outubro de 16508. São significativas as referências à prestação de ambos os nomeados na construção de navios de remo, quando pensamos na importância que estes assumem no Livro de Traças. A carta de mercê de moios de trigo é mais sugestiva: não estranha ver Manuel Fernandes como mestre das galés, mas 1650 será uma data relativamente tardia para o autor do Livro, que teria talvez uns setenta anos nesse meado do século? Não deixa de ser curiosa a diferença de juízos no avaliar da idade do homem que está retratado no Livro: menos de trinta anos segundo Hernâni Amaral Xavier 9, trinta e poucos para Carla Phillips 10 , trinta a quarenta avançamos nós por cautela, ou cinquenta anos, como quer Melba Costa n . Um Francisco Marques de Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, reprodução em facsímile, Lisboa, IN-CM, 1988, Parte II, p. 55. V. os documentos relativos à nomeação de Diogo Luís em Sousa Viterbo, op. cit., pp. 72-74; a situação tornou-se confusa dada a dupla nomeação para o cargo feita em Lisboa e em Goa, quase simultaneamente. Diogo Luís reclamou o seu direito ao lugar e o Conselho da Fazenda ordenou a Manuel Fernandes que exibisse o documento que o provia, mas este não só não o fez como se ausentou. Publicado por Sousa Viterbo, op. cit., p. 54. Idem, ibidem. Hernâni Amaral Xavier, Novos Elementos para o Estudo da Arquitectura Naval Portuguesa Antiga, Lisboa, Academia de Marinha, 1992, p. 17. Carla Rahn Phillips, «The Context for Manuel Fernandes's Livro de traças de carpintaria of 1616», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 269-276. Melba Costa, «Acerca do Livro de Traças», Oceanos, n.° 2, 1989, pp. 122-128. A autora fez a melhor descrição do quadro, mas com notório engano na atribuição da idade e não só, como se pode ver: «o olhar penetrante e seguro de quem sabe o que faz e quer transmitir a sua experiência, olhos castanhos em rosto pequeno, de queixo afilado. Trajado ao estilo da época, gola branca em frisados (folhados) e gibão preto abotoado na frente, o retrato em corpo e meio revela-nos um homem magro, de estatura abaixo da média, na casa dos cinquenta. Como que a completar o quadro, o autor ostenta, na mão direita, um compasso e uma régua; na esquerda, dois instrumentos imprescindíveis à prática da arte...» (p. 124). 162 CAPITULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA pormenor despiciendo, um desacordo sem consequências? Pelo contrário, os cerca de trinta anos de idade, pouco mais ou pouco menos, que a maioria das opiniões atribuem ao retratado, facilitam a identificação do «oficial do mesmo ofício» com o contra-mestre da Ribeira agraciado em 1650, enquanto os cerca de cinquenta anos de idade em 1616 a tornam muito mais improvável, ainda que se aceite uma longevidade incomum à época. Compreende-se o critério de Sousa Viterbo, mas não considerar sequer a hipótese de um ou outro dos documentos dizerem respeito ao tratadista parece todavia precaução excessiva. Não há qualquer inverosimilhança na sugestão de que um mestre da Ribeira de Lisboa fosse nomeado para a de Goa, onde a sua falta se fazia sentir, como o documento diz - porventura mais do que em Lisboa, onde era mais fácil arranjar candidatos para o posto. Sem se poder afirmar nada em concreto, não é aconselhável rejeitar liminarmente a hipótese de ambos os documentos estarem relacionados com a mesma pessoa, que bem pode ser aquela que agora nos interessa, conforme pensa Amaral Xavier, vendo no de 1650 uma espécie de «mercê de aposentadoria» 12. A suposição de que o lugar de Goa foi dado a Manuel Fernandes em 1621, e bem assim a recompensa de 1650, torna difícil a concordância com nova hipótese avançada pelo autor citado: «Devemos forçosamente ter de ficar admirados pelo facto de um 'official' de carpintaria Naval 'soficiente' na construção de navios... e, além disso autor de tão importante tratado, não aparecer nomeado em qualquer documento; só se podem fazer, julgamos, duas suposições: ou não exercia a actividade ou fazia-o numa posição humilde que o não conseguia guindar à posteridade» 13. Nem uma coisa nem outra: o exercício da profissão em Lisboa, o apontamento para o lugar em Goa, a «mercê de aposentação», obviamente a própria autoria do Livro, tudo são indícios mais do que suficientes (se efectivamente nos reportamos à mesma pessoa) para afirmarmos a sua consagração enquanto prático da arte. O problema dos homónimos existe e é real no rastreamento de dados biográficos, e o nome em causa é vulgar nesta época, como já se disse. Mas havendo poucos lugares de responsabilidade ao nível da hierarquia que superintendia a concepção e construção dos navios, ver dois homens a fazer exactamente a mesma coisa, na mesma época e com nome idêntico, parece coincidência a mais. É por isso que é crível identificar esta personagem com o Manuel Fernandes citado num outro documento, este sim estabelecendo o elo com Vila do Conde: trata-se do registo do pagamento do imposto de siza sobre a venda de uma casa. Os vendedores, que se fizeram representar no acto, eram Manuel Fernandes, carpinteiro da Ribeira, e sua mulher Maria André, moradores em Lisboa 14 . De que Ribeira? Há várias, em Portugal, mas presumivelmente da de Lisboa, já que é aí que moram e nem sequer estão em Vila do Conde na altura. 12 13 14 Hernâni Amaral Xavier, op. cit., p. 16. Idem, ibidem, p. 15. Arquivo Municipal de Vila do Conde, Liv. 1751, fl. 3-3v. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 163 Um dado que não desmente o que se sabia já; não chegando a ocupar o lugar em Goa, prosseguiu o exercício da profissão em Lisboa. É realmente possível que fosse vilacondense de nascimento, porque esse era o trânsito normal dos homens do mar. Vila do Conde já não era um grande pólo marítimo, embora os autores se dividam quanto ao momento em que a decadência da vila se começou a acentuar: com D. João III, devido ao assoreamento do porto, como quer Joaquim Pacheco Neves 15, ou apenas um século mais tarde, quando Amélia Polónia regista a desaceleração da actividade marítima, mas ao mesmo tempo uma «presença significativa» de carpinteiros e calafates naturais de Vila do Conde e de Azurara das Ribeiras do Ouro e de Lisboa 16. Há outros Manuel Fernandes na documentação relativa a Vila do Conde e ao Porto, nesta altura, mas sem presumível ligação com autor do Livro 17. Enfim, Manuel Fernandes continua a ser um enigma, mas, se não há certezas a respeito dos seus dados biográficos, registam-se pelo menos algumas hipóteses defensáveis de identificação do autor do Livro de Traças de Carpintaria. Sobre a obra é que se adensam ainda mais as dúvidas. 2. O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA «O livro é um códice de 140 folhas, medindo 48 cm por 38 cm, acrescido de 3 folhas iniciais em branco, diríamos uma anteguarda ao retrato do autor em aguarela, seguido do índice do livro. O texto, em letra desenhada do século XVII, de fácil leitura em oposição à inteligibilidade, surge-nos circunscrito por uma esquadria de dois traços a vermelho. Papel espesso de veratura fina, ostenta, como marca de água, um peregrino com bordão encimado por uma cabaça e duas bolas, chapéu desabado, não constante de C. M. Briquet...» 18. Descoberto nos finais do século XIX na Biblioteca do Palácio da Ajuda, não se sabe de onde veio ou a quem pertenceu. O códice foi encadernado em 1898 e é de admitir que possa ter sido mutilado nessa altura. As suas peculiaridades 15 16 17 18 Joaquim Pacheco Neves, Vila do Conde, Secção Cultural da C. M. de Vila do Conde, 1987, p. 29. Amélia Polónia da Silva, «Vila do Conde no Século XVI. Reflexões sobre alguns índices de desenvolvimento urbano», Vila do Conde. Boletim Cultural da Câmara Municipal, n.s., n.° 14, 1994, pp. 47-64. De uma forma geral os estudos sobre Vila do Conde apontam para a vitalidade das actividades económicas ligadas à vida do mar, além da abundância de sobro e azinho na região, madeiras das mais usadas na construção de navios. V. A. Coutinho Lanhoso, «Os Estaleiros de Vila do Conde. A sua função e o seu labor através da existência da nacionalidade», Jornal da Marinha Mercante, Ano I, n.° 6, 1942, pp. 13-8 (estudo este em que se apoiaram posteriormente vários outros sobre o tema). Amélia Polónia encontrou pelo menos mais seis, e transmitiu-nos esta opinião, que corroboramos em função dos dados apurados. Nem sequer no caso do Manuel Fernandes Peixinho casado com Catarina Gonçalves, cuja filha contraiu matrimónio em 8 de Novembro de 1615, identificação que é sugerida por Melba Costa, op. cit., p. 122 (Amélia Polónia, Vila do Conde. Um Porto Nortenho na Expansão Ultramarina Quinhentista, Diss. de Doutoramento, Universidade do Porto, 1999, pp. 332-333). Melba Costa, op. cit., p. 123. 164 CAPÍTULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA ficaram patentes desde logo: além do conjunto sistemático de regimentos, o Livro é particularmente notável pela abundância dos desenhos técnicos, num total de 266, segundo contou Pimentel Barata, ou 392, inventariando todas e cada uma das peças e modelos que se podem observar nas pranchas de desenhos. Não só por causa destes desenhos, mas também pela quantidade de regimentos para a construção de todos os tipos de embarcações, desde as grandes naus da índia até ao simples batel, os historiadores cedo se aperceberam da extraordinária relevância deste manuscrito, embora isso não signifique a devida contrapartida em termos de publicações de estudos a propósito; uma escassa meia dúzia de trabalhos sobre o Livro ou nele baseados parecem efectivamente pouco para obra que todos reconhecem de importância maior. Devem-se a Eugênio Estanislau de Barros os primeiros estudos sobre os materiais do Livro de Traças: em 1930 publicou os regimentos da galé de 24 remos e o da galiota de 18, em livro dedicado às galés 19, sem os acompanhar com qualquer referência crítica à obra em si ou às circunstâncias que levaram o autor a escrevê-la. Em 1933, em outro estudo, desta feita sobre as naus, anunciando a sua publicação integral, Estanislau de Barros dá à estampa nada menos de 19 regimentos e 17 planos e desenhos do Livro: o que é mérito assinalável mas fica bem aquém do anunciado 20. Um ano volvido, é a vez de Henrique Quirino da Fonseca publicar dois outros regimentos sobre caravelas na sua obra magistral sobre estas embarcações, na qual dedica todo um capítulo ao Livro21, cuja relevância acentua em curta apresentação prévia, percebendo-se bem o interesse particular deste especialista: é que o Livro contém os primeiros desenhos técnicos de caravelas portuguesas, ainda que sejam redondas de 150 a 180 tonéis, não tendo pois a ver com a embarcação latina de dois mastros que pontificou nos Descobrimentos do século XV. Seguiu-se-lhes Pimentel Barata, que analisou alguns dos regimentos do Livro mas não lhe dedicou nenhum texto específico, ao contrário do que fez com os outros dois tratados portugueses de arquitectura naval 22 . Numa aproximação ainda estritamente técnica, J. N. Rodrigues Branco publicou e estudou o regimento da caravela de onze rumos 23. Recentemente foi dado à estampa extenso 19 Eugênio Estanislau de Barros, As Galés Portuguesas do Século XVI, Lisboa, Imprensa da Armada, 1930, pp. 61-71 e 48-59, respectivamente. 20 I d e m , Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, L i s b o a , I m p r e n s a d a Armada, 1933. A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da 21 22 23 Universidade, 1934. Utilizamos a reedição em 2 vols. enriquecida com Comentário preliminar, notas e apêndices de João da Gama Pimentel Barata (Lisboa, Ministério da Marinha, 1978). Quirino da Fonseca destaca o Livro de Traças por conter desenhos, ao contrário do Livro Náutico, o que está certo, e do Livro de Fábrica das Naus, de que «apenas se conhece o manuscrito original, sem estampas», aqui com tão manifesto quão estranho erro (p. 267 de edição de 1978). V. João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, 2 vols., Lisboa, IN-CM, 1989. A caravela de onze rumos do Livro de Traças da [sic] Carpintaria, sep. de 6.as Jornadas Técnicas de Engenharia Naval. A Indústria Naval Portuguesa no Contexto Europeu - Passado, Presente e Perspectivas Futuras, s/l [Lisboa], s/d [1995]. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 165 trabalho sobre a nau da índia exclusivamente apoiado nos preceitos de Manuel Fernandes, como o autor expressamente indica 24. A questão é saber se essa aproximação estritamente técnica ao manuscrito pode ser feita sem uma reflexão sobre a sua origem e o seu autor; isto é, se os dados «falam» por si, ou se requerem a compreensão das motivações de quem escreveu o Livro, para os enquadrar e, sobretudo, valorar correctamente. A primeira perspectiva nem sequer pode ser considerada completamente válida para qualquer sorte de regimento técnico, embora a ela estejamos reduzidos - há que o reconhecer sem pejo - pela total ausência de informações que permitam compreender em que circunstâncias foram elaborados a maior parte dos documentos técnicos portugueses de arquitectura naval. O mesmo não se pode dizer dos tratados, até por serem obras de autor, esteja este pior ou melhor identificado. Por maioria de razão, não cremos que se possa olhar o Livro de Traças de Carpintaria sem considerar as muitas especificidades deste manuscrito, que levanta um mundo de perplexidades e deixa o leitor quase sem uma única resposta para qualquer delas. Foi isto que à evidência perceberam bem Hernâni Amaral Xavier25, Brad Loewen 26 e Carla Rahn Phillips 27 , autores de importantes estudos específicos sobre o Livro, aos quais se deve juntar Melba Costa 28 , que publicou uma apresentação geral da obra por ocasião da sua primeira edição, em facsímile de grande aparato por conta da Academia de Marinha, em 1989. Esta edição suscitou uma nota crítica de Richard Barker com vários comentários importantes, apesar da sua brevidade 29. Comecemos pelo princípio, já que uma apresentação geral da obra nos aponta de imediato algumas pistas relevantes. A seguir ao retrato de Manuel Fernandes surge o índice («Taboada da escretura deste liuro»), que pode ter sido inserido depois da redacção dos regimentos, já que estes começam no fólio 1 e o do índice não está numerado; além disso a esquadria é diferente. Até ao fólio 60 vêem os regimentos, concluindo com a palavra «Fim» e um desenho decorativo que preenche o espaço que de outra forma ficaria em branco neste último fólio. Letra regular e muito uniforme, escrita muito cuidada e espaçada, o objectivo foi seguramente o de assegurar ao leitor uma agradável e excelente legibilidade, pormenor que não parece de somenos assinalar. Esta parte do 24 25 26 27 28 29 Vasco Viegas, As Naus da índia, Macau, Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses em Macau, 1999. O fac-simile da obra, a que reporta a Parte IV, não contém senão cerca de um terço dos textos. Hernâni Amaral Xavier, op. cit. Brad Loewen, «Le mystérieux livre d'architecture navale de Manoel Fernandes, 1616. Un mise en contexte par des approches interdisciplinaires», comunicação apresentada ao Colloque étudiant do CELAT, Université Lavai, Québec, 1995. Carla Rahn Phillips, op. cit. Melba Costa, op. cit. Richard Barker, «[Review:] Livro de Traças de Carpintaria. By Manuel Fernandes», Mariners Mirror, vol. 76, 1990, pp. 394-396. 166 CAPtTULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA códice está completa e concluída, manifestamente o autor fê-la com cuidado e de princípio a fim - um outro pormenor relevante. Os regimentos constantes são os seguintes (identificando apenas os tipos de navios e apetrechos): 1 - Nau de quatro cobertas 2 - Guindaste ordinário para naus 3 - Batel grande da nau de quatro cobertas 4 - Galeão de 500 toneladas 5 - Galeões de 350 toneladas 6 - Galeão de 300 toneladas 7 - Galeão de 200 toneladas 8 - Pataxo de 100 toneladas 9 - Pataxo holandês de 100 toneladas 1 0 - Navio de guerra 1 1 - Lançamento das rodas dos navios de 300 toneladas para baixo 12 - Navio de 80 toneladas 13 - Galizabras de 50 toneladas 14 - Tirar da caverna mestra 15 - O mesmo, por diferente traça 16 - Navio de 80 toneladas (medidas) 17 - Navio de 150 toneladas 18 - Navio de 300 toneladas 19 - Navio de 400 toneladas 20 - Navio de 500 toneladas 21 - Nau da índia 22 - Caravela de 12 rumos 23 - Galizabra de 14 rumos 24 - Galé de 24 remos 25 - Esquife da galé 26 - Galeota de 18 bancos 27 - Galé real 28 - Galeota de 20 bancos 29 - Vazadura para botar naus 30 - Aparelhar nau para botar ao mar 31 - Grade ou grades para botar naus e galeões 32 - Bergantim real 33 - Falua 34 - Fragata 35 - Fragata de 8 goas 36 - Fragata de 10 goas 37 - Esquife de 7 goas 38 - Esquife de 9 goas Os NAVIOS DO MAR OCEANO 167 Trinta e oito regimentos no total, dos quais uma parte não diz respeito a navios mas a apetrechos, nomeadamente os que são necessário para lançar os navios ao mar, ou o do guindaste, detalhes em que o Livro é único. E é este justamente um dos aspectos que mais fere a atenção do leitor. Manuel Fernandes parece dar quase tanta importância ao aparato da construção naval como aos navios propriamente ditos, o que resulta na possibilidade de conhecer detalhes que de outra forma seriam ignorados, já que Lavanha não se lhes refere e Fernando Oliveira não completou a parte onde trataria de alguns dos aspectos versados por Fernandes. O simples folhear do Livro de Traças permite por outro lado perceber a importância algo inesperada que os navios a remos têm na economia geral desta parte da obra, não só pelo número de regimentos, mas sobretudo pelo seu tamanho; o regimento da galeota de 18 bancos é particularmente extenso, e vai a pormenores (relativos às peças de madeira e pregadura, por exemplo) que os outros não contemplam, ou não tratam com tanto cuidado; e também se pode apontar o regimento da galé real, pelos mesmos motivos. Muito embora o Livro trate por igual de pequenas embarcações, ou auxiliares, como o batel e o esquife, numa proporção também inusual, é irresistível a ideia de que o seu autor está particularmente familiarizado com os navios de remo, parecendo os regimentos dos de alto bordo ser genericamente menos detalhados. Ora, a construção de naus e galeões tem de ser atributo fundamental de qualquer mestre da Ribeira, mas é crível que semelhante competência não fosse tão fácil de encontrar no tocante às embarcações de baixo bordo, matéria que Fernandes revela dominar. É a própria análise do Livro de Traças, muito mais que a da eventual verosimilhança das situações em si, a sugerir fortemente a identificação deste autor com o documento que reporta a sua nomeação para a Ribeira de Goa, onde, aí sim, a mestria na construção de navios de remo podia ser critério fundamental para o apontamento am causa, dada a relevância que estas embarcações têm no quadro naval do Oriente; e por maioria de razão com o mestre das galés agraciado em 1650. Seguem-se oito fólios em branco, com esquadria igual à dos anteriores, e depois, no sexagésimo nono, aparece a «Taboada dos Modelos», com 87 entradas, que se desdobram no número de desenhos citado acima. Tudo é diferente a partir de agora. A esquadria consta de uma linha simples, a vermelho, na maior parte dos fólios, mas não em todos: logo no fólio 72 a linha é castanha muito clara e está notoriamente torta, como acontece com outros, embora não tão pronunciadamente. Alguns dos fólios estão em branco, embora ostentem a esquadria (por exemplo, o fl. 90), mas o fólio 101 está em branco e não tem esquadria alguma. Quase todos os desenhos são a cores e podem dar-se por concluídos. Quase todos, porque em certos casos a impressão que deixam é a de que ficaram a meio: assim acontece com o modelo do cadaste da nau de quatro cobertas (fl. 82), e dos que se lhe seguem relativos a esta embarcação, um das mais importantes de que trata o Livro e todavia desenhada a preto e branco, tanto no plano geral (no fl. 84, que é duplo), como nos particulares, em contraste visível com o modelo 168 CAPÍTULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARÍA do galeão de 500 toneladas (fls. 87v-88), belamente desenhado e decorado, e por isso sempre escolhido para as reproduções ou exibições públicas do códice. Há outros casos que mostram que o trabalho ficou a meio: o modelo do galeão do 350 toneladas está pintado, bem como os desenhos da caverna mestra e almogamas, e de uma das cobertas, enquanto a outra ficou apenas desenhada (fls. 97-98). Quanto aos desenhos do patacho de guerra, foram visivelmente acrescentados e debuxados por mão diferente: a numeração do fólio é repetida (trata-se do fl. 114, mas colocado antes do que está assim numerado na sequência normal do códice) e os desenhos são de tipo bem diferente de todos os outros, como se verifica sem dificuldade30. Imprecisões, desenhos por acabar, esquadrias diferentes por vezes de fólio para fólio: o contraste é muito visível entre toda a primeira parte, que trata dos modelos dos navios redondos, e a parte final. Pode admirar-se o cuidado, a precisão, a riqueza de detalhes, a beleza cromática dos modelos dos navios de remos. Até os petipés (escalas) são pintados a três cores, em vez de uma apenas, além de que as esquadrias são agora muito mais regulares. Não temos qualquer dúvida em afirmar que o Livro de Traças de Carpintaria é uma obra inacabada. A parte dos textos foi concluída, e depois deve ter sido desenhada a maior parte dos modelos de navios redondos, deixando alguns espaços para o que faltava, acrescentado mais tarde; mas antes de isso acontecer fizeram-se com todo o cuidado e rigor os modelos dos navios de remos e embarcações auxiliares. E restam as perguntas decisivas: quem o fez e porquê? Bem ao contrário do que se tem vindo a afirmar até agora, ou está implícito por omissão, nada indica que este seja um manuscrito autógrafo de Manuel Fernandes: não conhecemos a letra do autor para fazer comparações, nada no Livro autoriza a tirar semelhante conclusão. Tudo aponta até para a hipótese contrária. Tem sido notado que o Livro é de inteligibilidade difícil, senão mesmo impossível em certos passos, graças a erros e omissões cuja explicação não é fácil: o que é que quer dizer «Conta que será no latar e mevreear da segunda cuberta», como aparece escrito no regimento da nau da índia? 31. Por outro lado o que está escrito nem sempre corresponde ao que está desenhado 32 , além de ser amiúde contraditório: no regimento para galeões de 350 toneladas fica dito logo no início que estes navios teriam 14,5 rumos de esquadria a esquadria, e à frente a conta das madeiras é para navio de 14 rumos 33. 30 31 32 33 O caso dos patachos é deveras complicado: v. Richard Barker, op. cit., p. 395. Livro de Traças de Carpintaria, fl. 13v. Conforme no-lo mostrou Richard Barker em análise directa do manuscrito, há até situações em que o regimento escrito concorda com um desenho a lápis que foi apagado e pintado depois de (mal) corrigido. Livro de Traças de Carpintaria, fls. l i e 12v., r e s p e c t i v a m e n t e . Os NAVIOS DO M A R OCEANO 169 Indo mais além das constatações evidentes, Hernâni Amaral Xavier comparou exaustivamente os regimentos do Livro de Traças com os das Curiosidades de Gonçalo de Sousa 34, e chegou a um importante conjunto de conclusões que passamos a enunciar 35 : a) ao contrário das Coriosidades, o Livro «não segue um desenvolvimento lógico dos assuntos tratados», pois os regimentos seguem a sequência: navios específicos - aspectos gerais - navios específicos - generalidades - navios específicos; b) parte importante dos textos de um e outro são idênticos, e deverão ter sido copiados de uma matriz comum; c) há muitos erros de escrita, alguns dos quais só admissíveis a um ignorante da matéria, mas não a profissionais, como seria o caso de Manuel Fernandes. Não podendo de modo algum ser afiançada a autoria dos regimentos do Livro de Traças, há que reconhecer a plausibilidade da conclusão de Amaral Xavier quanto à cópia ter sido feita a partir de regimentos originais desconhecidos - tal como no códice que foi pertença de Gonçalo de Sousa -, e muitas vezes mal. Só que, ao contrário daquele autor 36, é de concluir que nem sequer foi Manuel Fernandes a fazê-lo: «mesmo que não tivesse sido Manuel Fernandes a escrever o 'Livro' e disso tivesse encarregue um copista, o autor do texto tê-lo-ia certamente revisto e emendado, não permitindo que ficasse em risco a sua credibilidade profissional devido aos erros expostos» 37. A observação é pertinente: dificilmente um profissional da arquitectura e construção navais, para mais com elevadas responsabilidades ao nível institucional, assinaria o Livro de Traças de Carpintaria tal como está. E revisão ou emendas não parece que tenham sido feitas. Convém não obstante reconhecer que a credibilidade profissional de Manuel Fernandes apenas estaria em causa se o livro fosse visto ou manuseado por conhecedores da matéria. E esta questão remete directamente para a outra que ficou em aberto: porquê e para quem foi escrito o Livro de Traças? É impossível responder de modo afirmativo, mas o próprio livro fornece pistas para ajudar a divisar o destino que em princípio lhe seria dado. A esta pergunta já tentaram responder alguns dos autores que estudaram o Livro. Para Melba Costa, trata-se de um registo para a posteridade: «Admitimos, antes, tratar-se de iniciativa própria, levada a cabo com os recursos disponí34 35 36 37 Coriosidades de Gonçallo de Sousa fidalgo da casa de sua magestade, seu capitão e gentil homem da boca. Comendador da ordem de Christo, BGUC - Reservados, ms. 3074. Hernâni Amaral Xavier, op. cit., p. 6. «o 'Livro de Traças...' é forçosamente um manuscrito original» (Hernâni Amaral Xavier, op. cit., p.5). Idem, ibidem, p. 6. 170 CAPITULO IV: MANUEL FERNANDES E O LIVRO DE TRAÇAS DE CARPINTARIA veis... Escassamente manuseada, não parece cartapácio para uso dos mestres da Ribeira; antes, pelo modo da sua organização, pela beleza que se lhe imprimiu, se nos afigura o intuito da consagração para o futuro de uma prática a todos os títulos notável, na história marítima de Portugal» 38. Uma espécie de vade mecum de carpinteiro da Ribeira não era com certeza, dada a dimensão e aparato, nem tão pouco podia ser livro de referência, como que um padrão por onde os mestres se regessem, à imagem da carta padrão que norteava o trabalho dos cartógrafos. Não só não há prova da existência de tal padrão, como sabemos quanto os mestres eram ciosos das suas próprias soluções, como, enfim, com tal quantidade de erros não seria aceite por ninguém. Mas que o autor quisesse fazer obra para a posteridade não é por igual solução satisfatória. Quanto a Brad Loewen e Carla Phillips, procuraram a resposta no enquadramento profissional e político-institucional do autor e da época. Brad Loewen focou um aspecto muito importante 39 : pode considerarse que o retrato que abre a obra traduz a procura de afirmação profissional e social do autor, fazendo lembrar quer a figura dos Fragments of Ancient English Shipwrightry 40, onde Mathew Baker se faz representar com um discípulo ou coadjuvante, ou ainda o retrato de um construtor naval e sua mulher assinado por Rembrandt van Rijn em 1633 41. Em todos os casos as poses, os trajes e a ostentação dos instrumentos da profissão indiciam a afirmação do valor dos personagens retratados junto dos respectivos círculos profissionais; e quanto a Baker e Fernandes, porque não admitir que se busca também a certificação do que está escrito pela demonstração (indirecta) do profissionalismo dos autores? 42 Por outro lado, Brad Loewen regista similitudes entre o vocabulário técnico do Livro e o das Ordenanzas de 1618, resultado dos esforços de uma junta sediada em Sevilha que procurava elaborar uma regulamentação geral da construção dos navios de alto bordo, por ordem de Filipe III. Sabendo-se que depois das versões preliminares de 1607 e 1613 se procurou a opinião dos mestres da Ribeira de Lisboa, o Livro de Traças poderia ser uma resposta a tal solicitação, aproveitando Manuel Fernandes a ocasião para fazer prova da sua valia profissional. A tese é sedutora mas não convence precisamente por causa deste último aspecto: o Livro tem demasiados passos incompreensíveis para poder ser tomado como obra de referência por uma junta especializada, onde estariam os homens que mais fácil e rapidamente dariam conta da sua debilidade. 38 39 40 41 42 M e l b a Costa, op. cit., p . 122. B r a d Loewen, op. cit., p p . 2-3. Universidade de Cambridge - Magdalene College, Bibliotheca Pepysiana (Pepysian Library), Ms. 2820: Fragments of Ancient English Shipwrightry. No quadro, que se encontra no Buckingham Palace, figuram o construtor naval Jan Rijksen e a sua mulher Griet Jans. É um dos que ilustram o capítulo «Body Language» no livro de Simon Shama Rembrandt's Eyes, Londres, Allen Lane/The Penguin Press, 1999. O livro de Baker, talvez iniciado com outro propósito, transformou-se em não muito mais que um caderno de notas, ornado de desenhos detalhados e com grande riqueza cromática. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 171 Em alternativa, podemos admitir que Manuel Fernandes não tenha acabado a tempo o que seria a encomenda do que deveria ser o registo da prática portuguesa à época, e tenha sido instado a enviá-la antes de a dar por concluída. Explicar-se-ia assim que o livro ficasse incompleto, mas não tão bem que, depois de ter sido mandado para Sevilha, viesse aparecer arquivado em Lisboa. Na verdade esta alternativa seria mais plausível se acaso a obra estivesse actualmente à guarda de um arquivo espanhol. Ou, mais rebuscadamente ainda, admita-se que a encomenda foi efectivamente feita, mas não concluída a tempo, e Manuel Fernandes nem teria enviado o Livro nem o teria acabado, por já não ter destinatário. Carla Phillips sugere outra ligação, desta feita com os interesses manifestados por Filipe III aquando da sua vinda a Portugal em 1619, uma vez que o monarca procurou informar-se sobre matérias navais, porventura buscando opiniões sobre a polémica que agitava os meios profissionais havia décadas 43 - os navios de longo curso deviam ser de médio ou grande porte, questão que em Portugal se manifestou particularmente na disputa sobre se deviam ter três ou quatro cobertas. Mas não é fácil estabelecer esta conexão, tanto mais que o Livro de Traças é três anos anterior à visita régia. Obra de aparato, acrescentamos por nossa conta. Sem dúvida alguma. Não foi muitas vezes manuseada, e, por esse e outros motivos acima referidos, vê-se que não foi livro de referência, antes de ostentação; é verosímil pensar que esteve guardada em bom recato durante muito tempo, como no-lo diz o estado de conservação e o facto de ter escapado aos inquéritos bibliográficos de Barbosa Machado e Inocêncio Francisco da Silva. Não se divisa outra alternativa que não a de ter sido preparada por encomenda de algum alto dignatário, por exemplo o representante de uma grande casa senhorial, que quisesse ter na sua biblioteca testemunho do que era então o state-of-the-art da construção naval portuguesa, e não faltam casos exemplificativos deste tipo de curiosidade pelas matérias navais da época; não seria para um destinatário especializado, que reconheceria as deficiências do manuscrito, mas porventura interessar-lhe-ia mais o lado monumental do mesmo. Por venda, oferta ou integração o Livro de Traças acabou na Biblioteca Real, onde não parece ter sido também objecto de grande curiosidade, pelo menos que levasse a manuseio regular. Fica por explicar que não tenha sido acabado (talvez por atraso em relação ao prazo da encomenda?), e ainda que não figure qualquer dedicatória ou introdução (porventura objecto de mutilação, antes ou durante a encadernação de 1898?). Enfim, tudo são explicações precárias, excepto num pormenor deveras significativo em relação ao qual há concordância: o Livro de Traças de Carpintaria não se destinava aos oficiais do ofício 44. Quanto ao resto, fica tudo dito numa frase de Brad Loewen: «Le livre de Fernandes est à Ia fois de plus complet et le plus hermétique de tous les traités» 45. 43 44 45 Carla Rahn Phillips, op. cit., pp. 9-11. Richard Barker aventou até a hipótese de se poder tratar de uma oferta familiar, mas, tal como nós, prefere a da encomenda de um alto dignatário (op. cit., p. 386). Brad Loewen, op. cit., p. 1. CAPÍTULO V AS INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO Para além dos tratados e regimentos gerais ou especiais, que constituem o núcleo essencial do corpus da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval, existem outras fontes de informação importantes, embora nem sempre de carácter eminentemente técnico. O Apêndice B, no qual se reproduzem documentos da maior relevância para o estudo dos navios portugueses neste período e inéditos até agora, ilustra-o bem. No conjunto, não se torna tarefa fácil a definição de um critério de análise deste núcleo documental. Tratados e regimentos constituem grupos uniformes, orçamentos ou róis de material nem tanto, pois uma vez ou outra não é claro o momento em que começa um e acaba o outro, isto nem sequer considerando os casos (em número apreciável) em que um orçamento é simultaneamente classificável como rol de material. A consideração de todas as possibilidade de agrupamento destes documentos de natureza díspar é possível, mas com a consequência de se multiplicarem os items e a decorrente perda de clareza na apreciação dos testemunhos disponíveis. Ao propormos uma classificação em dois grandes grupos, tratados e regimentos (embora subdividindo este último) temos em vista não só a simplificação que resulta da natureza dos documentos em causa, como ainda a definição de uma fronteira que separe claramente o que são os documentos essenciais para os estudos de arqueologia naval, os que devem fundamentar em primeiro lugar as conclusões passíveis de serem tiradas, daqueles que, constituindo auxiliares preciosos sobre todos os pontos de vista, são sempre e em última análise fontes informativas acessórias, dada a sua importância relativa em face do núcleo principal. Não ignorando uns e outros, há que não os confundir. Semelhante procedimento tem a vantagem de não repetir o recurso usual a fontes documentais diversas para a obtenção de um resultado pretendido, sem consideração prévia de que as mais valias na abordagem desses textos não são similares, independentemente da sua natureza e interesses específicos. Por outro lado, existe uma tendência acentuada para abordar estes documentos em função do seu suporte específico, reconhecendo a este último 174 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO uma congruência que amiúde não possui; e o facto de isso ser observável ao primeiro relance não obstaculizou que se tenha vindo a olhar para os códices como conjuntos coerentes de documentos relevantes, quando, se o são por vezes, não deixam também de se nos apresentar como meros veículos de tramitação de informações não existentes hoje por outra via. Importa porém reconhecer que a análise dos códices, por muito limitada que se mostre, fornece sempre mais pistas que a do documento avulso por si só. É ao que se procede de seguida, aproveitando a oportunidade de inserir a documentação técnica de arquitectura naval nos contextos em que surge, por norma mais latos tematicamente. Neste capítulo pretende-se dar destaque às instruções dos mestres do ofício, quer dizer, aos documentos que provêem do meio profissional, muito embora o facto de se tratarem quase sempre de cópias não permita amiúde averiguar a identidade, a oportunidade, e até a data dos documentos. A par destas existem outras instruções, regras ou regimentos que resultam de interesses particulares não profissionais. O facto de alguns homens, com experiência de navegação, terem procurado reunir informações sobre as matérias navais, é indício por si só de que não se davam por alheados do meio e, embora não o integrando, podiam ter nele uma palavra a dizer: o caso de D. António de Ataíde, que foi chamado a opinar sobre diversos assuntos, um deles dizendo estritamente respeito à arquitectura dos navios (o número de cobertas das naus da índia), é um excelente exemplo do amador cuja opinião valia ao lado da dos homens do ofício. Amador no sentido em que, não obstante a sua grande competência em diversos domínios, nunca construiu ou superintendeu na construção de um navio. A lógica de organização de parte destes códices torna por outro lado obrigatório que nos detenhamos também nos conteúdos que extravasam o universo do navio em sentido estrito, embora ligando-se com ele: não se evitarão pois comentários a documentos que digam respeito à marinharia ou à artilharia naval, por exemplo. Instruções dos mestres do ofício, em primeiro lugar, a par de opiniões e informações expressas e reunidas por gente abalizada para escrever ou compilar com critério os escritos de outros sobre a matéria. 1. LIVRO NÁUTICO O códice 2257 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa contém a mais conhecida das colecções de documentação avulsa relativas à história dos navios portugueses, da qual já Lopes de Mendonça, na obra inaugural da matéria, se serviu abundantemente ! . Trata-se de uma miscelânea intitulada Henrique Lopes de Mendonça, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1971 (citamos a partir desta última). Lopes de Mendonça reproduziu pela primeira vez os seguintes documentos deste códice (títulos abreviados seguidos pela remissão para o nosso Apêndice A, quando aplicável): Medidas para Os NAVIOS DO MAR OCEANO 175 (no século XIX) Livro Náutico ou Meio pratico da Construção de Navios, e Galés Antigas, provavelmente pelo seu anterior proprietário 2 . Quanto ao resto é em tudo uma miscelânea documental típica, compilada não se sabe por quem, nem quando, como é usual nestas circunstâncias 3 . O seu interesse particular advém da quantidade de manuscritos respeitantes à matéria naval que nela foram reunidos, muitos dos quais com informações que não são passíveis de ser obtidas de outra forma. Note-se que não existe uniformidade temática, pois encontram-se alguns documentos de outro tipo (poucos embora). O índice completo é demasiado extenso para poder ser reproduzido aqui com vantagem, mas a listagem dos documentos relativos ao assunto em presença é suficientemente elucidativa 4 : - Medidas para fazer uma nau de 600 toneladas e os paus que há-de levar de sobro e pinho - Medidas para fazer um galeão de 500 tonéis e os paus que há-de levar de sobre e pinho - Medidas para fazer uma caravela de 150 até 180 tonéis e os paus que leva de sobro e pinho - Medidas das caravelas antigas meãs - Um bergantim de 14 bancos e 28 goas de comprido - Memória de toda a madeira que é necessária para uma galé, e de todas as mais coisas para ela - Memória do que custa uma galé posta à vela com toda a chusma - Memória para fazer uma galé real de 29 bancos - Memória para se fazer uam galeota de 18 bancos - Galeão S. Paulo - Galeão S. Pantaleão - Galeão S. Pedro - Recompilação das munições necessárias a estes navios - Orçamento do que podem valer os soldos e mantimentos de 4603 pessoas que levarão os 15 navios abaixo declarados a 3 meses de soldo de antemão e 6 meses de mantimento fazer uma nau de 600 toneladas, pp. 83-95 (doe. A. 11); Medidas para fazer um galeão de 500 toneladas, pp. 96-105 (doe. A. 15); Medidas para fazer uma caravela de 150 até 180 tonéis, pp. 106-111 (doe. A.26); Medidas das caravelas antigas meãs, pp. 112-113 (doe. A.29); Um bergantim de 14 bancos, p. 114; Memória de toda a madeira que é necessário para uma galé, pp. 115-123. Quatro regimentos e dois orçamentos de construção que exemplificam bem o tipo de documentos contidos no códice. Segundo informação que nos foi prestada pelo Dr. Francisco José Correia, ao tempo em que trabalhava na Secção de Reservados da Biblioteca Nacional, este foi um dos códices oferecidos à instituição por António Joaquim Moreira. O facto de o códice ter sido 'partido ao meio', como se dirá à frente, faz-nos pensar que já chegou assim às mãos de Joaquim Moreira. Títulos abreviados e modenizados; suprimem-se os subtítulos para não alongar demasiadamente esta listagem. 176 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO - Recompilação dos mantimentos que serão necessários conforme ao orçamento atrás - Orçamento do custo que pode fazer uma armada de doze velas do porte adiante declarado - Custo de um galeão grande de 500 até 600 tonéis para servir de capitânia a esta armadas - Custo de outro galeão do dito porte - Galeão de 300 até 400 tonéis - Custo de um galeão de 300 tonéis - Uma caravela de 160 toneladas feita de novo e aparelhada - Um caravelão para recados - Soma de todo o custo da armada com cascos e artilharia - Orçamento do que poderá custar uma galé nova de 24 bancos aparelhada armada e apercebida de todo o necessário - Orçamento para a construção, manutenção e funcionamento de uma armada de 8 velas - Orçamento da mesma data para a construção, manutenção e funcionamento de uma armada de 6 galés - Valor de uma zavra ou patacho que se remem - Comprimento e largura e alturas que hão-de ter os galeões de 500 toneladas que se hão-de fazer no Porto - Valor de um galeão de 300 a 350 t. - Valor da artilharia, monições, armas e pólvora - Soldo de 100 pessoas de navegação - Valor dos mantimentos para 300 pessoas para seis meses - Valor do custo de manutenção do galeão inventado por seis meses, incluindo o soldo dos 8 guardas - Valor de outro galeão do mesmo porte para servir de soto-capitania - Valor de um galeão de 200 a 220 t. - Valor da artilharia, munições, armas e pólvora - Valor dos soldos de 80 pessoas de navegação para este galeão - Valor dos soldos de 100 soldados para este galeão - Valor dos mantimentos para as 180 pessoas deste galeão - Valor de três galeões do mesmo porte - Valor do mantimento de um homem embarcado por um mês e por dia Um simples relance por esta listagem faz ressaltar de imediato a extrema importância das informações nela contidas: todos os documentos dizem respeito aos navios dos finais do século XVI - para além de três, a fls. 205, 208 e 227 -, seu armamento, pessoal e aparelhagem. Os vários orçamentos de construção e reparação são prolixos nos detalhes de materiais, peças e custos. Os documentos situam-se cronologicamente entre a redacção dos tratados de Fernando Oliveira Os NAVIOS DO MAR OCEANO 177 e João Baptista Lavanha, datando dos finais da década de 1580 e dos inícios da seguinte, portanto talvez uns dez anos posteriores ao Livro de Oliveira e outros tantos anteriores ao de Lavanha. Sabendo-se da persistência da utilização dos materiais na construção naval, muito mais do que das respectivas técnicas, a comparação entre os preceitos desses tratados e os orçamentos do Livro revela melhor que qualquer outra fonte a medida em que tais ditames correspondem à experiência prática do estaleiro. Os documentos não nos afiançam que a prática fosse réplica do que ali fica estipulado: revelam-nos antes o que devia ser, não sendo forçoso que isso correspondesse ao que era de facto, muito embora tenhamos que situar essa presumível diferença em planos diferentes. Antes de tudo há que distinguir dois níveis de conhecimento distintos, tão importantes um como o outro. Pelos documentos do Livro Náutico é possível por exemplo saber o custo dos navios prontos e aparelhados para serem lançados ao mar; e em seguida decompor esse custo final em parcelas, notadamente as relativas à construção do casco, aparelho, artilharia e pessoal, bem como acompanhar a evolução da estrutura dos custos de manutenção, quer o navio esteja em acção no mar ou não. É um manancial de informações que permite apurar o ponto até ao qual se pode dizer que a mais complexa das máquinas do Renascimento, como se escreve correntemente, foi ou não, também, a mais cara; enfim, é um mundo de possibilidades que se abre para os historiadores da economia tabelarem comparativamente os preços à época, averiguando por consequência do peso que a indústria da armação pode representar, esta que é uma das três artes mecânicas tradicionais (a par da mineração e da metalurgia) com maior importância económica 5. Mas sob este ponto de vista o aproveitamento destes documentos permanece em boa medida por realizar 6. Como se dizia, fica-se com um quadro do que devia ser; o que sucedia na realidade é outro assunto diferente, sendo porém claro que é obrigatório partir da primeira plataforma para entender cabalmente o que se passava na segunda. No caso dos materiais, por exemplo, a arqueologia subaquática tem revelado algumas surpresas, como a constatação do uso intensivo do carvalho para a construção do casco do navio, bem ao contrário dos preceitos de Fernando Oliveira, que estipulou a desadequação desta madeira para a construção naval 7 , ao mesmo tempo que verificou a correspondência entre os achados e o que o autor em presença determinou para o forro e tabuados do navio, por exemplo 8. Paolo Rossi, Os Filósofos e as Máquinas 1400-1700, S. Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 44. Excepção feita a Maria Leonor Freire Costa, sobretudo no seu estudo intitulado Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimónia, 1997. «Nestas nossas terras de portugal, a madeyra do carualho, quasi geeralmente, he seca, e dura, noenta, e gretada: e não he boa para tauoado, em especial de nauios» (Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, BNL - Reservados, cod. 3702, p. 17). V. Francisco Alves & Paulo Rodrigues & Filipe Castro, «Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimónia, 2000, pp. 227-256. 178 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO Nesta matéria é seguro que o que é aconselhado capitaliza uma longa experiência anterior, devidamente comprovada, que não se altera de um momento para o outro; a utilização de madeiras diferentes decorrerá da maior facilidade da sua obtenção no mercado, quer pela abundância quer pelos preços praticados em cada momento. O caso de Inglaterra é característico, com o emprego intensivo do carvalho para as mais diversas partes do navio 9. Em relação a outras componentes do navio já não se poderá dizer o mesmo, como sucede no caso da artilharia. Aqui a situação é completamente diferente. Os navios podem ir armados ou não, o que sucederia muito raramente neste segundo caso segundo supomos e apenas isso, porque não há processo de averiguar do armamento embarcado em todos os navios que foram para a índia no século XVI, por exemplo; mas será de admitir que assim pudesse ser para outras rotas? Se o que sabemos para a Rota do Cabo é insuficiente, para as carreiras do Brasil ou das ilhas é-o ainda muito mais. Quem e porquê se encarrega do armamento? As variáveis podem ser muitas, como a disponibilidade financeira, interesse ou confiança do armador, a inserção em frotas comboiadas por galeões ou caravelas redondas em número significativo, a previsão dos riscos a correr e tanto mais: é evidente que na óptica de um armador privado, as viagens para o Oriente nos inícios do século XVII comportariam uma margem de risco nada desprezível, mas ocorre perguntar se os investidores que apostaram grossos cabedais nos navios privados que integraram a armada de Pedro Álvares Cabral, como D. Álvaro de Bragança, Bartolomeu Marchioni ou Girolamo Sernigi, entre outros 10 , sentiam grandes receios quanto à segurança das suas embarcações. É certo que existiu legislação a propósito, em particular com a operosidade regulamentadora da Carreira da índia verificada no reinado de D. Sebastião. É certo também que a legislação relativa ao armamento das naus é reforçada (como tanta outra) no tempo dos Filipes. Mas quem garante a observância estrita do espírito e da letra da lei? Quais são os mecanismos reguladores da sua aplicação e as sanções - se as há - para os prevaricadores? Em que medida a lei tem ou não, neste caso, um carácter mais indicativo que taxativo do que devia ser seguido pelos armadores? Tudo perguntas para as quais não há respostas fáceis. Mas não é difícil de suspeitar que a redundância legislativa representa a plena consciência de que a realidade das coisas não se compaginava com a letra dos diplomas. Estes documentos estipulam e orçamentam obras a realizar, armadas a aparelhar, navios a construir. Permitem assim obter uma tipificação dos navios, das tripulações e dos armamentos, em função dos géneros de embarcação e respectivas classes de tonelagem, ao invés de as procurar inferir de apontamentos esparsos de origens diferenciadas, que traduzem realidades distintas. 9 10 Coisa que Fernando Oliveira não ignorava; e considerava mesmo adequado que assim se fizesse nos «paises frios» (op. cit., p. 17). A. A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria, Lisboa, Edições Cosmos, 1993, p. 99. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 179 Cronologicamente falando é a primeira vez que se torna possível apurar tal conjunto de dados na História Naval e Marítima portuguesa, e isso só volta a suceder com um outro núcleo mais tardio, que carece de aproveitamento adequado para este fim: o das especificações dos navios que integraram as armadas de socorro enviadas ao Brasil em 1624 e 1625 - com informação mais detalhada ainda -, que constam da colecção de códices que outrora pertenceu a D. António de Ataíde. Para resumir, podemos constatar que os documentos do Livro Náutico dizem respeito a navios de grande porte e são essenciais para o estudo das grandes naus e galeões dos finais do século XVI n , principalmente destinadas à Carreira da índia; a embarcações do mesmo tipo mas de porte médio, agrupadas neste caso em armadas típicas das missões de escolta e guarda costas; e tratam ainda dos navios de segunda linha, como as caravelas redondas ou de armada e as zavras (note-se desde já a similitude tipológica que a lista de «Soldos da Carauela ou Zaura» 12 indicia). Por fim, há também informações sobre navios de remos, indispensáveis no quadro naval do Oriente, como a galé e o bergantim. Mas a parte mais interessante, pela escassez de dados semelhantes em outras fontes, é a relativa às caravelas, deparando-se-nos um tipo pouco frequente, o caravelão (mais conhecido na costa do Brasil, como mostram os estudos de Carlos Francisco Moura 13 ), e um outro de que aparece aqui a única referência conhecida, uma tipologia estranha e não conforme a qualquer outra que conheçamos - a enigmática caravela antiga meã, porventura uma embarcação de tipo híbrido que não teve grande curso. Os documentos dividem-se em regimentos de arquitectura naval (todos reproduzidos no Apêndice A), contas de medidas para a construção de algumas embarcações, róis de materiais necessários para o mesmo fim, acrescentando detalhes fundamentais aos regimentos, surgindo referências a madeiras para peças várias, enxárceas, mastros, pregaduras, ferramentas e velas, para citar as mais importantes. Os numerosos orçamentos estipulam o preço unitário das peças, o custo total das reparações de rotina destinadas aos trabalhos normais de conservação, a um ritmo anual, os preços das peças e respectivas munições, e os encargos decorrentes dos soldos e mantimentos devidos às tripulações. Não se conhecendo em Portugal orçamentos de reparação como os estudados por 1 • Para o estudo deste último tipo de navios v. Augusto António Alves Salgado, Os Navios Portugueses na «Felicíssima Armada», Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, s/d. 12 Livro náutico, ou meio pratico de construcção de navios, e galés antigas, BNL - Reservados, cod. 2257, fl. 195v. 13 Carlos Francisco Moura, «Os caravelões brasileiros», Navigator. Subsídios para a História Marítima do Brasil, n.° 9, 1974, pp. 33-67; idem, «A navegação à vela no litoral brasileiro. Apêndice II: Um Caso Típico Brasileiro - Os Caravelões», in História Naval Brasileira, Volume Primeiro, Tomo I, direcção de Max Justo Guedes, Rio de Janeiro, Ministério da Marinha, 1975, pp. 103115; e «Portuguese Caravelões», in Reinders Reinder and Paul Kees, eds., Carvel Construction Technique, Oxford, Oxbow Books, 1991, 190-194. 180 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO Manuel Lobo Cabrera para as Canárias 14, estes documentos acabam por complementar as informações casuísticas com os cálculos relativos à organização, reparação e até construção de armadas. 2. MEMORIAL DE VÁRIAS COUSAS IMPORTANTES O Livro Náutico é conhecido desde os finais do século XIX, como se disse, pela extensa e adequada utilização que Henrique Lopes de Mendonça fez de parte dos materiais que aí se encontram. É certo que podia ter ido mais longe, vendo as coisas retroprojectivamente, mas seria injusto pedir mais a quem deu corpo a uma especialidade então quase completamente nova no quadro da História Naval e Marítima portuguesa. Não deixa apesar de tudo de ser curioso que este ilustre investigador não se refira nos seus trabalhos a um outro códice que incorporou os fundos da Biblioteca Nacional na mesma altura e com idêntica origem: o Memorial de Várias Cousas Importantes 15, cujo título é também moderno. Tem continuado a ser assim, apesar da importância da documentação que aí está inserida. Nem Pimentel Barata, a quem se deve a revelação de tantos documentos imprescindíveis, o utilizou alguma vez, pois não se encontra uma única citação deste códice nos seus estudos de arqueologia naval; e todavia conhecia-o, conforme se pode constatar por um trabalho escrito por outros autores 16. O Memorial é em tudo similar ao Livro Náutico; na verdade estamos na presença de um único conjunto de documentos. Colado no verso da capa do códice encontra-se um verbete dactilografado que remete o leitor para o Livro Náutico, «que contém a primeira parte deste códice»; não é exactamente assim porque não se se depara com duas metades sequenciais da mesma obra, ou recolha documental, como será mais adequado chamar-lhe, mas a sua análise revela que originalmente se tratava de um códice apenas. Quando e em que circunstâncias é que foram separados não se sabe, nem neles há elementos que o permitam ajuizar 17 ; e talvez por isso este facto tenha passado geralmente desapercebido. Ao contrário do Livro, a diversidade de matérias é neste caso bem patente, e uma boa parte do conjunto diz respeito a listagens de rendimentos da Coroa 14 15 16 17 Manuel Lobo Cabrera, «Construcciones y reapaciones navales en Canárias en los siglos XVI y XVII», in Anuário de Estudos Atlânticos, n.° 31, Madrid-Las Palmas, 1985, pp. 345-374. BNL - Reservados, cod. 637. Carlos Silveira e Maria Cristina Silveira, «A alimentação na 'Invencível Armada'», Revista de História, vol. XXXVI, n.°74, S. Paulo, 1968, pp. 301-312: «A pesquisa bibliográfica que tivemos de fazer para completar outro trabalho, levou-nos a consultar, por indicação do Dr. Pimentel Barata, o manuscrito Memorial de várias cousas importantes» (p. 301). Ambos os índices estão incompletos, mas foram escritos em letra da época. É lícito aventar a hipótese de que o desmembramento tenha ocorrido não muito tempo depois da organização do códice primitivo. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 181 e descriminação das suas proveniências, ou similares. O códice inicia-se com o «Titulo dos Arcebispados e Bispados da Coroa de Castella e Aragão e os rendimentos delles» (fls. 2 a 2v), seguindo-se a descriminação dos «Senhores de titulo em Castela e os rendimentos de suas casas» (fls. 2v a 9v), mais à frente a «Despesa do estado do Brasil a que a fazenda de sua Magestade tem obrigação» (fls. 13 a 14v), o «Rendimento da casa da índia, Mina, Brasil, Ilha de Santo Thome, Cabo verde, Angola», relativo a 1588 (fls. 15v a 17), a «Folha de todas as Rendas desta Coroa de Portugal que S. Magestade mandou fazer este anno de 1588» (fls. 17v a 25), ainda uma «Folha da despesa do Reino...» para o mesmo ano de 1588 (fls. 26 a 34v), enfim, um ror mais de materiais do maior interesse para a História económica e financeira do período, rematando com uma «Informação do Reino d'Angola» (a partir do fl. 142). Do conjunto sobressaem elementos importantes para o estudo da construção e manutenção de um número diversificado de embarcações, e para o apresto de frotas, tal como no Livro Náutico; isto além de dados indispensáveis para o conhecimento da vida a bordo, no tocante aos mantimentos e abastecimentos das tripulações, com os respectivos custos, os quais têm sido objecto de estudo, ao contrário do que acontece com a generalidade do códice 18. Entre os orçamentos e as folhas de caixa encontra-se ainda informação sobre questões técnicas de navegação. Mais uma vez se justifica o detalhe de parte do conteúdo do códice. Vários documentos estão relacionados com a Armada de 1588, quer reportando projectos de preparativos, quer dando conta das medidas subsequentes aos acontecimentos, que obrigaram à adopção de iniciativas conducentes à reparação dos estragos causados pelo infortúnio da campanha e à substituição dos recursos perdidos. O particular interesse deste conjunto de documentos, como já o afirmámos atrás, reside precisamente neste ponto: o de permitir a avaliação do que era pretendido em termos concretos, muito mais do que a constatação do que foi feito, pois que a análise daqueles dados viabiliza a percepção do que ao tempo se entendia deverem ser de facto as embarcações - as tipologias morfológicas, os armamentos, os aprovisionamentos, as tripulações, enfim as estruturas de custos. O Memorial contém uma das muitas cópias manuscritas dos róis da Armada que circularam na época, tanto quanto se pode avaliar pela frequência com que deparamos com elas; mais à frente veremos que o mesmo se passa com os códices outrora pertença de D. António de Ataíde. Neste caso, os dados con18 V. Henrique Quirino da Fonseca, «Antigos soldos e mantimentos de bordo», Boletim da Academia de Ciências de Lisboa, Nova Série, Vol. III, Coimbra, 1931, pp. 663-716. Modernamente Artur Teodoro de Matos estudou vários destes documentos: «Subsídios para a história da carreira da índia. Documentos da nau S. Pantaleáo (1592)», Boletim do Arquivo Histórico Militar, 45.° vol., 1975, pp. 7-152; republicado em Na Rota da índia. Estudos de História da Expansão Portuguesa, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1994, pp. 111-235; e Rui Godinho reutilizou esta informação: «Soldos e formas de pagamento na Carreira da índia (séculos XVI e XVII)», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 505-526. 182 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO tidos na «Relacion de los galeones, naues, patachos, e zabras, galeazas, galeras e otros nauios que van on Ia felicíssima armada» 19 correspondem à informação conhecida, nomeadamente por via da publicação do opúsculo de Pedro de Paz Salas em que se deu conta pormenorizada do embarque 20. Um outro documento dá conta dos projectos de reunião da Armada e respectivos custos: trata-se de uma extensa relação do que seria preciso para a empresa do ataque a Inglaterra, com descriminação dos navios à vela e remos, tripulantes, terços de infantaria embarcados, mantimentos, armamento e custos de provisão para oito meses, com o título «Relacion de Ias nãos, galeras, y galeazas, y otros nauios, Gente de mar y guerra, Infanteria, caualleria, gastadores, officiales y personas particulares, artilleria, armas y municiones y los demas pertrechos que se entienden ser menester para en caso que se haya de hazer Ia jornada de Inglaterra y los bastimentos que seran necessários prouer para ella y los precios a que podran costar y Ias partes donde Io uno y Io otro se ade prouer y Io que todo ello uerna a montar haziendo quenta que Ia armada y exercito que se a de lleuar para Ia dicha Empresa a de yr prouido pagado y bastecido por ocho meses» (fls. 80-104). Ainda relacionado com a necessidade de recuperar efectivos, está o orçamento para construir, equipar e aparelhar seis galeões com mastros, velas, sobressalentes, artilharia e munições, feito no armazém de Lisboa 21. O mais importante de todos os documentos contidos neste códice é porém a «Folha dos Nauios que Sua Magestade tem nesta Coroa de Portugall, e o estado em que estão, e orçamento do que poderão custar até serem aparelhados e postos à vela com sua artelharia e sem [sic] soldo e mantimentos - que são quinze nauios», que por via da separação do códice original começa no Memorial e termina no Livro Náutico zz. É a lista mais completa de armadas dos finais do século XVI, e um dos mais extensos reportórios de toda a centúria, a valorizar devidamente num estudo sobre as relações de armadas: não dispomos ainda de uma apreciação geral destas relações, que em diferentes locais e épocas apresentam o levantamento dos recursos disponíveis, permitindo por via de regra analisar o tipo de navios existentes e a sua condição. Esta é normalmente referida nas listagens, por quase sempre terem em mira a apreciação dos recursos disponíveis e utilizáveis, ou seja, da operacionalidade dos meios à ordem da 19 O título completo do documento é «Relacion de los galeones, naues, patachos, e zabras, galeazas, galeras e otros nauios que uan on Ia felicíssima armada que su Magestad a mandado juntar en el rio desta ciudad de quês capitan general el duque de medina sidonia e el porte dello, e Ia gente de guerra, e mareante, artilleria e peloteria, municiones, bastimentos, e otros pertreezos que leuan e el tempo para que los dichos bastimentos podran seruir que todo ello es en esta manera», e encontra-se a fls. 54-74v do Memorial. 20 P e d r o d e P a z Salas, La Felicíssima Armada Qve EIRey Don Felipe Nvestro Senor mando juntar en el puerto de Ia Ciudad de Lisboa en el Reyno de Portugal. El Ano d e mi l y q u i n i e n t o s y o h c e n t a y o c h o . Hecha por... Documento sem título nos fls. 39 a 42v. Memorial de Várias Cousas Importantes, fls. 43-53v, e Livro Náutico, fls. 43-48: v. o documento C. 1 no vol. II. 21 22 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 183 Coroa, amiúde a solicitação directa desta. Um estudo evolutivo e comparativo poderia ser a chave da ponderação dos quantitativos navais portugueses. Algumas destas relações são-nos conhecidas, com destaque para a de 1537, estudada por Frazão de Vasconcelos 23, com apontamentos de grande interesse quanto à intermutabilidade dos tipos de embarcações, e uma outra, talvez do ano imediato, muito mais completa porque arrola as existências de navios que andam em armadas a par dos estanceados em vários locais, que vem de ser publicada por José Virgílio Pissarra 24. Quanto à «Folha dos Navios...», estipula com minucioso detalhe todas as reparações e armamento de que carecem os navios que nela constam, e que são, pela ordem por que ocorrem, os galeões «S. Luís» e «Santo António», de 480 toneladas cada; as naus «S. João» e «Nossa Senhora do Rosário» ambas com 500 toneladas; o galeão «S. Lucas» de 450; as caravelas «Santa Catarina» e «Santo Espírito», de 160 e 180 toneladas, respectivamente; as zavras «Júlia» e «Augusta», de 100 cada; e mais seis galeões: o «S. Filipe» de 750 ou mais toneladas, que estava em construção, e cinco outros de 520 toneladas cada. Um destes estava em processo de fabrico na Ribeira, sob a responsabilidade de Manuel Lopes, o mesmo construtor do «S. Filipe», e outro estava a ser construído por Sebastião Temudo: muito provavelmente o mestre construtor que assinou com João Baptista Lavanha o regimento para a construção de um navio de 750 tonéis, contido no códice onde está o Livro Primeiro de Architectura Naval de Lavanha, a que já se fez referência atrás 25. Uma vez que se procurava dar conta de tudo o que era necessário para tornar os navios operativos, e dado que temos no mesmo documento naus e galeões, torna-se fácil perceber qual era o armamento tipo destas embarcações, e o que mais deveriam levar para poderem ser considerados aptos para a navegação. Pormenor a merecer reparo é o de os nomes das embarcações revelarem que algumas delas tinham vindo da campanha da Armada de 1588, com acontece com o galeão «S. Luís» ou as duas zavras, de que não ficou registo da participação nos combates navais, pois se juntaram à miríade de embarcações auxiliares que apoiavam os grandes navios armados para a guerra. Estamos em crer que a «Folha dos navios...» resulta da necessidade de arrolar os meios navais disponíveis na Península depois do desastre, e a crítica interna do documento mostra que deverá ter sido preparado logo de seguida, em 1589, como o sugere, entre outras, a passagem: «A nao st. João que veo da jndia o ano passado de 1588» 26. 23 24 25 26 José Augusto Frazão de Vasconcelos, «De Re Náutica (Miscelânea histórica)», Anais do Club Militar Naval, T. LXI, n.os 11 e 12, 1930, pp. 93-102. José Virgílio Pissarra, «O galeão S. João (c. 1530-1551). Dados para uma monografia», inFernawáo Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, p. 209. Parte I, capítulo I. Trata-se do regimento para a construção de um navio específico, razão pela qual não se reproduz nos apêndices. Memorial de Várias Cousas Importantes, fl. 44. 184 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO O Memorial contém vários róis genéricos, isto é, não aplicáveis a uma embarcação específica, traduzindo o quadro padrão dos abastecimentos dos navios: os mantimentos para cem tripulantes de uma nau da índia de 550 a 600 tonéis (levando em conta um número relativamente baixo para o que seria normal), o rol da botica, o da artilharia e respectivas munições, e uma lista dos pagamentos a 700 pessoas de navegação, exceptuando o soldo do capitão mor, que deveriam sair em seis navios, cinco destinados à índia e um a Malaca 27 . Por fim, dever-se-á destacar os documentos que têm a ver com a navegação. O primeiro é uma contribuição interessante, se bem que curta, para o estudo da armada de guarda costas 28, titulado «Derrota que se deu aos capitães dos cinco nauios que forão darmada a Costa» (fl. 78). Esta armada é também referida numa muita abreviada descrição dos mantimentos que se davam aos tripulantes dos navios, consoante o seu destino, referindo os abastecimentos dados «ordinariamente» para as armadas que organizadas no Armazém da Guiné e Mina (fls. 119-119v). Voltando à navegação, refiram-se um parecer de pilotos e mestres sobre a viagem para a ilha de Santa Helena, com recomendações quanto aos procedimentos a tomar por aqueles que a intentassem (fls. 124v-125); um breve apontamento sobre a navegação no Estreito de Magalhães que não está titulado e ocupa apenas meio fólio (fl. 120v), apesar de tudo com interesse por dar conta das condições ideais para a aproximação do estreito, alertando para as consequência de o fazer fora do tempo; um estudo náutico da monção da viagem para o estreito, que complementa o anterior (fl. 122v); uma lista pormenorizada dos portos do Brasil, breve mas ainda assim com indicações sobre cada um relativas à localização e à possibilidade de neles fundear os navios (fls. 122v-123v). Duas últimas menções à «Monção da uiagem de Angola» (fls. 124-124v) e ao relato da «Viagem que se fez de Amaquao porto da China onde estão os Portugueses pêra a noua Espanha» (fls. 140-141), que pode ser classificado como um verdadeiro roteiro. Considerando-os como um todo, o Livro Náutico e o Memorial contêm o mais significativo núcleo de documentos técnicos para a construção naval portuguesa que nos é dado conhecer no período considerado, para além de outros cuja importância não é de somenos. Tudo junto chega para nos certificar do interesse em proceder a uma publicação integral dos códices, reconstituindo-os na forma original. 27 28 Memorial de Várias Cousas Importantes, fls. 125v e ss.; são os documentos a cuja publicação já foi feita referência atrás. Sobre o que se deve ver Artur Teodoro de Matos, A Armada das Ilhas e a Armada da Costa no Século XVI (Novos elementos para o seu estudo), Lisboa, Academia de Marinha, 1990, e outros artigos do mesmo autor mais a propósito da armada das ilhas, citados neste trabalho. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 3. 185 CÓDICES DE D. ANTÓNIO DE ATAÍDE Temos hoje conhecimento de muita documentação cujos originais se perderam, por via de cópias que se encontram em códices onde os primitivos donos foram compilando textos sobre matérias de seu interesse, a par de alguns originais a que podiam ter acesso, e até incluindo impressos. As miscelâneas documentais abundam, mas por via de regra torna-se impossível determinar a sua origem, a quem pertenceram, porque foram reunidas e em que datas, ou de quando são os documentos copiados ou extractados, quase sempre sem qualquer referência à localização original. Estas condições dificultam sobremaneira a crítica da informação e do seu suporte. Outras vezes, porém, as miscelâneas são colecções organizadas por proprietários identificados, ou a seu mandado, com vantagem evidente na determinação da lógica da compilação e, sobretudo, como sucede frequentemente nestes casos, com possibilidade de determinar datas, locais e interesses específicos. Estão nestas condições as colectâneas designadas aqui por «códices de D. António de Ataíde», que não constituem uma série homogénea e articulada mas são o resultado da reunião de um vasto leque de documentos relativos aos assuntos marítimos, feita por iniciativa de um dos homens que pontificou no meio, durante o período de transição do século XVI para a centúria seguinte. A relevância deste conjunto e as suas peculiaridades justificam uma atenção particular: trata-se da maior «colecção» de códices com este tipo de documentos e origem identificada numa pessoa ligada ao meio, apesar de muitos deles não dizerem estritamente respeito a navios mas a assunto correlato - a arte de navegar. O percurso biográfico de D. António de Ataíde ilustra bem o interesse e o conhecimento que detinha do meio marítimo, aliás amplamente reconhecido na própria época. Charles Boxer, Luís de Albuquerque e Quirino da Fonseca 29, entre outros, já trataram da sua vida e escritos, mas a figura de D. António mereceria um estudo biográfico apropriado, para o que nem sequer falta ampla cópia de informação já referenciada. D. António de Ataíde nasceu em 1567 e foi o segundo filho do segundo conde da Castanheira e de D. Bárbara de Lara, tendo herdado o título do quarto conde, o seu sobrinho D. João de Ataíde. Era neto e homónimo do primeiro titular da Casa, o poderoso valido de D. João III, que como já vimos chegou a conhecer Fernando Oliveira e teve interesse pelos assuntos do mar, como naturalmente decorria do exercício das suas funções de vedor da Fazenda. Um dos fantasiosos nobiliários da época faz mesmo remontar a sua linhagem a Egas Moniz 30 . 29 30 Como ponto de partida, dois estudos obrigatórios de Charles Boxer: «Um roteirista desconhecido do século XVII. D. António de Ataíde, capitão geral da Armada de Portugal», Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, n.° 1, 1934, pp. 189-200; e «The Naval and Colonial Papers of D. António de Ataíde», Harvard Library Bulletin, vol. V, n. 1, 1951, pp. 24-50. Nobiliário de Portugal, BA, 50-IV-l, fl. 436. Seguimos de perto o texto do nosso artigo escrito em colaboração com Inácio Guerreiro: «D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da índia de 1611», in A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos Europeus em Home- 186 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO D. António terá iniciado a sua longa vida pública muito novo, embarcando na armada do marquês de Santa Cruz que em 1582 foi enviada aos Açores a combater os partidários do Prior do Crato 31 . Segundo apurou Charles Boxer, embarcou em várias armadas da costa nos anos subsequentes, e serviu como capitão de cavalos e fronteiro-mor dos coutos de Alcobaça32. Em 1611 comandou a armada anual para a índia, para o que não carecia de experiência de mar anterior, já que aos capitães-mor nada era requerido que exigisse conhecimentos náuticos (embora a nomeação de D. António possa ter sido devida exactamente ao seu domínio da arte de navegar). É certo que se tem escrito frequentemente o contrário, sugerindo que os comandos implicavam a capacidade de dirigir navios, mas de facto não era assim; poucos eram os capitães que sabiam de arte de navegar, a qual era apanágio dos pilotos a quem competia o efectivo governo do navio em termos náuticos 33. O piloto-mor da armada de 1611 era até um dos mais experientes oficiais do ofício, nessa altura, um piloto com reputação estabelecida e longa prática do mar: Simão Castanho Pais 34. Não é o comando que nos garante que o capitão-mor aprendera a navegar, e com proficiência, muito provavelmente praticando no mar com nautas experimentados, ou, quiçá, seguindo as aulas do cosmógrafo-mor, cujo regimento apelava à frequência de profissionais e de nobres que o quisessem fazer. O caso aqui é bem diferente e a capacidade de D. António afere-se por uma situação a todos os títulos excepcional: na viagem de regresso, desaguizado com Simão Castanho, é o próprio capitão do navio que assegura a pilotagem e escreve o diário de bordo. Mais do que isso, o monarca confiou-lhe a apreciação do regimento dado aos capitães-mor, para o anotar em função da sua experiência de navegação para a índia, com vista a uma reformulação do texto padrão; é por isso que somos levados a crer que a nomeação de D. António teve directamente a ver com as suas capacidades navais, ao contrário da regra. Torna-se assim patente que, nos dois decénios que medearam entre a ida aos Açores e o comando da armada de 1611, D. António aprendeu os fundamentos da arte de navegar. Depois do regresso a Lisboa é provido no posto de coronel de infantaria, e em 1618 no de general da armada de Portugal, comandando a armada da costa, 31 32 33 34 nagem a Luís de Albuquerque, org. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, vol. II, Lisboa, Presença, 1987, pp. 51-72. Os dados conhecidos não são incongruentes com a prática de fazer embarcar jovens nobres, que iniciavam cedo a sua educação militar, mas apesar de tudo a idade de 15 anos para a incorporação numa armada como a de 1582 parece baixa (para as referências bibliográficas v. o artigo citado na nota anterior). Charles Boxer, «The Naval and Colonial Papers of D. António de Ataíde», p. 25. Cf., entre outros, Francisco Contente Domingues, «Pedro Nunes e a arte de navegar», in Pedro Nunes e Damião de Gois. Dois Rostos do Humanismo Português, coord. de Aires Augusto do Nascimento, Lisboa, Guimarães Editores, 2002, pp. 95-106. Na carta de exame de Manuel Vicente do Amaral, que examinou em 1604, é dado como antigo aprovado e examinado na Carreira da índia. Nos princípios do século XVII foi pelo menos duas vezes piloto-mor de armadas da índia (v. José Augusto Frazão de Vasconcelos, Pilotos das Navegações Portuguesas dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1942, pp. 41-42). Os NAVIOS DO M A R OCEANO 187 que aguardava os navios que se aproximavam do litoral para os proteger dos ataques de piratas e corsários. É nesta qualidade que procede à criação do primeiro corpo de infantaria de marinha, o Terço da Armada Real 35 , precursor dos corpos destinados ao embarque de tropas de combate em navios de guerra 36 . A este propósito, cumpre dizer que acaba de se rectificar um erro antigo, que situava em 1618 a criação deste corpo. Jorge Semedo de Matos vem encontrar na análise dos documentos de D. António a confirmação de que a medida data efectivamente de 1621, logo depois da subida ao trono de Filipe IV, que confirmou a nomeação de D. António e respondeu pela positiva a um desejo que este manifestara havia três anos, mas cuja concretização fora protelada pelos conselheiros do seu antecessor 37 . A criação do Terço em 1621 (cujo comando directo foi entregue a D. Francisco de Almeida) é praticamente coincidente com o fim da trégua de doze anos celebrada com os neerlandeses; o seu baptismo de fogo deu-se precisamente com o reacender do conflito, na retoma de São Salvador da Baía em 1625, para onde foi enviada uma importante armada sobre a qual existe informação preciosa nestes mesmos códices 38. No ano seguinte teve lugar um episódio que ficou nos anais da Carreira da índia como uma das suas mais infaustas perdas. O capitão da nau «Nossa Senhora da Conceição», Jerónimo Correia Peixoto, morreu acidentalmente durante a viagem de regresso do Oriente, sendo substituído por D. Luís de Sousa. Ao chegar à Terceira, o novo capitão recebeu instruções para navegar em direcção à costa portuguesa pelos 39,5° de latitude, o que efectivamente fez, mas ao invés da armada da costa encontrou dezassete vasos argelinos ao largo de Peniche. Seguiu-se uma rija peleja que durou dois dias, e apesar da nau ter apenas 22 bocas de fogo, perdeu-se apenas por causa da explosão que se seguiu a um incêndio e chegou aos paióis. João Carvalho Mascarenhas, que seguia a bordo e foi levado para o cativeiro em Argel, escreveu um relato pormenorizado do sucedido 39 , mais tarde incluído no pseudo terceiro volume da História Trágico-Marítima40. Aí deu 35 36 37 38 39 Terço da Armada da Coroa de Portugal, renomeado Terço da Armada Real do Mar Oceano depois de 1640. Actualmente esta missão está cometida aos Fuzileiros na Marinha de Guerra Portuguesa, corpo que assume a sua origem na Terço de D. António. Jorge Semedo de Matos, «O Terço da Armada da Coroa de Portugal», Revista da Armada, n. 322, 1999, pp. 11-12. É uma primeira notícia desenvolvida no estudo O Terço da Armada da Coroa de Portugal (1621). Novas informações sobre a sua criação e organização, Lisboa, Academia de Marinha, 1999. Houghton Library (Harvard University), Ms. Port. 4794/11. Que os Turcos queymàrão Memorável Relaçam da Perda da Nao Conceiçam Lisboa; vários successos das pessoas, que nella cativarão. E descripção nova à vista da barra de da Cidade de Argel, & de seu governo; & cousas tnuy notáveis acontecidas nestes últimos annos de 1621 ate 1626. Por Joam Carvalho Mascarenhas, que foy cativo na mesma Nao..., Em Lisboa, Na Omcina de António Alvares, Anno de 1627. 40 C o n s t a a o b r a d e dois v o l u m e s : Historia Trágico-Marítima Em que se escrevem mente os Naufrágios que tiveraõ as Nãos de Portugal, depois que se poz em exercício a chronologicaNavegação da índia... Por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental, Na Officina da Congregação do 188 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO conta da incapacidade dos navios adversários tomarem a nau, pelo que recorreram ao expediente de lançar sobre ela um pano embebido em água ardente, óleo de linhaça, enxofre e pólvora, incendiando o toldo que cobria a varanda da popa. Ou talvez o incêndio tenha sido provocado pela tripulação, como sugeriu Manuel Severim de Faria 41 , um dos vários memorialistas que deram conta dos factos que impressionaram vivamente a época, em parte também porque o navio trazia uma das maiores fortunas que alguma vez viera do Oriente. Era a nau «mais rica que havia muytos annos, que tinha partido da índia», segundo Carvalho de Mascarenhas, trazendo 6800 quintais de pimenta e os bens de D. Luís, avaliados em duzentos mil cruzados, entre outros 42. O episódio é muito interessante por revelar aspectos curiosos da navegação e meios de combate das naus da índia. Uma das razões da perda do navio teve directamente a ver com o facto de ser surpreendido já muito próximo da costa: tripulantes e passageiros tinham enchido o convés com caixas e fardos, para não pagarem os elevados direitos que caíam sobre tudo o que vinha debaixo do convés. Carvalho Mascarenhas testemunhou a grande prontidão com que a defesa foi preparada, assim como a falta de qualidade das armas (arcabuzes que já não funcionavam por estarem sem uso havia muito tempo, e piques demasiadamente longos), mas o impacto do avistamento de uma armada de piratas mesmo no termo de uma jornada tão longa e dura, já com o destino à vista, em sentido literal, deve ter condicionado psicologicamente todos os que iam a bordo. Um pequeno batel vindo de terra foi até à nau, mas ninguém podia fazer fosse o que fosse, excepto a armada de costa que devia responder a este tipo de situações e nem sequer andava longe, como disseram os do batel. Mas a armada nunca apareceu: a nau afundou-se, com toda a fazenda embarcada, e os sobreviventes ficaram cativos dos agressores à vista dos que assistiram impotentes em terra ao desfecho dos acontecimentos. D. António foi considerado culpado de perda da nau por não lhe ter acorrido a tempo: preso em casa primeiro e no Limoeiro depois, foi tirada devassa do sucedido. O processo arrastou-se por três anos, acabando por se concluir que o acusado procedera afinal como o regimento preconizava, e procurara até perseguir os piratas, embora sem sucesso. D. António deu resposta longa e cuidada aos quesitos da sua suposta culpa, afirmando desde o início que tudo se devia à perseguição dos seus inimigos, nomeadamente do desembargador Manuel Coutinho, a ponto de nem sequer se ter esperado pelo seu regresso para dar início à tentativa de inculpação 43 . 41 42 43 Oratório, 1735-1736. Mais tarde foi publicado um volume que passou a ser conhecido por «pseudo terceiro volume», de formato idêntico, onde o compilador anónimo juntou mais alguns relatos de naufrágios. Este último inicia-se precisamente com o relato de Carvalho Mascarenhas. Manuel Severim de Faria, Historia Portugueza e de Outras Províncias do Occidente..., BNL - Reservados, cod. 241,fl.175. Memorável Relaçam da Perda da Nao Conceiçam, p . 19. Deffença de D. António de Athayde, BA, 4 4 - X I V - 1 7 , fls. 11-1 l v . O c ó d i c e 4 4 - X I V - 1 8 é u m a v e r s ã o em espanhol desta longa e cuidadosa resposta de D. António. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 189 Finalmente ilibado, é feito primeiro conde de Castro Daire a 30 de Abril de 1625 44, alcaide-mor de Guimarães, senhor dos lugares de Paiva, Baltar e Cabril, gentil-homem de boca e mordomo-mor da rainha: uma compensação de desagravo pela injustiça a que fora sujeito. A partir desta altura, outros cargos e missões de importância atestam o alto merecimento de que sempre beneficiou junto de Filipe IV: foi conselheiro de Estado do Conselho de Portugal, presidente do Conselho de Aragão e presidente da Mesa da Consciência e Ordens. Chefiou a embaixada enviada ao imperador D. Fernando II em 1628-1630, da qual o seu secretário, Damião Ribeiro, fez um copioso relato que ainda se conserva manuscrito 45. No regresso é nomeado governador de Portugal, cargo que ocupa sozinho de Março de 1632 a Abril de 1633, em virtude do falecimento do conde de Vale de Reis, Nuno de Mendonça. A Restauração encontrou-o profundamente ligado à gestão dos Habsburgos, e talvez por isso não se livrou da prisão em 1641, por suspeita (infundada) de participação numa conjura pró-espanhola. Para a desconfiança política que a sua pessoa com certeza suscitava junto da nova dinastia, deve também ter concorrido o facto de o seu filho mais velho, D. Jerónimo de Ataíde, ter ficado por Madrid depois do 1.° de Dezembro de 1640; a presidência da Mesa da Consciência e Ordens foi-lhe retirada, mas D. António passou os últimos anos de vida em quietude, morrendo a 14 de Dezembro de 1647, «quando excedia a larga idade de 80 annos» 46. Este breve esboço biográfico ajuda a entender o interesse da personagem, não se esgotando embora no que ficou dito. D. António de Ataíde foi um homem de cultura e juntou um importante acervo de manuscritos, e podemos presumir que de livros também. Seria hoje possível reconstituí-la em parte, pois sobe às dezenas o número de códices guardados em bibliotecas públicas de vários países, que sabemos terem sido de sua pertença (boa parte dos quais na Biblioteca da Ajuda). Foram seus herdeiros os marqueses de Castelo Melhor, de quem era primo, cuja biblioteca foi vendida nos finais do século XIX. A parte do espólio adquirida por Fernando Palha foi mais tarde comprada pela Universidade de Harvard, onde se encontram os três códices que aqui se referirão mais em particular, mas o resto, que foi muito, dispersou-se. Ater-nos-emos apenas e tão só aos códices com documentos que versem assuntos de marinharia, deixando de fora os que revelam interesses literários e poéticos, entre outros. O interesse de D. António pelas matérias práticas, tanto como pelas questões teóricas, está bem patente na colecção de códices que reuniu, como se pode constatar de seguida pela breve apresentação de alguns deles 47. 44 45 46 47 D. António era casado com D. Ana de Lima, filha e herdeira do senhor de Castro Daire, D. António de Lima. Embaixada do Conde de Castro a Alemanha, BA, 49-X-25 a 28, quatro códices manuscritos com mais de 1200 fólios. Sobre a embaixada v. Johannes Albrecht, «Embaixada de Alemanha», Congresso do Mundo Português. Publicações, vol. VI, Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 173-188. Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, 3.a ed. organizada por Manuel Lopes de Almeida e César Pegado, vol. I, Coimbra, Atlântida, 1965, p. 211. Parte dos que não consideramos estão descritos por Boxer, «The Naval and Colonial Papers...», pp. 28 e ss. 190 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO 3.1. Códices de Harvard Este conjunto de três códices foi adquirido pela Universidade de Harvard em 1928 48, devendo-se a Charles Boxer uma descrição suficiente para avaliar sua a grande importância 49 . Só recentemente se tornaram de fácil acesso aos investigadores portugueses, por via da cópia adquirida pela Biblioteca Central de Marinha 50 . O primeiro códice leva por título Armadas. Collecção de documentos, impressos e manuscriptos relativos às armadas de Portugal; Collecção de vários Documentos, e papeis Régios e administrativos, e contém materiais relativos ao período de 1588 a 1633. Dos três é o que contém mais informações relativas à construção e apresto de navios e armadas, como sejam as relativas a custos detalhados de construção, soldos e quintaladas, artilharia, boticas e similares. Merecem destaque as contas relativas a duas naus da índia de três cobertas, feitas por conta do rei em 162451; a inserção de um opúsculo impresso em 1588 sobre a Invencível Armada, de que existe uma versão completa no segundo volume (neste faltam o primeiro e o último fólio); a descrição pormenorizada da armada enviada a socorrer a Baía em 1624 52; e a da que foi enviada a Pernambuco em 1631. Outros documentos incluem a escritura de venda de um galeão ou a relação de despesas de uma nau espanhola. A lista de custos das naus «S. Bartolomeu» e «Santa Helena», que viriam depois a seguir para a índia em 6 de Abril de 1625, é particularmente detalhada, mas no essencial respeita o tipo das que encontramos no Livro Náutico e no Memorial de Várias Cousas Importantes, com especificação do custo e quantidades das diversas peças necessárias à construção dos navios, soldos, provisões e botica, como de costume. Mais relevante é a descriminação das liberdades, cujo detalhe não tem igual em relação à outra documentação conhecida, segundo escreveu Boxer, comparando, nomeadamente, com os dados que se encontram no Livro de toda a fazenda de Luís Figueiredo Falcão 53. 48 49 50 51 52 53 Guardam-se na Houghton Library da Universidade de Harvard com a cota Ms. Port. 4794. Designamos os volumes por 4794/1, II e III, respectivamente. Charles Boxer, op. cit., p p . 33-40. Esta aquisição foi possível pelo empenho do Senhor Almirante Vítor Crespo, Director da Biblioteca na altura em que solicitámos que aquela instituição adquirisse uma fotocópia dos códices, dado o evidente interesse dos materiais aí contidos para o estudo da marinha portuguesa no século XVII. O Director da Biblioteca não só acedeu de imediato como não desistiu de a concretizar, apesar das dificuldades registadas em Harvard, dado que os elementos de identificação providenciados por Boxer já estavam desactualizados. Ao fim de quase dois anos a cópia dos códices chegou finalmente a Lisboa, e pudemos então consultá-los, como têm feito depois outros investigadores. São devidos por isso agradecimentos ao interesse e persistência nesta questão do Senhor Almirante Vítor Crespo. Houghton Library (Harvard University), Ms. Port. 4794/1, fls. 38-44. Ibidem, fls. 86-106v. Charles Boxer, op. cit., pp. 33-34; Luís de Figueiredo Falcão, Livro em que se contém toda a fazenda..., Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pp. 198-199. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 191 Muito mais invulgares são os documentos sobre a mastreação dos navios e o aparelho 54 : na documentação conhecida só se lhes compara um documento similar sobre o aparelho de um galeão, contido nas Coriosidades de Gonçalo de Sousa 55 , códice referido noutra parte deste capítulo. Os reportórios das armadas enviadas para o Brasil merecem uma chamada de atenção especial. Boxer notou que não se ficavam pela simples listagem de nomes de navios e respectivos comandantes, como é usual: a relação da armada enviada para socorrer a Baía em 1624 é a mais completa e informada lista de navios conhecida até esta data, com informação sobre múltiplos itens, chegando por exemplo a listar as quantidades de chumbo necessárias para cada navio - o chumbo foi embarcado em chapa para remendar os buracos das balas 56 , e para evitar que a calafetagem se perdesse pela acção de desgaste do mar 57 -, sendo esta uma das poucas listas de armadas, conhecidas até esta época, em que figura este item 58 . O segundo códice notabiliza-se pela inserção de impressos invulgares, a par de cópias manuscritas de documentos igualmente importantes. Tem um conteúdo algo diferente do primeiro, como o próprio título deixa logo entrever: Collecção de vários Documentos, e papeis Régios e administrativos respectivos 59. Este volume abre com um documento raro: um dos poucos exemplares conhecidos, em perfeito estado, da relação da Armada de 1588 dada à estampa por António Alvarez, em Lisboa, nesse mesmo ano - este reparo é devido a Charles Boxer 60 , cuja descrição do códice revela o quão bem se apercebeu da excepcional valia dos documentos nele contidos. E excepcional é mesmo o termo que se deve empregar. A este ilustre historiador chamou mais a atenção o rol de materiais que, no seu dizer, nos providenciam uma excelente visão da vida a bordo de um navio português no primeiro quartel do século XVII, 54 55 56 57 58 59 60 Houghton Library (Harvard University), Ms. Port. 4794/1, fls. 165-166v e 177-180. Documento B.5. IAN/TT, C o r p o Cronológico, 2." P a r t e , m ç . 366, d o e . 14. «haveraa nas taracenas.... chumbo pêra nas nauegações longas emparar a estopa que a nam descarafete a agua» (Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, Lisboa, 4.° ed., Edições Culturais da Marinha, 1983, p. 31). Houghton Library (Harvard University), Ms. Port. 4794/1, fls. 86-108v. Ibidem, Ms. Port. 4794/11. Charles Boxer, op. cit., p. 35. A vastíssima erudição e solidez informativa que ressuma de todos os escritos de Charles Boxer tornam pouco provável que lhe possa ser assacado um tal lapso, mas é um facto que o raro opúsculo devido a António Alvarez é exactamente o mesmo que corre com o nome de Pedro Paz Salas, que realmente foi impresso por Alvarez, conforme se vê na última folha, e é sobejamente conhecido: «Fecha em Lixboa, a nueve de Mayo, de 1588. Anos. Por António Aluarez Impressor». Sucede porém que o exemplar inserto no códice de D. António não tem folha de rosto, e para o identificar resta apenas essa última página onde se identifica o impressor: terá sido essa a origem da aparente confusão de Boxer? Diversa da anterior é uma outra relação, esta sim inusual, sem nome de autor e intitulada Relacion Verdadera dei Armada, que el Rey Don Felippe nuestro senor mando juntar en el puerto de Ia ciudad de Lisboa en el Reyno de Portugal el ano de 1588, Madrid, Por Ia viuda de Alonso Gomez Impressor dei Rey nuestro Senor; a existência de um exemplar em Simancas foi-nos revelada pelo Cte. Augusto Salgado, o que agradecemos. 192 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO complementando-os com os relatos de Linschoten e Pyrard de Lavai61; o códice contém o regimento dos escrivães da carreira da índia, impresso em 1611 (ano do comando de D. António na carreira), além de muita outra legislação sobre o carregamento das especiarias e a ocupação dos espaços a bordo, normas para evitar a sobrelotação ou o embarque de cristãos-novos, precauções a manter durante o tempo em que os navios estivessem no porto de Goa ou no de Cochim, prevenção de fogos a bordo - o perigo dos perigos nos antigos navios de madeira, bem mais que ataques de piratas ou tempestades e encalhes 62 - e tantos mais, incluindo uma cópia do regimento das liberdades de 1515. O cotejo do plano das intenções, na óptica do legislador, com os relatos vividos de quem fez a carreira da índia (para o que o manancial informativo mais importante reside no conjunto das cartas dos padres jesuítas 63 ), é efectivamente um processo privilegiado para o estudo da vida a bordo. O códice termina com um conjunto de documentos manuscritos relativos à perda da nau «Nossa Senhora da Conceição», mas cumpre citar em último lugar o mais importante de todos os conjuntos de documentos desta série, composto pela cópia manuscrita das regulações portuguesas de construção naval de 1578, das Ordenamos de 1613, também em cópia manuscrita, e pelo raro opúsculo impresso das Ordenanzas de 1618, profusamente anotado por D. António de Ataíde. Os procedimentos da construção naval ibérica dos finais do século XVI e inícios do século XVII estão assim perfeitamente documentados pelos mais relevantes dos documentos legislativos que diziam respeito à matéria. É certo que a prática tendia a adaptá-los à conveniência de construtores e contratadores, além de que não há normas (teóricas ou práticas) que regulem a construção das superestruturas dos navios, cujo remate era sempre deixado ao bom critério do mestre contrutor naval, como afirmamos repetidas vezes ao longo destas páginas. Isso tinha consequências na forma dada à embarcação, nomeadamente porque os direitos devidos se pagavam à entrada nos portos, em função da mercadoria transportada abaixo do convés, o que se veio a reflectir na elevação das superestruturas do casco, vistas também como local de armazenamento de carga não sujeita a impostos, apesar da evidente perda de qualidades marinheiras das embarcações. A legislação tentou atalhar esses inconvenientes, 61 62 63 Charles Boxer, op. cit., p. 37. Há menos notícias de perdas de navios por fogo a bordo que devido às outras causas citadas (6,8% do total, segundo Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e António Lopes, Naufrágios e Outras Perdas da «Carreira da índia». Séculos XVI e XVII, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 437). A possibilidade de escapar quando isso acontecia é que era drasticamente menor, e não custa a crer que dos navios que desapareceram sem deixar rasto (38,4% do total), muitos tenham sido consumidos pelas chamas em pleno alto mar. Muitas delas foram inventariadas por José Wicki, «As relações de viagens dos Jesuítas na carreira das naus da índia de 1541 a 1598», in / / Seminário Internacional de História lndo-Portuguesa, Lisboa, IICT, 1985, pp. 3-17, e foram a base do estudo de Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro, A vida bordo na Carreira da índia (Século XVI), Lisboa, IICT, 1988. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 193 como se documenta desde o reinado de D. Sebastião, procurando regular os processo de construção dos navios de modo a garantir a observância de padrões comuns, o que deve ser entendido não só na perspectiva dos ganhos fiscais passíveis de serem obtidos por via da normalização pretendida, como também na procura de maior eficácia na construção naval. Duas «polémicas» ilustram na perfeição esta busca de denominadores comuns: a que opunha os defensores de navios de maior porte possível aos que defendiam os portes médios, e a disputa sobre se as naus da índia deviam ter três ou quatro cobertas. Nesta última interveio o próprio D. António, um dos peritos ouvidos pela coroa a tal propósito 64. A intenção não passou disso mesmo, em parte: os meios de regulação dos processos de construção naval não permitiam uma grande margem de acção, numa altura em que não havia suporte teórico capaz para a possibilidade de padronizar a construção das naus. O traçado geométrico do navio era insuficiente para garantir uma construção uniformizada (daí os valores díspares que até os peritos encontravam na medição do arqueio dos navios), e terminava nas almogamas, o que quer dizer que, além das superestruturas, também os remates da proa e popa eram decididos pelo mestre construtor naval usando métodos empíricos. É presumivelmente a indecisão quanto às características dos navios de alto bordo, a par das margens de intervenção que existiam para além do que se podia determinar, que acaba por ditar a promulogação de medidas legislativas. Há Ordenanzas em 1607, 1613 e 1618, uma sucessão que porventura revela também a ineficácia da aplicação das normas no plano prático. Curiosamente, porém, a intervenção legislativa foi diferente em Portugal, onde a Coroa mostrou menos tendências reguladoras. Verifica-se pelo conjunto de documentos reunidos que D. António de Ataíde seguiu a questão e se interessou por ela, como o mostram as profusas anotações manuscritas ao exemplar das Ordenanzas de 1618, onde, inclusivamente, deixou os apontamentos necessários para a resolução de um dos mais intrincados problemas com que se debate o estudioso da arqueologia naval ibérica: o da correspondência das medidas portuguesas e espanholas, cujos valores ficam assim estabelecidos para os inícios do século XVII. É bem. possível que não fosse um interesse meramente particular, pois tem de se considerar a hipótese da opinião de D. António ter sido expressamente requerida, o que aconteceu pelo menos em duas circunstâncias específicas: aquando da discussão do número de cobertas dos navios, e a propósito das alterações ao regimento dos capitães-mor da índia. O terceiro volume é no essencial o copiador de D. António. Nele ficaram registados vários documentos que lhe diziam respeito, mormente os relativos ao seu comando da armada da costa e das medidas que tomou, incluindo a criação do primeiro corpo de infantaria de marinha. O códice inicia-se com a cópia do 64 V. Christiano Barcelos, «Construcções de naus em Lisboa e Goa para a Carreira da índia no começo do século XVII», Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 17.a série, 1898-1899, pp. 57-61, e José Augusto Frazão de Vasconcelos, Subsídios para a história da Carreira da índia no tempo dos Filipes, sep. do Boletim Geraldo Ultramar, Lisboa, 1960, pp. 23-57. 