O trabalho de enfermeiras e guardas municipais:
identidade, gênero e poder
Eduardo Pinto e Silva1
Márcia Regina Cangiani Fabbro2
Roberto Heloani3
PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R. The work of nurses and municipal
guards: identity, gender and power. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31,
p.395-407, out./dez. 2009.
This paper aimed to analyze points in
common in the work of women in two
professional categories: nurses and
municipal guards. This analysis was done
by rereading the authors’ previous
studies. The methodology was based on
comparing the characteristics of the dayto-day routines, such as anxiety, tension,
risk to life and fear. Concepts like identity,
power, gender and defensive ideology
were dealt with. It was seen that work
forms a constitutive element of identity,
influenced by gender and power
relations. These are historically
constituted and have relational
characteristics. It was argued that
professional activities involving situations
of anxiety, tension and risk promote the
construction of defensive ideologies of
denial of fear. This stimulates lifesaving
ideals, heroic attitudes and ambivalent
feelings. It was concluded that work
situations in both of these professions,
along with the management and
organizational characteristics of the work
give rise to psychological distress, stress
and identity conflicts.
Keywords: Working women. Identity.
Gender. Nurses. Municipal guards.
O objetivo deste artigo é analisar
aspectos comuns do trabalho da mulher
em duas categorias profissionais:
enfermeiras e guardas municipais. A
análise realizou-se a partir de uma
releitura de pesquisas anteriores dos
autores. A metodologia baseou-se na
comparação de aspectos do cotidiano de
trabalho, tais como: ansiedade, tensão,
risco de vida e medo. Foram abordados
os conceitos de identidade, poder, gênero
e ideologia defensiva. Apontou-se que o
trabalho configura-se como elemento
constitutivo da identidade, sendo
perpassado pelas relações de gênero e de
poder, historicamente constituídas e de
caráter relacional. Argumentou-se que
atividades profissionais que envolvem as
situações de ansiedade, tensão e risco
favorecem a constituição de ideologias
defensivas de negação do medo e
mobilizam o ideal de salvar vidas, atitudes
heroicas e sentimentos ambivalentes.
Concluiu-se que as situações de trabalho
em ambas as profissões e as
características da gestão e organização do
trabalho propiciam sofrimento psíquico,
estresse e conflitos identitários.
Palavras-chave: Trabalho feminino.
Identidade. Gênero. Enfermeira. Guardas
municipais.
1
Departamento de
Educação, Universidade
Federal de São Carlos
(UFSCAR). Rua Honduras,
296, São Carlos, SP,
Brasil. 13.566-760
dups@ig.com.br
2
Departamento de
Enfermagem, UFSCAR.
3
Faculdade de Educação,
Universidade Estadual
de Campinas.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009
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O TRABALHO DE ENFERMEIRAS E GUARDAS MUNICIPAIS ...
Introdução
O trabalho é um dos fundamentos do ser social e elemento constitutivo da identidade (Lessa, 2002).
Trabalho e identidade, conforme nos argumenta Jacques (1995), configuram uma articulação
indispensável. A identidade, constituída e metamorfoseada nos processos de socialização e na vida
laboral (Ciampa, 1991; 1990; Berger, Luckmann, 1978), é determinada e determina as configurações
historicamente constituídas das relações de gênero em nossa sociedade (Scott, 1995). Tais relações,
inevitavelmente imbricadas aos dispositivos de poder (Foucault, 1994, 1992), nos exigem a explicitação e
a análise crítica das particularidades que assumem o trabalho feminino, assim como as consequências
destas em termos de inúmeros aspectos, dentre os quais destacamos: os conflitos identitários, o
sofrimento psíquico (Dejours, 2004b, 1992) e o desgaste (Seligmann-Silva, 1994; Laurell, Noriega, 1989).
O objetivo deste artigo é analisar aspectos em comum do trabalho da mulher em duas categorias
profissionais distintas: enfermeiras e guardas municipais. Inicialmente, discutimos os conceitos de
identidade, poder e gênero. Em seguida, apresentamos algumas considerações sobre os aspectos
metodológicos relativos a este artigo e às pesquisas realizadas pelos autores, que embasaram a presente
discussão (Silva, 2005; Fabbro, 1996). A releitura dos dados destas pesquisas nos possibilitou apresentar
novas reflexões que subsidiaram a análise dos aspectos em comum do trabalho da mulher nas referidas
categorias profissionais. Apontamos para a existência de sofrimento psíquico, estresse e conflitos
identitários no trabalho da mulher, e para o seu caráter social e histórico, perpassado pelas definições
normativas de feminilidade e masculinidade e pelas relações de poder a elas subjacentes (Kergoat,
2002; Scott, 1995).
