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O espectador inconformado

2011, Cena Em Movimento

RESUMO: O espectador foi visto como uma figura passiva dentro da teoria teatral por muito tempo. No entanto, diversas teorias demonstram que a capacidade perceptiva não é puramente recepção, mas também atividade. A encenação, enquanto escritura da cena, é um texto aberto à multiplicidade de interpretações, que dependem mais da criatividade do que de uma compreensão racional. Para ler um obra de teatro é necessária uma interpretação criativa, uma desleitura, no sentido do crítico americano Harold Bloom. Somente com um desvio criativo pode o espectador enfrentar as obras do teatro pós-moderno e contemporâneo.

PERCEPÇÃO ATIVA

Como já foi comentado, o ato de observar é entendido comumente como um ato passivo. Dificilmente as pessoas consideram sua capacidade de ver como uma ação complexa e ativa. O sociólogo Edgar Morin narra um fato muito interessante em seu livro "Para sair do século XX" que diz respeito a isso:

"Há alguns meses, ao dirigir-me à Maison des sciences de l'homme, preparava-me para atravessar a rua d 'Assas, no cruzamento Raspail/ Cherche-Midi/ Assas, quando vi (MORIN, 1986, pg 21.) No momento em que enxergou o choque sua racionalização interpretou que o objeto menor deve ter sido agredido pelo maior, provavelmente por questões ideológicas pertencentes a ele mesmo. Morin demonstra neste pequeno exemplo que a percepção contem algo de alucinatório, que não é um apreender direto e perfeito de um objeto, como afirmavam filosofias antigas 2 . O que o pensador francês demonstra não é estranho a uma série de outros cientistas e filósofos, muitas vezes divergentes entre si, mas que de maneira similar desconfiaram da existência de uma percepção objetiva, tais como G. W. F. Hegel, William James, Martin Heidegger, Jean Piaget, Wolfgang Köhler, Jacques Lacan, Antônio Damásio entre tantos outros 3 . Infelizmente essa infinidade de trabalhos teóricos é muitas vezes esquecida quando se pensa na posição ocupada pelo espectador que adentra a sala de teatro.

A recepção de uma obra artística, neste caso uma obra teatral, exige a percepção do indivíduo e esta, por sua vez, configura-se com uma força ativa na produção de sentido do que é percebido. O processo comunicacional necessita de um pólo pronto para receber a mensagem enviada pelo emissor.

Esta capacidade de receber, de estar aberto para aquilo que lhe é enviado é, antes de tudo, um trabalho, pois há um dispêndio de energia através da atenção conferida. Receber é uma ação, talvez não completamente consciente, mas sem dúvida direcionada. Anne Ubersfeld já falava do trabalho do espectador como um modo de fazer:

"Há dentro deste processo que é a representação teatral, dentro desse acontecimento de múltiplos personagens, um personagem chave mesmo que não apareça em cena e pareça nada produzir: O espectador. Ele é o destinatário do discurso verbal e cênico, o receptor dentro do processo de comunicação, o rei da festa; mas ele é também o sujeito de um fazer, o artesão de uma prática que se articula perpetuamente com as práticas cênicas." (UBERSFELD, 1981, pg. 303) 4 O espetáculo é produzido para o espectador e no espectador, sem a sua presença não há produção de sentido possível. Da mesma forma, Denis Guénoun (2002)

POSSIBILIDADES DE LEITURA NO TEATRO

Dentro da teoria da literatura debate-se frequentemente sobre os limites que uma leitura deve ter. Roland Barthes, apesar de ter se envolvido com a crítica estruturalista, opinou pela liberdade de leitura, talvez por influência da filosofia derridiana 6 , demonstrando sua revolução na crítica literária. Em seu artigo "Da Obra ao texto" é possível encontrar uma valorização na amplitude de leitura como prática significante. Enquanto a obra pode ser apropriada em um processo de filiação o texto apresenta liberdade de associações metonímicas sem fim:

"O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável), o texto não é uma coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação." (BARTHES. 2002, pg 68) A preocupação de Barthes, neste texto, refere-se a literatura, mas isso pode ser ampliado até a percepção da cena, revelando que não há uma única resposta certa na leitura de uma obra artística. A teoria da recepção é uma abordagem teórica que exemplifica ilustrativamente a variedade de leituras que uma obra artística pode fornecer. A história da literatura realizava-se de um modo pouco interessante e já desgastado ao posicionar suas análises no aspecto do produtor literário. A estética da recepção subverteu a concepção de literatura quando viu que poderia posicionar as estruturas teóricas com foco no (BLOOM. 2001. PG. 21 ) A leitura é sempre uma desleitura, e, portanto, é sempre um engano, um erro, e, neste caso, um erro consciente (Ou pelo menos semi-consciente). As testemunhas da encenação deveriam poder adentrar a obra, colocar-se à distância, esquecê-la, lembrá-la, completá-la, questioná-la, revisála. Isto não o faria eticamente melhor, mas, sem dúvida, poderia oferecer-lhe uma expansão cognitiva. Pode-se ainda, no entanto, questionar a relevância deste tipo de visão ideal para o espectador de teatro. Em que contextos este ideal seria útil ou mesmo necessário? Qual a razão que tornaria pertinente ter um olhar ambíguo e mutante, e ainda assim arguto e crítico?

TEATRO PÓS-MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

Os discursos sociais e filosóficos da atualidade tendem a defender a existência de um fenômeno comumente conhecido como pós-modernidade.

Uma condição sócio-cultural que colocou em xeque as ideologias do século XX, e que hoje estaria impregnando em larga escala os diversos setores da vida humana, tais como literatura, política, economia, e até mesmo o teatro.

Esta situação é ainda um tema polêmico sendo debatido por autores das mais diversas posições, escolas e áreas 10 . Cabe, no entanto, a possibilidade de situar algumas características que se convencionaram chamar de pósmodernas.

Ihab Hassan (1991) "(...), continuamos tateando no que diz respeito à natureza e complexidade da linguagem cênica e ao conjunto de fenômenos desencadeados junto ao espectador quando da experiência estética no plano espetacular, no sentido de fixar como funciona a competência específica do saber teatral (pois se trata de uma decodificação oscilante, todo o tempo, entre o falso e o verdadeiro)." (MOSTAÇO, 2008, pg. 68) O teatro, dito contemporâneo, precisa de um olhar com a mesma argúcia e perspicácia. Diante desta situação é que se faz urgente um novo tipo FRAGA, Daniel a identificação segura do ego em múltiplas relações. A arte é um estímulo ao imaginário do adulto que se acomoda para ver um espetáculo. Sua criatividade é convocada na liberação emocional que a obra provoca. Assim, um precisa do outro, mas, ao mesmo tempo, cada pólo mantém sua independência.

Os produtores da arte teatral não são os detentores do sentido último de suas criações. Constroem seus espetáculos na esperança que alguém na infinidade de pessoas de uma plateia seja capaz de transcender aquilo que apresentam. Este modelo de espectador não é uma categoria definitiva, mas uma formulação pragmática suscetível a todo o tipo de acidentes e de erros, exatamente porque é ela mesma uma forma de acidente, uma forma de errar, uma forma de mal-entender.

Não existem valores absolutos na estética, tanto na concepção de uma obra quanto em sua recepção. Se por um lado não se pode aceitar sentidos esdrúxulos e absurdos na recepção de obras teatrais, não se pode descrever os limites exatos até onde a percepção do homem pode ir. Por essa razão propõe-se uma luta de percepções estéticas, mentes combatendo para definir o que é mais criativo, e implicitamente lutando por sua própria prioridade e sentido. Um combate que não visa trazer elevados sentimentos morais ou a tão esperada significação do fazer artístico. O que motiva estas reflexões é exatamente a liberdade e amplitude que somente o teatro enquanto arte é capaz de proporcionar por não colocar barreiras estéreis. Oscar Wilde já dizia que toda arte é inútil. O que não significa que não seja instigante.