194 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO documento de nomeação de D. António como capitão-geral da armada da coroa de Portugal, e dos que se lhe seguem cumpre dar destaque aos regimentos para a armada de 1618 e para os capitães. O regimento da armada da costa de 1618 65 é um dos poucos conhecidos do género, mas o «Regimento que dei aos cappitaes da Armada» 66 é mais raro ainda: trata das instruções que D. António transmitiu por escrito aos capitães dos navios da armada da costa que comandou em 1618, e pode ser considerado como um regimento interno que complementa o conjunto de instruções de navegação, depois do regimento que o capitão-mor recebia do rei. Não deixa de ser curioso que subsistam tão poucos (há mais dois nas Coriosidad.es de Gonçalo de Sousa), uma vez que tudo leva a crer que a prática era vulgar, nomeadamente desde o momento em que as armadas começaram a navegar em conserva para prevenir com mais eficácia os ataques inimigos. As vantagens da navegação em conserva estão consignadas desde os primórdios da Carreira da índia, cujos procedimentos de navegação se conhecem melhor: o princípio já transparece nas instruções dadas a Cabral 67 , e chega-se mesmo a regulamentar os procedimentos a tomar no caso de se verificar o extravio de alguma nau, como se vê nas que Diogo Lopes de Sequeira recebeu em 1508 68. Este princípio manter-se-á, ainda que mudem as razões que estão na sua origem. Primeiro era a segurança da navegação que justificava a directiva em causa, depois passou a ser a segurança militar, motivando soluções muito díspares para resolver o mesmo problema: por um lado a torna-viagem em rota batida torna-se obrigatória com a carta que o monarca dirige ao vice-rei da índia com data de 31 de Janeiro de 1614 69, por outro aceita-se que um navio possa sair antes da armada se estivesse aprestado e as circunstâncias o exigissem 70. Permita-se um parêntesis neste lugar, porque D. António teve um papel crucial na questão. É claro que os preceitos que regiam a navegação em conserva são melhor conhecidos no que respeita à Carreira da índia, embora até por maioria de razão se aplicassem em outros casos, como nas armadas da costa, mas a perigosidade e insistência dos ataques aos navios que faziam a Rota do Cabo, sobretudo a partir dos inícios do século XVII, justificou que neste caso se tomassem precauções especiais. Elas são patentes a dois níveis: na repetitividade das ordens que obrigavam à navegação em comboio, e na severidade das penas para quem não as cumpria. Nesse aspecto, a citada carta régia de 1614 65 66 67 68 69 70 H o u g h t o n Library ( H a r v a r d University), M s . Port. 4794/III, fls. 19-25v. Ibidem, fls. 26-29v. V. Joaquim Romero de Magalhães e Susana Munch Miranda (ed. de), Os Primeiros 14 Documentos Relativos à Armada de Pedro Álvares Cabral, L i s b o a , CNCDP-IAN/TT, 1999, p p . 4 5 - 6 6 . Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, vol. II, Lisboa, CEHU, 1963, p. 244. Documentos Remettidos da índia ou Livros das Monções, Publicados sob a dir. de Raymundo António de Bulhão Pato, Tomo III, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1885, pp. 32-34. Maria Emília Madeira Santos, O problema da segurança das rotas e a concorrência luso-holandesa antes de 1620, Lisboa, IICT, 1984, pp. 15-16. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 195 é exemplar: os navios deviam ir em conserva até Goa, seguindo a bandeira e farol da capitânea, sob pena de capitães, pilotos, mestres e mais oficiais ficarem sujeitos à pena de morte se assim o não cumprissem, além da perda da fazenda e de todas as mercês; independentemente do resultado da navegação dever-se-ia tirar devassa à chegada (chega-se ao pormenor de estipular que a cargo de um desembargador de confiança), e se era apurada alguma culpa, os responsáveis deviam ser castigados e substituídos nos seus cargos pelo vice-rei, «sem lhes poderdes perdoar». O regimento da torna-viagem ficava por conta de D. Jerónimo de Azevedo («conforme ao que entenderdes que mais convém a meu serviço e segurança das minhas naus»), mas o rei deixa claro o que pretendia que nele viesse escrito, «tendo consideração no estado das coisas», nomeadamente que os navios não deviam «em nenhum caso» tomar Angola ou Santa Helena. Se na aparência as instruções régias deixavam alguma latitude quanto ao que o vice-rei podia ordenar ou o capitão-mor podia decidir em viagem, como a tomada de uma escala alternativa, uma frase escrita pouco adiante esclarece em definitivo que no fundo as ordens eram peremptórias: «e que venham de rota batida a este reino» 71. Não havia margem para quaisquer dúvidas quanto às intenções régias. Intenções claras mas não definitivas: chamados em 1635 a opinar junto do Conselho da Fazenda sobre a navegação para a índia, dois experimentados pilotos da Carreira foram de parecer que as naus deviam evitar escalar Angola, Santa Helena, Brasil e Ilhas, o que lhes deixava muito pouca margem de manobra, e por isso se requeria «trazerem as nãos muito mantimento e muita agoa, em boas vasilhas, porque por falta das dittas cousas naçe tomarem se os dittos Portos» 72. As ordens de 1614 e o parecer emitido mais de vinte anos depois elucidam as dificuldades em resolver a questão, mas é certo que ela preocupa sobremaneira os agentes reguladores da navegação na Carreira da índia desde os inícios do século XVII: o monarca, que entrega o regimento da viagem, e o governador, que normalmente se encarrega do de torna-viagem. O parecer de 1635 demonstra que não se conseguiu impor a viagem de regresso em rota batida, mas os documentos do princípio do século evidenciam que essa ideia se foi desenhando paulatinamente. Na carta régia de 22 de Março de 1605 está escrito que o regimento da torna-viagem deve ser dado na índia, mas com instruções para os navios virem em conserva, tal como já faziam para lá 73; na carta de 10 de Março de 1611 para o vice-rei Rui Lourenço de Távora, manda-se que seja dado o regimento para o regresso de D. António de Ataíde «tendo em consideração ao estado das coisas e ao que entenderdes por informações», acrescentando que 71 72 73 Documentos Remettidos da índia ou Livros das Monções, Tomo III, 1885, pp. 33. V. Alberto Iria, Da Navegação Portuguesa no Índico no Século XVII (Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino), Lisboa, CEHU, 1963, p. 55. O parecer data de 6 de Março de 1635 e foi publicado na íntegra nas pp. 54-58: é um documento do maior interesse para a história da Carreira. Documentos Remettidos da índia ou Livros das Monções, Tomo I, 1880, pp. 43-45. 196 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO só deveria ser interditada a escala em Santa Helena se houvesse indicação de que isso não poderia ser feito sem perigo 74; a carta para o vice-rei de 8 de Março de 1612 é quase exactamente igual à anterior 75 ; mas tudo muda, como vimos, em 1614. Um dos agentes dessa mudança foi D. António, que em 1611 levou a incumbência de analisar o regimento dado na Carreira e sugerir alterações. Resultou daí um par de documentos preciosos chegados até nós: um é a versão integral do regimento dado a D. António em 1611 76, outro é uma cópia parcial, densamente anotada pelo seu punho 77. Um caso único, o de um regimento da Carreira anotado pelo capitão-mor aconselhando o rei quanto às mudanças que era necessário fazer: e uma delas era justamente a de regulamentar as escalas e procedimentos a adoptar perante o avistamento de navios inimigos 78. A nosso ver, este foi um dos pareceres em que o monarca se baseou para determinar a mudança expressa pela carta de 1614. Estes documentos não pertencem aos códices a que nos referimos, mas ajudam a perceber a importância de que se revestiria a conjunção do regimento da armada da índia com o regimento dado pelo capitão-mor aos seus comandantes das naus; curiosamente, nesse aspecto conhece-se melhor a armada da costa. 3.2. Relação das Náos e Armadas da índia O códice Add. 20902 da British Library contém uma das mais interessantes relações de armadas da índia, por na verdade serem duas, conforme notou Luís de Albuquerque na introdução da respectiva edição 79 , tal a riqueza e detalhe dos comentários à margem. O códice foi publicado como o primeiro de uma série que se destinava a dar publicidade às relações das armadas da índia, mas o projecto ficou por aqui. Segundo Boxer, esta relação, que cobre o período 1496-1653, foi em boa parte compilada por ordem de D. António de Ataíde, que a anotou parcialmente, tendo sido continuada depois por alguém não identificado: «this codex is exceptionally interesting in that it is the only one (to my knowledge) compiled and annotated by a one-time Captain-Major of the índia Voyage» 80. E de facto as notas são opinativas e afirmativas de uma forma pessoal de ver as coisas, como sempre sucede com as suas observações à margem. Duas dessas passagens revelam-no e são particularmente interessantes. Na primeira D. António não 74 75 76 77 78 79 80 Documentos Remettidos da índia ou Livros das Monções, T o m o II, 1884, p p . 86-87. Documentos Remettidos da índia ou Livros das Monções, T o m o III, p p . 209-210. BA, 51-VIII-43, fls. 131-136v. BA, 51-VII-11, fls. 129-131. Estes documentos foram publicados e estudados por Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro, «D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da índia de 1611». Relação Das Náos e Armadas da índia Com os successos delias que se puderam saber, Para Noticia e instrucção dos curiozos, e amantes Da Historia da índia (British Library, Códice Add. 20902), leitura e anotações de Maria Hermínia Maldonado, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1985. Boxer, «The Naval and Colonial Papers...», p. 29. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 197 tem quaisquer dúvidas em enaltecer os seus próprios méritos como navegador, a propósito do retorno da viagem da armada de 1611 e do diário de bordo que escreveu por se ter substituído ao piloto-mor: «O capitam-mór D. António de Ataide voltou da índia na mesma náo Guadelupe com as [outras] duas Piedade e S.Filippe, e partirão de Goa para o Reino a 16 de Janeiro de 1612, como consta da viagem que escreveu o mesmo capitão-mór com a maior exacção, dibuxando nella todos os baixos» 81. A outra nota que merece atenção é a acusação violenta e frontal aos governadores de Portugal em 1622, a quem atribui não muito indirectamente as culpas pela perda da nau «Conceição»; perante o inquérito que acabou por o isentar de responsabilidades, D. António afirmou que não tinha podido socorrer a nau por as condições de navegação não lho terem permitido. Uns anos mais tarde, nesta nota do seu punho que põe no manuscrito da relação das armadas, diz claramente que estava perto mas ninguém o avisou, nomeando de seguida um a um os governadores que sabiam bem que a nau combatia em frente a Peniche, o que sugere uma acusação de negligência. E muito sintomaticamente fê-lo no fim do texto que descreve a armada de 1621, e não ao lado, como sucede nos outros casos, como se o espaço tivesse sido deixado de propósito para este comentário; uma acusação que terá um peso especial se, como quer Boxer, a relação foi efectivamente compilada numa altura em que D. António se ocupava, ele próprio, da governação de Portugal. «Este anno de 1621 o primeiro de Março partirão de Goa duas náos, a saber a náo Penha de França de que vinha por capitam-mór Gaspar de Mello, e a náo Conceição Nova82 feita na índia, da qual era capitam Jeronimo Corrêa Peixoto, que morreu em Sta. Elena, e logo elegerão por capitam a D. Luis de Sousa que vinha que vinha para o Reino com sua molher, e caza, chegando a náo a ter vista das Berlengas, de fronte da Eiriceira encontrarão 17 náos de turcos com que peleijarão tam valentemente que a nam puderam render senão queimando-a e hé muito de considerar, que ao sábado passou o general D. António de Ataide com dez galiões, e dous pataxos reconhecendo as Berlengas, e vinha com ordem para escolher dous galiões, que havião de hir à índia e ao domingo descahiu ao Cabo de Espichei com calmaria, e à segunda-feira se queimou a náo sem o general ter avizo delia nem haver huma caravella, nem hum barco, que avizasse o general, sabendo os governadores onde a náo estava peleijando, os quais governadores erão o bispo D. Martim Affonso Mexia, o conde D. Diogo de Castro, e D. Nuno Álvares de Portugal, fidalgo da Caza de Sua Magestade» 83. Não era possível ser mais explícito: afastado do local onde a nau fora atacada, com os seus navios imobilizados pela calmaria (pelo menos de acordo 81 82 83 Relação Das Náos, p . 123. Esta «Nossa Senhora da Conceição» foi construída em Pangim, em 1620-1621. Era designada por «Conceição Nova», já que existiam outras naus com nome idêntico, na altura (v. Henrique Quiríno da Fonseca, Os Portugueses no Mar. Memórias Históricas e Arqueológicas das Naus de Portugal, 2." ed., Lisboa, Comissão Cultural da Marinha, 1989, pp. 398-403). Relação Das Náos, p . 136. 198 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO com a explicação que deu em primeiro lugar), D. António acusa os governadores de não terem expedido um aviso a dar conta do ataque, do qual naturalmente foram informados de imediato, pois o confronto dava-se à vista da costa em frente à Ericeira. Na resposta ao inquérito não seria com certeza politicamente oportuno o lançamento deste labéu de incúria, mas a alguns anos de distância já nada o coíbe de o fazer. Claro que remanesce uma pergunta: se tinha a armada imobilizada por falta de vento, e dado que a mesma era constituída por navios de vela apenas (galeões e patachos), o aviso de nada serviria; porquê então este ataque em forma? Pressentem-se outras questões por trás das palavras de D. António, que não apenas a conduta dos governadores perante os acontecimentos: talvez inimizades pessoais ou políticas. 3.3. Compilações de Diários de Bordo Conhecem-se duas compilações de diários de bordo que estiveram na posse de D. António de Ataíde. A primeira, pertença da Academia de Ciências de Lisboa, reúne seis textos escritos entre 1595 e 1603, e foi publicada por Henrique Quirino da Fonseca 84, «unfortunately in a manner which is by no means above reproach», segundo a opinião autorizada de Charles Boxer 85 . O códice está pouco anotado, ao contrário do que sucede por norma, mas é bem provável que tenha sido usado para preparar a viagem de 1611, como base de estudo prévio da experiência dos pilotos da carreira da índia. O Arquivo Histórico Militar guarda a outra compilação, publicada por Humberto Leitão 86; sobreleva a anterior a vários títulos, nomeadamente pelas notas de D. António de Ataíde, autor do sexto e último diário pelos motivos já referidos, e bem assim porque todos eles vieram da mão de alguns dos mais reputados e experientes pilotos da época. São os seguintes os diários aqui contidos: 1) Viagem da nau «Santo António» do Reino para Goa, em 1608. O autor do diário foi o sota-piloto Sebastião Prestes, e o piloto-mor (já que era a nau capitânea da segunda armada enviada em 1608, saída a 24 de Outubro) era o reputado Gaspar Ferreira Reimão, autor de um dos mais afamados roteiros da índia. 2) Viagem da nau «Nossa Senhora da Penha de França» de Goa para o Reino, em 1610. Foi a nau que trouxe da índia André Furtado de Mendonça, falecido no decurso da viagem. Manuel Leitão era o piloto, mas quem escreveu o diário foi o sota-piloto, o mesmo Sebastião Prestes. 84 85 86 Henrique Quirino da Fonseca, Diários de Navegação da Carreira da índia, nos anos de 1595, 1596, 1597, 1600 e 1603, Lisboa, Academia das Ciências, 1938. Charles Boxer, op. cit., p. 31. Humberto Leitão (Introdução e notas), Viagens do Reino para a índia e da índia para o Reino (1608-1612). Diários de navegação coligidos por D. António de Ataíde no século XV11, 3 vols., Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1957-1958. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 199 3) Viagem da nau «Nossa Senhora da Piedade» do Reino para Goa, em 1609. Nau capitânea pilotada por Sebastião Castanho Pais, que escreveu o diário. 4) Viagem da mesma nau de Goa para o Reino, em 1610. Sebastião Castanho continuou a ser o piloto e autor do diário. 5) Viagem da nau «Nossa Senhora de Guadalupe» do Reino para Goa, em 1611. Era a nau capitânea da armada que zarpou do Tejo a 8 de Março de 1611, acompanhada pela «Nossa Senhora da Piedade», capitão Francisco Correia, e pela «S. Filipe e Santiago», capitão António de Mendonça. A armada chegou a Goa a 11 de Setembro depois de uma viagem sem problemas de maior, em que o capitão-mor, D. António de Ataíde, foi carteando a par com o piloto-mor, Simão Castanho Pais 87 : e à chegada a Goa, conforme já reparou Humberto Leitão, este levava o ponto adiantado apenas 11 léguas, contra as 45 de D. António. O capitão-mor sabia navegar e toda esta documentação ilustra o seu acrisolado interesse pela náutica, mas elementos como este e outros levam-nos a crer que não era um marinheiro de primeira água. 6) Viagem da mesma nau de Goa para o Reino, em 1612. O mais interessante destes textos: é o único diário autógrafo de um capitão-mor das armadas da índia, conhecido até hoje. Como se disse atrás, D. António desentendeu-se com o seu competente piloto Simão Castanho e assumiu ele próprio a direcção da navegação, escrevendo o respectivo diário - coisa que raros capitães-mor poderiam alguma vez ter feito, ao contrário do que muitas vezes se afirma, confundindo a função de comando com o exercício da pilotagem, o que não tem qualquer razão de ser como o prova este diário. 3.4. Livro de marinharia de Gaspar Moreira Designam-se por livros de marinharia as compilações que os pilotos organizavam com documentos de vários tipos de interesse para o exercício da sua profissão88, resultando num caderno individualizado com carácter estritamente funcional, um autêntico vade mecum do seu dono que todavia quase nunca é possível identificar. Estes livros são conhecidos pelo nome de um piloto que É dado como antigo examinado e aprovado para a Carreira da índia na carta de exame de Manuel Vicente do Amaral, de quem foi examinador em 1604. Simão Castanho fez pelo menos estas duas viagens para a índia como piloto-mor, das quais conhecemos os diários (cf. José Augusto Frazão de Vasconcelos, Pilotos das Navegações Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1942, pp. 41-42). Para a melhor definição v. Luís de Albuquerque, «Livros de marinharia», in Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dir. de Luís de Albuquerque e coord. de Francisco Contente Domingues, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 615. 200 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO se encontre citado no texto, o que não quer dizer que tenha sido o compilador: como exemplos podem citar-se o livro de João de Lisboa, com elementos informativos posteriores à morte deste piloto, e o de Sebastião Lopes, que na realidade pertencia a alguém que escreveu no primeiro fólio que não havia de se esquecer de trazer do Brasil uma arroba do açúcar do melhor para a «mulher de Bastião» 89. O original do livro de marinharia conhecido pelo nome de Gaspar Moreira (como sempre porque o seu nome é lá citado), que mereceu uma excelente edição de Léon Bourdon e Luís de Albuquerque, era pertença de D. António de Ataíde, que o anotou como era hábito. O seu possuidor julgava-se melhor piloto do que seria de facto: seguramente conhecia a arte, mas errou por três vezes nos comentários que escreveu no livro, evidenciando a distância que o separava dos profissionais 90. 3.5. Códices da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Segundo Charles Boxer, a Secção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro guarda dois códices com as cotas «Pernambuco, I-I-2, n.os 44 e 45», com material importante para a História do Brasil o primeiro, e o segundo com documentos relativos à organização da marinha espanhola, que aquele autor considerou genericamente menos interessante 91. Actualmente aquelas cotas não existem nem há tabela de conversão para cotas antigas na Biblioteca do Rio que os permita localizar 92 . Foi-nos possível encontrar o segundo 93, mas não o primeiro, que a avaliar pelo que diz Boxer seria mais importante. Quanto àquele, trata-se efectivamente de uma miscelânea de manuscritos e impressos que dizem respeito à organização marítima e naval (não só espanhola), com informação vária sobre navios, pólvora e artilharia, entre outros assuntos, sendo quase todos os documentos datados da década de 1630. O códice contém alguns impressos, nomeadamente a Ley Sobre a Gente da Maçam Poder ir Pêra Fora do Reyno Livremente, e Vender Seus Bens, publicada em Madrid a 17 de Novembro de 1629 94. Mas o seu conteúdo não é tão revelante como os outros a que nos referimos aqui. 89 90 91 92 93 94 Estes critérios de fixação de títulos são explicados por Luís de Albuquerque na edição deste precioso códice: Códice Bastião Lopes (de autor anónimo), Introdução de Luís de Albuquerque, Lisboa, IN-CM, 1987. V. Le «Livro de Marinharia» de Gaspar Moreira, I n t r o d u c t i o n et notes p a r L é o n B o u r d o n et Luís d e A l b u q u e r q u e , Lisboa, JICU, 1977, p . 3 n. 17, p . 4 n . 24 e p . 2 3 n . 17. Charles Boxer, op. cit., pp. 40 e ss. Os funcionários da secção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que nos atenderam procuraram com afinco, mas debalde, o primeiro dos códices em causa. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Ms. 493. Idem, ibidem, fls. 224-225v. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 201 3.6. Codex Ataide (antigo Codex Lynch) Este códice veio a ser conhecido pelo nome do proprietário (Sir Henry Lynch) que o ofereceu ao King's College, em Londres, em cujo arquivo se guarda desde há meio século, e onde tomou o nome pelo qual se encontra arquivado: Codex Ataide 95 . Contém um significativo volume de documentação relativa à Companhia Portuguesa das índias Orientais para o período de 1628-1633, incluindo originais de vários relatórios enviados da índia a propor medidas de reforma e reforço da Companhia, preços de aquisição de mercadorias no Oriente, preparação de frotas, reparação de navios e respectivos custos, e outros similares. Notou Boxer que por estes documentos se verifica que a Companhia continuou a operar depois da data da sua extinção oficial. Aparte os códices de Harvard, este é o único da restante colecção de D. António com alguma informação sobre navios, embora não estritamente técnica e para um período tardio. Como é norma, percebe-se que o códice foi sua pertença devido às extensas anotações manuscritas. Alguns dos documentos assinados pelos administradores da Companhia parecem indiciar a falta de meios ou de autonomia suficiente para a execução das pretensões do rei, mas há passagens relativas à aplicação de verbas enviadas do reino para o conserto e construção de naus, por conta da Companhia. Esta controlava ainda a Ribeira das Galés, por mercê régia 96. A Companhia solicita o envio de aprestos para a construção e reparação de naus (breu em pipas e chumbo, por exemplo 97 ), entendendo-se porém que não tinha autonomia para a determinação do tipo de navios que mandava fazer. Assim, numa carta dos administradores sobre o fabrico de uma nau na índia, escreveu-se que ela seria de quatro cobertas, «conforme o molde que nos mandão» 98, e a execução da obra estava entregue a um dos bons mestres da arte, na época: Valentim Temudo, cumulado de elogios na carta. 3.7. Cousas tocantes a arte militar Guarda-se no Arquivo Geral de Marinha um códice com este nome cujo subtítulo e data (apostos modernamente) são enganadores: «Instruções sobre Serviços a Bordo dos Navios de Guerra (1659)»99. Dos três primeiros fólios o primeiro contém os títulos modernos e os restantes estão em branco; seguem-se 151 fólios contendo a documentação copiada, numerados modernamente a lápis de forma coincidente com a numeração antiga, que não se vê nos primeiros 95 96 97 98 99 Ostenta na lombada a referência «MS 14», relativa à biblioteca de Sir Henry Lynch. Junto ao códice guarda-se um apontamento de Charles Boxer. King's ColJege Archives (Londres), codex Ataide, fl. 85. Idem, fl. 84. Idem, fl. 106. Arquivo Geral de Marinha, n.° 2461 (documento do cofre). 202 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO fólios porque as cabeças foram excessivamente aparadas; os oito fólios do último caderno estão em branco e não se encontram numerados. No fim do corpo central lê-se o seguinte: «Podem se enquadernar estes 12 quadernos de cousas tocantes a arte militar... 28 de abril de 1659. O Pe fr filippe de sousa Qualificador do Santo Oficio» 10°. É possível que este título e data, depois apostos no fólio inicial sem o melhor critério, tenham contribuído para o olvido deste importante conjunto de documentos para a história naval militar dos finais do século XVI e inícios do século XVII: nem lá falta uma das muitas cópias do apresto da Armada de 1588. Verifica-se porém que o códice contém no essencial cópias de documentos dos códices de Harvard outrora pertença de D. António de Ataíde. Mais haveria a dizer sobre o importante acervo reunido por D. António, mas julgamos serem estes os mais representativos do que era, sem dúvida, uma vasta colecção documental, quiçá única no seu tempo. 4. CURIOSIDADES DE GONÇALO DE SOUSA O fólio de abertura das Coriosidades identifica Gonçalo de Sousa como «fidalgo da casa de sua majestade, seu capitão e gentil homem da boca Comendador da Ordem de Christo» 101. Os dizeres estão envolvidos por uma cercadura feita com alguma preocupação figurativa, o que denota a intenção de dar ao códice um aspecto algo elaborado. Esse fólio é precedido pela cópia de uma carta régia de 9 de Fevereiro de 1627 102, provavelmente acrescentada depois de as Curiosidades serem dadas por concluídas: a carta é dirigida a «Gonçalo de Sousa Capittão do Galeão Santiago», o que já nos dá algumas pistas sobre o personagem. Em 1626 a esquadra de guarda costas foi capitaneada por D. Manuel de Menezes, que acabara de regressar do Brasil e saiu para o mar a dia 24 de Setembro no comando de uma armada de cinco galeões e uma urca, com ordens para esperar as naus da índia e do Brasil até 20 de Outubro, posto o que receberia novas instruções caso as não encontrasse. Esta armada foi particularmente desafortunada: o mau tempo fez com que se perdessem cinco navios, além de duas naus da índia ricamente carregadas, tendo morrido mais de duas mil pessoas, o que levou Costa Quintella a comentar que «foi a maior perda, que Portugal soffreu depois da jornada d'ElRei D. Sebastião» 103. Gonçalo de Sousa comandava um dos galeões, o «Santiago»: conseguiu recolher-se ao porto 100 Idem, fl. 128v. Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3704. A última frase foi acrescentada com letra diferente. 102 O texto foi publicado na íntegra por Hernâni Amaral Xavier, Novos Elementos para o Estudo da Arquitectura Naval Portuguesa Antiga, Lisboa, Academia de Marinha, 1992, p. 48. 103 Ignacio da Costa Quintella, Annaes da Marinha Portugueza. I Parte. Quarta Memória, reedição, Lisboa, Ministério da Marinha, 1975, p. 197. 101 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Fig. 6 - Fólio de abertura das Coriosidades de Gonçallo de Sousa. 203 204 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO de Guetaria, na Biscaia, de onde veio para Lisboa, e entrou na barra depois de defrontar quatro navios holandeses. Sorte, perícia ou a mistura das duas coisas, o certo é que foi o único a escapar à desventura que atingiu a armada de D. Manuel de Menezes 104 . Gonçalo de Sousa deve ter sido navegador e soldado experiente em vários campos de batalha, porque entre o fólio de abertura e a colecção de documentos que constitui o corpo do códice propriamente dito encontra-se um poema encomiástico, onde se louvam fartamente as suas qualidades pessoais. Na terceira quadra vem escrito «soldado só entre os grandes; / bem o vio África e Flandres / A Bahia, e o nosso mar» 105, o que dadas as circunstâncias dificilmente se pode supor que não corresponda à enumeração dos locais por onde batalhou e para onde navegou: pelo menos consta da lista de embarcados para o socorro da Baía em 1624, à frente do seu terço, conforme se vê numa relação que está incluída no final do códice 106 . Quanto à colecção de documentos, é simplesmente notável, e denota o interesse e conhecimento do seu compilador. O que mais se destaca nas Coriosidades é a congruência do conjunto, quase todo relativo aos navios e às navegações, incluindo, entre outros, regimentos de construção naval, de armadas da costa e da índia. Assim, o códice contém 107: - Regra geral para navios de alto bordo de setenta até trezentas toneladas (fl. 5) - Orçamento para a construção e apresto total, em material e homens, de doze galeões de 550 toneladas cada um - posterior a 1624 (fl. 33) - Dos navios extraordinários que no Estado da índia se costumam armar de que cá não usamos (fl. 39) - Aparelho de um galeão (fl. 40) - Ordem antiga de guerra que se tinha em companhias de infantaria (fl. 42) - Regimento dado por D. António de Ataíde aos navios da sua armada (fl. 50) - Regimento da armada de Pêro Correia de Lacerda enviada ao Açores, para comboiar as naus da índia (fl. 62) - Regimento da armada da costa de Pêro Correia de Lacerda (fl. 73) - Regimento da armada das ilhas capitaneada por Pêro Correia de Lacerda, de 1572 (fl. 79) - Regimento da armada das ilhas de Pêro Correia de Lacerda, de 1575 (fl. 93) - Regimento dado por D. António de Ogando aos navios da sua armada de 1632 (fl. 95) 104 V. o relato dos acontecimentos na obra citada acima, pp. 187-197. Coriosidades,fl.4. O fólio de abertura tem o número 2, seguindo-se logo este com o número 4. Seguimos a numeração moderna dos fólios. 106 Coriosidades.fi. 145v. 107 Tal como foi feito para o Livro Náutico, os títulos são modernizados e resumidos, quando não simplesmente adaptados, com intenção de transmitir uma ideia tão clara quanto sucinta dos respectivos conteúdos. Este rol não pretende substituir-se a um índice, mas, ao contrário do Livro, listam-se aqui todos os documentos que integram o códice, por isso indicando o fólio em que se inicia cada um. 105 Os NAVIOS DO M A R OCEANO 205 - Regimento de mestre de artilharia, impresso (fl. 107) - Regimento para a armada de índia de 1629, de Francisco de Melo de Castro (fl. 109) - Regimento dos capitães mores, impresso (fl. 124)108 - Regimento dado por D. Manuel de Meneses aos navios da sua armada de 1626 (fl. 136) - Relação dos soldos do terço de infantaria organizado por D. António de Ataíde em 1621(fl. 141) - Relação dos generais da armada de socorro da Baía, e outros embarcados (fl. 145) - Soldos de uma companhia de infantaria da Flandres (fl. 149) O grosso dos documentos arruma-se cronologicamente em dois períodos distintos: a década de 1570 e a década de 1620, inícios da década de 1630. É portanto plausível situar nesta última a organização do conjunto 109, o que pode deixar os dois regimentos relativos à arquitectura naval fora do período de redacção dos tratados de arquitectura naval, vistas as coisas do ponto de vista formal. Mas a crítica interna dos documentos aponta para que se insiram naquele período. Conforme Hernâni Amaral Xavier mostrou em estudo comparativo do Livro de Traças de Carpintaria com as Curiosidades, há várias situações distintas a levar em linha de conta, como o aparecimento de regimentos relativos a embarcações similares mas com textos distintos, que evidenciam serem cópias de fontes diferentes (é o caso do galeão de 350 toneladas de Manuel Fernandes e do de 14 rumos de Gonçalo de Sousa n 0 ) , como se verifica também que regimentos comuns aos dois manuscritos foram copiados de uma matriz comum. Nesta última situação está indubitavelmente a «Regra geral para nauios de alto bordo de setenta ate trezentas toneladas», de excepcional importância no quadro da documentação técnica de arquitectura naval, por se tratar do mais extenso e completo dos regimentos gerais m . Pelo menos na versão de Gonçalo de Sousa, já que Manuel Fernandes incluiu o mesmo documento no seu Livro, 108 Trata-se do Regimento dos Capitães Mores, & mais Capitães, & officiaes das companhias da gente de cauallo, & de pe, & da ordem, que teram em se exercitarem. Agora nouamente ordenado pêra todo soldado ter, & pêra se saber reger, & e aproueitar dos priuilegios, & e de tudo o mais conteúdo neste Regimento, de 1574, mas este exemplar não tem indicação de local de edição, impressor, ou data de publicação. 109 Com opinião diferente v. Adolfo Silveira Martins, Arqueologia Naval Portuguesa (séculos XIH-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2001, p. 132. Utilizámos este estudo antes da publicação por via de uma cópia electrónica cedida pelo autor, gesto que cumpre agradecer neste lugar. 110 V. os documentos A.17 e A.18, respectivamente. 1 ' ' Amaral Xavier discute, aliás com propriedade, a adequação dos termos «regra» e «regimento» a este tipo de documentos (op. cit., pp. 18-19); é certo que se ganharia com um maior rigor, mas existe uma tradição consagrada que seguimos neste caso, considerando não haver para já vantagem em introduzir uma distinção que, reflictindo o carácter intrínseco dos documentos, seria atípica em relação à terminologia corrente nos estudos da especialidade. 206 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO mas dividindo-o em várias partes: «Regimento pêra se saber o como se ha de dar a largura e lançamento de rodas dos Nauios de 300 toneladas pêra baixo» 112; «Do modo que has de ter no tirar da cauerna mestra» 113; «Nauio de 300 tonelladas» 114; e «Nauio de cento e sincoenta tonelladas. 150» 115. Seguindo a forma de apresentação escolhida por Manuel Fernandes (como foi feito no Apêndice Documental) resulta com mais clareza que na realidade se tratam de quatro regimentos distintos, em que apenas os dois primeiros têm um carácter genérico. Por outro lado, na versão de Gonçalo de Sousa ganha-se uma visão mais abrangente dos preceitos técnicos para a definição de elementos estruturais do navio, como são o lançamento das rodas e a caverna mestra, com normas conformes a tipologias aproximadas. Nesta última há ainda um parágrafo sobre a caravela de 50 meios, entenda-se 25 tonéis. Uma questão de critério, em suma, já que indubitavelmente ambos copiaram a mesma fonte, segundo Amaral Xavier 116 . É uma dedução natural em face da justaposição dos documentos, mas cabe perguntar se não se pode considerar a hipótese de as Coriosidades se terem baseado no Livro de Traças ou em regimentos que lhe serviram de base, da autoria do próprio Manuel Fernandes. É que, por mais reservas que o manuscrito deste último levante, e de ao contrário de Amaral Xavier pensarmos que o Livro não é um autógrafo, por motivos já explicados 117, Fernandes é um técnico de construção naval, e Gonçalo de Sousa não, tendo por isso de se limitar à cópia da informação a que podia ter acesso. É uma possibilidade a considerar, embora irremediavelmente prejudicada, como acontece com tudo o que tem a ver com o enigmático Livro de Traças de Carpintaria, por em rigor quase nada de concreto se poder afiançar a propósito deste tratado. Merece também destaque o documento sobre o aparelho de um galeão, um género de documento raro 118, apenas equiparável a um similar que se encontra num dos códices de Harvard. Este tipo de documento é decisivo para o estabelecimento das características das embarcações neste período, já não definidas a partir de trechos de crónicas, documentos sem fundamentação técnica, ou iconografia cujo pendor artístico prejudica por norma o apuro dos detalhes. Este códice contém nada menos de três regimentos internos de armadas: uma cópia do de D. António de Ataíde para a armada da costa, um outro de Pêro Correia de Lacerda com idêntico propósito, e o terceiro dado por D. António de Ogando aos navios que comandou com destino ao Brasil. Um conjunto decisivo para o estudo da organização interna das armadas, matéria sobre a qual, aliás, 112 Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 18-19. V. Doe. A.2. Ibidem, fls. 19v-20v. V. documento A.3. U4 Ibidem, fls. 21-21v. V. documento A.20. 115 Ibidem, fl. 21. V. documento A.22. 116 Hernâni Amaral Xavier, op. cit., pp. 21 e ss. 117 V. o capítulo anterior. 118 Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 40-4lv. Foi um dos documentos inéditos seleccionados para integrar o apêndice B (v. documento B.5). 113 Os NAVIOS DO M A R OCEANO 207 não se editou até hoje em Portugal um único trabalho em que se revele o aproveitamento integral destes dados. Em contrapartida, os documentos das Coriosidades com interesse para as armadas das ilhas e da costa foram já publicados por Artur Teodoro de Matos " 9 , assim como o regimento da armada da índia de Francisco de Melo e Castro 12°. Uma última menção é devida a lista dos «Nauios extraordinários que no estado da índia se custumaõ a armar de que qua naõ usamos» 121, bem mais sucinta no número de embarcações referidas e nos detalhes dados de cada uma da que foi publicada por José Wicki 122 , mas ainda assim merecedora de atenção. 5. ADVERTÊNCIAS DE NAVEGANTES O códice intitulado Aduertençias de nauegantes 123 foi um dos manuscritos que estiveram em exibição pública na XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura (Lisboa, 1983); permanece inédito na sua totalidade e nunca foi objecto de um estudo específico, apesar de conter importantes elementos de informação sobre a arquitectura naval portuguesa, ou a ela dizendo respeito. Na verdade só parcialmente trata destas matérias, embora se compreenda o critério que levou Pimentel Barata a incluí-lo no rol dos documentos técnicos 124. Com mais aviso escreveu Adolfo Silveira Martins: «Não podemos considerá-lo como integrando a colecção de regimentos conhecidos para esta época», para acrescentar logo de seguida que «todavia é uma fonte de necessária consulta» 125. O códice é obra de um autor que expõe as suas ideias sobre vários assuntos navais, entre eles a fábrica dos navios, e reside precisamente aí uma das suas características mais importantes, por oposição à generalidade dos casos em que deparamos com meras compilações de materiais alheios, ainda que reunidos com critério e acerto. O manuscrito das Advertências de Navegantes é nesse aspecto similar ao Tratado do que deve saber um bom soldado, também ele uma obra de autor que versa essencialmente as matérias navais, mas por igual com uma amplitude temática que sobreleva o domínio estrito da arquitectura naval. São duas obras únicas, distintas da restante documentação, 119 Artur Teodoro de Matos, A Armada das Ilhas, pp. 15-42 e 53-57. Artur Teodoro de Matos, «A Viagem de Conde Linhares à índia em 1629: Instruções e Relato», in Na Rota da índia. Estudos de História da Expansão Portuguesa, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1994, pp. 259-279 (o documento nas pp. 265-273). 121 Coriosidades de Gonçallo de Sousa, fls. 39-39v. 122 José Wicki, «Lista de moedas, pesos e embarcações do Oriente, composta por Nicolau Pereira S. J. por 1582», Stvdia, vol. 33, 1971, pp. 136-148. 123 Foi adquirido em hasta pública no ano de 1995; pertencia até então à Casa Cadaval. 124 João da Gama Pimentel Barata considerou-o um documento teórico-prático (Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, p. 157). 125 Adolfo Silveira Martins, op. cit., p. 136. 120 208 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO em relação à qual se destacam cronologicamente por já se encontrarem fora do período que consideramos; este manuscrito deve ter sido composto na mesma época do Tratado, em termos aproximativos, e, entre os dois, é seguramente o que contém materiais mais relevantes para a arqueologia naval. Quanto a Marcos Cerveira de Aguilar, o que dele se sabe certifica-o como homem ligado à arte da guerra com serviços prestados no mar. Barbosa Machado revela-nos que era capitão de ordenanças de Setúbal, tendo composto uns Diálogos das Armadas, e Nãos de guerra destes Reinos de Portugal, em que são intervenientes um capitão, um condestável, um mestre e um alferes. O manuscrito tinha 180 páginas e conservava-se na biblioteca do marquês do Louriçal, perdida em 1755. Ainda segundo Barbosa Machado, a obra terminaria com uma lista dos nomes dos aparelhos e outras partes do navio 126. Frazão de Vasconcelos, que apurou mais elementos biográficos de Cerveira de Aguilar, opinou que no fundo os Diálogos e as Advertências não são mais que duas versões da mesma obra, a segunda reduzindo o número de interlocutores 127, conclusão que parece ser a mais lógica em função do que sabemos. Quanto ao autor, pôde averiguar que era natural de Lisboa e filho de Tomás Cerveira de Aguilar, prestou serviços de armas em Angola e no Brasil. Embarcou em cinco armadas da costa entre 1637 e 1641, e aquando da Restauração encontrava-se em Setúbal, onde foi sargento mor nas fortalezas de Outão e S. Filipe. Nesta cidade desempenhara as funções de alcaide pequeno desde 1625; em 1641 era tenente, obtendo as mercês de escudeiro-fidalgo e cavaleiro fidalgo logo depois 128. Desconhece-se a fonte de Barbosa Machado para afirmar que ascendeu a capitão de ordenanças nesta cidade, onde parece ter passado boa parte da sua vida activa e presumivelmente faleceu. As Advertências são o seu único texto conhecido. Deve ter sido concluído em 1640, ou então foi escrito a seguir ao primeiro de Dezembro desse ano, data a que alude encomiasticamente na exposição inicial ao leitor. Assim, 1640 pode com propriedade ser considerado o ano de realização da obra. O manuscrito abre com um índice breve, a dedicatória a D. José de Meneses, conselheiro de guerra do monarca e governador de S. Julião da Barra, e uma nota «Ao leitor». Depois entra no corpo do texto propriamente dito, arquitectado em forma de diálogo entre um capitão pouco conhecedor nas coisas do mar e um soldado com muita experiência, que tratam de temas vários: as obrigações do capitão de mar e guerra, o artilhamento de um galeão e o seu apresto para a guerra, as medidas de uma nau de guerra, incluindo a mastreação, os nomes das suas partes, e o aparelhar de um galeão. Constitui tudo isto o corpo central da 126 127 128 Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, 3.a ed., vol. III, pp. 405-406. José Augusto Frazão de Vasconcelos, «Notas Bio-Bibliográficas. I - Marcos Cerveira de Aguilar Soldado do Século XVII versado em assuntos náuticos», Boletim Geral do Ultramar, Ano 29.°, n.°347, 1954, p. 68. Idem, ibidem, pp. 69-70. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 209 obra, que diz sobretudo respeito às matérias de arquitectura e construção naval. O autor trata em seguida de questões de náutica e navegação, nomeadamente da agulha de marear, do tomar da altura do sol com o astrolábio e do cartear, terminando com uma lista das barras e portos de Portugal. Percebe-se a familiaridade de Cerveira de Aguilar com os assuntos de arquitectura e construção naval, que ocupam os primeiros vinte e seis dos trinta e cinco capítulos da obra, correspondendo a 120 dos 172 fólios numerados. Não é um profissional que descreve as práticas do ofício, mas um entendido que descreve normas e preceitos com suficiente à vontade para garantir ao leitor que domina a matéria; e essa constatação certifica a validade de alguns do seus comentários e definições, num caso ou noutro preciosos. Um terço do códice, sensivelmente, ocupa-se da arte de navegar, mais concretamente a partir do capítulo «Da fabrica da agulha náutica». Também aqui se verifica que que o assunto não lhe é estranho, tal como acontece com o cartear, de que versa o capítulo 31.°. Entre os fólios 150 e 164v o leitor depara com um verdadeiro roteiro dos portos e barras de Portugal, dos cabos de S. Vicente a Finisterra, depois prolongado até San Lucar de Barrameda e Cadiz, e acrescentado com mais noticias sobre a navegação no Mediterrâneo. O códice termina com curto e curioso capítulo sobre o cálculo da raiz quadrada, incluindo uma tabela no fólio 169. Cerveira de Aguilar foi com certeza um embarcadiço interessado nos assuntos do mar e, como se pode deduzir com base no conteúdo deste seu manuscrito, homem culto atento às matérias de natureza técnica. Pelo que vimos acima não há notícia segura de ter estado profissionalmente ligado à marinharia, pois em função dos poucos dados biográficos apurados é lícito supor que entrou a bordo na qualidade de capitão de soldados, mais que oficial de navegação. O teor do texto que escreveu faz o leitor pensar que o autor sabia como fazer, mais do que executar directamente: é pelo menos o que indicia o corpo principal do tratado, a parte relativa às embarcações, que sugere fortemente a procura de informação detalhada sobre o assunto, e um conhecimento directo mas não profissional. De qualquer maneira suficiente para fazer o leitor seguir atentamente a sua lição, válida para o conhecimento da realidade marítima e naval portuguesa dos meados do século XVII, mas por igual capaz de esclarecer vários aspectos tocantes a períodos anteriores. O destaque de umas partes das Advertências em detrimento de outras resulta mais difícil do que é usual acontecer, dado o grande interesse de quase todo o manuscrito. Mas seria impossível não mencionar em especial o vocabulário técnico que ocupa os fólios 75 a 80 (quase correspondendo ao 18.° capítulo), o mais antigo que ocorre em obra do género, se realmente o Tratado do que deve saber um bom soldado é posterior às Advertências. Este vocabulário esclarece um dos problemas que mais polémica levantaram acerca das características do galeão português, o da natureza do esporão. O assunto será retomado no subcapítulo relativo àquela embarcação, mas note-se desde já a identificação inequívoca entre esporão e beque que aparece no texto de Marcos Cerveira de Aguilar: «bèque, he o mesmo que esporão, en que se toma a trinca para firmeza do 210 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO Fig. 7 - Casco de uma nau de guerra nas Aduertençias de Nauegantes de Marcos Cerveira de Aguilar [foi. 91): note-se que as portinholas abrem de lado. guoroupees, e segurança do traquete» 129; uma definição suficientemente clara para tirar quaisquer dúvidas quanto ao facto de o esporão ser a superestrutura do navio que se prolongava para além da roda de proa, servindo de apoio ao último mastro do navio, o gurupés, de onde pendia a vela da cevadeira. Um outro capítulo que merece atenção é aquele «en que se declara a uariedade da artelheria, e se tem redosida a três géneros» (cap. 6.°): aparece aí explicada a sistematização das peças de artilharia, que se operou a partir dos finais do século XVI, e que resultou na necessidade de padronizar a fundição das peças, até então feita individualmente, com os inconvenientes óbvios daí resultantes ao nível do fabrico dos projécteis que tinham de ser específicos para cada boca de fogo. A artilharia naval foi então dividida em três géneros, colubrinas, canhões e pedreiros, como explica Cerveira de Aguilar, cada um com diversos subtipos. Quanto aos de navios de que o manuscrito versa, são sobretudo naus e galeões, com capítulos ou subcapítulos específicos sobre a mastreação e o velame, sendo de destacar a atenção dada a este último, que ocupa parte do 15.° e o 16.° capítulos. É ainda de realçar que o 21.° capítulo trata da construção das naus de guerra (»da ordem que se tem no fabricarensse nãos para guerra)», distintamente dos galeões e naus ordinárias, embarcações cujas características se vão aproximando com o correr deste século XVII. Não há instruções para a fábrica de outros navios, ou sequer distinção das suas características, mas num capítulo dedicado à organização da navegação (o 23.°), aparece um apontamento que merece uma nota: a identificação de caravelas ou patachos como navios de segunda linha na estrutura das armadas - «carauellas, ou pataxos» 130, frase que sugere uma óbvia parecença morfoló129 l30 Advertençias de nauegantes, fl. 76. Idem, fl. 101. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 211 gica e funcional, tratando-se, como se trata aqui, de caravelas redondas ou de armada, cuja similitude com o patacho é já visível nos desenhos técnicos do Livro de Traças de Carpintaria. Finalizando, é obrigatória uma chamada de atenção para as ilustrações deste manuscrito, com muitos detalhes sobre o poleame, sobretudo (o conjunto de peças por onde passavam os cabos); e no fólio 91.° surge o único desenho de um navio, que não sendo desenho técnico nem se destacando pelo seu primor, contém um pormenor invulgar: vê-se claramente que as portinholas abrem para o lado, tal como as janelas, quando em todas as imagens conhecidas verificamos que a abertura se faz para cima por aposição das dobradiças no rebordo superior. É um detalhe que carece de explicação adequada. Muito mais haveria a dizer, naturalmente. O certo é que as Advertências de nauegantes contêm materiais suficientemente importantes para merecerem a atenção que nunca suscitaram até agora, apesar do manuscrito ser já de época posterior àquela que tem merecido o melhor cuidado da historiografia naval portuguesa, e que é também a que nos interessa neste momento. Mas uma aproximação à obra, por breve que seja, mostra que não é possível estudar os navios portugueses dos finais do século XVT e inícios do século XVII sem levar em linha de conta o que escreveu a propósito o capitão Marcos Cerveira de Aguilar. 6. TRATADO DO QUE DEVE SABER HU BOM SOLDADO PARA SER BOM CAPITAM DE MAR E GERRA Este manuscrito contém apenas umas breves referências à fábrica dos galeões, parte menor do conjunto, e não mereceria mais que uma breve referência não fosse o facto de ter sido levado em linha de conta tanto por Pimentel Barata 131 como por Adolfo Silveira Martins 132, os autores que procederam até agora à sistematização da documentação técnica conhecida. Por outro lado, estamos perante obra que se supõe datar da segunda metade do século XVII, portanto bem para lá do período cronológico que nos importa. Mas não falta interesse a este pequeno tratado, cujas matérias versam no essencial temas navais. O Tratado foi escrito num caderno de pequeno formato, com 64 fólios 133, que se guarda na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra 134, não havendo notícia da ocasião ou motivo de entrada nos fundos daquela instituição. Nada se sabe também do seu autor: as abreviaturas dos primeiro e último nome são incompreensíveis, restando os do meio, «Cayetano de Almeyda», para o iden131 João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, Lisboa, IN-CM, 1989, pp. 157, considera este documento teórico-prático. 132 Adolfo Silveira Martins, op. e loc. cit. 133 Seguimos a numeração aposta modernamente a lápis, que não considera o primeiro fólio (em branco), dado que a original apresenta repetições e saltos. I34 BGUC, ms. 235bis. 212 CAPITULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCTO tificar, como fizeram Rocha Madahil 135 e outros na sua esteira. Naturalmente também não se conhecem as razões que presidiram à redacção deste texto: a demonstração do valimento do seu autor, procedimento que não era invulgar, é uma hipótese que fica em aberto. A obra não tem passado desapercebida porque foi parcialmente publicada por Rocha Madahil 136 , com uma breve apresentação, mas é de lamentar que não tenha procedido à reprodução completa do texto: não só se justificaria em si mesma como se perceberia melhor a integração no conjunto das partes mais relevantes. O tratado, palavra pesada para intitular obra tão breve e relativamente pouco equilibrada, no sentido em que não só não versa com sistematicidade as matérias de que trata como se lhes refere com muito desenvolvimento, a umas, e com demasiada brevidade, a outras, principia com um curto perfil moral, psicológico e físico do capitão de mar e guerra. Ocupa um fólio e meio e resume-se nesta passagem: «O Capitam de mar e gerra deue de ser siente, ualeroso, robustu, sofredor de trabalhos, uigilante, afauel, segurozo, cortes, libaral e sobre tudu bom Christam» 137 - tudo escrito nesta «ortografia desvairada de quem pouco praticava a escrita» 138. O desenvolvimento do que se pretende com estas qualidades é tão convencional quanto o seu enunciado, e nada acrescenta que valha a pena referir. Entramos depois no corpo do texto propriamente dito. A parte estritamente técnica relativa à arquitectura naval intitula-se «Capitolos do que toca ha fabrica dos galioins tocantes has mididas» 139, ocupa os fólios 3 a 5, e nada contém de particular relevo. Nota-se porém que a confusão terminológica entre os diversos tipos de embarcações mantém-se ainda neste período mais tardio, como logo se mostra na primeira frase do capítulo (que é só um, apesar do plural no título): «A de se aduirtir q pella quilha da nau se lhe ha de dar a largura da boca, e de todas as mais mididas como sam fundo, popa, proa, cubertas mastos, uergas e gauias» t40 . O leitor entra de seguida numa das partes mais interessantes, um extenso vocabulário de termos relativos ao navio em geral, que, a par do de Marcos Cerveira de Aguilar, só será ultrapassado pelo que está inserido na Dieta Náutica e Militar, de 1720 141. Não obstante as definições serem muito curtas verifica-se 135 António Gomes da Rocha Madahil, «Um desconhecido tratado de arte naval portuguesa do século XVII», Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, n.° 3, Lisboa, 1934, pp. 278. 136 Idem, ibidem, pp. 277-293. 137 BGUC, ms. 235bis, fl. 1. 138 António Rocha Madahil, op. cit., p. 278. 139 A grafia deste texto é tão irregular que em regra não justifica a aposição do «sic», por se tornar excessiva. 140 BGUC, ms. 235bis, fl. 3. 141 BNL - Reservados, col. Pombalina, cod. 118: trata-se de um códice de grande dimensão que contém um extenso vocabulário sobre assuntos navais; infelizmente boa parte do texto é hoje dificilmente legível por a tinta, de tonalidade clara, se encontrar muito desbotada. Há apenas um trabalho dedicado a este interessante manuscrito: Nuno Valdez dos Santos, Um desconhecido Tratado de Marinharia do século XVIII (Dieta Náutica e Militar), Lisboa, Academia de Marinha, Lisboa, 1989. Estritamente falando não será esta a melhor forma de o designar, dado conter materiais compósitos e sem a sequência própria dos tratados de marinharia, como se pode ver 213 Os NAVIOS DO M A R OCEANO 4-7 r Is/ Fig. 8 - Fl. 47 do Tratado do que deve saber um bom soldado...: nesta parte do diálogo os interlocutores falam da forma de eliminar o vento nas peças de artilharia. 214 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFICIO que o autor possuía conhecimentos da matéria, pois estão correctas e são em número apreciável. Esta parte intitula-se «Nomes de que se compõem a fabrica de hú nauio tocantes da carpintaria» 142, e surge depois (completando-a) a lista das «Coizas pretenssentes ao apresto da Nao tocantes a Marinhagem que também deue de saber o bom Cappitam de Mar e guerra» 143, um conjunto de definições das quais o capitão devia estar ciente, segundo Caetano de Almeida. Seguem-se dois curtos capítulos sobre uma das manobras mais difíceis que se efectuavam com o navio, a carenagem: a colocação do navio em posição inclinada, com recurso a aparelhos de esforço, para permitir o conserto das obras vivas, quer dizer, a reparação do casco abaixo da linha de água, sobretudo da quilha e áreas circundantes. Os capítulos intitulam-se «Aparelhos para hua Nao dar crena tocantes a Marinhagem» 144, e «Também o bom Capitam de Mar e gerra deue de saber o que toca ao aparelho para hua Nau dar crena tocante ha Carpintaria e obra de Calafatte» 145. O simples facto de o autor se referir a esta matéria é indício forte de que não deveria ser alheiro ao meio marítimo; como Richard Barker já mostrou, a manobra era tão difícil quanto escassas são as notícias relativas à sua realização e procedimentos usuais 146, não obstante as fontes assinalarem que ocorria com certa regularidade: obrigavam-no as travessias de longo curso, nas quais se tornava imperativa a realização de consertos mais complexos, exigidos pelo desgaste da navegação na razão directa da dureza e duração das viagens. Mesmo em épocas bem mais recentes a ideia de carenar o navio podia levantar problemas e provocar opiniões desencontradas, como o ilustra na perfeição o diário de D. António José de Noronha, em viagem para a índia nos finais do século XVIII. Parte da tripulação da nau em que seguia queria que o navio fosse carenado no Brasil, já que a morosidade da operação tornaria obrigatória a invernada conveniente para alguns dos embarcados levarem a cabo os seus negócios pessoais 147. Este caso evidencia o que podia estar em jogo perante esta opção: a perda da monção se o conserto de um navio fosse feito, ou a perdição da própria embarcação se se optasse pelo contrário e os danos fossem grandes. O capítulo seguinte é o que tem chamado mais a atenção dos estudiosos, e compreende-se bem porquê, pois trata da artilharia naval, matéria sobre a pela comparação com os que são conhecidos no século XVIII e foram estudados por Luís de Albuquerque (»Livros de náutica do século XVIII escritos em português», in A Náutica e a Ciência em Portugal. Notas sobre as navegações, Lisboa, Gradiva, 1989, pp. 131-144). 142 BGUC, ms. 235bis, fls. 8-14. 143 Idem, fls. 15-20. 144 Idem, fls. 20v-24. Com este subcapítulo acaba a parte transcrita por Rocha Madahil. 145 Idem, fls. 24-24v. 146 Richard Barker, «Careening: Art and Anecdote», Maré Liberum, n.° 2, 1991, pp. 177-207, um extenso e erudito artigo que versa um assunto que a historiografia portuguesa tem ignorado, não obstante a importância de que se reveste para a história das navegações. O autor foi galardoado com o prémio Teixeira da Mota da Academia de Marinha por este trabalho. 147 V. D. António José de Noronha, Diário da Viagem, Edição e Introdução de Carmen Radulet, Posfácio de Francisco Contente Domingues, Lisboa, Fundação Oriente, 1995, pp. 7-8 (texto) e p. 123 (posfácio). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 215 qual não abunda a informação: «Logo que o dito Capitam estiuer bem siente noas sobre ditas matérias deue de por todo o cudado em saber tudo o toquante á Artilharia por ser o mais tem sial [sic] para a peleja, e para examinar os seus artilheiros faszendolhe as preguntas seguintes» 148. O questionário que se segue dá particular destaque aos tipos e características das peças, projécteis usados e assuntos similares, e é novamente o texto mais detalhado e explícito sobre o assunto conhecido até esta data. Vale a pena enfatizar que não se trata de um discurso corrido, mas de um diálogo em perguntas e respostas, bem ao gosto da época, reproduzindo o interrogatório a que o capitão deveria submeter os artilheiros para averiguar da sua competência, sobretudo ao nível dos conhecimentos técnicos. Não passa desapercebido que o conjunto de perguntas revela a especialização que se verificava já desde o século XVI: enquanto os artilheiros eram de início supostos de se mostrar capazes de assegurar o curso de todo o processo de criação e manuseamento da peça de artilharia (fundição, fabrico da pólvora e dos projécteis, e disparo da peça), com a crescente complexificação destas actividades deu-se a separação de funções entre o fundidor e o encarregado da peça propriamente dita, a quem se pedia proficiência na cadência e acerto do disparo. Neste capítulo, que é o mais longo do tratado, as respostas incidem sobretudo na classificação, caracterização e identificação das peças, denotando que a preocupação essencial era garantir que o artilheiro sabia com que material lidava. O texto confirma ainda que estava consagrada a divisão das peças em três categorias fundamentais (colubrinas, canhões e pedreiros), cujas características variavam de acordo com a funcionalidade pretendida. O manuscrito encerra com um capítulo igualmente longo, «Capitólio de como deue tratar o capitam de mar e gerra aos capitois e mais ofisiays das companhias que lhe forem para guarnisam da Nau» 149, versando assuntos muito variados, como a repartição das gentes a bordo, procedimentos para a navegação e para a guerra no mar, e outros similares; mas no conjunto com menos novidade e interesse que o precedente. Qualquer análise deste tratado, ainda que breve, torna claro que o nível de sistematização e elaboração das matérias (e até o da própria apresentação do manuscrito) não se compara aos que conhecemos para o período que tratamos, pese embora a importância de algumas das suas partes. Longe estavam os tempos de obras como as de Fernando Oliveira ou João Baptista Lavanha. Voltemos porém ao problema da datação e autoria, que tem suscitado opiniões bem diversas. Tanto Rocha Madahil como Pimentel Barata o consideraram do século XVII, este último da segunda metade, embora o descreva como «manuscrito anónimo, sem data» 150, e pela segunda metade do século XVII opinou também Silveira Martins 151. Dois outros autores expressaram porém 148 BGUC, ms. 235bis, fls. 25-47. Idem,fls.47v-63. 150 João da Gama Pimentel Barata, op. e vol. cit, p. 157. 151 Adolfo Silveira Martins, op. e loc. cit. 149 216 CAPÍTULO V: As INSTRUÇÕES DOS MESTRES DO OFÍCIO ideia bem diferente: tanto para Henrique Alexandre da Fonseca 152 como para Nuno Valdez dos Santos, o manuscrito de Coimbra do Tratado é do século XVIII, e para este último trata-se até de «uma má cópia, feita por pessoa de pouca cultura» 153 de um manuscrito da Biblioteca da Ajuda, intitulado Compendio do que pertense a obriguação de hum Cappitam de mar e guerra 154. São opiniões difíceis de sustentar em face dos documentos: a letra e a assinatura do códice de Coimbra sugerem tratar-se de um original muito mais que o Compêndio, que em contrapartida mais parece cópia setecentista 155. O Tratado deve pois ser considerado um original, dos meados ou da segunda metade do século XVII, dada a menção ao título ou cargo de capitão de mar e guerra. Sem pretensões a resolver questão insuficentemente documentada e estudada até agora, importa que nos detenhamos um pouco nela. O títuto ou cargo de capitão de mar e guerra (não se sabe ao certo o que significava em termos concretos de comando) aparece documentado pela primeira vez em 1644 156, atribuído a António Cabral 157 , na capitania de uma armada da índia, numa relação das armadas da índia da Biblioteca Pública de Évora 158 que nomeia da mesma maneira o comandante da armada do ano seguinte, João da Costa. Mas como acontece sempre nestes casos, as fontes contradizem-se: poucas das relações de armadas chegam a esta data, e mesmo essas não são concordes entre si. A «Notticia das Armadas que foram á índia desde o seu descobrimentos que foi no anno de 1497» confirma o que ficou dito acima para os dois capitães 159, mas uma análise destas duas listagens sugere semelhanças que podem ser devidas ao uso de uma matriz comum. Em contrapartida, quatro outras relações infirmam as anteriores. Uma, citada por C. A. Encarnação Gomes em artigo inédito 160, e a celebrada Noticia chronologica Dos 152 Henrique Alexandre da Fonseca, Crónicas de Marinha, s/l, s/ed, s/d, p. 122. Nuno Valdez dos Santos, Um Desconhecido..., p. 15. 154 BA, 46-VIII-26. 155 O códice abre com nove folhas em branco, na décima está aposto o nome de D. Luís de Almada, e o título vem no fólio 11.°. O texto encontra-se entre os fólios 12 e 41, sempre escrito apenas no recto e pela mesma mão, mas em momentos diferentes, como sugerem a variação da tinta e da densidade do texto. 156 Nuno Valdez dos Santos supôs que datasse de 1617 («A Hierarquia Naval», in Memórias da Academia de Marinha, vol. XIII, Lisboa, Academia de Marinha, 1994, n/paginado) por um documento do Arquivo Histórico Ultramarino sumariado por Maria de Lourdes Freitas Ferraz, Documentação Histórica Moçambicana, vol. I (único publicado), Lisboa, JIU, 1973, p. 23. Trata-se com certeza de um lapso por troca de informação com outro documento, já que neste, em que D. Nuno de Sotomaior se refere a uma arribada sua, o cargo ou título de capitão de mar e guerra nunca é mencionado (v. AHU, Moçambique, cx. 1, n.° 21, documento de 5.9.1617; e não documento n.° 17 de 5.11.1617, como aparece na obra em causa por evidente erro tipográfico). 157 São devidos agradecimentos a Paulo Monteiro por nos chamar a atenção para o nome deste oficial. 158 BPE, cod. CXVI/1-39. 159 BGUC, ms. 509, fl. 142. 160 Seria o 16." da série em que este autor pretendia dar a conhecer a totalidade das relações de armadas da índia, e da qual foram publicados até agora 13 títulos (servimo-nos de exemplar dactilografado gentilmente cedido pelo autor). 153 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 217 Descobrimentos de Francisco Luiz Ameno 161, dão António Cabral como capitão mor dessa armada, apesar de tudo; isto porque nas restantes duas aparece Luís Velho da Fonseca como capitão mor, e António Cabral como capitão de navio apenas, mais exactamente do galeão «S. João Baptista» 162. Situações desta natureza certificam-nos da imperiosa necessidade de se proceder a um estudo de todas as relações de armadas da índia, procurando averiguar quais copiam o quê de quais, quem as escreveu, onde e com que objectivos. É um estudo muito difícil e pejado de escolhos, porque nem o que parece óbvio deixa de poder ser verificado minuciosamente: por exemplo, quando o sobrinho de Luís de Figueiredo Falcão faz uma lista das armadas e diz que é um resumo da do tio I63, o leitor é naturalmente levado a crer nesta afirmação, mas a análise do manuscrito mostra à evidência que alguma relação copiou, de facto - mas não a do tio, seguramente 164. Sem prejuízo da valia dos estudos publicados, só um levantamento comparativo e exaustivo pode ser a chave para situações como aquela que vimos atrás. Até lá, cremos todavia poder afirmar que há uma boa possibilidade de o primeiro capitão de mar de guerra da Carreira ter sido António Cabral, e isso ajuda-nos a consolidar a ideia de o Tratado do que deve saber um bom soldado para ser bom capitão de mar e guerra deve ter sido escrito pouco depois, o que até justifica o tom pedagógico que perpassa em algumas das suas páginas. 161 162 BPE, cod. CXV/1-21,fl.88. Relação sem título na BA, cod. 49-1-51, fls. 43-133 (v. fl. 110); e «Rellação dos Capitães Mores, e os Barcos que do Reino se tem uindo a Lisboa», existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicado com breve nota introdutória de Waldir da Cunha, nos Anais da Biblioteca Nacional, vol. 112, Rio de Janeiro, 1992 [1993], pp. 9-34 (v. p. 30). 163 BNL, cod. 581. A relação não tem título e encontra-se nas páginas 33-224, segundo a numeração moderna. Antecedem-na umas «Breves reflexões» do mesmo autor sobre as rendas da coroa portuguesa. 164 y Francisco Contente Domingues, «Fontes para a história da Carreira da índia: a Relação das Armadas de Frei Luís da Natividade», in III-IVSeminários O Franciscanismo em Portugal. Actas, Lisboa, Fundação Oriente, 2000, pp. 185-204. PARTE II OS NAVIOS NO MAR CAPÍTULO I QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES 1. TIPOLOGIA DOS NAVIOS PORTUGUESES: PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO Nos Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI1, Henrique Lopes de Mendonça esboçou a primeira tentativa de estabelecimento de uma tipologia das embarcações da época. Para além do destaque dado aos navios oceânicos, o autor discutiu ainda as características e funcionalidade dos de pequeno porte, cuja importância foi igualmente decisiva na acção naval portuguesa. Foi todavia Henrique Quirino da Fonseca que procurou fazê-lo de forma sistemática, numa obra que intitulou Memórias de Arqueologia Naval Portuguesa. Este projecto ficou incompleto, pois só apareceu publicada a primeira parte 2, que se deteve no cáravo. Estão aí recenseadas 41 embarcações, por ordem alfabética das respectivas denominações, para um total de 167 prometidas na lista que abre o volume, e deixando a certeza de que muitas mais centenas de páginas seriam precisas para que o autor viesse a cumprir o seu propósito 3 . A arqueologia naval portuguesa não regista qualquer tentativa similar desde então, o que se compreende com alguma dificuldade dado o interesse de semelhante instrumento de trabalho. Para uma descrição das características básicas dos navios há que recorrer às obras de referência, com as limitações daí decorrentes: se o Dicionário de Linguagem de Marinha Antiga e Actual de Henrique Lopes de Mendonça, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, reed., Lisboa, Ministério da Marinha, 1971. Henrique Quirino da Fonseca, Memórias de Arqueologia Naval Portuguesa, 1.° vol. [único publicado], Lisboa, Tip. de J. F. Pinheiro, 1915. Essa lista patenteia um critério muito menos selectivo que o de Lopes de Mendonça; vários dos nomes nela constantes dizem respeito a navios estranhos à realidade naval portuguesa, que só terão sido pontualmente usados por navegadores portugueses - se é que alguns o foram, sequer. 222 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES Humberto Leitão 4 é sempre de consulta obrigatória - dado o número de entradas e a segurança da informação prestada 5 -, não é menos verdade que, pela sua própria natureza, dificilmente poderia ir muito longe na caracterização das embarcações. E afinal, que navios andaram no mar, na época das grandes viagens marítimas, como eram utilizados e quefinalidadesserviam? Perguntas aparentemente simples, mas às quais não é possível dar sempre a resposta desejada. O não conhecimento adequado dos meios técnicos empregues nas navegações é também consequência do facto de não se dispor ainda de uma compilação dos dados já referenciados, que ao menos pudesse servir de referência e consequentemente de ponto de partida para novas averiguações. No fundo, é um dicionário dos navios que falta, ao jeito mas em moldes diferentes do tentado por Quirino da Fonseca. Por outro lado, também não existem estudos globais sobre os quadros de acção da marinha portuguesa. Armando Saturnino Monteiro terminou há poucos anos a publicação dos oito volumes em que compendiou as batalhas e combates da marinha portuguesa6, um contributo fora do comum para o conhecimento dessa realidade, mas falta quase tudo o resto: o estudo das rotas por áreas geográficas, da construção e utilização de estaleiros e bases navais, enquanto componentes essenciais da logística da marinha, da concatenação entre navegação de comércio e de guerra, em articulação com as políticas navais (ou falta delas), analisando as suas variáveis espácio-temporais e tantos mais aspectos que importaria considerar para esse propósito. Tudo resulta na ausência de uma visão integrada da História Naval e Marítima portuguesa, seja para o período aqui considerado como para outro qualquer. Existem naturalmente excelentes trabalhos sobre cada um dos aspectos citados acima, que nos escusamos de enumerar: são suficientemente conhecidos. Mas um exemplo concreto auxiliará a explicar o que pretendemos dizer: em 1970, Avelino Teixeira da Mota publicou um artigo intitulado «As rotas marítimas no Atlântico de meados do século XV ao penúltimo quartel do século XVI» 7; onde estão, porém, os estudos similares sobre as rotas marítimas em outras paragens Humberto Leitão (com colaboração de José Vicente Lopes), Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, 2." ed., Lisboa, CEHU, 1974. Não conhecemos nenhuma crítica consistente publicada que ponha em causa a validade deste trabalho, mas é vulgar ouvir dizer aos interessados no assunto que o livro tem limitações. Tem de facto, mas a nosso ver continua a ser imprescindível, por ultrapassar notoriamente tudo o que existe de semelhante e representar, no cômputo global, um esforço de síntese assinalável. E se por vezes as definições são tiradas quase ipsis verbis de obras anteriores - o que também se compreende ser inevitável -, isso não retira o valor dicionarístico da obra, invulgar para a época, como afirmou Margarita Correia, «Para uma cooperação entre especialistas do domínio e terminólogos - o caso de dois dicionários náuticos portugueses», com. à 3." Conferência Internacional de Terminologia Marítima, Lisboa, 2003. Armando Saturnino Monteiro, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, 8 vols., Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1989-1997. Avelino Teixeira da Mota, «As rotas marítimas no Atlântico de meados do século XV ao penúltimo quartel do século XVI», Do Tempo e da História, vol. III, Lisboa, 1970, pp. 13-33. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 223 geográficas, para o mesmo período, que nos permitam uma visão global da navegação portuguesa? Este exemplo foi escolhido precisamente por este artigo não ser único no tratamento do tema. Longe disso: bastará pensar nos trabalhos já publicados sobre a Rota do Cabo, como o de António Manuel Gonçalves, com uma abordagem inovadora, decisiva para o correcto entendimento da questão 8. Mas a soma dos contributos parcelares, por muitos e bons que sejam, não substitui nem escamoteia a ausência das perspectivas de síntese. Há estudos sobre cada um dos aspectos citados, disse-se acima. Sem dúvida, mas basta desviarmo-nos um pouco dos que se integram num dos campos de eleição da historiografia dos Descobrimentos e da Expansão, a náutica e arte de navegar, para aquela afirmação já não poder ser encarada tão tranquilamente. Citando agora um exemplo pela negativa, não há investigação profunda desenvolvida sobre a vertente logística das navegações. Ausência que si só compromete a possibilidade dessa visão global. A história do navio é outro dos capítulos que não pode concorrer suficientemente para uma percepção geral da História Naval e Marítima portuguesa, mas fica por igual irremediavelmente prejudicada pela ausência de um pano de fundo referencial. A tipificação das embarcações também pode ser considerada em função do seu emprego específico, que tem lugar sobre essa realidade compósita que é o mundo naval. Faltando a perspectiva de base, falta por decorrência a compreensão envolvente dos seus aspectos particulares. O conhecimento da utilização funcional dos diversos tipos de embarcações fica assim comprometido pois não basta dizer, por exemplo, que as galés serviam para a guerra junto à costa, mas eram ineficazes no alto mar. Os tipos e características dos navios definem a sua utilização preferencial em um ou mais quadros navais específicos, mas não são classificáveis em função deles. É que há outros factores a considerar, como procurámos dizer, e por aquele caminho apenas abrir-se-ia a possibilidade de uma compreensão redutora da caracterização global pretendida. É observável, por exemplo, que o galeão teve um espaço óptimo de utilização nas armadas de vigilância e protecção da costa, mas não é menos certo que nada indica que tenha sido resultado dessa exigência específica; sabemos que fez a Carreira da índia, mas o carácter essencialmente comercial que a marcou durante o século XVI determinou a natural preponderância dos grandes navios de carga, como as naus. Por seu turno, os navios de alto bordo são em geral fruto das exigências da navegação para o Oriente, mas, mais uma vez, não deixa de ser verdade que foram as embarcações a remos que vieram a assumir aí o protagonismo em muitas acções militares navais 9. O mesmo se passou no António Manuel Gonçalves, «Estudo comparativo entre as duas viagens de Vasco da Gama para a índia (1497/87-1502», in Colóquio Vasco da Gama Os Oceanos e o Futuro. Actas, Lisboa, Escola Naval, 1999, pp. 121-127. Um estudo ilustrativo da importância destes navios: José Virgílio Pissarra, «A bastarda de D. Henrique de Meneses e a armada de remo da índia», Anais do Clube Militar Naval, vol. 128, 1998, pp. 413-423. 224 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES Norte de África, com a utilização intensiva de pequenos navios a remos para as actividades de corso e guerra, ao lado de navios de vela como a caravela redonda. Para se compreender exactamente o nível de eficácia no emprego de um bergantim é preciso conhecer o raio de acção do navio, e avaliar a medida em que pode ou não ser estendido em função dos pontos de apoio em terra; dizer que é uma embarcação adequada para o corso pouco adianta, por si só. No estado actual dos nossos conhecimentos sobre a História Naval e Marítima portuguesa há todavia que começar pelo princípio, construindo uma classificação rigorosa da tipologia dos recursos navais, capaz de se tornar num contributo importante para esse desejado quadro geral; ou primordial, porque não? Sem navios não há navegações, simplesmente. Talvez as linhas precedentes coloquem desafios a que não é possível responder a curto ou médio prazo. Mas a construção desse quadro de referência dos navios portugueses coloca dificuldades metodológicas que é preciso resolver antes de tudo o mais. Os investigadores deparam-se com múltiplas referências nas fontes documentais a nomes de navios cujas características não ressaltam de imediato (ou de todo em todo) dos textos, conquanto a sua identificação se torne imprescindível para analisar correctamente as acções navais reportadas. Esta é uma das vias privilegiadas para compreender cabalmente a História Marítima, em qualquer das suas vertentes: os sucessos das viagens de exploração geográfica, das que serviam primordialmente o interesse comercial, ou dos conflitos navais, dependem em grande medida da adequação dos meios usados para os fins pretendidos. Foi por essa razão que a caravela latina substituiu a barca e o barinel na exploração atlântica; que a nau de carga serviu melhor que qualquer outro navio para a Rota do Cabo; que o galeão assegurou parte das acções militares navais que consolidaram o controlo das rotas de comércio. Por outro lado, existe uma disparidade visível (às vezes clamorosa) entre as informações com que deparamos e o que pode efectivamente ser averiguado nas fontes. Isso já acontece com os navios que conhecemos melhor, mas torna-se mais evidente perante a quase total ausência de dados concretos relativos a muitos dos tipos de embarcações dos quais não temos amiúde muito mais que a denominação; tão pouco se sabe de alguns deles, que as hipóteses mais ou menos habilmente deduzidas de indicadores mínimos tendem a tornar-se referenciais. Certo é que as fontes não autorizam com frequência conclusões tidas habitualmente por certas. Ao investigador deparam-se ainda problemas insuspeitados quando mete ombros à tarefa de classificar os navios e embarcações portugueses dos séculos XV-XVII. É que os testemunhos documentais não são uniformes entre si, o que se deve normalmente a duas ordens de razões. Torna-se obrigatório o recurso a textos de autores que não estavam reconhecidamente a par da matéria naval, ao lado de outros que com ela eram familiares, por óbvia insuficiência destes últimos. Para citar um exemplo flagrante de dois homens cuja vida activa foi coincidente com a utilização intensiva da Os NAVIOS DO MAR OCEANO 225 caravela latina de dois mastros na exploração do Atlântico e, pouco depois, com o aparecimento da caravela redonda, a adaptação da nau a navio oceânico de longo curso, ou a emergência do galeão português, comparem-se Garcia de Resende e Duarte Pacheco Pereira: quaisquer menções a navios ou ocorrências navais nos seus escritos têm forçosamente de ser avaliados com pesos e medidas bem diferentes. Uma segunda ordem de razões tem a ver com a imprecisão terminológica que Fernando Oliveira apontou com tanta oportunidade. Não há uniformidade absoluta de tipos nem a funcionalidade dos navios pode ser tomada no sentido estrito. Um navio pode servir para várias funções ou ser adaptado consoante as circunstâncias o exigem, como o demonstra claramente a utilização de pano redondo no traquete das caravelas latinas 10. Usada esporadicamente de início, terá redundado na caravela redonda, dentro da experiência marítima portuguesa, dando com certeza lugar, entretanto, à existência de um tipo híbrido. Situações deste género (talvez mais frequentes do que possamos ser levados a crer hoje em dia) não podem deixar de aumentar a dificuldade de identificar correctamente navios e embarcações. E mesmo que essa possibilidade fosse um dado adquirido, resta-nos sempre averiguar em cada caso da acuidade dos testemunhos de que nos socorremos. A não padronização da construção naval é suficiente por si só para gerar confusões apreciáveis, ou pelo menos é lícito deduzi-lo. Alguma razão assistiria a Fernando Oliveira quando se propôs fixar no papel os preceitos gerais da arte, e no seu encalço os outros tratadistas navais ou os anónimos redactores dos regimentos gerais e especiais que procuraram garantir, afinal, que pelo menos uma parte da fábrica dq navio obedecesse a ditames mais ou menos genéricos. Posto tudo isto, o investigador depara-se a seguir com o maior de todos os obstáculos: os mesmos navios são designados de maneiras diferentes (em que a situação mais comum é a de se chamar indiferentemente nau e galeão a uma dada embarcação), dão-se nomes idênticos a navios distintos ou, pelo menos, com características muito bem diferenciadas (é o caso da caravela: no século XVI é normalmente impossível a destrinça entre referências às caravelas latinas e redondas). Soma-se-lhe um outro, o das designações genéricas como navio, que tornam escusada, por impraticável, a tarefa de procurar fazer-lhes corresponder tipologias mais ou menos definidas. Para a época em que nos situamos está ainda por determinar a medida em que um certo tipo de navio muda a denominação com o correr dos tempos (o que se atesta para períodos posteriores, como sucedeu com a fragata); mas é 10 No mastro mais próximo da proa em navios que armavam exclusivamente pano latino, a colocação de uma vela redonda permitia ganhos significativos pelo aproveitamento do vento que soprasse pela popa com alguma constância. Não há qualquer informação precisa sobre o momento em que esta mudança ocasional de velame começou a ser praticada, tornando-se depois regular, mas é óbvio supor que teve início com a simples experiência dos marinheiros do Mediterrâneo. Dispensamo-nos por completo de discutir a tese, perfeitamente insustentável, de que Cristóvão Colombo teria sido o «inventor» de tal prática. 226 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES lícito supor que estarão muito próximas desta as situações decorrentes da alteração do emprego de uma certa tipologia de um quadro naval para outro, com eventuais modificações morfológicas, por exemplo a nível do aparelho, e também de denominação, podendo manter-se entretanto o conjunto de caracteres que o identificam genericamente. Em linguagem simples isto quer dizer que o mesmo tipo de navio serve numa altura para uma coisa e noutra para outra, ou em diferentes quadros navais, podendo ou não sofrer adaptações; e é seguro que as denominações conhecidas não acompanham sempre estes casos. Da lista quase infindável de óbices à boa prossecução do estabelecimento de quadros tipológicos, ocorre por fim mencionar o aparecimento de nomes para navios que, supostamente, não eram conhecidos antes (pois nada nos garante que no fundo não resultem de alterações de pouca monta a tipologias comuns). O caso do galeão é o que melhor ilustra este aspecto, mas há outros, como o patacho, ou ainda aquelas situações que Fernando Oliveira aponta: «Poys quanto aos tempos, ha menos de quorenta annos, que nesta terra não sabião os nomes de zabra, nem lancha, e agora acostumãose. E assy como estas uierão de nouo, assy passarão outras, que jaa não lembrão, nem usão delias» n O nosso objectivo é o de identificar genericamente os navios portugueses através de notícias curtas que sintetizem os elementos conhecidos, de molde a construir um quadro de referência básico que permita caracterizar cada tipo particular de embarcação, deduzindo daí as suas funcionalidades. Consideramos como pontos de partida essenciais dois pressupostos metodológicos que importa clarificar antes de mais nada, sob pena de as páginas que se seguem poderem ser entendidas como expressão de uma perspectiva redutora, em contraste com o conjunto de informações que se pode obter na bibliografia da especialidade. Em primeiro lugar, restringimos a classificação dos navios e embarcações portugueses às tipologias que se encontram na documentação técnica, por se poder constatar que: a) sendo unanimemente reconhecido que não se conhece suficientemente a morfologia e funcionalidade dos navios portugueses dos Descobrimentos e Expansão, nem por isso os especialistas deixaram de procurar caracterizá-los recorrendo às fontes disponíveis; b) o recurso a essa diversificação das fontes, tão desejável quanto acertado em quaisquer circunstâncias, redundou neste caso particular numa avaliação uniforme dos elementos informativos que não considera a especificidade do corpus da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval. Livro da Fabrica das Nãos, BNL - Reservados, cod. 3702, p. 46. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 227 O período considerado neste trabalho foi definido em consequência do aparecimento dos primeiros documentos técnicos de arquitectura naval. Para a época anterior, a inexistência deste tipo de informações condiciona uma investigação que é obrigada a recorrer a outras soluções, procurando determinar que navios serviram e como eram. Das possibilidades desse estudo deram prova bastante os trabalhos recentes de Adolfo Silveira Martins 12 e Fernando Gomes Pedrosa 13. Das suas limitações deram conta os resultados obtidos, onde o hipotético prepondera visivelmente, por absoluta e manifesta carência de documentos técnicos. O que se pretende dizer resume-se brevemente: das caravelas latinas do século XV pouco se sabe de concreto, muito embora se tenha vindo a construir uma imagem plausível do que poderia ter sido o instrumento fundamental das explorações atlânticas, desde o livro de Lopes de Mendonça referido na abertura deste capítulo, até aos trabalhos dos autores que viemos de citar, passando pela monografia de Henrique Quirino da Fonseca, exaustiva para a época. Sobre a caravela redonda ou de armada há com certeza muito a dizer ainda, mas os planos do Livro de Traças de Carpintaria mostram um navio com onze rumos de quilha e duas cobertas, e até permitem compreender o traçado das rodas de proa e popa, bem como da caverna mestra. Não enveredamos pela reconstituição do traçado geométrico dos navios, mas dos regimentos técnicos deduzem-se as características fundamentais desta como de outras embarcações. Esta clivagem altera profundamente os parâmetros de estudo dos navios portugueses: existe um antes e um depois de 1570/1580. No capítulo seguinte tratamos sobretudo do depois, analisando os tipos de navios para os quais existem documentos técnicos e com remissão sistemática para tratados ou textos avulsos, depurando e sintetizando as informações de modo a considerar apenas o que é efectivamente possível concluir com base nesses textos, evitando a recorrência constante às hipóteses que têm tido amiúde tendência para se tornarem doutrina estabelecida - sem as evitar mas procurando não as confundir com os elementos de informação mais fiável; e é exactamente esta a segunda linha de orientação metodológica que seguimos. Os recursos navais portugueses não se esgotam aqui. Há navios para os quais não se conhecem regimentos técnicos, e é bem sabido que os Portugueses mostraram uma notável elasticidade no aproveitamento de soluções locais, como se vê tão bem no caso do Oriente, pela utilização de embarcações típicas de regiões onde se estabeleceram ou para onde navegaram, e que respondiam na perfeição às suas próprias necessidades. Dessa experiência também ficou testemunho documental, como se viu quando descrevemos o conteúdo das Coriosidades de Gonçalo de Sousa 14. A História Naval e Marítima tem aí um Adolfo Silveira Martins, A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIH-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2001. Fernando Gomes Pedrosa (coord.), História da Marinha Portuguesa. Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499, Lisboa, Academia de Marinha, 1997. V. a Parte I, capítulo V. 228 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES capítulo importante para se aplicar. Mas para a arquitectura naval temos apenas a documentação técnica portuguesa, e é de arquitectura naval que se trata aqui. 2. TEORIA E PRÁTICA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO Tanto Fernando Oliveira como João Baptista Lavanha deixaram exaradas por escrito as normas básicas do processo de construção dos navios, o primeiro em relação aos navios em geral, mas tendo em consideração os navios redondos de alto bordo, o segundo tomando como exemplo uma nau da índia de quatro cobertas. Num caso como noutro, a escolha não é difícil de compreender: a Carreira da índia percorria a mais importante e longa das rotas estabelecidas com regularidade, e simultaneamente exigia o concurso dos navios de maior dimensão e complexidade. Seguiremos estes autores numa exposição genérica das diversas etapas da construção de um navio, a partir dos preceitos da arquitectura naval 15 . Deve-se a esta passagem do articulado teórico para o trabalho do estaleiro a razão de ser de tal opção: a nosso ver, não cabe abrir um capítulo autónomo nem inserir este tema na ficha monográfica de qualquer navio (que teria de ser a nau), porque antes de tudo o mais estamos perante um problema de método. Não existem muitas diferenças na forma de entender o que os textos estipularam, quanto ao ponto de vista do processo técnico; a interpretação da maneira como a arquitectura naval impera sobre ou condiciona a construção naval é que tem dado origem a percursos historiográficos totalmente distintos uns dos outros. Constatá-lo-emos logo depois de resumido o processo da construção propriamente dito. Segundo João Baptista Lavanha, o arquitecto naval devia principiar o trabalho pelo lançamento dos planos do navio em papel, passando de seguida para a construção do modelo. Como ficou dito atrás, a definição desta sequência representa uma grande novidade face aos documentos técnicos da época, assim como tudo leva a crer que não passou disso mesmo: Lavanha determinou um procedimento que, tanto quanto é possível apurar, não correspondia à prática estabelecida. Quanto aos modelos, é o próprio a deixar entender que os mestres evitavam fazê-los, talvez pressionados pela redução de custos desejável por parte dos armadores ou contratadores. No que diz respeito aos planos, não há traço deles na documentação: é evidente que o Livro de Traças é sobretudo um livro de planos e desenhos de peças de navios, mas são mais ilustrações dos regimentos que planos para a construção de partes dos navios; são duas coisas comple- Para acompanhar a par e passo as etapas da construção do navio, propriamente dita, v. Roger Craig Smith, Vanguard of Empire: I5'h- and I6'h-century Iberian Ship Technology in the Age of Discovery, Ann Arbor, University Microfilms International, 1989, cap. IV: «Building the ship», pp. 68-199, e Luís Filipe Castro, The Pepper Wreck: a Portuguese Indiamen at the mouth of the Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University (USA), 2001, pp. 65-71. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 229 tamente diferentes, como afirmou John Dotson 16. Nos regimentos técnicos, gerais ou especiais, não há um único plano, mas apenas regras escritas. Encontramo-los apenas nas obras dos dois primeiros tratadistas, que seguramente não passaram para as mãos dos construtores navais, nem foram por eles copiados ou adoptados, neste ou noutro pormenor. Esta fase prévia de conceptualização da obra marca bem a distância que vai de Oliveira para Lavanha, separando o trabalho do técnico da realização do engenheiro. Oliveira fica-se por um nível mais imediato na aproximação concreta ao seu objecto, Lavanha conceptualiza-o antes de dar início à fase da construção. Menos atenta aos pormenores e mais genérica na descrição do processo em geral, a exposição de Oliveira torna-se mais acessível para o acompanhamento das diversas etapas da fábrica do navio. Segui-lo-emos por esse motivo e por uma outra diferença muito notória em relação a Lavanha, que deixa o Livro da Fabrica das Nãos bem mais próximo dos regimentos técnicos: é que no Livro Primeiro de Architectura Naval subentende-se que a concepção do navio fica a cargo do arquitecto naval (denominação que surge pela primeira vez em Lavanha, como também vimos), enquanto a fábrica é entregue ao construtor, muito embora o seu autor não o estabeleça explicitamente. No Livro da Fabrica das Nãos e nos regimentos é claro que quem pensa o navio é também quem o constrói ou, vistas as coisas pela inversa, o mestre construtor idealiza e dirige a execução da obra, cometida aos carpinteiros navais. Segundo Fernando Oliveira, conformemente aos regimentos técnicos, a construção do navio iniciava-se pela determinação do comprimento da quilha, a que chama «certa parte», o que quer dizer a unidade de referência a partir da qual se tiravam todas as outras: «Esta certa parte na fabrica das nãos de carrega, he a quilha. A esta se referem a largura, e altura da nao, e o fundo, e graminhos, e lançamentos, e boca, e outras partes principaes de que todas as mays pendem. Per esta se comprende camanha, e de que porte ha de ser a nao: por que sabida a longura da quilha, sabese quão larga, e quão alta ha de ser, e quanto ha de lançar para proa, e para popa, e o que pode leuar pouco mays ou menos. E per esta uia tornando ao reues, se sabe camanha hão de lançar a quilha, quando o senhorio diz, que lhe facão a sua nao de tantos toneys. Por que os senhorios, que não sabem o modo per onde procede esta fabrica, pedem o tamanho das nãos e não o das quilhas. Por tanto quando pedem, ou mandão que lhe facão hua nao de seyscentos toneys, sabem os carpenteyros, que hão de lançar a quilha de dezoyto rumos, dos quaes resulta húa nao daquelle porte» 17. A primeira frase deste trecho não deixa de ser curiosa, porque o preceito era aplicável a todos os navios (inclusivamente os de remo), e não apenas às «naus de carrega». É de supor que Oliveira quisesse enfatizar que trataria da 17 Escusamo-nos de repetir as citações ou referências à obra de Lavanha e aos comentários de John Dotson, uma vez que este assunto já foi tratado na Parte I, capítulo III. D. 69-70. Fernando Oliveira, ov. op. cit.. cit., p. 230 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES construção deste tipo de navio em particular, muito embora derivasse depois para aspectos laterais ao seu objectivo primeiro, como fez sempre em tudo o que escreveu. Definido o comprimento da quilha, em função da tonelagem pretendida, a construção do navio iniciava-se por aí: a quilha, de preferência de uma só peça, era colocada no chão, sobre as atacadas I8, seguindo-se os lançamentos de proa e popa, que faziam com que o comprimento total dessa estrutura multiplicasse o da quilha uma vez e meia, mais ou menos. O cadaste rematava o navio pela popa, ligado à quilha por um conjunto de peças cuja rigidez era fundamental para assegurar o bom sucesso da construção e, posteriormente, da navegação (era o couce de popa), e reclinava-se segundo uma regra que variava de construtor para construtor. Oliveira é muito claro nesta explicação, embora assuma que preconiza uma regra ligeiramente diferente do que era costume. Aliás, das várias alternativas que se costumavam seguir: «O lançamento da popa não he tamanho, nem se faz em roda, como o da proa; mas lança o codaste dereyto, encostando o para trás. Codaste he aquelle pao grosso, que se aleuanta pollo meyo da popa a cima, da quilha atee o gio. O qual também como a roda da proa, he de ser grosso, e forte, e da mesma madeyra de que he a quilha: por que assy como a quilha he alicece desta fabrica, também o codaste he como cunhal delia; e sostenta munta parte da nao, em especial o gouernalho, no qual carrega munta força dos mares... Eu ordeno este lançamento per esta arte, que agora direy, mays certa, e mays fácil. Aleuanto sobre a quilha o codaste a prumo, e ponho o compasso no canto que elle faz co a quilha, que ha de ser canto dereyto, e lanço sobre este canto húa quarta de circolo do codaste atee a quilha, e parto esta quarta em sete partes yguaes; e cada hua destas partes he o lançamento, que o codaste deue lançar para trás: o qual uem a ser quasi o mesmo, que de quatro e meyo, que he o mays acostumado» 19. O leme articulava-se com o cadaste por um sistema de machos-fêmeas, devendo rodar perfeitamente sem passar água entre eles. Era rematado pelo gio, uma grossa peça de madeira que se lhe sobrepunha perpendicularmente e travejava o painel de popa. O lançamento da proa era feito em roda, recorrendo a cálculos geométricos um pouco mais complexos. Mais uma vez, existiam soluções diferentes para determinar este encurvamento para vante e remate do navio. Neste caso, e no do lançamento do cadaste se acaso fosse seguido um método geométrico igual ou similar ao preconizado por Oliveira, o mestre era obrigado a recorrer ao papel, Paralelepípedos de madeira dispostos a intervalos regulares no estaleiro, sobre os quais assentava a quilha durante a construção do casco. Oliveira não se lhes refere, ao contrário de Lavanha, que as desenha e estipula que devem ter quatro fiadas de paus, com quatro e seis peças de madeira alternadas e cruzadas (João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p. 43). As atacadas feitas para a reconstrução da fragata «D. Fernando II e Glória», concluída em 1998 nos estaleiros Riamarine de Aveiro, respeitavam a regra de Lavanha. Fernando Oliveira, op. cit., pp. 81-82. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 231 compasso e esquadro, para fazer o desenho antes da execução, tal como aparece estipulado na «Regra geral para Nauios de alto bordo de setenta ate trezentas toneladas». Paradoxalmente, o anónimo redactor da regra afirma que se devia proceder assim no traçado da roda de proa do navio de oitenta tonéis, mas não nos outros, sendo certo que a tarefa é tanto mais exigente quanto maior é o tamanho do navio 20. Depois da quilha e dos lançamentos, chegava a altura de colocar a caverna mestra, que decidia o desenho do casco do navio e era uma das peças estruturais mais importantes. A partir da colocação da mestra determinava-se a de todas as outras até às almogamas, quer dizer, as últimas cavernas (ou balizas) cuja colocação sobre a quilha era calculada por regras. O desenho da mestra e cálculo do ponto da quilha sobre o qual era assente, variava, uma vez mais, consoante o construtor. Cabia-lhe ainda decidir dos tipos de réguas graduadas (graminhos) que iria usar para obter a redução progressiva da largura das cavernas, de modo a que a sua colocação progressiva fosse definindo o estreitamento das linhas do casco para vante e para ré. Segundo Fernando Oliveira, as cavernas deviam ser colocadas com um rumo de intervalo, o que quer dizer que haveria dezoito numa nau com idêntico número de rumos de quilha. Oliveira referia-se sem dúvida àquelas que determinavam a estrutura do navio, já que os espaços entre cavernas tinham de ser igualmente preenchidos: era impossível que o forro de tabuado do casco pudesse ser pregado apenas sobre estas cavernas colocadas com um metro e meio de intervalo, e garantisse alguma solidez. Quilha, lançamentos e cavernas constituíam o esqueleto do navio. Este processo de construção, não por acaso, designa-se em inglês por skeleton-first, ou carvel-built system. Em português é a junção pelos topos das madeiras do forro que origina a expressão forro liso, por oposição ao forro trincado em que as placas de madeira são justapostas como as telhas, com um rebordo de uma sobre outra. Retomando a primeira das designações inglesas, isto significa que se contrói primeiro o «esqueleto», que é em seguida forrado pelas tábuas (com mais de um forro em navios preparados para viagens excepcionalmente duras, como as da Rota do Cabo). A técnica, característica do Sul da Europa e do Mediterrâneo em geral, opõe-se à do shéll-first, ou forro trincado, na qual, como o próprio nome o indica, a construção do casco precede a colocação das cavernas, que são assim peças de reforço em vez de estruturais. Mais comum no Norte da Europa, a técnica do forro trincado era conhecida em toda a orla marítima europeia, mas no Sul serviu sobretudo para as embarcações mais pequenas, enquanto a Norte era usada em todos os tipos de construção. As evidentes limitações do shéll-first, por falta de garantia de rigidez estrutural, levaram a que a técnica oriunda do Sul fosse geralmente adoptada e nos inícios do século XVI já era comum em toda a parte 21. Em Portugal não se conheceu outra para a construção de navios 20 21 V. o d o c u m e n t o A. 1. B r a d L o e w e n , «Codo, carvel, m o u l d a n d r i b b a n d : t h e a r c h a e l o g y of s h i p s , 1450-1620», Vives. Revue Québécoise d'Archéologie Historique, n . c s 6-7, M o n t r e a l , 1994, p . 11. Mémoires 232 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES Fig. 9 - Técnicas de construção do casco de um navio: forro trincado, com justaposição das extremidades das tábuas (em cima), e forro liso, com encosto das tábuas pelo topo (desenhos de Ian Friel). Os NAVIOS DO M A R OCEANO 233 oceânicos; Fernando Oliveira não faz qualquer comentário a tal propósito, porque não se punha sequer em causa que as naus pudessem ser construídas de outro modo. Esta técnica é também conhecida por carvel method, além de carvel-built system. Nos estudos de origem anglo-saxónica é ainda muito frequente a expressão carvel planking, para designar o método do forro liso. Já foi defendida a ideia de que estas expressões derivam da caravela portuguesa 22 , ou seja, que os navegadores do Norte e Noroeste da Europa passaram a identificá-la com os primeiros navios que teriam visto serem construídos por este processo. Sabe-se que houve Portugueses a construir navios na Flandres para o duque Filipe o Bom, e que em 1438 construíram uma caravela, a que se seguiram mais, sendo os trabalhos acompanhados pela duquesa Isabel 23 ; portanto ainda antes do aparecimento da caravela latina de dois mastros nas navegações portuguesas ao longo da costa africana. Serão precisos todavia mais dados para garantir que efectivamente a expressão inglesa derive do nome do navio português. Voltando à nau. Com a colocação das peças estruturais do esqueleto do navio fica concluída uma primeira fase da construção. Mas o mestre construtor é logo chamado a intervir: «Chegamos ao mays duuydoso de toda esta fabrica: por que não tem certas regras per onde se gouerne: isto he, o aleuantar do liame do fundo atee a boca. Na qual parte os mestres desta obra tem liberdade para mostrar suas habilidades; e nisto podem fazer boa obra, se souberem. Isto he o que escondem, e guardão para sy soos, e são nisto tão auarentos, que o não querem ensinar, nem a seus filhos» 24. Esta passagem é uma das mais importantes do Livro da Fabrica das Nãos e, porque não dizê-lo, de toda a documentação técnica portuguesa. Temos vindo a repetir insistentemente que uma boa parte da fábrica das naus ficava ao arbítrio dos construtores. As regras ainda vão mais além desta primeira fase que acompanhámos sumariamente, embora nem Oliveira nem Lavanha tenham acabado os seus navios, por assim dizer. Mas nos outros regimentos encontram-se determinadas as medidas para a construção do casco até à primeira coberta, embora com escassas indicações sobre os procedimentos. Todavia, fica muita coisa por fazer, nomeadamente a erecção dos castelos de popa e proa. Compreende-se facilmente que a morfologia do navio e as suas qualidades marinheiras dependiam em muito da maneira como os mestres construíam as superestruturas, para o que existem nos documentos algumas indicações 22 23 24 João Vidago, «A 'Caravela' e a expressão inglesa 'Carvel-Built'», Anais do Clube Militar Naval, vol. 108, 1978, pp. 239-244. Jacques Paviot publicou vários artigos com estas notícias. Por todos v. o seu livro Portugal et Bourgnone au XVe siècle, Lisboa-Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian-CNCDP, 1995, pp. 67-76 e os documentos respectivos. Fernando Oliveira, op. cit., p. 108. 234 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES de medidas, por exemplo da tolda e do chapitéu; mas nada que se compare às instruções para a fase anterior, não dispensando, portanto, uma larga margem de decisão do mestre 25 . Fernando Oliveira acrescenta um dado importante: o mestre decidia também o levantamente do liame, do fundo até à boca, e todos os profissionais do ofício rodeavam de grande segredo a maneira de o fazer. Importa nesta altura esclarecer uma confusão terminológica frequente. A palavra caverna ocorre tanto nos documentos como nos textos historiográficos para designar aquilo que é na verdade a baliza, ou seja, a peça de madeira em forma de 'U' que assenta sobre a quilha e constitui parte da «ossatura» do navio. Para exemplificar com a imagem do próprio Fernando Oliveira, a quilha seria a espinha e as balizas as costelas. A baliza divide-se em três partes: caverna, braço e apostura, ou haste, como ocorre em Oliveira. No sentido estrito, caverna é a peça de baixo, posta a direito sobre a quilha na qual assenta. O ponto em que começa a curvar para cima chama-se côvado, e aí começa o braço. A palavra caverna tem por isso um significado próprio que não é equivalente ao sentido que se toma por facilidade de expressão, talvez por decorrência de ser a parte mais importante da baliza, passando a designá-la por extensão. Um hábito que se tornou confuso, sem dúvida, mas o certo é que se encontra a expressão «caverna mestra» com muita frequência, e quando acompanhada por um desenho é da baliza que se trata. Acontece assim, por exemplo, com a figura 8 do Livro da Fabrica das Nãos, que leva por título «Figura dos braços, e hastes das cauernas mestras, e rol delias». Aquilo que Oliveira diz na passagem da sua obra de onde extractámos a passagem citada acima é que as regras só explicavam a colocação da caverna propriamente dita. O prolongamento a partir do côvado ficaria integralmente por conta do mestre, o quer quer dizer que este decidia da forma do casco, em última análise. Mas há regimentos que são mais completos, nomeadamente no Livro de Traças de Carpintaria, a partiu do qual Pimentel Barata estudou a recontituição geométrica do traçado da mestra por comparação com a regra dada por Lavanha 26. Fica por explicar o sentido exacto da frase de Oliveira, à qual tem de se dar o relevo devido neste lugar. A leitura atenta dos tratados e regimentos técnicos de arquitectura naval deixa claro que o navio podia ser construído até ao convés (a primeira coberta) seguindo regras estipuladas, mas a partir daí tudo dependia do arbítrio do mestre. A fábrica dos navios, até à época da tratadística e incluindo-a, é essencialmente empírica, no sentido em que as mais rigorosas das regras deixavam o remate da obra entregue a um critério de execução que decorria em absoluto da 25 26 Há um documento de Vasco Fernandes César com indicações sobre a construção dos castelos, mas sem ir mais além do que aparece nos poucos regimentos que o referem: AHU, Reino, cx. 38, documento de 18.5.1623. João da Gama Pimentel Barata, «O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-80 a 1640», Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, Lisboa, IN-CM, 1989, pp. 172-190. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 235 prática empírica. O resultado final tinha que o reflectir. Nestas circunstâncias, compreende-se melhor o que queria dizer Fernando Oliveira quando afirmava, num trecho longo que já citámos no capítulo II da primeira parte mas é imperioso repetir aqui, que no fundo ninguém sabia bem o que esperar como resultado final da construção de um navio: «posto que tenha regras por onde se ha de gouernar no principal, nas meudezas, e partes em que se comete ao entendimento dos mestres, tem tanta uariedade, que quasi he infinita: por que não abasta ser tanta como são os mestres, conforme ao prouerbio uulgar, que diz, quantas são as cabeças tantos são os sentidos; mas nem os mesmos mestres se conformão consigo mesmos: por que muntas uezes acontece, hum mestre fazer dous nauios juntamente em hum tempo, em hum uaradouro, a par hum do outro, da mesma madeyra, com as mesmas medidas, e do mesmo tamanho, e sair hum milhor que outro; e não soomente, hum bo e outro milhor, mas hum munto bo, e outro munto ruym: quero dizer, que hú nauega munto bem, e outro nauega munto mal, sem o mestre entender o por que disto» 27. Num estudo publicado em 1975, Pimentel Barata defendeu a existência de uma junta técnica em funções desde o tempo do Infante D. Henrique, que garantiu a constância do traçado dos navios portugueses durante dois séculos 28. Enfim, um conselho cuja actividade precedeu a da Junta das Fábricas, documentada a partir de 1623, e que se teria mantido secreta durante todo esse tempo. Esta ideia é afirmada ao arrepio de toda e qualquer evidência documental, podendo ser tomada como suporte ou, por sua vez, basear-se em outras teorias de carácter similar, como a da política de sigilo ou de segredo, defendida por Jaime Cortesão até às últimas consequências 29. Sintomaticamente, o próprio autor que a propôs acabou por se embaraçar nos argumentos invocados. O primeiro foi a existência de uma tabela para a construção de navios por classes de tonelagem, definidas de 100 em 100 ou 50 em 50 tonéis, com tamanhos de quilha correspondentes. Esta suposta tabela é explicada num estudo anterior, do qual respigamos três frases de três parágrafos consecutivos: «havia uma classificação dos navios por comprimento de quilha e correspondente tonelagem... O estudo desta tabela levou-nos à conclusão de que foram formadas classes de tonelagem, por centenas e meias centenas [de tonéis]... Parece, porém, ter havido ainda outra classificação, diferente da que figura na citada tabela» 30. 27 28 29 30 Fernando Oliveira, op. cit., pp. 49-50. João da Gama Pimentel Barata, «A navegação à vela no litoral brasileiro. Parte I: Os Navios», Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, Lisboa, IN-CM, 1989, pp. 203-302. V. as pp. 209-210 sobre a junta. Para uma síntese das perspectivas historiográficas sobre o sigilo v. Francisco Contente Domingues, «A política de sigilo e as navegações portuguesas no Atlântico», Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. XLV, Angra do Heroísmo 1987, pp. 189-220. João da Gama Pimentel Barata, «O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-80 a 1640», p. 161. 236 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES Frases fora dos contextos, é verdade, ainda assim suficientes para certificar a afirmação da existência de uma tabela geral, que afinal não era única. Pimentel Barata, investigador probo e conscencioso, não só retroprojectou quase dois séculos a actividade da suposta junta técnica, a partir da Junta das Fábricas 31, como fez exactamente o mesmo com a citada tabela: conquanto os documentos técnicos não se refiram a navios redondos com mais de 600 tonéis, a tabela que pressupôs ter existido (»a tabela por nós deduzida») vai dos 300 aos 1500 tonéis, antes de 158032. A simples ideia de que uma junta técnica com aquele perfil pudesse ter trabalhado durante quase dois séculos, no mais profundo secretismo, sem que haja a mínima notícia a seu respeito, é simplesmente insustentável e passa muito além do patamar que delimita o valor da hipótese na construção do discurso científico. De navios de 1500 tonéis, antes de 1580, não há também qualquer espécie de suspeita de que pudessem ter existido. E, sobretudo, há uma questão fundamental para resolver: se não há um único documento técnico anterior a 1580 que tenha chegado até nós (com a excepção da Ars náutica, que não releva para o caso), como é possível afirmar a «constância da traça» desde os meados do século XV até ao último quartel do século XVI? O que está em causa, no fundo, é um problema bem diferente: reside na projecção para os séculos XV e XVI de uma mentalidade cimentada no rigor técnico característico dos nossos dias, que ressuma na obra de muitos autores, e apenas se destaca na versão de Pimentel Barata pela maior consistência da sua argumentação, ao lado da que normalmente se invoca para justificar juízos deste tipo. A análise da documentação técnica não permite suportar ideias desta natureza, independentemente do facto de ser certo que havia regras gerais e procedimentos comuns aos mestres construtores. Sobre isso não resta qualquer dúvida (afinal, há regimentos gerais), mas daí a afirmar a organização padronizada da arquitectura naval vai um passo enorme. Se assim fosse, se essa organização existisse, dois textos há que não fariam qualquer espécie de sentido, cuja razão de ser seria quase incompreensível: o Livro da Fabrica das Nãos e o Livro Primeiro da Architectura Naval. 3. UNIDADES DE MEDIDA E DE ARQUEIO A medida base da arquitectura e construção naval era o rumo, a partir do qual se regulava toda a construção dos navios de grande porte. Para os restantes, era usada a goa, igual a meio rumo. Vejamos a listagem das medidas mais frequentes com as respectivas equivalências no sistema métrico decimal: 31 32 O autor não o afirma directamente, mas pensamos que esta ideia decorre da celebrada «Junta de Matemáticos» ao serviço de D. João II, tão cara aos defensores do sigilo, teoria que Pimentel Barata perfilhava. Idem, ibidem, p. 163. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 237 Rumo - l,5m Goa — 0,75m Palmo de goa - 0,25m Palmo comum, redondo, craveiro, de vara - 0,22m Talha (altura do tonel) - 1 rumo Párea (largura máxima do tonel) - 4 palmos de goa. Fernando Oliveira explicou melhor que ninguém estas medidas e a sua raiz antropomórfica, como poderemos ver pelos trechos seleccionados do capítulo oitavo do Livro da Fabrica das Nãos 33 : «Por tanto, para que esta lectura seja a todos fácil, quero aqui declarar algúas palauras usadas nesta fabrica... Húa das que agora uem aa mão, he Rumo, de que acima se fez menção, dizendo que a quilha ha de ter tantos rumos... alem de ser uocabulo próprio da arte da nauegação, tem nella dous significados deferentes... Ho outro he este, que aqui tem na fabrica das nãos, onde significa espaço de seys palmos, tomados ao longo da nao, que he espaço em que se pode alojar hum tonel» (72) «os palmos não são todos yguaes, quero também dizer, quantas maneyras ha de palmos, e qual delles serue nesta fabrica. As mays acostumadas são três: húa da geometria, que tem quatro dedos atrauessados, e cada dedo quatro grãos de ceuada. Outra he palmo commum, a que algús chamão redondo, que he quanto alcança toda a mão do homem estendida, desda ponta do dedo mays pequeno, atee a cabeça do polegar. A terceyra he mayor, por que alem de estender toda a mão, como dixe, tem mays, que uira o dedo polegar de costas atee a premeyra junta. Este se chama palmo de goa, e por elle se medem os rumos, e goas, e toda esta nossa fabrica» (73) «Do que chamamos de goa usão os nossos carpenteyros; e formão co elle duas outras medidas mayores: húa he o rumo, de que jaa fica dicto, outra he goa: a qual tem três palmos destes... Co esta goa acostumão medir as galees, e nauios pequenos, e barcos, por que he mays pequena que o rumo» (73-74) «Finalmente o rumo he medida dhum tonel em comprido; e assy o usão os tanoeyros desta terra, polia marca da camará e regimento delia; e em largo no meyo onde tem a mayor largura o tonel tem quatro palmos destes de goa» (74). O método de cálculo destas medidas evidencia o seu carácter indicativo, se considerarmos a conversão para o sistema métrico decimal. Não havia quaisquer medidas de referência padronizadas - a unidade metro (a décima milionésima parte de um quarto de meridiano terrestre, na sua definição primitiva), resulta de um decreto francês de 12 de Junho de 1799, e só foi aceite pelo concerto das nações em 1870-1872 34 . Por outro lado, as vantagens da antropometria, sendo 33 34 Como já foi feito em ocasião anterior, nofimde cada citação vem a página do manuscrito em que se encontra o texto, para evitar a constante aposição de notas de rodapé. Witold Kula, Las medidas y los hombres, trad. d e Witold Kuss, Madrid, Siglo XXI, 1980, p . 156. 238 CAPÍTULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES a primeira o reconhecimento universal, anulavam as desvantagens, consistindo a maior delas na perda de um rigor que pouco necessário seria. Assistiu a nosso ver toda a razão a Henrique Quirino da Fonseca, quando propôs as medidas de conversão médias que se apontaram acima 35 . A documentação exemplifica suficientemente que na própria época as unidades de medida para a construção naval podiam ter um carácter meramente indicativo. «Palmos esforçados» e «palmos escassos», por exemplo, aparecerem nos regimentos para a construção de embarcações de pequeno porte, para as quais seria até mais fácil assegurar medições rigorosas - tanto quanto o poderiam ser, naturalmente. O trabalho directo sobre resíduos materiais tem permitido aos arqueólogos subaquáticos precisar um pouco melhor estas medidas. Filipe Castro historiou sucintamente as tentativas de padronização das medidas desde D. João II, em Portugal, para chegar a valores como a equivalência do rumo a l,54m, do palmo de goa a 25,67cm, e da párea a l,027m 36 . Procedimento idêntico ao de Brad Loewen, que partiu da análise do mesmo tipo de materiais, e chegando a resultados praticamente idênticos a Pimentel Barata, com diferenças milimétrias: segundo este último autor, o valor do palmo de goa é de 25,6 cm (25,7 para Filipe Castro, arredondando à mesma casa decimal), o rumo vale também 1,54m - Pimentel Barata escreve l,540m), a párea l,026m 37 ; estas pequeníssimas diferenças geram uma dissemelhança milimétrica no cálculo da capacidade do tonel, segundo estes autores: 1,275 e l,273m3, respectivamente 38 . Este problema tem preocupado muitos autores, portugueses e não só, que seria impossível compendiar aqui, comparando medidas e processos de cálculo 39 - os quais, diga-se de passagem, são muitas vezes omitidos. Todos procurando o maior rigor possível na determinação dos valores das medidas lineares e de volume. Esta é, quanto a nós, uma falsa questão. Em primeiro lugar, porque esse rigor não existia na época, por evidente falta quer de utilidade, quer de capacidade tecnológica de definir padrões de medida e aplicá-los rigorosamente. Não existiam instrumentos precisos, nem havia possibilidade de obter peças de madeira com cortes rigorosamente iguais. E seria inútil: dois tonéis exactamente iguais só poderiam resultar do acaso, no século XVI, olhadas as técnicas 35 36 37 38 39 Henrique Quirino da Fonseca, «O problema das tonelagens e formas de querena dos navios de Vasco da Gama», Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras, vol. I, 1935, pp. 297-346. Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck: a Portuguese Indiamen at the mouth ofthe Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University (USA), 2001, Ap. A: «Tonnage and Systems of Units», pp. 287-292. João da Gama Pimentel Barata, «O 'Livro Primeiro de Architectura Naval' de João Baptista Lavanha. Estudo e transcrição do mais notável manuscrito de construção naval portuguesa do século XVI e princípio do XVII», Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, IN-CM, 1989, p. 192. Pimentel Barata indica 1268 1, mas o valor correcto obtido a partir dos números que o próprio autor dá é o que escrevemos no texto. Por exemplo Henrique Alexandre da Fonseca, Contribuição para o Estudo das Características das Naus e Galeões dos Séculos XVI e XVII. Ordenações Filipinas de 1607 e 1613, Lisboa, Academia de Marinha, 1992, dá para o valor do tonel l,536m (p. 3). Os NAVIOS DO M A R OCEANO 239 de fabrico, os instrumentos e a matéria prima. E que diferença faria um tonel ter mais meio centímetro que outro? Da mesma forma seria impossível cortar as peças de madeira para a fábrica do navio de uma forma estandardizada. Mais uma vez, o contrário seria inútil. Há ainda duas objecções de fundo a apontar: em primeiro lugar, o próprio teor dos documentos técnicos. Como se viu acima - e Fernando Oliveira é um exemplo, embora o melhor, mas não é o único -, as unidades de medida têm um referencial antropomórfico, e estas fontes não autorizam - repita-se: não autorizam de forma nenhuma - que delas se retirem valores tão rigorosos quanto os normalmente citados. É evidentemente lícito obtê-los a partir dos resíduos materiais, em e para casos concretos, mas isso não permite deduzir valores padrão de uso uniforme. Há que distinguir claramente duas situações: que os valores padrão existiam, está fora de dúvida (afinal, é disso que tratam os tratados de arquitectura naval), que fossem rigorosos ao ponto de se pretender calcular a sua conversão ao milímetro, é ignorar o circunstancialismo concreto do tempo em causa. Por outro lado, estando fora de dúvida que se pretenderam regularizar procedimentos (do que a legislação filipina dá bom exemplo), que isso fosse possível, que tivesse sido praticado, é coisa completamente diferente, e pretendê-lo significa o desconhecimento das formas de organização social do trabalho nas sociedades como a do Portugal dos séculos XVI e XVII. O que está em causa não é um problema de cálculo, é um problema do quadro mental que enforma um determinado tipo de possibilidade. Este rigor milimétrico não cabe na percepção do Mundo da época, seja na grande ou na pequena escala, independentemente de haver ou não instrumentação e capacidade tecnológica para chegar a ele (e não havia). Em suma, não é um problema de Arqueologia Naval, é um problema de História das Mentalidades. A arqueação dos navios era calculada de forma empírica, também e pelas mesmas razões, e correspondia à capadidade de transporte de um determinado número de tonéis. Leonor Freire Costa, em páginas que resumem o que se sabe sobre o assunto, documenta situações em que o arqueio foi calculado pelo recurso a arcos de tonel e pipa 40. Considerava-se todo o espaço abaixo da coberta, mas só esse, quando não cabiam tonéis preenchiam-se os vazios com pipas, sendo duas pipas iguais a um tonel; não se usavam unidades de medida inferiores. Tonelada e tonel eram portanto equivalentes, como os documentos ilustram a cada passo: «queremos sublinhar a utilização indiferenciada dos termos tonel e tonelada. Quer um quer outro têm o mesmo contexto. Identificam-se. Traduzem uma medida de capacidade, volumétrica, base de um cálculo que aferia o volume dos espaços fechados no navio» 41. Como o método de cálculo era pouco rigoroso, os resultados obtidos por pessoas diferentes num mesmo 40 41 Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimonia Histórica, 1997, pp. 59-87. Idem, ibidem, p. 67. 240 CAPITULO I: QUESTÕES DE MÉTODO NA CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS NAVIOS PORTUGUESES navio eram também diversos 42. Por isso os técnicos e os tratadistas procuraram determinar fórmulas que dessem a tonelagem dos navios sem necessidade de recorrer à medida directa. Fernando Oliveira foi um deles, logo no seguimento dos passos que citámos acima, mas sem sucesso, como foi usual. O problema tardaria a ser resolvido, e dependia de uma capacidade de padronizar o conjunto da construção, unidades de medida e processos de cálculo, de que a época evidentemente não dispunha. 42 Como a tonelagem era relevante para efeitos fiscais, quer para o pagamento de impostos quer para a obtenção de benefícios, a frequente oposição dos interesses do armador e da Coroa podia favorecer diferentes medições, consoante o interesse de quem as fazia. CAPÍTULO II NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES Os nomes das especias, ou maneyras dos nauios, e barcos, assy dhum género, como do outro, são quasi incomprensiueys: assy por serem muntos, como polia munta mudança que fazem de tempo em tempo, e de terra em terra. ' A tradicional divisão dos navios em embarcações de vela e de remo é suficientemente operativa quando se têm em mira quer as principais diferenças estruturais entre ambos, quer a distinção funcional, que em boa parte decorre das soluções técnicas adoptadas em função das exigências específicas do modo de propulsão: num caso a energia eólica, no outro a força humana. Em termos muito genéricos o navio de vela é mais bojudo e tem uma relação entre a boca e o comprimento de 1:3, dispõe de muito maior espaço de armazenamento para mercadorias, para cujo transporte beneficia ainda de uma razão suficiente entre tripulantes e carga. O número dos primeiros e as suas exigências de abastecimento não ocupam senão uma pequena parte do espaço disponível. A elevada superfície vélica atinge a eficiência adequada com vento predominante pela popa, o que pressupõe, em condições óptimas, a navegação por rotas conhecidas, de curto ou longo curso. Na essência um navio mercante, portanto 2 . 1 2 Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, BNL - Reservados, cod. 3702, p. 46. Sobre as origens e características gerais deste tipo de navios existe uma bibliografia abundantíssima, de qual podemos destacar três títulos, cada um por razões diferentes: Filipe Castro fez uma breve mas muito clara e informada introdução ao tema em A Nau de Portugal. Os navios da conquista do Império do Oriente, Lisboa, Prefácio, 2003, pp. 39-46; Basil Greenhill (Selected and arranged by), The Evolution ofthe Sailing Ship 1250-1580, Londres, Conway Maritime Press, 1995, apresenta uma série de artigos extraídos da revista Mariners Mirror que permite acom- 242 CAPITULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES O navio com propulsão rémica é, ao contrário do anterior, de baixo bordo, quer dizer, o bordo do navio tem de estar suficientemente próximo da linha de água para poder ser movido pelos remos que constituem a sua principal força propulsora. Dispõe normalmente de velas, tal como os navios redondos (os navios à vela) mais pequenos podem dispor de remos, mas apenas como meios auxiliares de propulsão. O que prevalece no navio de remo é a agilidade de manobra, a função auto motora que o torna independente do regime de ventos. Tudo isto só pode ser conseguido pela presença a bordo de um grande número de remadores - em relação à tonelagem -, deixando muito pouco espaço livre para além do necessário ao transporte das vitualhas para alimento da tripulação e da chusma. Os navios a remos são desde a Antiguidade navios de guerra por excelência, pela sua óbvia inutilidade como navios de transporte em larga escala, utilizáveis de preferência em mares fechados ou junto à costa, dado tanto a sua falta de autonomia como a configuração morfológica - o oposto dos de vela. Esta simplificação omite múltiplas situações particulares: navios redondos preparados para a guerra, como surgem na época de que tratamos, ou galés empregues no comércio são apenas algumas delas, como as páginas seguintes ilustram. Mas as simplificações têm vantagens quando é preciso depurar os pormenores e reter apenas o essencial, e o essencial resume-se assim, como se faz hoje e sempre fizeram os tratadistas da matéria naval. A realidade marítima e naval portuguesa não se esgota aqui. Os sucessos e os insucessos dos navios portugueses tiveram outro tipo de agentes, que a dicotomia em causa omite, ou no mínimo não deixa perceber na sua especificidade própria: referimo-nos ao que designamos à frente por embarcações auxiliares, englobando o grande número de pequenas embarcações de suporte aos grandes navios, e que ao lado deles cumpriam múltiplas funções. Um olhar mais atento ao que de facto se passou deixa entender que o comércio e a guerra tinham outros agentes, de acção localizada mas nem por isso menos importante. Talvez o caso português seja exemplar sob este ponto de vista, quando considerado o período que aqui interessa, ou talvez não; certo é que a importância desta miríade de embarcações que se viam por todo o lado, desempenhando missões de toda a ordem, tende a ficar na sombra projectada pelos imponentes navios de comércio e de guerra que asseguravam as rotas interoceânicas e figuravam na primeira linha de batalha. A divisão em três tipos de embarcações, de vela, de remo e auxiliares3, impôs-se como uma opção óbvia que garante aos últimos o lugar devido no quadro naval português, justificável ainda pelo invulgar número de regimentos que surgem no corpus da documentação técnica. panhar em parte a perspectivação historiográfica da matéria; e como obra de referência actual, Conways History of the Ship. Cogs, Camvels and Galkons. The Sailing Ship 1000-1650, Editor: Robert Gardiner, Consultant Editor: Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994. Englobam-se neste subcapítulo os escaleres dos navios de maior porte, além de um designação genérica. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 1. 243 NAVIOS DE VELA 1.1. Nau Com o regresso de Bartolomeu Dias a Lisboa chegou a garantia da existência da passagem marítima do Atlântico para o Índico; mas veio também a certeza da insuficiência dos meios técnicos empregues até então. Do ponto de vista da arte de navegar, a náutica quatrocentista portuguesa provara que tinha chegado a um ponto de suficiência apreciável no tocante ao domínio dos condicionalismos físicos da navegação atlântica. Outro tanto não se podia dizer das embarcações. Muito embora tivesse representado um importante passo em frente quanto à volumetria e qualidades de navio veleiro para viagens de longa distância, em relação às pequenas embarcações empregues nos primeiros descobrimentos, a caravela latina de dois mastros chegava ao limite final da sua utilidade enquanto navio oceânico de exploração com essa viagem de Bartolomeu Dias. Para ir mais longe requeriam-se outros meios, e disso mesmo deu exemplar testemunho Gaspar Correia, em passo citado amiúde que importa relembrar neste contexto. «ElRey Dom João, com seu grande desejo, falou com hum Janinfante homem estrangeiro tratante, que muitas vezes vinha a Lisboa, que muito sabia d'arte de nauegar, e fez com ele concerto que lhe daria nauios e gente, e todo o necessário sem elle gastar mais que o trabalho, e que lhe fosse correr a costa de Benim... E de todo bem concertado se partio... e tanto andou até que a costa foi voltando pêra o mar, achando os ventos contrários, e aporfiando em voltas, ora pêra terra, ora pêra o mar, com grandes temporaes, e tão grandes mares que lhe comião os nauios; e quando vio que os ventos erão geraes, sem nunqua fazerem mudança, auendo quatro mezes que aly andauão voltando ao mar, e a terra, e que indo pêra o mar achaua os mares tão grandes que os não podia nauegar com as carauelas... arribou, e se tornou a ElRey, e lhe deu conta da sua viagem e dixando que se leuara nauios altos com que fora mais ao mar, que fora muito auante, porque quando tornaua a ver a terra achaua terras que não tinha visto; mas que com nauios grandes que sofressem o mar, que assi em voltas corresse a costa, até lhe descobrir o cabo, sem duuida tinha certa esperança, que alem delle, acharia grandes terras... Polo que logo ElRey mandou cortar madeira em charnecas e mattos, que os carpenteiros e mestres mandauão cortar, que se trouxe a Lisboa, onde logo se começarão três nauios pequenos, da grandura que Janinfante mandou» 4. João de Barros, por seu turno, deu conta das dificuldades que os marinheiros enfrentavam precisamente por causa da pequenez dos navios, obrigando-os até a voltar atrás, justificando assim a composição da armada preparada e entregue ao comando de Bartolomeu Dias: 4 Gaspar Correia, Lendas da índia, vol. I, ed. Manuel Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1975, pp. 8-9. Sublinhados nossos. 244 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES «Armados dous nauios de té sincoenta toneis cada hum, e huma naveta pêra levar mantimentos sobreselentes por causa de muitas vezes desfalecerem aos nauios deste descobrimento, com que se tornavam pêra o Reyno» 5 . Assome irresistivelmente ao leitor deste passo a ideia de que o cronista não pode deixar de se estar a referir a Diogo Cão, e a outros também, mas seguramente ao predecessor de Bartolomeu Dias, cujas viagens têm motivado tanta discussão quanto ao seu termo e às razões da sua interrupção, quando, afinal, tudo se poderá resumir à razão mais comezinha de todas: a falta de abastecimentos em geral e de água potável em particular. Somos por isso levados a corroborar a explicação inovadora de Jorge Semedo de Matos: o navegador voltou para trás face à costa inóspita que tinha diante de si e às dificuldades de prosseguir sem poder reabastecer os navios, sobretudo sem a certeza de poder fazer aguada 6. Tomaram-se portanto as necessárias precauções aquando da organização da armada seguinte, agora que o problema estava identificado, sobretudo no que dizia respeito ao abastecimento da água, a questão crucial a bordo dos navios do descobrimentos, como Richard Barker tão bem apontou em estudo a propósito 7. Não serão precisas explicações mais rebuscadas. Segundo a descrição de João de Barros, Bartolomeu Dias velejou com duas caravelas latinas e um navio de abastecimentos, que logo adiante é designado por nau, o que neste contexto pode apenas querer significar navio grande, redondo (isto é, com velas redondas), por contraposição às caravelas de velame latino e baixo bordo. Em 1487-1488 ficou patente a falta de autonomia da caravela latina para viagens de longa distância; como é bem sabido, a caravela surge ligada às viagens de descobrimento nos inícios da década de 1440, precisamente por ser um navio maior que as barcas e barinéis que pontificaram nas duas décadas anteriores. As características que se lhe reconhecem são exactas: navio ligeiro, casco afilado, bom veleiro, com velas latinas que facilitavam a navegação à bolina e assim a progressão «contra o vento» 8; enfim, uma embarcação ideal para singrar por mares desconhecidos e fazer reconhecimentos costeiros. Não obstante, a caravela latina aparece nos Descobrimentos por ser um navio de maior porte do que os empregues até então, representando assim um salto qualitativo apreciável, podendo inclusive levar maior número de tripulantes. Da Ásia de João de Barros. Década Primeira, liv. III, cap. IV, Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1973 (segundo a edição de 1778), p. 184. Jorge Semedo de Matos, «A Marinha Joanina (9) A passagem do Cabo da Boa Esperança», Revista da Armada, n.° 322, Ano XXIX, Julho de 1999, p. 16. Richard A. Barker, «Of caravelas, tides and water», Studia, n.° 54-55, 1996, p. 101-125. Navio algum navega à vela «contra o vento»; a navegação à bolina era já praticada no Mediterrâneo quando os Portugueses se lançaram à conquista do Mar Oceano, e consistia numa progressão em ziguezague contra o sentido predominante do vento. Manobra de recurso, pesada para os efectivos humanos a bordo, mas que permite a progressão de navios à vela se não há outro recurso. Foi naturalmente praticada pelos navegadores portugueses nas suas viagens de reconhecimento no Atlântico e ao longo da costa ocidental africana. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 245 Não se punha então o problema do transporte de grandes volumes de carga, e quando ele surge já as limitações da caravela latina se tinham tornado patentes. Tudo leva pois a crer que estas limitações decorriam de dois factores: falta de robustez e de capacidade de carga. Falta de robustez para enfrentar longas viagens e mares alterosos; falta de capacidade de carga para embarcar os mantimentos que permitissem às tripulações enfrentar sem receio longos períodos de permanência longe da linha de costa, ou a travessia de locais inóspitos sem a certeza de encontrarem água potável, como poderá ter acontecido com Diogo Cão. Ao acrescer a perspectiva de transporte de mercadorias volumosas, a caravela estava definitivamente condenada para as travessias transoceânicas. Tornou-se imperativo o uso de navios de alto bordo, capazes de ultrapassar as limitações das pequenas caravelas latinas. Assim aconteceu com a armada que rumou para o Oriente em 1497. Os navios de Vasco da Gama eram naus? A pergunta não é nova, mas foi relançada com toda a oportunidade por C. A. Encarnação Gomes 9. Existe a convicção generalizada de que a armada de Gama era composta por navios redondos de grande porte - apesar da sua pequena tonelagem em termos do que se tornaria regular durante a centúria seguinte, com notável incremento logo na armada de 1500. Navios que tinham sido preparados para suprir as carências evidenciadas pelas caravelas, quer no tocante à «fortaleza» para enfrentar «mares grossos», quer na capacidade de transporte, tanto das vitualhas dos tripulantes como da carga que se esperava embarcar nos portos de destino. E como os navios que pontificaram na Carreira da índia foram as naus, que cumpriam exactamente estes requisitos, nada mais natural que assumir a presunção de que os navios de Vasco da Gama também eram naus. Conforme já tem sido notado, e o autor citado veio relembrar agora, se é verdade que cronistas e observadores coevos optaram muitas vezes por designar por naus aquelas embarcações 10, também o é que não há uniformidade suficiente, existindo outros navios redondos, do tipo da nau, que bem poderiam fazer a viagem. E não há dúvida de que a interrogação sempre existiu. Exemplo disso é o estudo de Jaime Martins Barata sugestivamente intitulado: O navio «São Gabriel» e as naus manuelinas n . Repare-se: o navio de Gama e as naus manuelinas. Seria porque os navios de Gama não eram naus? Mais do que responder pela afirmativa ou pela negativa interessa dar conta da imprecisão que reina ainda a este propósito, e com o que dela decorre u. 9 10 11 12 C. A. Encarnação Gomes, «A viagem de Vasco da Gama: algumas improváveis certezas», A Viagem de Vasco da Gama. Actas IV Simpósio de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, 2001, pp. 215-225. A comparação dos testemunhos dos cronistas sobre a viagem de Vasco da Gama fica muito facilitada pelo livro de Aurélio de Oliveira (Apresentação e Introdução), A Viagem do Gama nas Crónicas do Reino, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998. Jaime Martins Barata, O Navio «São Gabriel» e as Naus Manuelinas, Coimbra, JIU, 1970. V. ainda Fernando Gomes Pedrosa, «Os Navios», in José Manuel Garcia (coord.), História da Marinha Portuguesa. A Viagem de Vasco da Gama à índia 1497-1499, Lisboa, Academia de Marinha, 1999, pp. 187-252. 246 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES Sabemos que a tonelagem dos navios da viagem de 1497 era muito pequena, mais uma vez em termos do que se tornou rapidamente a norma da Carreira da índia; tão rapidamente que as 120 toneladas da capitânea (na melhor das hipóteses) passaram a 300 logo três anos depois, na capitânea de Cabral. Aceita-se que isso decorreu da própria experiência da viagem, pois a expedição de Gama era de exploração e reconhecimento 13, a de Cabral uma empresa comercial e militar naval com outras exigências 14. Mas o «fim» da caravela nas viagens de longa duração terá encontrado de imediato a alternativa adequada? Eis a verdadeira questão. Provavelmente não. As referências coetâneas a outros tipos de embarcações, a par daquele tão súbito aumento de tonelagens médias, podem bem indiciar que a tipologia dos navios de Vasco da Gama era híbrida, quer dizer, não se lhes reconheciam características perfeitamente identificáveis com um tipo específico de navio, o que poderia ter levado alguns observadores a designar por barinéis aquilo que outros chamavam naus 15. Esta confusão de designações desaparece com a armada de Cabral, enquanto os navios se apresentam - pelo menos os maiores - com portes significativamente acrescidos. O que pode querer dizer apenas que a tipologia dos navios adequados para as viagens transoceânicas, cuja regularidade então se inaugurava, foi encontrada com a viagem comandada por Pedro Álvares Cabral, capitalizando a experiência de mar de Vasco da Gama também neste aspecto (e não apenas no das instruções náuticas), o qual partira para uma empresa cujos parâmetros tinham por força de ser mal conhecidos. A armada de 1500 já incorporava navios que, segundo tudo leva a crer (não há plano de certezas, nesta matéria), eram similares que farão subsequente e regularmente a Carreira da índia. Esta armada é hoje razoavelmente bem conhecida, depois dos estudos de Max Justo Guedes 16, Moacyr Soares Pereira 17 e Luís Adão da Fonseca 18. Era composta por treze velas, e, depois de longas polémicas, que os autores citados escalpelizaram até onde era possível, pode afirmar-se com segurança que aquele número representa a soma de nove ou dez navios redondos princi- 13 14 15 16 17 18 Tal como George Winius veio lembrar recentemente, embora não possamos concordar inteiramente com os seus pontos de vista: «A Viagem de Vasco da Gama - 1497-1499», in Diogo Ramada Curto (dir.), O Tempo de Vasco da Gama, Lisboa, CNCDP, 1998, pp. 281-303. V. a propósito A. Dias Farinha, «A viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil e à índia», Oceanos, n.°39, 1999, pp. 54-69. V. o artigo citado de Encarnação Gomes, com a discussão da diversidade dos testemunhos. Max Justo Guedes, «O Descobrimento do Brasil», in História Naval Brasileira, Primeiro Volume, Tomo I, Rio de Janeiro, Ministério da Marinha - Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, pp. 139-175; e «A viagem de Pedro Álvares Cabral», in Max Justo Guedes (coord.), História da Marinha Portuguesa, A Viagem de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil 1500-1501, Lisboa Academia de Marinha, 2003, pp. 1-226. Moacyr Soares Pereira, Capitães, Naus e Caravelas da Armada de Cabral, Lisboa, JICU-CECA, 1979. Luís Adão da Fonseca, Pedro Álvares Cabral. Uma Viagem, Lisboa, Inapa, 1999. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 247 pais, naus (agora sim, sem margem para incertezas) e três ou quatro navios mais pequenos, incluindo caravelas. Verifica-se a distribuição tipológica nos navios das armadas de Gama e Cabral: três principais e um auxiliar (chamemos-lhe assim) na primeira, nove-quatro ou dez-três na segunda, em proporção similar. São os efeitos do pleno reconhecimento das dificuldades da Rota do Cabo, percorrida amiúde com o recurso a navios de apoio, só parcialmente dispensáveis com o aumento das tonelagens médias que se verifica nos anos subsequentes. E à medida que isso se verificava, as naus tornavam-se cada vez mais no esteio das navegações transoceânicas. A importância que a Rota do Cabo assumiu tão rapidamente, sob todos os pontos de vista, fez da nau o navio português mais importante do século XVI. Não é pois de admirar que os tratadistas a tenham escolhido para ilustrar a descrição das regras de arquitectura e construção naval. A ausência de documentos técnicos, a par das dificuldades inerentes ao cálculo correcto das arqueações, tornam muito difícil o acompanhamento da progressão das tonelagens médias. Mas ela foi um facto: logo em 1511 D. Manuel encomenda a construção de quatro naus, de 460 tonéis cada uma, para a Rota do Cabo 19. Isto pode querer dizer que os valores medianos calculados para toda a centúria foram afinal atingidos muito cedo. Do que não restam dúvidas, porém, é de que atingiram níveis considerados muito altos, vindo a exigir a intervenção do legislador. Em 1570 o «Regimento do Trato da Pimenta, Drogas e Mercadorias da índia» veio determinar que as naus da índia não tivessem menos de 300 tonéis, nem mais de 450 20. A lei parece querer garantir um equilíbrio óptimo entre as capacidades de carga e marinheiras dos navios, pois não evitaria o seu crescimento puro e simples: como o cálculo do arqueio dizia apenas respeito ao espaço abaixo do convés, restaria simplesmente ao armador aumentar os castelos para fazer subir o volume da nau. A promulogação da lei indicia porém que essa tendência de crescimento era visível e começava a tornar-se desaconselhável. O limite de 450 tonéis tinha de produzir algum efeito, já que a elevação dos castelos tinha limites. A opinião do legislador não colhia a unanimidade. Fernando Oliveira defendia que as naus deviam ser bastante maiores, como também vimos, exagerando até nos valores dados para as que existiam desde o princípio da Carreira 21. Não estava sozinho. Sem podermos acompanhar todo este processo com seria desejável, por falta de documentos técnicos ou oriundos do meio técnico, temos de avançar uns decénios para deparar com o primeiro confronto de opiniões de peritos na matéria do qual nos chegou informação suficiente. 19 20 21 Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimonia Histórica, 1997, p. 79. Leis, e Provisões que El Rei Dom Sebastião fez, Coimbra na Real Imprensa da Universidade, 1816, pp. 68-85. Fernando Oliveira, op. cit., pp. 64-65. 248 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES PGD Fig. 10 - Desenho de Pino DeLTOrco a partir de um quadro do The National Maritime Museum que se supõe representar a nau «Santa Catarina do Monte Sinai». Trata-se de uma das melhores ilustrações de um navio redondo português do primeiro quartel do século XVI: vê-se a grande elevação das estruturas de popa e proa, eriçadas de canhões, a inexistência de portinholas, a xareta a cobrir o convés, e, como é típico nos navios portugueses, a grande superfície de área vélica, entre tantos mais detalhes. 249 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Grace Dieu, 1418 Henry Grace à Dieu, 1514 7/ Sovereign oí the Seas, 1637 Wasa, 1628 0 10 lOOft wL U-*—j \ íir HMSVictoryin 1803 Fig. 11 - Evolução da morfologia do casco dos navios redondos de grande porte, dos inícios do século XV aos inícios do século XIX, segundo M. W. Prynne (a partir da reprodução de Frank Howard, Sailing Ships ofWar 1400-1860, 1979). A escala está em pés. Debateu-se por várias vezes a questão de se saber se as naus da índia deviam ter três ou quatro cobertas, reunindo-se juntas ou requerendo-se pareceres técnicos para o efeito em 1605, 1619, 1622 e 1627. O assunto foi estudado por Frazão da Vasconcelos, e o mais que se pode dizer é que as opiniões não eram concordes: havia defensores de ambas as alternativas. Um dos pareceres é todavia muito curioso. Data de 1623 e foi subscrito por Manuel Gomes Galego, cuja explicação das razões que o levavam a preferir as naus de três cobertas torna claro que não existia relação directa entre o seu número e a tonelagem da 250 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES embarcação. Gomes Galego, em suma, escreveu que se deviam fazer naus de 800 tonéis com três cobertas, pois eram melhores que as 500 tonéis com quatro 22. João Baptista Lavanha, relembremo-lo, defendia por seu turno opinião contrária. Em contrapartida, João Pereira Corte Real imputava as dificuldades no apresto das naus sentidas na índia pelo vice-rei conde da Vidigueira ao facto de serem de quatro cobertas e não poderem entrar em porto por requererem maior calado que as de três, o que exigiu maiores medidas de segurança, com o crescente acréscimo das despesas 23. Por estes apontamentos pode presumir-se que a diferença se reflectia num aumento de peso, e consequentemente de calado, sem repercutir directamente na volumetria do navio. As dificuldades que os navios pudessem sentir ou não para entrar em determinados portos ou barras podiam ter consequências pesadas sob estes dois pontos de vista (o da segurança e o financeiro), e esta polémica reflecte tais questões. Em Espanha, as Ordenamos de 1613 estipulam a dimensão máxima dos navios da Carreira das índias em função do acesso aos portos que ligavam: «Los navios que fuere nezesario fabricar... diez y siete codos de Manga avajo sin exceder aqui arriva en nada ni faltarles en Io que toca a Ias medidas, traza y fortificaciones... porque no siendo mayores ni yendo embalumados podrán entrar y salir por Ias barras de Sanlúcar de Barrameda y San Juan de Ulúa con sus mercaderías» 24. Enquanto isto, Fernando Oliveira propugnava já no século XVI pela «fortaleza» das naus, defendendo que quanto maiores fossem melhores seriam, sugerindo os 800 ou 1000 tonéis, perfeitamente ao arrepio do que mais tarde foi considerado factor importante na perda de um crescente número de navios: o gigantismo das naus. Trata-se de um assunto relativamente bem documentado, o que em boa parte se deve à notoriedade dos que opinaram a propósito, como Duarte Gomes de Solis, João Pereira Corte-Real ou Manuel Severim de Faria, cujos escritos são bem conhecidos 25. A grandeza excessiva das naus fazia-as perder qualidades marinheiras e tornava-as mais difíceis de manobra, o que se tornou patente quando ao defrontarem militarmente navios ingleses e holandeses de menor tonelagem, e mais ágeis. Por outro lado, só o tamanho não justifica grande coisa, e se os navios se perdiam isso devia-se também à conjunção de vários 22 23 24 25 José Augusto Frazão de Vasconcelos, A Fábrica das Naus da Carreira da índia no Século XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, 1928 (com o parecer citado a pp. 7-14); e Subsídios para a história da Carreira da índia no tempo dos Filipes, sep. do Boletim Geral do Ultramar, Lisboa, 1960, pp. 23-57. Parecer de João Pereira Corte Real, AHU, Reino, cx. 38. Nesta caixa guardam-se mais documentos relativos à questão, nomeadamente os da Junta de 1627 na qual participou D. António de Ataíde, também em defesa das naus de três cobertas. Ordenanzas de 1613, n.° 104, apud José Luís Rubio Serrano, Arquitectura de Ias Nãos y Galeones de Ias Flotas de índias, vol. I, Málaga, Ediciones Seyer, 1991, p. 91. Pode encontrar-se uma síntese destas opiniões em António Lopes, Eduardo Frutuoso, e Paulo Guinote, Naufrágios e Outras Perdas da «Carreira da índia». Séculos XVIe XVII, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 150 e ss. O livro inclui uma antologia de textos que documentam as opiniões em causa. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 251 factores. Mas que o tema era popular não há dúvida e para além dos autores citados houve mais quem se pronunciasse. Um testemunho interessante é o do padre Francisco de Macedo, que num sermão de 1637 se referiu às grandes naus requererem muito fundo e serem difíceis de governar, por contraposição aos galeões, ligeiros e de boa vela 26. Estes problemas punham-se em relação às naus da índia, já que a tonelagem média das que se armavam no reino para outros fins e destinos era muito mais baixa: «essa esmagadora maioria de navios de pequeno porte» que Leonor Freire Costa encontrou na primeira metade do século XVI podia nem chegar aos 100 tonéis, embora a tendência fosse a de ir aumentando a preponderância dos navios de médio porte 27. A documentação técnica está mais próxima desta realidade que das gigantescas naus da índia, das quais não há nela eco, fazendo suspeitar do exagero sistemático na avaliação dos portes reais desses navios. No caso de Oliveira isso é praticamente certo, mas se-lo-á também, com certeza, em relação a outros autores ou comentadores. Assim acontece por exemplo com duas naus capturadas pelos Ingleses, que atribuíram 1600 tonéis a cada, quando a «Madre de Deus» (tomada em 1594) era uma nau de três cobertas e 500-600 tonéis, tal como a «S. Valentim» (apresada em 1602)28; nestes casos pode invocar-se a diferença das unidades de medida ou a valoração das presas para aumentar os créditos dos vencedores. Mas ainda assim há aumento notório das tonelagens em relação à realidade. Naus de 2000 tonéis no início do século XVII, por outro lado, não se encontram senão em descrições de viajantes ou relatos de pessoas alheias ao meio; a descrição que o senhor de Monconys fez de um navio que viu no Tejo em 1628 exemplifica muito bem este tipo de exageros: «Dans de port [Tejo] il n'y avoit qu'un de ces vaisseaux... nous fumes le voir, et y étant entrez nous fumes ravis d'admiration: il y a six étages d'une demi-pique de l'un à 1'outre, et le dernier en a autant: sa longueur est de cent quatre vingt pas, sa larguer de quarente: il avoit portédes Indes à Lisbonne cinque cents familles entières, chacune avec ses meubles, ses serviteurs et ses enfants» 29. Nada disto se aproxima da documentação técnica: os regimentos para a construção das naus da índia dizem respeito a navios com 17 rumos de quilha e 600 tonéis de arqueação, ou 17,5 rumos sem indicação de tonelagem 30 . Há apenas um único documento que menciona navios maiores, o das contas e medidas de uma nau da índia do Livro de Traças de Carpintaria, onde aparece 26 27 28 29 30 Francisco d e M a c e d o , Sermão que Fez o Padre... da Companhia de Jesus na festa de S. Thome Padroeiro da índia, Lisboa, L o u r e n ç o Craesbeeck I m p r e s s o r dei Rey, 1637, fl. 15. Maria Leonor Freire Costa, op. cit., p. 115. Henrique Quirino da Fonseca, «O problema das características dos galeões portugueses», Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, 1933, p. 82. Monsieur de Monconys, Voyages, apud Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol. 3, 2." ed., Lisboa, Presença, 1982, p. 51. V. os d o c u m e n t o s A.8 a A.l 1. 252 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES uma tabela com as medidas para navios entre 100 e 1200 tonéis 31 , valores que face ao conjunto dos regimentos conhecidos têm de ser considerados excepcionais. De qualquer maneira estes dados patenteiam quer a ineficácia das medidas que procuraram limitar a tonelagem máxima das naus da índia, quer a co-existência das naus de três e quatro cobertas. Uma nau pode enfim caracterizar-se desta maneira: navio redondo de alto bordo, com uma relação de 3:1 entre o comprimento e a largura máxima, três ou quatro cobertas, castelos de popa de três pavimentos (tolda, alcáçova e chapitéu) e proa de dois (guarita e sobreguarita) cuja arquitectura se integra perfeitamente no casco; arvorava três mastros, o grande e o traquete com pano redondo, e o da mezena com pano latino 32 . É um navio de carga por excelência, destinado a percorrer longas distâncias em rotas conhecidas, tirando partido do aparelho pelo conhecimento prévio dos regimes de ventos, mas andava armado com peças de grande calibre: «A nau da índia era... um transporte armado em guerra», como tão bem definiu Oliveira Martins 33 . O termo tem todavia um significado plural, já que tende a designar genericamente os navios de vela de grande porte 34. 1.2. Galeão A consulta da bibliografia especializada, desde Lopes de Mendonça até aos nossos dias 35, conduz a uma definição deste navio que se pode enunciar da forma que segue. O galeão português do século XVI era um navio redondo de alto bordo, do tipo da nau, mas com algumas características diferentes que indiciam ter sido especificamente pensado para a guerra no alto mar. As linhas do casco eram mais afiladas e o bordo mais baixo, tal como os castelos de popa e proa, o que lhe conferia melhores capacidades marinheiras, reforçadas por um aparelho composto por quatro mastros, os da vante (grande e traquete) com pano redondo, e os da ré (mezena e contra-mezena) com pano latino, aparelho este que se distinguia do da nau pelo acrescento do mastro da contra-mezena, junto à popa. Estas características garantiam-lhe uma superior capacidade de 31 32 33 34 35 Documento A. 10. Como melhor estudo de síntese, com importante contributos e novidade, v. Filipe Castro, op. cit. Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Portugal nos Mares, reed., vol. I, Lisboa, Ulmeiro, 1988, p. 98. Henrique Lopes de Mendonça, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, reed., Lisboa, Ministério da Marinha, 1971, p. 6. Dois estudos clássicos sobre o galeão: Henrique Quirino da Fonseca, op. cit.; e João da Gama Pimentel Barata, «The portuguese galleon», in Five Hundred Years of Nautical Science, Greenwich, National Maritime Museum, 1979, pp. 181-192, reimpresso nos Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, pp. 303-326, para a versão portuguesa. Há inovação significativa nos trabalhos mais recentes: sobre a origem do galeão e o seu emprego no Oriente, José Virgílio Pissarra, A Armada da índia. Cômputo, Tipologia e Funcionalidade das Armadas de Guerra no Oriente (1501-1510), Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001, pp. 46-67; para os finais do século XVI, Augusto Salgado e João Pedro Vaz, Invencível Armada 1588. A Participação Portuguesa, Lisboa, Prefácio, 2002, e Augusto Salgado, Os Navios Portugueses na «Felicíssima Armada», Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, s/d [2002]. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 253 manobra, fundamental para a guerra naval, e as linhas do casco com pequena elevação das superestruturas tornavam-no pior alvo para a artilharia inimiga, por comparação com o navio redondo típico. Subjazem a esta definição várias questões que é preciso delucidar antes de concluir por concordar ou não com ela. Em primeiro lugar a do significado do termo galeão que aparece na documentação avulsa em 1510 36, mas em rigor não se pode afiançar que designe uma embarcação que corresponda ao perfil traçado em cima, o que quer dizer que em si a referência pouco significa. Em fontes impressas, a ocorrência mais antiga é a dos Anais de Arzila, em apontamento relativo ao ano de 1516: «sendo [João Martins Alpoim] capitão de navios, galeões e nãos d'armada, asi em a costa d'África e da Mina, como em a nossa costa de Portugal, contra cosairos e ladrões» 37. Mas Bernardo Rodrigues escreveu tardiamente em relação aos acontecimentos que descreve, o que retira segurança à precisão desta caracterização tipológica, além de se manter o problema anterior; continuamos sem saber o que é que se entendia pela palavra galeão nesta altura. As dúvidas relativas à terminologia das embarcações têm toda a razão de ser. Ilustra-o bem a passagem de Fernando Oliveira citada na abertura deste capítulo, assim como a leitura das fontes, que nos revelam a cada passo que embarcações similares são denominadas de maneira diferente. A mais frequente destas situações é precisamente a que diz respeito ao binómio nau-galeão - como vimos -, termos aplicados aos mesmos navios no mesmo documento, sugerindo que a distinção não era clara para aqueles que se lhes referiam. Esta observação não leva em linha de conta as ocorrências provenientes de fontes em relação às quais haja dúvidas - ou a certeza pela negativa - quanto à acuidade dos conhecimentos patenteados, mas ressuma da leitura de fontes documentais que se devem presumir ser fidedignas sob esse ponto de vista. Basta ver um exemplo suficientemente elucidativo. Na «Folha dos Nauios que Sua Magestade tem nesta Coroa de Portugall», que contém o rol das reparações que era necessário fazer, figura uma lista inicial com os nomes e tonelagens desses navios: o segundo é o galeão «Sto. António» de 480 tonéis que, logo à frente, antes da descrição pormenorizada dos consertos que requeria e respectivos materiais, já é dado como nau 38. Por outro lado, é lógico reconhecer que uma especialização funcional efectiva teria de se reflectir na armação. Ou seja, esperar-se-ia que os privados armassem navios de carga (naus) e o Rei navios de guerra (galeões), sem pre36 Documento relativo à compra de mantimentos para o galeão «S. Miguel», IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 10, doe. 155 de 4 de Fevereiro de 1510. Sumariado por C. A. Encarnação Gomes, Documentos do Corpo Cronológico da Torre do Tombo Sobre Navegações; Descobrimentos; Marinha, 22 vols. dactilografados, em depósito na Biblioteca Central de Marinha. Cumpre acrescentar que a leitura é dubidativa. 37 B e r n a r d o R o d r i g u e s , Anais de Arzila, e d . d e David L o p e s , vol. I, L i s b o a , A c a d e m i a d e C i ê n c i a s d e L i s b o a , 1915, p . 176. 38 V. o documento B.l. Lopes de Mendonça, que aproveitou a informação da «Folha dos Navios», deu conta desta incongruência (op. cit., p. 28). 254 CAPITULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES juízo de encomendar também os primeiros. Porém, a investigação levada a cabo por Maria Leonor Freire Costa deixou claro que não há uma estratégia dos particulares, distinta da estratégia da Coroa, na armação dos navios 39. Importa agora discutir a relevância de dois aspectos técnicos neste contexto: o problema do esporão e a especificidade do aparelho do galeão. Começando por este último, constata-se que há navios a armar quatro mastros com aparelho misto (pano redondo nos da vante e latino nos da ré) bem antes da primeira referência ao galeão português. O navio que figura nas portadas de duas edições Valentim Fernandes {Estoria de muy nobre Vespasiano, de 1496, e o Marco Paulo, de 1502) tem esta mastreação e aparelho, que por outro lado eram conhecidos em Inglaterra desde os finais do século XV. Ilustra-o mais que uma das dozefigurasde traço apurado do Warwick Roll, encomendado pela filha ou pela neta de Richard Beauchamp, conde de Warwick, falecido em 1439 40. Fig. 12 - Navio inglês dos finais do século XV: o aparelho é em tudo idêntico ao que é característico no galeão português do século XVI. Note-se que as bocas de fogo jogam por cima da amurada, pois ainda não há portinholas no casco. 39 40 Maria Leonor Freire Costa, op. cit., p. 296. Frank Howard, Sailing Ships of War, Londres, Conway Maritime Press, 1979, p. 14. Sobre o aparelho dos navios ingleses na época ver Ian Friel, The Good Ship. Ships, Shipbuilding and Technology in England 1200-1500, Londres, British Museum Press, 1995, sobretudo as pp. 157-180. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 255 Em consequência, o aparelho por si só não chega para identificar o galeão, conclusão a que chegaram Lopes de Mendonça e Pimentel Barata 41, e isso percebe-se por outro motivo. Apesar da averiguação dos tipos de navios enviados para a índia ser impossível porque, mais do que quaisquer outras fontes, cronistas e relações de armadas da índia espelham a confusão reinante entre naus e galeões, está fora de dúvida que os galeões navegaram para a índia. Quirino da Fonseca sustentou que se tratava de um navio desenvolvido com o propósito específico de substituir as caravelas redondas nessas armadas (»o galeão português foi o tipo melhorado e engrandecido da caravela redonda, utilizada na composição das armadas, como seu elemento auxiliar e protector» 42 ), quanto a nós com manifesto erro. Mas se o galeão fosse um navio distinguível pelo aparelho não se compreenderia porque é que não figura um único nas duas relações de armadas da índia ilustradas, onde vemos apenas navios com três mastros, do tipo da nau, caravelas redondas e embarcações a remos 43. Quanto ao problema do esporão, radica numa afirmação indocumentada de Lopes de Mendonça, facto raro nos seus escritos, muito seguros por regra («o galeão, assim como a caravela, tem esporão» 44 ), que foi aceite depois por outros autores, como Quirino da Fonseca 45. Esta convicção nasce de uma frase de Fernando Oliveira, que filia o galeão na galé: «E galeão, ou galeaça, por que tem algúa semelhança na figura, ou imitação do officio das galees, tomão também delias a deriuação dos nomes» 46. Uma frase que induziu também os autores em causa a julgar que o galeão deriva da galé, mas neste caso nem sequer se podem assacar as culpas às etimologias duvidosas de Oliveira. Semelhança de figura existe sim entre a galé e a galeaça, pois são dois navios do mesmo tipo. A similitude entre a galé e o galeão é portanto a funcional, e a frase só quer dizer que, para Oliveira, o galeão estava vocacionado para a guerra naval. Deduzir que por isso tinha esporão é excessivo. Não só o texto de Oliveira não autoriza esta interpretação, como o manuscrito das Aduertençias de nauegantes de Marcos Cerveira de Aguilar elucida que esporão (palavra que aparece nos documentos técnicos) significa o mesmo que beque, conforme referido 47. A questão ficou resolvida com uma simples observação de Pimentel Barata, plena de oportunidade. Se o galeão é um navio redondo do tipo da nau, tem proa de roda; logo, não há onde suportar o esporão, entendido como arma de ataque similar à das galés. Mas se isso fosse possível, estar-se-ia perante uma circunstância muito estranha, já que a utilização dessa arma partiria forçosamente o mastro do gurupés. Como escreveu Pimentel Barata: 41 42 43 44 45 46 47 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 31; João da Gama Pimentel Barata, «O galeão português (1519-1625)», Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, p . 322. Henrique Quirino da Fonseca, op. cit., p. 78. Cf. a Memória das Armadas, edição facsímile, Macau, Instituto Cultural de Macau et ai, 1995; Livro de Lisuarte de Abreu, Introdução de Luís de Albuquerque, Lisboa, CNCDP, 1992. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 31. Henrique Quirino da Fonseca, op. cit., p. 84. Fernando Oliveira, op. cit., p. 49. V. supra a P a r t e I, c a p . V. 256 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES «não há um único documento técnico português que mencione o esporão dos galeões no sentido de estrutura especial para o ataque. Nem qualquer das representações portuguesas, incluindo os desenhos do Livro de Traças, mostra tal estrutura, perfeitamente inútil num navio que levava por ante a proa um mastro inclinado a 35°, o gurupés, que se partiria numa abordagem e, assim, comprometeria todo o aparelho» 4 8 . A lenda do esporão teve vida longa e o seu expoente máximo é o célebre «S. João» ou «Botafogo», figura central nas tapeçarias que representam a campanha de Tunes, em 1535. A que ilustra a tomada da Goleta mostra-o dirigindo o ataque 49 , que a descrição setecentista pormenoriza dizendo que foi com o esporão que o «Botafogo» rompeu as correntes e abriu caminho aos restantes navios. Desse relato ficou-se a saber que ia armado com 366 bocas de fogo (o que vários autores aceitaram, espantosamente). Enfim, toda uma história que persistiu no imaginário dos que queriam que tivesse havido um navio como este, conforme escreveu José Virgílio Pissarra no estudo em que dissecou exemplarmente a construção deste mito 50 . Alguma diferença existiu entre o galeão e a nau, em algum momento. Talvez não seja possível ir muito mais longe mas, na que é porventura a mais notável de todas as imagens das Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro, a «Tavoa da Agvada do Xeque», vê-se um conjunto de embarcações de vela representativo dos meios navais portugueses do segundo quartel do século XVI. É também a primeira imagem em que um artista com traço rigoroso na representação de navios faz figurar lado a lado uma nau e um galeão, evidenciando as diferenças entre ambos 51. O centro da figura é ocupado pela imagem de um navio que corresponde perfeitamente à descrição convencional do galeão, sobretudo porque do lado esquerdo figuram duas naus (uma praticamente ao lado do galeão, e outra num plano mais recuado), também elas ilustrando as características que normalmente se lhes atribuem. O galeão tem quatro mastros, dois com pano redondo e dois com pano latino; as obras mortas visivelmente mais baixas que as das naus; as linhas de casco mais afiladas e, pormenor curioso, o beque decididamente lançado para vante, ao contrário dos das naus (embora só se veja bem numa delas), muito mais lançados em roda, como que em prolongamento da roda de proa. 48 49 50 51 J o ã o d a G a m a P i m e n t e l B a r a t a , «Os Navios», Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, p . 2 8 8 . V. a reprodução in Paulina Junquera de Vega e Concha Herrero Carretero, Catalogo de Tapices dei Património Nacional, vol. I: Siglo XVI, Madrid, Editorial Património Nacional, 1986, pp. 86-87. Este conjunto de doze tapeçarias foi feito por G. Pannemaker e encontra-se no Palácio Real de Madrid. Normalmente, a figura do «Botafogo» é reproduzida das cópias setecentistas guardadas no Real Alcazar de Sevilha. J o s é Virgílio Pissarra, «O galeão S. J o ã o (c. 1530-1551). D a d o s p a r a u m a monografia», i n Fernando e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo Cascais, Patrimonia, 2000, p. 206. Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro, estudo introdutório de Luís de Albuquerque, Lisboa, Inapa, 1988. 257 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Fig. 13 - Na que é porventura a mais notável de todas as imagens das Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro, vê-se um conjunto de embarcações de vela representativos dos meios navais portugueses do segundo quartel do século XVI: é também a primeira imagem em que um artista com traço rigoroso na representação de navios faz figurar lado a lado uma nau e um galeão, evidenciando as diferenças entre ambos. A representação de uma caravela redonda (no primeiro plano, em baixo) permite uma comparação elucidativa com os navios de maior porte. l i__ •— - Nau portuguesa de 600 t - Galeão português de 500 1550-1580 Fig. 14 - Comparação do traçado da nau de 600 tonéis com o galeão de 500 tonéis (desenho e reconstituição geométrica dos traçados de João da Gama Pimentel Barata). 258 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES A comparação dos traçados geométricos feita por Pimentel Barata a partir dos regimentos técnicos que estudou, não deixa quaisquer dúvidas quanto à maior elegância de linhas do galeão de 500 tonéis, por comparação com a nau de 600, muito embora tenha maior boca. Por outro lado, se o aparelho não é em si mesmo sinal distintivo, o certo é que se encontra nas Coriosidades de Gonçallo de Sousa uma lista dos mastros e velas de um galeão, que tem passado desapercebida até hoje e condiz por completo com a imagem que vimos 52 . Não temos dúvidas quanto à existência de diferenças visíveis na morfologia e características das naus e galeões, mas cumpre reconhecer que, no estado actual dos nossos conhecimentos, não é possível ir muito mais longe. Quando é que isso se começou a verificar é uma incógnita, dado que a simples ocorrência do termo pouco ou nada quer dizer, tal como não se sabe quando é que essa distinção deixou de poder ser assinalada. De seguro, pode afirmar-se que existiam galeões no tempo de D. João de Castro e na época da tratadística, já que os regimentos técnicos distinguem perfeitamente as tonelagens dos navios do tipo da nau, de 80 até 600 tonéis, e do galeão, de 200 tonéis. Considerando o conjunto dos regimentos que importam ao caso, vê-se que o galeão de 500 tonéis tem mais um rumo de quilha que a nau de 600, e menores lançamentos: logo, o casco é mais afilado e mais baixo, apesar da boca ser ligeiramente maior 53 . A documentação conhecida elucida-nos quanto a um aspecto fundamental, corroborando a conclusão já avançada por Lopes de Mendonça: trata-se inequivocamente de um navio com uma relação entre o comprimento e a boca de 3:1 54, portanto do tipo da nau. Não restam dúvidas a esse respeito, e se morfologicamente eram do mesmo tipo, funcionalmente também o eram. A ideia de que o galeão pudesse ser um navio «concebido e construído exclusivamente para a guerra no alto mar» 55 esbarra nas informações das fontes e nos incomportáveis custos económicos de tal opção. A afirmação de que o galeão transportava carga na Rota do Cabo nem carece de ser demonstrada, e a observação da forma do casco evidencia que é um navio bojudo, embora menos que a nau, perfeitamente capaz de servir para o mesmo tipo de aproveitamente comercial, como de facto foi. A simples suposição de que se pudessem ter feito dois navios de morfologia semelhante, para que um fizesse a Rota do Cabo ajoujado de mercadorias, e o outro fosse ao lado, em vazio, apenas para o proteger, é completamente inaceitável. O galeão tinha melhores condições que a nau para a guerra naval, mas era um navio bifuncional. A especialização para a guerra coube a outra embarcação. 52 53 34 55 V. o documento B.5. Estas diferenças resultam da comparação dos documentos A.l 1 e A. 14. Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 31. João da Gama Pimentel Barata, «O galeão português (1519-1625)», Estudos de Arqueologia Naval, vol. I, p. 308. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 259 1.3. Caravela redonda O termo caravela ocorre pela primeira vez na documentação portuguesa em 1255, conforme assinalou Henrique Lopes de Mendonça56, encontrando-se ainda em 1754, numa obra impressa57, e num manuscrito de 176658. É portanto fácil de compreender que encobre referências a múltiplas embarcações, desde a pequena caravela latina de um mastro até à caravela redonda ou de armada, passando pela caravela latina de dois mastros, que protagonizou as viagens de exploração atlântica desde circa 1440 até 1488, sem deixar porém de continuar a ser utilizada em circunstâncias várias59. Na documentação técnica existem regimentos relativos à construção de dois tipos de caravelas: caravela redonda e caravela antiga meã. A primeira é um dos navios portugueses mais importantes do século XVI. Antes de mais, a denominação. Caravela redonda é nome moderno que vingou na historiografia, pela mesma razão que se chamam redondos navios como a nau ou o galeão, ou seja, são navios que armam pano redondo, na realidade velas com formato trapezoidal, ganhando aquela designação pelo aspecto que tomam quando enfunadas pelo vento. Caravelas armadas ou de armada são designações de época, que indiciam de imediato a sua funcionalidade, como acontece frequentemente com vários tipos de embarcações, e pode exemplificar- se com as caravelas pescarezas, de aviso ou mexeriqueiras. Nestes casos as funções em que são empregues determinam a forma de nomear as embarcações, sem qualquer referência às suas características morfológicas. Caravela de armada significa que se destinava à navegação em armada ou ao serviço de armadas. 56 57 58 59 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 46. Martin Elbl antecipou esta data para 1226, baseando-se em Francisque Michel, o qual teria dado conta do apresamento de uma caravela portuguesa em 1226, no golfo da Biscaia. Trata-se de um erro ou confusão de leitura, já que no livro em causa está escrito que efectivamente foi apresado nessa data e local um navio português, sem qualquer menção a caravelas (v., respectivamente, Martin Malcolm Elbl, «The portuguese caravel and european shipbuilding: phases of development and diversity», Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXII, 1986, p. 546, e Francisque Michel, Histoire du Commerce de Bordeaux, vol. I, Bordeaux, 1867, p. 153). Nova Relaçam, E Curiosa Noticia Do Combate Que Tiveram Três Caravellas de Vianna de Caminha com os Corsários dos Mouros, em que se noticia também do grande milagre, Que Obrou Pelos Christaons A Sr.a de Nazaré Por Hum Anónimo. Lisboa, Na Officina de Domingos Rodrigues, Anno de 1754. Livro do Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora Daguia e São Julião dos Pescadores Sita na Barra Desta Villa do Conde, cod. sem cota do Arquivo Municipal de Vila do Conde, com múltiplas referências à entrada e saída de caravelas e outras embarcações no barra de Vila do Conde, até este ano de 1766. Há um número razoável de estudos específicos sobre a caravela, mas muitos mais que se lhe referem directa ou indirectamente. Para a consulta da bibliografia disponível v. Francisco Contente Domingues, Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XV e XVI). História, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003. Ver-se-ão em primeiro lugar as entradas das obras de Henrique Quirino da Fonseca (de cuja obra A Caravela Portuguesa se deve preferir a reedição, com comentário preliminar, notas e apêndices de João da Gama Pimentel Barata, 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978), J. G. Pimentel Barata, Richard Barker, António Tengarrinha Pires e Hernâni Amaral Xavier, entre outros. 260 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES Fig. 15 - Caravela latina de três mastros, de pesca, na «Vista panorâmica de Lisboa» da Biblioteca da Universidade de Leiden. Fig. 16 - Caravela latina de três mastros na «Vista panorâmica de Lisboa» da Biblioteca da Universidade de Leiden: a artilharia joga pela amurada, preparada para o efeito. Os NAVTOS DO M A R OCEANO 261 Existem três regimentos para a construção de caravelas de 150 a 180 tonéis, de doze rumos e de onze rumos 60. Estas medidas apontam para tonelagens de 110 a 150 tonéis, no segundo caso, e de 100 a 125, no terceiro. Estes portes são suficientes para demonstrar que caravelas redondas e caravelas latinas são tipos de navios muito bem diferenciados, encontrando no nome genérico o maior elo de ligação entre ambos. Pode parecer escusada esta chamada de atenção para o que é óbvio, mas tudo o que rodeia a caravela exige particular precaução: é o navio sobre o qual mais se escreveu até hoje, e que ainda continua a merecer a melhor das atenções, muito por culpa da embarcação latina de dois mastros que pontificou na segunda metade do século XV. Afirmou-se até recentemente que «as caravelas dos Descobrimentos não constituem mais o tal enigma impenetrável que poucos ousavam abordar, restanto apenas na penumbra alguns pormenores residuais correntemente em estudo» 61. É uma questão de perspectiva e atitude metodológica. A prudência manda porém matizar um pouco o impacto desta afirmação, já que o aparecimento da documentação técnica marca um ponto de viragem no conhecimento desta embarcação, porventura mais acentuado do que em relação a qualquer outro tipo de navio. Convém ter presente que não existe qualquer informação técnica sobre as caravelas latinas, e os planos do Livro de Traças, os primeiros relativos a qualquer tipo de caravela, referem-se às redondas: uma prancha contém «o modello da Carauella armada com quilha e roda» e os modelos da caverna mestra e das almogamas; a segunda mostra o desenho acabado do casco (a cheio) e as plantas das duas cobertas 62. A arqueologia naval utiliza um método de trabalho que por vezes permite obter resultados valiosos: a comparação entre soluções técnicas do passado e do presente, querendo com isto significar tanto a comparação directa de métodos de desenho, instrumentos e procedimentos de construção naval, como as embarcações propriamente ditas, graças às possibilidades decorrentes da persistência no longo prazo das soluções técnicas tradicionais, o que não se aplica só à construção naval. No caso vertente, Alberto Iria afirmou a semelhança entre a caravela henriquina e o caíque algarvio, sem aduzir muito mais que a semelhança do aparelho e da tipologia 63 . Com um trabalho mais cuidadoso e sobretudo prevenido contra evidências aparentes, Octávio Lixa Filgueiras veio mais tarde a concluir pelo oposto 64. 60 61 62 63 64 D o c u m e n t o s A.26, A.27 e A . 2 8 . H e r n â n i A m a r a l X a v i e r , As Caravelas dos Descobrimentos. Um Guia para Professores destinado à preparação da visita à Caravela «Boa Esperança», Lisboa, CNCDP-Aporvela, 1997, p . 5. Livro de Traças de Carpintaria, BA, c o d . 52-XIV-21, fls. 107 e 108. Joaquim Alberto Iria Júnior, As Caravelas do Infante e os Caíques do Algarve. Subsídios para o estudo da arqueologia naval portuguesa, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1963. 2.a ed.: Lisboa, Academia de Marinha, 1991. Octávio Lixa Filgueiras e Alfredo Barroca, «O caíque do Algarve e a caravela portuguesa», Revista da Universidade de Coimbra, tomo XXIV, 1971, pp. 405-441. 262 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES Fig. 17 - Quilha, rodas de proa e popa, caverna mestra e almogamas de uma caravela redonda ou de armada do Livro de Traças de Carpintaria: trata-se do primeiro desenho técnico conhecido relativo a qualquer tipo de caravela. Existe assim uma diferença notória entre o conhecimento detido sobre estes diversos tipos de caravelas, que prejudica a apreciação do processo que levou ao aparecimento da caravela redonda. Não nos escusaremos a arquitectar uma hipótese, que não passa disso mesmo. Em contrapartida, uma certeza pode ser avançada desde já, com base na diferença dos aparelhos: a caravela redonda possui castelos de popa e proa, ao contrário da latina, que não pode ter qualquer estrutura erguida sobre a proa do navio. O facto de ter pano latino à vante impede-o por si só, já que o carro da verga do mastro do traquete esbarraria com um castelo de proa, se o houvesse, na manobra de cambar a vela. Deste ponto de vista, a caravela redonda está mais próxima das naus e galeões que da sua congénere latina. Acontece o mesmo quanto ao afilamento das linhas do casco. Diferentemente do que afirmou Lopes de Mendonça, a relação entre o comprimento e a boca não pode chegar aos 5:1 que aquele autor tomou por certos, com base numa citação de Fernando Oliveira, que aliás não refere qual seja 65. Com base nos números já calculados por Pimentel Barata, verifica-se que esta relação se situa entre os 3:1 e os 4:1 (andando sensivelmente pelo meio) nas caravelas de onze e doze rumos de quilha 66. Esta relação anda próxima da do patacho, 65 66 Henrique Lopes de Mendonça, op. cit., p. 31. J o ã o d a G a m a Pimentel Barata, «A Caravela», in Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, p . 36. Os NAVIOS DO MAR OCEANO Fig. 1 8 - 0 autor dos desenhos da Memória das Armadas (terceiro quartel do século XVI) representou o navio de Bartolomeu Dias, na viagem de 1500, como uma caravela redonda, com toda a probabilidade à imagem e semelhança da época em que vivia. 263 264 CAPITULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES navio de características semelhantes mas com porte inferior 67, e é ligeiramente superior à relação 3:1 estipulada pelo texto do regimento para o navio de 150 tonéis 68. A configuração do navio obedece à dos navios redondos em geral, tendo o casco mais afilado que os de porte superior, castelos de popa e proa com dois e um pavimentos, e duas cobertas. É uma morfologia perfeitamente adequada à tonelagem e de acordo com as tendências que conhecemos para a evolução geral dos navios de vela desde o século XV, que registaram primeiro uma grande elevação das superestruturas (tão visível no quadro que se pensa representar a «Santa Catarina do Monte Sinai»), e vieram paulatinamente a diminuir de volume, com preponderância no longo prazo dos critérios marinheiros sobre os especulativos. A tendência verificou-se também nos navios de menor dimensão, embora tenha sido menos visível porque neles os volumes dos castelos foram sempre mais discretos. Um outro aspecto estrutural que convém referir é o do esporão, que não existe na caravela redonda pelas mesmas razões que se aplicam ao galeão. Resta agora procurar o momento em que a caravela redonda apareceu nas navegações portuguesas. Não existe qualquer indicação minimamente segura quanto à cronologia dos diversos tipos de caravelas, depois de estabelecida a primazia da latina de dois mastros nas navegações atlânticas da segunda metade de Quatrocentos. Sumariando as opiniões de Lopes de Mendonça, Quirino da Fonseca e de outros autores, Pimentel Barata avançou a hipótese de a caravela latina de três mastros ter aparecido já pelos finais do século XV, embora só se documente pelo primeiro quartel da centúria seguinte. Teria já dois pavimentos à popa, tolda e chapitéu aberto à ré, e uma mareagem de grades à proa; mais que isso seria impossível por causa da manobra da verga. Para a tonelagem Pimentel Barata avençou os 100 tonéis, o que parece ser perfeitamente razoável, dado o comprimento de quilha requerido para a implantação de três mastros. A caravela redonda ou de armada ter-lhe-ia sucedido pelo segundo quartel do século, tomando paulatinamente o lugar da forma anterior 69. Julgamos porém ser muito plausível que a caravela redonda tenha aparecido bem mais cedo, muito provavelmente com a viagem de Pedro Álvares Cabral. Como vimos atrás, a armada de Cabral tinha três ou quatro navios do tipo da caravela. Poderão ter sido redondas, por duas ordens de razões: a caravela latina de dois mastros provara as suas fragilidades como navio transoceânico; e a rota já era conhecida, com a consequente possibilidade de aproveitamento de ventos constantes pela popa. As caravelas de Cabral podem bem ter sido caravelas de três mastros, mas com pano redondo no traquete, como se usava ocasionalmente na navegação mediterrânica e faz todo o sentido que tenha sido decidido desde o início nesta 67 68 69 Documento A.23. Documento A.22: «terá de boca a terça parte da esloria como está dito». João da Gama Pimentel Barata, op. cit., pp. 30-31. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 265 circunstância. Essa mudança permitiria a rápida transformação da mareagem de grades para um pequeno castelo de proa com um pavimento coberto e o fecho do chapitéu com o aumento da tonelagem, conduzindo, com o tempo, ao acrescentamento de um quarto mastro latino, definindo-se desta maneira a caravela redonda tal qual é conhecida dos textos técnicos. O facto de as caravelas redondas marcarem presença nas relações iluminadas das armadas da índia não quer dizer muito quanto ao início do século XVI, mas significa que a forma documentada pelo Livro de Traças já existe no terceiro quartel de Quinhentos. As caravelas redondas tiveram uma utilização óptima nas armadas de guarda costa, do Estreito de Gibraltar, das Ilhas e no Norte de África. Quando D. Manuel decide enviar navios para os Açores a fim de proteger as naus da índia 70 , ou quando forma a armada do Estreito 71 , fá-lo com caravelas, seguramente caravelas redondas ou de armada, com porte suficiente para a acção militar naval. Não faz sentido considerar outra hipótese. Na Arte da Guerra do Mar, já o vimos, Fernando Oliveira esclarece que as caravelas que foram ao reino de Velez eram de armada. As quais não considerava particularmente, como se vê por uma referência que diz sem dúvida respeito à sua origem nas caravelas latinas de três mastros: «Aqui me lembra, e quero o dizer, antes que me esqueça, que nunca me pareceo bem, fazer de carauella nauio redondo, diga cad [sic] hum o que quiser, que tudo seraa afeyçoado: por que, mudando se a forma da uela, cumpre mudar se a fabrica do fundo: a qual, jaa então não pode ser mudada; nem o mestre pode fazer na sua estimatiua os discursos aqui necessários» 72. Numa passagem anterior elucidara a funcionalidade específica da caravela redonda: «E por tanto, as carauellas, e zabras das armadas, deuem ter milhor liame, que as merchantes» 73. A dimensão e forma do casco tornavam esta caravela incapaz como cargueiro para viagens de longa distância. Em contrapartida, o aparelho e as qualidades marinheiras adequavam-se a missões navais. Tanto nos quadros citados como nas viagens para o Oriente, como elemento principal de combate ou no apoio aos navios de maior porte, a caravela redonda ou de armada foi verdadeiramente o primeiro navio criado para a guerra do alto mar, muito provavelmente logo desde a viagem de Pedro Álvares Cabral 74 . 70 71 72 73 João M a r i n h o d o s Santos, A Guerra e as Guerras na Expansão Portuguesa. Séculos XV e XVI, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 155. Rui Godinho, «A armada do Estreito de Gibraltar no século XVI», in Francisco Contente Domingues e Jorge Semedo de Matos (org.), A Guerra Naval no Norte de África (Séculos XV-XIX), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003, pp. 117-137. Fernando Oliveira, op. cit., pp. 101-102. Idem, ibidem, p. 33. 266 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES 1.4. Caravela antiga meã O Livro Náutico contém um regimento para a construção de caravelas antigas meãs 75, uma embarcação da qual nada se sabe para além do que aí está escrito. Tinha doze rumos de quilha, uma só coberta onde se alojava a artilharia por quatro portinholas em cada banda, tolda e chapitéu à popa, com varanda. À proa o gurupés (com o comprimento do traquete tal como na caravela de 150-180 tonéis) 76 fechava na abita e dele pendia a cevadeira. Arvorava pano latino em três mastros, e redondo no traquete, tanto quanto se pode presumir pelas medidas, ligeiramente diferentes da da caravela de 150-180 tonéis: tem a caravela meã oito, quinze, doze e oito braças em cada verga, respectivamente do traquete, grande, mezena e contra, e a de 150-180 tonéis sete, dezasseis, catorze e oito 77. A única coberta desta caravela contrasta com as duas previstas nos regimentos das caravelas redondas, sugerindo que se tratava de um tipo mais grosseiro, genericamente próximo desta tipologia. Mas na verdade todas as interrogações ficam em aberto, por esta ocorrência ser singular na documentação conhecida. 1.5. Patacho Assim como a zavra, o patacho é uma embarcação similar à caravela redonda pela morfologia e funcionalidade, mas de menor dimensão. Os dois regimentos do Livro de Traças são relativos a navios de 100 tonéis de arqueação, com onze rumos de quilha um, e dez e meio o outro 78. Quanto às demais características, tinha duas cobertas e pequenos castelos à popa e proa, com dois e um pavimentos. Cabia um papel específico a este tipo de embarcações. Se a caravela redonda é um navio de guerra que em armada assume as funções de vaso de segunda linha (em face de naus e galeões), o patacho, tal como a zavra, é por sua vez auxiliar da caravela redonda quando em armadas sem outros tipos de navios. Caso contrário, desempenha as mesmas funções em todas as circunstâncias. Os patachos são frequentes nas marinhas inglesa e holandesa, com as mesmas características básicas e funcionalidades. A diferença para o caso português reside na existência de um tipo intermédio entre estas embarcações e as de maior porte: a caravela redonda. 74 75 76 77 78 Francisco Contente Domingues, «Os navios de Cabral», Oceanos, n.° 39, 1999, pp. 70-81. Documento A.29. Documento A. 26. Na primeira análise deste documento fomos levados a concluir que a antiga meã tinha quatro mastros latinos, lapso para o qual Richard Barker nos chamou a atenção. Ficam aqui o reparo e o agradecimento devido. Documentos A.23 e A.24. Um dos documentos reporta-se a um patacho holandês, mas em qualquer dos casos a traça é pouco característica. C LuífchcomoiâloàcitevPataxo kçruerra tinlo ndesquaina cm as aturas CfcmpnmennsamfirmJ(cachará norqnmtnW- Fig. 19 - Patacho de guerra do Livro de Traças de Carpintaria 268 CAPITULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES 1.6. Galizabra Existem dois regimentos técnicos de galizabras (ocorre zabra ou zavra com mais frequência) de tamanhos muito diferentes: uma de catorze rumos e outra de 50 tonéis. Apesar desta disparidade estamos perante uma embarcação para a qual se aplica o que se disse a propósito do patacho, quer quanto às características, quer quanto à funcionalidade. Sob este último ponto de vista, aliás, há um documento de 1 de Agosto de 1594 que ilustra na perfeição o que pretendemos dizer. O documento refere-se à presença em casa do conde de Santa Cruz do provedor Luís César, dos pilotos Francisco Sedenho (piloto mor da armada em causa) e Rodrigo Migueis, e do mestre Cristóvão Álvares. Discutindo-se a forma de organizar a espera das naus da índia nos mares dos Açores, foi decidido que quatro caravelas deviam colocar-se com cinco léguas de intervalo entre cada uma, entre os 38° e os 39° de latitude, 30 a 40 léguas a Oeste das ilhas de Flores e Corvo, «e uma galizabra mais ligeira ao mar dela tudo por Oeste» 79. Ou seja, como embarcação auxiliar de uma armada de guerra. As referências às galizabras são notoriamente mais frequentes nos últimos anos do século XVI, e é de admitir que o termo seja de origem espanhola, tal como o navio, ganhando em Portugal a forma mais abreviada. Existem planos espanhóis de galizabras 80 da mesma altura em que a documentação se torna relativamente frequente em Portugal 81 . Não é porém de admitir a «invenção» da galizabra por D. Alonso de Bazan (irmão de D. Álvaro), atribuída por Cesáreo Fernandez Duro 82 . Já antes disso existiam em Portugal e eram consideradas navios de guerra, segundo Fernando Oliveira em passo que citámos acima. A Invencível Armada incorporou duas zavras portuguesas, a «Augusta» e a «Júlia», de 100 tonéis cada uma, de cujo desempenho pouco se sabe, bem ao contrário dos galeões que constituíram o centro da força naval que defrontou os navios ingleses. Em contrapartida Augusto Salgado rastreou as ocorrências documentais que permitem quase reconstituir a ficha integral destes navios 83 . Fazem parte da lista da «Folha dos Navios» que descreve as embarcações portuguesas a carecer de reparo em 1589, idêntico nas obras e nos custos 84 . 79 80 81 82 83 84 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 267, doe. 106. Archivo General de Simancas, Mapas, Planos y Dibujos, XVI, 179 (dois planos de 1591). IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte II, maços 260, 271, 272 e 273, com mais de meia centena de documentos sobre o aprovisionamento de galizabras. No reportório inventariado pelo Comandante C. A. Encarnação Gomes (que nos chamou a atenção para os maços citados acima) encontram-se recenseados muitos mais documentos deste tipo. Cesáreo Fernandez Duro, Disquiciones Náuticas, vol. V, Edición faesimilar, Madrid, Ministério de Defensa/Instituto de Historia y Cultura Naval, 1996, p. 24. Augusto Salgado, Os Navios Portugueses na «Felicíssima Armada», pp. 411-416 e 417-422. Documento B.l. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 269 1.7. Navio Além do navio de guerra com dezassete rumos de quilha, equivalente na dimensão às naus e galeões da índia 85, o corpus da documentação técnica portuguesa contém ainda regimentos para a construção de «navios» de 500, 400, 300, 150 e 80 tonéis 86 . A palavra não designa uma tipologia específica: tratam-se de naus, no fundo, ou embarcações semelhantes, que regra geral eram referidas assim quando de pequena ou média tonelagem. Na verdade, «navio» é apenas e tão só um nome genérico. Ou, como diria Fernando Oliveira, «Este nome nauio he geeral, e comprende tudo aquillo em que se anda ou leua algua cousa per cima daogua. Hora seja bem feyto, hora seja desafeyçoado, hum pao, húa tauoa, hua gamella, em que alguém anda, ou leua outra cousa per cima daogua, he nauio. Porem propriamente se chama nauio, aquelle que tem feyção formada per certas medidas, pellas quaes tem suas partes concertadas huas com outras, com deuida proporção, e conueniencia» 87. 