A trama de conceitos: identidade, poder e gênero
Para compreendermos a identidade da guarda municipal e da enfermeira e, de tal modo, melhor
entendermos quem são esses profissionais, é necessário discutir o conceito de identidade, compreender
o que é identidade pessoal e social para, então, refletirmos sobre a identidade profissional.
O conceito de identidade é complexo e possui diferentes concepções na Antropologia, Sociologia,
Filosofia e Psicologia. Para efeitos do presente artigo, o conceito de identidade será tomado em sua
dimensão profissional, concebida como um dos aspectos da identidade do sujeito (Dubar, 2005;
Jacques, 1995).
Assim, fomos buscar fundamentos teóricos em alguns autores, como Berger e Luckmann (1978),
Ciampa (1991, 1990), Dubar (2005) e Habermas (1983), que concebem a identidade pessoal e
profissional como resultado de um contínuo processo de socialização, isto é, a identidade se estrutura
mediante intersubjetividades. Consideram também que a estrutura psíquica de cada pessoa codetermina
a construção da identidade. Porém, não deixam de destacar o meio social como forte fonte de
influência em tal construção.
Na constituição da identidade, o outro é peça fundamental. No processo de socialização, o indivíduo a
ele se identifica, assim como interioriza os submundos das instituições sociais (Berger, Luckmann, 1978).
A identidade pode se modificar ao longo da história de vida da pessoa, de acordo com sua interrelação com o meio social. Nesse sentido, não é posta ou estática, mas sim movimento contínuo,
metamorfose (Ciampa, 1991, 1990).
A formação da identidade profissional se dá a partir da identidade social, ou, ainda, da identificação
com a classe e grupo de pertença. À medida que guardas municipais e enfermeiras exercem suas
atividades laborais, constituem as suas identidades por meio do “fazer” e “ser” profissional. Contudo,
tanto o “fazer” quanto o “ser” são heranças da realidade objetiva, indissociavelmente articulada à
realidade subjetiva, por meio dos processos sociais e históricos de interiorização, exteriorização e
objetivação que, pela sua natureza dialética, não podem ser pensados como ocorrendo em sequência
temporal (Berger, Luckmann, 1978). Portanto, o processo de socialização secundária, no qual se dá a
formação tecnicoprofissional, carrega consigo referenciais de identificação outorgados pela população.
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artigos
PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R.
Acrescentamos às considerações de Berger e Luckmann (1978), acerca da dialética ou
indissociabilidade entre realidade objetiva e realidade subjetiva, as noções de identidade
subjetivamente apropriada e de identidade socialmente atribuída, noções estas que, quando retomadas
por Ciampa (1990), nos permitem diferenciar a noção habermesiana de papel social da noção de
personagem (Ciampa, 1990).
Na perspectiva de Habermas (1983), o papel social relaciona-se ao socialmente instituído, ao mundo
sistêmico. Destacaremos aqui somente sua referência à identidade-papel, ou seja, àquela presa aos
predeterminismos sociais, às normas e regras que sustentam a reprodução e que impedem a autonomia
do sujeito.
Ciampa (1990), ao lançar mão da noção de personagem, a relaciona à concretude e singularidade
das experiências na biografia do indivíduo, ressaltando-se que tal singularidade não se divorcia da
dimensão social e coletiva, mas estabelece com ela uma relação indissociável e de influência mútua e
recíproca. Em tal interjogo dialético entre o individual e o social, podem emergir o que poderíamos
adjetivar como identidades estereotipadas ou inautênticas.
Goffman (1990, 1988), ao abordar os conceitos de estigma e de identidade deteriorada, o faz a
partir da análise das instituições totais (manicômios, conventos e prisões) e das relações de poder nelas
presentes. A identidade deteriorada é relacionada à coisificação do humano e à estigmatização de
determinados estereótipos e atributos. Tal estigmatização confere normalidade aos que ocupam
posições de poder nas instituições.
Tais considerações sobre o conceito de identidade nos remetem, portanto, à discussão do conceito
de poder e de seu aspecto relacional. Na perspectiva de Foucault (1994, 1992), o poder também se
relaciona à noção de movimento. O poder circula, se inscreve nos discursos, nas relações sociais, no
cotidiano, e não somente na dimensão institucional (Estado, escolas, hospitais, polícia). Sua grande
contribuição, que avança em relação ao marxismo, é em relação ao micropoder e à superação da
dicotomia dominantes-dominados. Ademais, Foucault relaciona poder e saber, de modo a evidenciar o
discurso científico como dispositivo de poder.
A perspectiva dos estudos sobre gênero também contribui para a discussão sobre o poder, visto que
propõe a compreensão do masculino e do feminino tomando como ponto de referência a construção
social e cultural dos papéis desempenhados por homens e mulheres, assim como denuncia a
desigualdade de gênero decorrente das diferenças sexuais sem, no entanto, cair no reducionismo da
dicotomia dominantes-dominados, sobretudo nos trabalhos de perspectiva histórica e relacional
(Kergoat, 2002; Scott, 1995).