2. NAVIOS DE REMO 2.1. Galé A História Naval e Marítima portuguesa dos séculos XVI e XVII foi dominada por três navios, a nau, o galeão e a caravela, em resposta aos imperativos e características das rotas estabelecidas e dos seus desafios específicos, fossem estes comerciais ou militares. Todos os outros tipos de embarcações de que temos conhecimento são secundários face àqueles, estejam ou não presentes na documentação técnica, tenham ou não tradição de uso na navegação portuguesa. Esta secundarização abrange a categoria dos navios de remo, mormente desde que galeões e caravelas redondas passaram a assegurar a composição das armadas de guarda costa, e a defesa dos portos e litorais passou tanto a contar com estes navios como a depender cada vez mais das estruturas fortificadas litorâneas e respectivos parques de artilharia. Por outro lado, os navios de remo têm quatro limitações severas: pequena autonomia de actuação, incapacidade de vogar no mar alto, custo operativo e de manutenção extremamente alto quando em navegação de guerra, e baixo proveito em curso comercial, tudo em perspectiva comparada com os de alto bordo. A era das grandes navegações à vela significou a possibilidade de alargar consideravelmente os horizontes marítimos europeus, e isso implicou que a galé 85 86 87 D o c u m e n t o A. 12. D o c u m e n t o s A. 13, A. 16, A.20, A.22 e A.25. Fernando Oliveira, op. cit., p. 43. 270 CAPITULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES ficasse para trás como expoente da técnica naval. A economia de meios humanos e materiais proporcionada pelos navios de vela, a maior eficácia demonstrada com a progressiva importância da artilharia naval, um raio de acção praticamente ilimitado (conquanto carente de reabastecimento) e a capacidade de enfrentar qualquer tipo de mar, conferiram-lhes uma vantagem decisiva. Todavia a galé tem uma longevidade extraordinária, que chega ao séc. XX: a França desarmou o seu último navio a remos em 1814, Génova em 1830, mas em Istambul manteve-se a que foi porventura a última galé de guerra do Mediterrâneo até 1929 88 - embora seja lícito inquirir do seu nível de operacionalidade, ou do que lhe poderia acontecer se efectivamente entrasse em combate. Concorreram para isso dois factores distintos: a adequação deste tipo de navio à guerra naval no Mediterrâneo, e o prestígio do monarca que dispunha de uma armada de navios a remos. Assim o disse Colbert, em carta escrita a 6 de Novembro de 1665: «il n'y a point de puissance qui marque mieux Ia grandeur d'un prince que celle des galères, et luy dorme plus de réputation parmi les estrangers» 89. Não se tratava de figura de estilo. As galés não só se mantiveram até muito tarde como se continuaram a fabricar grandes navios deste tipo, como a «Soledad», construída em Cartagena no ano de 1798 com 50m de eslora, dois mastros com pano latino, cinco canhões à proa e 26 remos por banda em uma ordem 90. Um navio que podia ter sido perfeitamente lançado à água três séculos antes. Aliás, esta longevidade garante que os navios de remos sejam bem conhecidos, porque se guardam ~dos últimos deles memórias, imagens e planos em tudo similares aos de séculos atrás. Como seria de esperar a galé manteve uma morfologia geral constante, por oposição aos navios de vela; não há muitas possibilidades de alterar a forma deste tipo de navios. As principais variações residiram na relação comprimento-boca, que podia ir de 4/5:1 a 9/1 consoante se tratasse de galés de comércio ou de guerra; na criação das galeaças91, que marcaram a História Naval do século XVI, com presença tanto em Lepanto como na Invencível Armada (aqui sem intervenção significatica no curso dos acontecimentos); e a mudança operada pelos meados do século XVI no processo de remar, transitando da múltiplas ordens de remos 92, alia zenzille, para uma única fiada de remos por banda e vários remadores por remo e por banco, a scaloccio. Foi exactamente numa 88 89 90 91 92 M a r t i n e Acerra e J e a n Meyer, VEmpire des Mers. Des gallions aux clipers, s/l, Office d u Livre, 1990, p. 17. Citado por André Zysberg, «Les galères de France entre 1661 e 1748: restauration, apogée et survivance d'une flotte de guerre en Mediterranée», in Michel Vergé-Franceschi (ed.), Guerre et Commerce en Mediterranée IXe-XXe, Paris, Éd. Veyvier, 1991, pp. 103-122. Existe um bom modelo no Museu Nacional de Arqueologia Marítima de Cartagena, à escala 1/42,5. Os planos originais guardam-se no Arsenal Militar daquela cidade. Galé com dois pavimentos: o inferior para a chusma e o de cima para os soldados. Era um navio muito pesado, quase uma espécie híbrida entre o navio a remos e à vela. Uma trirreme seria uma galé com três fiadas de remos por bordo, com alturas diferentes. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 271 deste último tipo que Fernando Oliveira sugeriu a redução de cinco para quatro remadores por banco 93. Tudo isto se refere à galé clássica, classificada em função do número de bancos, embora não haja uma rigidez absoluta - as opiniões variaram - quanto ao número de bancos por bordo para estabelecer as diferenças entre galés reais, subtis, bastardas e outras 94. Os Portugueses usaram navios a remos em dois quadros navais bem definidos, neste período: no Oriente e no Norte de África, em ambos os lugares com o protagonismo a cair nas embarcações do tipo da galé mas mais pequenas, tais como fustas, bergantins, galeotas, enfim a fustalha de que falam as crónicas. São duas realidades navais a que nos referiremos com toda a brevidade, porque há um contraste marcado entre a atenção que os navios a remos têm merecido da historiografia internacional e na nacional, esta última completamente dominada pela preponderância do navio à vela - justificadamente, aliás. O certo é que os estudos são ainda insuficientes para se poder ter uma ideia global do significado dos navios de remos na História Naval portuguesa95. Em qualquer dos casos estes navios têm uma importância fundamental na aproximação e no combate junto à costa, difícil para os navios de maior calado e menos manobráveis em espaços apertados, como os de vela. Os Portugueses empregaram-nos assim no Oriente, quase desde a sua chegada, e no Norte de África desde que para aí navegaram, quer como resposta a meios idênticos encontrados no local, quer enquanto expressão de uma notável capacidade de adaptação aos circunstancialismos físicos da navegação e da guerra costeiras: o mar oriental seria mesmo o «campo de glória» dos navios a remo, no entender de José Virgílio Pissara % . Habituados ao uso destas embarcações em África, a chegada ao Oriente com armadas de vela (nem outras podiam ser) obrigou a uma rápida adaptação que teve de passar quer pelo transporte de galés desmontadas, que se armavam no local, numa primeira fase, quer pela contratação de técnicos estrangeiros, quer ainda pela utilização dos recursos locais 97. 93 94 V. Parte I, capítulo II. Para t u d o o q u e foi exposto até agora v., c o m o p r i m e i r a i n t r o d u ç ã o à matéria, e s i m u l t a n e a m e n t e expressão d o s c o n h e c i m e n t o s actuais, o conjunto de estudos d o livro Conway's History of the Ship. The Age of the Galley. Mediterranean Oared Vessels since pre-classical Times, Editor: Robert 95 96 97 Gardiner, Consultant Editor: John Morrison, Londres, Conway Maritime Press, 1995. Excepto em relação ao Oriente: João Marinho dos Santos dá aos navios de remo a relevância devida no seu livro já citado (v. n. 68), nas pp. 158-179, e José Virgílio Pissarra tratou sistematicamente as suas características e capacidades operacionais, em páginas informadas e bem d o c u m e n t a d a s : A Armada da Índia. Cômputo, Tipologia e Funcionalidade das Armadas de Guerra no Oriente (1501-1510), Diss. de Mestrado, Faculdade d e Letras d a Universidade de Lisboa, 2 0 0 1 , pp. 68ss (com r e m i s s ã o e b a s e a d o n a bibliografia m a i s i m p o r t a n t e sobre o assunto). Do a u t o r v. a i n d a «A b a s t a r d a d e D. H e n r i q u e d e Meneses e a a r m a d a d e r e m o d a índia», Anais do Clube Militar Naval, vol. 128, 1998, p p . 413-423. José Virgílio Pissarra, A Armada da índia, p . 68. O estabelecimento militar português no Oriente e a sua evolução até 1622, situando os recursos navais com o cuidado devido, foi tratado em perspectiva global por Vítor Rodrigues, A Evolução da Arte da Guerra dos Portugueses no Oriente (1498-1622), Provas para Investigador Auxiliar, 2 vols., Lisboa, IICT, 1998. 272 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES • • " . • . > • • - • • • • • • • - • • • - . :.-:/-V Fig. 20 - Galé do segundo quartel do século XVI, segundo as Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro. Os diversos navios deste tipo que constam da documentação técnica não diferem no essencial quanto à forma arquitectónica, porque no caso destes não há de facto diferenças tipológicas essenciais, diversamente do que se passa com os restantes. Melhor dizendo, elas existem mas não são aplicáveis, porque o único subtipo verdadeiramente distinto, a galeaça, não figura neste corpus e não foi usado pelos Portugueses senão pontualmente 98. As diferenças assinaláveis residem na dimensão e número de remadores, que determinam a funcionalidade e a designação. Os dois primeiros tratadistas navais não cuidaram das galés: Oliveira apenas as mencionou de passagem no Livro em que trata efectivamente da construção naval", que aparece centrada na nau da índia, como sabemos. Quanto a Lavanha, ignorou simplesmente os navios de remo. Manuel Fernandes é um caso diferente, tendo-se tornado responsável pela distorção que o corpus denota, com presença excessiva de navios de remo no 98 99 José Virgílio Pissarra, op. cit., p. 90. Outrossim não acontece com a Ars Náutica, em particular, e pontualmente na Arte da Guerra do Mar, pelas razões que ficaram explicadas no cap. II da Parte I. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 273 cômputo geral, por - permita-se a expressão - deformação profissional. Há um regimento para galé real 10°, dois para galés de 24 bancos 101, dois para galeotas, de 20 e 18 bancos 102, e um para bergantim 103: todos oriundos do Livro de Traças, com excepção do regimento para uma das galés de 24 bancos (a galé sutil), que se encontra nas Coriosidades de Gonçallo de Sousa. Além desta repartição desigual, é a extensão e pormenor dos regimentos de Manuel Fernandes que denota a importância que os navios a remos tinham para este mestre construtor naval. A realidade naval portuguesa ficaria porventura melhor espelhada numa distribuição diversa, em favor do bergantim. Ainda assim, há mais regimentos para embarcações auxiliares que para galés, o que já não é tão fácil de explicar mas se torna comparativamente muito mais importante. Em relação às características das galés propriamente ditas - a real, a de 24 bancos e a sutil, também de 24 bancos - elas são em tudo similares, com lançamentos e largura praticamente idênticos, variando o comprimento e o número de bancos. A galé real tinha 64 goas de comprimento total, medidas «nas pontas das rodas», e 21 palmos «esforçados» na largura máxima. Assumimos que são palmos de goa, tal como ficou expresso no regimento seguinte, o que define uma relação comprimento-boca de 9,1:1 - um navio esguio, no tecto da relação que normalmente se assume para este tipo de embarcações. É de notar que o regimento parece ter sido feito depois e a partir do modelo, dada uma frase que se encontra logo no princípio do documento: «e no pontaual uinte e dous sair se hão fora da esquadria conforme estão nos modelos». Três mastros completavam o aparelho motor, cujo agente principal era o conjunto de remadores que se distribuía por 27 até 30 bancos. Há a reter que estes documentos estipulam o número de bancos mas não de remadores. O comentário de Fernando Oliveira a propósito da galé do rei de França, que foi referido atrás, mostra como o número destes era definido em função de um conjunto de circunstâncias várias, desde o entendimento do capitão quanto à melhor forma de equipar a sua galé até aos recursos humanos disponíveis, o tipo de missão ou navegação a que se destinava, ou tantos outros factores mais. Mas não era atribuição do construtor naval tomar posição sobre isso, cabendo-lhe distribuir o número de bancos pela dimensão do navio. Certos pormenores dão conta de como o espaço era exíguo num navio que tinha 48 metros de comprido: a atenção dada à localização dos escotilhões 104 não tem qualquer correspondência com o que se encontra nos regimentos sobre navios redondos, além de revelar detalhes importantes sobre a distribuição dos espaços. 100 101 102 103 104 Documento AJO. Documentos A.31 e A.32. Documentos A.33 e A.34. Documento A.37. O escotilhão é uma escotilha pequena. 274 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES O Livro de Traças contém mais um regimento de uma galé, em tudo semelhante à anterior mas com 24 bancos (recuados na zona do fogão e do esquife, como se aponta aqui mas não no regimento anterior). Com 59 goas de comprido e 21 palmos de goa de boca, define-se uma relação de 8,4:1. O regimento acrescenta que se devem somar duas goas por cada banco a mais, o que significa que os navios não sofrem qualquer modificação importante na sua forma arquitectónica, ou nas soluções de construção, pelo facto de o tamanho variar. No fundo, é um só tipo de navio, como se disse. A galé sutil das Coriosidad.es é ligeiramente mais curta que a anterior (57 goas para os mesmos 24 bancos), mas em tudo idêntica quanto ao mais. 2.2. Galeota No regimento para a construção de uma galeota de 18 bancos escreve-se a dado passo: «E quantas goas tiuer desquadria a esquadria tantos pares meterão na forma como esta conta farão em todas as mais galés» 105. Resulta claro que, como vimos, galés e galeotas são virtualmente idênticas, até para quem as faz, excepto no tocante à dimensão e número de bancos: as dos regimentos presentes têm 39 e 44 goas de comprido, com 20 e 18 bancos, respectivamente. Estes números resultam de relações diferentes das que vimos acima, mas sem pôr em causa a aludida uniformidade tipológica. Não existe também distinção operacional entre galés e galeotas: o que fazem umas, e como, fazem outras. É de presumir que a opção por uma ou outra possa ter a ver com opções condicionadas por circunstâncias casuísticas: o apresamento de navios pode fazer com que em determinada armada haja mais unidades de um tipo que de outro, por exemplo. Nos primeiros anos da presença portuguesa no Oriente quase não se usaram galeotas, panorama que tendeu a mudar a partir do segundo decénio de Quinhentos 106, mas o seu número foi sempre reduzido. 2.3. Bergantim O termo fustalha, por derivação de fusta, designa a multitude de pequenas embarcações a remos (e um mastro de velame auxiliar) que os Portugueses usaram no Norte de África e no Oriente, como navios de ligação, reconhecimento e aviso, sendo ainda no caso dos maiores empregues no corso e em várias acções militares navais, nomeadamente quanto a mobilidade, rapidez e pequeno calado eram elementos determinantes: aproximações à costa para acções rápidas, subida do curso de rios e similares. 105 106 Documento A.34. José Virgílio Pissarra, op. cit., pp. 88-89. Diz o autor com acerto que a galeota tem menos peças de fogo, consequência natural da sua menor dimensão. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 275 É muito difícil distinguir entre si estes diversos tipos de embarcações, para mais porque no Oriente os Portugueses também usaram o termo genérico para identificar as várias embarcações que encontraram e usaram, com características similares às fustas e bergantins, comuns pelo menos desde o século XV: os poucos elementos documentais que podem ajudar a esta tarefa não autorizam que a distinção se faça pelo critério mais óbvio, o do comprimento e número de bancos, já que são conhecidos bergantins de 10 a 19 bancos, mais um que a galeota, mas é de admitir que esta última situação seja excepcional. Fustas e bergantins seriam por definição mais pequenos que as galeotas. Tanto quanto é possível apurar, o bergantim distinguir-se-ia por ser de voga simples (isto é, um remador por banco e por remo), enquanto as fustas seriam birremes e trirremes 107. A documentação técnica não ajuda a esclarecer o problema. Há um regimento para a construção de um bergantim real, com 20 goas de comprido e 11 palmos de goa de boca, sem indicação do número de bancos 108, e cujo maior interesse reside no facto de mencionar o modelo, o que indicia que eles eram feitos também para guiar a construção de embarcações pequenas - e isso sim, é assinalável; e um regimento geral para embarcações miúdas que do bergantim nada diz, além da menção da palavra no título 109. 3. EMBARCAÇÕES AUXILIARES 3.1. Barco «Designação genérica de qualquer embarcação ou navio», segundo a definição do dicionário de referência da especialidade 110 , que ocorre quase nos mesmos termos em José Pedro Machado: «Designação genérica de toda a espécie de embarcação» i n . A segunda acepção que os dicionaristas reportam interessa-nos mais: qualquer tipo de embarcação auxiliar de pequeno porte. Ainda assim sem o mínimo detalhe específico a assinalar: Maria Alexandra Carbonell Pico anota uma série de ocorrências em tudo semelhantes à barca, embora menos frequentes, tais como barco do concelho, de passagem, de pescar, rodeiro e saveleiro, o que leva 107 Idem, ibidem, p. 94-99. Documento A.37. 109 Documento A.43. 110 Humberto Leitão, Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, 2.a ed., Lisboa, JICU-CEHU, 1974, p. 85. 111 José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol. II, s/l, Amigos do Livro Editores, 1981, p. 262. O termo é tão genérico que nem sequer mereceu rubrica aparte no livro de Quirino da Fonseca, Memórias de Arqueologia Naval Portuguesa, 1.° voj. [único publicado], Lisboa, Tip. de J. F. Pinheiro, 1915. 108 276 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES a autora a concluir que «Barco designa, ora 'embarcação pequena de um só mastro e sem cobertura, usada principalmente na navegação costeira', ora 'qualquer navio'» 112. A palavra ocorre vinte e uma vezes no Livro da Fabrica das Nãos de Fernando Oliveira, maioritariamente no seu sentido mais genérico: «e os homens sempre nauegarão desde começo do mundo, como prouamos no prólogo da premeyra parte desta arte em latim: por que desentão lhe foy necessário passar ryos, e aoguas, que sem nauios ou barcos, de qualquer maneyra que fossem, não podião passar» " 3 . Numa situação em particular o barco é classificado como navio de vela: «Nestes dous géneros se comprendem todas as maneyras de nauios que ha na arte da nauegação. No de uela, nãos, carauelas, barcos, esquifes, e todos os que tem proporção de três por hum, ou menos. No de remo, galees, galeotas, fragatas, fragatins, e todos os que tem em longo sete, ou quasi sete larguras» l14. Pontualmente o autor utiliza a designação genérica para tipos regionais definidos, ou provenientes de localidades específicas, sempre reportando-se a embarcações de pequeno porte: «Os barcos de sanctarem aleuantão agora mays as cabeças, e mudão os nomes de ceruilhas em muletas: isto de quatro dias para caa» H5 . «O mar naquella uiagem requere nauios grandes: por que assi coome elle hum nauio de quinhentos toneys na costa da cafraria de Moçambique atee o cabo, como no adarço de Sacauem para Villafranca hum barco de punhete» 116. «senão em barcos pequenos, como são os do tejo, e quando munto os dalcouchete, e da aldeagallega» H7 . Quanto ao «Regimento para bateis, barcos e fragatas, bargantins e esquifes» das Coriosidades de Gonçallo de Sousa, cumpre dizer que diz apenas respeito, praticamente, aos batéis 118. Em suma, trata-se de um termo genérico e não de uma tipologia definida. 3.2. Batel Designação muito frequente para embarcações de pequeno porte empregues na navegação fluvial e costeira, do tipo da barca. João Brandão refere-se112 Maria Alexandra Tavares Carbonell Pico, A Terminologia Naval Portuguesa Anterior a 1460, Lisboa, Sociedade de Língua Portuguesa, 1963, pp. 51-53. 113 Fernando Oliveira, op. cit., p. 7. 114 Idem, ibidem, p. 62. 115 Idem, ibidem, p. 48. 116 Idem, ibidem, p. 65. 117 Idem, ibidem, p. 161. 118 V. o documento A.43. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 277 -lhes quase indiferentemente, ou seja, não é possível destrinçar no que escreve sobre as embarcações que servem a rede fluvial de abastecimento e comunicação entre Lisboa e as localidades do seu estuário diferenças entre as barcas e os batéis, citadas a par e passo. Como em muitas outras circunstâncias similares, podemos supor que este e outros testemunhos do género se reportam a duas embarcações muito parecidas entre si e iguais na função, sendo a barca maior que o batel. Pelo menos é o que sugere o facto de quase por sistema as menções seguirem esta ordem. Ocorre por exemplo no título «Barcas» da Magestade e Grandezas de Lisboa: «trabalhei por saber o que ganhava nela [cidade de Lisboa] barcas... E assi os mais batees que de continuo andão neste rio» 119. «E pêra milhor de mim dar reza, nomearei aqui os lugares que tê barcas e batees que handam as viagês que vê à cidade. E o que ganhão, e o amais que for necesario pêra dar rezão destes bateis e barcas» 12°. «Em Villa Nova da Rainha anda três barcas e bateis» 121. Para estas actividades a ocorrência do termo é muito frequente desde o século XIV122, associando sempre a sua identificação a uma pequena embarcação a remos ou vela, seguramente de boca aberta, mas sem mais qualquer pormenor identificável: o que é natural pois se trata à evidência de uma tipologia indiferenciada. Também por isso batel pode designar algo totalmente diferente, como ocorre em um passo da Crónica da Guiné, onde o sentido, por analogia, é meramente o de indicar o pequeno tamanho de um meio de navegação em que os mareantes portugueses viram alguns indígenas: «meteronse [os negros] em huú/ pequeno batel/ fecto todo de huu paao cauado sem outra nhúa adyçom, pareceme que deue seer a maneira de coucho, semelhãte a alguus que ha nos Ryos de Mondego ou do zezer» 123. Em geral, porém, batel é pois uma pequena embarcação usada nas lides do transporte e comércio de curta distância, bem como na pesca, caso dos batéis baleeiros em duas citações arroladas por Maria Alexandra Carbonell Pico 124. A sua vulgaridade atesta-se pelas dezenas de ocorrências conhecidas, mormente nas crónicas de Zurara, onde aparece maioritariamente com uma funcio- 119 João Brandão, Tratado da majestade, grandeza e abastança da cidade de Lisboa, na 2." metade do século XVI: estatística de Lisboa de 1552, sôb a dir. de Anselmo Braamcamp Freire, Lisboa, Liv. Ferin, 1923, p. 73. 120 Idem, ibidem, p. 74; única alteração, no autor, à ordem normal de citação. 121 Idem, ibidem, p. 74. 122 Maria Alexandra Tavares Carbonell Pico, op. cit., pp. 59 e ss. 123 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos Notáveis que se Passaram na Conquista de Guiné por Mandado do Infante D. Henrique, ed. Torquato de Sousa Soares, vol. I, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1978, p. 128. 124 Maria Alexandra Tavares Carbonell Pico, op. cit., p. 63. 278 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES nalidade diversa. Trata-se neste caso do escaler de serviço a navios maiores, como aliás acontece na globalidade dos casos já mesmo desde o século XIV. É este o sentido que interessa considerar aqui, e as duas referências mais antigas reportam-se precisamente a esta situação. Como no documento de 25 de Julho de 1339, «todo navyo que de fora parte for, se trouxer batel ou gondora pagara três soldos e quatro djnheiros e mealha»; e num outro de 7 de Junho de 1354 em termos em tudo idênticos 125. Assim, o termo designa uma pequena embarcação auxiliar de navio de maior porte, ou a principal das auxiliares quando há mais de uma. As circunstâncias em que serve são basicamente as mesmas, as dimensões variam notoriamente em função das da embarcação principal. Uma caravela traz consigo um pequeno batel a remos, tripulado por uns quatro ou seis homens, normalmente, o de uma nau da índia pode levar vinte homens, ser artilhado e empregue eficazmente em acções militares ofensivas, sobretudo quando se juntam os batéis de várias naus e agem em consonância. Entende-se pois com facilidade que o batel seja nomeado muito mais vezes na Crónica da Guiné que no conjunto das restantes obras de Zurara. É o tipo de viagens que aquela descreve que potência a sua utilização frequente: o desembarque para aguadas ou reconhecimento de zonas costeiras, a exploração das águas junto à costa antes da aproximação dos navios com maior calado (mesmo para as caravelas, a diferença é naturalmente significativa), o reconhecimento de enseadas, das embocaduras dos rios, e tantas mais situações similares. Zurara documenta todas estas situações, tão características das viagens de exploração. Mas não as exemplificaremos com os seus textos já que para este efeito seguiremos uma outra fonte, também de grande importância: o chamado Diário, ou mais propriamente Relação da viagem de Vasco da Gama, por norma atribuído a Álvaro Velho 126. O batel é profusamente referenciado nas fontes narrativas que tratam de viagens ou acções navais, em particular quando estas dizem respeito a armadas compostas por navios de alto bordo; obriga-o a frequência com que verificamos ser empregue em situações as mais diversas. Mas estas ocorrências são tão menos frequentes quanto mais regular é a navegação de longo curso, pois, como é óbvio, em pleno mar alto faltam as oportunidades para pôr na água os esca- 125 João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, INIC, 1988, p. 57; e Suplemento ao vol. I, p. 281; ambas as ocorrências estão assinaladas em Maria Alexandra Tavares Carbonell Pico, op. cit., p. 60. 126 Em comunicação apresentada ao II Simpósio de História Marítima organizado pela Academia de Marinha, Carmen Radulet discutiu a possibilidade da atribuição desta autoria a João de Sá. A hipótese é sugestiva, mas a sua discussão não é relevante neste lugar. V. Carmen Radulet, «Acerca da autoria do 'Diário de Navegação de Vasco da Gama' (1497-1499»), in II Simpósio de História Marítima. Os Descobrimentos Portugueses no Século XV, Lisboa, Academia de Marinha, 1999, pp. 89-100. Quanto à questão de se tratar de um diário ou relação, louvamo-nos na opinião de Luís de Albuquerque (Relação da Viagem de Vasco da Gama. Álvaro Velho, Introdução e notas de Luís de Albuquerque, Lisboa, CNCDP/Ministério da Educação, 1988, p. 6). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 279 leres. Numa situação extrema consideremos as viagens de rota batida: os batéis são arreados à partida e à chegada, e as ocasiões em que poderiam ser utilizados entretanto, como as aguadas, pura e simplesmente não existem nestes casos. A Relação dita de Álvaro Velho é assim um texto algo excepcional. A viagem foi anormalmente longa para o que seria depois a rotina da Carreira da índia: foi uma exploração que implicou numerosas paragens, reconhecimentos de costas, contactos com populações desconhecidas, às vezes pacíficos mas outras vezes não tanto, obrigando a tomadas de força, ao envio de pequenos destacamentos, enfim sucederam-se a ritmo bastante superior ao que seria depois normal na Carreira as situações em que houve que fazer recurso aos batéis. A Relação é por isso exemplificativa de todas as circunstâncias em que numa armada de alto bordo se empregavam os escaleres, e o detalhe do relato dá-nos conta de um número significativo de particularidades. Podemos encontrar na Relação trechos alusivos a cada funcionalidade específica dos batéis das naus da armada. Sigamo-las portanto, à medida que nos vão surgindo. 1) sondagem das condições de abrigo para as naus - verificação de profundidade da água e dos ventos: «À terça-feira viemos na volta da terra, e houvemos vista duma terra baixa e que tinha uma grande baía. O capitão-mor mandou Pêro de Alenquer no batel a sondar se achava bom pouso, pelo qual a achou muito boa e limpa e abrigada de todos os ventos, excepto de noroeste» 127; 2) desembarque de contingentes armados: «estando nós ainda na dita angra de São Brás, vieram obra de noventa homens... E, quando os vimos, fomos em terra em os batéis, os quais levávamos muito bem armados» 128; «E o capitão mandou que saíssemos em terra com lanças, azagaias e bestas armadas e nossos gibanetes vestidos... eles, quando isto viram, começaram de se ajuntar e correr uns para outros; e o capitão, para não dar azo para se matar deles alguns, mandou que se recolhessem todos aos batéis; e... mandou que se tirassem duas bombardas que estavam na popa da barca» 129; 3) exploração costeira e desembarque de reconhecimento: «E sendo uma quinta-feira, que eram dez dias de Janeiro, houvemos vista de um rio pequeno e aqui pousámos ao longo da costa; e ao outro dia fomos em os batéis em terra» 130; 127 Relação da Viagem de Vasco da Gama. Álvaro Velho, p p . 11-12. Ibidem, pp. 15-16. 129 Ibidem, pp. 18-19. Barca ocorre aqui como sinónimo de batel, o que não é usual neste texto. 128 XM Ibidem, p. 23. 280 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES 4) aguada e abastecimento: «Aqui estivemos cinco dias tomando água, a qual nos acarretavam aos batéis aqueles que nos vinham a ver» m ; «E botámos um batel fora, para havermos de tomar água e lenha que nos bastasse em aquela travessia» 132; «Mandou logo o capitão-mor a Nicolau Coelho em um batel armado, a ver onde estava a aguada» 133; 5) acções ofensivas: «Um daqueles pilotos ficara em a ilha e, depois que pousámos, armámos dois batéis para havermos de ir por ele... saíram a eles [batéis] cinco ou seis barcos, com muita gente, a qual trazia arcos com suas flechas... E o capitão-mor, quando viu aquilo, prendeu o piloto, que levava consigo, e mandou que atirassem com as bombardas àqueles que vinham nos barcos» 134; «veio um mouro em direito dos navios a dizer que quiséssemos água que fôssemos por ela, dando a entender que lá estava quem nos faria tornar. E o capitão-mor, quando viu isto, determinou que fôssemos, para lhes mostrarmos como lhes podíamos fazer mal se quiséssemos. Pelo qual logo, com os batéis armados e bombardas nas popas deles, nos fomos à aldeia... Mas nós com as bombardas, lhes fazía[mos] tal companhia que lhes conveio deixar a praia e meterem-se na paliçada... e nisto estivemos obra de três horas... e depois de estarmos deles enfadados, viemo-nos a jantar aos navios; e eles começaram logo de fugir... E nós, depois que jantámos, fomos com os batéis a ver se podíamos tomar alguns deles» 135; «E à segunda-feira fomos ante a vila, com os batéis armados... e depois que lhes atirámos com as bombardas» 136; 6) auxílio aos navios maiores: «deu o navio São Rafael em seco em uns baixos, que estão da terra firme duas léguas; e, quando deu em seco, bradou aos outros que vinham detrás, os quais, tanto que ouviram os brados, pousaram dele a um tiro de bombarda e lançaram os batéis fora. E, quando foi baixa-mar, ficou o navio de todo em seco e com os batéis lançaram muitas âncoras ao mar; e quando veio a maré do dia, que foi preia-mar, saiu o navio, com [o] que todos folgámos muito» 137; 131 Ibidem, Ibidem, 133 Ibidem, 134 Ibidem, 135 Ibidem, 136 Ibidem, 137 Ibidem, 132 p. 25. p. 86. p. 89. p. 31. p. 35. p. 36. p. 38. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 281 7) transporte e elemento de ligação: «A quarta-feira, depois do jantar, veio el-rei em uma zavra, e veio junto dos navios; e o capitão saiu em o seu batel, muito bem corregedo, e, quando chegou onde el-rei estava, logo se o dito rei se meteu com ele» 138; «E ao outro dia pela manhã... foi o capitão a falar a el-rei e levou consigo, dos seus, treze homens, dos quais eu fui um deles; e todos íamos muito bem ataviados, e levávamos bombardas nos batéis, e trombetas e muitas bandeiras» 139. Pormenor curioso é o da localização das bombardas na popa dos batéis (o senso comum esperaria porventura vê-las à proa), o que sem dúvida acontecia apenas nos que serviam naus. Não é muito crível que os batéis de caravelas tivessem dimensão para tanto 140, por via de regra; quatro-seis a dez-doze pessoas por batel é o que aparece quase sempre em Zurara, com uma ou outra excepção: dezassete tripulantes é o máximo registado nas suas crónicas 141. Compreende-se portanto que a dimensão média a par do facto de a artilharia embarcada ser pouco frequente nos meados do século XV faça com que os batéis artilhados apareçam muito raramente nos escritos do cronista 142. Diferentemente do que se passa com a Relação atribuída a Álvaro Velho, escrita numa altura em que as circunstâncias já eram bem diferentes. Quanto a Fernando Oliveira, enquanto a Arte da Guerra do Mar foi escrita sob a égide dos navios de guerra a remos, o Livro da Fabrica das Nãos foi-o sob a dos grandes veleiros. Poder-se-ia supor que neste último haveria referências aos batéis, mas a palavra não ocorre (sob qualquer forma) uma única vez 143. Compreende-se que assim seja. Ao autor interessaram os aspectos gerais da construção dos navios, nesta obra, e não tanto a prática das navegações. E, de construção, o que diz é apenas respeitante a caravelas, naus e galões. Por isso encontramos uma menção sintomática da utilização do batel mas na descrição feita na Arte da Guerra do episódio de Velez; à vista do inimigo, conforme escreveu Fernando Oliveira, os Portugueses desorientaram-se e cada um fazia coisa com menos jeito que outro, alguns procurando fugir para terra nos batéis e regressando logo se seguida aos navios 144. Em contrapartida a esta parcimónia de menções, dispomos de nada menos de três regimentos gerais para batéis: um primeiro, genérico, para «batéis, 138 Ibidem, p. 45. Ibidem, p . 53. Que as caravelas tinham batéis a seu serviço atesta-o a Crónica da Guiné, por exemplo no cap. RVIII: «Os outros dous batees... recolheronse a suas carauellas» (ed. cit., p. 183). 141 Crónica da Guiné, cap. LR: «fez lançar seu batel ê terra com xvii homeês» (ed. cít., p. 336). 142 «fazendo chegar seu batel aa ourella da augua donde fazia assaz damno nos mouros com as artelharyas que leuaua» (Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, ed. Larry King, Lisboa, UNL, 1978, cap. Rvj, p. 141); «aos batees em que Luis aluarez andaua com sua gente fazendo tyrar com seus troons aos mouros que uya mais acerca do mar» (ibidem, cap. L, p. 150). 143 Aparece sim na parte final da Ars Náutica, mas num passo muito confuso. 144 Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983, p. 125. n9 140 282 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES barcos e fragatas, bargantins e esquifes» das Coriosidades de Gonçallo de Sousa 145, manuscrito onde se encerra também o do batel de doze goas 146, e o regimento do batel grande de uma nau de quatro cobertas, segundo o Livro de Traças de Carpintaria 147. Tanto nas Coriosidades como no Livro de Traças a nau grande ou da índia tem 17,5 ou 18 rumos de quilha, mas os batéis são ligeiramente diferentes: maior o primeiro (no regimento genérico), um pouco menor o segundo. O primeiro tem 14 goas de comprido e outros tantos palmos de goa de boca: «Hú batel de quatorze goas para húa nao da jndia... terá quatorze palmos de goa porque quantas goas tem de comprido de topo a topo tantos palmos terá de boca, para melhor ficar mais certo» 148 . A conversão para o sistema métrico decimal dá-nos um comprimento de 10,5m por 3,5m de boca, portanto a mesma relação 3:1 que encontramos nos navios oceânicos de vela, e uma relação de 2,6:1 entre o comprimento das quilhas da nau e do batel, neste caso, um pouco superior, a favor deste último, à medida padrão de 3:1 149. A altura das rodas de proa e popa é de 7 e 6 palmos 15°, respectivamente, «e farão como tenho dito pellas alturas das cubertas onde ha de ir o batel» 151: é lícito deduzir que, sendo o batel normalmente transportado na coberta abaixo do convés, de onde era içado quando necessário 152, a altura dessa coberta deveria ser a mesma ou não inferior à mais elevada das rodas do escaler (ou de outra forma este sairia pela coberta, por assim dizer). No Livro de Traças encontramos plantas com escala que nos mostram ser superior a altura da coberta em causa 153. O batel do Livro de Traças, como já dissemos, é mais pequeno (13 goas de roda a roda); um pormenor curioso é que menciona a tilha da proa, até à almogama 154; com certeza apenas um pequeno compartimento com espaço apenas para guardar apetrechos e algumas vitualhas, como hoje se encontra ainda normalmente nos botes a remos. Em ambos os casos se dá conta do espaço entre os bancos: 2,5 palmos de goa no primeiro, 7 palmos no segundo. A primeira destas distâncias parece-nos ser excessivamente curta: menos de 70 cm para as pernas de cada remador, o 145 Documento A.43. Documento A.45. 147 Documento A.44. 148 Documento A.43. 149 Humberto Leitão, op. cit., p. 91. 150 É o que está escrito no documento, mas subentende-se que se trata de palmos de goa, a medida base para estas embarcações pequenas, e não de palmos comuns. 151 Documento A.43. 152 Humberto Leitão, op. cit., p. 91. 153 8,5 palmos numa planta do fl. 71, 9 palmos no fl. 77 (Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21). 134 Documento A.44. 146 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 283 que é tão só suficiente e não deixa espaço para mais nada. Os 7 palmos são bem mais exequíveis, pois apontam para um total de cinco bancos no máximo 155, ou seja, cinco remos por banda, o que se afigura ser perfeitamente razoável; a largura do batel permitiria até pôr dois homens por remo nos bancos do meio em caso de necessidade. No desenho do batel incluso no Livro, que realça a forma bojuda da embarcação, notam-se estes pormenores: a tilha à proa, cinco bancos para remadores e lugar no do meio para um pequeno mastro com vela auxiliar, e um assento à ré para o homem do leme 156. 3.3. Esquife O esquife era o segundo escaler dos navios de grande porte, e o principal das embarcações do tipo da galé, que os deveriam rebocar pela popa, pois não podia ser transportado como os batéis nas naus e galeões. O termo não ocorre frequentemente, tanto nos documentos como nos textos historiográficos. Basta dizer que das obras de referência especializadas apenas Humberto Leitão lhe dedica uma pequena entrada 157 , enquanto Carbonell Pico, Gomes Pedrosa e Adolfo Martins 158 não o reportoriam em rubrica própria. Mas ao contrário do que sucede com o batel (o que não deixa de causar alguma estranheza), Fernando Oliveira menciona-o no passo do Livro da Fabrica das Nãos citado antes: «Nestes dous géneros... No de uela, nãos, carauelas, barcos, esquifes, e todos os que tem proporção de três por hum, ou menos» 159. E é uma menção que, valha a verdade, não se entende muito bem. O esquife aparece aqui identificado como uma embarcação autónoma, por assim dizer, para mais incluído no grupo dos navios de vela. Indubitavelmente, porém, estamos perante um pequeno escaler a remos, o que não quer dizer que os maiores não pudessem arvorar um pequeno mastro com vela auxiliar. Uma outra circunstância curiosa é a de que dispomos de nada menos de quatro regimentos gerais relativos a esquifes 160, além de um regimento genérico a várias embarcações 161; há portanto mais documentos do género para esquifes do que para caravelas redondas, por exemplo. 155 Convém relembrar que não é raro haver discordâncias entre o texto dos regimentos e as plantas que estão na segunda parte do Livro. 156 Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 136v. 157 V. Humberto Leitão, op. cit., p. 246. 158 Maria Alexandra Tavares Carbonell Pico, op. cit.; Fernando Gomes Pedrosa (coord.), História da Marinha Portuguesa. Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499, Lisboa, Academia de Marinha, 1997; Adolfo Silveira Martins, A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2001. 159 Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, p. 46. 160 Documentos A.46 a A.49. 161 Documento A.43. 284 CAPÍTULO II: NAVIOS E EMBARCAÇÕES AUXILIARES O «Regimento para bateis, barcos e fragatas, bargantis e esquifes» sugere até a dado passo que batel e esquife eram a mesma coisa, ou pelo menos muito idênticos entre si 162 ; mas os restantes regimentos mostram que não é assim: os esquifes de nove goas, o da galé de 24 bancos e os de 7 goas têm, respectivamente, depois de feitas as conversões, 6,75m, 6,375m e 5,25m de comprimento: significativamente mais pequenos que os batéis das naus da índia e com uma dimensão mais apropriada para a função de escaler secundário ou para o serviço das galés, como se disse acima. Apesar de tudo o esquife podia transportar um número não muito pequeno de homens, como parece sugerir um passo de uma carta escrita pelo jesuíta Fernão da Cunha, em 1562: «Ao dia seguinte polia menhãa me pedirão todos os da nao que fosse a terra no esquife da nao e para isso nos darião gente e marinheyros» 163. O termo caiu depois em desuso, e um documento de 22.2.1633 já designa uma embarcação similar por chalupa. Por este se comprova também que normalmente apenas os maiores navios levavam dois escaleres auxiliares, bastando um para os mais pequenos: «Os galiões de 600 tonelladas arriba hão de leuar hú batel e hua chalupa cada hu, com seus remos, e os de 300 tonelladas e os pataxos leuarão chalupa ou batel pois para nauio pequeno basta hua couza» 164. 3.4. Fragata Em qualquer obra de referência sobre embarcações à vela, a fragata é um navio de médio porte, com duas cobertas onde montava a artilharia: «Fragatta se dis todo o Navio de gerra mediano, sendo comprido e razo» 165; em suma, um típico navio de segunda linha do século XVIII, fadado para missões de apoio e suporte das principais embarcações das armadas. As origens das embarcações deste tipo e com esta designação são obscuras, já que correspondem em parte à tipologia dos navios de segunda linha do século XVI e princípios do século XVII, como sejam a caravela redonda e o patacho, e com idênticas funcionalidades. Mas quando surgiu exactamente este tipo de fragata e com que características distintivas não se sabe ao certo: nos quatro volumes que lhes dedica nos seus Três Séculos no Mar, António Marques Esparteiro começa por as classificar como pequenas embarcações do tipo da galé, com oito a dez bancos e um remador por banco, apenas, para depois afirmar que no tempo dos Filipes surgiu um tipo de navio com três mastros e fraco andamento, armando menos de 20 peças, e que se designava por fragata. Todavia, o 162 Documento A.43. Documentos Sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central 1497-1840, vol. VIII (1561-1588), Lisboa, National Archives of Rhodesia / CEHU da JICU, 1975, p. 106. 164 Arquivo Geral de Marinha, n.° 2461, fls. 116-116v. 165 Dieta Náutica e Militar, BNL - Reservados, Col. Pombalina, n.° 118, fl. 840 (manuscrito de 1720). 163 Os NAVIOS DO M A R OCEANO 285 primeiro que identificou em concreto, o «Santo António», navegou entre 1641 e 1644, tinha 120 tonéis, armava 14 peças e era guarnecido por 100 homens 166. Há portanto alguma contradição nas afirmações relativas à cronologia e ao tipo de navio em presença - agravadas pelo facto de a obra não conter uma única abonação documental ou bibliográfica. Fernando Oliveira classifica a fragata de modo inequívoco, como já se viu: «No [genéro dos navios] de remo, galees, galeotas, fragatas, fragatins, e todos os que tem em longo sete, ou quasi sete larguras» 167. Ou seja, uma embarcação auxiliar de pequeno porte, a remos, com uma relação comprimento-boca de 7:1, normal nestas tipologias. Os três regimentos existentes confirmam basicamente estes dados 168, com uma excepção. No das Curiosidades de Gonçalo de Sousa, a fragata de 10 goas de comprido tinha de boca sete palmos de goa «esforçados» 169, definindo uma relação de 4,3:1 que confere ao barco uma aparência bem mais bojuda que a suposta por Fernando Oliveira. É interessante notar que poucos regimentos dão como este a justa medida do nível de imprecisão em que se situava a regulação das medidas para a construção naval. A medida da boca mantinha-se para um comprimento de 9 a 11 goas (com relações de 3,9:1 e 4,7:1, respectivamente), «mas bastarão se quizerem seis e meio», mais de nove goas «bastará como tenho dito acima», mas se for de nove goas bastarão os sete palmos. Os palmos podiam ser «esforçados», e o dragante teria um terço da boca, e «e dar lhe ão mais o que parecer bem para que fique maior a popa» 170. Enfim, na prática o mestre construtor tinha uma muito ampla margem de escolha e era possível construir diversas fragatas bem diferentes umas das outras com base no mesmo regimento. No trecho citado Fernando Oliveira menciona ainda os fragatins, termo que dá como sinónimo de bergantim na Arte da Guerra do Mar, em passagem que bem se vê dizer respeito a embarcações pequena: «Nas fragatas ou fragatins que quaa chamam bragantins» 171. Ainda assim não fica tudo dito da fragata, um termo que designa tipos distintos de embarcações. 3.5. Falua No Livro de Traças de Carpintaria há um regimento para a construção da uma falua 172 com 42 palmos de goa de roda a roda, ou seja, contados entre as 166 António Marques Esparteiro, Três Séculos no Mar 1640-1910, III Parte: Fragatas, 1.° vol., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978, pp. 3-5. 167 Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, p. 46. 168 Documentos A.40, A.41 e A.42. 169 Documento A.40. ™lbidem. 171 Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 72. 172 V. Documento A.38. 286 CAPITULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS extremidades das rodas de popa e de proa. Um barco com cerca de 10,5m de comprido, em muito parecido com as fragatas que vimos acima. A falua era um barco de navegação fluvial, característico do estuário do Tejo, de boa navegação nas difíceis condições que aí se encontram por vezes, onde os barcos podem ter de passar com profundidades muito baixas, e destinado ao transporte de mercadorias mas servindo também passageiros. Em boa verdade esta descrição aplica-se a um leque variado de embarcações; modernamente chamavam-se-lhes fragatas, podendo ir até 200 toneladas de arqueação, faluas quando eram do mesmo tipo mas de menor arqueação, e botes às mais pequenas. O aparelho e características morfológicas foram variando com os tempos, naturalmente 173. Se podemos juntar a fragata à miríade de pequenas embarcações a remos a que genericamente se chamava fustalha, com funcionalidades várias e testemunho de serviço em paragens diversas, de Marrocos ao Oriente, estamos em crer que da falua não se pode dizer a mesma coisa, e tudo leva a crer que é barco do mesmo tipo mas de utilização localizada na navegação fluvial do Tejo. 1 Estêvão Carrasco e Alberto Peres, Barcos do Tejo, Lisboa, Inapa, 1997, pp. 23-26. CAPÍTULO IIII O PODER NAVAL PORTUGUÊS Em 1890 Alfred Thayer Mahan, um oficial da marinha de guerra norte-americana, publicou um livro intitulado The influence ofsea power upon history 1660-1783 l; não se tratava exactamente de um livro de História, apesar do título e do conteúdo, antes o autor pretendia responder a problemas concretos da realidade em que vivia. Mahan tinha algo a dizer sobre o que entendia dever ser o futuro da Marinha norte-americana, onde alcançou lugar de destaque precisamente por causa da sua extensa obra e da leccionação no Naval War College, já que não se notabilizou em particular no plano da acção, apesar de ter servido na guerra civil. Nascido em West Point no ano de 1840, filho de um professor da academia militar, cursou a U. S. Naval Academy onde se graduou com distinção em 1859, vindo depois a leccionar no Naval War College a partir de 1886. Chegou a presidente da instituição e reformou-se como almirante em 1896, embora fosse chamado ao activo em 1898 aquando da guerra que opôs os Estados Unidos à Espanha. Morreu em Dezembro de 1914, predizendo a futura derrota da Alemanha na Grande Guerra que então se iniciava, e já celebrado pela importância da sua prolixa e influente obra; 20 livros e 161 artigos, além de outras peças mais pequenas, quase todas reimpressas, embora os números mostrem a forma como o livro citado acima prepondera sobre todos os seus outros escritos: reeditado mais de 50 vezes, nunca deixou de estar disponível desde o momento da sua publicação até aos nossos dias. E além disso há que contar com as biografias e os estudos sobre o seu pensamento, a correspondência, também publicada, e até um guia da importante colecção de manuscritos que deixou 2. Alfred Thayer Mahan, The Influence of Sea Power Upon History 1660-1783, Londres, Sampson Low, Marston & Company, 1890. A mais recente e completa compilação dos trabalhos de Mahan é a de John B. Hattendorf and Lynn C. Hattendorf (compiled by), A Bibliography ofThe Works pf Alfred Thayer Mahan, Newport, Naval War College Press, 1986. 288 CAPÍTULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS Existe uma razão objectiva para justificar todo o interesse que desde sempre se manifestou em torno de Mahan e do seu livro, pois nele se criou, conceptualizou e exemplificou uma ideia chave: a de Poder Naval. Mahan encarou a História como instrumento de trabalho para a demonstração que empreendeu. As suas conclusões compreendem-se apenas na medida em que se entende a forma como pensou os novos desafios que se colocavam à marinha norte-americana naquele final do século XIX. Na perspectiva de uma renovação profunda dos mecanismos de pensar e fazer a guerra naval, que passava em primeiro lugar pelo reforço da tecnologia e pelo aparecimento de novos tipos de embarcações - fruto também do peso que o complexo militar-industrial ia ganhando na definição da estratégia naval norte-americana -, a lição de Mahan procurou afirmar um modelo que buscava na História da navegação à vela a sua matriz principal 3 . Mahan não definiu exactamente o que entendia por Poder Naval na sua obra clássica, tendo optado pelo arrolar das condições que garantiriam o poder naval de uma nação: nos planos militar naval, político, estratégico e logístico, essencialmente. O Poder Naval de um país não se aferia portanto pela adequação da sua situação militar naval a um status quo pré-definido, mas verificava-se pela reunião de um dado número de condições, que iam desde a perspectiva estratégica dos líderes políticos à posse de uma marinha de guerra com capacidade de actuar a longo alcance, juntando a eficácia dos vasos de guerra ao controlo de pontos chave na ou nas áreas em que pretendia intervir ou se situavam estrategicamente no seu âmbito de acção. Este conceito de Poder Naval é uma emanação do ordenamento político-estratégico que determina as condições em que a uma nação pode ou deve convir actuar nos termos propostos. A História Naval na era da navegação à vela tinha um modelo óbvio: a Royal Navy, cujo poder militar não podia ser comparável ao de qualquer outra nação fosse em que momento histórico fosse, na óptica (anglo-saxónica) de quem escrevia nos finais do século XIX. O conceito de Poder Naval de Mahan é por isso também, em grande parte, o resultado de um estudo instrumental da História da Royal Navy, em busca da detecção das condições de um sucesso anunciado; e se a ideia que resulta desse estudo tem em si uma dinâmica muito própria, é porém evidente que se baseia fortemente num modelo histórico. Como disse John Guilmartin Jr, referindo-se ao livro de Mahan: «It was, in essence, the distillation of a hundred and twenty years of highly successful English experience» 4. Também por isso estava garantido o seu sucesso editorial; mas o problema é o de se saber em que medida uma reflexão com já mais de um século continua a beneficiar da adequação dos pressupostos históricos em que se fundamenta. Sobre as influências e os propósitos de Mahan, veja-se (apesar do tom eminentemente apologético) Barry M. Gough, «The Influence of History on Mahan», in John B. Hattendorf (ed. by), The Influence of History on Mahan, Newport, Naval War College Press, 1991, pp. 7-23; os outros estudos reunidos neste volume tratam sobretudo da influência que o pensamento de Mahan teve nas marinhas do último século. John Francis Guilmartin Jr, Gunpowder and Gaííeys. Changing technology and Maditerranean warfare at sea in the sixteenth century, Londres, Cambridge University Press, 1974, p. 16. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 289 O conceito de Poder Naval tornou-se tópico dominante no pensamento político e estratégico deste século, e se de alguma forma era exactamente isso que Mahan pretendia, o certo é que o método se sobrepôs ao objectivo na definição da historicidade do problema. De facto, essa visão algo instrumental (ou instrumentalizada?) da História veio a ser a base da percepção generalizada do estudo histórico do Poder Naval. Desde Mahan, e por sua causa, o Poder Naval é um conceito operativo a partir dos meados do século XVII, e assim continuou e continua a ser considerado nos nossos dias5. A base original de reflexão continua a ser a obra do criador e popularizador da primeira formalização do conceito. É certo que a reflexão geo-estratégica contemporânea retém mais o significante que o significado propriamente dito, pois as condições e os meios da guerra alteraram-se de tal forma, sobretudo no último meio século, que o modelo da era da navegação à vela já pouco diz como mecanismo solucionador de respostas a encontrar para os desafios do presente e do futuro. O que se mantém é a ideia de que Mahan criou o tema e balizou-o cronologicamente desde a raiz. De fora ficou toda a história naval ibérica anterior, de fora ficou um século XVI geralmente pouco considerado no panorama actual da História Naval e Marítima. Poder-se-ia tentar justificar essa omissão procurando níveis de explicação diferenciados, mas não há dúvida de que isso se deve em boa parte ao predomínio da historiografia anglo-saxónica nesta área, tanto do ponto de vista da imensa produção de estudos como da qualidade intrínseca de muitos deles. A historiografia ibérica, ou portuguesa em particular, tem pouca expressão neste domínio, e o que publica internacionalmente cai mais na esfera do que se poderia chamar uma História dos Descobrimentos ou das Navegações, ou ainda das Explorações Geográficas, do que, para o período em apreço, no âmbito do que é a História Naval e Marítima nos termos em que é geralmente considerada. Mahan ignorou a realidade naval ibérica por duas ordens de razões diversas. Por um lado ela não adiantava nada ao seu propósito primeiro, o de construir um modelo sobre uma realidade pré-existente, historicamente falando, além de que pelos meados do século XVII os países ibéricos começavam a ficar fora da corrida no que dizia respeito ao controlo dos mares, ultrapassadas pelas potências emergentes: a Inglaterra e os Países Baixos. Por outro, mesmo que o quisesse fazer isso seria tarefa bastante difícil: a Espanha era uma antagonista dos Estados Unidos, e reconhecê-la como potência naval (mesmo que passada) estaria fora de questão, como notou argutamente Jesus Salgado Alba6; em relação a Portugal, Mahan pura e simplesmente não encontraria referências bibliográficas que lhe permitissem aperceber a importância histórica da marinha portuguesa no século XVI, muito ao contrário daquilo que já então sucedia em relação às marinhas inglesa e neerlandesa para um período pouco posterior. Para além de tudo o mais que importa considerar em planos de maior elabo5 6 Richard Harding, Seapower and Naval Warfare 1650-1830, Londres, UCL Press, 1999. Jesus Salgado Alba, El poder naval ante Ia realidad política espanola, Madrid, Instituto de Historia y Política Naval, 1982, p. 3. 290 CAPITULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS ração, há um problema essencial, o do acesso à informação, que convém valorizar na medida justa. Esse problema não se manteve continuadamente nos mesmos termos. Crescendo exponencialmente a quantidade de informação disponível no domínio da História Naval e Marítima nos últimos decénios, se ficou mais cada vez mais marcada a preponderância da «escola» anglo-saxónica, não deixou também de ser verdade que a informação sobre a realidade histórica portuguesa e sua disponibilização cresceram também, embora em termos diferentes. O problema da determinação do momento histórico a partir do qual se torna operativo o conceito de Poder Naval é um problema historiográfico. Porém não foram historiadores a relançar a questão em termos inovadores, e tão pouco foram portugueses ou ibéricos. Em 1988 George Modelski e William Thompson, dois especialistas de Ciência Política, propuseram uma nova visão da evolução do Poder Naval de finais do século XV aos nossos dias, concluindo que se assistiu até agora à formação de quatro grandes potências navais à escala mundial: Portugal, Holanda, Inglaterra e Estados Unidos da América do Norte, por esta ordem. Tal como Mahan, para estes autores a Espanha não mereceu nunca tal estatuto, mas por um motivo bem diferente: consideram-na uma potência regional, tendo em conta as áreas de intervenção e a esfera de influência dos seus recursos marítimos. Uma apreciação comparada das obras em presença fará de imediato ressaltar as diversas metodologias e critérios que foram seguidos, o que condiciona determinantemente os juízos finais apresentados, e também muito naturalmente se espera de livros escritos com praticamente um século de intervalo. Mas as diferentes perspectivas com que deparamos decorrem sobretudo da ponderação cronológica: o que autorizou Modelski e Thompson a apontar Portugal como primeira grande potência naval da Era Moderna foi, sobretudo, o período abrangido pelo seu estudo; a antecipação de mais de cem anos em relação ao estudo matricial de Mahan teve por consequência óbvia o chamar à ribalta da potência que primeiramente dominou a navegação de alto mar. Uma questão a que importa dar o devido realce é a do não recuo destes autores perante a notória dificuldade em encontrar fontes de informação suficientes para ponderar os critérios que permitem classificar um país como potência naval à escala mundial (de acordo com a grelha por eles construída). Na contagem das fontes informativas de que se serviram para calcular o número de navios de guerra por país e período, percebe-se bem o quão difícil se torna avaliar o caso português. A consideração do instrumento específico do poder naval - o navio - não é por outro lado problema de somenos. A análise dos recursos navais dos países europeus até aos meados do século XVII resulta em extremo difícil pela falta de elementos que possibilitem o seu estudo comparativo com a minúcia necessária à caracterização dos vasos que efectivamente podem ser considerados como factor a tomar em linha de conta para a afirmação de uma potência naval - os navios de guerra. É notória a falta de fiabilidade da documentação quanto ao que importa apurar, no mínimo até finais do século XVI. O Anthony's Roll, com a Os NAVIOS DO M A R OCEANO 291 descrição casuística das embarcações inglesas do tempo de Henrique VIII, é caso único, e em simultâneo exemplo perfeito dos obstáculos que se nos colocam: tendo sido feitos à vista por um desenhador especialmente encarregue dessa tarefa pelo rei, poder-se-ia pressupor a fiabilidade dos «retratos» dos navios de Henrique VIII, mas a comparação do «Mary Rose» que Anthony Anthony debuxou - aliás com grande riqueza cromática e de pormenores - com a reconstituição do navio feita a partir da recuperação dos despojos que resultaram da mais espectacular operação de arqueologia subaquática dos nossos dias, faz qualquer observador perguntar-se se não está perante dois navios completamente diferentes. Mas mesmo que assim não fosse será caso para nos interrogarmos até que ponto seria possível definir exactamente o que era um navio de guerra até, digamos, circa 1600, exceptuando-se naturalmente os navios a remos que não importam ao caso nesta circunstância. A destrinça genérica entre navios de comércio e de guerra nas marinhas europeias - falando de navios de alto bordo - é por norma tanto mais obscura quanto mais recuamos no tempo. No fundo, a grande questão que se põe é a de saber se não se está perante a deslocação de um problema que faz todo o sentido a partir do século XVII, pelo menos, para um período bem mais recuado. Quer isto dizer que a documentação poderá nunca solucionar uma dúvida que reflecte um critério que, por hipótese, pode de todo não se aplicar à centúria em que a navegação de alto mar foi dominada pela marinha portuguesa. O nosso ponto de vista é o de que Portugal é a única excepção à regra, pois é inquestionável que nas marinhas europeias do século XVI não apareceu tão cedo como em Portugal um navio de alto mar sem outra funcionalidade específica que não a guerra naval: foi o caso da caravela redonda ou de armada. O Poder Naval tem pois um instrumento específico, mas não é um fim em si mesmo. Para Modelski e Thompson, o que realmente está em causa é a questão política global e o Poder Naval enquanto instrumento de domínio político efectivo. Nesse sentido os autores encontraram uma estreita relação entre o Poder Naval hegemónico e uma série de ciclos de duração mais ou menos idêntica que evoluem de forma semelhante (com cerca de 120 anos cada), marcados por guerras globais que dão a medida da detenção do poder global: «The long cycle approach... raises basic questions of world organisation: the conditions of world leadership and the causes and consequences of major warfare in a framework that suggests that these basic processes might be subject to regularities that are both repetitive (cyclic), and also evolutionary. Global war, for instance, may be shown to have recurred, in the experience of the modern world, with surprising regularity» '. E é justamente a consideração dos ciclos de longa duração que permite a estes autores generalizar a problemática de Mahan e assegurar a conexão fundamental entre o Poder Naval e estes mesmos ciclos, o que introduz um novo aspecto a considerar: a guerra global. Isto porque cada guerra global foi antes de mais uma guerra naval, pois a organização do sistema 7 George Modelski e William R. Thompson, Sea Power in Global Politics, 1494-1993, Houdmills and London, The Macmillan Press, 1988, p. 15. 292 CAPÍTULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS mundial depende principalmente da interacção continental, e, desde 1500, essa interacção foi sobretudo marítima. Decorrentemente entramos no fulcro da questão quanto à possibilidade efectiva de medir os instrumentos do poder naval: alterando-se a relação das forças em presença num dado momento, não se trata de uma modificação relativa de meios navais entre potências em conflito (real ou potencial), mas de uma mudança que afecta a ordem política estabelecida a nível mundial. Quer dizer, a perda da preponderância de uma dada marinha de guerra sobre outra desencadeia uma alteração de fundo no status quo: «If the distribution of seapower is indicated by the ratio or relationship of battle fleets or major naval combatants, then adverse changes in that relationship tell a great deal about changes in the world's political structure» 8. Tudo parece portanto residir numa questão simples: quem detém a ou as marinhas de guerra que asseguram o poder naval, e quais são os critérios de medida que nos permitem dispor de indicadores objectivos das forças relativas em presença num determinado quadro político-militar. A acentuação da importância que Modelski e Thompson atribuem às marinhas de guerra advém do papel que lhes reconhecem para a definição do poder naval: a) a marinha de guerra de uma potência dominante conquista e exerce o domínio do mar pela neutralização ou destruição das marinhas de guerra suas oponentes; b) defende as suas bases navais de ataques e invasões e ataca as dos seus oponentes; c) mantém o controle das suas linhas de comércio e comunicação, procurando interceptar as de inimigos; d) tem um papel fundamental na defesa conjunta de e com potências amigas, e no cimentar de coligações. Esta tese radica na valorização das marinhas de guerra entendidas como instrumento essencial do Poder Naval, e este como condição prévia ao domínio dos ciclos que vão sucessivamente definindo os sistemas mundiais. Está-lhe portanto subjacente alguma desconsideração de factores de outra natureza, que normalmente são tidos em linha de conta de forma mais visível, como sejam os económicos e sociais, por exemplo. Ou, em alternativa - e esta outra hipótese de leitura justifica-se nas sucessivas advertências com que nos deparamos ao longo da obra -, procuraram valorizar adequadamente o factor militar naval, considerando que se encontrava subavaliado em obras com propósitos similares; o que teve por consequência que o estudo em causa se tenha centrado em torno das problemáticas suscitadas especificamente por esta perspectiva, sem ignorar Idem, ibidem, p. 17. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 293 outros vectores, como os exemplificados acima, mas não os tomando em paridade de forma assumida. Tal perspectiva não podia deixar de suscitar reservas de natureza vária, mormente no que toca à validade histórica de algumas das ideias expendidas. Sigamos António José Telo, cujos argumentos podemos resumir do seguinte modo 9: a) não se justifica fundamentadamente o esquema rígido de ciclos de 120 anos que se repetem segundo os mesmos princípios, além de que a própria ideia de ciclo em História «é muito duvidosa, justamente porque a realidade social não é repetitiva»; b) o poder naval é sempre tido como elemento decisivo e é detido hegemonicamente por um único Estado por ciclo - ambas as ideias em causa são redutoras e não conformes à realidade dos factos. A realidade militar naval portuguesa no século XVI não justifica, com efeito, que tais parâmetros se lhe possam aplicar. Mas como e em que termos se define uma potência naval, afinal? Para os autores em causa, uma nação qualifica-se como poder naval mundial desde que disponha de 50% dos recursos navais globais ou de 50% de todos os vasos de guerra10. Para este efeito, consideram que entre 1494 e 1654 um navio de guerra (de alto bordo) é todo aquele que esteja armado, sendo possuído e mantido por um Estado. Algo conservador, o critério da propriedade é relevante na medida em que previne situações que uso precário que não indiciam por si a capacidade do Estado dispor de facto das embarcações que é capaz de arrolar a seu serviço num determinado momento. E por isso se definem apenas duas potências com marinhas da coroa durante o século XVI: Portugal e Inglaterra, esta uma potência regional, a primeira uma potência à escala mundial. Todavia há que inventariar algumas dificuldades práticas de avaliação dos termos propostos. O livro Os Portugueses no Mar, de Henrique Quirino da Fonseca, que constitui a única fonte considerada para o arrolamento dos recursos navais portugueses, resultou de uma demora pesquisa sobre as fontes, é único no seu género na historiografia portuguesa e apresenta-nos a mais completa descrição desses recursos até c. 1640 n . A consideração dos elementos relevantes ou a panóplia documental em que se apoiou teriam de ser hoje objecto de reapreciação; mas 9 10 11 António José Telo, O Poder Naval nas Teorias dos Sistemas Mundiais, Lisboa, Academia de Marinha, 1995. Modelski e Thompson, op. cit., pp. 44 e 151. Henrique Quirino da Fonseca, Os Portugueses no Mar. Memórias Históricas e Arqueológicas das Naus de Portugal, 2.a ed., Lisboa, Comissão Cultural da Marinha, 1989 [l. a ed. 1915]. Assiste toda a razão a José Virgílio Pissarra nas críticas que tece a este livro, mas é talvez excessivo afirmar que «Fonseca falhou no seu propósito» (A Armada da índia. Cômputo, Tipologia e 294 CAPÍTULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS QUADRO V Fontes disponíveis para o cálculo dos navios de guerra entre 1494 e 1860 PAÍS N.° de Anos N.° de Fontes Portugal 87 1 Espanha 113 51 Inglaterra/Grã Bretanha 367 85 Países Baixos 105 50 França 367 92 Rússia/União Soviética 75 20 Estados Unidos da América 45 1 FONTE: G. Modelski e W. R. Thompson, Sea Power in Global Politics, 1494-1993, p. 46; a fonte informativa referente aos EUA é um relatório oficial contemporâneo, que escusa o cotejo necessário nos outros casos. não há condições para se pensar que a sua reelaboração levaria a resultados muito distintos dos que se podem retirar das informações aí constantes, globalmente consideradas. Nada indica que a documentação portuguesa permita um dia chegar a algo sequer parecido com, por exemplo, a identificação sistemática e exaustiva de todos os navios que fizeram a Carreira da índia no século XVI (e muito menos para outras carreiras ou armadas), similarmente ao que existe no tocante à navegação holandesa para a Ásia nos séculos XVII e XVIII. Se temos portanto de considerar insuficientes os elementos de que dispomos para uma avaliação adequada dos recursos navais portugueses do século XVI, é outrossim evidente que importa ainda esclarecer o que é que quer dizer exactamente a expressão recursos navais. A simples contagem de navios e o estabelecimento de uma percentagem que defina a priori uma dada relação de forças parece-nos não responder por completo à questão. Os navios em si de pouco ou nada servem se não estiverem apoiados por uma estrutura logística que suporte o esforço de guerra ou o seu apetrechamento para as viagens comerciais. No primeiro caso são ainda deveras importantes as bases navais (por muito rudimentar que a noção possa parecer quando aplicada aos anos de Quinhentos), e em todas as situações as escalas para as rotas mais longas, como se vê de forma exemplar no caso da Carreira da índia. O que é exactamente uma base naval no século XVI é questão que merece ser devidamente ponderada, porque o conceito é retroprojectivo em relação à época a partir do qual se generalizou. Para a navegação oceânica do século XVI uma escala consolidada pode bem ser considerada como tal: sirva o caso da Ilha de Moçambique para a Carreira da índia. Ou um porto com estaleiros e armaFuncionalidade das Armadas de Guerra no Oriente (1501-1510), Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001, pp. 12-13), considerando o que era possível, e como se pensava ser possível fazer as coisas há quase um século atrás. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 295 zéns, seguramente, como a Goa de Quinhentos. Mas não será possível ir muito mais longe. Acresce que a crítica maior a fazer à tese de Modelski e Thompson é sem dúvida a definição da barreira dos 50% como critério de determinação de uma potência naval à escala mundial. Entende-se bem a necessidade que os autores sentiram de introduzir um qualquer padrão de quantificação que ponha termo à relativa arbitrariedade de avaliações impressionistas; agora resta saber se tal preocupação pode ser respondida de forma idêntica para todo o período que vai do século XV aos nossos dias. E, de qualquer maneira, porquê 50%? Se uma determinada marinha dispuser de 40% de todas as embarcações de guerra não poderá já ser uma potência naval mundial? E 30%, não chegarão? Esta discussão não pondera realmente o critério qualitativo, mas é possível ignorá-lo? Um galeão português de meados do século XVI vale quantos paraus indianos armados para a guerra? A necessidade de entrar em linha de conta com este critério qualitativo aumenta enormemente as dificuldades de avaliar o que foram ou não potências navais, e percebe-se bem, repita-se, que o propósito dos autores citados tenha sido precisamente o de diminuir a margem de subjectividade desde sempre presente neste tipo de análises. Mas é simplesmente impossível fugir-lhe, para o século XVI. Problema distinto é por outro lado o da propriedade das embarcações, cuja averiguação se encontra seriamente comprometida pela falta de informação fiável. Sabemos que no caso da mais extensa das rotas comerciais portuguesas, a Rota do Cabo, logo na armada inaugural da Carreira da índia seguiam navios privados a par com os do rei: segundo Moacyr Soares Pereira uma nau que foi a primeira a voltar a Lisboa, a «Nossa Senhora Anunciada», pertencia a D. Álvaro de Bragança e aos mercadores italianos que lhe estavam associados - Bartolomeu Marchioni, Girolamo Sernigi e, talvez, António Salvago; e uma das caravelas que se veio a perder era de D. Diogo da Silva e Meneses, aio do rei e 1.° conde de Portalegre e seus parceiros comerciais 12. Mas nesta mesma frota A. A. Marques de Almeida identificou três navios de financiadores particulares, cruzando informação mais extensa, o que dá bem medida das dificuldades em estabelecer o que é que pertencia a quem; isto é, quem e em que proporção armava ou financiava a armação dos navios da Carreira, do que ainda assim só temos informação mais precisa para a primeira metade do século XVI 13 . Restrinja-se a dúvida à construção e armação dos galeões apenas, e a questão da propriedade torna-se impossível de destrinçar com objectividade. Leonor Freire Costa concluiu que não há estratégias distintas entre o rei e os armadores privados, como sabemos 14, mas tal como acontece com os quadros 12 13 14 Moacyr Soares Pereira, Capitães, naus e caravelas da armada de Cabral, Lisboa, JICU-CECA, 1979, pp. 65-66. A. A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria, Lisboa, Edições Cosmos, 1993, pp. 97-125. Leonor Freire Costa, «A construção naval», in História de Portugal, direcção de José Mattoso, vol. III: No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 296. 296 CAPÍTULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS informativos elaborados por A. A. Marques de Almeida, a informação não permite que se detalhe especificamente o galeão no contingente dos navios da índia, ou em outro qualquer, e no caso das caravelas quase nunca explicitam se são latinas ou redondas. Assim sendo, quaisquer conclusões sobre eventuais convergências (ou não) de estratégia entre os armadores privados e o rei parecem algo precárias, com a agravante de que os dados nossos conhecidos quase nada dizem daquele que é verdadeiramente o primeiro navio português (e europeu) de alto bordo construído para a guerra no mar, a caravela redonda. Todas as reservas que se podem levantar à tese de Modelski e Thompson radicam no facto de estes terem sido forçados a usar a retroprojecção de conceitos como navio de guerra ou bases navais para épocas em que eles não são explícita e directamente aplicáveis (acrescentemos nós: excepto num caso, precisamente o português), procurando uma normativização capaz de definir no longo termo um conjunto de critérios estáveis para a determinação do que eram ou não potências navais à escala mundial. E apesar de tudo esse esforço tem um mérito inultrapassável: o de ter permitido relançar a questão do poder naval para épocas onde ele não se aplicava, deixando de lado a visão restritiva de Alfred Mahan e seguidores. Não se podendo todavia aplicar ipsis verbis os critérios de avaliação acima enunciados, resta-nos tentar perceber em que medida se pode ou não avalizar tal ideia, agora numa perspectiva mais qualitativa. Da história naval portuguesa do século XVI não constam grandes episódios de confrontos com marinhas europeias, mas a eficácia demonstrada nos mares do Oriente não deixa margem para dúvidas, quer quanto às vitórias militares, quer quanto ao sucesso do controle da navegação no Oceano Índico. Utilizando o extenso arrolamento das batalhas e combates navais travados pelos Portugueses devido a Saturnino Monteiro, verificamos que o autor apurou 424 ocorrências entre 1501 e 1600, dos quais a grande maioria no Oriente; se se pensar que o quadro se deveria ter alterado após 1580, verificamos que dos 78 recontros navais contabilizados nos últimos vinte anos do século, 55 tiveram lugar no Oriente I5 . Só a superioridade militar naval pôde justificar a impressionante extensão da influência portuguesa nos mares, e por explicar está ainda como foi possível criar tão rapidamente e manter durante tanto tempo uma presença naval que se estendeu por metade do globo, por parte de um país com a dimensão demográfica e financeira do Portugal dos inícios do século XVI. No século XVI, num século XVI considerado grosso modo, o poder militar naval português estendeu-se tentacularmente, assegurando ou procurando assegurar o controlo da navegação atlântica no tocante às carreiras para as ilhas, no que diz respeito ao Brasil, ou garantindo a segurança dos navios em torna viagem da índia, pelo recurso à armada estanceada nos Açores (uma verdadeira base naval) que esperava as naus da Carreira para as comboiar até Lisboa e 15 Armando Saturnino Monteiro, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, vol. IV, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1993. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 297 vigiava o aparecimento dos corsários; procurou-se assegurar o controlo do Estreito de Gibraltar com armadas de navios de guerra, enquanto outras armadas com características similares patrulhavam regularmente a costa portuguesa; patrulhou-se ainda o Oceano Índico, desde as costas da África Oriental até ao acesso ao Mar Vermelho e à vigilância da costa do Malabar; e garantiu-se a ligação marítima da índia para Malaca, e daqui para o Extremo Oriente, até à China e Japão, também com carreiras anuais. Um esforço titânico e só para citar as ocorrências mais importantes, embora seja lícito presumir que o emprego simultâneo de navios de guerra nestas frentes de acção possa não ter ultrapassado as poucas dezenas de unidades. Há uma imensa teia de rotas comerciais, da Flandres ao Japão, que se cruzam amiúde com as armadas de guerra que pretendem impor um Mar Português numa extensão à escala mundial, Pacífico aparte, quer com grandes navios de vela no mar alto, como os galeões e as caravelas de armada, quer com os navios de remos nas zonas costeiras orientais. Por toda a parte se erguem feitorias e fortalezas, a par de alguns estaleiros onde por vezes se fazem melhores navios que os de Lisboa, como acontecerá no Brasil, na Baía, e na índia, em Goa, assegurando simultaneamente os apoios logísticos e comerciais necessários. Autênticas bases navais, numa terminologia mais moderna que a da época. O que, tudo junto, nos faz voltar à discussão dos critérios essenciais: quantos navios de guerra tem Portugal? qual é o seu valor relativo face às marinhas europeias e orientais? quantos navios de guerra há no mundo? Não há respostas concretas para estas perguntas, mas olhando para o nível e distribuição geográfica da intervenção naval portuguesa no século XVI, abdicando da análise quantitativa impossível nesta época, fica a certeza de que Modelski e Thompson não exageraram ao considerar Portugal a primeira e, na época, única potência naval à escala mundial. Ou dizendo-o por outras palavras: «Portuguese seapower was, in its day and for its time, immensely impressive» 16. O tempo do Poder Naval português foi tão bem delimitado quanto foi verificável a sua efectividade. O predomínio alcançado no Índico no século XVI traduziu o culminar da capacidade de controlar rotas e escalas no «espaço marítimo português», o qual, à escala da época, teve uma expressão mundial. Uma expressão que se esvaiu perante a concorrência das potências europeias que a partir dos finais do século XVI rumaram o Oriente. A chegada dos Holandeses e Ingleses ao Índico não teve um efeito imediato na presença naval portuguesa: é até questionável que a tenham procurado equacionar directamente, como vem de sugerir Pieter C. Emmer 17 , dados os recursos e custos que isso implicaria para empresas comerciais que ensaiavam ainda os primeiros passos - ou seja, não é líquido que possuíssem os primeiros e qui16 17 Modelski e Thompson, op. cit., p. 174. Pieter C. Emmer, «The First Global War: the Struggle between the Dutch and the Iberians, 1590-1621», conferência no I seminário internacional de História comparada da expansão portuguesa e holandesa, Arrábida, 2000. 298 CAPÍTULO III: O PODER NAVAL PORTUGUÊS sessem e pudessem assumir os segundos. A situação alterar-se-ia a partir do segundo quartel do século XVII, e o confronto entre marinhas europeias foi desfavorável à potência instalada; o jogo político de alianças com potentados locais contra o inimigo comum, um dos instrumentos tão habilmente usados pelos Portugueses na fase de afirmação do Estado Português da índia, vitimou-os desta feita. O desfecho da guerra naval nos mares do Oriente não foi apenas consequência do facto de os Portugueses defrontarem pela primeira vez (no local) marinhas que eram equivalentes à sua - porque em relação à sua superioridade em termos técnico-militares, repita-se, falta a comprovação efectiva. A incapacidade de manter o ritmo dos envios normais da Carreira da índia verificável a partir da terceira década do século XVII18 não é reflexo de um colapso da marinha portuguesa, cujas dificuldades orientais não se verificavam no Atlântico Sul. A confrontação a uma escala quase planetária com a concorrência militar naval e comercial foi outrossim o instrumento de evidência da sobredimensão de uma estrutura implantada em relação aos recursos efectivamente disponíves, e que por isso se redireccionou para o Brasil. Nos séculos XVI e XVII assistiu-se com efeito a continuadas tentativas de apropriação do espaço e navegação brasileiros por potências europeias concorrentes (França e Holanda sobretudo, mas também Inglaterra) que foram sistematicamente vencidas pelas armadas portuguesas, processo que teve o seu zénite após a Restauração. O articulado das pazes acordadas em 6 de Agosto de 1661 entre D. Afonso VI e os Estados Gerais das Províncias Unidas dos Países Baixos não expressa da forma mais adequada (por via de dificuldades políticas e diplomáticas conjunturais) a realidade de uma vitória militar e naval como foi aquela que os Portugueses alcançaram efectivamente ao fim de decénios de luta 19. É surpreendente o curto espaço de tempo necessário para Portugal se ter afirmado como potência naval à escala mundial, mas deixou de o ser com igual rapidez. A chave foi o Índico, com afirmação de uma supremacia que radicava em primeiro lugar no controlo da navegação do Atlântico Sul (a condição sine qua non para a extensão da influência marítima para lá do Cabo da Boa Esperança), e depois como espaço charneira e de apoio para as navegações mais orientais, até à Insulíndia e Mar do Japão. O Poder Naval português à escala global ruiu quando as armadas deixaram de senhorear o Índico, mas durante mais de um século, ainda, o balanço geral dos acontecimentos evidencia que a transferência de recursos para o Atlântico Sul manteria um Poder Naval regional inquestionável, embora não indisputado - e, no fundo, expressando mais adequadamente V. António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, «O Movimento da Carreira da índia nos Sécs. XVI-XVIII. Revisão e propostas», Maré Liberum, n.° 4, 1992, pp. 252-256; João Paulo Aparício e Paula Pelúcio Aparício, «As Relações das Armadas e a Carreira da índia: contribuições para uma análise crítica», in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Cascais, Patrimonia, 2000, pp. 527-554. A questão foi exaustivamente estudada por Max Justo Guedes, História Naval Brasileira, Segundo Volume, Tomos IA e IB, Rio de Janeiro, Ministério da Marinha - Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1990-1993. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 299 os recursos e possibilidades navais efectivas do país. A afirmação paulatina da Inglaterra como potência naval mundial resultaria na partilha dessa influência regional, com a balança pendendo inexoravelmente para o lado dos britânicos: os direitos fiscais e aduaneiros que lhes foram garantidos em 1808, 1810 e 1814, foram também expressão da incapacidade portuguesa em garantir a transferência da Corte para o Brasil e assegurar o controlo da navegação atlântica exclusivamente com base nos seus próprios recursos navais militares. Simbolicamente, as condições do embarque de Novembro de 1807 marcam o fim do Poder Naval português, já então apenas regional. CONCLUSÃO Tal como outros autores cujo deslumbre pelos resultados das navegações portuguesas ficou patente no que deixaram escrito, também Fernando Oliveira deu mostra bastante de estar rendido à evidente transformação da imagem do mundo que se ia operando por via da novidade que ressumava dessas viagens: «Poucas uezes se lee que os gregos nem latinos nauegassem fora do seu mar mediterrâneo, de que somente erão capazes os seus nauios: os nossos agora são capazes também do oceano todo per todo o mundo, ou mayor parte delle. O qual os nossos marinheyros em nossos dias descobrirão, e os seus nunca conhecerão. Mays louuor se deue nisto aos nossos, que aos gregos, nem latinos: por que mays tem feyto pella nauegação em oytenta annos, do que elles fezerão em dous mil que reynarão» \ A supremacia dos feitos dos seus conterrâneos sobre os dos Antigos parecia de facto evidente, oitenta anos volvidos sobre a ida de Vasco da Gama à índia, vista como ponto de referência nesse processo imenso de consequências 2. Mas Oliveira tinha algo de novo a acrescentar a juízos semelhantes: a ideia de que tudo radicava na possibilidade técnica de levar os Portugueses a navegar por mares e oceanos. O navio era o agente da transformação em curso, e a navegação essencial a Portugal, tanto às gentes como à Coroa, pois dela vinham grande parte das vivendas do reino 3. Logo, havia que ter bons navios e saber como os fazer. Este juízo conduziu Fernando Oliveira à redacção de uma obra pioneira e inovadora, cuja característica mais marcante foi a de ter mantido um carácter único mesmo quando em Portugal e na Europa mais autores lhe sucederam na escrita sobre a fábrica dos navios. Porque, ao contrário dos outros, não se ficou pela mera descrição do como fazer, antes procurou articular os preceitos da arte no plano do trinómio Homem, Técnica e Natureza, em que o primeiro termo age sobre o último por via do segundo. Em Fernando Oliveira, a explicação do fundamento das coisas vale tanto como a eficácia instrumental pretendida. 1 2 3 Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, BNL - Reservados, cod. 3702, fls. 12v-13. V. Parte I, cap. II, a propósito desta menção aos «oitenta anos». Fernando Oliveira, op. cit., fl. lv. 302 CONCLUSÃO Nesse aspecto particular residiu a profunda originalidade do seu Livro da Fabrica das Nãos. Quem se lhe seguiu trilhou caminhos diferentes. João Baptista Lavanha, que escreveu o Livro Primeiro da Architectura Naval uns vinte anos depois, estava imbuído de uma lógica bem distinta. Funcionário ao serviço do Rei, deve ter tido como primeiro objectivo o proveito do Estado, revisto na eficiência dos preceitos que garantiriam a disposição de instrumentos técnicos adequados à boa função que se lhes requeria. Não há por isso necessidade de explicações mais ou menos rebuscadas para se perceber o porquê do funcionamento de uma máquina como o navio, por mais complicada que fosse, como era de facto. O Livro de Lavanha é um tratado sobre a arte de bem fazer, e mesmo naquilo em que afirma soluções novas fá-lo em função do objectivo final pretendido. É certo, como bem viu John Dotson, que pela primeira vez a arquitectura naval aparece como parte de uma arte mais geral4, e portanto, acrescentamos nós, sujeita por igual a regras mais genéricas que as passíveis de serem definidas para o seu âmbito específico. É também certo, seguindo o mesmo autor, que a modernidade de Lavanha, em termos comparativos, ressalta do facto de considerar que o verdadeiro início da construção do navio está na sua planificação, concretamente na passagem dos planos para o papel5. Mas se isto era novidade perante o que se tinha feito até então, não é menos certo que o largo fôlego de João Baptista Lavanha como arquitecto do navio ficava nesse estrito plano, enquanto Oliveira ia mais além. Um e outro, todavia, partilharam o silêncio que forçosamente tinha de rodear lições que não passaram da versão manuscrita. Mais sistemático que a obra de Oliveira, mais funcional sem dúvida alguma, o Livro Primeiro bem teria merecido a publicidade dos prelos se a questão fosse apenas a do merecimento. A obra do engenheiro seria com certeza útil ao mestre construtor naval; a do filósofo nem tanto. Pouco depois, Manuel Fernandes, ou alguém por ele e em nome dele, reunia um largo conjunto de regimentos no Livro de Traças de Carpintaria, obra sobre a qual se abate o manto da dúvida. Feito porquê? Feito para quem? Feito por quem, até? Muitas dúvidas e uma certeza: desses regimentos transpira a prática do estaleiro, a normatividade possível no plano concreto da execução da fábrica do navio. Uma certeza que também ela reflecte uma nova realidade, pois não há caso paralelo anterior ou contemporâneo, com excepção de algumas das páginas dos regimentos italianos, mas estes relativos a outras épocas e circunstâncias. Três níveis de novidade em três textos de índole tão diversa que os pontos de contacto entre eles se encontram no plano formal, mas não no de conteúdo. São tratados de arquitectura naval, os primeiros que existem em Portugal, e formam um núcleo específico e distinto de tudo o mais, no tempo e para além dele, já que não tiveram consequências visíveis na realização de obras similares. 4 5 John Dotson,»Treatises on Shipbuilding Before 1650», in Conway's History of the Ship. Cogs, Caravels and Galleons. The Sailing Ship 1000-1650, Londres, Conway Maritime Press, 1994, p. 166. Idem, ihidem. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 303 Ao contrário do que aconteceu nos restantes países da Europa com vocação atlântica, pois foi nesses que a tratadística moderna surgiu, em Portugal iniciou-se primeiro o processo de registo sistemático da arte de fabricar navios (ainda que em termos muito distintos entre si), mas não se vislumbrou qualquer solução de continuidade na segunda metade do século XVII e no século XVIII, quando se multiplicavam os tratados em países como a Espanha, a França, a Inglaterra ou a Alemanha. Em contrapartida, da mesma época em que os tratadistas procuravam sistematizar a arte, chegam até nós os testemunhos escritos de como os práticos a executavam, e nessa vertente houve depois uma efectiva continuidade. Se isso foi consequência das exigências de uma nova forma de administrar o aparelho de Estado, ou da intensificação da prática de contratar a construção de navios para a Coroa por séries de embarcações, cabe aos historiadores da economia investigar, como lhes cabe também saber se o processo se traduziu em cortes efectivos nos elevadíssimos custos que são apanágio da indústria da construção naval - ainda que à custa, porventura, da perda de qualidade das embarcações que alguns disseram ser causa primeira dos naufrágios, como fez João Baptista Lavanha. Para quem trata de apurar as características e as funcionalidades dos diversos tipos de embarcações, porém, os finais do século XVI marcam um ponto de viragem, com o acesso ao cruzamento de informação diversa por contraposição à sua inexistência para períodos anteriores. As regras, todavia, deixavam bem claro que os práticos mantinham uma margem de decisão bem larga, o que é tão visível no texto teórico como na instrução prática. A disponibilidade de instrumentos matemáticos e o conhecimento de princípios essenciais da física para a arquitectura total do plano conceptual do navio, antes da sua materialização propriamente dita, era ainda insuficiente, apesar das formas engenhosas encontradas para suprir tais carências. Mas isso não podia ser feito senão de forma eminentemente empírica, como escreveu Duhamel du Monceau nos seus Élements de VArchitectura Navale, publicados em Paris no ano de 1752: «Les anciens Constructeurs ignorant les méthodes dont nous parlerons dans Ia suivre, avoient imagine un moyen fort méchanique, mais assez ingénieux, pour (avec le seule maítre couple) tracer sur les pièces qu'ils devoient employer pour Ia construction des Vaisseaux, un certain nombre de couples de 1'avant et de Farrière, sans faire de plan. Cette méthode a deux défauts: le premier, qu'elle ne fournit les moyens que pour tracer au plus les six premiers couples de Farrière, et les six premiers de 1'avant: le second est, que ne faisant point de plan, on ne peut pas connaitre d'avance les avantages et les défaults du Vaisseau qu'on construit» 6. Citado por Eric Rieth, «Duhamel du Monceau et Ia méthode des 'anciens constructeus'», in État, Marine et Société, Textes reunis et publiés par Martine Acerra, Jean-Pierre Poussou, Michel VergéFranceschi, André Zysberg, Paris, Presses de 1'Université de París-Sorbonne, 1995, pp. 351. 304 CONCLUSÃO Ou dito de uma outra forma, e sem entrar em discussão a propósito da própria ideia de História e do devir do pensamento científico que o texto de onde se tira a citação patenteia, «The application of science to naval architecture during the seventeenth century was almost non-existent» 7. O caso da França de Setecentos é ilustrativo de como a posse dos conhecimentos mais avançados na arquitectura naval numa determinada época 8 , não se traduz depois e necessariamente na capacidade de construir melhores navios, nem na conquista do domínio dos mares. O caso português ilustra-o ao contrário, por assim dizer. Os tratados portugueses de arquitectura naval exprimem uma capacidade técnico-conceptual sem paralelo na época, mas deles não se pode deduzir que os navios portugueses eram por consequência os melhores do seu tempo; tanto porque ficaram inéditos, todos eles, e portanto não há garantia alguma de que esses ensinamentos tivessem tido qualquer repercussão no plano prático, como pelo inverso não é possível apurar a medida exacta em que reflectem a prática dos estaleiros. Se os regimentos de arquitectura e construção naval são expressão da actividade concreta dos melhores de entre os mestres construtores navais, o que também não é seguro, é por outro lado evidente que muitos outros factores condicionaram a prestação dos navios no mar, a começar pelo primeiro de todos, já enunciado: assumindo que sabemos o que estava regulado, não há processo de averiguar se era exactamente isso que foi posto em prática, no estado actual dos nossos conhecimentos e sem prejuízo das já muito importantes contribuições da arqueologia subaquática. Todavia, caravelas, naus e galeões fizeram com que a Expansão portuguesa alcançasse uma dimensão sem precedentes. Os factos ilustram a medida em que os meios serviram: os êxitos da navegação portuguesa não foram ocasionais, as rotas foram percorridas primeiro e depois estabelecidas pelo curso de carreiras regulares. Em comparação com o período que termina no terceiro quartel do século XVI, na meia centúria que se abre depois os navios dessas navegações são-nos mais bem conhecidos pela conjunção do aparecimento simultâneo dos tratados e dos regimentos técnicos. Porém isso não se traduz ainda na nossa capacidade de entender cabalmente a razão do sucesso dos navios portugueses, mesmo considerando a questão apenas sob este ponto de vista específico. 7 8 W. F. Stoot, «Some aspects of naval architecture in the eighteenth century», Tmnsactions ofThe Royal Institution of Naval Architects, vol. 101, Londres, 1959, p. 32. Idem, ibidem. VOCABULÁRIO TÉCNICO A obra de Fernando Oliveira tem uma especial importância na fixação e definição do vocabulário técnico de arquitectura naval portuguesa, tanto pelo seu pioneirismo como pela preocupação manifestada pelo autor no sentido de explicar com clareza suficiente os termos que utiliza, evidenciando a procura de princípios normativos gerais que caracteriza a sua obra e naturalmente se estende ao vocabulário empregue. Daí que muitas das definições que se encontram nos dicionários da especialidade sejam tiradas directamente do Livro da Fabrica das Nãos, em primeiro lugar, e da Arte da Guerra do Mar; e amiúde as definições de Oliveira são tão claras que se torna difícil reescrevê-las, razão pela qual a explicação de parte das entradas desta lista reside sobretudo na citação de um trecho das suas obras. Não se perde porém de vista que esse projecto de regulação do vocabulário técnico passou pelo avançar de propostas de designação que não encontraram qualquer eco e aparecem apenas nos seus escritos. Este vocabulário regista os mais comuns dos termos específicos da arquitectura naval encontrados na documentação técnica portuguesa, mas para evitar a aposição constante de notas de rodapé inseriram-se as referências das obras mais citadas no corpo do texto, seguidas do fólio ou página respectiva, de acordo com a seguinte chave: AGM = Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, 4.a ed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983. AN = Marcos Cerveira de Aguilar, Aduertençias de nauegantes, ms. da CNCDP, s/ cota, dec. 1640. A = Documento do apêndice A, seguido do número respectivo. B = Documento do apêndice B, seguido do número respectivo. DLM = Hemberto Leitão e J. Vicente Lopes, Dicionário de Linguagem de Marinha Antiga e Actual, 2.a ed., Lisboa, CEHU-JICU, 1974. LFN = Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Nãos, BNL - Reservados, Cod. 3702. O resultado final beneficiou em muito das sugestões e correcções amigas do Prof. Doutor Filipe Vieira de Castro e do Cte. Ferdinando Oliveira Simões: aos dois fica expresso o agradecimento devido. 