Por fim, consideramos que a questão da identidade profissional nos remete não somente aos
conceitos acima referidos, mas também aos pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004a,
2004b, 1992). Em tal perspectiva, o trabalho inclui as dimensões do prazer e do sofrimento e pode se
caracterizar como patogênico, relacionado a conflitos identitários que rompem o equilíbrio
psicossomático, ou, ainda, sublimatório, estruturante da identidade profissional e pessoal (Dejours,
2004b). Segundo tal perspectiva, os trabalhadores, em face dos modos de gestão e organização do
trabalho, desenvolvem estratégias defensivas. Estas podem configurar uma adaptação estereotipada e/
ou patogênica às adversidades no trabalho ou um anteparo aos processos de sofrimento psíquico e/ou
adoecimento propriamente dito.
Aspectos metodológicos
A análise do trabalho das enfermeiras e guardas municipais realizadas neste artigo é resultado de
uma releitura, respectivamente, das pesquisas de dissertação de mestrado de Fabbro (1996) e de
doutorado de Silva (2005), a partir dos autores supracitados e de trabalhos em coautoria com Heloani
(Silva, Heloani, 2006; Fabbro, Heloani, 2004).
A pesquisa de Fabbro (1996) se constituiu em um estudo de caso realizado em hospital-escola de
grande porte. Foram realizadas 25 entrevistas em profundidade com vários profissionais (diretora e
supervisora do Centro Obstétrico, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, diretor clínico e médicos
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residentes) com o objetivo de investigar o processo de formação da identidade da
enfermeira no contexto hospitalar com base nas relações de trabalho com a
equipe de enfermagem4 e médica. Os dados das entrevistas foram categorizados
e analisados vertical e horizontalmente de acordo com os pressupostos da análise
de conteúdo (Bardin, 1977) e da pesquisa qualitativa (Minayo, 1996).
A pesquisa de Silva (2005) abordou o trabalho dos guardas municipais a partir
das relações entre gestão organizacional e estresse. Foram aplicados 238
questionários sobre a saúde, trabalho e vida familiar em um total de 26 equipes,
todas submetidas a entrevistas grupais semiestruturadas; 42 entrevistas individuais
semiabertas foram realizadas com guardas municipais identificados como
estressados. A identificação do estresse e de suas fases (alarme, resistência e
exaustão) deu-se por intermédio do Inventário de Sintomas de Estresse (Lipp,
Guevara, 1994). A categorização e análise vertical e horizontal das entrevistas
também seguiram os pressupostos da análise de conteúdo (Bardin, 1977) e da
pesquisa qualitativa (Minayo, 1996).
Verificou-se um total de 31,93% guardas municipais estressados. Nas equipes
nas quais o contingente feminino era de aproximadamente 100% (equipes
administrativas e equipes do Comando Operacional ou telefonia), havia,
respectivamente, 71,42% e 77,77% de sujeitos estressados, porcentagem esta
distinta das verificadas nas equipes de apoio5 (18,75%), integralmente compostas
por trabalhadores homens (Silva, 2005).
Ambas as atividades profissionais, comumente exercidas em turnos
alternados, são passíveis de engendrar adoecimento, desgaste (fadiga, estresse,
tensão) e/ou sofrimento psíquico. Ademais, o cotidiano de trabalho é marcado
pelo enfrentamento de situações ansiógenas e angustiantes, que envolvem a
questão da vida e da morte, de modo que se constituem como atividades penosas
e insalubres que implicam conflitos e tensões fundamentais da vida humana e
tendem a repercutir negativamente na saúde destas trabalhadoras. Outro aspecto
a salientar é que tais situações, geradoras de sentimentos de ambivalência,
envolvem atividades de repressão/controle e de proteção/cuidado.
Tendo em vista subsidiar a abordagem dos aspectos comuns do trabalho de
enfermeiras e guardas municipais, apresentaremos, a seguir, algumas breves
reflexões sobre alguns pontos de análise originalmente considerados nas
mencionadas pesquisas.
A instituição hospitalar e o poder-saber: relações de trabalho
da enfermeira com a equipe de enfermagem e médica
No seu cotidiano de trabalho, a enfermeira é inscrita nas redes da submissão e
da cultura hospitalar (Moreira, 1999) e tende a assumir o que conceituamos como
a identidade-papel (Habermas, 1983), uma vez que, na sua relação com o podersaber médico (Foucault, 1992), tende a reproduzir estereótipos do gênero
feminino e atitudes de submissão ou de dedicação máxima à imagem de
supermulher, personagem-herói que se responsabiliza por todos os problemas.