306 VOCABULÁRIO TÉCNICO VOCABULÁRIO TÉCNICO Abita - Peça formada por dois fortes cabeços cruzados horizontalmente por um madeiro onde a amarra dá a volta quando a âncora está no fundo. Alcáçova - Segundo pavimento no castelo da popa dos navios de maior porte: «Nos da carrega, sendo grandes, he este castello também grande, e tem dous sobrados: ao premeyro chamão tolda, e ao segundo alcaçaua... Esta ha de ser mays bayxa, e mays pequena que a tolda a metade, pouco mays ou menos» (LFN, 142-3). Alefriz - Entalhes abertos na madeira do cadaste, roda de proa e quilha, onde é encaixada a primeira fiada do tabuado: «Quando abrirem os alifrises da roda e quilha tomarão a largura em três partes, e tomarão húa pêra o alifris que fica melhor o alifris pêra pregar na taboa bem na roda, e quilha e terão os alifrises d'encauamento dous dedos esforçados» (A.8) Almeida - Parte da ré do navio que se situa imediatamente abaixo do painel da popa. O termo ocorre quatro vezes no Livro da Fabrica das Nãos sem que Fernando Oliveira explique o seu significado, ao contrário do que sucede normalmente. Almeida do leme - Abertura feita na almeida por onde passa a cana do leme. Almogamas - Últimas cavernas (balizas) à popa e proa do navio, levantadas pelo graminho, ou seja, que se obtinham por cálculo geométrico: «Chamãose almogamas, as cauernas dos cabos do fundo, dhua parte, e da outra, digo, da popa, e da proa» (LFN, 90-1). O remate dos navios a partir das almogamas era feito segundo o critério de cada construtor sem regra definida a priori. Amurada - Prolongamento do costado para cima do convés. Angostar - O adelgaçar ou estreitar da forma do casco do navio para qualquer das extremidades: «diminuindo sempre nos últimos bancos hu homem de cada banco porque asy o requere o angostar da proa» (AGM, 71). Angostura - estreiteza do casco do navio: «navios estreytos que por sua angustura não podem recolher em sy a relinga da vela redonda» (AGM, 68). Antenas - O conjunto de mastros e vergas. Com a grafia «antemnas», o termo ocorre uma única vez no Livro de Fernando Oliveira: «E finalmente para nauios he boa a madeyra forte no liame, e branda no tauoado, maciça e tapada debayxo daogua, leue nas obras mortas, e nas antemnas: longa, dereyta, e limpa para os mastos» (LFN, 26). Antrecosto ou Entrecosto - O espaço entre duas balizas: «Os uãos do liame antre costa e costa, que o latim chama intercostinia, e nos lhe podemos chamar antrecostos» (LFN, 135). Antremichas - v. Entremichas. Antreordem - espaço entre as bancadas das galés: «de banco a banco o antrevallo que fica sem remos, a que os castelhanos chamam balhesteyra, e eu chamo antreordem» (AGM, 71). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 307 Antrescalmo - espaço entre os remos nas galés: «Antrescalmo he o espaço dantre remo a remo que ao menos ha de ter meyo palmo» (AGM, 71). Apostareu - Fortes peças de madeira postas por fora do forro do navio, no sentido vertical, para reforço das aposturas. Apostiças - Vigas de madeira postas longitudinalmente nas galés e nas quais repousavam os toletes. Apostura - O m.q. Haste (v. Baliza). Armadouras - Peças de madeira que se montam sobre as cavernas para definir a forma dos enchimentos. Na única vez que ocorre no Livro da Fabrica das Nãos: «Os quaes recolhimentos algús mestres acostumão fazer a esmo segundo suas estimatiuas encostando o liame as armadouras» (LFN, 125). Arrepiamento - Da mestra para a popa e a proa as cavernas vão recolhendo, ou seja, estreitanto em largura e altura: é isto o arrepiamento da ou das cavernas. Arrevesados - O m.q. Reversados ou Mancos. Baliza - Cada metade da estrutura de madeira em forma de U, ligeiramente fechado para cima, que é posta perpendicularmente à quilha e constitui a base da forma do casco do navio: o processo levou Fernando Oliveira a comparar o aspecto da «ossatura» do navio (quilha mais balizas) com a parte do corpo humano constituída pela espinha e costelas. Cada baliza era composta por três partes: caverna, onde se ligava à quilha, braço e apostura. Oliveira, que em vez deste último termo usa haste, também emprega caverna por baliza, como aliás acontece em outra documentação da época. Beque - Estrutura que rematava o navio pela proa, servindo de suporte ao mastro do gurupés, de onde pendia a verga da cevadeira. A palavra tinha o mesmo significado que esporão, como atesta uma passagem das Advertências de nauegantes de Marcos Cerveira de Aguilar: «bèque, he o mesmo que esporão, en que se toma a trinca para firmeza do guoroupees, e segurança do traquete» (AN, 76). Besta - Tipo de graminho. Boca - Largura máxima do navio medida no convés: «Boca da nao se chama, aquillo que ella abre na principal cuberta» (LFN, 124). Botaló - É o madeiro que sai pela popa das embarcações de vela (e normalmente se vê muito bem na iconografia), e servia para caçar a vela da mezena ou contra-mezena; ou seja, por este pau passava o cabo (escota) que permitia 'manobrar' a vela. Braço - Parte da baliza (ou caverna): «Do couado para cima chamão braço» (LFN, 111). Braçolas - Peças de madeira que guarneciam a abertura das escotilhas para evitar a entrada de água para o piso inferior. Brusca - Tipo de graminho. Buçarda - «Este liame de proa se chama buçarda» (LFN, 121); Fernando Oliveira designava assim o conjunto das peças de madeira que constituíam a estrutura do navio à proa (v. Liame). 308 VOCABULÁRIO TÉCNICO Cadaste - Peça de madeira grossa que remata o navio pela popa, erguendo-se a partir da extremidade da quilha e constituindo com esta, as balizas e a roda de proa a estrutura essencial da arquitectura do navio de madeira: «Codaste he aquelle pao grosso, que se aleuanta pello meyo da popa a cima, da quilha atee o gio» (LFN, 81). O cadaste era ligeiramente inclinado para trás segundo uma regra própria (cada tratadista tinha a sua), e a ele ligava-se o leme por um sistema de machos-fêmeas. Calafetar ou Carafetar - Pôr calafeto nas juntas de madeira (o que era feito pelos calafates), para aumentar a estanquicidade do navio, normalmente afectada pelo bater da água e pela contracção e dilatação da madeira. Cambotas - Traves que suportavam os tectos da tolda e do chapitéu: «Leua na abobada da tolda oito cambotas» (A. 15); «Leua a abobada do chapiteo seis cambotas» (A. 15). Cana - A peça do timão pegada ao madeiro do leme. O timão tinha ainda uma outra parte, o pinção, pela qual se manobrava portanto o leme (v. Timão). Capelo - Topo da roda de proa, segundo João Baptista Lavanha, único autor que usa este termo. Carina - O m.q. Querena. Carlinga - Peça de madeira ligada à sobrequilha onde se talhavam os encaixes dos mastros. Carro - Em vários exemplos comparativos com o equilíbrio que era requerido para os navios, Fernando Oliveira usa «carro» como sinónimo de arado. Por exemplo: «Assy como no carro, ou arado, se o jugo não he partido ygualmente, hum animal padece mays que o outro, e não fazem obra ygual, nem caminho dereyto» (LFN, 83). Na obra do mesmo tratadista ocorre a grafia «caro» com o sentido que importa aqui: «Os nauios latinos requerem a tolda mays recolhida para ree, por que dee lugar ao caro ir a ree, quando uirão: e serão tanto recolhidas, ou retiradas a trás, quanto abaste para dar o lugar que digo» (LFN, 143); assim, o carro é a extremidade inferior da verga de uma vela latina ou bastarda, impossibilitando que os navios latinos tivessem castelos prolongados à popa por causa do virar de bordo, que implicava por sua vez uma complicada manobra com a verga que sustinha a vela. Castelos - Estruturas erguidas à popa e proa sobre o convés, com vários pavimentos, que serviam para alojamento do pessoal, aumento da capacidade de carga e alocação de bocas de fogo; no combate naval funcionavam como bastiões onde os soldados se protegiam e tinham melhores condições para atingir as equipagens inimigas com armas de fogo ou arremesso, especialmente se combatiam navios com bordo mais baixo do que aquele em que se encontravam. Caverna - Parte inferior da baliza, na qual se faz a ligação à quilha. Na documentação técnica desta época o termo ocorre como sinónimo de baliza propriamente dita. Cavername - O conjunto das cavernas (balizas) do navio. O cavername, a quilha e as rodas de proa e popa constituíam o esqueleto do navio. Caverna mestra - A caverna ou baliza principal da estrutura do navio, cuja colocação (um pouco a vante do meio da quilha) e dimensões determinavam o tamanho e o sítio onde se punham todas as outras: «A cauerna mestra se assentará oito palmos auante do meo da Quilha, porque o meo da quilha he o lugar onde se assenta a carlinga pêra o masto grande» (A.26). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 309 Cavilhas - Pregadura de pau, mais frequente no Norte da Europa. Certa parte - Na terminologia específica de Fernando Oliveira tratava-se da unidade de referência para as medidas dos navios, a partir da qual se estabeleciam todas as outras: no caso dos navios portugueses era a quilha. «Esta certa parte na fabrica das nãos de carrega, he a quilha. A esta se referem a largura, e altura da nao, e o fundo, e graminhos, e lançamentos, e boca, e outras partes principaes de que todas as mays pendem. Per esta se comprende camanha, e de que porte ha de ser a nao: por que sabida a longura da quilha, sabese quão larga, e quão alta ha de ser, e quanto ha de lançar para proa, e para popa, e o que pode leuar pouco mays ou menos» (LFN, 69). Oliveira diz que adaptou a expressão de Vitrúvio; não conhecemos outra ocorrência em qualquer tratado ou documento da sua época, muito embora o princípio de tomar a quilha como medida de referência seja o correcto. Chapitéu - O m.q. Alcáçova. Cintas - Reforço exterior da estrutura do casco do navio com fiadas de tábuas que corriam da popa à proa. Coberta - Pavimento corrido da popa à proa. No navios antigos a contagem fazia-se de baixo para cima (ao contrário do que se pratica hoje), o que quer dizer que a primeira coberta era a que se encontrava imediatamente acima do porão. Codaste - v. Cadaste. Compartida - Medida de regulação das partições do graminho, de modo a garantir a progressão ordenada do levantamento e do recolhimento das balizas que se obtém com aquele. Contra-mezena - Mastro da ré, imediatamente atrás do da mezena, nos navios de quatro mastros do século XVI. Arvorava pano latino. Convés - Espaço da coberta superior que ficava ao ar livre, entre os castelos de popa e proa. Fernando Oliveira procurou explicar a origem do termo, que determinou de forma peculiar: «O espaço que fica descuberto antre a tolda e o castello de proa, sobre a cuberta principal do nauio, se chama conuees: por que aly conuem, e se ajuntam os marinheyros, e gente que ha no nauio» (LFN, 144). Coraes - Reforços da quilha nos couces da roda de proa e do cadaste. Costa - Madeira das balizas ou cavernas: «hu uão com sua costa, ou madeyra» (LFN, 135). Costado - Ocorre no Livro da Fabrica das Nãos e na documentação técnica em geral no exacto sentido da segunda das definições dadas para este termo por Humberto Leitão: «O forro lateral duma embarcação» (DLM, 156). Couce - Extremidades da quilha nos pontos de junção com a roda de proa e com o cadaste, que eram reforçadas pelos coraes. Da mesma forma se chamava couce do cadaste à extremidade inferior deste, com a qual liga com a quilha. Côvado - Ponto a partir do qual a caverna começa a curvar para cima, seguindo-se o braço: «Chamão couado onde a cauerna começa fazer uolta para cima» (LFN, 111). Côvado real - Unidade de medida equivalente à goa (LFN, 180). 310 VOCABULÁRIO TÉCNICO Delgados - Extremidades do casco do navio em que este afila para a proa e a popa, deixando de fazer bojo. Distega - Nome dado por Fernando Oliveira aos navios de duas cobertas. Dormente ou dromente - Vigas de madeira que corriam por dentro do casco, da popa à proa, travando as balizas (ou seja, reforçando a sua manutenção em posição) e servindo de suporte aos vaus. Dragas - O m.q. escoas; grandes pranchas de madeira utilizadas para escorar as balizas, por dentro, durante a construção das naus e galeões: «lanção por dentro tavoas grosas, a que chamão escoas e dragas: as quais suprem por sintas» (LFN, 210). Esta passagem de Fernando Oliveira parece sugerir que dragas e escoras cumprem a mesma função mas são diferentes entre si; essa diferença não resulta porém clara. Dragante - O equivalente do gio nas galés. Enchimento - Reforço da estrutura do navio colocado no espaço entre as cavernas obtidas pela regra geométrica, já que estas deveriam ser apenas colocadas à razão de uma por rumo de quilha, em número manifestamente insuficiente para, por si, conferirem ao casco a robustez necessária. O enchimento é portanto o conjunto das cavernas não desenhadas. Enoras - Aberturas nos pavimentos por onde passam os mastros. Entremichas - Peças de madeira que serviam para reforçar as cavernas, e da mesma grossura destas, unindo os braços. Escalmo - O m.q. Toletes, nas galés. Escoas ou escoras- O m.q. Dragas. Escotilha - Abertura feita num pavimento para permitir a passagem para o de baixo. Normalmente tinha um rebordo em madeira para evitar a entrada de água no pavimento inferior. Escotilhão - Escotilha pequena. Escovéns - Orifícios colocados à proa por onde passam os cabos das âncoras, entre o convés e o remate da roda de proa, aliás determinado pelo tamanho destes: «Sobiraa, como dixe, esta roda acima do liuel do conues, quando dee lugar aos escouuens: os quaes ficão antre o conues, e a cabeça da roda: e segundo elles forem grandes ou pequenos, conforme ao tamanho do seu nauio, assy sobiraa a roda munto ou pouco» (LFN, 80). Eslera ou eslora ou esloria - O comprimento total do navio da almeida à roda de proa: «E se o Nauio for ligeiro e de guerra por a boca delle a quarta parte do comprimento que o Nauio tiuer d'almeida ate a ponta da Roda [de proa] o que chamão eslera e os palmos que se acharem de goa se conuerterão em redondo» (B.l). Espalhamento - Da caverna mestra, que era a maior, até às almogamas (as últimas tiradas pela geometria e mais pequenas de todas), as cavernas vão diminuindo naturalmente de tamanho, dado o estreitamento progressivo do casco: a isso se chama espalhamento. É dos raros termos de arquitectura naval que mereceu um estudo específico: Eric Rieth, «A propôs du terme 'Espalhamento' chez Manoel Fernandes (1616)», Neptunia, n.° 203, Paris, 1996, pp. 33-40. Acto de alargar as cavernas para cima, para dar mais espaço ao convés. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 311 Esporão - O m.q. Beque nos navios redondos. Estrutura de ataque nos navios de remo constituída por um prolongamento do casco, afilado e acima da linha de água, destinado a investir os navios contrários. Foi a principal arma ofensiva das galés até ao aparecimento da artilharia. Modernamente, alguns navios com casco em ferro tiveram também esporão, desta feita abaixo da linha de água. Fernando Oliveira refere o esporão numa passagem que tem gerado equívocos vários: «O modo de sobir a roda [de proa] este pouco a cima do conues, he nos nauios communs quasi dereyta, mas nos de guerra lançaraa tamalaues para fora, para que comece dar geyto ao esporão, que lhe acostumão acrecentar para enuistir os contrayros» (LFN, 80). É importante enfatizar que este passo não pode querer significar que os navios redondos de alto bordo tinham um esporão similar ao das galés, como arma de ataque. Navio de guerra, nesta passagem, tem de ser entendido como galé. Estroncado - Navio de boca aberta: «De quinze abaixo ou sejão de todo abertos, a que algus chamão estroncados» (LFN, 206). Foumo - Cavilha de madeira usada para pregar os madeiramentos dos navios: «Em algumas partes pregão os navios com foumos ou tornos de pau» (AGM, 31). Fundo - O espaço do fundo do navio compreendido entre as almogamas: «O que nesta fabrica se chama propriamente fundo, he somente aquelle espaço que se contem antre as almogamas» (LFN, 87). Galão - Deduz-se, de um passo do Livro da Fabrica das Nãos, que se trata de um ponto alto nas popas de roda, até ao qual teria de chegar a cana do leme: «Ha de ser tão alto como o codaste, do pollegar atee a almeida ou como a roda, do couce atee o gallão» (LFN, 162). Galivar - Desbastar a madeira de maneira a dar-lhe a forma pretendida para uma determinada peça do navio. João Baptista Lavanha usa «lavrar» com o mesmo sentido. Gio - Peça de madeira que remata perpendicularmente o cadaste: «Sobre a cabeça do codaste atrauessão hum pao a modo de cruz, ao qual chamão gio» (LFN, 83). Goa - Medida equivalente a três palmos de goa; era a unidade de referência para as pequenas embarcações, tal como o rumo o era para as grandes: «Co esta goa acostumão medir as galees, e nauios pequenos, e barcos, por que he mays pequena que o rumo» (LFN, 74); também chamada côvado real, segundo Fernando Oliveira: «A esta goa chamão algus couado real» (LFN, 74). Equivalente a c. 75cm no sistema métrico decimal. Governalho - Leme. Graminho - Régua de madeira que graduava a escala de progressão do levantamento do fundo do navio, da caverna mestra até às almogamas da popa e proa. Fernando Oliveira descreve três tipos de graminho: de besta, de rabo-de-espada e brusca. Grande - Mastro grande. Guarita - Espaço dos castelos por cima da habita. Gurupés - Mastro que saía pela proa dos navios, e de onde pendia a verga da cevadeira. Tinha uma inclinação de cerca de 35°, o que quer dizer que seria destruído, comprometendo todo o aparelho, se houvesse nos navios de alto bordo um esporão similar aos das galés que pudesse ser usado como arma de ataque. 312 VOCABULÁRIO TÉCNICO Habita - Vão por debaixo dos castelos que servia de alojamento, sobretudo para os grumetes, segundo Fernando Oliveira (LFN, 143). Haste - Extremidade superior da baliza: «Aquelles pedaços que os braços aqui sobem hum pouco dereytos, chamão os nossos carpenteyros hastes» (LFN, 112). Juntas - Junção das pranchas de madeira que compõem o tabuado. O seu preenchimento era feito com estopa (ou outros materiais, na falta deste), de modo a garantir que o navio fosse tão estanque quanto possível. Lançamento - Prolongamento do navio à popa e proa, para além das extremidades da quilha: «Alem da quilha, para mays fremosura, e proueyto, se estendem os nauios para a proa, e popa algúa cousa pouca, conforme aas regras, que logo daremos: por que assy acrecentados ficão parecendo milhor, e sendo mays aptos para nauegar, e carregar. A estes accrecentamentos chamão os nossos carpenteyros, lançamentos» (LFN, 78). Um método simples de calcular os lançamentos é medir a distância entre duas linhas perpendiculares à quilha e paralelas entre si, uma tangente à extremidade do navio à ré, e outra ao ponto extremo da quilha (isto para o lançamento da popa, podendo proceder-se do mesmo modo para o lançamento da proa). Lavrar - v. Galivar. Latas - O m.q. Vaus. Liame - O conjunto de peças de madeira que constituíam o «esqueleto» do navio, como sejam, a quilha, cadaste, roda de proa, cavernas e similares: «Ensina a natureza isto nos corpos dos animaes sensitiuos, nos quaes também ha duas partes que parecem responder ao que digo, e dar manifesto exempro destes dous mesteres das nãos: húa são os ossos, que representão o liame, por que sostentão, endereytão, e enformão o corpo do animal, como o liame faz no casco da nao: a outra he a pelle, que cobre os ossos, como o tauoado cobre o liame» (LFN, 15-6). Mancos - Peças de madeira do painel da popa onde encaixam os extremos do gio. Mareagem - Altura da borda do convés: «O modo de partir a altura de qualquer nauio pellas cubertas, he este. Dão ao porão pello menos treze palmos de uão, e aas uezes mays, atee quinze ou dezasseys não mays: e ao uão da premeyra cuberta sete, ou oyto... e aa mareagem sobre o conuees, seys ou sete» (LFN, 128). «Porem, não deue ser esta rede mays alta que o bordo da mareagem: por que não faça o nauio altaroso» (LFN, 131). Meia-lua - Tipo de graminho. Mestras - O m.q. Cavernas mestras. Mezena - O mastro da ré nos navios de três mastros, arvorando pano latino. Nos navios de quatro mastros, como a caravela redonda, havia um outro mastro ainda mais recuado, o da contra-mezena, ambos com pano latino. Monostega - Nome dado por Fernando Oliveira aos navios de uma só coberta: «ha também nomes pêra os navios de húa coberta, monostegas» (LFN, 207). Obras mortas - A parte do casco que está acima da linha de água: «as obras mortas, que andão aa de cima da aogua» (LFN, 18). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 313 Num outro passo da mesma obra ocorre uma definição menos conforme ao habitual: «Sobre a mareagem edificão certos castellos, ou coroas, a que chamão obras mortas, por que posto que ellas mourão, não morre por isso o nauio» (LFN, 142); neste particular obras mortas são apenas os castelos de popa e proa. Obras vivas - A parte do casco abaixo da linha de água. Paixões - Peça de madeira usada no reforço das enoras (v.), onde encaixavam os tamboretes: «Leua quatro paixões» (A. 15). Palmo - Medida equivalente ao comprimento da mão estendida de um homem adulto (palmo comum, craveiro ou redondo), ou seja, c. de 22cm como valor de referência aproximado. Usado como unidade de medida na construção naval. Palmo de goa - Medida de referência genericamente usada na construção naval: «alem de estender toda a mão, como dixe, tem mays, que uira o dedo polegar de costas atee a premeyra junta. Este se chama palmo de goa, e por elle se medem os rumos, e goas, e toda esta nossa fabrica» (LFN, 73). Equivalente a c. 25cm no sistema métrico decimal. Par - Segundo Humberto Leitão, é a «espessura duma caverna mais o vão até à que se lhe segue» (DLM, 393), ou seja, a distância total entre uma caverna e a seguinte, incluindo a espessura da primeira. Tal, pelo menos, é o que se pode depreender da frase de Oliveira citada em abono, a qual, em boa verdade, não consideramos muito explícita: «dando a cada caverna hum par: por que ordinariamente se conta cada caverna com seu vão, que ha antrelle e a outra que estaa adiante» (LFN, 178). Párea - Medida equivalente à largura máxima de um tonel, ou 4 palmos de goa (LFN, 74, 180). Pé de carneiro - Trave de consolidação colocada entre dois vaus. Pilar. Peixol - Forma decorativa que fechava o esporão (beque) pela vante: «terá Esporão e seu peixol» (A.29). A julgar pela iconografia conhecida, de que um bom exemplo é a chamada «Vista de Leiden», essa forma era redonda e denteada, subindo acima da borda, e parece ter sido característica das caravelas. Pé manco - O m.q. Manco. Petipé - Escala. Pica - Baliza. Pinção - Peça do timão (v.) do leme: «o pinsote ficara a re da mezena» (A. 14). Pipa - Recipiente para transporte de sólidos e líquidos, e unidade de medida para o cálculo da arqueação dos navios: «duas goas fazem hum rumo he altura de hum tonel, húa goa he altura de hua pipa, duas pipas fazem hua tonellada» (A.2). A pipa tinha portanto metade da altura do tonel, ou seja uma goa (c. 75cm), e duas pipas eram equivalentes a uma tonelada de capacidade do navio. Como esta era calculada no sentido literal, ou seja, pelo número de tonéis que podia transportar até à coberta, as pipas eram usadas para preencher os espaços onde não cabiam tonéis. Pião - Parte central do fundo do navio. A parte do fundo de uma caverna, entre os côvados. 314 VOCABULÁRIO TÉCNICO Polegar - Prolongamento do cadaste por baixo do leme: «por que o leme [direito] não dece a bayxo do codaste, mas antes o codaste lança per bayxo do leme hua unha a que chamão pollegar: o qual lança per bayxo perto de hú palmo» (LFN, 164). Polés - Engenho de madeira que servia para a passagem de cabos; seria explicada na parte final do Livro de Oliveira: «E finalmente cumpre prouer para a fabrica das nãos, cabrestantes, guindastes, polees, cordas, e muntos outros engenhos, em abastança: por que não falte cousa algúa necessária, quando a ouuerem mester. O modo destes engenhos, e fabrica delles, se diraa no fim deste liuro, quando trataremos das taracenas, e uaradouro das nãos: por que laa he o seu lugar» (43). Pontal - Altura máxima medida entre a primeira coberta e a quilha: «Terá de pontal catorze palmos de Goa fora a altura da cauerna» (B.8). Popa - «he a parte traseyra, ao menos do couce do codaste para trás» (LFN, 86). Numa concepção mais lata: «Porem falando mays largo, tudo se pode chamar popa e proa, quanto estaa das almogamas para fora» (LFN, 86). Porcas - Peças de madeira similares ao gio, mas de menor dimensão, empregues em maior número na estrutura do painel da popa: «Leua em toda a popa quatro areuessados e seis porcas que são dez paos» (A. 15). Porquetes - Peças de reforço das enoras (v.) no sentido transversal. Portinholas - Aberturas no casco do navio por onde jogavam as peças de artilharia. Postiças - O m.q. Apostiças. Proa - «he a parte dianteyra da nao, ao menos do couce da roda por diante» (LFN, 86). Querena - A parte mergulhada do casco. Chamava-se «querena à italiana» a um processo de consertar o casco inclinando o navio, sem o pôr a seco. Tal prática foi verberada por vários entendidos como sendo a causa de más consertos que resultaram na perda de navios; João Baptista Lavanha foi um dos que perfilhou esta ideia, no relato de naufrágio de sua autoria inserido na História Trágico-Marítima. Quilha - A mais importante das peças da estrutura do navio, que era a primeira a ser colocada. A definição de Fernando Oliveira, além de muito clara, o que nem sempre sucede, recorre à comparação com a anatomia humana: «he hua traue grossa, que uay ao longo da nao pello meyo do fundo como espinhaço, oufiodo lombo de qualquer alimária longa lançada de costas» (LFN, 76). Rabo-de-espada - Tipo de graminho. Ragel ou rangei ou regei - Delgado da popa. Reversados ou revessados - «Chamão reuersados, o liame que uay per cima do delgado atee o codaste» (LFN, 122). O m.q. Mancos (v.) Roda de popa - Lançamento do navio à popa (v. Lançamentos). Roda de proa - Lançamento do navio à proa (v. Lançamentos). Os NAVIOS DO MAR OCEANO 315 Rumo - Medida de referência para a arquitectura e construção dos navios de grande porte, sendo por isso designados de «x» ou «y» rumos: por exemplo, uma nau de 18 rumos indica o comprimento da quilha da embarcação e, por decorrência, um valor aproximado para a tonelagem. Era igual a 6 palmos de goa, o mesmo comprimento do tonel, e equivalente a l,5m no sistema métrico decimal. A palavra designa também o curso do navio. Sobrecostado - Revestimento de reforço aplicado por cima do forro do navio, destinado a aumentar a protecção contra o bater das águas, a podridão, a humidade e o gusano. Fernando Oliveira deixa claro que se costumava então aplicá-lo nos navios da índia (os que exigiriam maiores cuidados quanto à robustez de construção), podendo ou não subir acima da linha de água, neste último caso aumentando também a protecção contra os tiros dos contrários. Segundo o mesmo autor devia ser feito com tábuas de largura comum: «Porem não ha de ser o tauoado do sobrecostado tão grosso, nem forte como o do próprio costado: nem deue ter mays grossura que tauoas communs, e de qualquer madeyra, posto que não seja das acostumadas nesta fabrica. Seja todauia bem pregado, e breuado» (LFN, 137). Sobrequilha - É como que uma segunda quilha colocada por cima desta, assim o indica o próprio nome, para reforçar a ligação da mesma com as cavernas. Tabuado - Conjunto das tábuas que revestem o casco do navio. Talha - Medida equivalente ao comprimento do tonel, ou seja um rumo (LFN, 74). Talhamar - A parte inferior da proa, que cortava o mar. Tamboretes - Peça de reforço das enoras (v.), no sentido longitudinal. Fernando Oliveira declara não saber qual a origem do nome (LFN, 158). Timão - Nome dado ao conjunto da cana e pinção do leme: «Temo he aquelle braço do gouernalho, que entra dentro do nauio, pello qual o uirão dhúa parte paraa outra... Este braço, ou tamão do gouernalho, em alguas partes o fazem dobradiço de duas peças encayxadas a maneyra dos ossos do cotouello, para o recolherem, por que não peje o nauio: e das peças a hua chamão cana, que he a que estaa pegada com o leme, e a outra em que anda a mão do marinheyro, se chama pinção» (LFN, 158-9). Tolda - Primeiro pavimento do castelo da popa, que nos navios de grande porte chegava até perto do mastro grande: «A tolda atee perto do masto grande, em altura de septe, ou oyto palmos, quando dee lugar a os homens andarem dereytos per bayxo delia» (LFN, 142). Tolete - Peça de madeira usada nas galés, cuja forma lembra a letra 'U', onde assenta e gira o remo. Tonel - Recipiente para transporte de sólidos e líquidos. Servia de unidade de referência para o cálculo da arqueação do navio (nesta época entendido como a capacidade de carga útil até ao convés, o que excluía tudo o que se podia colocar acima desse nível), tendo um rumo de comprido por 4 palmos de goa de largura máxima (LFN, 75), ou seja, l,5m por lm. Tonelada - Unidade de medida para o cálculo da arqueação do navio, e neste sentido o m.q. Tonel. 316 VOCABULÁRIO TÉCNICO Torno - o m. q. Foumo (v.). Traquete - O mastro da vante, ou seja, mais próximo da proa. Traves - Grossas peças de madeira ligadas aos dois costados do navio, sobre as quais se sustentavam os pavimentos das cobertas, servindo ainda de reforço da estrutura do navio: «Alem de sostentarem as cubertas, Hão também os costados hú co outro, como as traues das casas lião, e trauão as paredes, e da hy se chamão traues» (LFN, 126-7). Trincanizes - Vigas de madeira postas junto à amurada e pregadas às cavernas para reforço longitudinal do navio. Tristegas - Nome dado por Fernando Oliveira aos navios de três cobertas. Um ponto - v. Pião. Vaus - Grossas vigas de madeira colocadas no sentido transversal onde assentava o tabuado dos pavimentos. Verga - Madeiro cruzado perpendicularmente aos mastros nos navios redondos, e obliquamente nos latinos (em condições normais de navegação), de onde pendia a vela. ,S DO CHAPITGU W '" ""''•" T H rE"El CAVERNA MESTRA "^«ALMOGAMA DE PROA DELGADO DE PROA ^EET^^Tre CASA DO TRAQUETE E DO GURUPÉS 1 (.1-cnhenal X / / Pelipe de ^5 palmos de goa 11 ELil Fig. 21 - Modelo e nomes das partes do galeão de 500 tonéis, a partir do Livro de Traças de Carpintaria (desenho de João da Gama Pimentel Barata). APÊNDICES Nota preambular No que respeita ao critério de fixação de textos, a razão assiste sem dúvida a quem defende que copiar exactamente o que está é um bom processo de poupar trabalho apenas a uma das partes : , mas procurou-se limitar ao mínimo o nível de intervenção. O conjunto de regras seguidas teve em atenção a especificidade destes documentos, onde não faltam termos e passagens incompreensíveis, resultado de cópia descuidada, ou então palavras cujo significado nos é ainda obscuro; como guias para ajudar nas opções a tomar foram considerados trabalhos académicos em que se considera exemplar o modo de reproduzir as fontes históricas 2 . Assim: a) por norma desenvolveram-se as abreviaturas, mas mantiveram-se em casos muito pontuais - por exemplo para facilitar a apresentação gráfica do documento quando houve necessidade de recorrer a tabelas para a composição do texto, ou nas notas das margens; b) mantiveram-se as maiúsculas e minúsculas; c) mantiveram-se os sinais « + » e «#», mas apôs-se o sinal de parágrafo (§) em substituição de outra sinalética; d) evitou-se o emprego do «sic» tanto quanto possível, o qual foi usado apenas quando pareceu ser em absoluto indispensável, dado que o seu uso rigoroso tornaria a leitura dos documentos simplesmente penosa; «Ao referir-se ao método da transcrição paleográfica, o Prof. Robert Ricard afirmou: 'Ce système de reproduction mécanique a d'ailleurs 1'inconvénient de demander trop peu à 1'éditeur et trop au lecteur'», apud António Dias Farinha (estudo crítico, introdução e notas), Crónica de Ahnançor Sultão de Marrocos (1578-1603), tradução francesa de Léon Bourdon, Lisboa, IICT, 1997, p. CHI. De António Dias Farinha a edição citada na nota anterior, pp. CIII-CXV, e Os Portugueses no Golfo Pérsico (1507-1538). Contribuição Documental e Crítica para a sita História, sep. de Maré Liberum, Lisboa, CNCDP, 1991, p. 33; e A. A. Marques de Almeida, Aritmética como Descrição do Real (1519-1679). Contributos para a Formação da Idade Moderna em Portugal, vol. II, Lisboa, CNCDP/IN-CM, 1994, pp. 19-20. 322 APÊNDICE A e) procedeu-se à separação e junção de palavras, sempre que tal se revelou necessário para assegurar a inteligibilidade dos textos; f) a abertura de parágrafos e alteração da pontuação foi feita muito moderadamente; g) a forma de apresentação dos documentos obrigou por vezes a pequenas alterações de mancha (que se pretendeu o mais próxima do original, por regra), dadas as dificuldades técnicas sentidas na reprodução de alguns deles tal qual se nos apresentam; por isso optou-se pela inserção no corpo dos documentos das notas à margem que na prática funcionam como abertura de sub-capítulos, ou chamadas de atenção para os conteúdos; h) todas as inserções vão entre parêntesis rectos, incluindo a numeração dos fólios; reticências ou pontos de interrogação assim colocados assinalam palavras e trechos em falta ou de leitura duvidosa, respectivamente (não se procede a reconstituições de texto); i) critérios especiais e situações pontuais vão explicadas em notas de rodapé. APÊNDICE A Regimentos Gerais de Arquitectura Naval DOCUMENTO A. 1 Regra geral para Nauios de alto bordo de setenta ate trezentas toneladas Todo o Nauio de trezentas toneladas para baxo se contará por palmos redondos conuem a saber boca e altura de cubertas e mareagem mas o comprimento da quilha e lançamento de Rodas por palmos de goa porque subindo de trezentas toneladas para cima serão palmos de goa. E todos os nauios de cento e cinquoenta toneladas ate dozentas de duas cubertas terão o lançamento de Roda de proa entre o terço e o quarto de comprimento da quilha. A todos os nauios de oytenta e cem toneladas que forem de húa cuberta redondos terão de lançamento a proa a quarta parte do comprimento da quilha. E se o Nauio for ligeiro e de guerra por a boca delle a quarta parte do comprimento que o Nauio tiuer de almeida ate a ponta da Roda o que chamão eslera e os palmos que se acharem de goa se conuerterão em redondo. Todos os nauios de cento e cinquoenta toneladas ate trezentas, terão o lançamento de Roda de proa entre o terço e o quarto do comprimento da quilha, [fl. 5v] Subindo de trezentas toneladas para cima, sendo de carga, lançarão a terça parte do comprimento da quilha e em todas as medidas se farão por palmos de goa. Para hú nauio de oytenta toneladas tomar se a hua folha de papel e hú compaço, e hua Regoa dhu esquadro, e logo aberto o compaço dando hua risca no papel far se ão os rumos conforme ao nauio que se pedir com a guerra. Hu nauio de oytenta até cem toneladas terá dez rumos e meyo da quilha do coixé de popa ate o eixe de proa scilicet aduertindo que hua goa tem três palmos de goa, cada palmo de goa he hú palmo de uara e hua pollegada desde a ponta da unha ate à primeira junta do dito dedo duas goas fazem hú rumo de altura de hu tonel, e húa goa he altura de húa pipa, duas pipas fazem hua tonelada. Tanto que se tiuerem feitos os rumos da quilha far se á húa risca mais pequena adonde parecer, onde se repartirão os rumos e goas, palmos; meyos palmos, chama se isto petipe. 326 APÊNDICE A Para tirares o lançamento da Roda de proa será, como diz a Regra, atras e depois què se acharem os rumos ou [fl. 6] palmos do lançamento da proa por se ão as pontas do compaço do couxe da proa pella linha direita, marcarás deste ponto nouo farás a esquadria pella altura da Roda de proa tanto quefizeresa altura da roda conforme as cubertas do nauio, tomarás a terça parte da altura da roda [de] proa e farás no canto da esquadria húa meia lua, dentro desta meia lua, farás outras três partes húa delias acrecentarás por cima da meia lua, o qual risco te seruirá do este encostares a elle quando rodares feitos os três pontos e alto de altura ponto de meya lua, ponto do coixe de proa, e porás o compaço e botarás o rolo junto nestes três pontos e rodadosficaa roda conforme a estafiguraque adiante se verá, depois da roda da proa feita, poderá fazer o rodaste, e farás a esquadria na metade do coixe no comprimento da quilha saberás a altura dalmeida. Logo farás três partes de altura na ponta de cima abriras húa parte para fora marcarás o ponto dali ao coixe darás hua linha direita do ponto ate o coixe ficará o rodaste perfeito. Depois de estar trassada a quilha roda de proa e altura do rodaste ate almeida darás húa risca dalmeida do leme á roda de proa, de maneira quefiquetão alta a proa como a almeida a popa tomando a altura da quilha e a ponta dalmeida outro tanto farás a proa a proa chamarão a esta risca eslera abrirás o compaço e fa [fl. 6v] e farás três partes do comprimento desta risca desta roda ate almeida húa das quais partes demanda o terço ha de ser a boca ou manga do nauio na maior largura, de maneira que se for nauio de húa cuberta será a maior largura na mesma cuberta, se for de duas cubertas será a maior largura e a segunda se for de três entre a segunda e a terceira, se for de quatro entre a terceira e a quarta conforme aos nauios quefizeresdarás esta risca sempre por maior largura. Pois delia ha de nacer a cauerna mestra e terás sentido qual he a primeira risca que diz que se conuerterão em palmos de goa que se acharão no terço da eslera em palmos redondos assi como aches que neste nauio de oytenta toneladas que o terço da eslera tinha vinte e cinquo palmos de goa chamarás palmos redondos medirás todo nauio redondo ou latino de alto bordo terá o pee do mastro grande posto na carlinga do meio da quilha: para por a cauerna mestra tomarão hú cordel do coixe da popa ate coixe de proa e farás três terços e o primeiro terço indo de proa para popa ali poreis a cauerna mestra. Maneira como tirarás a cauerna mestra Tanto que souberes quantos palmos tens de boca pello terço da eslera farás húa esquadria da dita boca em quadrado [fl. 7] conforme a estafiguraque ves '. Partirás esta esquadria pello meyo e este ponto de meio será primeiro ponto da [fl. 7v] cauerna, logo partirás estafiguraem cinquo partes ou dous das esquinas farão hua meia lua que são partes que botas fora, a qual meia lua te ha de seruir quando rodares o segundo ponto do segundo compaço a que ha de ir a morrer o braço quanto o terceiro ponto a qual lua há de ter altura da cuberta na maior largura, a qual saberás se o nauio que fazes, se he de húa cuberta midiras onze ou doze palmos pella esquadria acima, se O espaço reservado à figura está em branco no manuscrito. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 327 for de duas cubertas na altura que será disce dando o ponto da altura lançarás o rol do ponto daltura ao ponto segundo encostado na esquadria, são os três pontos por onde húa forma para o compaço ate o meio tudo o que ha de ser da esquadria para baxo leuantarás no garaminho, e depois da forma riscada no chão para saberes onde has de por o couado tomarás na goa altura de hú palmo no Petipé que tiueres feito jr te as afastando com o palmo na mão pella esquadria ate meteres o dito palmo da forma e esquadria e alli será o couado machando na forma, e aduirte que esta forma he cauerna e braço e a postura três palmos acima do couado chegará a ponta da cauerna e três palmos abaxo do couado, chegará a ponta do braço e por cima do dormente da primeira cuberta serão dous palmos ate alli chegará a [fl. 8] forma abaxo do ponto da altura da cuberta marcaras o dente para o descanço do dormente e a este dente para baxo darás o embaraçamento da forma da postura conforme for o nauio desta cuberta para cima deitara o 3. Mesmo Rol a postura para mareagem ou para a segunda cuberta e em todos os nauios de alto bordo de oytenta toneladas ate de trezentas não farás mais cauernas, conuem a saber a mestra com quatro braços, dous de hú ponto, hú para proa outro para popa, duas de dous pontos o mesmo, duas de três pontos o mesmo fique para auiso que o embaraçar da cauerna e do braço sempre o galliuando para a cara porque pondo a forma do braço em cima da cauerna, quando está para embaraçar aprumarás pella banda, de fora do braço e veras o dito braço se quer abrir ou fichar, darás de garaminho primeiro ponto e te sairá ao tirar da forma três dedos o qual ponto são as almogamas entre aquelle pano e a cauerna mestra porás dous pontos postos pellos quais gueliuaras duas cauernas de hú ponto e dirás de duas todo o nauio de trezentas toneladas ate a grandura de húa das nossas nãos terá mais que onze cauernas depois de ter feito o garaminho deste nauio ajunta Io as ao primeiro ponto de cauerna, e logo marcarás com os mesmos pontos do garaminho na cauerna esse será o seu verdadeiro comprimento, quando [fl. 8v] quando galiuares as pontas a cauerna tem aduertencia que a primeira ponta he da cauerna mestra de garaminho com a ponta segunda para duas de hú ponto a terceira para as de três pontos, e depois de armadas as cauernas farás hú furo defronte do couado da cauerna e que serás húa tizoura com pruma para aprimares que venha a dizer no meio da quilha pregando as armaduras primeiro nas ditas cauernas do couado para baixo de seis de pregadas por as duas soleiras no chão e os tachados e para três pontaletes para o entezar com seus proeiros para a pedalebra depois irás acunhando para proa e para popa, dando seus delgados a hú nauio conforme as medidas adiante. Sendo o nauio dalto bordo lhe darás de largura do gio a metade do que tiuer de boca se tiuer quarenta palmos vinte se tiuer trinta quinze e assi conforme o nauio, e para tirares à forma sendo do mesmo comprimento da quilha terá aos postos oyto palmos a cuberta a cinquo tolda ao pee do masto ou ao chapiteo ou ao masto da mesena pêra mais ligeiro seu castello será raso de proa que pella pugar de dous canhões pella proa fica capaz de poder bogar remos 4 (?) terá de boca a terça parte de eslera, e se for navio ligeiro entre o terço e quatro virá a ser de setenta toneladas pouco mais ou menos, terá de mariagem três palmos [fl. 9] a cuberta da ponte será fixa ate a ponta do castello a proa, e ate o pee do masto a popa, o mais será de quartéis, terá de Regei na proa a metade do Regei do [rio] delgado de popa. 328 APÊNDICE A Ao nauio de cento e cinquoenta toneladas marchante Terá de comprido onze rumos e os lançamentos de popa e proa na maneira que atras está escrito, cuberta posta em noue palmos e meio a outra em seis e meio, a tolda ao pee do masto e a altura de seis palmos e meio o chapiteo ate o masto da mesena ou camará como mais quizeres seu castello a proa abita dentro no castello a largura do gio a popa, a metade da boca terá de largo a terça parte de eslera como fica dito. Nauio de trezentas toneladas Terá treze rumos de esquadria a esquadria terá de lançamento de Roda de proa a terça parte da quilha, terá húa cuberta a onze palmos a outra a sete e meyo, cinquo palmos de mareagem, tolda ao pee do masto seis palmos e meio de alto, seu castello a proa escorado com sua gorita e sua abita dentro no castello e se for castello cerrado abita da banda de fora terá húa altura de Roda de proa a vinte e quatro palmos de goa e o codaste terá de alto vinte e quatro palmos para que Ia gouernar acima da Roda serão as formas da cauerna e braços pella maneira atras, [fl. 9v] Húa careuella de cinquoenta meios terá de comprido por quilha oyto rumos terá de boca dezaseis palmos, a Roda de proa terá dalto quinze palmos lançará seis, torzara no meio noue palmos na proa treze e meio e sete palmos e meio de sentai a Roda de papa [sic] terá dalto dezasete palmos. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 5-9v. DOCUMENTO A.2 Regimento pêra se saber o como se ha de dar a largura e lançamento de rodas dos Nauios de 300 toneladas pêra baixo. Todo o Nauio de 300 toneladas pêra baixo se contarão por palmos redondos a saber a bocca altura de cubertas mareajem, mas o comprimento da quilha lançamento de rodas por palmos de goa, por que sobindo de trezentas toneladas pêra cima serão tudo palmos de goa, Todos os Nauios de cento e sincoenta toneladas atee duzentas e duas cubertas, terá o lançamento da roda de proa entre o terço e o quarto do comprimento da quilha, todos os Nauios de outenta e sem toneladas que forem de húa cuberta redondos terão de lançamento a proa a quarta parte do comprimento da quilha e se o Nauio for ligeiro de guerra pêra a bocca delle a quarta parte do comprimento que o nauio tiuer d'almeida atee a ponta da roda a que chamão esloria, e os palmos que se acharem de goa se conuerterão em redondos, Todos os Nauios de 150 toneladas ate 300 terão o lançamento da roda de proa entre o terço e o quarto do que tiuer de comprimento de quilha so uindo os Nauios de 300 toneladas pêra cima sendo de carga lançarão a terça parte do comprimento da quilha, e em todas as medidas se falara em palmos de goa. [fl. 18v] Os NAVIOS DO M A R OCEANO 329 Pêra hum nauio de outenta toneladas. Tomarão húa folha de papel, e hum compaço e húa regra, e hum esquadro logo aberto o compaço dando húa risca no papel farás os rumos conforme o Nauio que te pedirem como agora hum nauio de oitenta atee sem tonelladas, terá dez rumos e meo da quilha de couce de popa atee o couce de proa e auertindo de húa goa tem três palmos de goa cada palmo de goa he hum palmo de vara, e húa polegada, desde a ponta da unha atee a primeira junta, e duas goas fazem hum rumo he altura de hum tonel, húa goa he altura de hua pipa, duas pipas fazem húa tonellada. Tanto que tiuerem feito os rumos da quilha farás húa risca mais pequena adonde te parecer adonde vès partiras os rumos e goas palmos e meos palmos chama se a isto pitephe pêra tirar o lançamento da roda porás o ponto do compaço de couce de pro [sic] pella linha dereita, e marearás deste ponto nouo farás a esquadria pêra a altura da roda de proa, e tanto que fizeres a altura da roda conforme as cubertas do Nauio tomarás a terça parte da altura da roda de proa, farás no canto desquadria hua mea lua, farás outras três partes, e húa delias acrescentarás por cima da mea lua o qual risco tè seruira de tè emcostares a elle, e quando rodares feitos os três pontos da altura do ponto da mea lua, e o ponto do couce de proa porás o compaço, e botarás o rol junto três pontos, e rodaras, e fica a roda perfeita, e depois da roda de proa feita, pêra fazeres o codaste farás a esquadria na ametade de couce no comprimento da quilha, e saberás a altura da almeida logo farás três partes na altura na ponta de cima abrirás húa parte pêra fora, e marearás o ponto dali a couce darás húa linha dereita do ponto atè o couce, ficará o couce perfeito. Depois d'estar treçada a quilha a roda de proa altura do codaste atè a almeida darás hua risca da almeida do leme a roda de proa de maneira de modo que fique tam alta a proa como a almeida a popa tomando a altura da quilha a ponta almeida outro tanto farás a proa chamão esta risca esloria abrirás o compasso, e farás três partes do comprimento desta risca desde a roda atee a almeida [fl. 19] húa da quaes partes chamada o terço ha de ser a bocca do Nauio na maior largura na Maneira que for nauio de húa cuberta terá maior largura na mesma cuberta, e se for de duas cubertas, terá a maior largura entre a primeira, e a segunda, e se for de três entre a segunda e a terceira, e se for de quatro entre a terceira e a quarta conforme os Nauios que fizerem dareis esta risca sempre pella maior largura pois delia ha de nascer a Cauerna mestra, e terás sentido qual he a primeira regra que diz que se conuerterão em palmos de goa, e que se achares no terço da esloria tiuer vinte e cinco palmos de goa chamareis palmos redondos medareis, todo o Nauio redondo ou latino d'alto bordo terá o pee do masto grande posta a carlinga no meo da quilha pêra por a Cauerna mestra tomareis hum cordel do couse da popa atè o couce da proa, e a fareis três terços, e o primeiro terço vindo de proa pêra popa ali porás a Cauerna mestra. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 18-19. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 97. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Feniandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 49-50. 330 APÊNDICE A DOCUMENTO A.3 Do modo que has de ter no tirar da cauerna mestra. Tanto que souberes quantos palmos tem de bocca pello terço da esloria, farás hua esquadria da dita boca toda emquadrada, partirás esta esquadria pello modo este ponto do meo será o primeiro ponto da Cauerna logo repartirás esta largura em cinco compaços botareis da ponta d'esquadria pêra dentro, e tomarás hum compaço, e rodarás da ponta desquadria pêra dentro fazendo hua mea lua, que são as duas partes que botas fora, a qual mea lua te has de emcostar, quando rodares o segundo ponto do segundo compaço em que ha de uir a morrer o braço o terceiro ponto o qual ha de ser a altura da cuberta na maior o qual saberás se o nauio que fazes se he de hua cuberta, medirás onze ou doze palmos pella esquadria acima, se for de duas cubertas na altura que te ja disse tendo o ponto da altura lançaras o rol do ponto daltura ao ponto segundo emcostando te a mea lua que esta feita no canto da esquadria que são os três pontos com que has de fazer forma, e passaras com o compaço atè o meo tudo o que disser da esquadria pêra baixo leuantareis no graminho depois da forma riscada no chão pêra saberes aonde has de por o couado tomaras hum palmo de goa da esquadria pêra dentro, e adonde tè disser o ponto ahy he o couado, e aduirta te que esta forma he a cauerna e o braço, e apostura três palmos acima embaraçareis a cauerna e braço, por baxo da cuberta deixarás o dente na postura e braço pêra assentar o dromente, e dahy pêra baixo deixarás embaraçamento que he necessário como acima digo, e a dahy pêra riba tee dará o dito rol a forma que he necessária pêra a mareagem, ou pêra a segunda cuberta, em todos os nauios dalto bordo de outenta toneladas atee trezentas não farás mais de sete cauernas scilicet a mestra com quatro cauernas duas de hum ponto hua pêra proa, e outra pêra popa duas de dous pontos as mesmas duas de três pontos, o mesmo uos fique pêra auiso que embaraçar da Cauerna he do braço sempre o galiuado fique pêra o rosto por que pondo a forma [fl. 20] do braço em cima da Cauerna quando esta pêra embaraçar aprumaras pella banda de fora do braço, e veras o dito braço se quer abrir ou fechar darás de graminho do primeiro ponto que tè sairá o tirar da forma, que serão três dedos, o qual ponto he as almogamas antre aquelle ponto e a Cauerna mestra porás dous pontos pellos quaes galiuaràs duas Cauernas de hum ponto e duas de dous todo o Nauio de trezentas tonelladas atee grandura de hua das nossas Nãos não terá mais que onze Cauernas depois de ter feito o graminho deste Nauio ajuntareis o primeiro ponto da Cauerna, e logo mareareis os mesmos pontos do graminho na Cauerna, e esse será o seu verdadeiro comprimento quando galiuares os pontos da Cauerna tenhaes aduertencia que o primeiro ponto he da Cauerna mestra com o ponto do graminho, o segundo he pêra as duas dum ponto, o terceiro pêra as de três depois de armadas as Cauernas farás hum foro no couado da Cauerna em que farás hú furo no couado da cauerna em que porás hua thesoura com hum prumo e prumaràs que venha a dizer no meo da quilha pregando as armadouras primeiro nas ditas Cauernas pollo couado pêra baixo depois de pregadas porás húas soleras enterradas porás com seus pontaletes pêra o empezar da madeira irás emchendo pêra proa e pêra popa dando lhe seus delgados ao Nauio conforme as medidas adiante. Outro regimento pêra se tirarem formas por diferente traça do atraz dito Em todo o Nauio que fizeres dalto bordo lhe darás de largura do gio a metade do que tiuer de bouça se tiuer corenta palmos dareis vinte, se tiuer trinta quinze assy conforme o Nauio que fizeres na forma do pee manco farás no chão hua risca e medirás a altura Os NAVIOS DO MAR OCEANO 331 do codaste e logo medirás a altura do delgado que são seis palmos de goa e marearás e tomarás a forma do braço e viraras o couado pêra cima e marearás, e assy mandarás tirar a forma às [fl. 20v] armadouras pêra que forem a popa han de ser pregadas abaixo do pee manco dous palmos redondos, e logo se pregará outra por cima desta junto ao pee manco, e vira morrer por riba da outra comprimento de três goas, a que for pêra proa acima como tè fores chegando a esquadria que forem os enchimentos sobindo pello coral acima irás pondo outras armadouras, e irás fazendo bom costado aprumando a armadoura do braço da maneira porás na altura que te não faça o sintar. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 19v-20v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 51-53. DOCUMENTO A.4 Conta por onde se han de tirar as boccas. De Nãos de quatro cubertas, e de galiões De todo o porte que pedirem. Farão o comprimento da quilha de esquadria a esquadria três partes, e tomarão húa para os lançamentos destas rodas de proa. E os codastes dar lhe ão os lançamentos antre o terço e o quarto conforme aos comprimentos que forem necessários para as taes embarcações. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fl. 33v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 71. DOCUMENTO A.5 Regimento como han de aparelhar húa Nao pêra botar ao mar. Farão sete bragueiros húa de húa banda, e outro da outra pêra húa ajuda sendo necessário mais farão dous estrouos de cada banda para as regueiras o primeiro no segundo uão da caza outro no terceiro uão assy de húa banda como da outra, e no meo hum bragueiro cozido no primeiro uão da banda, e da outra pêra a regueira. O primeiro aparelho pêra botar a Nao será cozido a seis cazas de proa pêra popa cozidos húa caza e na outra nas sinco por banda, e dous a popa no meo cozidas na emuazadura hú por banda, e sendo a Nao pequena bastará menos aparelhos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 55v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 98. 332 APÊNDICE A DOCUMENTO A.6 Regimento pêra se fazer húa emvazadura para botar Nãos. Terá de comprimento dezasete rumos de cabeça a cabeça a face das casas por a banda de fora terá esta emvazadura sesenta vasos, trinta cada húa como os cachorros, os vazos ficarão todo o comprimento que tiuerem onze palmos de goa, então farão hum para hua banda, e outro pêra a outra, e de furo a furo terão hum palmo de goa. O uaso terá hum palmo, e dous terços de palmo de goa, serão todos de hua grossura, e d'alto toda altura que tiuerem, e como fizerem o canto por baixo muito bem feito, fique pêra cima tudo o mais que o escani emtalharà o que for necessário. Os cachorros farão também húa forma e marcarão os furos da mesma maneira do uaso, e terão dez palmos de goa de crus a crus como está acima uira a ficar a emuazadura os dezasete rumos ditos atraz, e como os uasos forem preparados todos farão a forma dos cachorros pêra o comprimento necessário. E quando quizerem preparar esta emvazadura, farão o terreiro pêra ella muito bem feito postas as uigas por cima ao liuel, pêra que quando despois quizerem cordear as dragas que fique bem preparando, e despois que tiuerem feito este terreiro, e postas as uigas prepararão os uazos porão primeiro a popa atè seis pêra proa irão por fora as pontas dos vasos finalmente atè seis, ficará o uaso fora com as pontas ambas, os mais pêra popa, e proa ficarão por [fl. 54v] por dentro pêra que se và chegando pêra as cabeças pêra fazer bojo pêra fora, e farão de maneira como acima tenho dito são dez finalmente que vem a ser três uezes dez, os trinta vazos que ha de ter a emuazadura com os cachorros e vazos serão sesenta, e não fazendo o comprimento os ditos vazos os dezasete rumos meterão cachorros. Terá dalto a popa a primeira casa por dentro de sobre a uiga dezasete atè dezouto palmos que he altura do delgado que a Nao tem, e por fora d'alto vinte e dous palmos, e serão de goa húa altura e outra a proa dalto por fora onze palmos de uara, e por dentro cinco de goa, recolherá a baliza de popa dentro na emuazadura hum palmo de uara pêra fazer isto bem feito, porão hum prumo na ponta da baliza por o canto de fora que refira o prumo em hum palmo posto em hum canto da baliza de dentro, e he pello escani, e isto cairá, e querendo fazer mais sem trabalho em altura de cinco palmos de vara cairá a baliza hum quarto de palmo de uara, e por fora porá a baliza a prumo polia face, a proa cairá por dentro, a baliza na altura quatro dedos para dentro da emvazadura, e por fora a prumo. Item as primeiras carreiras das dragas por baixo aos seis rumos da emuazadura por dentro de goa a face da draga por a face de baixo de sobre o uaso, e serão três em ordem junta húas com as outras, e no dito meo por fora três palmos de goa sobre o uaso, a face da draga por baixo, a proa e a popa por dentro três palmos de goa, e por fora a proa terá de húa a outra tamanho hum uão como outro, e assy farão a popa que fique tamanho huns uãos como os outros. Do meo pêra re despois que tiuerem posta a primeira carreira de dragas de vante a rè, do meo pêra re apartarão outra carreira, e a popa no ponto que tiuerem marcado na valiza, e Os NAVIOS DO M A R OCEANO 333 logo a outra caza pêra re apartarão outra carreira de dragas, e por cima outra carreira de vante a rè, e querendo que fique [fl. 55] fique os vãos mais pequenos bem lhe pode meter outra carreira, que venha a três ou quatro cazas ficarão mais forte. Por fora empatarão húa carreira de dragas no meo da emvazadura sobre a proa de baixo, e logo acima como tiuerem postos os escanis em ordem na mesma casa do meo outra carreira que fique escaruando debaixo da carreira de todo cima, e ficarão todas as dragas apartando as debaixo sobre as que vão dante a re, finalmente ficarão as mortas dentro nas emteriças. A proa por fora terá duas carreiras de dragas que são duas fixas que vão de uante a re tanto hu vão como outro, e por dentro duas que são também as duas de uante a rè, e lembro que a draga de cima polias pontas cobrirão com húa cama de paos por cima, e lembro que as drogas por cima ficarão cubertas emtalhadas hum palmo dentro nos escanis, e por dentro ficarão as dragas, as faces das cabeças dos escanis. Como prepararem os vasos tomarão o comprimento do escani que tenha catorze palmos de uão de comprido este comprimento terão todos de uante a rè, e depois de preparada as casas cordearão por dentro e por fora que fique conforme o costado da Nao, e o delgado a proa e popa como atraz tenho dito farão os escanis a popa do vaso para dentro palmo e meo do cachorro na Casa de popa de todo e por fora outro tanto ou o que ficar de pois de cordeado que fique os catorze palmos ditos. Esta emuazadura de dezasete rumos, terá dezouto palmos, a popa, e a proa terá as primeiras duas casas a de proa cinco palmos de goa todas as mais repartirão tanto do uão como do cheo de maneira que fique os furos em uão pêra o indio e fuso que possa ter hum trincarim de hua banda e da outra que não faça o prego nojo de húa banda e da outra ao fuso e indio, as Casas de uão terão hua goa [fl. 55v]. As grossuras e larguras das dragas, e grossura dos furos, e altura que ha de ter o furo do canto do uaso debaixo. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fl.54-5 5v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 96-98. DOCUMENTO A.7 Regimento pêra a grade ou grades para botar Nãos, ou Galiões. As vigas terão trinta palmos de uara, e quanto mais melhor pêra embaraçar bem [fl. 56] e quando menos seja pouco. Terá sesenta vigas vinte e mea da ordem. 334 APÊNDICE A Terá de largo de ponta a ponta das uigas depois de feita ao canto da capa por a banda de fora dezanoue goas que são cincoenta e noue palmos de goa, farão de maneira que fique a grade a esquadria. Quando armarem a grade sobre as estacas de tal modo que fique as latas do cabo húa goa, as uigas pêra fora a goa pêra dar lugar as cordas, quando as assentarem por baixo as da cabeça, as mais serão repartidas como melhor parecer, as dos vãos nos mosissos serão taboas. As cordas das cabeças terão em quadro três quartos de palmo assy as de cima como as debaixo, as mais terão toda a largura que tiuerem que parecer bem conforme a lata que fique dereita da linha por ambas as faces. Terá húa Nao grande cinco bargueiros por banda postos no baxamar repartidos de hús aos outros de maneira que possão virar os quebrestantes ficará hum bargueiro de dentro da grade e outro de fora, os da grade serue para emvestir os cadarnais nelles, e os de fora pêra as peias dos quebrestantes por lhe ão em ajuda três ancoras na baxamar por banda para cozer os cadarnais o primeiro será cozida as seis cazas de proa, os mais repartidos dahy pêra popa húa casa, e outra não dous de cada banda para as regueiras cozidos na segunda e terceira casa de proa. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.55v-56. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 98-99. DOCUMENTO A.8 Conta, e Medida de húa Nao de quatro cubertas como ao diante se vera. Primeiramente terá de quilha dezasete rumos e meyo atee dezouto desquadria a esquadria, e terá cento, e cinco palmos sendo de dezasete rumos e meyo, terá de codaste medidos polia esquadria corenta, e quatro palmos, e medidos pello codaste corenta e seis, terá de lançamento treze palmos conforme a conta antre o terço e quarto. Terá de gio vinte e noue palmos, e meo. A roda ha de ter d'alto sincoenta e hum palmos de Goa, e de lançamento trinta e sete, e rodarão com a altura atee o escouuem, e rodarão com rol, e não com cordel por que o cordel mente. O graminho de popa terá de alto três palmos e meio de Goa terá dous dedos de pee, e repartirão quinze pares multiplicando pêra sima no comprimento dos ditos três palmos e meio. O graminho de proa ha de ter dous palmos, repartidos pello modo do de popa. [fl. lv] Terá de fundo quinze palmos de couado a couado. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 335 Terá de pontal catorze palmos de Goa fora a altura da cauerna. Tirarão o braço, e a postura e cauerna no chão em sincoenta e seis palmos de Goa. Quando assentarem a cauerna mestra assenta Ia hão no terço de esquadria a esquadria duas partes a Re, e húa auante mais algúa cousa pêra Ree. Repartirão a forma da cauerna de couado a couado em cinco partes, tomareis duas pêra compartir a madeira de conto que serão quinze pares, quinze cauernas pêra auante e quinze pêra Ree. Gualiuarão três cauernas de hum ponto, hua auante da mestra, e outra a Re, e sendo a madeira groça bastara somente de hum ponto. A mayor boca, e a portinhola, os cincoenta e seis palmos ditos atraz, e farão de maneira que fique a Nao depois de feita, em cincoenta e seis palmos de goa antes mais que menos, e ficara na amura mais bocca hum palmo podendo ser, e ficará a Nao possante e se ficar em cincoenta e sete, e cincoenta e outo muito melhor. Quando tirares as formas no chão, terão na primeira cuberta, corenta e cinco palmos de goa. Na segunda cuberta terá no chão cincoenta e hum. Na terceira no chão que he a portinhola, cincoenta e seis, que he a mayor boca no chão, e depois que vier feita cincoenta e sete. [fl.2] Terá a Cauerna d'arepiamento ao couado hum terço da groçura da Cauerna bem esforçada, e tendo meyo palmo de vara ficará melhor. Quando aposturares a derradeira apostura em que he, ha de recolher o que lança aposturajem debaixo pêra fora na altura de cuberta tanto ha de recolher apostura a mestra. Pêra popa, e pêra proa, porão balisas de dous em dous rumos pêra popa tanto que tiuerem posta a primeira balisa na mestra na conta que ha de recolher, a segunda ira endereitando pêra fora em altura da cuberta meyo palmo de vara, digo que posta a primeira balisa na mestra na conta que ha de ter de boca na mayor boca, e assy pêra proa, e pêra popa irás balisando de dous em dous rumos, de maneira que quando chegares amura fique mais hum palmo que a mestra. Lembro que quando pêra proa puzerés a segunda balisa em altura de sete palmos, botará três dedos atè balisa d'amura e da amura pêra avante farás conforme pedir a proa, e pêra popa também botarás as balisas dous dedos mais na altura de sete palmos, e balisarás de maneira que fique o costado bem feito. Quando balizares aposturajem de recolher ha mister recolhe Ia pêra dentro quando a debaixo lança pêra proa, e irás recolhendo, e balizando, de maneira que vã receber o pee de Castello, e pêra popa também que vã respondendo com a baliza do marco da popa. 336 APÊNDICE A Lembro que quando balizares pêra proa em altura da cuberta recolheras a segunda baliza meyo palmo de vara, e logo a terceira o mesmo, e assy irás fazendo às mais atee amura balisando e preparando como for melhor. Pêra popa em altura da dita cuberta recolherão dous dedos, e depois que as balizas forem preparadas, verá se estão bem, e fará de maneira que fique bom costado, [fl. 2v] Lembro que como tiuerem aposturado a primeira aposturajem empezarão de húa banda, e d'outra muito bem, que não caya a madeira mais de hua banda que da outra, tomarão medida nos lugares a amestra e amura, e não tendo a conta necessária, largarão as escoras, e tendo mais as apertarão. As cubertas terão d'altura em dereito da portinhola sete palmos e meio de goa pêra melhor do malhete da lata avante de todo a proa outo com malhete, a rè sobre o gio tanto como na escotilha, antes mais que menos. Terá a Carlinga do masto grande assentada no meyo da quilha d'esquadria a esquadria. A Carlinga do traquete será assentada a proa sobre a primeira cuberta como a nao he feita. A Carlinga da mezena será assentada sobre a almeida do leme. Terá a primeira mão de sinta assentada em vinte palmos, vinte e hum a proa. A bussarda abaixo da mão da sinta, dous palmos. A sinta a rè será pregada asima do dromonte hum palmo, o dormente ficara a popa assentado que fique com altura da lata em seis palmos. Terá a grade de popa quando a armarem no meyo quatro palmos de goa de sobre o gio ao canto da barra pella banda de cima, e nas pontas três palmos pella mesma medida de sobre o canto do gio ao canto da barra pella banda de sima. As balisas dos marcos, que estão assentadas sobolo gio em altura de sete palmos recolherão pêra dentro hum palmo esforçado, [fl. 3] As abobadas lançarão tanto quanto tiuerem as cubertas d'alto. A Varanda botara pêra fora da Nao, doze palmos. Pêra saberes o quanto se ha de dar de falcão, tomaras a boca da Nao, adonde tiuer a mayor largura que he na abita, e repartirás em três partes, e húa delias tomarás pêra fazeres o Castello esta conta se entende da ponta da roda pêra dentro, e tomarás esta parte, repartindo a em duas partes tomarão hua delias para fazeres o falcão, de modo que se tiuer vinte palmos pêra fora da ponta da roda ate o cordão terá corenta pêra dentro depois do Castello ficar acabado terá o comprimento que a Nao tem na mayor largura que he na abita como atraz fica dito, quando alinharem terá em dereito da roda palmo Os NAVIOS DO MAR OCEANO 337 e meyo de goa, a grossura será a da roda, e deixarão a roda toda a grosura quanta tiuer a curua por amor da mecha, e terá o dito falcão de groço na ponta hum palmo de goa, e d'alto palmo e meio de vara. Quando alinharem o falcão terá dous dedos de redondo E quanto tem o falcão da roda pêra fora ao dito cordão, tanto terá de largo em dereito da roda e esta conta farás pêra qualquer Nao que for. Quando quizerem armar o Castello, escamarão hua corda sobre o falcão no comprimento do Castello, e a rè farão hua thesoura, que ha de ficar o Castello na boca, e atrauessarão as latas e emmalhetarão sobre a dita corda, as latas, e lembro que ficara a boca do Castello alta por amor de habitar a amarra. Os primeiros pès do Castello ao cote, terão e recolherão sete palmos da cada banda, e são catorze ficarão na bocca do Castello corenta e dous. Quando assentarem as bandas sobre as latas tosarão de hua banda, e d'outra pellos pontos sabi [fl. 3v] dos os quaes são, Na ponta do cordão, e na ponta da roda dez palmos de cada banda, e na boca do Castello vinte e hum pêra cada banda Terá a mão ao cote de riba da lata cinco palmos ao cote da dita mão o papa moscas terá sete palmos ao cote do papa mosca, e farão de maneira que fique a prumo com a mão de judas Os primeiros virotes da boca do Castello recolherão pêra dentro cinco palmos am altura de outo, e pêra avante quatro bastão que não fique a arpa muito caida pêra avante farão de maneira que fique o castello bem feito, e quando virotarem pregarão hum cordel na ponta do papa moscas, e outro no cote do dito, e como puserem três ou quatro de cada banda irão tirando o cordel de rè pêra avante assi como forem metendo o virote. E lembro que a porta do Castello de virote terá seis palmos e meyo de goa. Como assentarem as bandas, e tiuerem virotado sintarao a primeira pessa pegara no cote da mão a rè, e pregara em altura de quatro palmos e meio. Pregarão outra peça pello meyo entre a banda, e a dita peça acima. Pregarão a peça do dromente no Cote do papa moscas, a ré em altura de sete palmos, e meyo, este dromente he pêra a gorita. Terá outra peça pella ponta de papa moscas e tosara a arpa na altura que bem parecer. Do pousa uerga pêra cima meterão três peças por chasos. Quando laurarem as cauernas tomarão do abatimento na groçura da cauerna repartindo em três partes tomarão duas pêra o dito abatimento, e isto se entende nas almogamas que d'ali pêra diante irão desmenuindo de popa pêra proa, e de proa pêra popa isto será por escantilhão. [fl. 4] 338 APÊNDICE A Quando abrirem os alifrises da roda e quilha tomarão a largura em três partes, e tomarão hua pêra o alifris que fica melhor o alifris pêra pregar na taboa bem na roda, e quilha e terão os alifrises d'encauamento dous dedos esforçados. Terá a escotilha grande avante o mastro seis latas de bordo a bordo inteiras duas a ree, e duas avante, e duas em vão digo singelas, terão de vão as singelas hu palmo de goa. Quando puzerem a primeira lata da escotilha dante a rè, aprumarão a pia do mastro, e medirão seis palmos pêra rè pêra a entrada do mastro. Terá das duas latas da re do mastro outras seis latas atè a escotilha da re pella mesma conta da escotilha do meio em todas as repartições das latas, terão de vão hum palmo de goa, a lata hum de vara isto na primeira cuberta. Esta conta se entendera somente as de cima a prumo com as de baixo. Da dita escotilha do meio a de auante terá doze latas inteiras de bordo a bordo duas juntas a rè e duas auante, e outo singelas terão de vão de hua a outra hum palmo de goa, estas escotilhas ficarão todas a prumo húas com outras. Lembro que quando medirem darão a lata, hum palmo de vara, e de vão hum de goa. O vão das bombas ficarão a re do masto duas latas juntas, e duas de ré ficarão de vão pêra as bombas hua goa, e das duas latas juntas de rè das ditas bombas contarão as seis latas até aa escotilha de popa como digo. Terá hua escotilha ao seis bordo pêra baixo, pêra carregar a Nao. Terá o seis bordo quinze palmos de goa, medirão do manco pêra proa os quinze palmos pello dormente a postura dante a re terá o seisbordo de vão sete palmos [fl. 4v] Farão dous escotilhões em dereito hum do outro do seisbordo pêra o payol do pão. Avante, Abita terá hum escotilhão pêra seruentia das Camarás debaixo. A estrinca será assentada na segunda cuberta, terão as conchas de vão de hua a outra catorze palmos de goa, terá a roda acabada dez palmos de goa de campo, e pêra recolhimento da tripa terá hum palmo de vara bem esforçado. O heixo da estrinca terá dous palmos em quadrado de goa, e a cruzeta outro palmo em quadrado. O cabrestante grande será assentado na tolda dos bombardeiros, tomarão o meio do escotilhão de re a chaminé pêra milhor dizer o vão das curuas, que serue de pès de Carneiro, e assentarão o Cabrestante no meio. Terá seis carreiras de cintas dobradas que serão tee a terceira cuberta. Terá a derradeira lata do chapiteo a prumo com o escotilhão da cabeça do cabrestante, ficará o escotilhão pêra auante todo em claro, ficara a lata a prumo com a braçola d'ante Os NAVIOS DO MAR OCEANO 339 Do chapiteo até avante do masto farão mareajem d'altura da Xareta, e mareajem da Xareta e pêra os fogões A mareajem do Conues terá seis palmos para bem da gente. Lembro que o dromente da tolda será do souoro, e ira por dentro, as latas não sairão fora como fazião antigamente, porque desta maneira he boa obra e forte. Terá o portalo seis palmos de goa, e ficara em dereito da escotilha. [fl.5] Porão a dala da bomba sobre a cuberta do conués, e assy os fogões que he costume nouo por ser bem da nao e da gente. Lembro que o prepao dos engenhos das bombas será assentado a prumo com as duas latas dobradas a ré das bombas. As Curuas pêra os tirilhões terão as pernadas pêra rè. Terá a entrada do batel a popa Catorze palmos, a proa doze palmos, e serão de goa. Quando quizerem pregar a armadoura a proa preparão hum cordel por dous ou três couados, e na roda pregarão a armadoura, e ficará direita pella face, e pello canto d'almogama pêra avante. A popa também as armadouras da almogama pêra rè atè o manco ficarão dereitas pellos cantos e faces. A primeira armadoura pregará abaixo do manco hum palmo, e sobre a armadoura ao pé do manco, e como for posta, e emdereitarão muito bem por cordel, e empessarão que não caya mais de húa banda que da outra. Terá dez apostareos por banda a popa, e da banda de bombordo terá mais dous pêra a escada. A proa terá sete por banda, e mais três pêra as amuras, e são dez, e três pássaros por banda. Amura será assentada a rè da arpa do Castello quanto mais a rè melhor a Chumaceira damura terá de comprido dezaseis palmos, e terá três apostareos. As Mesas de popa serão assentadas pella sinta da cuberta do conues cordearão, e farão o melhor que parecer, [fl. 5v] As mesas de proa serão postas pella sinta que as reserue de dormente o primeiro apostareo a proa será assentado em dereito da arpa do Castello, e pêra avante repartirão os mais atè o esconuem. Os apostareos de popa o primeiro assentarão avante ao portalo quanto dee lugar aos dous apostareos da escada, o de rè de todo a rè do seisbordo hua apostura. 340 APÊNDICE A Os trauessões das mesas pêra os aparelhos serão assentados hum palmo de goa asima da mesa a popa e a proa. Terá d'alcaxa de vão de hua sinta a outra três palmos de goa. Regimento pêra o leme desta Nao. A madre de groço terá hum palmo de goa bem esforçado no pee em baixo de todo terá de largo sete palmos de goa antes mais húa polegada, que menos de groço no dito pee, por fora terá três palmos de goa, e em cima aonde vay a cana terá quatro palmos e meyo de largo, e se a madre não tiuer isto bastarão quatro. [fl.6] Pêra saber a madeira que se ha mister pêra hua Nao de quatro cubertas sendo a madeira capaz que chegue ao comprimento das que aja mister emmendas bastão mil e seis centos paos, e sendo emmendados não bastão dous mil paos. Pêra saber o taboado manco e brauo que se ha mister, pêra húa Nao ha mister trezentos e sincoenta dúzias de toda a sorte. 350. Ha mister pêra latas e cordas seis centos paos. Ha mister outo centos quintaes de pregadura. Dura J de toda a sorte. Ha mister cento e quarenta quintaes de chumbo Ha mister outo centos quintaes de breu Ha mister d'estopa branca e preta, duzentos quintaes. Regimento pêra as gaueas. A gauia grande terá pello canto de dentro dezaseis palmos afora a largura do Auro que he hú palmo de largo, o fundo de baixo terá no rol menos hum palmo de goa da conta de cima, e terá dalto três palmos, a gauia de proa será polia largura de fundo da grande compartindo o rol polia mesma conta da grande, e terá daltura dous palmos e meio. Regimento pêra hum gundaste ordinário pêra nãos. Primeiramente terá da roda por fora quando a rodarem trinta e dous palmos de goa. [fl. 6v] O carro terá d'alto trinta e dous palmos de goa medirão do canto do cachorro debaixo atè o cachorro de cima polia banda de baixo. Rasurado no original. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 341 Terá o carro de largo dezaseis palmos de goa ate dezasete porão o eixo no meio de maneira que possa a roda laborar. Leuão os vazos de comprido trinta e quatro palmos de goa, que são os do alicesse, terá a roda de largo cinco palmos e meo de goa. A grua terá treze braças de comprido atè a roda, e dali pêra cima terá húa braça pêra hostai, o falcão terá mais comprimento polia cabeça que a grua vira escarnar na grua por cima do baleu dous palmos he o barão do meio que diga com os dous Terá de largo em cima na derradeira traueça vinte e quatro palmos de goa Regimento pêra hum calses Terá o calses grande outo palmos de goa da boca do lobo pêra a cabeça Da boca do lobo pêra o Cunho quatro palmos de goa, e daqui pêra baixo terá doze palmos que faz ao todo vinte e quatro, e o que mais tiuer daqui será muito melhor Terá de largo pêra a roda três palmos e meio de goa, e de groço dous palmos e meio, e para fora da estaca meio palmo de vara esforçado. Tarquete. Terá de cabeça seis palmos esforçados. Terá de pescoço três palmos esforçados, e dahy para baixo onze palmos, e de largo pêra o campo das rodas três palmos de goa, e de groçura dous palmos esforçados. [fl.7] Regimento pêra a conta dos mastos de húa Nao de quatro cubertas Terá o masto grande de comprido 18 braças, e destas 18 braças tirarão braça e meia pêra assentar o Calses, e dali pêra baixo será o mais laurado pella palha, terá de grosso no tamborote que he a maior grossura quatro palmos e meio de goa, antes mais que menos, será a palha repartida em sete partes, deminuirão do tamborote pêra cima ate a garganta duas partes, ficará a garganta de cinco, supposto que o terço seja a sua conta, mas por esta conta fica mais fauorauel por respeito do muito pezo que leua em cima, a madre terá de grosso dous palmos de goa esforçados na garganta repartirão a palha pella ametade irão diminuindo hua parte destas de maneira que quando chegarem ao pè ficará hum palmo de goa esforçado, terá nesta palha da madre repartidos 17 pontos tirados na meia lua como se verá nos modelos, Outauarão o masto por sete compaços repartidos na palha três dentro, e quatro fora dous de cada banda, ainda que pello quinto e a sua conta mas faz se lhe este fauor pellos officiaes serem muitos, e a ferramenta gastar, as linhas do tamborete pêra baixo terá cinco braças metidas neste comprimento das dezouto braças, deixar lhe ão mais fauorauel algua cousa que a garganta fará palha sobre sy, irão demenuindo do tamborete pêra baixo, farão nestas cinco braças, seis braças pêra ir deminuindo mais por meudo, e do tamborete pêra cima repartirão na palha 13 braças, quando quizerem repartir os malhetes na madre farão na garganta húa 342 APÊNDICE A braça de redondo por respeito de ficarem as mestras mais fauoraueis e no mais comprimento, e do redondo fica pêra baixo, repartirão cinco malhetes em vasio e seis cheos isto farão em todas as quatro quadras, reparti los hão de maneira que não fique huns com outros, e pêra se fazer esta repartição tomarão meia braça na primeira face que esta da banda, e dahy pêra baixo lhe darão pêra o malhete que he o vasio húa braça e meia, e assy darão a todos os mais vazios e cheo braça e meia, e na outra face que responde com esta primeira dar lhe ão seis palmos que he o cheo, e destes seis palmos pêra baixo lhe darão o vasio que he a braça e meia, e na terceira face que he a decima dar lhe ão húa braça que he o cheo, e desta braça pêra baixo se lhe dará húa braça e meia que he o vasio, he na quarta face que he a debaixo que responde com a decima medirão dez palmos que he o cheo, todas estas medidas se darão do redondo pêra baixo, por que nesta conta esta ficar os dentes dos desencontrados huns dos outros, [fl. 7v] Ordem que hão de ter no fazer das harataduras pêra que a pregadura não fique nellas quando quizerem pregar as mestras trarão a medida na mão com dous palmos de Xeo, e hum de uazio que ha de seruir pêra aratadura, e desta maneira irão compassando a pregadura a cada três Xeos hum prego de maneira que fique os pregos desencontrados huns dos outros por senão cortar a madre nas primeiras quatro arataduras farão o emtalho dúa polegada esforçado por senão cortar as mestras muito d'aly pêra baixo lhe irão dando a palha maior quando chegarem ao tamborete que tenha dous dedos dalto bons, a madre terá quinze braças de comprido se poder ser as mestras terão catorze braças, e todo o mais que tiuerem serão muito bom. O mastareo terá dez braças e mea de comprido, terá no garlindeo de groço dous palmos redondos esforçados, será repartida a palha pello terço demenuira húa parte destas atee chegar a garganta tirarão nesta palha noue pontos tira los hão na meia húa, outauarão em sete compaços botarão dous de cada banda fora ficarão três dentro, e quatro fora. A verga grande terá dezouto braças de comprido, terá de palha na ostagadura dous palmos de goa esforçados será repartida pella ametade quando chegar ao lais ficara num palmo de goa esforçado, porão na palha noue pontos na parte que ha de deminuir que he hum quarto por cada banda da palha terá cada penão destes 14 brasas embaraçara cinco braças cada hum destes que vem a ser o embaraçamento em dez braças, e se tiuer mais muito melhor do meio pêra as cinco braças, virão deminuindo com a palha, atè que cheguem aos cinco pontos, outarão pellos sete compaços, quando for ao embaraçar dar lhe ão de chincho três dedos farão o primeiro emcontro do meio pêra o lais húa braça, e o segundo do meio pêra o embaraçamento outra braça, estas duas braças serão de quadra, e o mais que ficar será pêra a telha. A Verga da gauea terá seis braças, e se lhe quizerem dar mais mea braça bem pode, terá de groço na ostagadura hum palmo de groso de goa, e dous dedos esforçados, será repartida pella quarta parte deminuira nas lais a metade porão nesta palha três pontos de cada banda irão alinhando do meio pêra os lais querendo nestas seis braças fazer muitas braças podem no fazer ficará mais fornido o pao, outauarão na palha em sete compaços repartidos nella botando quatro fora, e três dentro, e quantos pontos tem na palha no demenuimento tantos terá No outauar. [fl- 8] Os NAVIOS DO MAR OCEANO 343 O masto do traquete terá de comprido, quinze braças e meia de groço no tamborete três palmos de goa esforçados, será a palha repartida pello modo do grande, terá a madre de groço na cabeça aonde han de emuestir as mestras palmo e meo redondo demenuira na palha conforme a do masto grande porão nesta palha da madre catorze pontos d'aly pêra cima fica braça e mea pêra acertar o Calses quando quizerem laurar esta madre ou outra qualquer pola hão em cima dos picadeiros a bocca e lombo, e cordea Ia hão pello meio depois de a terem cordeada lhe correrão sua linha pellos pontos do cordel, e irão correndo com a palha de cima pêra baixo dando lhe em cada braça seu ponto conforme estão na palha, e depois de chegados ao pelle darão dous dedos de resguardo do ponto pêra fora ou o que lhe parecer que he necessário por respeito de algum podre ou falha que depois o pao laurado pode ter pêra se poderem emcostar algúa das bandas tendo madeira pêra isso e alinhando pellos pontos da palha aprumarão d'hua banda, e da outra, e na outra uolta será laurada pello esquadro esta regra farão em todos os paos de mastos e vergas depois de a madre laurada tomarão húa braça pêra o redondo, e dali pêra baixo no comprimento repartirão quatro malhetes que são os vazios, e cinco cheos, e dando a cada hum destes vãos braça e meia pêra se fazer esta compartida que nãofiqueos dentes emcontrados huns dos outros medirão do emcontro do redondo cinco palmos da primeira face da banda, e na segunda face que responde com esta primeira terá hua braça, e dous palmos esforçados, e na terceira de cima hua braça, e na quarta que he a debaixo que responde com a de cima braça, e mea e hum palmo, e desta maneira estão os modelos trasados e compartidos. Terá o mastareo do traquete de comprido ou to braças, terá de groço no garlindeo palmo e meio de goa será repartido pello terço meterão nesta palha sete pontos repartidos na mea lua, outauarão em sete compaços botarão dous por banda fora, eficãotrês dentro. Terá a uerga do traquete de Cais e lais catorze braças, e de palha dous palmos repartido pello quarto demenuira do meio pêra o lais a metade da groçura, nesta palha porão em cada quarto que está marcado da ponta da palha pêra dentro sete pontos tirados na mea lua conforme esta nos modelos, outauarão pellos sete compaços como as outras feguras que atrazficãodeclaradas. A verga da gauea terá cinco braças de lais a lais, terá de groço hu palmo de goa será repartido pello modo das outras acima ditas, [fl. 8v] O goroupès terá dezaseis braças de comprido, terá a maior groçura do papa mosca pêra dentro da Nao, terá hua madre, e hua so mea por cima. A verga da seuadeira terá noue braças de comprido de lais a lais. O masto da mezena terá dez braças de comprido, e de groçura no tamborete terá dous palmos redondos esforçados será repartida pello terço outauado como as mais prantas. A verga da mezena terá de groço na ostagadura hum palmo de goa, e dous dedos repartirão a palha pello quarto que demenua a pena a metade da groçura da ostaga, terá de comprido dezaseis braças da ostaga, pêra a pena terá noue braças, e tantas porão repartidas na palha alinharão pello modo dos penões da verga grande outauarão pella mesma conta. 344 APÊNDICE A Regimento de quantas linhas são necessárias pêra hum pao pêra masto ou verga que se aja de fazer redondo. Primeiramente nas primeiras faces são necessárias seis linhas, e pêra outauar doze linhas em quatro quadros que vem a ser três linhas em cada quadra. E no 2o outauar leuarà vinte linhas que vem a ser três em cada oitauo, e duas em cada quadra. E no 3 o outauar, e darão corenta linhas que vem a ser três em cada oitauo que são outo outauos três linhas em cada hum, e nos outros oito duas linhas em cada hú vem a fazer corenta, he necessário pêra este pao ficar perfeito redondeza 66 linhas ao todo. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.l-8v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 61-77. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 23-34. DOCUMENTO A.9 Conta das medidas de húa nao da índia Terá hua nao para a carreira da índia de comprimento de quilha dezasete rumos e meyo ate dezoyto de esquadria, e hu rumo he hua pipa que terá noue palmos: A altura da Roda de proa cinquoenta palmos de goa medidos pella esquadria (o qual palmo de goa he hu palmo e hua polegada) e o lançamento de Roda de Proa trinta e sete palmos de goa. A altura do Codaste ate a almeida quarenta e cinquo palmos de goa medidos pella esquadria. Lançamento do Codaste quatorze palmos de goa, o delgado de popa medido pello codaste dezasete palmos e dezoyto com a altura da quilha. Terá o gio de largo trinta e noue palmos de goa ordem que terás nas armaduras das cauernas e altura para a popa e proa [fl. 10] Depois que poseres as onze cauernas e tiueres escoradas as armaduras do Codaste para baixo, e serão bem complidas logo sua taboa no chão ponteletar por seu apontalete na cauerna e dar se ão hús furos nos couados das cauernas em húa e outra nao para a emparar. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 345 Conta da cauerna mestra e largura delia as cubertas Terá a cauerna mestra de largo na primeira cuberta cincoenta palmos Leue na primeira cuberta cinquoenta e quatro palmos de goa Largura na terceira cuberta Leue na terceira medindo acima da cuberta três palmos cinquoenta e seis e meio mais no chão ao teor das formas aduirte que se não darão mais que cinquoenta e cinquo palmos porque depois sempre a madeira vai para dentro [fl. lOv] Conta que terás no latar da primeira Cuberta e medidas das escotilhas cordas pees de Carneiro Depois de aberta a mestra do masto lançarás o prumo pella banda dante auante e cahirá da primeira lata para a proa hú palmo, da qual lata abaxo virá a telha e terá a casa do masto cinquo palmos para auante dante da telha á face da escotilha a sete palmos, e desta escotilha á outra, dando hú vão que são sete palmos que não fallo senão no fixo, darás sete goas logo uão da escotilha para a popa, arco do masto hahi duas latas de fixo logo a casa das bombas que terá de uão três palmos de fixo a escotilha de re ha seis palmos e meio. Todas as bocas de escotilhas casas dobradas correm cordas dauante a ré assi para baixo como para cima que hahi de largo sete palmos e húa e outra de vão que cada largura de escotilha os pés de carneiro repartidos e suas bocas na boca das escotilhas e depois quan imos para a popa e proa as cordas da bomba se farão a prumo com a quaes que vão sobre os embaraçamentos das cauernas: postarão das escotilhas de popa as mais latas se porão de vão de húa a outra hu palmo e as cordas direitas debaixo com suas euiuas de ré e de longo delias da banda de fora à popa e á proa húa debaxo da carlinga [fl. 11] entre corda e corda húa peça busarda para fortificar o pé do masto para cima do palmejar. Conta como tirarás húa cauerna mestra Tirarás em papel ou no chão a esquadria com hú cordel e corta mão e será tão comprida quanto for a boca da nao ou a altura das cubertas que pedirás pella esquadra acima, e farás o meio delia que será o primeiro ponto que ficará na cauerna, e farás cinquo partes da largura húa delias que será a do canto, farás conforme a esta figura porque tocando a ella has de ir redondoando a forma do braço quanto saires no primeiro risco ponto da cauerna abaxo desquadria: tanto darás de pé ao garaminho porque ate os dous terços se ha dado rodar, e para saberes aonde demanda o couado, afasta te do ponto para fora quanto leuante hú palmo a braço ahi será o couado, e logo se os embaraçamentos assi de braços como cauernas e aposturas. Lembranças dos carneiros de curuas da primeira cuberta da ordem delias assi de reues como de conues [fl. 13]! Porás na primeira cuberta, quinz careiras de curuas do conués defronte do sisbordo duas nas bocas das escotilhas casas das bombas repartidas de modo que caibão pipas e aos 1 Dever-se-ia seguir o fl. 1 ] v, mas existem lapsos na numeração mais moderna do códice - a que seguimos -, e daí o salto verificado. 346 APÊNDICE A do conues defronte delias de cinquo a cinco altas como melhor saluarem a carlinga do traquete, e afastaras da Roda quatro palmos e será forte e se assentará de bordo a bordo com seus tamboretes e cunhas que fechem na entremicha da curua de roniua [?] e logo nas cordas hus paos como [?] pés de carneiro nas antremichas, as cordas, da borda afastaras duas goas e meia e logo pello quastodo e matiza Io tomado aquelle ponto e chegaras a corda ate a escotilha de proa dante e auante, e a de popa a de anotar e por as seis pés de carneiro defronte dos outros fechados e aduirte que has de por antre a coseira e dante e vante sua carreira de deagos de uantare com sua bucarda e escoas. Conta de como tirarás a roda de proa e de como a arredaras Feita a esquadria em papel ou no chão darás a altura da roda que ha de ter e porás hú ponto e logo seu lançamento em que porás outro ponto, e da altura tomaras o terço, e do terço porás na conta da esquadria e rodas de hú risco a outro acrecentarás mais ó terço do terço do terço e darás outro risco ao qual te encostaras lançando o rol que não poderá errar pois buscastes ponto e olha para [fl. 13v] para esta roda que está em sua conta para que conforme a ella possas tirar as outras. Conta que será no latar e mevreear [sic] da segunda cuberta que tem a dos agazaLhos e do assentar da estrinca fazer do sisbordo Sisbordo O sisbordo afastará da baliza de popa quatorze palmos e de largo terá sete e meio e de alto sete defronte do qual irão duas carreiras de curuas de proa a outra hahi de vão onze palmos a outra está no meio do pilar da estrinque, a outra está na casa das bombas, a outra na casa do mastro danta uante, e duas nas rocas das escotilhas que esta á proa antre estas escotilhas hahi duas carreiras e logo a outra com de vão oyto palmos desta á outra ha duas car, digo seis palmos e meio e desta a de proa ahi oyto palmos, aduirte que quando latares esta cuberta porás as latas das escotilhas a prumo com as debaxo se as do mastro cairão para re hú palmo redondo por amor do masto, e não farás escotilha a re, porque has de assentar a estrinca em mossa o eixo quatro dedos de cada banda da casa das bombas e linha que se lhe dá no meio da concha será oyto palmos e meio que de de húa concha a outra terá quatorze palmos e meio e de alto da cuberta ha oyto pella banda debaxo quatro palmos e meio o eixo desfroço dous palmos de de [sic] goa, a roda de dentro lhe darás noue palmos, tem as conchas três curuas cada [fl. 14] cada húa, a saber duas ao alto com as pernadas para baxo e as dante re, se os buracos para as bocas e a outra no meio da concha também ao altor. Conta de como tiraras o Rodaste [sic] de húa nao. ordem para o lançamento delle Para tirares o rodaste de húa nao e o lançamento delle farás a esquadria por ella acima, darás a altura do rodaste, e para lhe dares os lançamentos tomarás a terça parte, contando mesmo por palmos a quarta e o lançamento será entre o terço do quarto, porquanto a nao grande em seu seruiço e galião mais em nauios pequenos aduirte Será o terço daltura do codaste assi como tem de alto quarta e três palmos o codaste o quarto são dez palmos e dous terços pouco mais ou menos o terço são quatorze palmos em hú terço que vem a fazer ajuntando os dez e dous terços com quatorze e hú terço Os NAVIOS DO MAR OCEANO 347 vinte e cinquo palmos que se lhe dará a metade de antes mais meio palmo porque he mais fermoso a metade do que se achar que soma o terço e o quarto e digo que terá a nao toda a da jndia treze palmos de lançamento a popa [fl. 14v] Conta com o encuruar da terceira cuberta que he a dabita com asenta Ia ao cabrestante grande e agazalhados e assi curtias de reuez Midirás da bobeda para a proa ate dezoyto palmos que he a face dante a Ree da escada e ha de fazer para cuberta de baxo e no mesmo ponto dante a ree porás a carreira de curuas e dahi a outra deixarás de vão cinquo palmos e meio e dahi a outra seis palmos A maneira que farás para irem enchendo húa nao sobre as armaduras e adonde porás a cauerna mestra Postas onze cauernas com a mestra pregaras a armadura do couado para baxo quando leuanta logo hu palmo, darás demais quando medires a altura darmadura e antes que chegues a proa iras sobre as armaduras que iras leuantando pella roda acima ate a altura de sete palmos e de hu de altura da quilla que são oyto, e para e para [sic] a popa ir leuantando a ate onze goas antes do Codaste por que acharas leuantar, a armadura seis palmos, e assi irás para a popa como se mostra o debuxo, e pregarás a armadura a popa abaxo do pé manco dous palmos e antes que chegues três rumos para as outra abeiçar com o pee manco que venha morendo para a proa porque farás bella obra. Para por a Cauerna mestra [fl.15] Lembre te que para por a cauerna mestra na quilha e noua conta, tomaras o comprimento da quilha e farás três terços justos e deixaras dous a ré e hu auante e nelle pregaras a cauerna mestra. Como has de emprezar as cauernas Para empresar as cauernas farás tizouras com seu prumo e nos couados postos os pontos verás se diz o prumo no meio da quilha e mandarás erguer o vaibarocar [sic]. Conta com o latar da cuberta da penta com o encuruar de conuez, com o fazer do castello de proa e gurita ate o acabar Para latares a cuberta da penta, porás primeiro a dormente de popa até mesa não auante ou ate o pé do masto bem tochado a popa terás de alto noue palmos do pé do masto sete e a cortaras todas as posturas que sobejão, e para cima do dormente repartiras as latas de popa para a proa e deixarás o escutinhão do cabrestante. E logo á proa a corda para fazeres o castello que terá de comprido quarenta palmos e virás latando todas as latas na abita terá de alto noue palmos e para suas armaduras pellas pontas das latas, e logo suas cordas para baixo das latas escaruadas com as que vem do falcão e qua dentro terão sua tizoura. Se quando poseres as bandas [fl. 15v] viras deuirte que a serpe ella e lata auerá des palmos para fora da linha direita de modo que 348 APÊNDICE A terá vinte palmos e virás buscar o ponto de boca do castello que terá de linha direita para fora dezanoue palmos e assi com estes três pontos tozaras e logo tomaras a forma dos pees do castello que será vindo pello costado ate dentro da banda, e farás na garganta para embraçamento dos virotes Maneira de como assentaras as alturas da cinta a popa, da proa e a altura da cuberta para a fabricares Tomaras hú cordel a proa, e estende Io ás Pella quilha tanto quanto três rumos e sairás com a ponta delle conforme vem o alefris tanto quanto te pareça que fazes esquadria com hua regoa que porás ao alto, terá medidas de vinte e hu palmo e marcaras e dahi para cima irá a primeira do ponto para baxo, e no meio mediras sobre a carreira doze palmos e meio e porás ao liuel no cordel quatro uesares de pes demarcaras a altura e como estiuer ao leris pello Gio marca e dahi para baxo assenta primeira porque a de riba tome a cauilha do dormente e a popa de alto fazendo como a primeira junta três palmos que virá a cair na terceira porca da popa. A primeira cuberta terá no meio para o Gio quatorze palmos e de alto de sobre a cauerna e a proa três palmos a [fl. 16] abaxo da senta e a popa da terceira porca e murdiaras hu cordiamento bem dos lemba [?][...], e marcarás, e dahi para baxo ira a dormente e a altura delle será conforme a madeira que tiuer e de vão palmo e meio porás de ponto que der para baxo o contrado amente e pellas pontas desses colamentos as posturas porás hua carreira de drogas. Conta que se ha de fazer digo ter no fazer da Tolda como do mobruar do conués e reués ate se acabar Depois de teres latado o tromete e feitos seus dentes e as latas para fora e o castello latado e quizeres latar o conues farás seus quartéis com sua madre do dormente que pozeres será do pee do masto ao castello e a altura de sete palmos a buscar os noue a castello e e a farás hua garganta e dormente que poseres a proa aonde a madre fizer descanço jra duas latas finas juntas ate ellas, o castello se fará com escutilhão que caya sobre a abita defronte da porta do castello e porás o cabrestante do conues nos quartéis que vão pello escutilhão a ponta e depois das talhas a cuberta. Repartiras os embornais das amarras e logrio os outros e logo os curuos do conues e a primeira nas latas fixas assi atras [fl. 16v] que não facão nojo as pessas de artelharia, depois tozaras a tolda lomas [sic] ou darjorente [sic] como a debaxo atè o pee do masto digo ate o pé do escutilhão do cabrestante grande, e terá sua ampara e perparos para os xaretes como se dirá adiante. Maneira de como tirarás as firmas da posturagem redonda e pés de castello Partirás a firma redonda que he recolher da bita e escotilha de proa, darás no chão húa linha que será a terceira cuberta e logo do canto delia de alto outra linha que terá noue palmos e começaras delia para dentro oyto palmos o Rei do canto para dentro, digo da esquadria lhe chamamos aquelle ponto direito palmos que o ré, qando fores para repara Ia como quer que lança ate três palmos acima da terceira cuberta, aduirte que leuante a primeira para cima e será comprida pella ponta de cima e mais de três palmos, e porque como leuanta e lança fica quarta. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 349 Mas depois o pé do castello fastado e a razão por que lhe damos oyto palmos he porque terá de largo a nao nabita cinquoenta e seis palmos e ha mister de castello quarenta ficão dezaseis e vem a dar por banda oyto que he o que se ha de dar e logo para a proa cinquo casas iras pondo outra balisa que vá saindo [fl. 17] fora quatro dedos na ponta e as outras para Popa abrindo fazendo bom costado, e para a forma do pé de castello de pris de pesta a corda delle ou da a largura se toma melhor. Conta como tiraras a forma para a primeira aboboda que cae sobre o leme das cambotas da segunda abobada Para tirares a forma da primeira abobada tirarás no chão o condaste com o seu lançamento e de cuberta que abaxo do Gio, dez palmos, darás de alto noue palmos que he o que ha de ser de alto a alcaceva dos bombardeiros, e lançaras a rol do gio para fora a buscar o ponto que lançar que he de noue palmos assi como abaxo se mostra a figura Conta de quanto cairá o primeiro virote ao pé do masto O primeiro virote de castello de proa caixa para proa os palmos de alto cinquo, cinquo palmos he tanto a descubrir para dentro, quanto o que vai para a proa. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 9v-17. DOCUMENTO A. 10 Contas e medidas dua nao da índia. Terá húa Nao pêra a Carreira da índia de comprimento por quilha dezasete rumos e meo atèe dezouto d'esquadria a esquadria, e altura da roda de proa, e altura de corenta e cinco palmos de goa medidos polia esquadria, e o lançamento da roda de proa trinta e sete palmos de goa. E a altura do codaste atee a almeida corenta e cinco palmos de goa medidos pella esquadria e o lançamento do codaste catorze palmos de goa, e delgado de popa desasete palmos e dezouto com altura da quilha e. e terá o gio de largo vinte e noue palmos de goa. Conta que terás nas armadouras pêra a popa e proa. Depois que puzeres as onze Cauernas, e estiuerem escoradas porás as armadeiras e abaixo serão bem compridas, e logo sua taboa no chão pêra pontaletar, e por se ha o pontalete na Cauerna, e dar se hão huns furos nos couados das Cauernas nua e n'outra náo pêra a empezar da madeira, [fl. 22v] Conta da cauerna mestra, e da largura delia e de todas as cubertas. Terá a Cauerna mestra de largo na primeira cuberta cincoenta palmos de goa e terá na segunda cuberta cincoenta e quatro palmos de goa e terá na terceira medindo acima da 350 APÊNDICE A cuberta três palmos terá cincoenta e seis e meo de largo mas no chão ao tirar das formas, aduirto que senão dará mais que cincoenta e cinco palmos, porque depois sempre a madeira cae pêra fora. Conta que terás no latar da primeira cuberta e medidas das escotilhas e cordas e pès de Carneiro. Depois daberta a mecha do mastro lançara o prumo pella banda danta uante e cairá a primeira lata hum palmo pêra a popa da qual lata abaixo ira a telha e terá a Casa do mastro cinco palmos, e pêra auante da telha a face da escotilha terá sete palmos em que meterão nestes sete palmos seis latas duas dobradas, e duas singelas à hua dobrada na escotilha na entrada do mastro, e a outra na bocca da escotilha da banda dant re, e daly pêra auante medirão sete palmos e meo pêra a bocca da escotilha adonde meterão outra lata dobrada, e desta escotilha a de proa terá sete goas ate a face dant a re nas quaes sete goas meterão dez latas singellas, e duas dobradas nas bocas das escotilhas do mastro pêra a re medirão do mastro três palmos pêra a Casa das bombas, e daly pêra a rè medirão sete palmos que he a face da escotilha da banda danta uante. Em todas as boccas das escotilhas meterão latas dobradas, e correrão corda dauante re assy por baixo como por cima e [fl. 23] e terão de largo as coxias sete palmos e meo dua corda a outra que he a largura das escotilhas os pès de Carneiro repartidos com suas bonecas, nas bouças das escotilhas, e depois de rumo em rumo pêra proa e popa as cordas das bandas se porão a prumo com as escouas que vão sobre os emcolamentos das Cauernas, e não passarão da escotilha de popa e proa, as mais latas se porão de uão de húa a outra hum palmo de goa, e as cordas dereitas debaixo com suas curuas de reues de longo delias de banda de fora a proa e popa, e debaixo da carlinga de corda hua pica como bussarda. Pêra fortificar o pee do mastro por cima do palmejar. Conta pêra tirarem a Cauerna mestra. Tomarás em hum papel, ou no chão com a esquadria com hum cordel, e com cortamão, e será tam comprido quanto for a boca da Nao, e logo a altura das cubertas da Nao que mediras pella esquadria acima, e farás o meo delia, que será o primeiro ponto que te ficará na Cauerna e farás cinco partes de largura, e hua delias que será o do canto, farás conforme a esta figura porque tocando a ella hàs de ir rodando a forma do braço, e quanto saires no primeiro ponto da cauerna abaixo da esquadria tanto darás de pee a o graminho porque atee os dous terços se ha de rodar e pêra saberes aonde demanda o couado afasta te do ponto pêra fora tanto quanto leuante hú palmo o braço, e ahy será o couado, e logo seus embaraçamentos assy de braço e cauerna como da postura, [fl. 23v] Lembrança das Cauernas digo de Curuas da primeira cuberta, e da ordem delias assy de reues como de conues. Porás na primeira cuberta quinze carreiras de Curuas defronte do seisbordo duas na boca das escotilhas cazas das bombas repartindo de modo que caibão as pipas, e as de reues defronte delias de cinco a cinco latas como melhor sairem, a Carlinga do traquete afastara da roda quatro palmos de goa, e será forte, e se assentará de bordo a bordo com seus tamboretes que feche na antremicha, Na curua do conues, e logo na corda seus pès 351 Os NAVIOS DO MAR OCEANO de Carneiro defronte huns dos outros nas antremichas, as cordas afastarão no meo duas goas e mea, e logo pello costado darão no tozamento a corda atè a escotilha de proa a dauante e a popa aduirta te que meterás duas dragas antre a cosseira, e o dromente. [fl. 24] Nauios Quilhas Esloria 1200 1100 1000 0900 0800 0700 0600 0500 0400 0300 0200 0100 43-0 42 '/> 41 - 61 22- 14- 60 21- 13V2 59 20- 13 40- 58 19- 12 Vi 3 9 »/2 57 18 Vi 1 1 '/> 38- 56 17- 11 37- 55 16 Vi IOV2 Manga Pontal 36- 54 16- 10 35- 53 15 >/2 09'/2 34- 52 14- 09- 33- 51 13- 07- 32- 50 12- FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fls. 22-23v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 109-111. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 55-57. DOCUMENTOA.il Medidas pêra fazer húa Nao de Seiscentas Tonelladas, e os paos que hà de leuar de Souoro e Pinho. # Primeiramente à Quilha terá de comprido de esquadria a Esquadria, dezasete Rumos, e terá esta Quilha de grossura hu palmo de Goa, e de altura, terá mais dous dedos; Leuara esta Quilha com os couces sete paos bij. peças # A Roda que he a segunda cousa que se arma, terá de Altura çincoenta palmos de Goa, e terá de lançamento, trinta e cinco palmos, por esta conta: de cada dez palmos, que esta Roda tiuer d'altura lhe tirarão três, e os que fiquarem he o lançamento: será mais alta na madeira que a Quilha dous dedos: leuarà esta Roda três paos, e por dentro quatro coraes, que he contra Roda, e são sete paos bij peças # O Codaste, que he o terceiro que se arma sobre o couce e popa, terá de grossura palmo, e meo em quadrado, e terá 352 APÊNDICE A d'altura corenta, e dous palmos de Goa scilicet dezasete palmos que leua esta nao de Ragel, que pêra boa conta dezasete Rumos de Quilha dezasete palmos de Ragel: deste Ragel paraçima [fl. 5v] hà uinte cinco palmos, em que hão de caber três Cubertas, desta maneira: a primeira cuberta leuanta do Ragel seis palmos, e a segunda faz de uão oito palmos, e a terceira faz de uão sete palmos, e mais três palmos que a madeira leuanta fazem os uinte cinco; o Lançamento deste Codaste será desta maneira: de cada quatro palmos que tiuer d'altura lançará hu; leua este Codaste dous paos # O Gio, que he o que atrauesa sobre este Codaste hà de ter uinte cinco palmos de Goa de largura, que he a metade da largura, que a Nao hà de ter, e terá de grossura no meo palmo Pinho ij. peças e meo, e na ponta hu palmo, leua três paos de Souoro, e dous de Pinho m a n s o na grade que faz # Esta nao pêra boa conta terá tantos pares, como tem de Rumos na Quilha, de m o d o que dezasete Rumos, dezasete pares, e a Cauerna mestra se hà de assentar três Rumos auante do meo da Quilha, porque o meo da Quilha he o lugar onde assenta o pe do masto grande; irà esta Cauerna três Rumos pêra proa, e daqui a Esquadria ficão cinco Rumos, e meo, nos quais hão de caber os dezasete pares, que esta nao hà de ter scilicet dezasete Cauernas, e [fl. 6] dezasete braços, que tanto de uão, como de cheo fazem os trinta e quatro palmos; e quando a madeira ajunta fiqua a Almogama, que he a derradeira cauerna hu Rumo a trás da Esquadria, e outro tanto, que occupa a madeira, da mestra para a Popa ficão de Quilha uazia, seis Rumos, da Almogama a Esquadria de Popa, e daqui começa a fazer o Ragel, que c h a m ã o delgado: Esta Almogama de Popa, terá de garaminho três palmos de goa, porque três uezes seis são dezoito palmos que hà de ter o Ragel. # Leua esta nao dezasete pares que são trinta e quatro cauernas # Leua nestas cauernas sessenta, e oito braços # Leua dalmogama para proa treze enchimentos # Leua nestes enchimentos uinte seis Astes # Leua a Popa uinte hu enchimentos, e piquas # Leua corenta, e dous areuessados # Leua por dentro hua Carlinga para o masto, e dous trinquanis das bandas para fazer forte # Leua dous Coraes de Popa # Leua dez Palmejares que são sobrequilhas # Leua na primeira aposturagem cento, e corenta paos [fl. 6v] # Leua nos dromentes, e contradromentes da primeira cuberta corenta e quatro paos Pinho Lxx. peças # Leua settenta paos de cintas de Pinho m a n s o nas Escoras ij. peças iij. peças xxxiiij peças Lxbiij. peças xiij. peças xxbj. peças xxj. peças Rij. peças iij. peças ij. peças x. peças cento R.peças Riiij. peças 353 Os NAVIOS DO MAR OCEANO # A primeira cuberta, se assenta nesta m a n e i r a atreuesarao h ú Cordel a P r u m o do m e o da mestra em altura de quatorze palmos que hà de ter de pontal, que he porão, e daqui p a r a baixo uai o dromente, e A p r u m o da Carlinga, porão h ú ponto, e dahi para a Popa farão h ú uão de três palmos, e pêra proa de dous palmos, que são cinco que o u ã o onde uay o Masto, e logo meterão duas latas Juntas, e farão outro u ã o de dous palmos, e m e o pêra as Bombas, e daqui a escotilha de Popa hauerà sete palmos moçiço, e a Escotilha terá outros sete palmos e m q u a d r a d o porque caiba pipa; E do masto pêra Proa farão outros sete palmos de moçiço, e logo a Escotilha do meo que terá outros sete palmos, e desta Escotilha aa de proa h a u e r à uinte e h ú palmos de moçiço, e a escotilha terá outros sete palmos Pinho Lxxx. peças # Leua nesta primeira cuberta oitenta latas antre grandes, e pequenas Pinho xiiij. peças # Leua quatorze cordas que são as latas que lião as outras de longo # Leua dezaseis Bonequas que são oito paos # Leua trinta e dous peis de carneiro n o porão [fl. 7] # Leua quatro paixões no lugar do masto que são paos aonde fechão os tamboretes # Leua uinte e h u trincanis nesta primeira cuberta # Leua n a Popa quatro areuessados # Leua noue porquas nesta Popa Pinho xij. dúzias # Leua doze dúzias de taboado de pinho brauo nos soalhados desta cuberta com as escotilhas # Leua no porão h ú a Buçarda Pinho x. peças # Leua dez Dragas de pinho m a n s o # Leua esta primeira cuberta quatorze carreiras de curuas que são uinte oito curuas de conues # Leua uinte antremichas porque as do meo não chegão # Leua duas curuas a popa que lião pellas cordas, e pellas porquas # Leua h u a Bucarda nas dragas Pinho xij. peças # Leua h u a dúzia de tauoado de pinho m a n s o nas dragas Pinho x. peças # Leua dez taboas de pinho m a n s o nas coceiras Pinho ij. peças # Leua dous paos de pinho manso nas madres das Escotilhas # Q u a n d o se cordea esta primeira cuberta, se cordea t a m b é m a primeira cinta que a proa n a Roda uay em altura de uinte h ú palmos de goa a Esquadria, e no m e o da Nao uay por [fl. 7v] onde uay o d r o m e n t e da cuberta, e a Popa de todo leuanta h ú palmo da cuberta, que he boa conta pêra a terceira cinta ficar sãa aos seis bordo. # Acabada de soalhar a primeira cuberta, balisarão a segunda Aposturagem, a qual feita, porão a apostura de Popa do seis bordo dous R u m o s auante da Porqua de Popa, e desta apostura a outra d auante hauerà sete palmos, que tantos h à biij. peças xxxij. peças iiij. peças xxj. peças iiij. peças ix. peças j. peça xxbiij. peças xx. peças ij. peças j. peça 354 Pinho Lxxxiij. peças Pinho xbj. peças APÊNDICE A de ter o seis bordo em quadrado, pêra que caiba Pipa por elle: este seis bordo fiqua direito da Esquadria do coce que tanto lança o Codaste. # A aposturada esta segunda aposturagem assentarão o dromente da segunda cuberta que irà em altura de oito palmos, e latarão logo desta maneira, atrauessarão hua lata hú palmo para a Popa da que uai embaixo, que tanto ha de encostar o masto a Re, e isto farão em todas as cubertas, e logo farão o lugar das bombas como na outra cuberta, e dahi para a Popa será tudo latado tanto de uão como de cheo: a Escotilha do meo, e a de Proa serão a p r u m o das de baixo, e para a Proa será latado da m e s m a maneira que a Popa # Leuarà nesta segunda Aposturagem cento, e corenta apôs- cento R. peças turas [fl.9] # Leua nesta segunda cuberta dezanoue dormentes xix. peças # Leua oitenta e três latas # Leua dezaseis cordas que são as que uão de longo # Leua uinte oito curuas de Reues # Leua hua mesa do seis bordo # Leua quatro paixões # Leua dezoito trinquanis # Leua duas curuas nas cordas que lião a Popa Pinho xbj. dúzias # Leua dezaseis dúzias de taboado de Pinho brauo no soalhado Pinho Rij. peças # Leua corenta e dous peis de carneiro por baixo # Leua quinze carreiras de curuas de conues que são trinta curuas # Leua uinte cinco antremichas # Leua hua Carlinga pêra o masto do traquete com seus cunhos, e são quatro paos # Leua hua agucarda das Dragas Pinho xij. peças # Leua hua dúzia de taboado de Pinho manso nas Dragas Pinho xbj peças # Leua dezaseis coceiras Pinho iij. peças # Leua três paos de pinho nas madres das Escotilhas # Leua duas conchas de strinqua com seis curuas scilicet quatro das bandas, e duas de bordo [fl. 8v] # Esta Estrinqua se assentará nesta maneira, da lata em que emcostão as Bombas ate o meo da concha hauerà oito palmos, porque a Roda da Estrinqua tem noue palmos e a metade, são quatro palmos, e meo, e três e meo que ficão pêra o escotilhão das bombas, fazem os noue # Leua esta estrinqua hu eixo # Leua a Roda com a cruzetta noue paos # Feita a segunda cuberta, farão a terceira aposturagem, que do andar da Portinhola pêra cima, começará a cubrir, cinco xxbiij. peças j. peça iiij. peças xbiij. peças ij. peças xxx. peças xxb. peças iiij. peças j. peça biij. peças j. peça jx. peças 355 Os NAVIOS DO MAR OCEANO de cada banda, e aposturado, se assentara o dromente da terceira cuberta, que he a ponte, em altura de sete palmos e meo. esta cuberta ponte latarà desta maneira: a lata em que hà d emcostar o masto, ira para popa hú palmo da debaixo, e logo farão o lugar das bombas, e para poppa três palmos farão h u uão para a chamineada estrinqua que terá de comprido dez palmos, e do meo deste uão para popa, se assentarão as conchas do Cabestrante porque a barra delle hà de ter uinte quatro palmos de comprido, e auante do masto, irà a tilha a p r u m o da Escotilha do meo, e daqui para a proa farão suas cuxias [fl. 9] que cheguem ao Castello, e no uão destas cuxias, yrão os quartéis do Batel que terão de comprido doze goas que são trinta e seis palmos, e terão de largo, junto da tilha quatorze palmos, porque desta largura há de ser o Batel, e a proa, terão de largo doze palmos, e daqui ate a Roda será tudo latado, e no meo h a u e r à h u Escotilhão que tenha quatro palmos em quadrado para caber h ú quarto. # A Bita que uay nesta cuberta se assentara a p r u m o da lata do Castello, irà três palmos alta da cuberta para por baixo caber pipa. No meo dos quartéis farão h u escutilhão de três palmos pêra seruintia do Batel. # Leua a terceira aposturagem cento, e corenta e cinco aposturas # Leua mais uinte e hu dromentes Pinho Lij. peças # Leua cincoenta e duas latas inteiras Pinho Lij. peças # Leua cincoenta e duas meas latas Pinho xbj. peças # Leua dezaseis cordas # Leua uinte e quatro curuas de reues Pinho xx. dúzias # Leua uinte dúzia de taboado de pinho brauo no soalhado # Leua uinte trinquanis # Leua quatro paixões [fl. 9v] # Leua doze carreiras de Curuas de Conues que são uinte quatro paos # Leua uinte entremichas # Leua duas Conchas do Cabestrante # Leua duas Abitas a popa que são três paos # Leua h u a buçarda das Dragas Pinho xij. peças # Leua doze dragas de pinho manso Pinho xij. peças # Leua doze coceiras de pinho manso Pinho xxbj. peças # Leua por baixo uinte seis peis de Carneiro Pinho xb. peças # Leua nos quartéis, seis madres, e uinte e hu Barrotes que são quinze paos de pinho m a n s o # Leua dous paos de pinho manso nas barçolas das escotilhas Pinho ij. peças # Feita esta ponte, farão de frente da escotilha do meo duas portinholas, h u a de h u a banda, e outra da outra, e dous Rumos auante destas farão outras duas que fiquem a Re da amura cento Rb. peças xxj. peças xxiiij. peças xx. peças iiij. peças xxiiij. peças xx. peças ij peças iij peças j. peça 356 Pinho xxx. peças Pinho Lxx. peças Pinho R peças Pinho biij. peças Pinho Liiij. peças Pinho xiiij. peças Pinho R peças Pinho xx. peças Pinho xxx. peças Pinho j. peça Pinho xx. peças APÊNDICE A # A tolda yra do lugar do masto para Popa, e da lata em que emcosta o masto para a proa hauerà dez palmos de uão que fazem uinte palmos p o r a m o r dos gingamochos da bomba, e pêra a Popa será tudo latado, e sobre o Cabestrante farão hú escotilhão pêra dar uista, e a tilha d auante [sic] o masto será a p r u m o da [fl. 10] de baixo, e daqui para proa suas cuxias a p r u m o das de baixo, e no meo seus quartéis com sua madre pello meo, e no Conues leuarà trinta aposturas, quinze por banda; e do masto para a Re leuarà trinta e cinco uirotes por cada b a n d a que se metem depois de latada a tolda, e uirotada, assentarão o chapiteo que terá d altura sete palmos, e meo, e não será mais comprido que do Escotilhão do Cabestrante pêra a Popa, e de mareagem 7 palmos: # Leua esta tolda corenta latas enteiras # Leua no Conues oito dromentes # Leua nas cuxias, e nos lugares dos gingamochos cincoenta e quatro meas Latas # Leua no Conues quatorze cordas # Leua do Castelo ate a Serpe corenta latas # Leua na tolda e castello, e conues onze carreiras de curuas que são vinte dous paos # Leua quinze antre michas # Leua doze curuas de Reues na tolda # Leua no Chapiteo dez curuas de Reues # Leua a Abita quatro curuas # Dous paos para esta Abita # Leua húa Papoya # Leua húa curua do falcão # Leua no chapiteo uinte latas [fl. lOv] # O Castello se assenta no andar do Conues, e terá de comprimento cincoenta palmos que he tanto como a nao tem de largura e da Roda para fora, terá dezaseis palmos, e para dentro, terá trinta e quatro que são cincoenta, e terá de largura este Castello na primeira lata da Arpa, corenta palmos, e a gurita se assentará em altura de sete palmos, e terá de largo na primeira lata trinta palmos, e sobre a Roda terá esta gurita de largo, dezaseis palmos, # Leua este Castello quinze uirotes per b a n d a que são trinta paos e a mareagem terá 7 palmos: # Leua hú falcão # Leua cinco paos na m ã o e papa mosqua e contra falcão, e guçarda # Leua na gurita uinte latas # Leua quatro curuas de Reues # Leua dous Escouems, e dous contraescouens # Leua húa curua do Beque # Leua duas curuas pellas cordas xxij. peças xb. peças xij. peças x. peças iiij. peças ij. peças j. peça j. peça b. peças iiij. peças iiij. peças j. peça ij. peças 357 Os NAVIOS DO M A R OCEANO Pinho ij. peças Pinho ij, peças Pinho cento Rb. peças Pinho xb. peças Pinho xb. peças Pinho xiiij. peças Pinho xiiij. peças Pinho iiij. peças Pinho biij. peças Pinho iiij. peças Pinho iiij. paos Pinho iiij. paos # Leua duas curuas pellas bandas # Leua quatro curuas na Arpa # Leua duas curuas na Alcaçeua que seruem de peis de Carneiro # Leua húa Carlinga da mezena com duas curuas # Leua duas curuas na Dala [fl. 11] # Leua duas curuas no Perpao # Leua dous gingamochos da bomba # Leua dous paos nos trilhões # Leua húa carregadeira # Leua dezoito cambotas nas abobadas # Leua quatro cambotas no chapiteo, do castello # Leua dous mulinetes # Leua hú mulinete no Castello # Leua hú Perpao no chapiteo com sua grade que são cinco paos de pinho manso # Leua dous perpaos no Castello # Leua duas çerauiolas # Leua esta n a o no costado cinco carreiras de cintas dobradas, nas quais entrão cento corenta e cinco paos de pinho manso scilicet # Na primeira carreira uinte noue paos. # Na segunda carreira uinte noue paos. # Na terceira outros uinte noue paos. # Na quarta outros uinte noue paos. # Na quinta outros uinte noue paos. # Leua mais quatro carreiras de cintas singellas scilicet h ú a que u e m da b a n d a de baixo dos Escouens, pella qual se assenta [fl. 1 lv] a mesa de popa, e na dita cinta entrão quinze paos de pinho manso # a outra carreira uai p o r cima dos escouens e uai ate a popa, e per esta se assenta a mesa de Proa, leua quinze paos de Pinho manso # A outra uai das tabiquas do Castello ate popa pêra fazer forte a madeira leua quatorze paos # A outra he a cinta da mareagem que uai do alquatrate do Castello ate popa leua quatorze paos # Leua outra cinta que serue de dromente do chapiteo, que uem ate o pousa uerga, leua quatro paos # Leua na mareagem do chapiteo quatro cintas de cada banda, que são oito paos # Leua no Castello h ú a carreira de cintas por cada banda, que u e m polias latas em que entrão quatro paos # Leua outra carreira que uai pellas Jeneladas, e u e m da m ã o ate Arpa leua quatro paos # Leua outra cinta que u e m do cote do papa mosqua, que serue do drumente da gurita. Leua quatro paos IJ. peças iiij. peças ij. peças iij. peças ij. peças ij. peças ij. peças ij. peças j. peça xbiij. peças iiij. peças ij. peças j. peça i], peças 358 APÊNDICE A # Leua outra cinta, que uem da ponta do papa mosqua ate Arpa que leuanta três palmos da gurita e esta se chama da Pinho iiij. paos mareagem, em que entrão quatro paos [fl. 12] Pinho biiij paos # Leua este Castello quatro cintas de cada banda na mareagem, que são oito paos, Pinho b. dúzias # Leua no chapiteo cinco dúzias de taboado no soalhado Pinho iij. dúzias # Leua na gurita três dúzias de taboado no soalhado # A Varanda se assentará no andar da tolda e lançará fora da Popa doze palmos, e será da largura da abobada # Leua esta uaranda noue uirotes de pinho manso Pinho ix. peças Pinho xij. taboas # Leua seis peitoris, e dous peis de carneiro, e três mesas do telhado, e trinta barrotes Pinho bj. taboas # Leua no soalhado seis taboas # Leua esta nao da primeira cinta ate a quilha cincoenta dúzias de taboado de pinho manso de costado de meo palmo Pinho L. dúzias de goa de grossura # Leua da primeira cinta ate o Portalò em todas as alcaixas outras cincoenta dúzias do dito taboado mais delgado meo Pinho L. dúzias dedo que o do fundo Pinho Lx. peças # Leua na popa sessenta calimes Pinho xxb. taboas # Leua nas emendas do [sic] ditos calimes uinte cinco Taboas Pinho iiij. peças # Leua quatro cintas nesta popa [fl. 12v] # Leua esta nao has mesas grandes que uão do pousauerga ate a face de Re doseis bordo, e leuão uinte Apostareos # Leuão nas castanhas, e cunhos dezoito paos Pinho ij. peças # Leuão duas taboas de largura de três palmos, e de grossura de meo palmo de goa # As mesas de proa yrão do direito d' Arpa ate o Escouem, e leuarà cada húa sete apostareos que são quatorze paos # Leuão dez paos nas castanhas, e cunhos Pinho ij. peças # Leuão duas taboas como as de popa # Leua esta nao duas Amuras e cada húa leua três Apostareos que são seis paos Pinho ij. peças # Leua duas chumaceiras de uinte e hú palmos de goa de comprido # Leua seis paos nas castanhas Pinho bj. peças # Leua antre estas Amuras, e as mesas de Popa três pássaros que são seis paos Pinho ij. peças # Leua duas bombas de, 45, palmos d alto com sua dalla # Leua esta nao dous cabrestantes scilicet hú grande, e outro pequeno do Conues # O grande leua quatro paos nos cunhos # O pequeno leua três paos nos cunhos Pinho bj. peças # Leuão seis barras estes dous cabestrantes [foi. 13] xx. peças xbiij. peças xinj. peças x. peças bj. peças bj. peças b. peças iiij. peças Os NAVIOS DO MAR OCEANO 359 Escoteiras que leua esta nao Pinho ij. peças Pinho bj. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho iiij. peças Pinho ij. peças Pinho iiij. peças Pinho j. peça Pinho j. peça Pinho ij. peças # Leua duas escoteiras das escotas grandes # Leua duas dos Amantilhos grandes # Leua seis escoteiras das troças grandes # Leua duas dos braços da uerga grande # Leua duas das escotas da gauea grande # Leua duas dos ostingues # Leua duas das escotas do traquete # Leua duas dos Amantilhos do traquete # Leua quatro das troças do traquete # Leua duas das escotas da çeuadeira # Leua quatro das bulinas # Leua hua da driça da gauea grande # Leua hua da driça da gauea de proa # Leua duas das escotas da gauea de proa Mastos desta nao # Leua de masto grande dezoito braças de comprido a fora o calces, e terá este masto de grossura no tamborete quatro palmos e meo redondos esforçados, e na garganta terá a metade, e mais dous dedos # Leua de masto de traquete quinze braças de comprido sem calces, e de grossura [fl. 13v] quatro palmos, e a metade na garganta # Leua de goroupez quinze braças # Leua de Verga grande dezasete braças, e de grossura dous palmos de goa cada hu penão # Leua de uerga do traquete treze braças e de grossura dous palmos de goa # Leua de mastareo grande sete braças e mea, e de grossura palmo e meo de goa # Leua de mastareo de proa seis braças, e mea, e de grossura palmo, e meo redondo # Leua de uerga da gauea grande seis braças de comprido, e de grossura hu palmo de goa # Leua de uerga da gauea de proa cinco braças, e de grossura hú palmo pequeno # Leua de uerga da çeuadeira noue braças e de grossura palmo e meo redondo # Leua de masto da mezena dez braças e de grossura dous palmos de goa # Leua de uerga da mezena treze braças e de grossura hu palmo na ostaguadora [fl. 14] ij. peças 360 APÊNDICE A Conta dos mastos da nao a trás de seiscentos Toneis: # O masto grande será tam comprido como a Quilha da nao, e porque esta conta seruia antes das nãos terem ponte, lhe dão mais húa braça, de modo, que dezesete Rumos dezoito braças de masto, e terá de grossura a decima parte do que esta nao tem de largura. # O masto do traquete, terá quinze braças, que descontadas duas, que o porão desta nao leuanta, e húa que hà de ficar mais baixa por cima, que são três fiqua nas quinze, porque o pee uay sobre a cuberta. # O Goroupez será tam comprido como o traquete. # O Mastareo grande, terá hú terço de comprido, do que tem o masto grande; e porque se fazem de quachola e barra, lhe dão mais hua braça pêra poder amainar, e terá do grosso hu quarto. # O Mastareo da proa terá a mesma conta que o grande pello traquete, e de grossura terá o quarto [fl. 14v] # A Verga grande terá o comprimento de três partes do conues da nao, e terá de grossura a metade da do masto, cada penão. # A Verga do traquete terá menos hú quarto que a grande, e será tam grossa como hú penão. # A Verga da gauea grande, terá hu terço da uerga grande, e terá de grossura a metade de hú penão: # A Verga da gauea de proa, terá menos húa braça que a grande, e de grossura menos dous dedos. # O Masto da mezena, terá dez braças, porque o masto grande, leuanta da cuberta ponte treze braças, e duas que a mezena fiqua mais baixo, e húa que leuanta da cuberta que são três, e fiqua nas dez, e terá de grossura a metade da do traquete. # A Verga da mezena, terá de comprido treze braças scilicet seis que o masto leuanta do chapiteo, e seis para uirar são doze fiqua húa pêra o pano do carro, e será tão grossa como a uerga da gauea. # A gauea grande, terá hú terço do conues da Nao, e pello fundo terá menos hú terço de largura. [fl. 15] # A gauea de Proa, terá menos hú quarto que a grande, e no fundo menos três palmos que he o quarto. # Os uaos serão tam compridos como a largura das gaueas. # O leme desta nao terá de comprimento quarenta e seis palmos de goa, e terá no pee de largura sete palmos, e na cabeça terá cinco, leuara noue fêmeas no codaste, e noue machos no leme, que afastara hú do outro quatro palmos, e o mesmo terão as fêmeas. Os NAVIOS DO MAR OCEANO # Leuão estes mastos seis uigas de carualho nos porquetes # Leua doze tamburetes no masto grande, e no traquete # Leua oito paos nos chapuzes FONTE: 361 bj. peças xij. peças biij. peças Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257,fls.5-15. PUBLICAÇÃO 1892 - MENDONÇA, Henrique Lopes de, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XVe XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1971, pp. 83-95. DOCUMENTO A. 12 Conta e medida pêra hum naouio [sic] de guerra. Terá desasete rumos de couse a couce, a roda de proa terá dalto medido polia esquadria trinta palmos, terá de lançamento vinte e seis palmos, o rol por onde se ha de rodar esta roda será com trinta e outro (sic) palmos, terá de codaste vinte e quatro palmos de lançamento seis e meo que he antre o terço e o quarto quando tirarem as formas no chão em altura de vinte e cinco palmos largura em dereito da cuberta, terá trinta palmos, e de pontal quinze com a groçura da Cauerna que tem de groço hum palmo de vara menos húa polegada, quando quizerem rodar o braço, e a Cauerna na altura e largura como atraz tenho dito, terás hum ponto no couado que será a altura da madeira [fl. 17] botando da esquadria pêra dentro, e isto secha arepiamento pêra saberes aonde hàs de fazer o couado tomarão a metade da bocca que he quinze palmos de couado a couado, dar lhe hão de pee a groçura da Cauerna, e o rol por onde se ha de rodar, será o ponto que esta posto na altura que he na largura de cuberta, e o arepiamento que esta no couado, e o ponto que esta no meo da Cauerna que ha de ficar de pee a Cauerna mestra, e virá o rol tomando estes três pontos compassando ariba da cuberta três pontos digo palmos pêra fazerem apostura recolhereis hum palmo e meo por banda, e fareis de modo o comprimento da apostura que fique no meo do porão que fique embaraçando bem, terá sete palmos de mareajem por respeito da artelharia que ha de jugar nesta cuberta, quando quizeres repartir a forma, e pêra por a madeira da conta repartirão em cinco partes nas duas porão a madeira que serão dezaseis pares galiuarão três num ponto quando assentares a Cauerna mestra repartirão a quilha em cinco partes duas auante, e três a ree, adonde estiuer o ponto das duas partes ahy assentarão a Cauerna mestra porão húa dum ponto a rè, e outra auante darão de uão de húa cauerna a outra hum palmo de goa, e a Cauerna terá de groço hum palmo de uara menos húa polegada ficara a almogama de proa dous rumos escaços do cosse de proa, e cinco rumos e meo a de popa, estes cinco rumos se entende do cosse de popa atee a almogama, quando quizerem embaraçar a madeira de conto no chão que hande ser trinta e três Cauernas dareis despalhamento pêra proa dous palmos por banda, e isto se entende na almogama de proa vir multiplicando da cauerna mestra atee a almogama de modo que ficara a almogama de trinta e dous palmos de largo, este espalhamento se ha de dar em dereita da cuberta na ponta da Cauerna darão hum palmo de madeira, e na ponta do braço outro palmo, repartindo e 362 APÊNDICE A em partes que são quinze pontos tirados na mea lua ao modo de palha demenuindo das duas pêra auante atee chegar a dita almogama este palmo que darão na ponta da Cauerna, e braço se chama canchomo por respeito do muito espalhamento que tem pêra ficar o braço com auerna, terá o braço d'emcolamento polia Cauerna três palmos, e a Cauerna pollo braço os mesmos três palmos, e malhetarão a Cauerna no braço hum dedo os graminhos terão dous palmos dalto num delles compartirão a madeira da conta que han de ser dezaseis pares, e outro palmo que fica sem conta he o que se ha de dar a Cauerna mestra de pee tam alto, será o graminho de proa como o da popa, ficara a almogama de popa em dereito da cuberta vinte e noue [fl. 17v] palmos de largo, e dareis d'espalhamento hum palmo e meo, repartindo pollo modo de húa palha tirado na mea lúa [sic] em baxo na ponta do braço e Cauerna deixarão o pee conforme a forma do braço pedir pêra poder dar o abatimento a madeira tomarão hum escantilhão no graminho repartindo dum ponto a outro feito em três partes, as duas delias tomarão no escantilhão, e abaterão por elles, porque assy como o graminho vay multiplicando nos pontos, assy vay o escantilhão serrando, terá dez palmos de delgado, terá de gio quinze palmos pêra fazerem o pee manco fa Io hão pella forma do braço virando o Couado pêra riba quando puzerem a valiza que vay assentada sobre o gio em altura de sete palmos cairá pêra dentro palmo e meo por cada banda de modo que ficara o primeiro cordão de largo doze palmos em altura de sete palmos e meo que he altura da abobada, e terá de lançamento seis palmos a tolda medirão dalmeida pêra dentro polia cuberta trinta e outo palmos, e atè aly chegará a tolda correrão o dromente em altura de sete palmos e meo, o chapiteo terá de riba da tolda doze palmos com a mareajem, e Camarotes a mezena será assentada quinze palmos afastados dalmeida pêra dentro, quando quizerem assentar o falcão terá da roda pêra fora dezasete palmos, arufarà sete palmos o morro terá dalto seis palmos com a altura do falcão, o castello da roda pêra dentro terá de comprimento uinte e seis palmos, meterão três pessas de sintas duas que preguem na roda, e húa no morro estas correrão da uante a rè, a primeira sinta será assentada na roda em altura de vinte e quatro palmos medidos polia esquadria, e no meo em altura de Catorze palmos, e a popa pello gio desta primeira sinta, terá a outra segunda sinta três palmos de largo pêra poder jugar a artelharia desta segunda sinta, a terceira terá de largo dous palmos e meo estas três sintas as duas pregarão na roda, e a húa pregará no morro, as obras de popa meterão quatro peças duas na tolda, e duas no chapiteo, o leme terá de largo em baxo seis palmos, em cima três palmos altura de roda e a quilha terá palmo e meo as sintas terão de largo hum palmo de uara menos húa polegada, de groço terá meo palmo, o mastro grande será assentado no meo da quilha, a casa do mastro terá de largo dous palmos e meo, quando quizeres fazer a escotilha do pee do mastro pêra auante doze palmos, e dali pêra proa ficará, a escotilha terá outo palmos [fl. 18] e de largo sete, e lembro que quando fizerem a entrada da escotilha, e mastro porão quatro latas dobradas, a gauea grande terá dez palmos, pello aro de cima, e o fundo terá outo palmos a gauea de proa terá pello aro de sima o que a grande tem pello aro de baixo, e o fundo de baixo terá de largo dar lhe ão menos dous palmos do que tem por cima, as medidas deste pataxo se entende por palmos de goa assy alturas de rodas comprimento de quilha, lançamentos larguras das cubertas. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 16v-18. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 47-49. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 363 DOCUMENTO A. 13 Nauio de 500 tonelladas. Terá de comprido quinze rumos pêra mercador que pêra El Rey, terá dezaseis de lançamento pella ordem atraz daltura da primeira cuberta catorze palmos, a outra cuberta a sete palmos seu chapiteo tanto avante como cabrestante, seu castello serrado com sua gorita, e a roda de proa trinta e três palmos dalto, e o codaste de popa vinte e noue palmos, e se for nao pêra a índia terá a roda de proa corenta e cinco palmos, e a popa trinta e cinco, e a primeira cuberta catorze palmos, e as outras duas a outo palmos, e a tolda atee o pee do mastro, e a mareagem [fl. 22] sete palmos e meo no conues, e o seu castello serrado, e do castello pêra dentro o seu albassus que não chegue a cuberta que uem correndo do conues atee a ponta do Castello será o Castello mais alto húa goa que o conues pêra que as amarras possão laborar pêra irem ao cabrestante do conues e terá seus pees de Castello pregados nas bandas, e na popa na Camará do mestre irão as suas madres pêra correrem a Xareta. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.21v-22. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 107. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 54-55. DOCUMENTO A. 14 Regimento do galião de quinhentas toneladas Terá de comprimento d'esquadria a esquadria dezaseis rumos que são seis palmos de goa cada rumo [f. 9v] e são sete de vara em cada rumo. De pontal tem catorze palmos e meo de goa a esquadria dalto, a 2a cuberta que he onde ha de jugar a artelharia ficara em outo palmos de goa. De bocca adonde joga a artelharia que he a mor bocca, na 2a cuberta tem corenta e seis palmos de goa antes mais que menos. Terá a roda d'alto de proa a esquadria corenta palmos, e de lançamento trinta e três de goa. E terá o codaste dalto pella esquadria trinta e três palmos de goa, e onze de lançamento que he o terço. Terá de gio de comprido sobre que anda a Cana do leme vinte e cinco palmos de goa Quando quizerem tirar as formas no chão tirarão em altura de 39 palmos medidos polia esquadria, e de largo 46 que he a maior largura, quando quizerem rodar farás a mor largura em três partes, darás húa delias ao fundo que he do couado que são quinze palmos botando sete pêra cada banda, e onde te disser os ditos sete palmos ahy porás 364 APÊNDICE A hum ponto que ha de ser o couado repartindo a grossura da Cauerna em três partes tomarão hua delias e porão hum aonde refere o ponto do couado botando da esquadria pêra dentro que he o arepiamento da cauerna este he o primeiro ponto que he na primeira cuberta em altura de dezaseis palmos, tomarás hum palmo, e botarás da esquadria pêra dentro, e ahy porás hum ponto, e o 3o ponto que he a mor bocca ariba da cuberta três palmos. Estes pontos todos são necessários pêra poder fazer a forma da cauerna e braço, e a primeira apostura o rol pêra poderem rodar, estas três peças será com dous róis o primeiro tomareis altura do couado a primeira cuberta e com esta altura rodareis o braço e a Cauerna demandando o primeiro ponto, e o segundo, e assy ficará logo feito cauerna e braço o outro segundo rol pêra rodar apostura acrescentarão mais três palmos que o primeiro rol, Com este rol irão buscar o ponto que esta na mor bocca, e a ponta do braço ficara a forma perfeita darão de encolamento a Cauerna e braço três palmos do ponto do couado pêra diante pêra ficarem bem embaraçados apostura meterá pello braço sete palmos, e o braço polia apostura outros tantos, isto se entende da cuberta pêra baixo, e da cuberta pêra cima, estes embaraçamentos se entende em todas as posturas tendo a madeira comprimento pêra isso, porque he obra muito boa assi pêra nãos de guerra como nãos de carga vir receber o braço o dormente da segunda cuberta podendo ser quando quizerem repartir a forma pêra meter a madeira da conta repartirão em cinco partes do couado a couado, hua delias pêra compartir a madeira da conta que serão treze pares que vem a ser vinte e sete cauernas com a mestra galibarão três por hum ponto pondo hua pêra proa, e outra pêra popa ficando a mestra no meio, quando galibares a madeira terá o graminho de popa três palmos [fl. 10] d'alto, e o de proa dous palmos, repartirão nestes graminhos treze Cauernas em cada hum delles compartindos polia saltrelha que he a conta que multiplica mais que a conta da mea lua, e faz o delgado mais saido pêra poder ser o Nauio melhor de uella, multiplicarão de baixo pêra cima a mesma compartida farão na forma da Cauerna começando do ponto do meo da quilha pêra o couado, irão deixando quando galibarem a madeira da conta que atraz tenho dito irão da cauerna mestra por diante atee as almogamas espalhamento a forma de modo que quando chegar em as ditas almogamas ficara o canto do braço da banda de dentro para fora da forma de modo que vem a ser hum palmo por banda repartido este palmo em treze pontos pello modo de hua palha tirada na mea lua pêra saberes a madeira que he necessária com dares este espalhamento na ponta da cauerna e braço primeiro que galibès a madeira prepararás a Cauerna com o braço couado com couado, e porás o ponto do espalhamento que he o dito palmo demandando com a ponta do braço, e aquillo que o braço esconder na ponta da cauerna pêra dentro aquillo repartireis também nas mesmas partes e conta em que repartistes o espalhamento, por que assy como vieres dando espalhamento a cada Cauerna assy virão também dando ponta a Cauerna, e dando pee ao braço, e isto se chama cancomo na regra de Carpentaria pêra saberes onde has de a cauerna mestra tomarás a quilha de couse a couse repartirás em cinco partes, botarás duas pêra proa, e três pêra popa, e ahy assentarás a Cauerna mestra que vem a ficar almogama de proa hum rumo e meio da dita almogama atee o couse almogama de popa afastado do couse cinco rumos menos dous palmos, terá treze palmos de delgado quando puzerem às armadouras serão dereitas de linha pellos cantos, e as faces virão receber as que vem pello fundo a primeira cuberta, a popa terá vinte e dous palmos, a proa em altura de quinze palmos e meo, nesta altura entra a groçura da lata e taboado, as outras cubertas de sete palmos e meo cada hua, a primeira sinta será pregada na proa ariba da cuberta dous palmos, e no meo por o dromente, a popa pellos dous palmos dos de proa a segunda sinta será na proa pregada em altura da cuberta, e no meo polia altura do dromente, e a popa ariba do gio dous palmos, A terceira sinta será pregada na proa Os NAVIOS DO MAR OCEANO 365 ariba da segunda quatro palmos e meo e no meo polia mesma conta, a popa polia cuberta, esta alcaxa he onde ha de jugar a artelharia da segunda cuberta, estas três sintas han de ser dobradas. A quarta sinta será singella ira pregar na ponta da roda tozando da maneira que fique dizendo com o falcão no meo ariba da terceira sinta dous palmos e a popa palmo e meo [fl. lOv] porque assy he necessário por amor d'artelharia do conues. A quinta sinta vira pregar no morro tozando de maneira que fique a alcaxa de três palmos esforçados a popa vira demandar a barra da tolda dali pêra cima meterão duas peças na altura da tolda, e outras duas na altura do chapiteo o Castello meterão três peças a primeira vira do morro atee a boca do Castello aleuantando dous palmos e meo da outra as outras duas peças não chegarão mais que atee o posauerga a primeira abobada em altu em altura [sic] de sete palmos e meio, lançara outros sete palmos, a segunda abobada em altura de sete lançara outros sete o primeiro corredor terá da Nao pêra fora doze palmos metidos polia nao Vinte e quatro palmos, a segunda varanda terá pêra fora da nao outo palmos, e metido polia Nao outros tantos o falcão de proa terá dezouto palmos da ponta da roda pêra fora arufara noue palmos, O morro terá seis palmos com a groçura do falcão, O Castello terá da roda pêra dentro trinta e três palmos, quando aposturarem a segunda cuberta em dereito da Cauerna mestra lançara pêra fora de sete palmos, lançaras dous palmos, e iras avalizando pêra proa em dereito da almogama, recolherá mais hum palmo daquillo que tiuer no meo, e ireis abalizando de modo que será de dous rumos, que venha a ficar as balizas dizendo dalmogama com a mestra, e dalmogama pêra proa ireis fazendo valizas de modo que fique o costado bem feito, e da mestra pêra popa ireis abalizando, de modo que quando chegar a almogama de popa que lance menos hum palmo esforçado daquillo que lança a Cauerna mestra, e dali pêra popa ireis demandando a baliza que esta assentada sobre o gio que em altura de sete palmos cay hum palmo pêra dentro esforçado, e assy vireis avalizando, e perparando de modo que fique o costado bem feito, e isto se entende húa banda soo passando as formas a outra banda o modo que terás na terceira cuberta pêra poder aposturar na Cauerna mestra poreis a primeira valiza em altura de sete palmos e meio, recolhera pêra dentro aquillo que a cuberta de baixo lança pêra fora ireis abalizando pêra proa de dous em dous rumos que quando chegardes em dereito da almogama de proa cairá pêra dentro hum palmo em dereito da cuberta, e dali pêra proa ireis abalizando conforme uos pedir a roda, e da mestra pêra popa atee chegar a almogama recolhera hú palmo e meo vireis abalizando atee a popa demandar a valiza que em altura de sete palmos caie três pêra dentro [fl. 11] quando quizeres assentar a carlinga assentareis no meio da quilha, quando fizeres as cubertas terá a casa do masto seis palmos, meterão duas latas dobradas húa a re outra avante, as bombas a rè do mastro três palmos metendo lhe húa lata dobrada, a re terá nesta primeira cuberta húa escotilha a rè das bombas outo palmos metendo lhe húa lata dobrada, a rè terá nesta primeira cuberta húa escotilha, a ree das bombas outo palmos [sic], a escotilha terá sete palmos e meio, meterão duas latas dobradas húa a re, e outra auante, de modo que vem a ficar antre as bombas e a escotilha seis latas duas dobradas, e duas singelas, a escotilha grande terá de fixo do pee do masto pêra proa seis latas duas dobradas, e duas singelas, e terá a bocca da escotilha sete palmos e meo metendo lhe nestas boccas das escotlhas suas latas dobradas, esta escotilha grande será a prumo, e as outras irão furtando em cada cuberta na casa do mastro acrescentando d'auante pêra rè húa lata isto se lhe faz por amor do mastro cair pêra re, e ficão crescendo estas duas latas na cuberta do conues da escotilha atè o pee do mastro a mezena será assentada a carlinga na cuberta do conues medindo de popa quinze palmos, o pinsote ficara a re da mezena duas latas auante da mezena terá hum escotilhão pêra a cuberta dartelharia dartelharia [sic], este galião não terá mais que a escotilha grande, e na primeira cuberta terá húa escotilha, a rè das bombas como atraz 366 APÊNDICE A tenho dito, o mastro traquete terá a carlinga na primeira cuberta afastado da roda três palmos, em riba na cuberta do conues seis palmos afastado da roda, a entrada do masto terá quatro palmos, as coxias terá noue palmos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 9-11. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 81-84. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 35-39. DOCUMENTO A. 15 Medidas pêra fazer hu galião d e quinhentos toneis, e o s paos que leua, d e Souoro, e Pinho: Pinho ij. peças # Primeiramente terá a Quilha de comprimento dezoito Rumos, e terá de grossura hu palmo de goa, e de altura, h ú palmo, e dous dedos, leua esta Quilha sete paos # A Roda que he a segunda cosa que se a r m a sobre o couce de Proa terá de altura corenta e cinco palmos de goa, e lancarà trinta palmos, leua três paos n a Roda, e três coraes por dentro. # O Codaste que he a terceira peça que se a r m a sobre o couce de popa terá d altura trinta e sete palmos de goa, e lançara noue palmos, e o ragel terá d altura dezoito palmos, e os dezanoue que ficão, caberão nelles duas cubertas, terá este Codaste de grossura em quadrado palmo, e meo leua dous paos # O Gio que he o que atrauesa o dito Codaste h a de ter uinte seis palmos de goa de largura, que he a metade do que o galião h a de ter, leua este Gio três paos e dous de pinho com que faz a grade terá de grossura no meo palmo, e meo e n a ponta h ú palmo [fl. 22v] # A Cauerna mestra se assentará dous Rumes [sic] auante do meo da Quilha, porque o meo da Quilha he o lugar, onde hà de ir o masto, e nos sete Rumos que ficão pêra a proa hão de caber dezoito pares que este galião hà de leuar, e seis Rumos que a madeira occupa pêra a Popa fiquão cinco donde começa a fazer o delgado. # Leua este galião dezoito pares que são trinta, e seis cauernas # Leua nas ditas cauernas sessenta, e dous braços # Leua a proa quinze emchimentos # Leua nos ditos emchimentos trinta astes bij. peças bj. peças ij. peças iij. peças xxxbj. peças Lxij. peças xb. peças xxx. peças 367 Os NAVIOS DO MAR OCEANO # Leua a popa uinte e dous enchimentos e piquas # Leua corenta e quatro areuessados # Leua por dentro h u a Carlinga pêra o masto e dous trinquanis pêra a fazer forte # Leua dous coraes a popa # Leua doze palmejares # Leua em toda a popa quatro areuessados e seis porcas que são dez paos # Leua n a primeira aposturagem cento cinquenta e duas aposturas # Leua nos drumentes, e contradrumentes cincoenta paos, na primeira cuberta: [fl. 23] # Leua corenta peis de carneiro no porão Pinho Lxxiij. peças # Leua setenta e três paos de cintas de pinho m a n s o nas escoas # Leua uinte bonequas no porão # Leua [na] primeira cuberta uinte cinco trinquanis # Leua quatro paixões que são paos em que fechão os tamburetes do masto Pinho LR. peças # Leua n a primeira cuberta n o u e n t a latas entre grandes, e pequenas Pinho xbj. dúzias # Leua dezaseis cordas p o r cima, e por baixo Pinho xb. dúzias # Leua quinze dúzias de taboado de pinho b r a u o n o soalhado desta cuberta com as escotilhas # Leua no porão h u a b u ç a r d a Pinho xij. peças # Leua doze taboas de pinho m a n s o nas Dragas # Leua esta primeira cuberta dezaseis carreiras de c u r u a s de conues que são trinta e dous paos # Leua uinte cinco antremichas nestas curuas # Leua a popa duas curuas que Hão polias cordas, e polias porcas # Leua h u a b u ç a r d a das dragas Pinho' xij. peças # Leua doze taboas de pinho m a n s o nas dragas [fl. 23v] Pinho xij. peças # Leua outra dúzia de taboas de pinho manso nas coceiras Pinho ij. peças # Leua dous paos de pinho nas braçolas # Leua h u a carlinga do traquete # Esta primeira cuberta se assentará desta maneira. Atraues- s a r ã o h u cordel a p r u m o do meo da mestra em altura de treze palmos, e fará h ú ponto onde disser o cordel; e per a popa farão h ú u ã o de três palmos, e pêra a proa de dous que são cinco que he o lugar onde h ã o de p o r o masto, e pêra a popa duas latas, farão outro u ã o de dous palmos e meo pêra o lugar das b o m b a s , e daqui a escotilha de popa auerà sete palmos de moçiço, e a escotilha terá outros sete em xxij. peças Riiij. peças iij. peças ij. peças xij. peças x. peças Cento Lij. peças L. peças R. peças xx. peças xxb. peças iiij. peças j. peça xxxij. peças xxb. peças ij. peças j. peça j. peça Deduzido do contexto, pois a abreviatura correspondente ficou oculta pela encadernação. 368 Pinho xxxij. peças Pinho LR. peças Pinho xbiij. peças APÊNDICE A quadrado; e d auante do masto farão outros sete palmos de moçiço, e logo a escotilha do meo que terá outros sete palmos em quadrado, e desta escotilha aa de proa, auerà uinte quatro palmos de moçiço, e a escotilha terá o mesmo que as outras pêra que caiba pipa. # Quando se cordea o dormente desta primeira cuberta se cordea também a primeira cinta dobrada desta maneira. A proa na Roda uai posta em altura de dezoito palmos a Esquadria, e no meo do costado ira por onde uay o dormente, e a popa de todo leuantara da cuberta palmo, e meo [fl. 24] # Leua esta primeira carreira de cintas trinta e dous paos # Assoalhada esta primeira cuberta, farão a segunda aposturajem, a qual feita quando assentarem a primeira apostura do seis bordo, que este galião há de ter, se porá dous Rumos que são doze palmos auante da porca de popa, e dahi à outra apostura auerà sete palmos, e outros tantos terá d alto de modo que fique quadrado, e caiba pipa por elle; e como for aposturado, correrão com o dromente das segunda cuberta, que se assentará em altura de oito palmos, porque em esta cuberta uai a artelharia, e latala hão desta maneira. A p r u m o do lugar do masto da banda de popa, atrauessarão hu cordel, e aonde disser o prumo, andarão pêra popa hu palmo, que tanto hà d emcostar o masto, e pêra a popa será tudo latado tanto de uão como de cheo, e do masto pêra a proa meterão quatro latas que facão tilha a prumo da escotilha de baixo, e dahi pêra a proa, farão uão de treze goas que são trinta e noue palmos de comprido, e terá de largo este uão cinco goas, que são quinze palmos pêra os quartéis do batel porque o batel há de ter quinze goas de comprido, e [fl. 24] hà de ter de largura quinze palmos, e dos quartéis pêra a proa será tudo latado. # Terá na segunda aposturajem cento e cincoenta e quatro aposturas # Leua na segunda cuberta uinte e três dromentes # Leua trinta e quatro curuas de Reues # Leua duas mesas de seis bordo # Leua quatro paixões com que fecha o masto # Leua uinte dous trinquanis # Leua duas curuas nas cordas que Hão polia popa # Leua duas conchas de estrinqua com seis curuas scilicet quatro nas bandas, e duas a bordo # Leua hú Eixo desta estrinqua # Leua a Roda da estrinqua com a cruzetta doze paos # Leua húa buçarda das dragas # Leua nesta segunda cuberta cincoenta latas e corenta meas latas nas cuxias do batel # Leua dezoito cordas cento Liiij. peças xxiij. peças xxxiiij. peças ij. peças iiij. peças xxij. peças -ij. peças bj. peças j. peça xij. peças j. peça 369 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Pinho xbiij. dúzias # Leua dezoito dúzias de taboado de pinho brauo no soalhado # Leua quinze taboas de pinho manso nas dragas Pinho xb. peças Pinho xbiij peças # Leua dezoito taboas de pinho manso nas coceiras Pinho Rbj. peças # Leua corenta e seis peis de carneiro por baixo [fl. 25] # Feita a segunda cuberta correrão com o dormente da tolda em altura de sete palmos, e uirà da Popa latada ate p r u m o da tilha debaixo e dahi pêra a proa, correrão com as cuxias ate o Castello, e serão a p r u m o das debaixo por amor de caber o batel, e a proa terá seu castello de galião na altura da tolda, e terá seu sporão de três madres, e terá de comprido uinte e oito palmos, e na ponta terá de alto cinco palmos, e na Raigada sete palmos, e os escouens se farão emtre as curuas das pernadas de cima, e terá este Castello sua gurita e m altura de sete palmos, e a mareagem d outros sete por Respeito da xareta. Pinho xij. peças # Leua nesta tolda, e cuxias, e castello doze dormentes de Pinho manso Pinho Lxx. peças # Leua corenta latas enteiras, e trinta meas latas nos quartéis, e lugar do masto Pinho xbj. peças # Leua dezaseis cordas por baixo, e por cima # Leua quatro paixões # Leua nesta tolda, e Castello uinte e oito curuas de Reues Pinho2xbj. peças # Leua por baixo dezaseis peis de carneiro # Leua esta tolda, cuxias, e castello, e gurita dezaseis dúzias Pinho3 xbj. dúzias de taboado de Pinho brauo # Leua duas popoias # Leua sete carreiras de curuas de conues com dous mulinetes dos amantilhos [fl. 25v] # Leua dez antremichas # Leua hú perpao com duas curuas dos gingamochos; e quaPinho iij. peças tro scoteiras das scotas da gauea, e ostingues Pinho Lxxiiij. peças # Leua trinta e sete uirotes de Pinho manso do pousa uerga pêra a popa Pinho xxxbiij. peças # Leua no castello treze uirotes por cada banda, e na arpa dez # Leua na abobada da tolda oito cambotas # Leua a abobada do chapiteo seis cambotas Pinho xbiij. peças # Leua nestas cambotas dúzia e mea de taboado de pinho brauo Pinho ij. peças # Leua duas barras de pinho m a n s o nas abobadas Pinho x. peças # Leua na gurita do castello dez latas # Leua nesta gurita quatro curuas de Reues 2 3 O mesmo que na nota 1. O mesmo que na nota 1. iiij. peças xxbiij. peças IJ. peças xbj. peças x. peças ij. peças biij. peças bj. peças nij. peças 370 Pinho xiiij. peças Pinho xbj. peças Pinho j. peça Pinho iiij. peças Pinho b. dúzias Pinho b. peças Pinho ij. peças Pinho cento xxiiij. peças Pinho xbj. peças Pinho xxxij. peças Pinho bj. peças Pinho xbj. peças Pinho iiij. peças Pinho x. peças Pinho xj. peças Pinho Rij. dúzias Pinho Rj. dúzias APÊNDICE A # Leua na tolda cuxias, e castello quatorze trincarás de Pinho # O Chapiteo se assentará em altura de sete palmos, e uirà de popa ate p r u m o do scotilhão do cabestrante, e terá de mareagem sete palmos por respeito da xareta. # Terá este chapiteo dezaseis latas # Terá h u a corda por baixo # Terá oito curuas de Reues quatro por b a n d a # Terá quatro trincanis de pinho m a n s o [fl. 26] # Leua este chapiteo cinco dúzias de taboado de pinho b r a u o n o soalhado # Leua hu prepao com sua grade # Leua dous perpaos no castello # Leua este galião quatro carreiras de cintas dobradas de cada b a n d a em que entrão cento e uinte quatro paos de pinho m a n s o scilicet a primeira carreira leua uinte e noue paos A segunda leua trinta paos A terceira leua trinta e h u A quarta carreira trinta e quatro # Leua mais outra carreira de cintas singela por cada banda, e esta serue de d r u m e n t e de tolda e castello E n t r ã o em cada h u a destas carreiras dezaseis paos # Outra carreira de cintas singela leua que u e m do Papa mosqua ate popa, e esta faz a m a r e a g e m d o conues, e ieneladas de popa, e proa, e por baixo desta uai outra, que faz forte a madeira, e u e m d o castello ate a popa, e leua nestas d u a s cintas trinta e dous paos # outra cinta leua que u e m de popa ate o pousa uerga, e esta serue de d r u m e n t e do chapiteo, e m que entrão seis paos [fl. 26v] # E leua mais n a m a r e a g e m do chapiteo quatro cintas de cada b a n d a em que entrão dezaseis paos # Leua n o castello outra cinta que serue de drumente da gurita em que entrão quatro paos # Leua n a m a r e a g e m desta gurita cinco cintas de cada banda e m que entrão dez paos # Leua hú papa mosqua deste castello # Leua quatro scouens # Leua duas çerauiólas # Leua duas curuas de beque # Leua seis curuas nas pernadas do sporão # Leua três paos de p i n h o de frandes nas madres, e oito linguetas # Leua este galião n a primeira cinta corenta e duas dúzias de taboado de fundo ate a quilha # Leua desta cinta ate o portaló corenta, e h u a dúzia de taboado d alcaixa que h e m e n o s m e o d e d o de grossura d o acima biij. peças j. peça iiij. peças ij. peças ij. peças bj. peças 371 Os NAVIOS DO M A R OCEANO Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho biij. peças Pinho biij .peças Pinho jx. peças Pinho ij. peças Pinho xxx. peças Pinho bj. peças Pinho bj. taboas Pinho ij. peças # Leua nas mesas grandes uinte paos de souoro nos Apôstareos # Leua nas castanhas, e cunhos treze paos # Leua dous trauessões de p i n h o # Leua duas taboas de cuxias nestas mesas [fl. 27] # Leua nas mesas de proa quatorze apostareos # Leua noue paos nas castanhas e cunhas # Leua dous trauessões de pinho # Leua duas taboas de cuxias # Leua quatro apostareos das amuras, e duas scoteiras d o coete # Leua duas chumaceiras das a m u r a s # Leua oito pássaros, quatro de cada banda # Leua sua u a r a n d a n o andar da tolda que terá de comprido onze palmos, e de largura o que a popa tiuer # Leua esta u a r a n d a oito uirotes # Leua noue mesas dos peitoris # Leua dous peis de carneiro # Leua trinta barrotes # O leme deste galião terá d altura corenta e quatro palmos, e terá de largura n o pee seis palmos de goa, e n a cabeça, terá quatro palmos de largo, e leuarà oito Machos, entrão neste leme seis paos scilicet h u a madre, e cinco açafroes, e leua mais noue trauessas de cada banda que são seis taboas de pinho m a n s o e o cadaste terá noue fêmeas em que entrão estes machos, e terá h u a cana com seu pinção pêra poder gouernar [fl. 27v] xx. peças xiij. peças xiiij. peças jx. peças bj. peças Escoteiras deste galeão Pinho bj. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho j. peça Pinho ij. peças Pinho iiij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho iiij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças Pinho ij. peças # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua # Leua duas Escoteiras das escotas grandes seis Escoteiras das troças grandes duas Escoteiras dos amantilhos grandes duas Escoteiras dos braços grandes duas Escoteiras das escotas da gauea duas Escoteiras dos ostingues da gauea hua Escoteira da driça da gauea grande duas Escoteiras das Escotas do traquete quatro Escoteiras das troças do traquete duas Escoteiras dos amantilhos do traquete duas Escoteiras das Escotas da gauea de proa duas Escoteiras dos coetes do traquete quatro Escoteiras das Bulinas duas Escoteiras das escotas da çeuadeira. duas Escoteiras da lutar as ancoras. duas bombas que tem dalto corenta palmos ij. peças 372 Pinho j. peça APÊNDICE A # Leua húa Dala # Leua dous zingamochos, e húa carregadeira [fl. 28] Medidas e conto dos mastos deste galeão # O masto grande será tão comprido, como a quilha do Galeão de Escoadria a Escoadria, de modo que dezoito Rumos de quilha, dezoito braças de masto, terá este masto de grossura no tamburete que he sobre a ponte a decima parte da largura deste Galeão, e terá na garganta do masto a metade desta grossura. # O masto do traquete terá de comprido quinze braças, que são menos três, que o grande, porque leuanta a cuberta sobre que uai o pee, duas braças, e húa, que hàde ficar mais baixo por cima que o grande, e são três; terá de grossura três palmos, e meo que he menos a quarta parte do grande, e na garganta, terá a metade desta grossura. # O Guoroupez, será tão comprido como o masto do traquete. # O masto do Artimão terá de comprido doze braças, porque emterra três braças, e húa que a xareta leuanta e são quatro [fl. 28v] e oito que fiquão, são por respeito de uirar a uerga que he latina, terá este masto de grossura a metade da grossura do masto grande, e na garganta duas partes. # O Masto da contra terá de comprido oito braças, e de grosso menos hú quarto do artimão. # O Mastareo da gauea grande terá de comprido o terço do masto grande, e terá de grossura menos hú quarto que hú penão. # O Mastareo da proa terá de comprido o terço do masto do traquete, e terá de grossura dous terços do grande. # O Botaló terá sete braças de comprido, e terá de grossura tanto como o Mastareo de proa. Conta das Vergas # A Verga grande será tão comprida como três vezes a boca do galeão, e terá de grossura cada penão a metade da grossura do masto grande, e no lais a metade. # A Verga do traquete terá de comprido os dous terços da grande, e será tão grossa no meo como hú penão, e no lais a metade. [fl. 29] # A Verga da ceuadeira será tão comprida como os dous terços da uerga do traquete e de grossura terá a metade da grossura do masto do traquete. # A Verga da gauea grande terá de comprido o terço da uerga grande, e de grosso no meo a metade de hú penão. iij. peças Os NAVIOS DO M A R OCEANO 373 # A Verga da gauea de proa, terá de comprido o terço da uerga do traquete e de grossura menos dous dedos que a grande. # A Verga do artimão terá de comprido dous comprimentos deste masto da xareta pêra cima, e de grosso, a metade da grossura do dito masto. # A uerga da contra, terá o mesmo comprimento, e grossura como a do Artemão em seu conto. Conta das gaueas # A gauea grande, terá em boca, hu terço da largura do galeão, e terá d'altura a quinta parte, e outro tanto menos por baixo. # A gauea de Proa, terá de largura menos hu quarto, que a grande, e a altura, e (...) 4 [fl. 29v] # Leua seis uigas nos porquetes com que fecha o masto bj. peças grande # Leua doze tamburetes no masto grande e no traquete xij. peças # Leua seis paos nos chapuzes bj. peças FONTE: Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257, fls. 22-29v. PUBLICAÇÃO 1892 - MENDONÇA, Henrique Lopes de, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1971, pp. 96-105. DOCUMENTO A. 16 Nauio de 400 tonelladas. Terá catorze rumos e meo a cuberta primeira em doze palmos a outra em outo palmos a tolda ao pee do masto em altura de sete palmos mareagem do conues em altura de cinco palmos o castello de proa terá como o outro Nauio atraz, a roda de proa d'altura de trinta palmos, o codaste vinte e sete palmos se for Nauios darmada que for pêra a índia terá a roda de proa d'alto corenta e três palmos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fl.21v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 105. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 54. 4 A continuação do texto foi cortada pela encadernação. 374 APÊNDICE A DOCUMENTO A. 17 Regimento pêra galiões de trezentas e cincoenta toneladas. Primeiramente terão catorze Rumos e meo de escoadria a escoadria. Terá a roda de proa dalto corenta e dous palmos. Terá de lançamento trinta e quatro palmos, e pêra rodar esta roda rodarão com corenta e quatro palmos O Codaste terá trinta e quatro palmos daltura, e de lançamento a terça parte d'altura. E pêra tirar a forma do manco deste galião farão a esquadria em altura de vinte palmos que he do delgado pêra cima [fl. llv] No gio terá vinte e dous palmos e altura de dez palmos, terá a mestra largura, e desta maneira os pontos postos que he o gio e o meo, e o ponto do codaste acertarão o rol nestes três pontos, e depois delle certo rodarão e ficara o pè manco perfeito. E terá catorze palmos de delgado A conta que hão de ter no tirar das formas no chão. Primeiramente terá na maior largura corenta e dous palmos que he a segunda cuberta donde joga artelharia farão estes corenta e dous palmos em cinco partes, e depois de ter a esquadria feita na largura que acima tenho dito dos corenta e dous palmos tomarão hua das cinco partes, e farão hua mea lua do canto da esquadria pêra dentro, e esta mea lua far lhe hão o meo, e quando quizerem rodar a forma uirão demandar o ponto que está nesta mea lua terá de couado a couado catorze palmos arèpiara meo palmo desquadria pêra dentro. Terá de pontal na primeira cuberta em a cauerna mestra treze palmos e meo depois da cuberta acabada medirão de sobre a Cauerna, terá nesta cuberta corenta palmos esforçados. E a popa terá a cuberta acima do manco a cinco palmos e meo, e a proa abaixo da primeira sinta dous palmos. Terá a segunda cuberta dalto outo palmos depois d'acabada, e a terceira cuberta terá d'alto depois dacabada outo palmos e meo d'alto, e de mareaje seis palmos de vara. Repartirão a forma em cinco partes tomarão duas pêra meter e compartir a madeira na forma que han de ser treze pares que vem a ser treze pêra popa, e treze pêra proa contarão a mestra nas treze galiuarão so hua dum ponto que he a mestra. Darão d'espalhamento das quatro por diante, assy pêra re como pêra auante três terços de palmo de goa quando chegarem almogama demenuira estes três terços de cada banda e quando galiuarem a madeira virarão a forma da Cauerna com o Couado na estilha e irão de [fl. 12] mandar com a forma o ponto do couado que estará posto na Cauerna. Quando quizerem armar a madeira sobre a quilha repartirão d'esquadria a esquadria em três partes e porão a Cauerna mestra duas partes a rè, e hua auante hum palmo mais a re de modo que fique do couce de proa almogama hum rumo e meo. E pêra porem a Carlinga do masto grande repartirão a quilha em duas partes assenta Ia hão no meo destas duas partes. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 375 A ordem que terão no sintar deste galião. Porão a primeira sinta a proa em altura de dezouto palmos pella esquadria. E na mestra a porão em doze e meo, e a popa em cinco e meo do manco pêra cima, e as outras carreiras de sintas sinta Ias hão de dous em dous palmos de uão d'alcaixa de goa. E a sinta da portinhola po Ia hão da cuberta pêra cima dous palmos. E a outra sinta ficará assentada dali pêra cima três palmos. E pêra aposturar este galião com aposturaje redonda recolhera na mestra em altura de outo palmos hum palmo e hum quarto, e namura que he sobre a esquadria recolhera dous palmos em altura dos ditos outo palmos e meo, e terá tanta largura namura como no meio que he na terceira cuberta por cima do gio. E terá duas portas ate a cuberta por que ha de gouernar o leme por baixo que ha de ir a baranda nesta cuberta ha de ser a biscainha com húa cambota de cada banda. Os virotes do pee do masto recolherão três palmos e meo em altura da tolda. A popa sobre o gio cairão hum palmo, e hum terço E a tolda se assentará o dromente em altura de sete palmos e meo, e chegara atè o pe do masto o chapiteo a re da mezena. O Castello deste galião terá de comprido pêra dentro corenta e dous palmos, e pêra fora vinte e cinco palmos, e ha de ter três madres, e ha de leuar papamoscas, isto a portugueza. [fl. 12v] Recolherá o primeiro virote quatro palmos e meo pêra dentro em altura douto palmos, e caxa quatro pêra auante. A gurita em altura de sete palmos e meo. Pêra repartir as escotilhas meterão da Casa do masto pêra auante seis latas terão de vão d'hua a outra hum palmo de goa, e a lata hum palmo de uara, e a escotilha terá sete palmos de comprido e seis de largo que he a coxia de corda a corda. A cuberta do porão ha de ser curuada com curuas de reues em cada rumo húa com a perna comprida pêra baixo embaraçadas com as latas fixas, e por cima da cuberta suas curuas de conues que escamem com as de reues que vem de cima da segunda cuberta. As escotilhas cairão a prumo húas com as outras, a cuberta d'artelharia não leuara Curuas de conues nenhúas que hão de ir debaixo da lata entremichadas com a da outra banda, e han de ir em largura de sete palmos d'hua a outra, por respeito das portinholas, e não ha de leuar nenhua lata dobrada por ficarem as Curuas compassadas. Terá o graminho de popa dous palmos de goa, e hum terço dalto, e o de proa hum palmo de goa he hu quarto. Terá a quilha de grosso e roda hum palmo de uara esforçado, e d'altura hum palmo de goa e meo dedo e a madeira terá o palmo de vara de grosso. Rellação das madeiras que se hão mister ao certo pêra este Nauio de catorze rumos. Cauernas vinte e seis Arebeçados cincoenta Braços cincoenta e quatro Picas trinta [fl. 13] Paos pêra os mancos quatro Paos pêra os emchimentos de proa vinte 026 050 054 030 004 020 376 APÊNDICE A As teas pêra elles corenta Paos pêra aposturas trezentas e trinta Paos pêra pes de Carneiro pêra o porão setenta e cinco Paos pêra o codaste dous Paos pêra paixões doze Paos pêra tamboretes vinte e dous Paos pêra bonecras dezouto Duas curuas pêra o esporão Duas canas quatro paos Trincanis, cento corenta e dous Paos pêra contra dromentes cento e corenta Paos pêra quilhas doze Paos pêra couses e corais das cabeças quatro Paos pêra roda de proa cinco Paos pêra quebrastantes e papoyas quatro Paos pêra porcas vinte e quatro digo vinte e outo Paos pêra pernadas de esporão seis Curuas de conues e de reues trezentas corenta Pêra habita e carros de bombas outo Paos pêra antremichas cento e cincoenta Paos pêra Cambotas catorze Paos pêra habita dous Paos pêra apostareos setenta e seis [fl. 13v] Paos de pinho pêra sintas cento e cincoenta Pêra virotes cento e cincoenta Taboados mancos pêra costado cincoenta dúzias Vinte dúzias alcaixa Tauoado branco pêra cubertas cincoenta dúzias De foro quinze dúzias Pêra paos de empeno de pinho vinte e cinco Paos pêra escoas corenta e cinco 040 330 075 002 012 022 018 002 004 142 114 [sic]1 012 004 005 004 028 006 340 008 150 014 002 076 150 150 050 020 050 015 025 045 FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 11-13v. PUBLICAÇÃO 1933-BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVIe XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 85-88. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 39-43. De acordo com a ordem de apresentação dos documentos na fonte, esta é a primeira situação que ilustra diferenças de fundo entre os critérios de transcrição seguidos no livro editado em 1995 pela Academia de Marinha e os nossos: mantemos a notação errada («114»), enquanto naquele livro aparece o número certo (140), mas diversamente do que consta no documento e sem qualquer chamada de atenção para o facto. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 377 DOCUMENTO A. 18 Regimento do dito galeão de quatorze rumos como tenho dito e tinha mais meio rumo [fl. 22v] Digo mais que a valiza de manco farão pello modo da nao da jndia ' Primeiramente quando fizerem as formas no chão terá de fundo quatorze palmos de goa de couado a couado esforçados e se tiuer quinze palmos não perderá por amor da artelharia ficar mais passante, repartirão a forma da cauerna em cinquo partes e tomarão duas para a madeira e treze para a proa e treze para a popa Terá treze pares de partidos na forma da Cauerna toda a madeira e palmos redondos. Terá de pontal quatorze palmos a lata e altura da cauerna a esquadria ate quatorze e meio esforçados. Na cuberta primeira poderá ter trinta e quatro palmos e trinta e cinquo no chorão te rodar o braço rodarão com a altura que tem o portal que ha no couado, e rodarão e dar lhe ão seu bojo para fora ao que farão encostado e ficarão os palmos em que ficarem que diga trinta e quatro e trinta e cinquo, digo que farão como atras e com o rol segundo que serão dous Roes e fica em quarenta e dous palmos que he em sua conta de boca e depois de feito vira a ficar em quarenta e três e mais se quizerem, mas as formas serão tiradas na sua conta acima e repartirão a altura da cauerna em três partes a rapura e o couado. A pusturagem de cima recolherá para dentro quanto ha de baxo e bota para fora finalmente farão conforme [fl. 23] a conta do de baxo e farão como atraz diz Terá de delgado quatoreze palmos que esta he a conta de quada rumo, tomarás hú palmo para o delgado e pello codaste medirão os quatorze palmos ate os quinze da primeira armadura a proa a pregará pello modo que diz atras, na nao que tomará de hú cordel e per porão que tomara de hu cordel pellos couados refirirá por três ou quatro na roda e assi assentara darmadura A popa fará do mesmo pellos couados, e porão no codaste que farão de maneira que fique direita pello canto e pella facia e para de de (sic) outra sobre a armadura a porta da sobre a primeira e pregada ao marco e depois de tudo feito o pezarão e monegarão e não caya mais húa que a outra Da entrada do batel e Ree terá treze palmos e auante doze com primeira da dita entrada do batel da esquadria dante Ree ate o castello terá hua lata fixa se a quizerem e no que parecer bem a ree a prumo com o castello, digo da esquadria e da primeira cuberta da banda dante auante e quando assentarem a cauerna tomarão os lançamentos do comprimento que tem de esquadria a esquadria e porá da mestra no meio e logo hua para uante e outra para ree, de hú ponto que será de três de hú ponto com a mestra, e sendo Este documento reporta ao regimento da nau da índia de 17 rumos de Gonçalo Rodrigues, que o antecede no códice. 378 APÊNDICE A a madeira delgada que não encha para os carretos compartirão a madeira na quilha e as chiarcos vazias metendo o dente em que embebe o raso na cauerna em tendo necessidade meterão mais de hú ponto, mas tendo a madeira palmo e grosso não poderá leuar [fl. 23v] mais que três como tenho dito comtudo farão a repartição como tenho dito acima na quilha, esta conta farão para todas as galiaças e carauellas e nauios de qualquer porte que for por almogama hu rumo da esquadria para Ree emtão leue as de hú ponto as que leuar. Terá este galeão de varanda para fora dez palmos e meio de goa Terá desporão vinte e sete palmos de goa até vinte oyto querendo ficara mais fermoso, terá o oyto apostarios a popa de cada banda de bombordo terá mais hú para a escada e a proa oyto por banda com os dous das amuras e os saros que for necessário, e terá as mossas de popa pello dormente do conues e assi a porão e ficarão as pontas das latas por cima das mossas: para repartir as alcaxas tomarão a altura da primeira e a decima repartirão as alcaxas no meyo a mestra da cinta, e tomarão a carreira que he do dormente e repartirão as alcaxas. Terá a cuberta de sobre esporão oyto palmos e meyo e oyto sendo as partes contentes, a conta he sete palmos, mas por amor da artilharia he bom oyto faz a lata antes mais que menos Logo na segunda que he onde anda a artelharia e maior boca que a portinhola para que fique a artilharia desabafada, terá oyto palmos de goa antes mais que menos, nesta cuberta onde anda a artilharia não terá curuas de conues por amor dos reparos por [fl. 24] por onde a de baxo será muito bem incuruada e de curuas de reués. Alembro que encuruando a cuberta da artilharia para de muito bem fazer da corda para amura das sobre as mesmas curuas as tilhas para asi dar a artilharia e ficará muito boa obra; entermecharão com antremichas leuadiças que quando quizerem andar com a artilharia a botarão fora. E lembro que de papa mosca a cuberta a fasia de cima tem três palmos esforçados e terá à sua tolda ate o pee do masto a qual terá de alto sete palmos parecendo bem e bem de calsão antes mais que menos, fará a altura da lata e taboado da cuberta da boca de chapitel ate o pee do masto serão barrotes O chapitel será tão comprido que chegue a prumo com o cotilho do cabrestante - Assentarão as bombas e madres da carreta a modo da nao atras e na boca do chapitel farão hua axareta ate o pee do masto, e ao pee do masto porão hú perpão para as madres da xareta e anteparo da tolda. Tem arcaje. no conues terá seis palmos de goa, e lembro que na xareta farão coxia que de lugar aos carros das bombas. Terá a Roda de proa dalto quarenta e dous palmos que he a sua conta e basta que mais vai cortar que emmendar a conta quanto tem qualquer vaso da boca no chão tanto será de roda a proa e lançará trinta e húa conta e vinte oyto, e trinta e dous palmos não perder por quanto he galião para correr e rodar, com quarenta e seis e quarenta e sete porque quanto o Rol mais comprido fica a roda mais segura e mais fermosa [fl. 24v] e saida para correr, e assi se quer para galeão e carauella. A conta para três bocas em vinte oyto palmos na roda e o condaste nos lançamentos terá quanto tem da boca no chão. Dar se ão de condaste trinta e quatro palmos a esquadria e quando armarem pello codaste medirão e terá trinta e cinquo como está marcado atras - e Do gio terá vinte e quatro palmos contando atigos irá o meio da boca quanto tirão as formas no chão, para que fique a popa possante; Darão do gio vinte e quatro, e vinte e cinquo palmos ao deste tamanho, sendo de mais rumos farão a popa conforme ao tamanho e em que tenha em vinte e cinquo não perderá, ficara melhor a popa sendo de mais rumos e terá mais. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 379 Lembro que não leua grade na popa porque gouerna em baxo, Terá a barra de alto do gio onde a cana do leme ao canto da barra por cima quatro palmos, nas Cabeças três palmos não ha de ter grade nesta popa e Alembro que namura para qualquer galeão trabalharão que fique na amura quanto tem na maior boca a mestra, a nao leua grande e Lançara o codaste o terço que tem de alto como atras acharão ao marcar e ainda que lance menos do terço não releua No conues farão húa apauezadura com suas forguilhas e perchas, e porpaos auante e ree para armar a xareta falsa de cordas sobre hua cadea de ferro por baxo Da cinta á proa assentará a primeira [fl. 25] em vinte palmos e a esquadria e se parecer bem a obra o ensinara ate donde o porão de quatorze palmos terá a cinta vinte e hú palmos a esquadria, Para virotar ensinará o como hão de fazer a obra ensinará melhor. Assentarão as cintas do rredor ate a maior largura do galião. As grossuras da madeira que ha de ter este galião ficarão marcadas atras galiuarão a cauerna da boa facea com o braço da banda da falha por amor dos malhetes. A escotilha grande as cinquo latas auante o masto a Ree outra pello modo da Nao na primeira cuberta não esta auante nem a Ree pello modo da nao A entrada do batel a prumo com a escotilha da banda da ree e não também com a escotilha dante auante O garaminho de popa terá três palmos de vara escaços e o de proa hu palmo de goa esforçado para dar esta altura no garaminho quatro palmos tiuer tomarão seis partes e darão hua ás abobodas e lançarão quarto te as cubertas dalto Terá a varanda para fora da roda onze palmos que bastarão de goa ate onze e meio postas as barras amalhetadas sobre as latas da cuberta. Terá a quilha de grosso hu palmo redondo de vara esforçado e de alto terá hu palmo de goa esforçado a roda terá a mesma grossura e altura, e as fasias e assi o codaste para abrir o alifris das calinas, e 2 O castello de comprimento duas partes da roca de dentro arpa ate ponta damura dante auante farão melhor o que lhe parecer para bem do galeão terá sobre a [fl. 25v] a guirita sete palmos de mareagem para armar a xareta e dous mais acima da mareagem O concauoficamarcado atras para lhe darem para a proa com seus pontos quantos ha de ter e farão pella maneira que atras fica da nao. Terá a Carlinga do masto grande no meio da quilha e a do traquete na primeira cuberta de sobre o perão pegado com a busarda cada murena que he a da popa de tudo sobre a terceira ou artimão sobre a segunda cuberta. Alembro na boca do castello recolherá o primeiro pee do castello três palmos escaços na altura da cuberta rente com ella As armaduras porão pello modo que atras digo da nao, pello cordel que retira pellos couados e assi a popa se armadura a baxar do pee manco conforme dixer o cordel como vai da proa referindo pellos couados como tenho dito, terão a outra sobre a armadura a popa toda sobre a primeira e pregará ao pee manco ficão as armaduras direitas por cordel pellas fasias e assi pellos cantos e digo que tozarão pellos cantos para baxo o que lhes parecer e quefiqueré a proa por cordel os cantos e fasias e assi á popa direitos por canto e facia Depois que tiuerem feito tudo isto escolarão muito bem que não de húa banda mais que da outra. 380 APÊNDICE A Quando rodares as formas no chão o couado terá a forma aleuantada dous dedos da esquadria As formas rodarão como atras acharão, o braço rodara com a altura que tem a esquadria a portinhola dando lhe bojo a olho que lhe parecer para fora de Rol e o que lhe parecer melhor para bem do [fl. 26] do galião no regimento adiante do dezaseis remos 3 (sic) acho muitas cousas as madeiras que serão mister para este galião. FONTE: Curiosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 22-26. DOCUMENTO A. 19 Conta e medida do galião de trezentas toneladas. 300. Terá desquadria a esquadria treze rumos que são seis palmos de goa De boca a portinhola terão trinta e outo palmos que he a mor bocca adonde joga a alternaria. De pontal terá doze palmos e meo d'esquadria ao canto do dromente pello canto de sima fora a lata. A segunda cuberta lembro que fique em altura que possa jugar a artelharia em todo o tempo. Terão as rodas d'alto trinta e seis palmos de goa, e de lançamento vinte e noue palmos de goa. Terão os codastes d'alto a esquadria trinta e quatro palmos de goa, e de lançamento o terço. Quando quizerem tirar as formas no chão em altura de trinta e hum palmo medidos polia esquadria fazendo a mor largura na primeira cuberta que he em altura de dezouto palmos, e querendo dar lhe menos boca do que acima tenho dito dar lhe ão trinta e cinco palmos pêra o Nauio ficar mais sutil e ligeiro mas dando lhe o mesmo comprimento da quilha [fl. 14v] que são os treze rumos como atraz tenho dito abaixando as rodas e codaste conforme a conta mostra darão de fundo de Couado a couado doze palmos pêra poder rodar a forma do braço, e a Cauerna arepiarà da esquadria pêra dentro donde esta o ponto do couado a metade da groçura da Cauerna e ahy porá hum ponto que seruira pêra se emcostar o rol, quando rodar d'altura que he a mor bocca, e despois que tiuer estes dous pontos tomara altura que ha do couado a mor largura e com elle rodara o braço, e a cauerna ficará a forma perfeita do meo da segunda cuberta quando quizerem tirar apostura em altura de sete palmos e meo recolherá pêra dentro hum palmo, quando repartirem a forma repartirão em cinco partes tomando húa pêra a madeira da conta nella meterão doze pares compartidos pella saltarelha, galibarão três num ponto porás húa avante, e outra a rè quando quizerem assentar a Cauerna mestra, Na quilha repartirá a quilha em cinco partes, e tomarão duas pêra avante, e três pêra rè, e assentarão a dita cauerna mestra e querendo que o Nauio fique mais groço na proa, e sotil na proa repartirão a quilha em três partes botando húa pêra proa, e duas pêra popa, e ahy entre 2 3 A frase não termina. Remissão para um regimento que não consta no códice. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 381 as duas, e a húa assentarão a cauerna mestra ainda que esta conta he milhor pêra Nãos de carga que não serue pêra guerra por não serem tam boas de bolinas darão de pee a Cauerna mestra hum terço de palmo, o graminho de popa três alturas de madeira o de proa duas alturas. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 13v-14. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 89-90. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 43-44. DOCUMENTO A.20 Nauio de 300 tonelladas. Terá treze rumos da esquadria, terá de lançamento da roda de proa a terça parte da quilha terá a cuberta em onze palmos a outra em sete e meo cinco palmos de mareagem com sua tolda atee o pee do mastro em altura de seis palmos e meo, o Castello de proa serrado com sua gorita sua habita dentro no castello, e se for o castello serrado terá a ahabita da banda [fl. 21v] de fora terá a altura da roda de proa vinte e outo palmos de goa, o codaste terá dalto vinte e quatro palmos, porque ha de gouernar por cima da tolda, e serão as formas da Cauerna e braço da maneira que atraz digo. Todo o Nauio de sesenta tonelladas atee trezentas terá o delgado de popa a metade da largura do gio. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 21-21v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 103. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 54. DOCUMENTO A.21 Conta e medida do galião de duzentas tonelladas. 200. Terão d'esquadria a esquadria doze rumos que são em cada rumo seis palmos de goa. Terão de bocca na mor largura vinte e outo palmos de goa a portinhola donde joga a artelharia. Terão de pontal treze palmos antes mais que menos, porque aquy nesta cuberta ha de jugar a artelharia. 382 APÊNDICE A [fl. 14v] Meterão no porão em altura de sete palmos sete vãos com suas curuas pêra a fortificação do galião. Terão as rodas d'alto vinte e cinco palmos de goa a esquadria, e de lançamento vinte e hum. Terão os codastes d'alto a esquadria vinte e quatro palmos de goa a esquadria adonde anda a Cana do leme os lançamentos o terço, o gio terá doze palmos. FONTE: -. Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 14-14v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 91. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 44. DOCUMENTO A.22 Nauio de cento e sincoenta tonelladas. 150. Terá de comprido onze rumos os lançamentos de proa, e de popa na maneira que atraz está dito a cuberta em altura de noue palmos e meo, e a outra posta e seis e meo tolda em altura de seis e meo o chapiteo atè o mastro da mezena a Camará como quizerem o seu castello de proa com a sua habita dentro do Castello o gio de popa a metade do que tiuer de boca terá de boca a terça parte da esloria como está dito. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 21. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 101. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 54. DOCUMENTO A.23 Conta e medida do pataxo de cem tonelladas. 100 Terão de comprimento d'esquadria a esquadria onze rumos que são em cada rumo seis palmos de goa. Terão de pontal treze palmos, e terão vãos em altura de sete palmos de goa. Terão de bocca vinte e sete palmos. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 383 Terão as rodas d'alto a esquadria de proa dalto vinte e sete palmos de goa, e as de popa terão atee almeida vinte e cinco palmos, e terão as rodas de goa de lançamento vinte e três palmos de goa, e as rodas de popa o terço. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 14v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 93. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 44-45. DOCUMENTO A.24 Conta e medida de hum pataxo Olandes de cem tonelladas. 100. Terá desquadria dez rumos e meo. [fl. 15] Terá de roda dalto vinte palmos. Terá de lançamento dez palmos. Terá o codaste dezassete palmos, e de lançamento cinco palmos e meo. Terá de gío noue palmos, e de delgado sete palmos e meo. A primeira abobada terá d'álto doze palmos de sobolo gio, e lançara noue palmos. O chapiteo terá d'alto adonde assenta o cordão seis palmos, de modo que fique a prumo com a varanda terá o cordão que he o primeiro de largo noue palmos, terá o Corredor da varanda noue palmos medidos polia Nao, terá a primeira cuberta que he a maior largura terá vinte e três palmos, e na segunda cuberta dezouto palmos, terá de pontal noue palmos de sobola Cauerna, e na segunda cuberta sete palmos quando quizeres tirar as formas no chão tirareis em vinte palmos medidos polia esquadria, e de largo vinte e três repartindo as contas descubertas, e pondo os pontos sabidos no couado que serãos sete palmos e meo de fundo, virão buscar o ponto que esta no Couado que se chama o arepiamento que he a altura da madeira aleuantada da esquadria madeira a madeira na forma des pares repartindo a forma em cinco partes, meterão nas duas a dita madeira, e galiuarão três num ponto a madeira de grosso terá meo palmo de goa quando quizeres embaraça Ia madeira irás dando espalhamento das três por diante assy pêra popa como pêra proa dejnodo que quando chegares as almogamas fique o braço por fora da forma assy dúa banda como da outra, o graminho de popa terá de alto duas alturas da madeira, e tendo mais algúa cousa será muito bom pêra ficarem bons delgados, o graminho de proa terá hua altura da madeira, repartirão nestes graminhos dez Cauernas em cada hua dando dous dedos de pe a cauerna mestra multiplicando de baixo pêra cima a primeira sinta será pregada na roda em altura de treze palmos medidos polia roda, e no meo em altura de noue palmos, e a popa pollo gio terá este pataxo quatro sintas de popa a proa terão de largo as ditas sintas hum palmo de uara as alcaxas dua sinta a outra três palmos de largo na proa mais estreitas correrão hua sinta mais estreitas que as outras que serue de marejem de popa tee a proa a popa meterão mais duas pessas que seruem do Camarote do Pilloto. [fl. 15v] o esporão terá da roda pêra fora treze palmos atee a ponta 384 APÊNDICE A do morro, arrufara antre o terço e o quarto meterão antre o talhamar o esporão hum lião deixando lhe hum palmo de largo, o taboado será de groço quatro dedos esforçado quando quizeres fazella escotilha mediras do pè do mastro pêra avante noue palmos, e ahy poreis duas latas dobradas, e a boca da escotilha terá de largo sete palmos e meo do pee do masto pêra popa medireis vinte e dous palmos, estas medidas se entende medidas pella cuberta, e adonde se acabarem estes vinte e dous palmos correreis hum dromente dahi ate a popa correreis hum dromente mais alto que a cuberta dous palmos, e três dedos pêra poder ficar jugando hua peça polia popa adonde se acaba a cuberta que são os vinte e dous palmos como atraz digo, e dahy medirão pêra popa por riba da mea cuberta noue palmos, e dahi pêra popa ficará a Camará do Capitão, e os noue palmos que ficão seruirão pêra gouernar o pinsote Quando quizeres assenta Ia a Cauerna mestra repartires a quilha em cinco partes duas botareis pêra proa, e três pêra popa, e donde diz o ponto das duas partes pêra proa ahy assentarão a Cauerna mestra húa dum ponto auante, e outra a rè. O uão de hua de hua [sic] cauerna a outra terá hum palmo de goa em todas as medidas deste pataxo se entende palmos de goa querendo fazer de vara cada seis palmos de goa fazem sete de vara. este pataxo he Nauio de guerra. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 14v-15v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 95. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 45-46. DOCUMENTO A.25 Medidas do nauio de outenta tonelladas. 80. O nauio de outenta tonelladas pouco mais ou menos maior antes terá de comprimento onze rumos desquadria a esquadria será de duas cubertas, a primeira terá noue palmos he a segunda seis, e o chapiteo auante do mastro da mezena hua lata, e se for pataxo de guerra de duas cubertas, irà a segunda cuberta em altura de sete palmos e meo terá de lançamento da roda da proa a terça parte da quilha sendo de duas cubertas, e se for de húa a quarta parte o codaste atee almeida terá a terça parte de lançamento das três partes da altura a roda da proa terá dalto pella esquadria vinte e dous palmos de goa, e terá dalto o codaste atee a almeida dezanoue palmos a largura do gio se for nauio de popa redonda terá de largura a metade da boca do Nauio a mareagem do conues quatro palmos o chapiteo em seis palmos dalto. E se for nauio terá hua cuberta sendo do mesmo comprimento da quilha terá vãos postos em outo palmos a cuberta cinco a tolda atè o pee do masto o chapiteo atee o mastro da mezena porá mais ligeiro seu castello serrado de proa que possa jugar dous canhões pella proa [fl. 21] com duas coxias, e fica capaz pêra poder remar remos terá de boca a terça parte da esloria, e se for pêra Nauio ligeiro terá antre o terço, e o quarto Os NAVIOS DO MAR OCEANO 385 vira a ser de sesenta tonelladas pouco mais ou menos, terá de mareagem a cuberta três palmos, a ponta será fixa atee o Castello, e atè o pee do masto e poupa, e o mais lhe dee de quartéis, terá de delgado seis palmos, e na proa a metade do delgado da popa. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fls. 20v-21. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 99. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 53. DOCUMENTO A.26 Medidas pêra fazer hua Carauella de cento cincoenta toneis ate cento oitenta, e os paos que leua de Souoro e Pinho: Pinho ij. peças # Terá esta Carauella de comprimento por quilha d escoadria a Escoadria doze Rumos, e terá d'alto hú palmo Redondo, e de largo menos dous dedos, leua esta quilha quatro paos # A segunda peça que he a Roda terá d altura uinte e oito palmos de goa, e terá de lançamento os dous terços desta altura que são dezoito palmos, e terá d altura da madeira mais meo palmo que a quilha leua esta Roda três paos # O Codaste que he a terceira peça que se assenta sobre o couce de Popa terá d altura uinte dous palmos de goa, e terá de lançamento sete palmos, e de grossura hú palmo de goa em quadrado, leua este codaste dous paos # O gio que he o que assenta sobre este codaste terá de largura a metade do que a Carauella tiuer, e terá de grossura hú palmo, leua este gio três paos de souoro, e dous de Pinho [fl. 36v] # Terá esta Carauella trinta e três palmos de largo que he a terça parte dos lançamentos, e quilha e terá de fundo a terça parte desta largura # A cauerna mestra se assentará oito palmos auante do meo da Quilha, porque o meo da quilha he o lugar onde se assenta a carlinga pêra o masto grande # Leua esta Carauella doze pares que são uinte quatro cauernas, porque quantos Rumos tiuer de Quilha tantos pares leua # Leua nestas cauernas corenta, e oito braços # Leua proa noue emchimentos # Leua nestes emchimentos uinte duas astes # Leua a popa catorze enchimentos, e piquas # Leua nestas piquas e enchimentos uinte seis areuessados iiij. peças iij. peças ij. peças iij. peças xxiiij. peças Rbiij. peças ix. peças xxij. peças xiiij. peças xxbj. peças 386 APÊNDICE A # Leua na popa nas porquas, e areuessados, e porquete dez paos # Leua seis coraes # Leua húa carlinga # Leua seis palmejares Pinho xxx. peças # Leua nas escoas trinta paos de pinho m a n s o barquais Pinho Lxx. peças # Leua cem apostura de pinho e souoro # Chea e aposturada esta Carauella, assentarão a primeira cuberta em altura de doze palmos [fl. 37] e farão desta maneira, atrauessarão hu cordel sobre a cauerna mestra, na dita altura, e a proa na Roda squiparà esta cuberta três palmos, e a popa o mesmo, e assentarão o dormente, e quando latarem a primeira lata, em que encosta o masto grande andara pêra a proa dous palmos do p r u m o da carlinga, e pêra a popa, farão duas latas fixas, e farão o lugar das bombas, e do masto ate a escotilha do meo, farão cinco palmos de mociço, e logo a escotilha que terá sete palmos em quadrado pêra caber pipa # Leua esta cuberta çincoenta latas Pinho L. peças Pinho xij. peças # Leua doze cordas # Leua dez bonequas; e dez peis de carneiro # Leua dez dormentes Pinho x. taboas # Leua dez taboas nas dragas do contra dormente # Leua doze trinquanis Pinho x. dúzias # Leua nesta cuberta, e escotilhas dez dúzias de taboado # Leua doze carreiras de curuas # Leua quinze antre michas # Leua dous paos nas bercolas da escutilha # Feita esta cuberta uirotarão do meo do nauio pêra a popa, e depois de uirotado, assentarão [fl. 37v] a tolda que uirà de popa ate auante o masto grande três latas e terá d'altura sete palmos Pinho L. peças # Leua çincoenta uirotes Pinho bj. peças # Leua seis dromentes da tolda Pinho xxb. peças # Leua uinte cinco latas # Leua quatro contra dromentes Pinho iiij. peças # Leua seis carreiras de curuas de reues Pinho bj. peças # Leua seis entremichas nestas curuas per respeito da artelharia Pinho biij. peças # Leua oito cordas Pinho xij. peças # Leua doze peis de carneiro por baixo Pinho bj. dúzias # Leua nesta tolda seis dúzias de taboado de pinho brauo # Leua cinco carreiras de curuas de conues Pinho b. peças # Leua cinco antremichas Pinho bj. peças # Leua seis trinquanis Pinho x. taboas # Leua dez taboas nas dragas x. peças bj. peças j. peça bj. peças xxx. peças xx. peças x. peças xij. peças xxiiij. peças xb. peças ij. peças xij. peças x. peças 387 Os NAVIOS DO M A R OCEANO # E feita esta tolda farão a p r o a h ú a tilha q u e terá de comprido uinte palmos e terá a m e s m a altura d a tolda, e sobre ella se assentara a abita # terá esta tilha q u a t r o dromentes Pinho x. peças # Leua dez latas . peças # Leua q u a t r o cordas # Leua q u a t r o curuas de reues d u a s de cada b a n d a [fl. 38] i. peças # Leua q u a t r o trinquanis # Leua sobre a R o d a h u teixel # F a r ã o a p o p a h u chapiteo que terá de c o m p r i d o uinte cinco palmos, e terá sua m a r e a g e m de seis palmos, p o r respeito d a xareta Pinho x. peças # Leua este chapiteo dez latas Pinho j. peça # Leua h ú a corda pello m e o # Leua quatro curuas de reues Pinho iij. peças # Leua três trinquanis Pinho ij. peças # Leua dous contra d r o m e n t e s Pinho iiij. dúzias # Leua q u a t r o dúzias de taboado n o soalhado # Leua esta Carauella h ú a xareta que u e m d a tolda ate a tilha de p r o a Pinho ij. peças # Leua esta xareta d u a s m a d r e s que se assentarão, e m largura de doze palmos p o r respeito d o batel que tantos t e m de largura Pinho xiiij. taboas # Leua esta xareta húa barrotajem sobre estas madres em que leua quarenta, e dous barrotes, que são quatorze taboas Pinho ij. peças # Outra xareta leua que uem do chapiteo ate auante o masto grande que também he de duas madres, por respeito de uirar as uergas, e da bomba [fl. 38v] Pinho x. taboas # Leua nesta segunda xareta trinta barrotes que são dez taboas Pinho ij. peças # Leua esta xareta dous perpaos Pinho iiij. peças # Leua oito forquilhas que são quatro taboas de pinho manso Pinho ij. dúzias # Leua duas dúzias de taboado de frandes nos paueses Pinho iiij. taboas # Leua quatro taboas em perchas Pinho bij. peças # Ho chapiteo leua outra xareta que leua húa madre, e dous perpaos, e duas taboas em barrotes, e duas perchas Pinho xbiij. peças # No conues leua dez mouquarons, e oito perchas pêra a mareagem Pinho iiij. peças # Leua hú cabestrante, e quatro baras # Leua duas papoias Pinho ij. peças # Leua duas cerauiolas # Leua húa Abita # Leua nesta Abita seis curuas iiij. peças iiij. peças j. peça iiij. peças j. peça ij. peças j. peça bj. peças 388 APÊNDICE A Pinho Rbiij. peças # Leua esta Carauella seis carreiras de cintas singellas por cada banda, e a primeira cinta se assentará na Roda em altura de catorze palmos, e no meo tomará o drumente da cuberta, e a popa leuantarà da cuberta hú palmo, [fl. 39] e as outras carreiras, leuarão dous palmos de largura, e a proa, e popa, palmo e meo de hua a outra, leua cada carreira de cintas quatro paos que são corenta e oito Pinho xbiij. dúzias # Leua da primeira cinta ate à quilha dezoito dúzias de taboado de pinho manso Pinho xbj. dúzias # Leua da primeira cinta pêra riba dezaseis dúzias de taboado de pinho manso e brauo com obras mortas, e anteparas Pinho bj. peças # Leua nas mesas cunhos, e trauessões seis taboas mansas Pinho iij. peças # Leua nos pássaros, e amuras três taboas Pinho ij. peças # Leua dez escoteiras que são dous paos Pinho xbiij. peças # Leua sua uaranda sobre o leme em que entrão seis paos, e quatro taboas mansas, e oito brauas # Leua esta Carauella hú leme, que terá daltura vintesete palmos de goa, e no pe cinco de largura, e na cabeça três Pinho ij. peças # Leua este leme dous paos Pinho bj. peças # Leua seis taboas nas trauessas, de pinho manso # Leua seis machos neste leme, e seis fêmeas no codaste [fl. 39v] Conta dos mastos desta Carauella # O masto grande será tão comprido como a quilha da Carauella scilicet doze Rumos de quilha doze braças de masto: terá este masto quacholas, e não calcês, e terá de grossura dous palmos de goa e na garganta a metade # O Masto do traquete terá de comprido dez braças, que são menos duas, que o grande, porque a cuberta leuanta doze palmos, e quatro, que hà de ser mais baixo, que, o grande, são dezaseis que são as duas braças, e terá de grossura as três partes do grande # O Goroupez será tam comprido como o traquete, e terá a mesma grossura # O Masto do Artimão terá de comprido noue braças, e terá de grossura menos dous dedos que o traquete # O Masto da contra terá de comprido cinco braças, e terá de grossura a metade do artimão # O botolò terá de comprido cinco braças, e será tão grosso como o da contra [fl. 40] # A Verga grande terá de comprido dezaseis braças, fora o carro por respeito do uirar que he latina, e terá de grossura a metade do que tem o masto grande # A Verga do traquete terá de comprido sete braças, e de grossura a metade do que tem o traquete Os NAVIOS DO MAR OCEANO Pinho x. peças Pinho iiij. peças FONTE: 389 # A Verga da ceuadeira terá de comprido seis braças, e terá de grossura menos dous dedos que a do traquete # A Verga da mezena que he a do artemão terá de comprido quatorze braças, com o carro, e será tam grossa, no meo como a metade do masto # A Verga da contra terá de comprido oito braças, e de grossura tanto como o masto, no meo # O Mastareo do traquete de proa terá de comprido a metade do que tem o masto do traquete, e o mesmo terá de grossura # A Verga deste mastareo terá de comprido a metade da uerga do traquete, e a grossura será a metade da mesma uerga [fl. 40v] # A Gauea da proa terá de largura por cima a quarta parte da largura da carauella, e no fundo a quarta parte menos da de cima # Leua dez tamburetes com que fecha o masto grande, e o do traquete # Leua quatro taboas mansas com que fecha os outros mastos Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257, fls. 36-40v. PUBLICAÇÃO 1892 - MENDONÇA, Henrique Lopes de, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XVe XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1971, pp. 106-111. 1934 - FONSECA, Henrique Quirino da, A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. Reedição: 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978, vol. I, pp. 239-244. DOCUMENTO A.27 Regimento pêra húa Carauela de doze rumos. Terá de pontal dez palmos, terá de couado a couado noue palmos arepiara ao couado [fl. 24v] meo palmo de uara, de boca terá vinte e outo palmos de goa, de delgado dez palmos, terá a roda de proa dalto polia esquadria vinte e cinco palmos, terá de lançamento vinte palmos. Rodarão com vinte e três, o graminho terá dalto aquillo que acharem no delgado repartido em seis partes, húa será altura do graminho de popa, e repartirão em três partes húa pêra o abatimento da madeira, terá de codaste vinte e cinco palmos medidos polia esquadria e de lançamento outo palmos, e hum terço de palmos, e o gio de largo terá a metade da bocca, as valizas de popa em altura de seis palmos, e recolhera hum palmo pêra dentro, as abobadas quanto tiuerem d'alto tanto lançarão medido sobre o gio. A sinta a proa será pregada em altura de dezouto palmos, e na popa por baixo do gio, a escotilha será feita auante cinco latas do mastro, o esporão terá vinte palmos de comprido, terá dez pares na forma galiuarão, e três por hum ponto, assentarão a cauerna mestra na quilha no meo dos lançamentos repartirão a madeira de maneira, que fique 390 APÊNDICE A almogama afastada do couce de proa três palmos, terá o graminho de proa hum palmo de goa dalto, a quilha terá dalto hum palmo de goa e de groço hum de uara, a popa hum pao - 1 Apostareos 26 paos/ Cauernas 24 picas pêra proa 50 / Arebecado 58 Pes de Carneiro pêra porão 12 / Carlinga húa 1 / Couces dous 2 Peças de roda 2 / Peça de quilha 4 / Codaste 1 / Porcas 5 / Os carros de bombas 2 / Gio 1 / Sobrequilha 8 / Dormentes 25 / Enchimentos de proa 13 / Astes pêra elles 26 / Abita 1 / Aposturas 1020 / Cabrestante 1 / Contradormentes 30 / Curuas do conues e raues 100 / São todos estes paos de sobro de que faz soma 1440 / Madeira de pinho para o leme 2 / Virotes pêra popa e proa 93 / Latas e cordas 120 / Pès de carneiro 64. Soma esta madeira de pinho 279 paos / As taboas pêra o fundo 16 dúzias. Pêra adragas, e coceiras 5 dúzias / Tàboas pêra as alcaxas 30 dúzias / A se mister de taboas 51 dúzias. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.24-24v. PUBLICAÇÃO 1934 - FONSECA, Henrique Quirino da, A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. Reedição: 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978, vol. I, p. 271. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 57-58. DOCUMENTO A.28 Conta e medida pêra húa Carauela onze rumos desquadria a esquadria. Terá a roda de proa vinte e hum palmo atè o escoues, e dahy pêra ribera terá quatro palmos, e terá de lançamento dezasete palmos, terá o codaste vinte e dous palmos, terá sete palmos e meo de lançamento, terá noue palmos de gio, quando tirarem as formas no chão em altura de vinte e hum palmo medidos pella esquadria dareis de bocca na forma vinte e cinco palmos rodarão o braço e a cauerna, e apostura com a altura que tiuer do couado a maior largura que he adonde refere os vinte e cinco palmos, arepiara o couado hum terço daltura da madeira, e virá o rol referindo pellos pontos os quaes vem a saber os vinte e cinco palmos, e os vinte e quatro he o arepiamento do couado, ficará a forma perfeita na primeira cuberta terá vinte e quatro palmos, de largura terá outo palmos de couado a couado, terá de pontal noue palmos, terá a segunda cuberta seis palmos dalto repartirão a forma que tiuer do couado a quilha em quatro partes tomarão húa delias pêra compartir a madeira, e porão dez pontos na forma galiuarão vinte Cauernas três por hu ponto quando quizeres assentar a Cauerna mestra farás o meo a quilha, e botaras três palmos pêra proa, e ahi assentarás a Cauerna mestra, e hua dum ponto a re, e outra auante a grossura da madeira será de dous terços de palmo darás despalhamento pêra re, e pêra auante de modo que quando chegares as almogamas que fique a ponta do braço por fora da forma, e isto dua banda, e da outra, o graminho de popa terá dalto duas alturas de madeira poreis nelle des pontos multiplicando debaixo pêra riba, o graminho de proa terá húa altura da madeira compartirão nelle outros dez pontos compartidos pello modo de popa, tem de delgado noue pontos digo palmos atee onde ha de assentar o pee manco quando quizerdes fazer o pee manco galiuarão pella forma do braço virando o couado pêra cima a primeira sinta pregará na roda de proa, em altura de quinze palmos medidos Os NAVIOS DO MAR OCEANO 391 polia roda, e daly [fl. 16v] pêra riba meterão seis sintas que he atee aonde está o ponto de vinte e hum palmo, terá a sinta meo palmo de largo, e hum terço de groço, e no meo em altura de noue palmos, e na popa em altura de dezaseis palmos esforçados, abobada de popa terá dalto sete palmos, e de lançamento seis palmos, a valiza que vay assentar sobre o gio em altura dos sete palmos caye pêra dentro palmo e meo por banda, a escotilha grande que vay auante do mastro na primeira cuberta medindo do pee do mastro pêra proa outo palmos terá de fixo sete palmos e meo pêra a bocca da escotilha terá de largo cinco palmos na cuberta de sima medindo do pee do masto três palmos, e ahy assentarão a lata que fique o prumo com a escotilha de baixo, e lembro que a Carlinga do masto será assentada no meo da quilha, e quando fizerem a casa do mastro aprumarão na primeira cuberta de maneira que fique a grossura do mastro toda pêra a proa, e na cuberta de cima aprumando com o prumo de baixo cairá o mastro quatro palmos pêra proa na altura das duas cubertas, o mastro da mizena medirão quanto tem de Carlinga do mastro grande pêra popa repartirão em duas partes, e ahy assentarão a carlinga da mezena. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.16-16v. PUBLICAÇÃO 1934-FONSECA, Henrique Quirino da, A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. Reedição: 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978, vol. I, pp. 270-271. 1995-BRANCO, José Nogueira Rodrigues, A caravela de onze rumos do Livro de Traças da [sic] Carpintaria, sep. de 6.as Jornadas Técnicas de Engenharia Naval. A Indústria Naval Portuguesa no Contexto Europeu - Passado, Presente e Perspectivas Futuras, s.l. [Lisboa], p. 1.37. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 46-47. DOCUMENTO A.29 Medidas das Carauelas antigoas meãs § terão de comprimento de quilha doze rumos de escoadria a Escoadria, § terão d altura de roda vinte cinco palmos de guoa, § terá esta roda de lançamento vinte e hú palmo que he muito boa conta, § terá d altura de Codaste vinte quatro palmos. E terá este codaste de lançamento sete palmos, § terá de largura em boqua trinta palmos de goa, § terá de fundo de couodo a couodo noue palmos de goa, § terá de pontal em húa só cuberta que a de ter treze palmos por respeito d artilharia e dos mantimentos que ha de leuar, § terá de gio dezaseis palmos de Goa, § e terá de Ragel doze palmos que he o delgado, § terá esta Carauela sua tolda que virá de popa ate auante o masto duas latas pêra o fechar, e dahi pêra proa auera xareta de duas madres pêra o virar da verga, 392 APÊNDICE A § e sobre a tolda auera mareagem de sete palmos com sua xareta que vira ate o pee do masto, [fl. 41v] § e terá hum chapiteo pequeno quanto agasalhe o capitão e sua varanda, § terá esporão e seu peixol, e o esporão será de vinte e hu palmo de comprido, § terá sua abita, que leuante da Cuberta quatro palmos com suas curuas, e nela fechara o goroupez. § Na cuberta auera húa só escotilha por onde caiba pipa, e hum escotilhão a popa pêra o payol, § e será esta cuberta emcuruada de Conues com noue carrejras de Curuas amtremichadas e dez carrejras de Curuas de reues pêra fortaleza d artilharia e por baixo hua só andaina de pes de Carneiro e terá Cem dromentes e trinquanis de souro, § A tolda terá latas jnteiras emcuruadas de reues com cinco Curuas por banda e outras tantas de Conues e os trinquanis e dromentes serão de pinho pêra leues. § A madejra da liazão será d altura e grossura de hum couto pêra serem nauios ligeiros com suas Esquoas de tauoas leues e seu palmejar, e corais, e carlinga. § O tauoado do fundo será de grossura de três dedos do mais comprido e largo que se puder e o dalcaixa menos, [fl. 42] § todas as Cintas que leuar serão singelas e terão hú couto de largo e quatro dedos de grossura, § terão na cuberta quatro portinholas por cada banda e duas a popa, scilicet duas a proa junto d abita, e duas auante o masto que não faza nojo a barqua nem ao fogão, e duas a re do masto, e duas na coadra, e sobre a tolda, auera quatro portinholas duas auante do cabestrante e duas a Re, § terá seu cabestrante, papoyas, leme, escotejras, cana e pinzão, e terá suas mezas de Carauela, e o leme terá sete malhos em todos os perpaos e pauezaduras. § O masto grande pêra ser comprido terá doze brazas, e o traquete dez brazas, e o masto mezena noue brazas, e a contra, sete, e o goroupez do tamanho do traquete. § A Vergua grande terá quinze brazas e a do traquete oito brazas e da seuadeira seis brazas, e mea, e a Vergua da mezena doze brazas, e a de contra oito brazas, § Pregaduras conformes. FONTE: Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257, fls. 41-42. PUBLICAÇÃO 1892 - MENDONÇA, Henrique Lopes de, Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XVe XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1971, pp. 112-113. 1934-FONSECA, Henrique Quirino da, A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. Reedição: 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978, vol. I, pp. 245-246. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 393 DOCUMENTO A.30 Regimento pêra húa galé Real Terá de comprido medidos nas pontas das rodas 64 goas, e por baixo por esquadria de couse a couse cincoenta e duas e mea. Terá de bocca na maior largura a sinta vinte e hum palmos esforçados, e no pontaual uinte e dous sair se hão fora da esquadria conforme estão nos modelos. Quando quizerem assentar as almogamas sobre a quilha medirão de proa da ponta da roda outo goas, e ahy porão almgama (sic) Quando assentarem almogama de popa medirão da ponta da roda de popa doze goas e mea e ahy a porão, e depois pêra por a Cauerna mestra repartirão o que ouuer dhúa almogama a outra em duas partes, e po Ia hão no meo delias, [fl. 47] Estas rodas seruem pêra esta galé real, e pêra mais se quizerem, que he de vinte sete bancos atee trinta, será de popa redonda. Terá esta roda de proa d'altura doze palmos medidos pella esquadria conforme está no modelo, e terá a sinta pregada em altura de outo palmos e meo, e para baixo. Terá de lançamento dezouto palmos quando quizerem rodar esta roda porão hum ponto em altura de outo palmos, e na ponta da roda porão outro ponto afastado da esquadria pêra fora dous palmos assy farão de maneira com o rol que irão demandar o lançamento e referindo pellos dous pontos, e depois de o rol estar certo nestes três pontos rodarão a roda, e ficará perfeita conforme esta no modelo. Esta he a roda de popa pêra a mesma gale, tem dalto pella esquadria dezouto palmos conforme mostra no modelo, e o que aqui sobeja pêra cima d'altura depois se cortara porque se for necessário subir pêra cima algúa cousa achar por onde. Terá o arrebessado da roda de popa assentado em altura de noue palmos, e quando quizerem abrir os alifrizes deixar lhe hão resguardo, porque se quizerem aleuantar as armadouras ou abaixar que tenhão lugar pêra o poder fazer. Terá de lançamento dezouto palmos assertarão o rol no lançamento, e na altura de catorze palmos, e depois de o rol certo nos pontos rodarão com elle daly pêra cima irão pella esquadria e sendo caso que a roda fique muito seca, será rodada com dous róis, farão húa mea lua do canto da esquadria pêra dentro em altura de outo palmos esforçados, e farão o meo a esta mea lua, e virão com o primeiro rol [fl. 47v] do lançamento ao ponto que está na traça da mea lua, e daly pêra cima outro rol mais pequeno acertando de maneira que vã demandar altura dos quinze palmos que estão na esquadria, e o ponto do primeiro rol, e assy rodarão de modo que não fique mole antre hum rol e outro, a roda de proa farão o mesmo, a mea lua que lhe fizerem será de seis palmos esforçados que assy acharão nos modelos as contas, e os pontos dos róis estão nos modelos com que forão rodados. 394 APÊNDICE A Nesta gale Real terá assentada a primeira pianha de popa do Jò pêra vante cinco palmos, e da pianha ao primeiro banco outros cinco palmos, e os bancos dhú ao outro terão de vão quatro palmos e meo. Terá o primeiro escalmo de popa a noue palmos medidos da face do Jò d'ante rè pêra proa. Terá a corda assentada afastada da coxia seis palmos e meo. Regimento dos escotilhões da banda sinestra. Terá o primeiro escotilhão da Camará do Capitão a rè do primeiro banco de popa. Ha cinco bancos da mesma banda outro escotilhão que serue também pêra camará do Capitão aos dez bancos da mesma banda outro escotilhão que he do paiol do pão. Aos dezasete bancos da mesma banda outro escotilhão da camará do meo que caiba hua bota no [fl. 48] qual se cortara hu condelate que serue pêra as velas, e a massames da gale. Aos vinte e três bancos da própria banda, outro escotilhão pequeno sem cortar lata pêra amarra sair por elle que está na camará de proa. Regimento pêra os escotilhões da banda dereita. Terá o primeiro escotilhão uindo de popa aos sete bancos que he o do escandalar que serue das armas. Aos catorze bancos outro escotilhão da mesma banda que caiba hua bota que he o da despenca do vinho, e se cortará hum condelate, e farão o escotilhão grande rente com a cuberta leuadiço com hum pequeno meo que caiba hum homem folgadamente. Da própria banda outro escotilhão aos vinte e dous bancos pequenos que caiba amarra pequenino que se não corte latão. Da própria banda a vinte e cinco bancos outro escotilhão que se chama camará de proa que serue d emxarsea, e artelheiros. [fl. 48v] Regimento pêra as batalholas e batalholetas desta galé Real. Terá a batalhola metida na postiça de altura de dous palmos, terá embaixo a postiça de largo a própria grossura da postiça, e em cima hú palmo de goa, e terá duas barbetas pêra os filares dú quarto de palmo abertas pêra os filaretes assentarem terá de grosso hum quarto de palmo escaco, terá outra batalhola grande pella banda de dentro emcostada a outra da postiça metida com o pee num cochinete, que vay pregado por cima das raiolas d'encontro na postiça terá d'alto quatro palmos e meo de goa do cochinete pêra cima terá hua barbeta em que emcaixe o filar terá de grosso hu quarto de palmo, terá duas aldra-bilhas que fechem na batalhola da postiça hua com a outra e que não vão pêra proa, nem pêra popa, nem pêra dentro, terá outra batalhola em cima da grande pella banda de fora metida em húas guardafolhas de ferro que estão pregadas na batalhola que he pêra acalhonar a tenda asima, e será delgada conforme estão ellas no modelo, terá de comprido seis palmos embaraçará hua por outra dous palmos a cada dous remos hua batalhola, e serão postas antre escalmo e escalmo. Os NAVIOS DO M A R OCEANO 395 Regimento pêra o masto desta galé Real. Tem hum masto de comprimento trinta goas, e de grosso dous palmos de goa esforçados repartidas a palha em cinco partes demenuirão de maneira que quando chegarem a arganta fique das cinco partes três botando duas fora outauarão a palha em sete compassos ainda que pello quinto, e a sua regra, mas dão lhe este resguardo por respeito da ferramenta que come as linhas, [fl. 49] Terá o Calses da cabeça húa goa esforçada, terá de grosso hú palmo, e hú terço esforçado, e de campo pêra as rodas palmo e meo de goa com suas rodas de bronso. Tem húa entena dua galé real trinta e húa goas, e daly se ha de tirar seis goas pêra embaraçar que da ostaga pêra a pena ficão vinte e cinco goas fora o espigão postiço, que será de quatro braças, e o carro terá de comprido ao todo vinte e noue goas, e daly tirarão seis goas pêra embaraçar de lamina a pena atè ostaga terá esta entena depois d'embaraçada corenta e outo goas fora o espicão terá a palha de grosso na ostagadura palmo e meo de goa esforçado será a palha repartida pella a metade deminuindo pêra a pena de modo que quando chegarem a ponta ficará a metade da palha como tenho dito outauarão pello modo do masto, farão as braças de duas goas, e pêra o carro virão correndo com a palha conforme acharem as brasas no pao o masto traquete tem de comprido aquillo que elle tem do masto grande atè a ponta da roda, terá de grosso na bancaça no mixilhar palmo e meo de grosso será repartida a palha pello modo do grande, tem a uerga do traquete de pena trinta goas ao todo, tem o carro dezasete goas de todo este comprimento tirarão dez goas de todo este comprimento tirarão dez goas [sic] pêra embaraçar cinco de cada húa tem de grosso na ostaga hú palmo e dous dedos esforçados Tem o leme dúa galé de grosso pella banda de roda hum quarto de palmo esforçado, e por fora dous terços de palmo. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.46v-49. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 87-90. DOCUMENTO A.31 Regimento de húa galle de vinte e quatro remos 1. Primeiramente terá onze palmos de fundo de couado a couado. 1 Terá corenta e quatro, e pares, e se quizerem meter mais algúa de hum ponto bem pode 2 Terá de bocca a sinta vinte e hum palmos de goa. 396 APÊNDICE A 3. Terá de comprido por cima da roda cincoenta e noue goas. e sendo maior cada banco que tiuer terá mais duas goas. 4. Tem de alto no meo seis palmos quando tirares a forma do braço mascarás o trasso no chão a sinta nos ditos seis palmos, e donde marcarem à sinta sairá a forma da esquadria, e quando quizerem pregar a sinta cordearão pello meo terão seis palmos tomarão a altura da sobrequilha ficara sinta pêra baixo do ponto que marcarem. 5. Quando tirarem as formas no chão naltura do pontaual pello canto de sima, terá a sinta vinte e hum palmos, e nelles tirarão o braço na esquadria no pontaual, terá de alto no meo e na maior bocca da sinta ao canto da pontaual por cima hum palmo a popa porão a sinta de maneira que fique do canto da sinta ao canto do dragante, também por cima húa goa não será emtalhado no liame o pontaual, e o contrapontaual por dentro. 6. Lembro outra uez que as postiças serão muito dereitas de húa banda, e da outra tanto a proa como a popa, e assy no meo os trinta e três palmos ditos de postiça a postiça de goa. Se quizerem tozar o canto de pontaual por cima pella sinta o tozarão com húa sartarelha tomarão quanto tem dalto o pontaual a popa, e quanto tem a proa tudo o que sobeja a proa da da [sic] altura da popa o que ficão repartirão em partes que quizerem, e quantas partes repartirem tantos pontos porão na saltarelha, e irão de proa multiplicando pêra popa ou [fl. 26v] ou de popa demenuindo pêra proa, e como tiuerem isto feito cordearão e prepararão de maneira que fique bem. Terá a roda de proa d'alto a ponta da roda quando tirarem a forma, onze palmos, e quando marcarem a sinta farão de feição que não fique muito alta, a proa ficará em altura de outo palmos pêra baixo, e quando fizerem a forma na esquadria botará a roda fora da esquadria, e quando quizerem pregar a cinta no liame cordearão de proa a popa, e no meo n'altura que ha de ficar, e ficará a sinta pregada na roda húa goa de sobre o canto da sinta ao Canto do dragante, também por cima a proa na roda quando cordearem ficara pregando dos outo pêra baixo quando parecer bem que não fique floreando muito, ainda que esta forma da sinta marcada em outo palmos abaixarão des que estiuerem armada quanto parecer pêra o remar e Nauegar de modo que não fique alta a proa. A roda de popa terá dalto a esquadria dezasete palmos, a ponta da roda, e não terá mais depois que estiuer assentado o dragante que terá de alto hum palmo e quarto, e sempre seja antes menos que mais dos 17 pêra que também fique alterosa. 6. Será a forma da Cauerna repartida em cinco partes de couado a couado, três pêra repartir a madeira. 7. Repartirão nestas três da forma como tenho dito 43 pares, galiuarão duas de hum ponto, húa pêra proa, e outra pêra popa, e quantas goas tiuer d'esquadria a esquadria tantos pares terás, e lembro que se tiuer menos pontos na forma contarão as goas, que lanção as rodas d'esquadria, tantos pares terás, e lembro que se tiuer menos pontos na forma contarão as goas, que lanção as rodas d'esquadria, e outros tantos pontos porão na forma, e querendo que no meo fique mayor bojo darão quatro de hum ponto. 8. Terá no graminho de popa, 29 pontos, e o de proa 24 todos os mais de popa e proa galiuarão sem pontos. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 397 9. Pêra saber onde hão de assentar a Cauerna mestra repartirão a galé em cinco partes por sima onde vay a sinta, e darão duas, e dous terços a rè da Cauerna mestra pêra popa e auante duas, e hú terço pêra proa. [fl. 27] Pêra por a carlinga em seu lugar repartirão o comprimento da galle por sima em cinco partes, e três partes a rè e duas auante, terá aberto o pè do masto, terá o masto sua telha, que chegue a emmechar ao tamborete dante auante, e será o mastro outauado do tamborete pêra baixo. 11. Tosara a quilha pêra baixo quando assentarem sobre as estacas dous palmos de goa, ou o que parecer melhor, porque sempre halquebra, e melhor he tozar que perder quando repartirem a madeira na quilha terá de vão hum palmo redondo. 12. Terá almogama da popa assentada doze goas e mea, e a de proa ou to, estas medidas se entende da ponta da roda, e quando quizerem pregar as armadouras de popa prepararão hum cordel que refira aos couados por três ou quatro couados, e adonde disser na roda ahy porão armadoura, e da mesma maneira farão na proa do modo que preparem com as do fundo porão as escoras de duas em duas quando empezarem, quando pregarem as armadouras será hum palmo abaixo da sinta. 13. As armadouras armarão pêra fora como pedir o costado, e farão de maneira que arme tanta de húa banda como da outra, a popa farás o mesmo po Ias hão ao liuel huas com outras nos traueções que lhe puzerem de húa armadoura a outra, empezerão e aprumarão de maneira que não caia mais dúa banda que da outra. 14 Terá o dragante no meo dalto hum palmo e meo de goa, e nas pontas terá dous terços de palmo de vara. 15. Terá de cobre a sinta ao canto do do [sic] dargante polia banda de sima hua goa pouco mais ou menos no joo dous palmos, e no meo palmo e meo, e na proa hum palmo esforçado. 16. 16. Terá o dragante de ponta a ponta treze palmos, e de goa, e de groço meo palmo de goa esforçado. 17. Meterão os latõis entre o jò e o dragante quantos forem necessários, a saber estes latões assentarão na popa, e serão embebidas no pontaual. [fl. 27v] 18 Terá o pontaual por dentro que responda com o canto do de fora, e não será emtalhado por amor dos em talhos das condelatas. 19. Terá quatro taboas de groçura de hum terço de palmo emcarreiradas por a banda emtalhadas nos liames dhua taboa a outra terá hum palmo de goa dalcaxa, e outras tantas pella banda de dentro em dereito das de fora emtalhadas nos liames. 20. Assentarão as bancasas que atreueção do bordo a bordo debaixo da cuberta como vãos pêra a fortificar, e serão amalhetadas sobre a taboa que está emtalhada por dentro no liame a primeira que está abaixo da contra sinta, e serão emcuruadas de húa banda e da outra do mastro pêra re serão assentadas mais altas. 398 APÊNDICE A 21. A primeira bancaça será assentada a prumo com a lata que esta a prumo com a pia do mastro polia banda dante auante, embebera a telha na dita lata, esta bancaça embebera sobre a contra sinta. 22. Terá outra a re pêra a queda do mastro de hua a outra quinze palmos de goa, a lata fechara de bordo da queda do mastro terá do banco pêra re três ou quatro palmos mães, e de sobrebanco, a lata farão hum albasus com taboas tapado, e calefetado que não ua ágoa abaixo ao paiol que estão do banco pêra re, esta banca entalhara sobre o canto da taboa entalhada que esta abaixo da contra sinta. 23. Da banca donde emcosta o mastro pêra proa, a segunda bancaça terá quinze palmos, e a terceira outro tanto, e farão de maneira que a bancaça de proa ficara assentada por a banda dante a re dos momonetes emmalhetando pêra elles, assentarão mais abaixo outra bancaça pêra ajudar a fortificar os momonetes. [fl. 28] 24. Da bancaça que está a rè assentada em dereito na queda do mastro, a segunda terá dezaseis palmos, a terceira bancaça estará assentada a quatro goas e mea, e a quarta bancaça a quatro goas, e a quinta bancaça do escandalar terá duas goas, e hum palmo, e a de re de todo estará assentada a duas goas e mea, estas bancaças assentadas mais hum palmo não releua, repartirão estas bancaças de maneira que fique assentadas em dereito dos escutilhões por respeito de ficar a galé forte, e juntamente pêra terem as Camarás boa seruentia. 26. Quando fizerem a forma da lata, terá de tozamento hum palmo de goa esforçado a Condelata terá o mesmo no mais baixo do pontaual pêra fora a face da tapieira por a banda de dentro. 27. Pêra deixarem aberto as latas que não vão de bordo a bordo pêra a queda do mastro tomarão da lata adonde assenta a telha até adonde esta o jò repartirão em cinco partes, tomarão húa pêra deixar aberto em que não chegue as latas de bordo a bordo pêra queda do mastro deixarão mais hum palmo ou dous que mais vai que fique mães que menos. 28. Quando galiuarem as duas Condelatas de hum ponto na maior boca da gale, terá do Cote pêra fora a condelata hum palmo de goa, e de arepiamento hum palmo, e hú quarto como tem a lata do tozamento 29. Ha mister cincoenta e seis condelatas de jò a jò no meo na maior largura terá duas condelatas de hum ponto, e hua pêra auante, e outra pêra re, e repartirão trinta hu condelatas do primeiro ponto pêra re ate o jo, e pêra auante vinte e cinco, e farão de maneira que fique os vãos tamanhos huns como os outros e se for necessário despois dos jos marcados querendo meter mais algúas pêra auante, ou pêra rè fazendo de maneira que fique dous palmos de uão de húa a outra meterão antre condelata, e condelata húa lata morta. 30. Terá do dragante ao jò de popa dezasete palmos de goa, e se lhe parecer dar se lhe a mais, e será melhor [fl 28v] auante terá o Jò da roda pêra re assentado a quinze palmos sobre a cuberta. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 399 31. A roda de proa terão a esquadria pêra cima mais alta que a quilha quanta for pêra a ponta da roda irão redondo de maneira que na ponta da roda terá hum palmo de uara antes mais que menos e se puder ser farão a roda e coral tudo de hum pao que he muito boa obra. 32. Terá a saltarelha de popa hú palmo e quarto de goa esforçado. 33. A de proa terá hú palmo e meo escaco, se parecer bem ser mais baixa a proa. 34. Terá a coxia dalto no meo três palmos e quarto, e como tiuerem assentadas as taboas da coxia medirão de sobre a cuberta os três palmos, e hum quarto de goa. 35. E terá de largo a Coxia a proa a face de fora três palmos de goa, e três quartos, e a popa terá três palmos de largo. 36. Meterão os bancos na Coxia do canto pêra baixo hum quarto, darão a linha do canto abaixo,ficaráo banco da linha pêra baixo. 37. Terão os bancos de comprido outo palmos de vara. 38. Terá a popa de largo ao dragante a face de corda, a face de fora onze palmos de goa auante ao jo a face da corda em que armão, a popa terá dezaseis palmos e meo, farão da maneira quefiqueda corda apostiça vão pêra a escada. 39. Terá vinte e quatro bancos por banda, e remará menos dous, no lugar do fogão e esquife. [fl. 29] 40. E acabando mais bancos neste comprimento de toda a gale mete los hão. 41. Assentarão as cordas sobre as latas pêra assentar os pès dos bancos afastadas da coxia quatro palmos e meo a face da corda por dentro. 42. Terão os bancos de uão de hum a outro cinco palmos de goa, quando os repartirem tomarão o vão pella postiça, e pella coxia. 43. Quando marearem o primeiro escalimo, a popa terá do Jò cinco palmos pêra vante, e do emcontro do tolete d'ante auante, a face do segundo dante auante, terá outros cinco, e assy darão aos mais. 44. Ficarão os bancos assentados na coxia ao liuel dous dedos abaixo da postiça pêra cima, e pêra fazer isto bem darão hua linha pella apostiça os dous dedos no meo, quando embancarem porão hu cordel pregado na linha de postissa, e assentarão o banco, que despois que estiuer metido na Coxia ficará o cordel pella face do banco nas cabeças em que fique cordeando por cima da postiça, não perderá porque ficão os bacalhares mães dereitos que no meo, e por tanto em que embanque pella apostiça por cima não releua, darão a linha de maneira que quando alinharem sobre apostiça nas cabeças como tenho dito. 400 APÊNDICE A 45. Terá a tapieira assentada no bacalhar hum palmo do costado pêra fora afastada da tapieira para fora o dito palmo antes mães que menos pêra ficar o bacalhar mais fora, isto farão nas primeiras duas condelatas de hum ponto. 46. Para fazer a viajem ao banco tomarão quanto tem de comprido repartido em três partes húa darão de viajem de sconço pêra proa desta maneira farão quando os assentarem pêra que fique cinco palmos de uão como acima digo, e ficarão os cantos dos bancos d'ante auante reinando com os escalmos pêra auante. [fl. 29v] Porão as peanhas embebidas na Coxia com os bancos, repartirão a coxia em duas partes da face de banco de cima da linha donde embebe o dito banco, a cuberta nas duas partes, darão outra linha no meo ficará também a grossura de linha para baixo como o banco. A cuberta darão outra linha no meo ficará a remicha da linha pêra baixo também. 27. Terá a postiça de groço hum palmo redondo, e húa polegada mais. 28. Terá desporão vinte e três palmos de goa atè vinte e quatro, se parecer bem terá a madre a roda hum palmo de goa em quadrado. 29 Terá duas sobre sintas, a popa que assente d'emcontro no dragante pêra baixo com seus cachorros antre a sinta, e os ditos terão húa corda por o meo, terá hua corda por baixo das latas de popa atee a queda do mastro, e outra de proa, atè o pee do mastro, e do pee do masto atee a queda terá hua em cada banda, estas cordas das bandas, virão as latas Condelatas emmalhetar nellas deixando as mais compridas que a largura da Coxia, toda a grosura do mexilhar, e despois dos mexilhares assentado assy de húa banda como da outra, meterão os seus pès de Carneiro por banda os que lhe forem necessários. 50. Do mastro pêra rè nos mexilhares abrirão três rodas em cada hú mixilhar pêra as betas de aruorar a verga. 51. Assentarão o fogão contando vinte duas condelatas do Jò de popa a face do dito fogão polia banda dante rè dahy para uante o assentarão, de maneira que não empache os remos que han de remar a par delle, o qual será da banda de sinestra, e a mão dereita o lugar do esquife em dereito do fogão. 52. Quando fizerem o emtabolamento a proa será sobre quatro bacalhares atee a tapieira, e dencontro na Coxia por amor de dos falcões. [fl. 30] 53. Sobre este emtabolamento, e quatro bacalhares, porão húa batalhola auante, e outra a re pêra emcosto da rombadeta, e farão seus buracos pêra as necessárias, a popa farão o emtabolamento pello mesmo comprimento, e o melhor que parecer. 54. Repartirão a uoga pella postiça meterão o primeiro remo a hua goa do jo pêra vante, e deste escalmo para uante irão repartindo os mais de cinco em cinco palmos. 55. Despois que tomarem o bacalhar no meo na conta que ha de ter de postiça a postiça, e o que tiuer este terão os mais de uante a re. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 401 56. Assentarão os memonetes que fique de largo pelas faces de fora, a largura da Coxia embeberão as taboas nos mamonetes, de groço palmo e meo de uara em quadra far lhe hão seu pescoço como compre para a compridão ficara asima da Coxia o que parecer bem. 57. Despois que tiuerem postos os bacalhares do meo assentados sobre a tapieira em sua conta tomarão quanto tem d'encontro da postiça, a coxia tanto terá auante como a re, e ficará a postiça dereita. 58. A popa terá hum mamonete de húa banda, e outra, da outra assenta los hão sobre a tapieira com hum Caruatão por habitar o cabo do esquife, ou o que quizerem. 59. Terá a proa quatro mamonetes pequenos, e será leuadiços pêra habitar amarra dous de hua banda e dous da outra. 60. Serão assentadas as armadouras as debaixo dereitas por cordel pella face de fora, e pello canto assy faram a rè, e bem pode tozar os debaixos hu tamanino, que não renderá nada pêra fora, pollo canto serão dereitas por cordel, depois as que forem postas, e serão todas muito bem escoradas, empezarão o fundo de hua banda, e da outra. [fl. 30v] 61. Pregarão armadoura hum palmo abaixo donde han de assentar a sinta de proa a popa terá almogama de alto a sinta noue palmos, a proa sete e meo, por estes pontos tozando de maneira com que fique bem. 62. Armadoura quando a quizerem pregar no meo em altura de cinco palmos de goa, ao liuel com a cauerna a banda debaixo, e hum palmo queficada armadoura pêra cima, a face da sinta vem a ser os seis palmos conforme se ha de tirar a forma no chão na esquadria, Lembro que quando escordearem esta armadoura e sintas porão a o liuel com a quilha. 63. Pêra fazer esta conta, atreuessarão húa regoa por cima da quilha, e marcarão os ditos palmos pollo canto debaixo da regoa. 64. Almogama de popa terá assentada armadoura mais alta hum palmo que no meo. 65. A proa n'almogama terá sete palmos e meo d'altura. 66. As armadouras de cima, botarão debaixo pêra fora três ou quatro dedos conforme pedir a costa, e de como uem de proa tozarão pêra baixo, e pêra fazer esta conta, porão hum cordel a re pregado na roda auante d'almogama quatro ou cinco cauernas, e escamarão armadoura nesta que vem no meo, e pello cordel tosará pêra fora, e para baixo o melhor que parecer pêra bem da obra, o mesmo farão a popa. 67. Despois de tudo isto feito porão seus traueções de húa armadoura a outra ao liuel tomarão o meo de trauesão, e aprumarão ao meo da quilha quefiquetanto de húa banda como da outra. 68. A proa terá o Jò d'alto dous palmos adonde assenta a postiça medidos pella cuberta para cima, porão estes dous palmos o ponto nos momonetes. [fl.31] 402 APÊNDICE A 69. A popa ficará hú palmo e meo de cuberta ao liuel onde assenta a postiça. 70. No meo assentarão o primeiro bacalhar ficará apostiça ao liuel três dedos do conto da coxia pêra baixo, e pêra isso quando tomarem a forma do primeiro bacalhar darão resguardo pêra que fique como digo. 71. Como tiuerem o bacalhar tomado no meo, e os jòs cordearão e porão, e avalizarão a quartéis pêra os bacalhares. 72. Como tiuerem as armadouras postas prepararão hum cordel a re dalmogamas quatro ou cinco braços, e a popa porão húa valiza pregada no lugar do dragante terá esta valiza da face da roda ao cordel de cada banda, hum palmo e quarto, ou terço se quizerem, alarguem mais, e pregarão hú cordel sobre o canto desta valiza no tamanho que tenho dito acima, e prepararão todas as astes nas pontas pello cordel porão as picas, a popa porão hum cordel de húa banda e da outra, na roda auante duas ou três Cauernas antre a quilha e armadoura, tomarão hú esgarauote de abrir mais, e correrão com elle, por todos os emchimentos, porão ao cordel onde disserem o esgarauote hum ponto, e outro, ao liuel com a quilha, e ao ponto da armadoura pêra correr estes pontos por todos os emchimentos para serem bem feitos pella forma da Cauerna serão galiuados para fazer este galiuamento, virarão a forma com couado pêra baixo, e recorrerão a forma de maneira que tome os pontos todos três prepararão da maneira que fique mais pêra a cabeça, e os pontos mais dereitos. 73. Para deixar dalto do assento da quilha adonde assentão palmejar, a re de tudo terá altura que parecer bem, e tomarão quanto tem d'alto almogama mais derradeira, a pica da rè de todo, e que fique mais d'altura dalmogama farão húa saltarelha, e tantas picas tíuer emchimentos tantos pontos porão na saltarelha, e irão demenuindo pêra popa altura das picas pêra assentar a palmejar a popa pêra proa farão da mesma maneira, e farão mosiço antrepica e pica com meter hú chaço. [fl. 31v] 74. Terá vinte e outo batalholas repartidas antre escalmo e escalmo, de maneira que não estroue ao remar ficarão dous palmos no uão da batalhola e a batalhola, terá daltura as grandes de sobre apostiça quatro palmos a face do filarete pêra sima, e as pequenas d'alto pello canto de cima em que tenha mais ficará melhor. 75. Altura que tem almogama mães que adere farão húa saltarelha pêra ir pondo pêra tozar. 76. Conforme a quilha quando repregarem o costado seja a pregaria reuitada toda. Serão os mamonetes assentados na derradeira condelata de proa em costados e malhetados dous dedos dante a re da lata. 77. Farão hum alijis nos mamonetes embebidas as taboas da coxia. 78. Tomarão a bocca da gale onde tiuer maior largura, e reparti Ia hão em três partes, tomarão húa bota Ia hão da tapieira pêra fora que serão cinco palmos e meo a prumo com apostiça, e isto bota fora o bacalhar e condelata do costado para fora de cada banda. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 403 79. O bacalhar terá fora de tapieira quatro palmos esforçados, a esquadria, e farão de maneira que fique dal to da tapieira três quartos de palmo esforçados, e ao emcontro dous quartos de palmo esforçados. 80. Terá a tapieira hum palmo de largo de goa depois de assentada, a qual farão de duas peças a primeira de cima terá dous terços, entalhará sobre as condelatas que chegue ao canto debaixo, terá húa peça de hum terço pregada com pregos de reuite. [fl. 32] Memória das escotilhas 81. Terá o escotilhão do escandalar a catorze condelatas do Jo de popa, terá de largo quanto caiba hú homem e será dereita pêra recolher cousas dos esforçados. 82. Terá hú escotilhão na popa pêra a camará do Capitão da banda sinestra, será do jo pêra dentro sendo gale ordinária, e sendo grande será do jo pêra auante. Terá hum escotilhão pêra o paior a vinte e duas condelatas da banda de sinestra 83. Terá outra escotilha da Camará de proa a dez condelatas do jò de proa da banda dereita 84. Farão a escutilhão da Camará, que he o da despenca do pão a vinte e duas condelatas do jò de popa da banda sinestra das vinte e duas para re, ficará o do vinho pêra avante das vinte e duas ficará o d'ágoa. Terá húa escotilha a rè do masto duas latas da banda sinestra da largura que caiba húa pipa, e todos estes escotilhões, serão repartidos da maneira que não empache o remo. [fl. 32v] Rodas da gale vinte e quatro bancos Esta roda he de popa tem dalto dezasete palmos, e quando fizerem esta roda ou forma farão [fl. 33] farão de maneira que fique do cote pêra riba altura do dragante ha de ter d'alto hum palmo, e dous dedos antes mais que menos, terá hum traço a treze palmos de alto pêra pregar a sinta dali pêra baixo terá de lançamento dezasete palmos, e querendo fazer esta gale de popa redonda terá de largo a face do costado o terço da bocca, e tanto terá ao manco a face da popa, a rè de todo terá o dragante o meo da boca que são onze palmos fora a largura da Capa. Esta he a roda de proa da mesma galé terá dalto onze palmos a esquadria, terá a sinta pregada em altura d'outo palmos dali pêra baixo terá de lançamento dezasete palmos sairão fora da esquadria na ponta da roda dous palmos esforçados, e assi está no modelo. Este braço he cauerna, he da mesma gale de 24 bancos. Terá de boca a sinta conforme esta no traço dez palmos pêra cada banda que vem a ser vinte palmos. 404 APÊNDICE A Terá de fundo de couado a couado dez palmos que he em meo fundo cinco palmos pêra cada banda. Estará o traço da sinta em altura de seis palmos conforme mostra o modelo terá do traço da sinta pêra cima palmo e meo que he pêra o pontaual da esquadria pêra fora dous terços de palmo. Os cancomos de qualquer embarcação tira los hão da compartida da Cauerna repartindo em sete partes do primeiro ponto ate o dalmogama e depois da sete partes feitas tomarão duas pêra o espalhamento da madeira de proa, e da de popa húa parte e mea. [fl. 33v] Esta popa aqui serue pêra Nao de dezasete e meo, e para dezouto, e para mais se quizerem e para menos dos ditos remos não serue. E quando fizerem a uolta do manco fizerem altura donde a de ter o delgado que serão dezouto palmos medidos pollo codaste adonde a de assentar o pee manco. E na primeira cuberta será posta em altura de seis palmos medidos do pè manco pêra cima, e isto se entende atè o dromente terá de largura esta cuberta vinte e cinco palmos. E na segunda cuberta trinta palmos. E na terceira cuberta que he o gio vinte e noue palmos e meo. Para rodar este manco será com hum cordel pollos ditos pontos das três cubertas, e o ponto donde ha de assentar o manco. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.26-32 e 33v-34v.> PUBLICAÇÃO 1930 - BARROS, Eugênio Estanislau de, As Galés Portuguesas do Século XVI, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 61-71. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 60-71. DOCUMENTO A.32 Conta que terás no fazer de hua galee de vinte e quatro bancos sotily [fl. 17v] Primeiramente saberás que tem hua galé de vinte e quatro bancos de comprido de roda a roda cinquoenta e sete goas nossas, e de tantas farás a esquadria e dentro nella rodarás as rodas de proa e de popa desta maneira. Depois de feita a esquadria a proa e do canto delia para dentro darás hu lançamento que será quanto fora altura da roda; terá de alto a roda da proa dez palmos e meio pella esquadria, e tanto terá de lançamento e botado seu Rol ficará perfeita. A roda da popa terá de alto pella esquadria dezaseis palmos ate donde começa o redondo, e de quanto da esquadria para dentro lhe darás de lançamento noue palmos; rodarás com seu Rol donde que fica agraciada e o modo Este regimento para a construção de uma galé de 24 bancos tem incluso o regimento do esquife, que aqui se apresenta em documento próprio. Assim se justifica o facto dos fólios que o presente documento ocupa terem uma numeração não sequencial. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 405 que terás para tirar a forma da verxa e braço e contado graminho e cauernas de conto Saberás que húa galee de vinte e quatro bancos tem de largo na maior largura vinte e hú palmo de goa em tantos farás a largura da esquadria e repetida com seu risco pello meyo e farás na largura quatro compaços e botaras os do canto fora, e seruir te a o ponto ou risca para botão de Rol vir te a ali morrer donde a discomparas que não faça grande [fl. 18] Cote e para fazes couado onde pella esquadria se mostrar a altura de hú palmo de goa que terá onze palmos de fundo Para a popa farás trinta cauernas conuem a saber quinze tachos pello primeiro ponto e as outras emgaraminhação, digo que farás de couado para o primeiro ponto dous compaços e rotaras nue fora, e hú compaço que fica compartiras as quinze cauernas. As cauernas para a proa hão de ser vinte e cinquo as quinze de hú ponto e as dez para as compartires, do couado ao ponto farás seis comparas tomarás seis e meio e nelles compartiras des cauernas. Conta que seguirás nas armaduras Porás as armaduras do couado para irá de popa a morrer na toda de popa pella esquadria leuantarás a armadura pella esquadria na roda de proa três palmos e depois de pregados porás suas fileiras de taboas no chão e seus pontaletes empezaras e porás a tizoura com as pontas nos furos que se dauão nos couados das cauernas as mais armaduras dos braços pregarás de modo que não faça nojo á cinta, principalmente no meyo. Tomaras primeiro a altura delia da cinta que lhe darás seu resguardo, e iras enchendo pella largura que te mostrarem os terços da proa e popa [fl. 18v] com isto te mostrar o risco da croça Conta que terás no cintar desta galee Depois de chea tomaras a primeira altura para dentro com húa regoa donlongo da cauerna mestra e porás a ponta sobre a quilha, e terás medida na dita regoa duas goas menos quatro dedos e marcaras e farás logo cinquo terços pêra a proa e o primeiro terá de alto o mesmo que he na cauerna mestra; e o segundo terço terá de alto duas goas e meyo palmo e hú dedo, O terceiro terço terá de alto duas goas e hú palmo de goa menos hú dedo. O quarto terço terá de alto duas goas e hú palmo de goa e quatro dedos. Porás para tomar esta altura pella esquadria hú cordel pello quarto da quilha da banda de cima, e i Io as estendendo para a proa fora da roda, e logo tomaras o cortamão com a regoa fará esquadria, e porás a ponta primeiro a cinta do cordel para a ponta da roda, e terá a proa de alto assi como acima digo três goas e quatro dedos Conta que terás com os terços da cauerna mestra Da cauerna mestra para a popa, para a altura da cinta Da Cauerna mestra para a popa farás seis terços e com o da roda sete do primeiro e primeiro terço terá dalto duas goas e [fl. 19] meyo palmo, o segundo terço terá de alto duas goas e hú palmo de goa menos quatro dedos. O terceiro terço terá de alto duas goas e 406 APÊNDICE A hú palmo e hú dedo. Terá o quarto terço de alto duas goas e hú palmo e meio, e cinquo dedos, Terá o quinto terço de alto duas goas e meia, e hú palmo, e o Sexto terço três goas e três dedos, e farás para a roda da popa a esquadria como fizeste a proa e terá de alto a cinta quatro goas e meia menos dous dedos. Conta que terás com o alcaíxal Depois de assentada a Galee deixarás abaxo da cinta húa alcaixa de hú palmo redondo de popa a proa aberta e dahi para baixo virás com húa carreira de taboas auantarcha que chamão folhas e escaruação de romania húas nas outras, e logo outra alcaixa abaxo aberta pella mesma maneira, e logo outro fio tão bem escarnado e logo outro fio que serão três por banda alcaixadas como a de cima, e pella banda de dentro defronte destes fios feitos botaras outros de pinhos de frandes para mais leues, antes que alcaixes de fora digo tapes porque ao repregar para seus reuites hús de dentro, dentro alcaixarás. Conta bõa dos de fixo entre a faixa e faixa a tapar Risca ao pee da aruore afastada sobre a quilha húa goa e hu palmo e para a popa uai morrer a antepara da despensa [fl. 19v] que está da roda a doze goas e dous palmos de roda da proa ao pee do masto e uinte e duas goas menos hú terço de palmo e terá de comprido a carlinga seis goas, terá sobre a quilha hú palmo de goa de largo com seus alifrises que ha de ser pancada de vantare e a escoa terá seus alfrys para os plenos. Conta que terás para a altura da conta e cuberta a que chamão contaual Defronte da aruore e da cinta e cuberta meia goa a proa á cinta e cuberta hú conto, da cinta a gia hú palmo redondo, e da gia vindo proa para popa terá de alto da cinta á cuberta hú palmo e dous dedos e seis goas, mais para a popa auera hú palmo e meio menos húa pollegada, de amores ha seis goas para rée auerá hú palmo e meio, mais seis goas hú palmo e meio e húa pollegada mais seis goas hú palmo e meio e três dedos pellos pontis; mais seis goas e dous palmos menos hú dedo a popa de todo dous palmos e quatro dedos. Conta que terás no assentar dos buncacetes Da banda da roda de proa da banda de dentro de baxo da bucarda porás hú Cordel a cinquo goas e hú palmo, estará a primeira bancaca, e terá de alto sobre a quilha meia goa, e hú palmo em condito de vão da primeira á segunda bancaca auerá três goas e hú palmo, as quais bancaças vão no terreiro dormente [fl. 20] Da segunda a terceira auerá três goas e dous dedos, terá de alto de quilha á face de cima húa goa e meio palmo, Da terceira á quarta auerá três goas no mesmo dormente do pé do masto. Da quarta á quinta que está ao pee do masto terá de quatro goas e dous palmos terá de largo meia goa e mais, e no mesmo dormente E da quinta á sexta a Re do masto tem de vão cinquo goas e hú palmo e está debaxo da outra sexta. Da sexta a sétima auerá três goas e meia e três dedos no mesmo dormente. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 407 Da sétima a oytaua auerá cinquo goas menos meio palmo, tem de alto húa goa e meya e três dedos estará abaxo da sobrequilha. Da oytaua a nona ha quatro goas e meia e hú palmo e na mesma altura da oytaua despensa Verga laurada pella deminuição em quadrado por os cinquo compaços no comprimento da palha e na ponta darás hú e dous, e na casa de dous marcarás o meio delle para a ponta será o oytauo que darás e posta a palha na maior grossura marcaras o ponto que te digo que acharas logo na outra braça que tem deminuição indo para a ponta, porás a palha no meio da linha com o meio da palha e esquelçada as que fico os pontos no quadrado e marcaras onde te disser a ponta, e iras seguindo esta ordem até a ponta e a linha a farás retendo Para fazeres húa verga [fl. 20v] Depois de tomada a grossura da verga que quizeres fazer tomarás o meio da verga que será a maior grossura e marcaras a dahi para a ponta repartiras os traços que tiuer, e depois de marcados repartiras como se mostrar a figura. Farás do comprimento da palha em quatro terços ou compaços e posto no meio da palha hu para hua e outro para outra rodaras que essa será a grossura que terá na ponta e se a verga tiuer dezaseis braços farás conforme a figura na mea lua noue compaços ate o meio da esquadria e outros noue pella outra banda e riscaras desta maneira e porás a palha do ponto da grossura de que tens tomado para a ponta, e marcarás a deminuição conforme a figura, para a ponta hésa (?) terás no deminuir dos braços, e aduirte que se forem os braços cinquo e meio para a ponta farás seis compaços, se forem quatro seis sete compaços mais sempre hu ponto e para tirar a palha do oytauo depois. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 17-20v. DOCUMENTO A.33 Regimento pêra húa galiota de vinte bancos. Terá de comprido de roda a roda adonde ha de assentar a sinta trinta e noue goas. Terá a roda de popa de popa [sic] ao cotouelo onde assenta o dragante, terá dalto treze palmos e meo, e dahy pêra cima altura que ha de ter o dragante que será hum palmo, e dous dedos de goa pregará a sinta a popa hum palmo do dragante pêra baixo. A roda de proa terá d'alto a esquadria a ponta da roda noue palmos, em que fique mais despois se cortara, as rodas lançarão quinze palmos, terá desquadria a esquadria vinte e noue goas. 408 APÊNDICE A A sinta a proa ficará em altura de sete palmos, e da sinta pêra cima ficará hua goa, e quando rodarem a roda na esquadria rodarão atè o ponto da sinta, e dahy pêra fora se sairão o que lhe parecer bem. Esta galiota terá de boca em dereito da sinta dezasete palmos dentro na esquadria, terá no pontaual dezouto palmos. Terá de fundo de Couado a couado noue palmos esforçados de goa. Terão as rodas de grosso dous terços de palmo, irão demenuindo do couce pêra cima, a quilha terá dalto dous terços de palmos de goa [fl. 50]. Terá esta galiota vinte e noue pares, que são tantos pares quantas goas tem desquadria a esquadria. Quando fizerem a forma da Cauerna terá de arepiamento o que a madeira tiuer de grosso. A forma será de couado a couado repartida em cinco partes três escacas para a madeira e duas pêra almogama. Será a sinta assentada no meo em altura de cinco palmos medidos de sobre a quilha, e isto se entende pello canto de cima. A sinta a poupa ficará nas almogamas em altura de sete palmos menos hum terço. A proa na almogama ficará em altura de seis palmos, e meo quarto. Para assentarem as almogamas tomarão o comprimento de roda a roda, reparti Io hão em cinco partes botarão duas auante, e hum terço de outra, e pêra re duas, e dous terços, e ahy assentarão a cauerna mestra hua de hum ponto auante, e outra de hum ponto a re, terão as mais de hua a outra de uão hum palmo de uão, e sendo caso que as almogamas fique muito chegadas as rodas, dar lhe ão os vãos mais pequenos ou mayores se forem necessários. As armadouras a popa e proa conforme pedir a obra, a qual se regerão por a conta da dezouto armarão para, e tozarão pêra baixo conforme ao costado. Tozarão a quilha hum palmo, farão as picas a rè, e avante da maneira que atraz tenho dito na galiota de dezouto, e porão a popa hua baliza de três palmos de ponta a ponta o modo drogante [fl. 50v] e pregarão hum cordel de cada banda afastado da roda hum palmo que venha a tomar três ou quatro braços, e virão enchendo com as astias desta maneira farão em todas as galiotas, e galés que tiuerem na roda de popa cotouelo que são latinas, as que tiuerem popa redonda terão a baliza ao modo de droganta que tenha a terça parte da bocca e assentarão, e as armadouras de sima sobre o dragante que fique do modo da bocca a rè, quando puzerem as astas do dragante desta da popa redonda, terá o meo da bocca de ponta a ponta botarão mais hum palmo pêra fora das cordas pêra a capa. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 409 Darão as alturas e grossuras das madeiras no meo algua cousa menos o que parecer bem, por quanto he no meo mais pequeno, e assy as saltarelhas darão menos assy huas como as outras, as quaes estão marcadas nos modelos, na galiota de dezouto bancos, e por ellas se regerão assy em todas as galés. Terá o Jò de popa assentado a treze palmos, vindo da roda de popa pouco mais ou menos, a popa medirão do dragante dante a rè a proa medirão da roda a face do Joo pella banda dante auante doze palmos, pêra fazer esta conta porão hum cordel de popa a proa, e por elle medirão esta conta e os emtabolamentos da popa e da proa, e assy os vãos dos bancos dum a outro cinco palmos. Terá o pontaual no meo hum palmo e meo menos mais hum dedo a popa a face do canto do dragante auante ao Jò hum palmo escaco, e bem pode ter menos meo dedo, e farão hua saltarelha tomarão quanto tem menos a Jò de proa ao de popa. E aquillo que acharem de mais reparti Ia hão em outro em noue partes, e irão pondo hus pontos e por elles tozarão de maneira que fique gracioso. Terá a carlinga do masto três partes a rè, e duas auante. isto se entende de roda a roda, e terá hum palmo [fl. 51] palmo e meo de largo tendo madeira pêra isso, e d'alto hum palmo, e hu terço, e terá os seus cunhos d'emcontro hua Cauerna, e outra não entalhará sobre as Cauernas hua polegada. Terá o dragante de ponta a ponta onze palmos de goa. Terá do dragante ao Jò treze palmos, e depois dassentada a tapieira, ou marcada se parecer a seruentia pequena ou grande antão ficará assentada a corda no Jò. Terá de maior bocca pêra proa dezaseis condelatas pêra rè dezouto, terão de uão de hua a outra dous palmos e meo, se quizer que fique mais uão leuarà menos antre Condelata, e condelata hua lata morta. Terá a lata de tozamento hum palmo de vara, outro tanto terá a condelata do cote pêra fora da condelata a face da tapieira polia banda de dentro ficará o dito palmo. Galiuarão duas condelatas de hum ponto hua pêra uante, e outra pêra re. A saltarelha de proa pêra as condelatas, terá hum palmo, e hum quarto d'alto, e o de popa hum palmo de uara. A coxia na proa terá de largo três palmos escaços, e na popa meo palmo menos terá a dita coxia de alto três palmos escaços. Assentarão os mamonetes a face da coxia da banda de dentro pêra fora, terão alefrizes pêra nelles embeberem as taboas da coxia. [fl. 51v] Terão de grosso hum palmo embeberão para a lata do Jò polia face d'ante a rè hua polegada aos ditos mamonetes, e do comprimento terão seis palmos medidos da cuberta pêra cima fora o que se ha mister da cuberta pêra baixo. 410 APÊNDICE A Todas as mais cousas que aqui se não acharem declaradas na gale de dezouto, e se achará que seruem pêra vinte e quatro, e pêra menos se quizerem, tudo acharão dando lhe sua conta conforme ao tamanho do casco que for que assy serão mais pequenas, as medidas comprimentos larguras, e as grossuras, e alturas, saltarelhas, graminhos conforme tenho dito. Madeiras que se hão mister pêra esta galiota Por os pares que leua se pode gouernar Quanta madeira, e quanto à mister e toda a mais que a galiota ouuer mister. Polia galiota de dezouto bancos se regerão, e assy pello regimento da dita farão a conta dos mastros e vergas, dando lhe seus compridões, e grossuras conforme ao tamanho do Nauio farão suas repartições pello modo atraz como dito tenho atraz. Atraz fica dito do lugar do esquife e fogão as quaes digo que quando repartirem os bancos, terão de hum a outro cinco palmos como atraz diz no regimento. Declarão que no uão do esquife, e fogão tem hum banco menos, estes vãos serão mais algúa [fl. 52] cousa mais fauoraueis pêra que fique mais vão que não perderá tendo mais, ficando os mais bancos em sua conta isto principal em galé ordinária em galiota hum banco menos ao justo bastará, e se quizer dar algúa cousa tendo postiça pêra isso bem pode em galé real de trinta e dous bancos, sendo os bancos repartidos os vãos ordinários cinco palmos, terá dous menos no lugar do esquife e fogão, ou muito pouco menos que a galé grande que leua grande esquife, e assy o fogão. Pará húa gale ordinária de vinte quatro bancos, terá a popa d'alto depois de acabada cinco palmos e meo de goa. Quando armarem as estenterolas ficarão tam a re como auante medidas pella cuberta. Húa roda pêra húa galé de dezasete bancos ate trinta bancos até trinta bancos [sic], terá de altura pella esquadria dezouto palmos, deixando mais comprida algúa cousa, sendo de popa redonda, medirão noue palmos pella esquadria pêra cima, e ahy porão hú traço adonde ha de uir assentar o arebessado, o lançamento será a mesma altura por a esquadria, rodarão de maneira que fique bem agraciada. Em popas redondas pregará a sinta junto a dragante por a banda debaixo, de modo que assente o dragante em cima delias. Sendo húa galé de trinta bancos, terá setenta goas de comprido de roda a roda, adonde prega a sinta Por quilha de esquadria a esquadria, terá cincoenta e sete goas de comprido menos hú palmo, terá cincoenta e quatro pares de madeira de conta, galiuarão duas Cauernas de hú ponto serão cincoenta e [fl. 52v] e quatro cauernas pêra vante, e outras tantas pêra ré, e tantos pontos terá na Cauerna marcados e porquanto he a madeira grossa, terá menos pares na forma três ou quatro. Os graminhos serão mais altos algúa cousa que os que estão trassados nos modelos com seus pontos repartidos nos graminhos assy de popa como de proa, terá o de popa repar- Os NAVIOS DO MAR OCEANO 411 tidos no graminho trinta e seis, e no de proa trinta e hum ponto todas as mais não terão graminho pellos graminhos atraz fará estes emsinarão como han de fazer, terá o Jò de popa vinte palmos, o dragante, e de largo ao Jò outros tantos, das cordas a face de fora que se entende de corda a corda. Terá o dragante de ponta a ponta a metade da bocca mais dous palmos para as capas. A popa terá d'alto com suas molduras seis palmos de goa. Terá o Jò de proa assentado da roda quinze ou dezaseis palmos de goa. Terá de bocca vinte e seis palmos, e de fundo de couado a couado a metade da bocca, quando quizerem tirar obra na esquadria polia forma que ficão atraz se regerão dando lhe suas medidas conforme ao tamanho da galé. Terá o pontaual d'alto palmo e meo esforçado no meo e na proa hú palmo, e na popa pello dragante. Terá d'alto a sinta seis palmos e meo escaços pello canto de cima Terá a lata de tozura palmo e meo, arepiarà a condelata do cote pêra cima outro tanto, [fl. 53] Quando assentarem a tapieira sobre a condelata, terá do cote pêra fora a face da tapieira polia banda de dentro hú palmo e meo fora a grossura da dita tapieira. Terá a galé de postiça a postiça trinta e noue palmos, tendo de bocca vinte e seis, e treze que bota fora a condelata, e o bacalhar por ambas as bandas que são seis e meo por banda, ficará o bacalhar da tapieira para fora quatro palmos e meo, e dous palmos que bota a condelata pêra fora até a face da tapieira por fora, terá a tapieira de hum terço de grosso a coxia terá a proa quatro palmos menos hum quarto de largo, a popa terá menos dous terços de palmo, a coxia terá dalto três palmos de goa, e hum quarto. Quando quizerem fazer a popa redonda assentarão e húa valiza ao modo de drogante que tenha o terço da bocca, e o terço desta baliza tanto terá ao pé do manco que he o terço da bocca. A grossura da cauerna e braço terá meo palmo de goa d'alto, e na ponta terá menos n'altura do pontaual, porão almagoma a popa treze goas e mea, a proa noue goas. Pêra proa a Cauerna hu ponto assy uante como pêra ré será repartida a compridão da galé em cinco partes, tirarão duas, e hum terço auante a ré duas e dous terços, e de húa almogama, e de húa a outra compartirão a madeira os pares que quizerem e souberem que fique de vão da Cauerna a Cauerna hum palmo redondo. E depois de postos os pontos donde han de estar as almogamas tendo necessidade meter mais pares ou menos mete los ão do modo que asintarão as mestras como tenho dito, auante duas partes e hú terço a rè, duas partes, e dous terços, e as almogamas nas goas ditas acima antam meterão os pares que couberem. [fl. 53v] 412 APÊNDICE A Todas as mais contas e medidas que aqui faltarem a esta galé se gouernarão pellas de atraz porque estão mais certas Para qualquer galé ou galiota quantas goas tiuer repartidas em cinco partes, terá a uerga ordinária quatro, e a outra será pêra as espigas. O mastro grande terá de comprido aquillo que acharem da telha ao estentarol. O traquete terá o comprimento que hà do Jò ao pè do mastro grande, a verga será pello comprimento do mesmo mastro. A uerga de correr de qualquer galé que for tomarão a bocca dar lhe hão três larguras, o mastro terá de grosso aquillo que tiuer antre os mixilhares repartido por o terço, terá as duas partes em riba na graganta quanto tiuer o mastro de grosso na garganta tanto terá a uerga na estagadura, e o traquete terá de grosso aquillo que tiuer a uerga grande no carro a uerga do dito terá na estagadura a grossura do mastro. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fls. 49v-53v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 90-96. DOCUMENTO A.34 Regimento de húa galiota de dezouto bancos Primeiramente terá de comprimento por sima de roda donde prega a sinta 44 de goas. Terá a dita galiota por baixo d'esquadria a esquadria trinta e quatro goas sendo por cima de corenta e quatro goas como acima digo. E sendo de corenta e duas terá por baxo polia esquadria trinta e duas goas. Terá trinta e quatro pares metidos na forma que são trinta e quatro Cauernas para popa, e trinta e quatro para proa. E quantas goas tiuer desquadria a esquadria tantos pares meterão na forma esta conta farão em todas as mais galés. Terá de boca adonde ha de pregar a sinta pello canto de cima dezouto palmos, e no pontaual 19. Terá de fundo dez palmos de couado a couado. Quando fizerem as formas desta galiota, ou de outra qualquer gale gouernar se hão pellos modelos como adiante se verá. [fl. 34v] Os NAVIOS DO MAR OCEANO 413 Terá a forma do arepiamento ao couado o que a Cauerna tiuer d'alto. Repartirão a forma da Cauerna em cinco partes de couado a couado, tomarão as três pêra repartir a madeira menos das três partes três dedos, e parecendo lhe que fica almogama pequena tomar mais hú dedo. Quando quizerem tirar a forma do braço tomarão altura que ha de couado ao traço da sinta e com elle rodarão cauerna e braço referindo com o rol pellos pontos arepiamento que está no couado e ponto da bocca ficará o braço perfeito. Porão almogama de popa a onze goas medido do couce de popa. E almogama de proa será assentada a sete goas medidos do couce de proa. Para saberem melhor como han de ficar estas almogamas tomarão o comprimento de roda a roda reparti Ias hão em cinco partes três a re, e duas auante tomarão hua destas partes repartir se ha em três, botar se ha duas pêra rè, e hua pêra vante, e ahy assentarão a Cauerna mestra, que esta he a conta muito certa E quando assentarem as Cauernas na quilha depois da Cauerna mestra assentada darão de hua cauerna a outra hum palmo de uão pêra proa, e pêra popa, e se as almogamas ditas acima ficarem a re muito ou auante dar lhe ão menos vão. Se quizerem que fique a galiota nas cabeças com mais hombro meterão quatro cauernas de hu ponto, [fl. 35] Terá dalto a roda de popa atee onde assenta o dragante catorze palmos medidos polia esquadria. Adiante acharão os Cancomos o tamanho de que han de como se forão os próprios de que se ha de fazer mensão, quando fizerem a galé repartidos com os pontos que lhe são necessários. Também acharão no compeço do liuro o tamanho dos graminhos repartidos com os pontos pêra multiplicação que han de ter as cauernas assy pêra proa como pêra popa, e o traço que está dado do Canto do graminho que vem atrauessando a mostra a forma em que se ha de tomar o escantilhão pêra o abatimento da madeira, porque assy como vay a forma deminuindo, e o graminho multiplicando, assy he necessário ir solinhando. Quando quizerem tirar na esquadria tirão o braço e a cauerna conforme no principio mostra a figura que he na altura da sinta e couado que está em mea bocca no fundo, que são noue palmos e meo a ponta do braço botará fora da esquadria em altura do pontaual meo palmo. O lançamento da roda de popa, que acima fica dita, terá dezaseis palmos medidos polia esquadria quando a quizerem rodar porão na esquadria o ponto do lançamento em altura de dez palmos porão outro ponto, e no canto da esquadria porão hum ponto de seis palmos, e com elles rodarão hua mea lua que serue demcosto, a roda pêra ficar graciosa 414 APÊNDICE A tomado com o rol pellos três pontos o traso que estiuer na roda serue pêra pregar a sinta quando quizerem sintar. A roda de proa terá d'alto polia esquadria noue palmos e meo, e de lançamento quinze quando quizerem roda Ia porão na esquadria o ponto do lançamento. [fl. 35v] Porão outro ponto em altura de sete palmos, e hum terço de palmos, e assi tomarão cinco palmos mais e com elles farão hua mea lua que quando quizerem rodar virão referindo com o rol pellos três pontos e assy ficará a forma perfeita. Quando quizerem por a quilha sobre as atacadas, terá a tacada de popa de alto cinco palmos, e adonde ha de assentar a cauerna mestra terá dalto dous palmos. E a do Couce de proa terá d'alto três palmos por estas três belizas darão o tozamento a quilha, e depois da quilha posta e rodas, e madeira de conta porão suas armadouras pellos couados com seus pontaletes em hua e noutra não empezarão de hua banda e da outra com a thesoura e seu prumo, e depois de isto assi feito irão correndo com as almadouras para popa e pêra proa dos couados para baixo escaruando as das que vem do fundo dando lhe os delgados das rodas conforme as almogamas lhe pedem, serão as armadouras dereitas polias faces, tozarão pellos cantos três dedos da mesma Maneira farão a proa. Quando laurarem a madeira de conta repartirão o graminho em três partes hua delias tomarão pêra o que se ha de abater nas almogamas, e na mesma parte repartirão o que han de dar as outras cauernas. As armadouras que han de uir por riba polas hão abaixo do ponto da sinta na roda de popa em altura de doze palmos, e no meo a cinco palmos e meo. E a sinta pregará abaixo do dragante hú palmo, sintarão toda a galé hum palmo d'armadoura pêra cima, no meo terá a sinta daltura cinco palmos, e hú terço, [fl. 36] Despois das armadouras postas assy de popa como de proa dar lhe ão de redondo hú terço de palmo de maneira que fique o costado bem feito. Aprumarão de maneira que fique caindo a madeira tanto de hua banda como da outra, e tozarão pêra baixo três ou quatro dedos que fique tozado conforme a sinta. Terá hua corda lançada pello meo da cuberta pêra baixo das latas atee o pee do mastro na largura da coxia, e a prumo com a mesma coxia a popa, e a proa farão desta Maneira. Despois disto feito tomarão quatro ou cinco balizas assy pêra popa como pêra proa, e por estas valizas as mais que forem necessárias. Assentarão as picas de quatro em quatro, ou de três em três, e matalharão no coral dous dedos depois delias postas tomarão hum cordel por o meo das armadouras pregado na roda, e na almogama e a balizarão polia forma da Cauerna enchendo os três pontos virando com o couado pêra baixo. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 415 Para fazerem altura das bargadas que hão de mister as piquas de popa e de proa tomarão a maior altura que ouuer da armadoura do canto de baixo ao coral. E assy tomarão altura d'almogama, e junta húa medida com outra o que sobejar reparti Io ão em partes tantas partes como enchimentos repartidos ao modo de graminho, e ficará assy a obra bem feita a isto se chama sartelha. O coral que vem de popa ficará a rè d'almogama três Cauernas. [fl. 36v] A pique de proa terá hum palmo escaco A popa porão húa valiza atrauessada ao modo de drogante quando quizerem emcher com as astes terá húa goa de comprido pregada na roda, e pregarão hum cordel nas pontas que fique húa goa de largo, e pêra pregar o cordel ficará esta baliza mais comprida algúa cousa que agoa, e auante dalmogama dirá o cordel polias pontas dos braços n'altura do pontaual. A contra sinta terá o canto quebrado polia groçura da taboa por baixo, e será a contra sinta entelhada no liame. Para assentar a Carlinga do mastro grande repartirão o comprimento de roda a roda em cinco partes, e porão três a rè, e duas auante, e neste ponto porão a carlinga, terá sua telha dante auante emmechada na Carlinga em sima na lata, e por lhe ão seus punhos de húa banda e da outra para a fortificação da Carlinga, o tamborete vira emmechar na telha, terá a carlinga comprimento que chegue a entalhar em dezasete Cauernas. Terá o drogante de comprimento de ponta a ponta onze palmos d'agoa, e terá no meo hú palmo, e hum quarto, e nas pontas terá meo palmo em quadra, a conta do dragante he a metade da bocca. Terá o pontaual d'alto no meo palmo e meo de goa, a proa terá hum palmo, e a popa terá dous por respeito do esporão ficará mais baixa algúa cousa o pontaual para boa conta, tomarão os dous palmos que tem a popa, e virão diminuindo pêra proa, repartindo em húa saltarelha em quinze ou dezaseis pontos, e uirão demenuindo por cima da sinta, e despois de ter postos os pontos todos de popa a popa cordearão com húa corda para saber se fica tozando conforme a sinta, [fl. 37] Todas as saltarelhas são muito certas dando lhe os comprimentos que são necessários para as taes cousas pêra que se fazem repartidas polia conta da palha do mastro. Assentarão o jo afastado de popa quinze palmos medidos pella cuberta em dereito da esquadria. O jò de proa será assentado afastado da roda doze palmos. Terá trinta e cinco condelatas conuem a saber dezasete pêra proa dezouto pêra popa, galiuarão três de hum ponto será assentada a de hum ponto na Cauerna mestra, que he a 416 APÊNDICE A maior largura, e assy irão pondo as demais pêra proa, e para popa dando lhe de uão três palmos, e se for muito repartirão de maneira que fiquem todas tamanhos os vãos huns como os outros. Se quizerem fazer as condelatas mais delgada bem pode. Antre condelata e condelata e condelata, meterão húa lata morta que ha de ficar emmalhetado no contra pontaual. Todas as vitolas desta galiota se acharão ao diante posta em sua conta. Terá a condelata d'alto, aquillo que a lata tiuer de tozamento, que sò terá a condelata darepiamento terá a lata e condelata de grosso hum terço de palmo. Tomarão altura da condelata, e darão húa linha no pontoual de maneira que fique a condelata embebida no pontaual. [fl. 37v] Quando emtalharem a forma no lugar das condelatas será quanto couber a forma atè o ponto da linha que está no pontaual que he altura da condelata, e isto farão em todas as mais assy de popa como de proa marchando na forma os traços do costado por a banda de fora pêra não ficar o Cote da Condelata fora, nem dentro isto ha de ser com trazer o meo da forma com o meo da quilha aprumada sempre com hum prumo. A saltarelha pêra auante terá hum palmo e três dedos de goa. E pêra rè terá menos dous dedos auante, e a popa palmo e meo esforçado. E tendo na saltarelha dezanoue condelata, e a proa dezaseis, e se ouuer mais condelatas meterão nas saltarelhas mais ponto Terá três alcaxas por banda emtalhadas nos liames, e outras por dentro entalhadas como as de fora e não taparão o fundo ate não ser repregando estas alcaxas por respeito que quando for ao repregar a pregadura que uay de fora pêra dentro. Assentarão os momonetes do canto para fora tem de uão por dentro hum alefris quanto embeba a taboa da coxia, terá a coxia a proa húa goa esforçada de largo a popa menos três quartos de palmos esforçados. Assentarão os memonetes na proa junto a lata do Jò d'ante re emtalharão hua polegada. Quando os assentarem ficarão ao liuel polias cabeças que não fique mais alto hum que outro, e fique a prumo, A grosura será de hú palmo, e dous dedos, e o comprimento da coxia pêra cima três palmos e meo terá de goa. Toda a gale e galiota que demandarem muita agoa dar lhe ão mais altura no pontaual para que fique [fl. 38] a boca bem, e demandando pouca agoa, dar lhe ão menos altura dous dedos, ou húa polegada. Conta que han de ter, quando latarem na cuberta porão a primeira lata ao pè do mastro, e daly medirão ao Jò de popa hum comprimento, este comprimento repartido em cinco Os NAVIOS DO MAR OCEANO 417 partes, húa delias tomarão pêra a queda do mastro com hum palmo ou dous mais se lho quizerem dar parecendo. Porão a primeira bancaça de modo que emcoste a telha nella emtalhada. Porão a bancaça de rè em dereito da lata que atrauessa de bordo a bordo que he adonde se acaba a queda do mastro pêra vante dous palmos. A rè desta bancaça que he a terceira quatro goas de vão. A quarta terá outro tanto. A quinta outro tanto, e isto se entende de húa as outras. Para proa, a segunda bancaça terá outro tanto. A terceira outro tanto, isto se entende nos vãos as quatro goas como atraz tenho dito irão assentadas, estas bancaças assentarão no terceiro dormente. Estas bancaças terão todas seus Curuatões de húa banda e da outra, [fl. 38v] Terá esta galiota treze pès de Carneiro postos nas partes donde forem necessários. Assentarão as cordas por riba dos bacalhares adonde han de assentar os pès dos bancos. Afastarão da Coxia pêra fora quatro palmos. A corda será de groço hum palmo de goa menos hum quarto. O longo da coxia lançarão húa taboa grossa emtalhada nas latas polia banda da cuberta ficará igual com a taboa. Terá o escotilhão do escandalar as cinco condelatas do Jò pêra vante cortarão húa lata pêra se fazer o tamanho do escotilhão, e será feita a banda dereita Terá outro escotilhão a popa da banda sinestra que desse pêra a Camará do Capitão do Jò pêra dentro. E terá outro escotilhão que caiba húa bota que he o da despensa do vinho, será a quinze ou dezaseis condelatas de popa pêra a vante. Terá hum escotilhão a proa da banda dereita a sete condelatas vindo do Jò de proa pêra popa. A escotilha do meo do pè do mastro será de duas latas donde descança o mastro daly pêra rè da banda sinestra. [fl. 39] 418 APÊNDICE A Terá outro escotilhão da despensa do pão da banda sinestra a quinze condelatas para rè. Terá outro escotilhão a Catorze condelatas do Jò. Terá o fogão a banda sinestra a dezaseis ou dezasete condelatas vindo de popa pêra avante. Todos estes escotilhões serão repartidos entre banco e banco se puder ser. O lugar do esquife se fará em dereito do fogão com o seu emtabolamento. Quando repartirem os bancos ficará a largura do esquife e fogão de maneira com que possa caber folgadamente. Nas primeiras cinco condelatas terá da galiota dezanoue palmos de boca de pontaual a pontaual botará o bacalhar pêra fora da condelata pêra fora quatro palmos, e hú que bota a condelata são cinco isto se entende de cada banda que fica depois dos bacalhares assentados ficão vinte e noue palmos de postiça a postiça. A coxia proa e a popa tem menos dous terços de palmo. Tozarà a tapieira conforme ao costado. Terá a tapieira de largo hú palmo de goa escaco, e de groço hú terço de palmo redondo, [fl. 39v] Digo que quando assentarem a tapieira de húa banda e da outra medirão d'encontro da coxia terá menos do meo dous terços de palmo que vem a dizer de hua banda e da outra hú palmo, e hú terço de palmo será de goa, e isto pêra ficar tozando conforme o costado. Terá o Jò dalto a proa dous palmos e meo de goa, aos momonetes que a popa terá mais algúa cousa por amor do emtabolamento, ficará o Jò dereito de linha o liuel com a postiça. A coxia terá três palmos d'alto de maneira que ficara pellos cantos de cima ao liuel húa com outra, e logo tomarão a forma dos Jos, e do bacalhar também farão por este modo se quizerem reger se pellos cantos da Coxia que he milhor que pella cuberta. Quando fizerem a popa terá de chumaceira para baixo o que tem d'alto na ponta do Jò que fica ao liuel onde assenta a postiça ao liuel. Terá o mexelhar de groço hum terço de palmo, e a roda para o dito mexelhar terá húa quarto de palmo groço Terá a popa de largo ao drogante noue palmos de goa de ponta a ponta, e do dragante ao Jò terá catorze palmos de goa polias faces dante a re. A corda em que assenta a popa dar lhe ão mais meo palmo para ficar o meo da boca, tudo o mais que aqui derem darão também ao drogante por respeito da Copa. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 419 Terá dalto a popa ao dragante todo por hua altura a rè e auante cinco palmos e meo esforçados de goa que basta para galiota. [fl. 40] Terá de esporão vinte e dous palmos, terá a madre de roda de groço três quartos de palmo na ponta meo palmo em quadrado, e d'alto na roda dous terços esforçados. Terá o bacalhar dalto no Cote da tapieira três quartos de palmo, e na ponta dous quartos de palmo Terá a postiça de groço meo palmo de goa esforçado. Terá quatro momonetes pequenos dous de cada banda leuadiços. Terá dous mamonetes a popa, e serão fixos, e reprega loz ão polia face da tapieira pella banda de fora como a curuatão emtalharão também pêra dentro que fique a face de dentro. Terá quando embancar darão hua linha por as faces da coxia da canto pêra baixo três dedos, e dahy pêra baixo meterão os bancos da ponta do banco ficará ao liuel com a postiça, e os bancos emmecharão três dedos por a coxia, han de ser dezouto bancos, nesta galiota, os quaes terão cinco palmos de goa de uão de hus aos outros, ficando hu banco sempre metido nos cinco palmos. Ficará o primeiro escalmo cinco palmos do Jò, e deste ao segundo terá cinco palmos como os vãos dos bancos, tomarão da face do esclimo dantre a re a face do segundo da dita ante a re, ficarão assentados os bancos de modo que todos fiquem os cantos de uante dos ditos bancos dizendo com os escalimos pêra vante como tenho dito, e pello mesmo modo farão para qualquer gale ou galiota em que tenha os vãos mais ou menos, ficarão os bancos escalmos pello modo dito acima. Tomará a terça parte do comprimento do banco, e tanto terá desconço o banco pêra auante farão hua [fl. 40v] sulta, e por ella assentarão os bancos o primeiro corde le ão polia suta que fique cordeando com o segundo escalimo ficará o escalimo dizendo pello canto do dito banco dante auante, ficará toda a groçura do escalimo do canto para vante, e por este modo assentarão todos os mais de vante re. Assentarão a banqueta pêra finca pè no meo do vão de banco a banco tomarão altura da coxia em três partes duas acima, e hua abaxo da face da banqueta pêra baixo terá o meo d'altura de sobre a cuberta a face donde derem altura do banco embebida em duas partes, a grossura da banqueta abaxo como tenho dito toda para vante metidas na dita coxia de topo como o banco, ficarão as ditas banquetas a re toda a largura dela por amor de tomar da bocca. Terá seus remichos sobre a corda a prumo com os bancos para os pès dos remeiros com suas castanhas pregadas na Coxia que fique preparando conforme no meo da banqueta. Cada hu banco terá sua belhasteira no pè do banco, terá descanço pêra a dita belhasteira em que descance, e assentará sobre a segunda rajola junto a postiça. 420 APÊNDICE A Terá batalholas repartidas de maneira que não facão nojo aos remos, ficarão dous remos metidos de hua a outra, e ficarão metidas no meo do uão do escalimo, as batalholas grandes terão dalto de sobre a postiça ao filarete por cima quatro palmos, e hu terço, e se lhe quizerem dar mais ou menos podeno fazer, as pequenas darão dalto da apostiça ao canto de cima do filarete hu palmo, e dous terços para esta pequena dous filaretes terão estas batalholas hu terço de palmo polia mesma conta dita farão qualquer gale ou galiota. E forrarão o Jo d'ante auante, e por cima por amor de amarra. [fl. 41] Será a escotilha do meo feita em duas com sua galiota no meo com seus alefrizes, e a escutilha do paiol do pão que he da banda sinestra será de duas. Terão os quartéis da coxia de comprido cinco palmos. Serão as carlingas assentadas aos pes dos mamonetes dante a rè junto com a Coxia húa de hua banda, e outra da outra. Assentarão as batalholas para as arombadas emcostadas aos mamonetes grandes assy da mão dereita como da sinestra, as outras duas atapieiras emcostadas ao Jo polia banda de dentro, terá a rè duas de cada banda pêra descanço das arombadas, terão contra arombadas por baixo pêra quando estiuerem aluoradas pêra a gente ficar sobre ellas. Ficarão as batalholas dalto quanto caiba hu homem d'alto em pè por baixo. Farão hum solhamento por baixo das arombadas sobre os bacalhares pêra quando estiuerem as arombadas aluoradas. Terão as arombadas pêra dentro tanto comprimento que fique a face com a rombadeta da face dante vante que bota sobre o Jò. Terá hu molinete ante os momonetes da banda dante avante do Jò de proa. E quando assentarem as batalholas serão postas ao liuel por cima huas com outras, [fl. 41v] Será paneado o fundo da galé por dentro farão seus alifrizes nas escoas, e no palmejar que fique a face Assentarão duas ou três curuas indereito do mastro por a banda de fora da coxia. As Camarás e payoes onde forem necessários conforme os escotilhões e escotilhas. Esta conta desta galiota, e de gales toda he hua dando lhes os seus comprimentos e medidas, e tudo o mais como requere tamanho de qualquer delias. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 421 Conta das medidas e vítolas desta galiota. Primeiramente terá de Cauernas setenta Braços cento e corenta Picas pêra proa enchimentos dezasete Asteas pêra elles trinta e quatro Picas enchimentos pêra popa vinte e três Astes pêra elles corenta e seis [fl. 42] Rodas e contra rodas quatro Vigas pêra a quilha que tenho antre todas trinta e cinco goas Paos mancos pêra sintas dez Peças de escoas dez Quatro paos pêra armadouras Mais hú pêra fazer os traueções que atrauessão sobre as armadouras Dezasete pedaços de paos braos pêra estacas pêra assentarem a quilha Mais pêra escorar as rodas quatro Pedaços pêra botadores pêra emdereitar a quilha Vacalhares sesenta e outo Escoras pêra escorar a galiota cincoenta Pontaletes pêra por por baixo das armadouras quando empezarem a madeira 34 [fl. 42v] Doze paos para as pranchas de húa banda e da outra Traueções para as ditas dezouto Hum pao pêra hum dragante Dous paos que facão duas sobresintas a popa que assente no canto do dragante pello canto debaixo Dous paos que facão duas cocharras Hum pao que faça hua Carlinga Condelatas setenta Latas mortas trinta e cinco Sinco para a popa Outras sinco do Jò para a proa Hua busarda auante Pès de Carneiros treze [fl. 43] Duas cordas pêra a queda do mastro Cordas dauante rè quatro Dous paos grandes pêra mamonetes Quatro pequenos E dous pequenos de Curuatõis Hum pao que faça a telha do mastro Outo cunhos pêra a Carlinga por banda que fazem dezaseis Curuas pêra os bancos debaixo vinte outo Outo bancaças pêra baixo Vinte curuatões pêra emcuruar a coxia Curuas para as bancas vinte Quarenta cunhos pêra acunhar as condelatas [fl. 43v] 70 140 17 34 23 46 04 35 10 10 04 01 17 4 34 68 50 34 34 12 18 01 02 02 01 70 35 05 05 01 13 02 04 02 04 02 01 16 28 08 20 20 40 422 APÊNDICE A Quatro curuas p a r a emcuruarem ao pè do mastro Dous paos pêra a estantarola conuem a saber hú pao pêra a estantarola e outro pêra o estantoral Duas curuas pêra o leme Outo curuas pêra a r m a r a popa Dous paos pêra o leme Pêra barrotes de popa quatro Dous paos pêra emcontro do mastro 04 02 02 08 02 04 02 Esta he a madeira pêra esta galiota fora as quebras, e alguas que aqui não lembro O taboado que he necessário pêra esta galiota. Taboas pêra emtalhar por fora, e por dentro três dúzias 03 [fl. 44] Outo dúzias de taboas pêra fechar o fundo por a banda de dentro han de ser de groçura de hua polegada 08 Taboas pêra a coxia as primeiras debaixo será seis tendo trinta e seis goas 06 Pêra curuas h u a dúzia 01 Pêra sobre coxia seis taboas 06 Taboas pêra cuberta outo dúzias 08 Taboas pêra as rejolas que vão sobre as condelatas 01 Taboas para as rejolas que vão sobre as bacalhares dúzia e mea 01 Vi Taboas pêra os solhamentos de popa e de proa dúzia e mea 1 Vi Pêra as banquetas h u a dúzia e mea de taboas 1 Vi 1 Vi Taboas pêra os bancos dúzia e mea Taboas pêra os pès mea dúzia Vi Taboas pêra batalholas grande, e piquenas, e pêra castanhas, e pêra arombadas [fl. 44v] e arrobadetas mea dúzia Vi Taboas pêra asoalhar arumbadas, e arombadetas, e contra arumbadas quatro dúzias 4 Taboas pêra afilaretes hua dúzia 1 Quatro taboas pêra a tilha da peça da Coxia 4 Taboas pêra os mixilhares, e barçolas das escotilhas hua dúzia 1 Taboas pêra remichas que uão a p r u m o com os bancos duas dúzias 2 Taboas pêra cubrir a coxia duas dúzias 2 Barrotes pêra os ditos quartéis mea dúzia Vi Taboas pêra os pais e Camarás outo dúzias 8 Barrotes pêra os ditos seis taboas 6 Quatro dúzias de taboado, para as traueças das belhasteiras 4 As uelas que ha mister esta galiota custarão mil e duzentos cruzados 1U200 # [fl.45] A tenda desta galiota custará seis centos crusados 600 # A pregadura de toda a sorte que a mister esta galiota. A se mister de pernos três mil Pregos de embaraçar outo centos Pregos pequenos p a r a escorar mil 3U U800 1U Os NAVIOS DO M A R OCEANO 423 Para as armadouras quinhentos U500 Pregos para o costado que não han de rebitar mil e quinhentos 1U500 Pregos que han de arebitar mil e quinhentos 1U500 Pregos pêra arebitar sobre o forro cinco mil 5U Cauilhas pêra emcauilhar a quilha quarenta e cinco U045 [fl. 45v] Pregos pêra o forro de dentro mil 1U Pregos pêra as curuas à mister quatro centos e quarenta U440 Para as cordas de baixo setenta e cinco U075 Pregos pêra pregar a coxia cento, de dous palmos e meo U100 Cauilhas pêra a coxia trinta e quatro U034 Pregos pêra as cordas dos pès dos bancos trezentos U300 Pregadura pêra a cuberta dous mil e quinhentos 2U500 Quinhentos pregos pêra os curuatões 0U500 Pregos pêra pregar as tapieiras cento e corenta U140 Pregos para pregar as tapieiras nas latas U070 Pregos pêra pregar a sobrecoxia quinhentos U500 Pregos pêra pregar as rajolas duzentas U200 [fl. 46] Pregos pêra as rajolas dos bacalhares 600 Esta conta soma de pregadura de toda a sorte Para os quartéis, e emtabolamentos, e arrombadas, e contra arrombadas à se mister três mil pregos 3U Pêra os paioes de Camarás se ha mister cinco milheiros 5U A ferraje pêra o leme pezarà três quintaes e meo 3 quintais As Cadeas da emxarsea pezarão dous quintaes e meo 2 xh quintais Darão o comprimento desta pregadura conforme a grossura das madeiras conforme se verá nas vitolas. Auera mister esta galiota de breu corenta e cinco quintaes 45 quintais De estopa auerà mister catorze quintaes 14 quintais De feitio de Carpintaria à mister cento e outenta e quatro, mil e seis centos 184U600 Iornaes de moços a cincoenta reis, huns por outros U50 [fl. 46 v.] De calafeto outenta mil reis 80U De serradores trinta e cinco mil reis 35U FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21,fls.34-46v. PUBLICAÇÃO 1930 - BARROS, Eugênio Estanislau de, As Galés Portuguesas do Século XVI, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 48-59. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 71-87. 424 APÊNDICE A DOCUMENTO A.35 Regimento pêra húa galisabra de catorze rumos. Vinte e três palmos d'alto de roda pella esquadria. Vinte e quatro de lançamento. O codaste terá vinte e hum palmos atee onde gouerna a Cana medidos pello codaste. O lançamento mais que o terço algúa cousa. Terá de bocca na Cauerna mestra trinta e cinco palmos, e se o quizerem fazer ligeiro conuerterão estes palmos de goa em redondos. Terá de couado a couado dezasete palmos e meo, aleuantarà hum palmo escaco de uara na primeira Cauerna. E fora este palmo redondo acrescentarão o graminho hum palmo de vara esforçado adonde han de compartir a madeira de conta. Repartirão a forma em cinco partes da estilha pêra o couado, e tomarão duas pêra compartir a madeira que serão treze pares galiuarão três per hum ponto, darão d'espalhamento dous palmos redondos no braço n'altura da cuberta que será a doze palmos no meo medidos de sobre a quilha. A popa terá a cuberta a dezouto palmos medidos pello codaste, e a proa será posta a cuberta a dezaseis palmos. Terá noue palmos de delgado. Terá de gio dezouto palmos. Terá posta a tolda em altura de sete palmos Terá abobada de popa tanto d'alto como de lançamento, e se quizerem fazer a varanda a framenga [fl. 25v] bem podem com seus corredores. Terá posta a sinta a popa em altura de dezasete palmos e meo medidos pello codaste acima. No meo em altura de onze palmos e meo. A proa a porão em altura de quinze e meo. Terá o beque de comprido da roda pêra fora dezanoue palmos Meterão atè altura das portilholas quatro sintas que uão de popa a proa, terá de alcaxa hum palmo redondo dúa sinta a outra em palmo redondo dalcaxa. Terá húa sinta que venha da ponta da roda, tozando a mareajem do conues que venha receber a barra da abobada. Terá a mareajem do conues de alto seis palmos de vara. Meterão duas peças no castello de proa duas pesas por chaço, e a popa nas frizadas quatro duas em cada frizada. Terá a tolda de comprido vinte e sete palmos medidos dalmeida. O Chapiteo chegara a re da mezena dous palmos. Iugara esta galizabra vinte e duas peças. Remara catorze remos. Terá de Castello da roda pêra dentro vinte e cinco palmos, o morro terá três palmos d'alto de uara, a carlinga do masto po Ia hão no meo da quilha antre esquadria e esquadria. Terá a casa do masto de largo três palmos. Terá a escotilha grande afastada do masto pêra proa noue palmos terá de coxia seis palmos, e de escotilha de popa a proa sete palmos, as bombas serão postas a rè do mastro três palmos. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 425 A escotilha a rè das bombas. E gouernarà este Nauio por pinsote. Assentarão a Cauerna mestra no meo dos lançamentos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fls. 25-25v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 58-60. DOCUMENTO A.36 Conta das galizabras de cincoenta tonelladas Terão de pontal digo de comprimento d'esquadria a esquadria onze rumos. Terão de pontal doze palmos que he a mor altura da bocca te o alcatrate, e ficarão as cubertas em sete palmos de goa, e ficarão cinco palmos de mareagem que vem a ser os ditos doze palmos acima por respeito do vogar. Terão as rodas de proa catorze palmos de goa, e de lançamento onze palmos a esquadria os codastes terão d'altura ate a almeida dezaseis palmos de goa, e lançarão o terço. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fl.19. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez- Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 51. DOCUMENTO A.37 Regimento para hú barganti Real. Pêra vinte goas de comprido, terá de bocca a sinta onze palmos de goa dentro na esquadria em altura de três palmos de goa da sinta, que se entende do canto da sinta para baixo os três palmos, e da sinta pêra cima se sairão fora da esquadria conforme o modelo mostra na altura do pontaual. Para este Barganti ficar mais possante meter lhe ão quatro cauernas de hum ponto. Terá de fundo de couado a couado sete palmos e meo, arepiara o couado toda altura da madeira quando tirarem as formas. Para este Barganti deste porte repartirão o comprimento em cinco partes que acharem de roda a roda darão hua delias a bocca. O dragante terá outo palmos de goa, e terá pêra o assento do asoalhamento de popa, terá dez palmos de comprido medidos da roda de popa para uante. 426 APÊNDICE A Terá no meo do Barganti no pontaual palmo e meo de vara, e a popa palmo e meo de goa, e na proa hum palmo de vara. Terá na forma repartido dezaseis pares galiuarão quatro num ponto duas pêra vante [fl. 57] e duas pêra a re, e quanto tiuer da esquadria a esquadria de goas, tantos pares meterão na forma. Repartirão a forma pello meo daquillo que tiuer de couado a couado, e tomarão huas das partes pêra meter a madeira de conta deixando as almogamas mais dous dedos fauoraueis para que fique posante. A sinta será pregada na roda de quatro palmos de goa medidos pella esquadria a roda de proa terá seis palmos de alto. Pêra quando quizerem assentar a cauerna mestra tomarão a largura de roda a roda repartida por o meo. Botarão hum prumo, e adonde disser na quilha medirão no dito ponto pêra uante dous palmos de goa, e ahy assentarão as cauernas mestras por lhe ficar delgado a rè serão os vãos das cauernas de hum palmo de uão he bom. A popa terá as bandas de comprido dezaseis palmos de goa, e d'alto dous palmos, e seis barriletes por banda pêra os mandiletes. Terá a roda de popa sete palmos e meo, a face do dragante por a banda de cima polia esquadria, A roda de proa terá dalto seis palmos, a sinta será pregada por o canto do dragante de baixo. Quando quizerem ir emchendo pêra popa porão húa baliza no lugar do dragante, que tenha o meo da bocca, pregarão as armadouras na dita baliza, e depois de terem as armadouras pregadas e preparadas empezarão na madeira de húa banda, e da outra de maneira que caya tanto de húa parte como da outra, e despois de isto assy preparado, tomará três ou quatro balizas por banda pêra com ellas irem galiuando os arebessados, o mesmo farão a proa armadoura de popa [fl. 57v] será pregada dous palmos polia roda medidos pella esquadria, e o prepararão hum cordel, por três ou quatro couados, e irão aleuantando a proa de maneira que uà referindo pellos pontos que estão nos couados, e adonde disser a ponta do cordel assy pregarão armadoura no pontaual pregarão hú verdugo sobre que descance o bacalhar, e se o pontaual tiuer a grossura na altura donde ha de ficar o bacalhar emtalhado fora ao verdugo no dito pontaual. Terá de postiça a postiça dezasete palmos de goa. Os bancos quando os quizerem assentar terão quatro palmos de goa tomarão pello modo da galiota assentarão o banco da popa em seu lugar onde ouuer de ser assentado, e dahy irão repartindo do canto d'ante a re ao segundo polia banda d'ante a rè. O mastro terá das cinco partes do comprimento que ouuer de roda a roda terá as três de verga menos húa goa e mea. O taboado de costado terá dous dedos esforçados. A coxia terá d'alto que fique o liuel com a postiça, os bancos serão embebidos na coxia, e na contra coxia ficará a postiça assentada sobre os bacalhares da face do costado a Os NAVIOS DO MAR OCEANO 427 face da postiça pello canto de fora dous palmos e meo menos hú terço, finalmente terá a postiça a postiça a face de fora dezaseis palmos de goa esforçados. Os graminhos que estão nos modelos traçados estão por seu comprimento, e largura assy de popa com seus cancomos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fls. 56v-57v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, pp. 113-114. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 99-101. DOCUMENTO A.38 Regimento pêra húa falua. Terá de comprimento de roda a roda por cima corenta e dous palmos de goa. Terá a roda a proa cinco palmos medidos do taboado pêra cima entende se que sairão de goa. Terá no meo quatro palmos de goa d'alto. Terá a roda de popa quatro palmos de goa, e hum terço medidos do taboado pêra cima nesta altura, será a sinta pregada nesta altura. Terá a bocca noue palmos de goa. Terá de fundo cinco e meo de couado a couado. Terá d'almogama de proa assentada em dez palmos medidos da ponta da roda. Os graminhos terão d'alto hum terço de palmo esforçado porão em cada graminho sete pontos repartidos pella ordem de húa palha de mastro tirados na mea lua. Terá d'espalhamento na ponta da Cauerna, a metade d'altura da madeira, e repartidos sete pontos como no graminho. Quando quizerem repartir a Cauerna pêra meter os pares que forem necessários com [fl. 58v] forme ao que acharem dúa almogama a outra dando lhe os vãos conforme he ordinário querendo lhe dar os vãos maiores meter lhe ão menos pares repartirão a Cauerna do meo ao couado as duas partes deixando para a banda do couado hum quarto de palmo porque fique as almogamas com mayor corpo. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.58-58v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 101-102. 428 APÊNDICE A DOCUMENTO A.39 Regimento pêra hua fragata de dez goas. Terá de bocca sete palmos de goa esforçados, terá de fundo cinco palmos de uara esforçados, terá sete pares de uão a vão hum palmo de uara escaco, terá a roda d'alto a proa cinco palmos de vara, e a popa cinco de goa, terá a sinta pregada a proa em altura de quatro palmos de goa, e a popa pello dragante, terá o dragante de largo mais algua cousa do terço da bocca, quando puzerem armadoura a rè abrirá o meo da bocca pêra irem enchendo que fique emcorpada. [fl. 59v] Terá de graminhos três dedos a proa, e a popa quatro, terá o graminho de proa cinco pontos, e a popa seis porão as mestras auante algúa cousa do meo pêra ficar a rè com mais delgado, terá de cancomo três dedos escaços, e nelles repartirão seis pontos os bancos dum a outro quatro palmos de uara escaços, e o de primeiro de popa medirão do canto d'ante uante, e assi repartirão o tolete. Rodarão o braço com altura que acharem na maior largura referindo pello ponto que está no couado repartirão a forma em cinco partes de couado a couado, e tomarão duas pêra repartir a madeira. Gastos pêra a dita fragata de madeira primeiramente à mister trinta e sete paos pêra braços e Cauernas faz de custos ao todo acabada dezasete mil reis. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.59-59v. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 117. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 103. DOCUMENTO A.40 Regimento para húa fragata ate dez goas E ate de noue goas e até onze, bastará a mesma boca e fundo esforçado algua cousa. Primeiramente terá de boca sete palmos de goa esforçados, mas bastarão se quizerem seis e meio, e quanto se for de noue goas e sendo de mais bastará como tenho dito acima e mais esforçada a boca e fundo e se for de noue goas bastarão sete pares e terão de vão hú palmo de vara escaco e na boca terá sete palmos de goa Terá a roda de proa a esquadria cinquo palmos de vara, e terá o dragante a terça parte [fl. 27v] da boca e dar lhe ão mais o que parecer bem para que fique maior a popa porque não perdera se ficar mais de terço e ficará mais possante. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 429 A cinta a proa se assentará a esquadria em quatro palmos de vara, e terá o dragante a terça parte da boca e dar lhe ão mais o que parecer bem para que fique maior a popa, porque não perderá se ficar mais de terço e ficará mais passante. Digo que quando passarem a armadura abrira a ree o meio da boca para encher porque depois porque depois [sic] de assentado o dragante ficará o que ficar conforme ao costado, de fundo terá cinquo palmos de vara e couado esforçados e no couado terá de arripiamento quanto tiuer a cauerna de alto, como ja tenho dito atras e assi farão todas as embarcações de remos, E digo que a fragata do tamanho da decima inda que tenha dez goas teraa de fundo cinquo palmos de vara esforçado de couados Terá oyto pares na forma da Cauerna oyto pontos, e oyto cauernas para vante e oyto para Ree, caliuarão duas de hú ponto, húa para a conta das oyto dauante e as outras oyto para a da Ree e para que fique com menos vãos e mais leue dar lhe ão menos pares se quizer e ficarão os vãos mayores e ficará mais sutil tendo sete pares e sendo de noue goas terão os vãos hú palmo de vara escaços [fl. 28] Terá de graminho três dedos a proa, e a popa e terá dalto quatro dedos e repartirão no de proa quatro e no de popa cinquo que bastão se quizer dar cinquo a proa e seis á popa bem pode. Porão as mestras em meio da quilha tanto para a proa como para a popa, e de concauo terá três dedos escaços e neste concauo repartirão seis pontos. Terão as bocas de vão de hua a outra, quatro palmos de vara escaços, a primeira de popa do canto dante vante ao segundo canto dante vante, também he na mesma largura repartirão o talete e * O braço com quanto tiuer de alto a cinta do couado, com esta altura rodarão o braço e terá no meyo a alcatrate três palmos de goa e a cinta á proa em quatro palmos de vara, e á popa á face do dragante por cima Cinquo palmos de goa. Repartirão a forma em cinquo partes e tomarão duas para repartir os pares na cauerna do conto digo que será repartida a forma porque he melhor por ser pequena. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074,fls.27-28. DOCUMENTO A.41 Regimento pêra húa fragata. Terá de comprimento de roda a roda por cima outo goas e mea. Terá de bocca seis palmos e hum terço de palmo. Terá almogama de proa afastada da roda seis palmos de goa. A frase não conclui. 430 APÊNDICE A Terá almogama de popa assentada em seis palmos, e dous terços medidos da ponta da roda. Meterão sete pares na forma repartirão de couado a couado em três partes, tomarão hua pêra por a madeira. Terá a roda de proa d'alto quatro palmos menos dous terços, a sinta será pregada nesta altura. Terá assentado a sinta a popa em altura de quatro palmos de goa, e três dedos que he pello drogante. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 58v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 102. DOCUMENTO A.42 Regimento de húa fragata de outo goas. Terá de bocca seis palmos de goa, e de fundo cinco palmos de vara, terá sete pares galiuarão duas per hum ponto, hua pêra uante, outra pêra, isto se entende tomando o meo da fragata deixando mais comprido algúa cousa a rè. Sintarão a proa em altura de quatro palmos escaços, e a popa pello dragante em altura de cinco palmos, e no meo em três palmos de uara. Terá do graminho hum quarto de palmo escaco, repartirão quatro pontos pêra proa, e cinco pêra popa, terá o graminho mais alto pêra popa, O cancouo terá os mesmos pontos do graminho. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 59. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 115. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Femandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 102-103. DOCUMENTO A.43 Regimento para bateis, barcos e fragatas, bargantins e esquifes. Hu batel de quatorze goas para húa nao da jndia, caliuarão pello primeiro ponto do meio ate auante aonde assentarão à primeira cuberta digo cauerna e terá quatorze palmos de goa porque quantas goas tem de comprido de topo a topo tantos palmos terá de boca, Os NAVIOS DO MAR OCEANO 431 para melhor ficar mais certo [fl. 26v] tomarão, a boca dos quartos e quanto tem de largo tantas goas terá de comprido assi para altura da cuberta terá vinte cauernas e a conta da altura das rodas são as de proa sete palmos e de popa terá seis palmos, e deixarão e farão como tenho dito pellas alturas das cubertas onde ha de ir o batel; Terá de fundo onze palmos de couado a couado, e terá de dez pares ate onze se quizer. Qualquer batel ou esquife terá de primeiro banco doranto dante auante e o segundo banco pello canto dante auante quatro palmos de vara escaços e digo que terá de hu banco a outro de vão dous palmos e meio de goa. Farão a boca que tiuer o batel qualquer que for, e po Ia ão no topo do batel onde ha de ir a alcatrate e na quilha e ahi porão a proa a primeira cauerna de hú ponto. Terá de alto a cinta três palmos e meio de goa e rodarão o braço com esta altura ate onde assenta a cinta, os três palmos serão esforçados de alto acima. Repartirão a forma da Cauerna em três partes de primeiro couado o ponto digo do do [sic] primeiro ponto o couado, e tomarão hua para a madeira escaca da proa ate o meio galeuarão por hú ponto. Terão de garaminho três dedos, e terá repartidos no dito tamanho tantos pontos que são cinquo cauarnas para popa e cinquo para proa, e este batel ha mister cinquo dúzias de taboado [fl. 27] Digo mais claro, a cinta no meio de alto três palmos e meio de goa e a dragoa abaixo meio palmo de goa abaxo da cinta que he para assentar os bancos. Ha mister cinquoenta ou sessenta paos para Leames, e paos que dem duas pessas quatro trabaladois, dous para a popa com seus alcatraques FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 26-27. DOCUMENTO A.44 Regimento do batel grande da Nao de quatro cubertas. Terá de roda a roda treze goas, e de largo treze palmos. Terá dez palmos de fundo, lança a forma palmo e meo. Leuantarà no couado a grossura da madeira. Rodarão com dous palmos e meo, e dahy ira pella esquadria, terá a forma d'alto três palmos e meo. Repartirão a forma da Cauerna do couado atè estilha em três partes, e tomarão húa delias pêra compartir a madeira. Meterá dezaseis pares, e medirá almogama de proa, e a largura que lhe achar polia a d'emcontro na roda e onde lhe disser na quilha ahy se porá antes pêra auante algua cousa que pêra rè. Se neste comprimento parecer pouca madeira podem lhe meter mais. Altura da roda de proa terá sete palmos. A de popa seis. 432 APÊNDICE A Porão a sinta a proa em altura de seis palmos. E no meo em altura de três palmos e três dedos. A popa em altura de cinco palmos. A tilha da proa chegará atee almogama. De banco a banco sete palmos. Terá o graminho de popa d'alto quatro dedos. O graminho de proa três dedos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fl.9. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 79. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 35. DOCUMENTO A.45 Regimento do batel de doze goas Primeiramente terá doze palmos de boca, e terá de fundo noue palmos da boca, terá de roda de popa seis palmos e serão neste batel palmos de vara nestas rodas que baste e terá a roda de proa sete palmos, Terá dezaseis cauernas que são oyto pares e para se assentar a mestra farão pella conta do batel atras assi para todos os mais, assi farão todas as mais contas pella mesma conta conforme o comprimento que tiuer qualquer batel ou esquife que fizer. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fl. 27. DOCUMENTO A.46 Regimento pêra hum esquife de noue goas. Terá noue goas de comprido noue palmos de goa de bocca, de fundo terá seis palmos de couado a couado arepiarà ao couado altura da madeira repartirão a Cauerna em três partes tomarão húa pêra por a madeira, e porão seis pares, galiuarão pello primeiro ponto cinco cauernas pêra proa, e cinco pêra popa demenuirão a terça parte que na forma esta posta a sinta no meo será pregada em altura de três palmos, e a draga em dous e meo, a roda de proa será de seis palmos, e a popa de cinco de goa. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21, fl. 60. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 121. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 104. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 433 DOCUMENTO A.47 Regimento do esquife esta galé [de 24 bancos] Terá de comprido de roda a roda, vinte e cinco palmos e meo de goa. Terá de bocca outo palmos esforçados de goa. [fl. 32v] Almogama terá de popa de bocca seis palmos, e dous terços de palmo, e de couado a couado três palmos e meo menos hum dedo. Almogama de proa terá de bocca cinco palmos e hum terço de palmo, e de couado a couado três palmos, terá de pontal três palmos. Repartirão a forma de couado a couado em quatro partes, e tomarão duas pêra por a madeira menos dous dedos, e por esta conta porão sete cauernas para popa e as sete pêra proa, e reparti Ias hão no mesmo comprimento tirando lhe meo palmo de uara escaco. Terá a sinta pregada a proa em altura de quatro palmos de goa do alefris pêra sima na ponta da roda a esquadria. Terá a roda de popa dalto pregada a sinta em quatro palmos e meo esforçados do alefris para sima feito per esquadria, e terá de largura dalhetas na altura da sinta seis palmos e meo. O graminho da proa, terá quatro dedos d'alto, e o de popa terá dous dedos escaços. Nos graminhos terá repartidos cinco pontos. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XTV-21, fls. 32-32v. PUBLICAÇÃO 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, p. 69. DOCUMENTO A.48 Regimento pêra hum esquife de sete goas. Terá a roda de proa seis palmos de goa, e a de popa quatro e meo, galiuarão do meo pêra vante todas as Cauernas pello primeiro ponto, e do meo pêra rè demenuirão o terço que ouuer no meo de couado a couado. Terá de bocca sete palmos de goa, e terá de fundo menos a terça parte escaco rodarão braço e cauerna com altura, arepiarà ao couado altura da madeira, terá dez cauernas, quando quizerem assentar a primeira tomarão a maior largura, e porão hum ponto na 434 APÊNDICE A roda aonde assenta o alcatrate, e outro ponto na quilha, e aly assentarão a primeira cauerna, dahy uirão assentando as outras galiuadas per hum ponto atee o meo dando lhe de uão hum palmo de vara [fl. 60] terá de graminhos três dedos escaços repartirão nelles quatro cauernas pêra proa, e quatro pêra popa. FONTE: Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod. 52-XIV-21,fls.59v-60. PUBLICAÇÃO 1933 - BARROS, Eugênio Estanislau de, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, p. 119. 1995 - Livro de Traças de Carpintaria por Manoel Fernandez. Transcrição e Tradução em Inglês, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 103-104. DOCUMENTO A.49 Regimento para hú esquife de sete goas Primeiramente alembro que quantas pontas repartirem na forma que caliuarão pello primeiro ponto, quantos pontos tiuer tantas cauernas por hú ponto ate o meio para ree e do meio deminuirão pella forma para bateis e esquifes. Primeiramente terá de boca sete palmos de goa, terá a roda de proa seis palmos de goa e a popa terá quatro e meio Terá cinquo purés que são dez cauernas e se forem muitas tirarão húa e assentarão a primeira em hú ponto tomando a boca e porão na roda onde prega o talabardão e na quilha, e ahi assentarão a primeira como digo, para todos os bateis assi grandes como pequenos. Terá de graminho três dedos escaços e repartirão quatro cauernas para vante e quatro para ree Repartirão a forma da cauerna em três partes tomarão húa para a madeira menos algúa cousa, e de hua das três dous ou três dedos. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074,fl.26. APÊNDICE B Orçamentos e Regimentos Especiais de Arquitectura e Construção Naval DOCUMENTO B.l Folha dos Nauios que Sua Magestade tem nesta Coroa de Portugall, e o estado em que estão, e orçamento do que poderão custar até serem aparelhados e postos à vela com sua artelharia e sem (sic) soldo e mantimentos - que são quinze nauios. toneladas # O galeão st. luis de 480 toneladas portuguesas # O galeão sto. António que veo da jndia do mesmo porte # A nao st. João que veo da índia o ano passado de # A nao Nossa senhora do rosairo que veo este ano de ormuz de # O gualeão st. lucas que hia pêra o Brasil e arribou a jndias # A Caravela sta. Caterina que será de # A Caravela sancto sprito que será de # A zavra julia que será de # A zavra Augusta do mesmo # O galeão grande 1 que faz manoel lopez na ribejra de 750 - ou mais # O galeão st. Bertolameu que faz o dito Manuel na ribeira que será de 520 ou mais # O galeão st. Paulo que faz bastião timudo que será de # O galeão st. Pantaleão que veo do porto de # O galeão st. Pedro que veo do porto de # Outro galeão que se lá fiqua fazendo Somão as toneladas [fl. 43v] 480 480 500 500 450 160 180 100 100 750 520 520 520 520 520 6300 A nao st. João que veo da jndia o ano pasado de 1588 a daver querena e Calafetar costados cubertas e fundos e Reformar mastros, vergas e aparelhar de tudo o necessário a ser posto a vela com sua artelharia pêra o que he necessário o seguinte. + 50 dúzias de tavoado de forro pêra bordaduras payoes de lastro, andaimos pramehar e algum forro gastado que a 2500 reais a dúzia + 100 paos de pinho pêra portaletes e aposturas da bordadura a 400 reais + De mãos de carpinteiros da obra acima com desfechar mastos e tornallos a fechar E que dá pelo nome de S. Felipe. 125U000 040U000 100U000 438 APÊNDICE B + 30 quintais de pregaduras a 2600 # 30 quintais de estopa branca e preta a 14.00 húa por outra + 80 quintais de breu a 800 reais + 3 quoartos dazeite a 40U reais o tonell + 10 quintais de Chumbo a 1600 reais + 20 milheiros destopares a 600 reais + Pêra Cordas pelas, testus, cestos, tojo, lastro, despesa da gente da querena e outras meudezas + 40 dúzias de tavoado de frandes pêra payoes, a 1500 + 10 milheiros de pregos de costado de barqua a 2000 reais + De reformação de xaretas 078U000 042U000 064U000 030U000 016U000 012U000 150U000 040U000 [60000]2 020U000 300U000 Mastos + O masto grande novo por ser muito piqueno o que tem custara feito e acabado 300U000 + E do masto grande que tem se lhe fará o do traquete 070U000 + Hum goroupez novo [fl. 44] 70U000 # A verga grande 20U000 + A verga do traquete + A verga da Cevadeira fará da do traquete e todos os mais mastos e vergas tem. Pêra aparelhar + tem necessidade de duas esquipações de vellas jnteiras hua de viagem e outra de sobresalente que cada húa delias custara 290U reais que são 580U000 + Scilicet [?] 162U reais por 45 lonas largas a 3600 reais + e 83U reais por 4_U varas de pano de villa do conde a 22 reais a vara + e 18U reais por dous quintais de fio de cozer e rolingar toda a esquipação + e as rolingas pasadeiras com vergas e goardis vão com a Emxarcea como também vay a das Reataduras dos mastos + 470 quintais demxarcea pêra seis amarras e pêra emxarcear e aparelhar e pêra Rolingas de velas e reataduras de mastos que pello preço que ate ora valeu que hee a 2700 reais o quintal 1269U000 + por Cadernais e poleames 60U000 21U000 + por três quintais de broncos a 7U reais 60U000 + pêra ferragens necessárias + pêra despensa de mestre e despenseiro que levão cousas de serviço da nao 100U000 e agoas de sobresalente 150U000 + pêra desemmastear e desaparelhar e tornar a emmastear e aparelhar 232U000 + Pêra seis ancoras 4 de 17 quintais e duas de 16. quintais a 2200 reais o [220000] quintal com seus emxeos Os produtos das multiplicações estão frequemente errados. Para evitar a aposição sistemática do sic e ao mesmo tempo apresentar os valores correctos, inserimo-los, quando é caso disso, a seguir ao valor que aparece no documento; há por vezes diferenças de monta entre uns e outros, razão pela qual adoptamos aqui um critério diverso do habitual. Os NAVIOS DO MAR OCEANO + Duas ancoras de sobresalente mais de J_6 quintais ao preço # Oito estrens 4 de 200 fios 4 de 128 pêra se amarrar no rio [fl. 44v] + Do mantimento de oito pessoas que ão destar em goarda desta nao no rio a 1300 reais por mes a cada pessoa de biscoito vinho e condutos se montão em cada Mes 10400 reais e pêra tempo de seis meses sam e os homes hão mister contramestre 2 marinheiros e quatro grumetes + E de soldo pêra os ditos oito homes seis meses em porto a saber 900 reais ao mestre, 800 ao contramestre 600 reais aos marinheiros 400 reais a cada grumete Soma o custo desta Nao st. joão ate qui sem artelharia e armas e monicols [sic] delias 439 72U000 [70400] 66U000 64U400 [62400] 27U000 [25200] 3937U520 Artelharia pêra esta Nao. Hum Camelo de peso de 30 quintais + 12 esperas de peso de 25 quintais cada húa + 8 pedreiros de 13 quintais cada hum + J_0 falcõis de 7 quintais e meio cada hum + 6 berços de hum quintal e 3 arrobas cada hum + Pesa o cobre destas 37 peças dartelharia 519 quintais e meo que a oito mill reais o quintal vai 4156U000 + pesa o ferro desta artelharia dos Rabos e piais três quintais a 2200 reais 0006U600 + 21 Repairos ferrados a 14U reais 294U000 + 12 bancos de falcõis 12U000 + 30 Camarás de falcão e 18 de berço que pesão 44 quintais a 2500 reais 110U000 + 20 Chaves de falcão e berço 4U000 + 60 pelouros de ferro coado a 100 reais 60U000 [6000] + 640 pelouros de pedra a 15 reais 9U000 [9600] + 60 pelouros de dado a 30 reais 1U800 + 180 pelouros de berço a 20 reais 3U600 + 20 colheres de carregadores 8U000 + 21 alimpadores [fl. 45] 2U100 + 10 sacos de Coiro 1U000 + 60 arcabuzes aparelhados 72U000 + 40 piques a 180 7U200 + 40 lanças a 180 7U000 + 60 dardos a 30 reais 1U800 + 10 lanças de foguo 4U000 + 10 bombas de foguo a 500 reais 5U000 + 120 murrõis a 15 reais 1U800 + 2S1 pelouros de cobre de cadeas a 700 reais 14U000 + 60 alcanzias cheas de pólvora que levão dous quintais e meo a 10U reais 25U000 440 APÊNDICE B + 120 alcanzias de barro a 4 reais + 34 argolas de barqueiros a 120 reais + 3 caixõis grandes e 4 piquenos em que vão os arcabuzes + 2 picadeiras + 4 cavilhas dartilharia +10 agulhas + 20 pernetes + 2_L colheres de fazer pelouros + 6 peles de Carneiro + 4 eixos de repairos de sobresalente + 2 sacatrapos +12 macetas + 100 paveses pintados a 260 Soma a artelharia U480 4U080 1U520 U160 1U200 U200 U400 U120 U600 1U000 1U200 2U400 26U000 4848U560 E assi soma ao todo o custo do concerto e aparelho desta Nao e artelharia e moniçõis delia pella maneira atras declarada 8786U080 [fl. 45v] Nao nossa senhora do Rosairo + A nao nossa Senhora do rosairo que este ano veo de Ormuz a de dar querena, e ão se lhe de fazer portinholas, seis bordo, Castello, e ade reformar mesas cubertas e costados calafetar, desemmastear e emmastear e aparelhar pêra o que he necessário o seguinte Por [?] 50 dúzias de tavoado de forro + 200 paos de pinho 100 a 400 e 100 a 500. + 20 dúzias de tavoado manso de costado a 100 + 50 paos de sovro a 800 + J_0 dúzias de tavoado de cuberta + Mãos de carpentaria + 100 quintais de pregadura sorteada + 40 quintais de estupa. a 1400 + 120 quintais de breu a 800 reais + 3 pipas dazeite + 10 quintais de Chumbo + 20 milheiros de estopares + pêra pranchas cordas testos, cestos, lastro, trabalhadores da querena, e outras miudezas + maõs de calafetes + tavoado pêra camarás e payois + 10 milheiros de pregos de costado de barqua + xaretas, madeiras, tavoados e mãos e pregadura 125U000 90U000 200U000 [24000] 200U000 [56000] 36U000 300U000 260U000 54000 [56000] 96U000 60U000 16U000 12U000 200U000 300U000 60U000 20U000 200U000 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 441 Mastos + Valem os mastos e vergas pêra esta Nao com o feitio delles pella maneira abaixo declarada scilicet 300U reais do masto grande + 200U reais do traquete + 70U do goroupez [fl. 46] + 20U o da mezena + 10U o masto da Contra + 70U a verga grande + 20U a verga do traquete + 12U a verga da cevadejra + 20U os mastareus + 10U as vergas delles + 15U a verga da mezena E contra + 4U o batalloo as gáveas + 8U os vãos + 65U as goardavelas 836U000 Aparelhar como sam João atras + duas esquipacõis de velas 580U000 + 470 quintais de emxarcea pêra seis amarras e pêra emxarcear e aparelhar e Rolingas e reataduras a 2700 reais 1269U000 + poleames e codornais 60U000 + 30 quintais de bronzos a 7U reais 21U000 + ferragens 60U000 + despensa de Mestre e despenseiro 100U000 + desemmastear, e emmastear e aparelhar 150U000 + seis ancoras de J_6 e 17 quintais 232U000 + 2 ancoras de sobresalente 74U400 + 8 Estrens 4 de 200 e 4 de 128 66U720 3 + Mantimento a oito homens pêra seis Meses no rio a 1300 reais por mes a cada pessoa 62U400 + de soldo pêra os ditos 8 homes 27U000 Soma toda a despesa desta Nao como parece pela conta atras 5767U520 [fl. 46v] E doutra tanta artelharia e monicõs delia E armas como a Nao st. João que vay atras 4848U560 e assi soma ao todo o custo desta Nao com artelharia 10614U000 (4 x 200) + (4 x 128) = 1312. O mero erro de cópia não justifica adequadamente a diferença de valores em causa. 442 APÊNDICE B Sam luis O gualeão st. Luis a de dar querena e fazer cubertas novas, castello, e reformar costado mesas fazer xaretas Camarás e payois e aparelhar pêra o que lhe hee necessário o seguinte. + 40 dúzias de tavoado de forro + 200 latas a 500 reais + 100 paos de pinho manso + 50 dúzias de tavoado de cuberta + 100 paos de sovro pêra Curvas trincais e outras + 10 dúzias de tavoado manso pêra dragas e outras cousas # Pêra xaretas madeiras e tavoado # Pêra camarás e payois # De maõs de carpentaria # 100 quintais de pregaduras # 60 quintais de Estopa #130 quintais de breu # hum tonel dazeite # dez quintais de chumbo # 20 milheiros destopares # Pranchas, cordas, tojo, testos, cestos lastro e outras miudezas # Mãos de calafates # Reformação de mastos e vergas 100U000 100U000 50U000 180U000 80U000 80U000 60U000 60U000 400U000 260U000 84U000 104U000 40U000 16U000 12U000 160U000 300U000 120U000 Aparelhar como st. João # Duas esquipacõis de vellas # 470 quintais demxarcea a 2700 reais [fl. 47] # Poleames e Cadernais # 3 quintais de broncos a 7U reais # ferragens 60U # Despencas de mestre e despensejro # Pêra desemmastear e desaparelhar e tornar a emastear e aparelhar # Pêra seis ancoras # Pêra duas ancoras de sobresalente # 8 estrens pêra amarrar no rio # Mantimento as seis pesoas de 6 meses # soldo pêra as ditas 8 pessoas o dito tempo 580U000 1269U000 soma o custo do Concerto e aparelho desta Nao sam luis Soma ao todo o concerto e aparelho e artelharia deste gualeão Nao santo António 4906U000 9755U000 60U000 21U000 60U000 100U000 150U000 232U000 72U000 66U720 62U000 27U000 A nao sancto António a de fazer e reformar três cubertas fazendo as do masto a proa, Castello e tolda e Costado camarás e payois e xaretas e aparelhar pêra o que he necessário o seguinte. Os NAVIOS DO MAR OCEANO # 120 latas a 800 reais 443 60U000 [96000] 128U000 60U000 180U000 64U000 # 160 paos de sovro a 800 reais # 150 paos de pinho manso a 400 # 50 dúzias de tavoado bravo de Cuberta a 3600 # 8 dúzias de tavoado manso a 600 # 8 dúzias de tavoado Caravelar pêra bordaduras e costado e payois do lastro e amdajmos da querena a 2500 reais 125U000 # 50 dúzias de tavoado de frandes pêra camará e payois de pão emxarceas e pêra pranchar 75U000 # De jornais de carpinteiros 400U000 # 80 quintais de pregaduras a 2600 208U000 # 50 quintais de estopa a 1400 70U000 # 180 quintais de breu a 800 144U000 # hum tonel dazeite 40U000 # 10 quintais de Chumbo 16U000 [fl. 47v] #20 milheiros de Estopares 12U000 # pranchas cestos, testos, tojo pelles lastro e outras miudezas 140U000 # jornais de calafates 400U000 # Reformação de mastos vergas e gáveas, vãos, Carlingas e calceires 150U000 # De duas esquipaçõis de vela 580U000 # 470 quintais de emxarcea a 2700 1269U000 # poleames e Cadernais 60U000 # 3 quintais de broncos 21U000 # despensas de mestre e despenseiro 100U000 # desemmastear e emmastear e aparelhar 150U000 # 8 ancoras de 17 e 16 quintais 304U000 # 8 estrens de Esparto 66U720 # Mantimento no rio a 8 pessoas de 6 meses 62U400 # soldo pêra as ditas pessoas 27U000 Soma o concerto e aparelho deste galeão sancto António 4912U520 E outra tanta artelharia e monicõis como a cada hú dos navios atras E assi soma ao todo o concerto e aparelho deste gualeão 4848U560 9761U080 SamLuquas O galeão st. Lucas adaver querena forrar mesas, desforrar, e forrar e calafetar costados fazer parte das cubertas reformar castellos e Chapiteos fazer payois, Camarás e xaretas e aparelhar pêra o que avera mister o seguinte. # 120 dúzias de tavoado de forro 300U000 # 60 dúzias de tavoado de Cuberta 216U000 [fl. 48] # 150 paos de sovro a 800 120U000 # 150 latas a 500 075U000 # Cem paos de pinho a 400 040U000 # 10 dúzias de tavoado manso 100U000 444 APÊNDICE B # de mãos de Carpentaria # Camará e payois tavoado e pregadura # Reformação de xaretas # 140 quintais de pregaduras # 50 quintais de estopa a 1400 # 140 quintais de breu a 800 310U000 90U000 080U000 364U000 70U000 092U000 [112000] 160U000 016U000 012U000 # quatro toneis dazeite # 10 quintais de Chumbo # 20 milheiros destopares # Cal, Cestos, testos, tojo, pranchas, Lastro, e serviço da querena e outras miudezas 220U000 # Mãos de calafeto 350U000 # Reformação de Mastos 120U000 # duas esquipações de vellas 507U500 # 420 quintais demxarcea pêra seis amarras e emxarcear, reataduras e rolingas 1134U000 # Poleames e Cadernais 50U000 # 3 quintais de broncos 21U000 # ferragens 60U000 # Despensa de mestre e despenseiro 100U000 # Desemmastear e emmastear e aparelhar 130U000 # 6 ancoras de 14 e 15 quintais que são 87 quintais com seus emxeos 203U000 # 2 ancoras mais de sobresalente de 15 quintais 66U000 # Mantimento de 8 pesoas pêra seis meses no rio 62U400 [fl. 48v] soldo pêra as ditas 8 pessoas Soma o Custo e aparelho deste gualeão st. lucas 5206U000 A este gualeão se não conta artelharia porque lhe servira a que trouxe darribada e reformar se a cõ algúa da que tinha o galeão st. Luis e a que mais tem será pêra armar as Caravelas Caravela sta Catarina + A Caravela sta. Catarina ha de reformar os costados, Castelo e popa e fazer varanda que tudo quebrou com o tempo reformar portinholas, cubertas, e xaretas e aparelhar pêra o que a mister o seguinte. # 40 paos de pinho manso a 600 # 6 dúzias de tavoado e pinho manso # 6 dúzias de tavoado de cuberta a 3600 # 20 dúzias de tavoado de frandes # Mãos de Carpentaria # 20 quintais de pregaduras # 15_ quintais de Estopa # 30 quintais de breu 24U000 30U000 21U000 [21600] 30U000 30U000 52U000 21U000 24U000 Os NAVIOS DO M A R OCEANO # h ú m quarto dazeite # Pranchas peles, cestos, testos, Cordas tojo lastro, e outras miudezas # Reformação de Mastos # duas esquipacõis de velas scilicet [sic] 350 varas de pano cada húa e 4 peças de lonas largas e hú quintal de fio de cozer e rolingar e 10U reais de feitro # 200 quintais de Emxarcea pêra 6 amarras e emxarcear, reataduras e rolingas [fl. 49] # Poleames e broncos ha na casa pêra EUa # 6 Ancoras de 9 quintais são 54 quintais a 2200 com seus emxios # # # # Despensa de mestre e despenseiro 4 estrens de 125 fios 6080 Mantimento pêra seis pessoas 6 meses no rio soldo pêra 6 pessoas de 6 meses no rio Soma o concerto e aparelho desta Caravela 445 10U000 50U000 49U000 220U000 540U000 130U000 [118800] 060U000 024U320 46U800 18U000 1442U000 A se de armar da artelharia com a que ficou do galeão sam Luís Caravela sti spritus A caravela santo sprito a de fazer xaretas portinholas, pavesaduras, Camarás e payois pêra o que ha mister o seguinte # 20 latas a 500 # 4 dúzias de tavoado de cuberta a 3600 [14400] # 3 dúzias de tavoado manso # 20 dúzias de tavoado de frandes # Mãos de carpentaria # 8 quintais de pregaduras # ! 0 quintais de Estopa # 25 quintais de breu # Cordas, pranchas, tojo, cestos, testos outras miudezas # Mãos de calafetos # Reformação de mastos # Duas esquipacõis de velas # 200 quintais demexarcea # seis ancoras [fl. 49v] # despensas de mestre e despensejro # 4 Estrens de 128 fios # Mantimento pêra 6 pessoas no rio 6 meses # soldo pêra 6 meses a 6 pesoas Soma a despesa do concerto e aparelho da Caravela santi sprito A se de armar com artelharia do gualeão st. Luís 010U000 014U000 015U000 030U000 020U000 020U000 014U000 020U000 030U000 O35UOOO 022U000 22OU8OO 540U000 130U000 060U000 024U220 46U800 18U000 1281U920 446 APÊNDICE B Zavra Julia A zavra julia a de por a monte, reformar cubertas e Costados e aparelhar pêra o que a daver o seguinte. # 50 paos mansos a 400 #10duziasdetavoadoa3600 # 5 dúzias de tavoado manso # 20 dúzias de tavoado de frandes # Mãos de carpinteiros # 15 quintais de pregaduras # 12 quintais de Estopa # 30 quintais de breu # hum quarto dazeite # Miudezas # Mãos de Calafeto # duas esquipacõis de vellas cada hua 20 peças de lona, e 150 varas de pano de treu hum quintal de fio e dez mill reais de feitro [fl. 50] # 200 quintais de emxarcea pêra amarrar e aparelhar, Rolingas e Reataduras # Despensa de mestre e despensejro # 4 estrens de 128 fios # 6 ancoras de 7 quintais 42 quintais # Mantimento a 5 pessoas no rio 6 meses # soldo das cinco pessoas no rio pêra 6 meses # Soma o concerto e aparelho e aparelho [sic] desta zavra 20U000 36U000 25U000 30U000 20U000 39U000 16U800 24U000 10U000 20U000 35U000 48U000 ' 540U000 60U000 24U000 92U400 39U000 15U600 1295U120 Tem artelharia com que esta aparelhada Zavra Augusta A zavra augusta tem a mesma necessidade de por a monte concerto e aparelho pollo que a daver outro tanto dinheiro que he 1295U120 e tem artelheria Necessária [fl. 50v] O gualeão grande são felipe + O gualeão st. felipe que faz manoel lopez na ribeira das Nãos a se lhe de fazer per conta da fazenda de s. Magestade o seguinte + A de forrar da quilha te o portalo e fechar todos os mastos e forrar guaveas fazer xaretas, pavesaduras, per paos payois, e Camarás pêra o que he necessário o seguinte O valor relativo às centenas de milhar é ilegível. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 447 # 120 dúzias de tavoado de forro a 2500 300U000 # 60 paos de sovro a 800 48U000 # 50 latas pêra madres das xaretas e per paos 25U000 #15 dúzias de tavoado de cuberta pêra barrotes da xareta 54U000 # e se ouver daver carregadores como sam Martinho a de gastar muito mais madeira + 100 dúzias de tavoado de frandes pêra payois Camarás, e ripas das xaretas e pavesaduras 150U000 # De mãos de carpentaria 200U000 # 70 quintais de pregaduras pêra forro payois Camarás, e pêra ferragens como são chapas de portinholas e Argolas e argaveus e outras ferragens 182U000 # 30 quintais de Estopa 42U000 # 90 quintais de breu 72U000 # cinco toneis dazeite a 40U 200U000 # pêra lastro 50U000 [fl. 5J] # Cal, cestos Cordas, tojo, pranchas e outras miudezas 200U000 # Mãos de carpentaria 120U000 # Mastos deste gualeão que se lhe ão de fazer custarão 917U000 scilicet 350U reais o masto grande + 250U o masto do traquete + 75U o goroupez + 80U a verga grande + 30U o masto da mezena e Calces + 15U o masto do contracalces + 20U as vergas destes dous mastos + 25U a verga do traquete + 20U os dous mastareos + 15U as vergas deles + 12U reais a Cevadeira + 5U o botaloo + 12U as duas gáveas + 8U os vãos + per duas esquipacõis de velas e leva cada hua o seguinte 686U000 + 50 peças de lonas a 3600 180U000 + 5U varas de pano de treu a 22 110U000 + 3 quintais de fio a 9U 27U000 + feitro e rolingar 26U000 + 600 quintais demxarcea pêra 8 amarras e aparelhar rolingas e Reataduras a 2700U reais 1620U000 # 8 ancoras de 18 te 20 quintais que fazem 152 quintais a 2200 reais com seus emxios 350U400 + poleames e Cadernais 80U000 + 5 quintais de broncos a 7U reais [fl. 51v] 35U000 # Emmastear, e aparelhar 100U000 # Despensa de mestre e despenseiro 160U000 # 8 estrens de 200 fios a 10600 84U800 448 APÊNDICE B # De mantimento pêra 10 pessoas 6 meses 78U000 # De soldo pêra 10 pessoas 6 meses 34U000 Soma a obra que se ade fazer neste galeão e aparelho delle 8788U400 # O estado em que esta este galeão he este Esta todo cheo de madeira e apostorado e tem lançada a primeira cinta e o dromente da primeira cuberta e vay tavoando o fundo + tem Manoel lopez recebido pêra elle o primeiro terço e esta lhe passado provisão pêra o segundo terço, deve se lhe o terceiro que monta 3306U000 E assi se lhe devera o que mais montar em toneladas pello acrecetamento que se lhe mandou fazer ao respeito de como se lhe pagão por o contrato do dito gualeão Artelharia deste galeão + hum lião de peso de 65 quintais # htia serpe de peso de 5_Q quintais # 7 camelos de peso de 30 quintais cada hú # 20 esperas de peso de 25 quintais huas per outras # 6 pedreiros de 23 quintais cada hú # 7 falcõis de 7 quintais e meio cada hum #10 berços de 1 quintal 3 arrobas cada hú E assi soma o peso de 57 peças dartelharia acima que pesarão 1004 quintais a 8000 o que valem 8032U000 [fl. 52] # Pesa o ferro de 12 falcõis e 10 berços que levão os rabos e piais 4 quintais e meio a 2200 reais o quintal 9U900 # 36 Camarás de falcão e 30 Camarás de Berço que pesão 55 quintais 1 arroba a 5 arrobas por camará de falcão e arroba e meia por Camará de berço a 2500 reais 138U125 # 20 Chaves de falcão e berço podem pesar dous quintais a 2200 # 35 Repairos das peças grosas a 14U + 1620 pelouros de ferro coado a 100 + 1000 pelouros de pedra a 15 reais + 60 pelouros de falcão chumbados + 300 pelouros de berço a 20 reais + 10 pes de Cabra a 600 + 33 alimpadores a 100 reais + 33 carregadores a 400 reais + 100 arcabuzes aparelhados a 1200 4U400 490U000 162U000 15U000 1U800 6U000 6U000 3U300 13U200 120U000 Os NAVIOS DO MAR OCEANO + 200 murriõis a 15 reais + 100 piques a 180 + 60 meos piques a 120 + 60 lanças a 180 + 100 dardos a 30 + 40 pelouros de cobre de cadeas a 700 + 40 pelouros de ferro de cadeas a 320 + 20 bombas de fogo + 20 lanças de fogo + 20 dardos de fogo + 6 cavilhas a 250 + 10 agulhas de ferro [fl. 52v] # 40 pernetas # 4 colheres de derreter chumbo # 3 picadeiras # 60 argolas de barqueiros # 10 rodas de repairos # 20 Eixos a 250 # 14 bancos de falcão a 1000 # 20 agulhas de pee # 200 macetas # 6 caixõis pêra pelouros # 5 caixõis pêra arcabuzes # 4 astes de piques a 130 # 200 alcanzias cheas de pólvora que levão 8 quintais a 10U # 200 alcanzias de barro # 12 pelles de Carneiro + 8 colheres de carregadores + 120 paveses pintados soma toda a artelharia 449 3U000 18U000 7U200 10U800 3U000 28U000 12U800 10U000 8U000 5U000 1U800 [1500] U200 U800 U240 U240 7U200 6U000 5U000 14U000 6U000 4U000 U480 2U000 U520 80U800 U800 1U200 2U400 31U200 9274U180 E assi vali ao todo o aparelho deste galeão, e o que se deve a conta delle artelharia 18368U583 O guíilcão st. O gualeão st. bertolameu que faz Manoel Lopez na ribeira, esta em estado de se acabar falta lhe somente solhar a tolda e coxias e castello, fazer quartéis e chapiteo, e castello e mesas e leme, e 4 carreiras de cintas, e o esporão, seis bordo e varanda, o que tudo ade fazer por conta do contratador a que se deue o terço dorradeiro que vali 2300U000 [fl. 53] + Per que o primeiro terço lhe he pago e pêra o segundo lhe he passada provisão posto que ate hora lhe não he paguo E a obra que a de fazer a conta da fazenda de s. Magestade he a seguinte 450 APÊNDICE B forrar todo fazer xaretas, fechar mastos, forrar gáveas, fazer payois e Camarás e pavesaduras pêra o que he Necessário o seguinte e pêra aparelhar # 100 dúzias de tavoado de forro + 50 paos de sovro + 40 latas # 10 dúzias de tavoado de cuberta # 60 dúzias de tavoado de frandes + De mãos de carpentaria + 50 quintais de pregaduras + 25 quintais de estopa + 80 quintais de breu + 5 toneis dazeite + Pêra cal, corda, pranchas, tojo, Cestos, testos, e outras miudezas + Pêra lastro + de mãos de calafates + De mastos scilicet 300U o masto grande + 200U o masto do traquete + 70U o goroupez + 20U o masto de Mezena + 10U o masto da contra + 70U a verga grande + 2 OU a verga do traquete + 12U a verga da cevadejra + 20U dous mastareos + 10U as vergas delles + 15U a verga da mezena e contra + 4U o botaloo [fl. 53v] + 12U as gáveas + 8U os vãos + 65U três paos pêra goarda velas 250U000 040U000 020U000 036U000 090U000 170U000 230U000 035U000 064U000 200U000 180U000 040U000 120U000 836U000 + por duas esquipacõis de velas pello modo seguinte 610U800 scilicet 172U800 por 48 peças de lonas pêra hua esquipacão + 94U600 reais por 4300 varas de pano a 22 reais + 18U reais por 2 quintais de fio + 20U reais por feitro + E outro tanto de cada cousa por outra esquipacão + 1350U por 500 quintais demxarcea pêra 6 amarras e aparelhar rolingas e arreataduras 1350U000 + 8 ancoras de 16 de 17 quintais que fazem 132 quintais a 2200 reais 310U000 + poleames e cadernais 60U000 + 3 quintais de broncos 21U000 + despensa de mestre e despenseiro 100U000 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 451 + pêra emmastear e aparelhar + 8 estrens pêra amarrar no rio 4 de 200 fios e 4 de 128 + de mantimento no rio pêra 8 pessoas 6 meses + soldo no rio pêra as ditas no dito tempo 80U000 66U720 64U400 27U000 Soma o custo de que ade fazer per conta da fazenda de s. Magestade e aparelhar como parece te aqui 4992U900 + Vai a artelharia pêra este galeão com suas monicõis que hee outra tanta como a que se deu [?] pêra a Nao st. joao 4848U560 Soma ao todo este galeão 12141U400 [A partir deste ponto o documento continua no Livro Náutico, fls. 41-48] Gualeão st Paulo O gualeão st. paulo que faz bastião timudo no seixal tem por acabar a segunda cuberta que ade solhar e fazer a tolda e virotar e fazer coxias e Castello e chapiteo e messas e cinco carreras de cintas e tavoas as alcaixas e aposturar o convés e abobodas e varanda. tem recebido 4600U do primeiro e segundo terço deve se lhe 2300U reais a comprimento do contrato e montando mais das 500 cruzadas se lhe devera o que nellas montar 2300U E a obra que ade fazer para conta de Sua Magestade he a seguinte forrar tudo fazer xaretas fechar masto e forrar gáveas, fazer payois e Camará e pavesaduras pêra que e pêra aparilhar hee necessário outro tanto como o gualeão st. Bertolameu que fiqua atras 4992U900 E vai a artelharia que adaver com monicões outro tanto como a Nao st. João que monta 4848U560 Soma ao todo o que se deve a este gualeão e o que mais ha mister te ser posto a vella e com artellharia e monicõis 12141U460 [fl.41v] Galeão st. Pantalião O galeão st. pantaleão que veo do porto tem por fazer o seguinte, tem por fazer a tolda, coxias castelo, chapiteo, e aposturagem e virotagem, mesas, e cintas de fora e alcaixas e varandas. tem ávido o primeiro e segundo terço deve se lhe o tercejro que vai 2033U333 452 APÊNDICE B A de forrar e fazer a mesma obra que st. Bertolameu e aparelhar que custa ao todo 4992U900 E a daver outra tanta artelharia como cada hum dos gualiõis atras e suas monicõis que valem 4848U560 Soma ao todo o que se deve deste galeão e o aparelho e mais feitio delle e artelharia como as três somas acima 11874U793 Galeão sam Pedro O galeão st. pedro que veo do porto esta da mesma maneira, e a daver o mesmo fora e mais cousas necessárias, aparelho e artelharia e assi vai 11874U793 outros fazem outro galeão no porto do mesmo porte e contrato e tem recebido os ditos dous terços o qual dizem estar cheo de madeira somente a daver o mesmo forro por conta da fazenda de Sua Magestade e as mesmas cousas conforme aos galeõis acima e a mesma artelharia que tudo vali 11874U793 [fl. 42] + ha mais hua caravela e hua zavra que se fazem no porto por contrato que se acabarão ate fim de fevereiro que vem dando se lhe dinheiro pêra isso que te oje lhe não tem dado nenhum, e estão meas feitas podem valer os Cascos dambas 4000U000 E valerão os aparelhos desta Caravela e zavra conforme as Caravelas e zavras atras 2591U040 Soma o Custo da Caravela e Zavra e aparelho delia 6591U040 E valem a artelharia e monicões destes dous navios - Scilicet - 2000U hua espera de 20 quintais + dous ' de 26 quintais + 6 falcõis 45 quintais + 6 berços 10 quintais e meo + E pêra a zavra húa mea Espera + 8 falcõis 60 quintais + 4 berços 7 quintais Soma o cobre 186 quintais e meio que valem 1492U reais E as monicõis e armas 508U reais + Soma ao todo esta Caravela e Zavra 8591U090 Soma ao todo o aparelho e artelharia dos navios atras 136U308U 245 [fl. 42v] Segue-se um espaço em branco. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 453 Recopilação das monicõis necessária a estes Navios das que ao de vir de fora somente # De cobre # De Emxarcea + De lonas pondaveis + De pano de vila de conde + de fio de coser e rolingar + de ferro + de pregaduras + de estopa + de breu + dazeite + de pregos estopares + de pregos de Costado de barca + de Amcoras + de Estrens + darcabuzes [fl. 43] 6320 quintais 6600 quintais 1200 peças 133U varas 50 quintais 800 quintais 900 quintais 500 quintais 1320 quintais 40 toneis 250U 250U 124 peças 112 peças 1000 peças Orçamento de que podem valer os soldos e mantimentos de 4603 pessoas que levarão os quinze Navios abaixo declarados a três meses de soldo dantemão e seis meses de Mantimento. Valem os soldos de 550 pessoas que irão no galeão st. felippe scilicet 198 pessoas de navegação e 352 soldados de três meses dantemão hum Conto quinhentos sesenta e oito mill e oitocentos reais pola manejra abaixo declarada 1568U800 Scilicet 12U reais ao capitão môr a 4U reais por mes e 2U400 reais ao escrivão a 800 por mes e 6U reais ao capelão a 2U reais por mes e 12U reais ao piloto a 4U reais por mes e 9U reais ao contramestre a 3U reais por mes e 7U200 reais ao guardião a 2400 reais e 7U200 reais ao sotapiloto a 2400 reais e 6U reais ao solorgião a 2U reais por mes e 18U reais a 3 carpinteiros a 2U reais por mes e 18U reais a 3 calafates a 2U reais por mes e 9U600 reais a 2 tanoeiros a 1600 reais e 10U800 reais ao meirinho, despenseiro e barbeiro a 1U200 reais a cada hu por mes e 8U400 reais a 2 estrinqueiros a 1400 reais e 216U reais a 60 marinheiros a 1200 reais por mes cada hum e 144U reais a 60 grumetes a 800 reais e 9U600 reais a 6 pagens a 533 reais e 6U reais ao condestabre a 2U reais 454 APÊNDICE B e 209U800 a 49 bombardeiros a 1400 reais e 844U800 reais a 352 soldados a 800 reais [11. 43v] E vai o soldo de 400 pessoas que hão de jr no galeão sam Bertolameu scilicet 150 de Navegação e 250 soldados nos ditos três meses dantemão hum conto cento e vinte cinco mill e quatrocentos reais pola maneira seguinte 1125U4000 Scilicet 6U ao capitão a 2U reais por mes e 2U400 ao escrivão a 800 reais e 6U ao capelão a 2000 reais e 9U ao mestre a 3U por mes e 9U ao piloto a 3U e 7U200 ao contramestre a 2400 reais e 6U ao goardião a 2U reais e 6U ao sotapiloto a 2U reais e 12U a dous carpinteiros a 2U reais e 12U a dous calafates a 2U reais e 4U800 ao tanoeiro a 1600 reais e 10U800 ao despenseiro, meirinho, e barbeiro e 180U a 50 marinheiros a 1U200 reais cada hum e 120U a 50 grumetes a 800 reais cada hum e 6U400 a 4 pagens a 533 reais e 6U ao Condestabre a 2U reais e 121U800 a 29 bombardeiros a 1U400 reais e 600U reais a 250 soldados a 800 reais por mes cada hum E sete contos oitocentos setenta e sete mill e oitocentos reais de soldos dos ditos três meses dantemão a 2800 pessoas que ão de jr nos outros sete galeõis e Naus de 500 te 550 toneladas 400 pessoas a cada hu pola maneira do aleão atras que he 1125U800 reais cada Navio 7877U800 [fl. 44] E quinhentos e quatorce mill e duzentos reais por o soldo de três meses dantemão a cento e setenta e cinco pessoas que ão de jr em húa Caravela scilicet 75 pessoas de navegação e 100 soldados pola maneira seguinte # 6U reais ao capitão # 2U ao escrivão + 7U200 reais ao mestre a 2400 por mes + 9U reais ao piloto a 3U reais por mes + 4U800 reais ao guardião a 1600 reais + 6U reais ao carpinteiro + 6U reais ao calafate + 4U800 ao tanoeiro + 10U800 ao meirinho, despenseiro e barbeiro + 90U a 25_ marinheiros # 60U a 25 grumetes 514U200 Os NAVIOS DO MAR OCEANO 455 + 6U reais ao Condestabre + 50U400 a 12 bombardeiros + 240U reais a 100 soldados E hum conto e vintoito mill e quatrocentos reais por ho soldo dos ditos três meses dantemão a 350 pessoas que ão dir em outras duas Caravelas a 514U200 reais cada húa conforme a Caravela atras 1028U400 E trezentos trinta e oito mill e quatrozentos reais por o soldo de três meses dantemão a 120 pessoas que ão dir em húa das Zavras scilicet 60 pessoas do mar e 50 soldados pola maneira seguinte 338U400 e 6U reais ao capitão e 2U400 ao escrivão e 7U200 reais ao mestre e 9U reais ao piloto e 6U reais ao contramestre e 4U800 ao goardião e 6U reais ao carpinteiro e 6U ao calafate e 72U a 20 marinheiros [fl. 44v] e 48U reais a 20 grumetes e 6U reais ao condestabre e 29U400 reais a 7 bombardeiros e 120U reais a 50 soldados E seiscentos setenta e seis mill e quatrozentos reais a 220 pessoas que ão dir em ambas duas Zavras pola maneira da Zavra atras, dos ditos três meses dantemão a 338U400 reais por cada zavra 676U400 E assi somão os soldos das ditas 4603 pessoas atras declaradas dos ditos três meses dantemão treze contos cemto e vinte nove mill e quatrozentos reais 13129U400 Mantimentos Valem os mantimentos de seis meses pêra 550 pessoas que ão dir no galeão grande st. felipe, seis contos trezentos setenta mill quinhentos e sesenta reais pola maneira abaixo declarada 6370U560 Scilicet 2227U500 por 1237 quintais e meo de biscoito a 1U800 reais o quintal [fl. 45] e 795U reais por 159 pipas de vinho a 5U reais a pipa e 1650U reais por 3300 arrobas de Carne a 500 reais arroba e 412U reais per 687 dúzias e meia de pescadas a 600 reais dúzia e 117U320 reais por once quartos e nove Cântaros e meo dazeite a 40U reais o tonell e 42U reais por 10 pipas e hu quarto de vinagre a 4U reais a pipa e 492U reais por 410 pipas vazias a 1200 reais pipa 456 APÊNDICE B e 7U200 reais por 12 quartos a 600 reais e 250U800 reais por 2508 arcos de ferro a 100 reais o arco lanzado e 3U840 reais por \2 feixes darcos e 12 liaças de vimes e 2U400 reais por 2 moyos de sal e 3 OU por botiqua ordinária e 140U reais por lenha perra animar e queimar na viagem e 200U reaispor arrumação, agoadas carretos, barcas e outras despesas miúdas E quatro contos seiscentos e vinte mill duzentos e dez reais que valerão os mantimentos de quatrozentas pessoas que ão dir no galeão st. Bertolameu por tempo de seis meses. 150 de Navegação e 250 soldados polia maneira abaixo declarada 4620U210 Scilicet 1620U por 900 quintais de biscoito a 1800 reais o quintal e 577U500 reais por 115 pipas e hú quarto de vinho a 5U reais a pipa e 1200U reais por 2400 arrobas de Carne a 500 reais a arroba e 300U reais por 500 dúzias de pescadas a 600 reais a dúzia [fl. 45v] e 88U470 reais por 8 quartos e H cântaros dazeite a 40U reais o tonell e 32U por 8 pipas de vinagre a 4U reais a pipa e 348U reais por 290 pipas vazias a 1200 e 5U400 por nove quartos a 600 reais e 177U600 por 1776 arcos de ferro a 100 reais cadarço lançado e 2U400 reais por 2 moyos de sall e 3U840 reais por arcos de pao e liaças de vimes e 25U reais por botica ordinária e 100U reais por lenha pêra arrumação e queimar na viagem e os 140U reais por despesas miúdas dagoadas carretos fretes, arrumação e outras E valem os mantimentos pêra 2800 pesoas que ão dir nos outros sete gualiõis e navios 400 em cada hú pêra os ditos seis meses trinta e dous contos trezentos quarenta e hum mill quatrozentos setemta reais que são a 4620U210 reais a cada hú delles que he outro tanto como ao galião st. Bertolameu atras 32341U470 E dous contos duzentos digo dous contos e vinte quatro mill, e quatrozentos e vinte reais que valerão pola dita maneira os mantimentos de 175 pessoas que ão dir na Caravela sto. sprito por tempo de seis meses por a maneira trás decrarada 2024U420 Scilicet 708U750 reais por 393 quintais e três arrobas de biscoito a 1800 reais o quintal [fl. 46] e 252U500 reais por 50 pipas e hú quarto de vinho a 5U a pipa e 525U500 reais por 1U50 arrobas de Carne a 500 reais arroba e 137U400 reais por 219 dúzias de pescadas a 600 reais a dúzia e 46U150 por 4 quartos e 7 Cântaros dazeite ao preço acima e 8U reais por duas pipas de vinagre a 4U reais pipa e 1U800 reais por três quartos a 600 reais Os NAVIOS DO MAR OCEANO 457 e 156U por 130 pipas vazias a 1200 reais a pipa e 79U200 por 792 arcos de ferro a 100 reais por arco lançados e 1U200 reais por arcos de pao e liaças de vimes e 1U200 reais por hu moyo de sall. e 12U reais por hua botiqua. e 40U reais por lenha pêra arrumar e queimar na viagem. e 60U reais por despesas miúdas dagoadas, carretos fretes e arrumação E assi valem os mantimentos de 350 pessoas que ão dir nas outras duas Caravelas a 175. pessoas em cada húa os ditos seis Meses quatro contos quarenta e oito mill oitocentos e quarenta reais pola maneira atras decrarada a 2024U420 reais cada hua 4048U840 [fl. 46v] E vai o mantimento que será necessário pêra 110 pessoas que ão dir na zavra julia pêra os ditos seis meses hum conto duzentos e oitenta e cinco mill setecentos e vinte reais polia maneira abaixo declarada 1285U720 Scilicet 445U500 reais por 247 quintais e meo de biscoito a 1800 reais e 160U por 32 pipas de vinho a 5U reais e 330U por 660 arrobas de carne a 500 reais arroba e 84U por 140 dúzias de pescadas a 600 reais a dúzia e 32U300 reais por 3 quartos e três cântaros dazeite e 8U000 por 2 pipas de vinagre a 4U reais e 1U920 reais por feixes darcos e liaças de vimes e 1U200 reais por hu moyo de sall e 10U reais por húa botiqua e 30U reais por lenha pêra arrumação e queimar na viagem. e 40U reais por carretos, fretes, agoadas, e arrumação e 91U200 reais por 76 pipas vazias a 1200 reais a pipa e 47U200 reais por 472 arcos de ferro a 100 reais cada hum e 2U400 reais por 4 quartos a 600 reais [fl. 47] E valera o mantimento de 220 pessoas que ão dir nas outras duas zavras tanto a cada hua como a esta atras dous contos quinhentos setenta e hu mill quatrozentos e quarenta reais 2571U440 E assi valem ao todo os mantimentos dos 4603 homens destes quinze navios por tempo de seis meses cincoenta e três contos, duzentos sesenta e dous mill seiscentos e sesenta reais 53262U660 [fl. 47v] Recopilação dos mantimentos que serão necessários conforme ao orçamento atras + de biscoito dez mill quatrocentos noventa e quatro quintaes + de vinho mill trezentas e trinta pipas + de carne vinte seis mill trezentas e quarenta arrobas 10U494 quintais 01U330 pipas 26U340 arrobas 458 APÊNDICE B + de pescadas cinco mill setecentas e sesenta e cinco dúzias + de Azeite vinte seis toneis + de vinagre oitenta e seis pipas # quartos cem to e quatro # arcos de ferro vinte mill # boticas de mezinhas quinze + feixes darcos de pipas cem to e quarenta e dous + liaças de vime duzentas e oitenta + sal vinte quatro moyos + lenha, hú conto duzentos e dez mill reais + despesas miúdas hum conto quinhentos e sesenta mill reais [fl. 48] 05U765 dúzias U026 toneis U086 pipas U104 quartos 20U000 arcos U015 boticas U142 feixes U280 liaças U024 moyos 121 OU reais 1560U reais Recopilação da gente que ade jr nestes quinze Navios que são 4605 pessoas + de mestres, pilotos e officiais dos navios + de Marinheiros + de grumetes + Pagens + Condestabres + Bombardejros + soldados 308 597 597 038 015 338 2802 4695 FONTES: [I a parte:] Memorial de Várias Cousas Importantes, BNL - Reservados, cod. 637, fls. 43-53v. [continuação do documento:] Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257, fls. 43-48. DOCUMENTO B.2 O que parece que poderão custar os seis galiõis que se ora ordenão emmasteados e postos a vela com seu sobresalente, e artelharia, e monicõis necessárias de que o almazem esta falto hee o seguinte. Deue se fazer nesta cidade de lisboa hum galeão de 630 toneladas como sant Martinho, e dous de 500 toneladas cada hum, hum na ribejra de Sua Magestade onde se fará o de 600 toneladas, e outro no Chafaris dei Rey. E deue se fazer outros dous galiõis de 500 toneladas cada hum na cidade do porto, e outro do mesmo porte em villa noua do algarue. hum galião de 630 toneladas fará de custo 22734U885 reais Sciiicet 14545U000 reais o galeão posto a vella, e 8189U a artelharia. Sciiicet 10080U000 reais o casco do dito galeão em preto posto nagoa, com leme batel, e esquife, e as mais cousas pertencentes ao dito casquo. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 459 E 1100U000, Mastos, vergas, e gaueas calceses goarda uelas, com poleames e broncos. E 320U000 reais por oito ancoras a 40U reais cada húa. E 540U000 reais por oito amarras de linho que pesem 200 quintais a 2700 reais, [fl. 39v] E 1080U000 reais por 400 quintais demxarcea pêra aparelhar a 2700 reais. E 540U000 reais por duas esquipacõis de velas de lonas e pano de villa do conde com fio e feitio. E os 885U000 reais por o sobreselente, despensas de mestres, e despenseiros, camarás e payois, xaretas, lastro, aparelhar, e outras despesas meudas. E asi vai o galeão aparelhado posto a vela sem artelharia 14000U545 Artelharia E valera a artelharia o seguinte. Scilicet hum Hão de peso de 65 quintais. E húa serpe de peso de 10 quintais. E 20 esperas de peso de 25 quintais cada húa húas por outras. E 3 Camelos de 30 quintais cada hum. E 6 pedrejros de YS quintais cada hú hus per outros. E 12. falcõis de 7 quintais e meo cada hum. E 10 Berços de quintal e 3 arrobas cada hum. E asi soma o peso das 5_3 peças dartelharia atras declarada 884 quintais que a 8U000 reais o quintal monta 7076U000 reais [fl. 40] E pesa o ferro de 12 falcõis e 10 berços que levão nos rabos e piais 4 quintais e meo a 2U000 reais o quintal 9U000 reais. E 36 Camarás de falcão e 30 camarás de berço que pesão 55 quintais húa arroba, a rezão de cinco arrobas por Camará de falcão e arroba e mea por camará de berço a 2U500 reais o quintal 138U125 reais E 20 chaues de falcão e berço que podem pesar dous quintais que valem a 2U000 reais 4U000 reais 460 APÊNDICE B E 31 repairos das peças grosas a 14U000 reais hús per outros 434U000 reais. E 1200 pelouros de ferro coado a 100 reais cada hu 120U000 reais. E 1000 pelouros de pedra a 15 reais 15U000 E 60 pelouros de falcão chumbados 1U800 E 300 pelouros de berço a 20 reais 6U000 E 10 pees de cabra a 600 reais 6U000 E 29 carregadores a 400 reais 11U600. E 29 alimpadores a 100 reais 2U400. E 100 arcabuzes aparelhados a 1U00 reais 100U000. E 200 murrõis a 15_ reais cada hu 003U000 E 100 piques a 180 reais 18U E 60 meos piques a 120 7U200 E 60 lanças a 180 reais 10U800 E 100 dardos a 30 reais 3U000 E 40 pelouros de cobre de Cadeas a 700 reais 28U000. E 40 pelouros de Cadeas de ferro a 320 12U800. E 20 bombas de fogo a 500 reais 10U000 Os NAVIOS DO MAR OCEANO E 20 lanças de fogo a 400 reais 8U000. [fl. 40v] E 20 dardos de fogo a 400 reais 5U000 [sic] E 06 cauilhas grandes a 250 1U800 E 10 agulhas de ferro a 20 reais 0U200 E 40 pernetes a 20 reais 0U800 E 04 colheres de derreter chumbo U240 E 03 picadeiras a 80 reais 0U240 E 60 argolas de bargeiros a 120 reais 4U800 E 10 rodas de repairos a 600 reais 6U000 E 20 eixos a 250 reais 5U000 E 14 bancos de falcão a 1U reais 14U000. E 20 agulhas de pe a 300 reais 06U000 E 20 maçetas a 20 reais 004U400 E 06 caixõis com os pelouros U480 E 05 caixõis grandes com arcabuzes 2U000 E 04 hasteas de piques a 130 reais 520 E 200 alcancias cheas de poluora que levão oito quintais 10U000 461 462 APÊNDICE B E as 200 alcanceas de barro a 4 reais 00U800 E 12 peles de carneiro a 100 reais 1U200 E 03 saca trapos a 600 reais 1U800 E 08 colheres de carregadores a 300 reais 2U400 E 120 padeses pintados a 260 reais 31U200 E asi vai a artelharia e monicõis delia 8189U885reais E valera hum galeão de 500 toneladas posto a vela e com a artelharia, e monicõis 16230U800 Scilicet 11392U200 reais o galeão aparelhado e 4838U600 reais a artelharia. [fl. 41] Scilicet 7500U000 reais o casco do dito galeão em preto posto nagoa com seu leme, batel e esquife e todas as mais cousas pertencentes ao dito casquo E 900U000 reais mastos, verga, calceses, goarda uelas, gaueas, com seu poleame e broncos. E 272U000 reais por oito amarras do peso de 22 quintais a 2700 reais quintal. E 272U000 por oito ancoras de 16 te 18 quintais a 2U000 reais o quintal. E 945U000 por 350 quintais demxarcea pêra aperelhar a 2700 reais. E 500U000 reais por húa esquipação de vela acabada E 800U000 reais por sobresalentes e despensas de mestres e despenseiros e as mais cousas conforme a como vão atras no outro galeão. E assi vem a valer este galeão posto a vela sem artelharia e monicõis delia 11392U200 reais E leuara a artelharia seguinte que com as monicõis valera 4838U600 reais Artelharia Scilicet hum Camelo de peso de 30 quintais. E 12 esperas de peso de 25 quintais húa per outra. E oito pedreiros de 13 quintais cada hum [fl. 41v] Os NAVIOS DO MAR OCEANO E 10 falcõis de sete quintais e meo cada hum. E 6 berços de quintal e três arrobas cada hum. E pesa o cobre destas 37 peças dartilharia 519 quintais e meo que a 8U reais vai 4156U reais E pesa o ferro dos rabos epiaes que pesarão três quintais a 2U000 6U000 E 21 repairos a 14U 294U000 E ÍZ bancos de falcõis a 1U 12U000 E 30 Camarás de falcão e 18 de berço que leuão 44 quintais a 2U000 reais 110U000 E 20 chaues de falcão e berço 4U000 E 600 pelouros de ferro cordo 60U000 E 640 pelouros de pedra 09U600 E 60 pelouros de dado a 30 reais 1U800 E 180 pelouros de berço 3U600 E 20 colheres de carregadores< 8U000 E 21 alimpadores 2U100 E 10 saquos de Couro 1U000 E 60 arcabuzes aparelhados 60U000 E 40 piques a 180 reais 7U200 E 40 lanças 7U200 463 464 E 60 dardos 1U800 E 10 lanças de de fogo 4U000 E J_0 dardos de fogo 2U500 E 10 bombas de fogo 5U000 E 120 murriõis 1U800 E 20 pelouros de Cobre de Cadeas 14U000 reais E 60 alcanzias de pólvora 25U000 E 120 vazias 0U480 [fl. 42] E 34 argolas de bragueiros 4U080 E 04 caixõis piquenos e 3 grandes 1U520 E 02 picadouros U160 E 40 cauilhas 1U200 E 10 agulhas 0U200 E 20 pernetes 0U400 E 02 colheres de fazer pelouros 0U120 E 6 pelles 0U600 E 4 eixos de repairos 1U000 APÊNDICE B Os NAVIOS DO MAR OCEANO 465 E 2 saca trapos 1U200 E 1 2 macetas 2U400 E 100 padeses pintados 20U000 E valem os outro quatro galiõis que se hão de fazer nesta cidade, e dous no porto e hú no algarue todos de 500 tonelladas pouquo mais ou menos fazendo lhe conta ao Respeito do galeão atras posto a vela com sua artelharia e monicõis 64923U200 E asi vem a montar os ditos seis galiõis 103888U885. Roll do que montarão as monicõis que he necessário virem de fora conforme ao orçamento que se fez e advertências delle. # 3500 quintais de cobre pêra se fundir em artelharia a 6800 reais montão 23800U000 # 4000 quintais de pregaduras sorteadas a 2500 reais huas per outras 10000U000 [0. 42v] # 1500 quintais de Chumbo a 1600 o quintal 2400U000 # 400 quintais destaneo a 7680 reais monta 3072U000 # 1000 quintais de poluora de canhão a 10U reais 10000U000 # 1000 quintais de ferro a 1200 reais 1200U000 # 100 ancoras que pesem 1800 quintais a 2U 3600U000 # 5800 quintais demxarcea a 2700 o quintal 15660U000 # 1000 peças de lonas largas a 3200 peça 3200U000 # 300 mastos sorteados a 25U reais montão 7500U000 466 APÊNDICE B # 70000 varas de pano de villa de Conde a 20 reais 1400U000 # 1000 barris dalquetrão, e 1000 de breu preto a 1000 reais hus per outros 2000U000 Soma 83832U000 E advirtese que aqui não entrão madeiras de souro nem de pineo, nem tauoados mansos e brauos nem breu nem estopa, azeite, seuo, esparto, e outras monicõis e madeiras de repairos nem feitios carretos fretes e outras despesas meudas. FONTE: Memorial de Varias Cousas Importantes, BNL - Reservados, cod. 637, fls. 39-42v. DOCUMENTO B.3 Regimento da nao da jndia de gonçallo rodrigues de dezasete rumos. Terá de comprido dezasete rumos o que são palmos cento e cinquo de esquadria, terá a Roda de proa de alto cinqoenta e hu palmo de esquadria Lançará de esquadria a ver, conuem a saber cinquoenta e seis palmos de goa e rodará a dita roda de proa com [fl. 21] cinquoenta e hu palmo pella esquadria pello condaste, quando armarem medirão quarenta e cinquo palmos de goa perá gorita noue palmos de goa o maço de Rol a primeira cuberta vinte e cinquo palmos de goa. A segunda cinta de goa a terceira ao Gio vin {sic) e noue ditos acima, terá delgado dezoyto palmos de goa menos hu quarto. O codaste lançara quando escauarem no pollegar entre o Gio e o quartal. Esta nao terá de fundo de couado a couado quatorze palmos de goa, Terá de boca na terceira cuberta na altura da portinhola cinquoenta e sete palmos de goa. Quando tirares as formas do barco em a cauerna, tirarão as formas no chão em cinquoenta e dous palmos pella esquadia. Quando tirares a forma do barco, e a postura farão sua esquadria e largura e altura das cubertas en sete palmos de goa e dar se ão por regimento do dormente. Para assentar a cauerna mestra na qilha farão três partes da esquadria duas a ree e hua auante, farão a ponta de maneira que a almogama a proa fique a ree da quadria hu couto, e dez palmos. Terá quinze pares e marcados na forma quinze para vante e gureca leuarão três marcadas de hú ponto, conuem a saber a metade a húa para outra, a hua para auante a outra para Ree, a saber que como a madeira se for grossa leuará menos pares e quanto for menos do palmo de goa esforçaio {sic) como tenho dito [fl. 21v] meterá quatro ou cinquo cauernas de hu ponto para encher a conta que tenho dito assi lembro a madeira de conto será embaraçada no chão de sete cauernas para auante para Ree escreuerão pella forma do barco como tenho dito. Todas as mais embarcações para húa saltarelha será do mesmo modo da palha dos mastos. 467 Os NAVIOS DO MAR OCEANO Para saber fazer este concauo tomarão quanto tem a forma da cauerna de couado a couado aonde estão os pontos do dormente porás em seis partes, tomarão húa palha e nella farão tantos pontos quanto tem a cauerna, as valizas recolherão a altura de sete palmos de goa. As abobodas quanto tiuerem as cubertas dalto a Ree tanto lançará para fora, a varanda terá dezasete para fora da boca da nao conuem a saber farão conta quantos palmos tem a nao na maior boca em três húa fará e duas dentro recolterarão os pees do castello a abita por banda sete palmos de goa, a nao terá depois de cinta de sobre a lata cinquo palmos de goa e a popa menos que os dous palmos que vem a ser sete ao que te adonde pregarão o dormente toda a gurita, quando poseres os primeiros virotes na boca do castello meterão para dentro quatro palmos e meio de goa tanto hão de lançar auante para se armar ou cintar. A popa a direito das bombas recolherão cinquo palmos para irem botando para fora [fl. 22] que farão costado conforme a popa terá dalto para cima das mesas para se armar ou cintar a ser para em seu lugar farão a esquadria na roda esquipará da esquadria hu palmo se for nao pequena ou grande a esquadria toda ou também quantos palmos botar fora tantos aleuantaras. Para tirar a palha do masto e da madre Tirada a palha do masto tirarás a palha da madre menos quatro dedos do que tiuer na garganta que será o encontro da madre para as mestras iras o tamborete húa parte e as mestras as duas tanto húa como a outra. Nauio de 1U200 de 1U100 de 1U000 de U900 de U800 de U700 de U600 de U500 de U400 de U300 de U200 deUlOO Quilha Eslera Manga 14 131/2 Potal 46 61 22 42 1/2 60 21 41 59 20 13 1/2 40 58 19 12 1/2 39 57 18 12 38 56 17 12 37 55 16 14 36 54 16 11 35 53 15 10 34 52 14 10 33 51 13 9 '/> (?) 32 50 12 7 Não marco aqui o garaminho que pello da nao atras ensinaras como hão de fazer dando lhe o repartimento deste Galeão o qual regimento começa daqui para baxo todas as mais contas do dito Galeão* FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074, fls. 20v-22. Esta referência remete para o documento que se segue no códice, o do regimento do galeão de 14 rumos, aliás 14,5, como diz o próprio título da regra. 468 APÊNDICE B DOCUMENTO B.4 Comprimento, e largura, e alturas que ão de ter os galiões de 500 toneladas que se ão de fazer no porto. # A quilha terá de comprimento de escodria a escodria 16 rumos. - terá de largura no andar da portinhola 44 palmos de Goa. - terá de fundo 15 palmos. - terá de Ragel, 16 palmos. - terá daltura de roda 40. palmos, e de lanzamento 30. - terá o gio de largura 24. palmos. - terá a primeira cuberta 15 palmos de pontal, - terá a segunda cuberta 7. palmos e meio, daltura por amor dartilharia e nesta cuberta auera seis bordo. - terá sua tolda ate auante o masto daltura de 7 palmos e coxias ate proa, - terá seu chapiteo que chegue ao cabestrante, - terá seu castello e Esporão. - A madejra será toda de grossura e altura de hú palmo de goa e tanto de vão como de cheo. - No prão e cubertas terá três andajnas de pes de Carneiro com boas cordas. - terá quatro carrejras de sintas dobradas e as mais singellas. - Será tudo emcuruado de rumo a rumo. - Os tauoados serão das vi tolas que lhe darão no almazem. - terão todos os dromentes e contradromentes e trinquanis de souro ou Carualho. [fl. 86] - terão todas as cubertas 15 carrejras de curuas de conues e 10 [?] de reues. - terão as escoas grossura hú couto, - terão em todas as cordas duas curuas de reues e duas a popa e a proa e duas debaixo do pe do traquete, - terá toda a latasão jnteiras e direitas. - terá em todas as cubertas duas carrejras de dragas com suas huzardas a proa e curua de traues a popa. FONTE: Livro Náutico, BNL - Reservados, cod. 2257, fls. 85v-86. DOCUMENTO B.5 Aparelhos de hú galião Masto do traquete Primeiramente quatro coroas de palancos. Seis aparelhos por banda. Dous brandões que seruem de entezar a enxarsea. Hu estay Huas ostagas Os NAVIOS DO MAR OCEANO 469 Hua drissa. Húa cintura mestra que serue de atezar os aparelhos. Hú amantilho por banda. Hua bolina por banda, Hua coroa do braço por banda Hua escota por banda, Duas trossas por banda do traquete. Vella de Gauea de proa, Cinquo costeiras por banda. Hú prado por banda, Hua bolina por banda. Duas trossas por banda. Húa escota por cada banda. Hú estay. Dous braços hú por banda. Hú amantilho por banda Hú briol Quando tem vellacho leua a metade disto. Ceuadeira Húa drissa Hú Bastarco serue de ter mão na vella que não corra. Duas retrancas de trossar. Dous amantilhos. Dous braços. Hú cabresto. Duas escotas Duas bocas por banda Masto grande Três coroas de palancos por banda que seruem de carregar a vella. Noue aparelhos por banda que serão de atezar o masto. Doze costeiras por banda que seruem mesmo de ter mão no masto. Dous brandões por cada banda que seruem de atezar o masto [fl. 40v] Três trossas por banda que seruem de atezar a verga que não ande de húa parte para a outra. Húas estogas que seruem de ter mão na verga e leua Ia acima. Húa drissa que serue do mesmo. Dous amantilhos hú de cada banda que serue de sustentar se a ponta da verga e não serue mais que de quando amainão e ipsão. Dous braços de cada banda que seruem de bracear a verga de quando se vira. Duas bolinas de cada banda que seruem de alar a vella auante e escallo e serue quando o nauio vai de ló que he o mesmo que pella bolina. 470 APÊNDICE B Amurada por cada banda Húa escota de cada banda que serue de virar a Ree quando o uento he a popa e quando chamamos arrear he quando o tempo he escaco que se uay á proa larga e arria he o mesmo. Vella de gauia grande Seis costeiras de cada banda que seruem de atezar o masto. Três aparelhos por banda que seruem de atezar Três trossas por banda. Duas ostagas com sua driça Hú estay hú por cada banda, Dous amantilhos. Dous braços hú por cada banda Duas escotas húa por cada banda. Hú briol que serue de leuar a vella acima e dizemos carrega briol. Estingues hú de cada banda de estingar a vella para a meterem dentro. Mesena Leua quatro costeiras por banda Húa drissa Húa trossa. [fl. 41] Dous copeses que seruem de estay. Contra Mesena Leua o mesmo galeão sua sobre Ceuadeira que he o vellacho. O coxim serue de se não rossar a vella e poen se no garoupes, e nas gaueas. Quando dizemos aruore seca he o mesmo que ao payro, e isto acontesse quando ha tormenta que se lhe tomão todas as vellas. Anda o nauio a tabola fora quando não tem mais que a vella grande soo, que quando o vento he contrario por não descair de seu caminho lhe tomão todas as vellas somente a grande lhe não tomão por não descair nem se afastar do seu caminho com a proa ao vento. Quando dizemos atrauessado he ter dado por deuante com a proa ao vento e a vella sobre o masto e o leme cerrado a gilauento tomar de hua e dar por dauante he o mesmo. O que se chama goroutil he aquelle cabo que está enuergado na verga por não cair a vella abaixo. A testa he adonde estão as proas de bolinas. O que chamamos costeiras he onde passão os briois e os palancos que he para se tomar a vella, e isto he em todas as vellas. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 471 Aquartelar chamamos quando a vella vay fora damura ate a não porem em popa tanto de húa banda como da outra se chama aquartelada. E quando a vella vais namura sem as bolinas a lados chamamos bolina larga Amurada que quando vai sempre se entende para a proa e cassada a Ree. [fl. 41v] Quando o leme esta cerrado a banda de que não faz caminho. Quando se diz tal via he por o leme a meio da banda donde he o uento. FONTE: Coriosidades de Gonçallo de Sousa, BGUC - Reservados, ms. 3074,fls.40-4 lv. FONTES E BIBLIOGRAFIA SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS FREQUENTES Siglas AECA AGU = Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga (actualmente CEHCA) = Agência Geral do Ultramar BA = Biblioteca da Ajuda BGUC = Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra BNL = Biblioteca Nacional (Lisboa) CECA CEHU = Centro de Estudos de Cartografia Antiga (actualmente CEHCA) = Centro de Estudos Históricos e Ultramarinos (do actual IICT) CEHCA = Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga (do IICT), ex-AECA e ex-CECA CNANS = Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática CNCDP = Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses FCG = Fundação Calouste Gulbenkian FCG/CCP = Centro Cultural Português da FCG IAN/TT IICT = Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo = Instituto de Investigação Científica Tropical, ex-JIU e ex-JICU IN IN-CM = Imprensa Nacional = Imprensa Nacional-Casa da Moeda INIC = Instituto Nacional de Investigação Centífica JICU = Junta de Investigações Científicas do Ultramar (actualmente IICT) JIU = Junta de Investigações do Ultramar (actualmente IICT) Abreviaturas cap. = capítulo Chanc. = Chancelaria cod. coord. = códice = coordenação 476 cx. FONTES E BIBLIOGRAFIA = caixa = direcção = dissertação ed. = edição/editado por liv. = Livro loc. cit. = locus citatum mç. = maço ms./mss. = manuscrito(s) n.° = número n.s. = nova série op. cit. = opus citatum = organização org. p./pp. = página(s) reed. = reedição rev. = revisão s/d = sem data s/ed = sem indicação de editor (em obra impressa) = sem indicação de local de edição s/l trad. = tradução t. = tomo vol. = volume dir. Diss. FONTES MANUSCRITAS BRASIL Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Ms. 493. ESPANHA Archivo General de Simancas (Valladolid) Estado Legado 385 - Miscelânea. Guerra - Marina (antes Guerra Antigua) Legado 22, n.° 7. Legado 81, n.os 17 e 280-281. Legado 221, n.° 6. Mapas, Planos y Dibujos XVI, 164-165. XVI, 179. XLII, 70. Biblioteca Nacional de Madrid ms. 3176 - Miscelânea. ms. 9251 - LAVANHA, João Baptista, Descripción dei Universo. ms. 18646, n.° 11 - LAVANHA, João Baptista, Compendio de Ia Geographía Ordenado Por el erudito varón Juan Bautista Lauana Cauallero Português Comendador de Ia orden de Christus: Cronista Mayor dei Reyno de Portugal e Maestro en Ia Geograffia dei muio alto y Muy Poderoso Senor Don Phelipe quarto. Real Academia de Ia Historia (Madrid) Colecção Salazar y Castro Cod. 9/424 - Miscelânea. Cod. 9/1068 - Miscelânea (inclui o autógrafo do Livro Primeiro de Architectura Naval, de João Baptista Lavanha). 478 FONTES E BIBLIOGRAFIA Cod. 9/2791 - CHAVES, Alonso de, Qvatri Partitv En Cosmographia Practica I Por Otro Nobre LLamado Espeio De Navegantes. Obra Mvi vtilissima I Cõpendiosa En Toda La Arte De Marear I Mvi Neccesaria I De Grand Provecho En Todo El Cvrso De La Navegado principalmente de Espana Agora nueua mente ordenada y compuesta por... Edição de Paulino Castaneda Delgado et ai.: v. Fontes Impressas - 2. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA Houghton Library (Harvard University) Ms. Port. 4794, 3 vols. ' - I) Armadas. Cottecção de documentos, impressos e manuscriptos relativos às armadas de Portugal; Collecção de vários Documentos, e papeis Régios e administrativos; II) Collecção de vários Documentos, e papeis Régios e administrativos respectivos; III) [Copiador de D. António de Ataíde] The John Pierpont Morgan Library (New York) Ms. 25 - Este Livro He De Lisvarte Dabrev Ove Ho Mandov Fazer. Edição fac-símile com estudo introdutório de Luís de Albuquerque: Livro de Lisuarte de Abreu, Lisboa, CNCDP, 1992. FRANÇA Biblioteca Nacional (Paris) Fond Portugais, n,° 12 - OLIVEIRA, Fernando, Hestorea de Portugal. Edição: José Eduardo Franco, O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua Função Política, Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d'Orey/ Roma Editora, 2000, pp. 349-494. PAÍSES BAIXOS Biblioteca da Universidade de Leiden - Reservados Cod. VOSS. LAT. F. 41 - OLIVEIRA, Fernando, Ars Náutica. PORTUGAL Arquivo Distrital do Porto PO1, 3. a s., liv. 106, fls. 145-148v. Arquivo Geral de Marinha (Lisboa) Cx. 707. Cod. 2461 - Das coisas tocantes à arte militar. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) Moçambique, cx. 1, n.° 21. Reino, cx. 38. Consulta feita a partir da fotocópia existente na Biblioteca Central de Marinha. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 479 Arquivo Municipal de Vila do Conde Livro 1751. [s/cota] Livro do Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora Daguia e São Julião dos Pescadores Sita na Barra Desta Villa do Conde Annexa Sua Cappelania A Igreia de S. Salvador de Navais. Biblioteca Central de Marinha (Lisboa) 5K3 22 2 - LAVANHA, João Baptista, «Trattado dei arte de Nauegar. Começase a leer este trattado dal sr. Juan Battista Lauana, Mathematico dei Rey N.S. en Ia Academia de Madrid a 14 de Março de 1588 anos». ONDARIZ, Ambrosio, «Uso de Globos leydo em Madrid el Afio de 1592 Dal Sr. Ambrosio Ondariz, Letor de Mathematicas e Cosmographo mayor dei Rey N.S.» Ms. 309, fls. 1-4 - Regimento Para os Mestres da Ribeira das Nãos. Biblioteca da Ajuda (Lisboa) 44-XIII-56 - Miscelânea. 44-XIV-17 - Deffença de D. António de Athayde. 44-XIV-18- Miscelânea. 46-VIII-26 - Compendio do que pertense a obriguação de hum Cappitam de mar e guerra. 49-1-51 - Miscelânea 49-X-25 a 28 - Embaixada do Conde de Castro a Alemanha. 50-IV-l -Nobiliário de Portugal. 51-VII-11 -Miscelânea. 51-VIII-21-Miscelânea. 51-VIII-43- Miscelânea. 52-XIV-21 - Liuro de Traças de Carpintaria com todos os Modelos e medidas pêra se fazerem toda a nauegação, assy dalto bordo como de remo Traçado por Manoel Ffz official do mesmo officio. Na era de 1616. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra - Reservados Ms. 235bis - Tratado do que deue saber hu bom soldado para ser bom Capitam de Mar e gerra. Ms. 509 - Notticia das Armadas que foram á índia desde o seu descobrimentos que foi no anno de 1497. Ms. 3074 - Coriosidades de Gonçallo de Sousa fidalgo da casa de sua magestade, seu capitão e gentil homem da boca. Comendador da ordem de Christo. Biblioteca Nacional - Reservados (Lisboa) Cod. 241 - FARIA, Manuel Severim de, Historia Portugueza e de Outras Províncias do Occidente. Cod. 581 - Miscelânea. Cod. 637 - Memorial de varias cousas importantes. Cod. 2257 - Livro náutico, ou meio pratico de construcção de navios, e galés antigas. Cod. 3702 - OLIVEIRA, Fernando, Liuro da fabrica das nãos. Obra editada em 1898, 1991 e 1995: v. Fontes Impressas - 3. Manuscritos Avulsos Ms. 285, n.° 55 - Parecer de Diogo da Fonseca. 2 Fotocópias dos originais. 480 FONTES E BIBLIOGRAFIA Colecção Pombalina N.° 118 - Dieta Náutica e Militar no exercício do Mar para se manobrar hum Navio de Guerra, 1720. N.° 490 - PERESTRELO, Manuel de Mesquita, Sumario da Viagem que fez Fernão dalvarez Cabral desde que partiu para a índia por Capitão moor da armada que foi o anno de 1553 ate que se perdeo na costa do Cabo de Boa esperança... Biblioteca Pública de Évora Cod. CXV/1-21 - AMENO, Francisco Luiz, Noticia chronologica Dos Descobrimentos Que Fizeraõ os Portuguezes no Novo Mundo até à índia Oriental, e das Armadas Que os Reys de Portugal tem mandado àquelle Estado desde o anno do seu descobrimento ate o prezente. Cod. CXVI/1-39 Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (Lisboa) 3 [s/ cota] AGUILAR, Marcos Cerveira de, Aduertençias de nauegantes. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa) Chancelaria de D. Filipe I Doações, liv. 6, fl. 71v; liv. 17, fl. 78; liv. 24, fl. 76; liv. 31,fl.181v. Corpo Cronológico I, mç. 267, doe. 106. II, maços 10, doe. 155; 260; 271; 272 e 273. REINO UNIDO King's College (London University) MS. 14 - Codex Ataide [antigo Codex Lynch] Magdalene College (Cambridge University) - Bibliotheca Pepysiana (Pepysian Library) MS. 2269 - Libro de Cargos de Bastimentos, y mvniciones qve se hazen a los Cappitanes, y Mestres y patrones de Ias Naves y otros navios qve sirven en el Armada de sv Magestad Este Anno de M.D.LXXXVII Siendo Provedor Delia Bernabe de Pedroso. Ms. 2820 - Fragments of Ancient English Shipwrightry. 3 À data da consulta do manuscrito. FONTES IMPRESSAS 1. OBRAS GERAIS Crónicas, fontes narrativas e literárias, colectâneas documentais e fontes avulsas Acts of the Privy Council of England, New Series, vol. II: A.D. 1547-1550, ed. by John Roche Dasent, Londres, Eyre and Spottiswoode, 1890. João de, Da Ásia, Década Primeira, Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1973 (segundo a edição de 1778). BARROS, BRANDÃO (de Buarcos) João, Tratado da majestade, grandeza e abastança da cidade de Lisboa, na 2." metade do século XVI: estatística de Lisboa de 1552, sôb a dir. de Anselmo Braamcamp Freire, Lisboa, Liv. Ferin, 1923. Mário Brandão (ed.), Documentos de D. João III, 4 vols., Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1937-1941. BRANDÃO, José Ramos, Alguns Documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo acerca das Navegações e Conquistas Portuguezas, Lisboa, IN, 1892. COELHO, Colección de Documentos y Manuscriptos Compilados por Femandez de Navarrete, vol. 23, Part One, Nendeln (Liechtenstein), Kraus-Thomson, 1971. Gaspar, Lendas da índia, ed. de Manuel Lopes de Almeida, 4 vols., Porto, Lello & Irmão, 1975. CORREIA, Documentos Sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central 1497-1840, vols. I a VIII, Lisboa, National Archives of Rhodesia and Nyasaland/CEHU, 1962-1975; vol. IX, Lisboa, National Archives of Zimbabwe/Universidade Eduardo Mondlane/CEHCA do IICT, 1989. 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Francisco, Sermão que Fez o Padre... da Companhia de Jesus na festa de S. Thome Padroeiro da índia, Lisboa, Lourenço Craesbeeck Impressor dei Rey, 1637, MACEDO, João Martins da Silva, Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, reed., 5 vols., Lisboa, INIC, 1988. MARQUES, Monumenta Missionaria Africana. África Ocidental, coligida e anotada pelo P.e António Brásio, l.a série, vol. III, Lisboa, AGU, 1953. D. António José de, Diário da Viagem, Edição e Introdução de Carmen Radulet, Posfácio de Francisco Contente Domingues, Lisboa, Fundação Oriente, 1995. NORONHA, Aurélio de (Apresentação e Introdução), A Viagem do Gama nas Crónicas do Reino, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998 OLIVEIRA, Fernão de [Fernando], Grammatica da lingoagem portuguesa, Lisboa, em casa de Germão Galharde, 1536. OLIVEIRA, 2.a ed.: Grammatica de linguagem portugueza, publicada por diligencias e trabalho do Visconde d'Azevedo e Tito de Noronha, 2.a ed., conforme a de 1536, Porto, Imprensa Portugueza, 1871. 3.a ed.: Gramática da linguagem portuguesa, estudo e glossário de Aníbal Ferreira Henriques, 3.aed.feita de harmonia com a l. a ed. de 1536, sob a direcção de Rodrigo de Sá Nogueira, Lisboa, José Fernandes Júnior, 1936. 4.a ed.: A 'Grammatica'de Femão d'Oliveyra, texto reproduzido do da l.a edição e apreciação de Olmar Guterres da Silveira, Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1954.4 4 Não conhecemos esta versão que é citada a partir do estudo introdutório da 8.a ed. da mesma obra, p. 64. Os NAVIOS DO MAR OCEANO 483 5.a ed.-. A Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, introdução, leitura actualizada e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, IN-CM, 1975. 6.a ed.: Gramática da Linguagem Portuguesa. Edição faosimilada, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981 [Indica na ficha técnica que se trata da l.a edição]. 7." ed.: Gramática da Linguagem Portuguesa. Edição fac-similada, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988 [reimpressão da anterior: indica na ficha técnica que se trata da 2.a edição]. 8.a ed.: Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção com um estudo introdutório do Prof. Eugênio Coseriu, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000. Diego Garcia de, Diálogos Militares, ed. facsímile com Prólogo de Júlio F. Guillen, Madrid, Ediciones Cultura Hispânica, 1944. PALÁCIO, Sobre a Agricultura, edição inglesa: The Fourteen Books of Palladius Rutilius Taurus Aemilianus on Agriculture, trad. T. Owen, Londres, prínted for J. White, Bookseller, 1807. PALÁDIO RUTÍLIO TAURO EMILIANO, Portugal et Bourgogne au XVe Siècle. 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Humberto, Dois Roteiros do século XVI de Manuel Monteiro e Gaspar Ferreira, atribuídos a João Baptista Lavanha, Lisboa, CEHU, 1963. LEITÃO, Não nos foi possível ver estes dois artigos de SCHUCK e VOGEL, apesar das repetidas pesquisas em bibliotecas alemãs feitas a nosso pedido pela Prof.a Marília Simões Lopes (que nos encontrou o da autoria de MULLER citado nesta secção), e pelo Doutor Henrique Leitão (a quem devemos o primeiro de VOGEL). Não os teríamos podido ler sem a ajuda da Dr.a Susana Miinch Miranda. Para todosficaa expressão do agradecimento devido. 524 FONTES E BIBLTOGRAFIA , Uma Carta de João Baptista Lavanha a Respeito das Agulhas de Luís da Fonseca Coutinho, Coimbra, JIU, 1966. LOURENÇO, Armando Jorge Pereira, «O Tratado da Arte de Navegar de João Baptista Lavanha: seu contributo para a Náutica dos Séculos XVI e XVII», in Limites do Mar e da Terra. Actas da VIII Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 1998, pp. 245-254. 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Fig. 2 - Frontispício da Arte da Guerra do Mar, de Fernando Oliveira 46 59 Fig. 3 - Desenho do casco de um navio redondo, na Ars Náutica, e assinatura autografa de Fernando Oliveira 64 Fig. 4 - Desenhos da Ars Náutica de Fernando Oliveira reproduzidos por Nicolaas Witsen 68 Fig. 5 - Desenhos técnicos na Instrvcion Navtica de Diego Garcia de Palácio 81 Fig. 6 - Fólio de abertura das Coriosidades de Gonçallo de Sousa 203 Fig. 7 - Casco de uma nau de guerra nas Aduertençias de Nauegantes de Marcos Cerveira de Aguilar Fig. 8 - Fl. 47 do Tratado do que deve saber um bom soldado 210 213 Fig. 9 - Técnicas de construção do casco de um navio: forro trincado e forro liso 231 Fig. 10 - Navio redondo português do primeiro quartel do século XVI (nau «Santa Catarina do Monte Sinai») 248 Fig. 11 - Evolução da morfologia do casco dos navios redondos de grande porte, dos inícios do século XV aos inícios do século XIX 249 Fig. 12 - Navio inglês dos finais do século XV 254 530 ÍNDICES Fig. 13 - Navios portugueses numa imagem das Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro 257 Fig. 14 - Comparação do traçado da nau de 600 tonéis com o galeão de 500 tonéis .... 257 Fig. 15 - Caravela latina de três mastros, de pesca, na «Vista panorâmica de Lisboa» da Biblioteca da Universidade de Leiden 260 Fig. 16 - Caravela latina de três mastros na «Vista panorâmica de Lisboa» da Biblioteca da Universidade de Leiden 260 Fig. 17 - Quilha, rodas de proa e popa, caverna mestra e almogamas de uma caravela redonda ou de armada do Livro de Traças de Carpintaria Fig. 1 8 - 0 navio de Bartolomeu Dias na Memória das Armadas (terceiro quartel do século XVI) Fig. 19 - Patacho de guerra do Livro de Traças de Carpintaria Fig. 20 - Galé do segundo quartel do século XVI, segundo as Tábuas dos Roteiros da índia de D. João de Castro 262 263 267 272 Fig. 21 - Modelo e nomes das partes do galeão de 500 tonéis, a partir do Livro de Traças de Carpintaria 317 ÍNDICE GERAL PRÓLOGO 11 INTRODUÇÃO 13 PARTE I - OS NAVIOS EM PERSPECTIVA TEÓRICA 19 CAPÍTULO I - Documentação técnica portuguesa de arquitectura naval 21 1. Tratados 25 2. Regimentos gerais 25 3. Regimentos especiais 29 CAPÍTULO II - Fernando Oliveira e o primeiro tratado português de arquitectura naval 1. O autor e a sua obra 2. Aventureiro genial e insubmisso 35 35 42 2.1. Os primeiros anos 42 2.2. A Grammatica da Lingoagem Portuguesa 45 2.3. A experiência naval 48 2.4. A Arte da Guerra do Mar 58 2.5. A enciclopédia do mar 63 2.6. Historiador por uma causa 85 3. O Livro da Fabrica das Nãos CAPÍTULO III - João Baptista Lavanha e o Livro Primeiro de Architectura Naval 86 107 1. O cosmógrafo do Rei 109 2. A obra náutica 134 3. O naufrágio da nau «S. Alberto» 140 4. O Livro Primeiro de Architectura Naval 147 532 ÍNDICES CAPÍTULO IV - Manuel Fernandes e o Livro de Traças de Carpintaria 159 1. Manuel Fernandes, mestre da Ribeira 159 2. O Livro de Traças de Carpintaria 163 CAPÍTULO V - A S instruções dos mestres do ofício 173 1. Livro Náutico 174 2. Memorial de Várias Cousas Importantes 180 3. Códices de D. António de Ataide 185 3.1. Códices de Harvard 190 3.2. Relação das Nãos e Armadas da índia 196 3.3. Compilações de diários de bordo 198 3.4. Livro de marinharia de Gaspar Moreira 199 3.5. Códices da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 200 3.6. Codex Ataide (antigo Codex Lynch) 3.7. Cousas tocantes a arte militar 201 201 4. Coriosidades de Gonçalo de Sousa 202 5. Aduertençias de Nauegantes 207 6. Tratado do que deue saber hu bom soldado para ser bom Capitam de Mar e gerra PARTE II - OS NAVIOS NO MAR 211 219 CAPÍTULO I - Questões de método na caracterização tipológica dos navios portugueses 221 1. Tipologia dos navios portugueses: problemas de definição 221 2. Teoria e prática no processo de construção 228 3. Unidades de medida e de arqueio 236 CAPÍTULO II - Navios e embarcações auxiliares 241 1. Navios de vela 243 1.1. Nau 243 1.2. Galeão 252 1.3. Caravela redonda 259 1.4. Caravela antiga meã 266 1.5. Patacho 266 1.6. Galizabra 268 1.7. Navio 269 Os NAVTOS DO MAR OCEANO 2. Navios de remo 533 269 2.1. Galé 269 2.2. Galeota 274 2.3. Bergantim 274 3. Embarcações auxiliares 275 3.1. Barco 275 3.2. Batel 276 3.3. Esquife 283 3.4. Fragata 284 3.5. Falua 285 CAPÍTULO III - O Poder Naval português 287 CONCLUSÃO 301 VOCABULÁRIO TÉCNICO 305 APÊNDICE A Regimentos Gerais de Arquitectura Naval 323 APÊNDICE B Orçamentos e Regimentos Especiais de Arquitectura e Construção Naval 435 FONTES E BIBLIOGRAFIA 473 Siglas e abreviaturas 475 Fontes manuscritas 477 Fontes impressas 481 Bibliografia 489 ÍNDICE DOS QUADROS 527 ÍNDICE DAS FIGURAS 529 ÍNDICE GERAL 531 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES é Professor Auxiliar do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de História da mesma Universidade. Pertence à Comissão Internacional de História da Náutica e é Colaborador Emérito do Serviço de Documentação Geral da Marinha do Brasil. Em 2001 foi-lhe atribuído o Prémio Sarmento Rodrigues, da Academia de Marinha, da qual é membro efectivo, pela tese de doutoramento que deu origem a este livro. Integra ainda as Comissões Científicas da História da Marinha Portuguesa e da edição das Obras Completas de Pedro Nunes. Entre outros, publicou os seguintes trabalhos: Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: os tratados de Fernando Oliveira, Lisboa, IICT/CEHCA, 1985; A vida a bordo na Carreira da índia (século XVI), Lisboa, IICT/CEHCA, 1988 (em colab. com Inácio Guerreiro); Problemas e perspectivas da arqueologia naval portuguesa dos séculos XV-XVII: a obra de João da Gama Pimentel Barata, Lisboa, Academia de Marinha, 1989; Colombo e a política de sigilo na historiografia portuguesa, Lisboa, IICT-CEHCA, 1992; Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses (coord. sob direcção de Luís de Albuquerque), 2 vols., Lisboa, Círculo de Leitores/Ed. Caminho, 1994; A Carreira da índia. The índia Run, Lisboa, CTT, 1998; Arqueologia Naval Portuguesa (séculos XV e XVI). História, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003; A Guerra Naval no Norte de África (Séculos XV-XIX), co-org. com Jorge Semedo de Matos, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003. Medeia quase exactamente um século e meio entre os primeiros anos da década de 1420, altura em que o Infante 0. Henrique começou a enviar sistematicamente navios para Sul com o objectivo de dobrar o Bojador, segundo no-Io conta Zurara, e o momento em que Fernando Oliveira escreveu a sua Ars náutica (c. 1570), cuja segunda parte é o primeiro texto teórico escrito por um português sobre arquitectura navat. Nesse século e meio, o alcance das navegações portuguesas ultrapassou os limites da imaginação dos homens do tempo, como alguns testemunhos da época bem dão conta, desde o catálogo' das novas descobertas enunciado por Pedro Nunes, dizendo que se tinham descoberto novos mares, ilhas e terras, novo céu e novas estrelas, até à frase lapidar de Camões que tudo resume, com aquela singeleza que é apanágio do génio: se mais mundos houvera, lá chegara. Como chegaram onde chegaram é a questão que importa aqui. Numa palavra, pretende-se apresentar uma visão global da documentação técnica portuguesa de arquitectura naval, tornar a sua consulta acessível e caracterizar os navios da época. Com o apoio da FUNDAÇÃO ORIENTE