Porém, contraditoriamente, rotula-se de subumana, justamente por conviver com
a submissão frente à equipe médica e à própria instituição (Fabbro, 1996). Assim,
permanecem resquícios no imaginário sociocultural e institucional de que a
enfermeira seja meramente uma auxiliar do médico e, tal como consideram
Gastaldo e Meyer (1989), reforça-se o doméstico como espaço feminino e a
enfermagem como extensão do lar.
As relações da enfermeira com a equipe de enfermagem nos revelam outras
facetas das relações de poder. Existe uma hierarquia hospitalar explícita nos
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4
A equipe de
enfermagem era
composta por: diretora,
supervisora, enfermeira,
técnico de enfermagem,
auxiliar de enfermagem e
atendente de
enfermagem (atualmente
extinta),
hierarquicamente
subordinados.
5
Denominavam-se
equipes de apoio aquelas
que, mais bem
preparadas tecnicamente
e compostas por quatro
guardas, auxiliavam as
viaturas do
patrulhamento de rua nas
ocorrências de maior
complexidade ou risco.
artigos
PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R.
regimentos do hospital, que determinam os cargos e atribuições de cada membro da equipe, a partir
dos quais se estabelecem relações de poder. Contudo, se fazem presentes outras formas de hierarquia
entre os trabalhadores de enfermagem, legitimadas pelo saber tácito (antiguidade e experiência prática),
que desenham atividades distintas das prescritas.
As enfermeiras, quando alvo dos dispositivos de poder e discursos que as impingem tanto à
docilidade política em relação aos superiores hierárquicos como à utilidade econômica em prol da
organização hospitalar (Foucault, 1994), reproduzem a identidade-papel socialmente atribuída. Por outro
lado, experienciam, no jogo das correlações de forças e da circularidade do poder (Foucault, 1992),
enfrentamentos desta identidade-papel, assumindo uma atitude política que nos revela que a
competência política é tão ou mais importante que a competência técnica para o exercício do seu ofício.
Nas relações da enfermeira com a equipe de enfermagem, verificam-se posturas diversas. Por vezes
evidenciam-se atitudes autoritárias da primeira com suas subordinadas, nas quais se reproduz o
estereótipo masculino de comando presente em suas relações com o poder-saber médico. Em outros
momentos, verifica-se o poder-saber tácito das que possuem maior antiguidade e experiência prática,
configurando uma relação de poder não correspondente à hierarquia formal da divisão técnica e
administrativa do trabalho (ex: casos de conluio entre atendentes mais experientes e médicos, em
detrimento do poder formal da enfermeira-chefe). Não obstante, em tais casos, também se corrobora o
poder-saber médico, as relações de gênero como elemento que o legitima, a submissão e dedicação na
prática laboral.
O estudo de Santos e Barreira (2008) analisa a profissionalização da mulher e da enfermeira no Brasil
no período da ditadura de 1930 a 1940, e evidencia o caráter histórico das questões de gênero no
trabalho. As autoras apontam para uma marcante divisão material e simbólica do mundo social, que se
reflete de forma explícita na divisão social do trabalho das enfermeiras e na evocação de atributos
femininos às suas atividades profissionais. As autoras consideram que a persistência da divisão dos papéis
sexuais se revela no cuidado discreto, silencioso, caridoso e abnegado praticado no cotidiano de trabalho
da enfermeira. A dominação masculina manifesta-se por meio de divisões entre os espaços femininos e
masculinos, de forma a constituir um estado de dependência simbólica das mulheres, que tendem a ser
condicionadas pelas expectativas masculinas e, por extensão, a elas se subordinar e submeter. Tais
aspectos, que argumentamos serem atuais, ainda que de formas não tão explícitas, são também
abordados em estudos clássicos em gênero, saúde e enfermagem (Lopes, Meyer, Waldow, 1996).
O estresse e a identidade no trabalho das guardas municipais
As trabalhadoras das equipes administrativas e de telefonia eram responsáveis pelo trabalho
assistencial ou de apoio, no qual tendia a se reproduzir o estereótipo de gênero e a identidade-papel
normatizada e preestabelecida. Tal tipo de trabalho era desvalorizado pela cultura organizacional, em
contraposição ao “trabalho de rua”, desempenhado predominantemente pelos homens. Este era
permeado pelos signos da bravura, força e poder, e construía uma imagem fetichizada e masculinizada
da identidade policial (Silva, Heloani, 2006; Silva, 2005).
O estresse das trabalhadoras relaciona-se, assim, às relações de poder e de gênero vigentes na
realidade socioinstitucional, assim como à dialética entre vida familiar, laboral e social (Silva, 2005). O
trabalho policial geralmente acarreta uma perturbação do balanço normal da vida e, consequentemente,
da vida familiar. As mulheres policiais, além de sujeitaram-se aos aspectos patogênicos da atividade
profissional, ficam encarregadas do trabalho doméstico e do apoio aos problemas familiares, o que
intensifica as adversidades psicossociais com as quais se defrontam em seu cotidiano (Silva, 2005;
Farmer, 1990).
O trabalho das guardas municipais e das enfermeiras:
sofrimento psíquico e ideologias defensivas
Dejours (1992) analisa ideologias defensivas de coletivos de trabalhadores de diversas áreas que se
estruturam como formas de evitar o sofrimento psíquico ou adoecimento. A ideologia defensiva da
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negação do medo é abordada nos casos de trabalhadores da indústria petroquímica, da construção civil
e de pilotos de avião de caça.
Nas duas primeiras categorias, o trabalho é caracterizado como patogênico. A ideologia defensiva,
de natureza estereotipada, não exerce sua função protetora a contento. A negação do medo se
estrutura apoiada em estereótipos de gênero, adjetivada por Dejours (1999) como defesa viril, além de
serem situações de trabalho cujo domínio técnico ou controle sob a situação de risco (explosões na
indústria química e acidentes na construção civil) são muito restritos (Dejours, 1992).
Na indústria petroquímica, brincadeiras de criar situações de perigo, jogando óleo no chão para o
colega escorregar, funcionam como uma tentativa simbólica de enfrentar os riscos que não são
controláveis pelo conhecimento técnico dos engenheiros. Tal defesa, por vezes, evita,
temporariamente, o adoecimento. Porém, não evita o sofrimento psíquico, que permanece latente ou
oculto em relação ao agir manifesto e que, insidioso e crônico, associa-se à exploração da gestão e
organização do trabalho. Esta se utiliza das estratégias defensivas de negação do medo dos
trabalhadores e da necessidade autoafirmativa da “virilidade”, força e coragem, como instrumento para
incutir a busca “espontânea” ao trabalho árduo, intenso, maximizando a produtividade por meio da
exploração do sofrimento, gerando adoecimento ou desequilíbrio psicossomático (Dejours, 1992).
No caso da construção civil, a negação implica recusa de uso de equipamentos de segurança, visto
como símbolo de fragilidade. Muitos trabalhadores que não aderem à ideologia defensiva desistem do
trabalho, quando não são dele praticamente expulsos pela pressão do coletivo (Dejours, 1992).
Já o caso do trabalho do piloto de avião de caça, caracterizado como sublimatório, envolve um alto
grau de conhecimento técnico do trabalhador e níveis elevados de exigência e avaliação, sendo a
negação do medo uma atitude psicológica fundamental para o enfrentamento da tarefa de alto risco,
para a qual já está tecnicamente preparado por longo processo de desenvolvimento profissional. Neste
caso, a defesa, adaptativa, necessária e útil à tarefa, é mantenedora do equilíbrio psíquico e da
autoimagem positiva (Dejours, 1992).
As estratégias defensivas de negação do medo são também utilizadas por enfermeiras e guardas
municipais, mas não os imunizam do adoecimento e/ou sofrimento psíquico, e podem ser relacionadas
aos conflitos identitários e às relações de gênero e de poder, que se constroem no interior da natureza
dialética e contraditória do processo histórico e das suas relações sociais e de trabalho.
No caso da enfermagem, a natureza da atividade profissional evoca forte senso de responsabilidade
(Menzies, 1970). No caso do trabalho hospitalar, há situações de alto risco e de morte de pacientes. O
alto grau de responsabilidade, permeado por aspectos de gênero e imagens idealizadas da profissão,
redundavam na configuração de um trabalho patogênico (Fabbro, 1996).
No trabalho hospitalar, verifica-se um considerável risco de a enfermeira ser invadida por medo e
ansiedade em face das situações de vida e morte com que se depara e que lhe fogem ao controle
(Menzies, 1970). Elas vivenciam um considerável custo pessoal, de saúde e de desgaste de energia
somatopsíquica. A responsabilidade e o ideal de salvar vidas, ao invés de agirem no sentido da
sublimação (Dejours, 2004a, 2004b), convertem-se em um cotidiano marcado por pressões e
cobranças, externas (instituição, equipe de enfermagem e médica, e pacientes) e internas, ambas
permeadas pelas relações de poder-saber, identidades de papéis e relações de gênero (Fabbro, 1996).
As cobranças e pressões internas não são meramente subjetivas ou pertencentes a uma dimensão
psíquica isolada do todo social e organizacional. Compreendemos que, no cotidiano social e laboral, há
uma inevitável dialética entre o objetivo e subjetivo, o que significa que há uma relação de influência
mútua e recíproca entre um determinado perfil exigido para a prática profissional - perfil socialmente
construído e moldado tanto na formação como em tal prática - e a sua introjeção. Neste sentido, o
perfil (pessoal e profissional; individual e coletivo), marcadamente revestido pelo ideal/idealização de
salvar/cuidar vidas, é fruto da referida dialética, do jogo de influências entre identidade socialmente
atribuída e subjetivamente apropriada (Berger, Luckmann, 1978).
No trabalho da enfermeira, por questões objetivas e subjetivas que se articulam de forma
contraditória e dialética, a ansiedade e medo não podem se manifestar. O medo suscitado na atividade
profissional não encontra escape de expressão e de elaboração psíquica e grupal. Assim, produzem-se
estratégias defensivas coletivas de negação do medo que, embora eficazes num primeiro momento, são
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fugazes, não sustentáveis a longo prazo. O conflito psíquico não eliminado pela negação do medo
persiste de forma latente e tende a eclodir nas relações de trabalho em forma de agressividade.
Fabbro (1996) aponta que algumas situações de emergência geram angústias excessivas e alto nível
de estresse em todos os profissionais. Verifica-se, por vezes, certo imobilismo de alguns (ex: auxiliar de
enfermagem ou a própria enfermeira) frente às demandas constantes e agitadas da equipe médica nesta
situação. Tal imobilismo tende a ser visto como incompetência técnica e/ou inadaptação pessoal à
profissão, mobilizando agressões verbais e conflitos interprofissionais, de modo a intensificar a tensão da
situação. Em outras palavras, medos coletivos e individuais, incitados por situações reais acopladas à
dimensão do imaginário, geram ansiedade; produzem-se estratégias defensivas ansiogênicas que
retroalimentam tensões e receios que se inscrevem nos indivíduos, grupos e clima organizacional.
Conclui-se que a estratégia defensiva, efêmera e contraproducente, não se sustenta e adquire uma
natureza patogênica. O conflito psíquico converte-se em conflitos interpessoais, que se tornam
explícitos nas relações de trabalho.
O medo e a ansiedade que são negados (individual e coletivamente) nas situações-limite ressurgem
nas relações de trabalho por meio do mecanismo defensivo da projeção, suscitando agressividade entre
os pares. Trata-se de uma dinâmica psíquica abordada pela Psicanálise, na qual o que é expulso do ego
e projetado no outro acaba por se configurar como objeto ameaçador ao próprio ego, produzindo a
ansiedade persecutória e consequente hostilidade (Freud, 1987). Tal dinâmica se dá no contexto
organizacional e do trabalho nos quais as questões de gênero e de poder, antes referidas, são
fundamentais para mobilizar o processo defensivo, ou seja, este não é fruto de uma psicodinâmica ou
subjetividade particular, mas de uma unidade dialética e contraditória, a unidade sujeito-objeto.
Assim, as enfermeiras tendem a se queixar de que as auxiliares sejam incompetentes e/ou
irresponsáveis. A diretoria de enfermagem se queixa de que o grupo de enfermeiras não assume com
responsabilidade a coordenação do grupo, culpabilizando-as por rotinas não cumpridas. As enfermeiras
reagem e queixam-se de que a direção impõe uma disciplina rígida, senão repressiva, e as trata como
se não tivessem senso de responsabilidade. Daí resulta a cobrança mútua e excessiva. As cobranças
perdem sentido ou força simbólica (Fabbro, 1996). Deixam de ser indicativas de uma eventualidade e
passam a representar a normalização da vigilância e da punição (Foucault, 1994), na qual o habitual
passa a ser a cobrança sem sentido definido, sem meta, simplesmente cobrar por cobrar.
Assim, a pressão inerente das situações-limite (risco de vida de pacientes) associa-se a um contexto
de cobranças e pressões interpessoais e engendra competitividade na busca do aval do poder-saber
médico simbólica e hegemonicamente masculino. Portanto, enfermeiras e auxiliares desgastam-se e
tornam-se ambas vulneráveis ao estresse e ao desequilíbrio psicossomático.
Desse modo, analogamente ao caso dos trabalhadores da construção civil, analisados por Dejours
(1992), a ideologia defensiva, no caso das enfermeiras, induz à atitude de participação de todos na
mesma. Aquele que não contribui ou que não partilha do conteúdo desta ideologia defensiva
ocupacional é, cedo ou tarde, excluído, seja por meio de demissão, seja por intermédio de um sistema
que “marca” o funcionário. Tal aspecto reengendra a ênfase na coletivização das responsabilidades, de
modo a formar ciclos viciosos, caracterizados por estratégias defensivas estereotipadas, formas rígidas de
gestão e organização do trabalho, e processos de sofrimento psíquico e de adoecimento (Fabbro,
Heloani, 2004; Dejours, 1992).
Vale ainda mencionar que a questão da coletivização das responsabilidades, apoiada no discurso de
colaboração com o serviço, por nós compreendida como dispositivo de poder da instituição, induz as
trabalhadoras a se submeterem às horas-extras e à intensificação do ritmo de trabalho. Tal fato é agravado
por uma condição concreta do trabalho: o atendimento de alta demanda com número reduzido de
funcionários. Tal colaboração induzida, segundo Meyer (1995), traduz-se numa disponibilidade integral
para assumir atividades, ainda que a contragosto, e forjadas pelo poder médico-institucional.
No trabalho dos guardas municipais, a negação do medo e a ideologia defensiva também se
manifestam, apresentando caminhos e particularidades específicas no caso de serem trabalhadores ou
trabalhadoras.
Cavassani (1998) considera que a fragilidade psíquica não tem espaço na organização policial, sendo
interpretada como “loucura”. Do nosso ponto de vista, dadas as condições socioculturais da construção
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do masculino e do feminino, as mulheres policiais são alvos privilegiados de tais interpretações
estigmatizantes.
Sampaio e Carneiro (1997, p.313) também identificaram, em estudo clínico de uma policial militar,
que toda e qualquer fragilidade era negada ou indesejada pela ideologia organizacional. Esta valorizava
“o ser forte”, assim como o “auto-controle, esperteza e prontidão defensiva”.
Cruz (1989) aborda a frágil identidade heroica do policial militar. A atividade de trabalho que
possibilita a criação do imaginário do herói é a relacionada ao trabalho de rua, executado
predominantemente pelos trabalhadores. Observa-se, na valorização da identidade heroica, uma negação
da fragilidade humana, ou seja, os trabalhadores tendem a desenvolver uma ideologia profissional
defensiva (Dejours, 1992), de natureza estereotipada, que tende a colocar a policial trabalhadora, ou
ainda, a feminilidade, numa condição de inferioridade, de forma a reproduzir as referidas definições
normativas, historicamente constituídas, acerca do feminino e do masculino (Scott, 1995).
As metáforas “caçador” e “caça”, presentes no discurso dos guardas municipais em referência ao
“trabalho de rua” e ao embate policial-infrator, indicam-nos que a posição ativa (“caçador”), que no
imaginário sociocultural apresentava-se como essencialmente masculina, era altamente valorizada; ao
passo que a posição passiva (“caça”), vista como essencialmente feminina, era temida e rejeitada, além
de configurar-se como incompatível à identidade profissional desejada. Em tal posição, o trabalho era
vivenciado como fator de estresse ou desgaste (Silva, 2005).
As posições ativas e passivas diante do medo e/ou ansiedade na atividade de trabalho redundam em
configurações opostas, a saber: trabalho patogênico e trabalho sublimatório. Nas equipes de apoio,
predominantemente masculinas, a ansiedade era “administrada” de forma ativa pelo trabalhador, de
modo que o trabalho tendia a ser sublimatório. Já no trabalho das equipes de telefonia,
predominantemente femininas, a ansiedade não podia ser ativamente “administrada”, pois apenas
solicitavam aos “parceiros” do “trabalho de rua” que atendessem às ocorrências policiais e ficavam sem
saber o que de fato ocorria, configurando um trabalho patogênico (Silva, 2005). Este trabalho era menos
valorizado, rotinizado e mais controlado pela chefia, e envolvia imprevisibilidade e sentimento de
impotência que gerava significativa ansiedade.
Já nas equipes de apoio, a imprevisibilidade era experienciada com a valoração positiva de atividade
não rotinizada, além de ser condizente com uma identidade profissional libidinalmente investida e
valorizada pela cultura organizacional e pelos próprios trabalhadores.
Assim, no grupo feminino, as situações de risco e imprevisibilidade configuravam-se como
prejudiciais à saúde e, no masculino, eram vivenciadas positivamente ou como fonte de orgulho
profissional. As atividades das trabalhadoras não geravam a sensação de “autenticidade” do trabalho
policial e dissociavam-se dos símbolos de força e coragem, valorizados pelos dispositivos de poder
(Foucault, 1992) presentes nos discursos acerca das relações de gênero, quer seja no nível micro, quer
seja no plano mais amplo da ideologia e cultura organizacionais (Silva, 2005).
As trabalhadoras das equipes de patrulhamento eram geralmente tratadas com desdém e desrespeito
por parte da população, dos guardas homens, dos responsáveis pela gestão e infratores (Silva, 2005).
Não obstante, verificamos um outro lado desta questão no caso de uma das entrevistadas, considerada
“operacional” e valorizada pelos parceiros homens pelas suas habilidades relacionadas aos símbolos de
força e bravura. Por ser mulher e ser vista como menos capaz e frágil, sua ação era geralmente
inesperada e, não raramente, mais eficaz, em função do que se denominava “fator surpresa” (Silva,
2005, p.276), o que favorecia o sucesso na abordagem das ocorrências policiais. Esta situação
exemplifica o caráter relacional da construção social de gênero (Scott, 1995), assim como a noção
foucaultiana de circularidade do poder (Foucault, 1992), ambos anteriormente referidos.
Neste caso, o fato de ser mulher não teve repercussões subjetivas ou de autoimagem negativas, ou,
ainda, não impediu que ela exercesse o trabalho com competência. Este exemplo demonstra que as
questões de poder e de gênero não são totalmente intransponíveis. Por outro lado, é importante
salientar que o sucesso de suas ações, muitas vezes, era favorecido pelo fato de infratores a verem sob
uma perspectiva sexista, de modo que geralmente não esperavam tamanha agilidade e domínio técnico
provindos de uma mulher.
Conforme exposto, podemos afirmar que a ideologia defensiva no trabalho dos guardas é ora
adaptativa, de modo a possibilitar o enfrentamento ativo do medo/risco, a realização da tarefa e a
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constituição de uma identidade profissional condizente às aspirações dos trabalhadores; ora é
estereotipada e/ou patogênica, quando o medo/risco é meramente negado, dificultando a ação
profissional e reproduzindo a identidade-mito (Ciampa, 1990), baseada na frágil e ilusória identidade
heroica do policial (Cruz, 1989).
Podemos afirmar, assim, que as questões de poder e de gênero na instituição policial acarretam uma
divisão sexual do trabalho, uma vez que as trabalhadoras, que tendem a não aderir à ideologia
defensiva, são conduzidas ao trabalho assistencial, mais próximo à da condição estereotipada de trabalho
feminino e, portanto, desvalorizado social e institucionalmente (Maia, 1993).
Na pesquisa também se evidenciou que o papel do cuidado, da dedicação e do respaldo afetivo na
família era predominantemente exercido pelas trabalhadoras. Portanto, verificou-se que a condição
feminina no trabalho policial, dada a realidade institucional e sociocultural e os papéis sociais e familiares
predeterminados (cuidadora do lar, dos problemas de saúde familiar, dos problemas escolares e pessoais
dos filhos etc), era fator significativamente favorável ao desgaste ou estresse, de modo que as
adversidades vivenciadas no trabalho e na família tendiam a colocar as mulheres em condição de maior
vulnerabilidade ao estresse (Silva, 2005).
Considerações finais
A análise do trabalho de enfermeiras e guardas revela pontos em comum e algumas peculiaridades
ou distinções. Os trabalhos hospitalar e policial apresentam-se como atividades propícias ao sofrimento
psíquico, estresse e conflitos identitários, sendo as trabalhadoras alvos privilegiados, dadas as relações
entre identidade, poder e gênero na realidade socioinstitucional. As atividades profissionais envolvem
situações de risco e favorecem a constituição de ideologias defensivas de negação do medo. Elas
também mobilizam o ideal de salvar vidas, atitudes heroicas e sentimentos de ambivalência. Em ambos
os casos, se fazem presentes, no trabalho, a proteção e o cuidado ao lado da repressão e do controle.
As personagens heroicas identificadas nas análises de Fabbro (1996) e Silva (2005) revelaram
estratégias defensivas de negação do medo e formas específicas de lidar com a ansiedade. Identificouse que as trabalhadoras apresentam necessidade de se mostrarem fortes e tentativas pouco eficazes de
contraporem-se ao sofrimento psíquico, às normatizações sociais e às relações de gênero e de poder
(Scott, 1995; Foucault, 1992).
A instituição tende a utilizar-se da imagem heroica interiorizada, quer seja para uma maior
intensificação e exploração do trabalho (hospital), quer seja para possibilitar maior eficácia na realização
do trabalho de rua (policiais homens), o que, no entanto, nem sempre ocorre, dado que, em algumas
situações reais, tal imagem não se sustenta, até mesmo por não ser respaldada por uma condição de
formação técnica de excelência, tal como no caso dos pilotos de aviação de caça analisados por Dejours
(1992). No caso da maioria das policiais, embora haja um investimento (consciente ou inconsciente) na
imagem heroica, elas geralmente não enfrentam de fato ou ativamente as situações de risco/medo, de
forma que tal imagem não as poupa do sofrimento no trabalho; pelo contrário, tende a intensificá-lo,
produzindo a condição de estresse.
No trabalho da enfermagem, a ansiedade, intrínseca à atividade de cuidado da doença/doente e
intensificada pela própria organização do trabalho, dilui-se coletivamente, sendo socializada pela equipe.
Porém, esta socialização apresenta-se como patogênica. A equipe é induzida ao trabalho intenso, à
fadiga e aos conflitos interpessoais. No caso da enfermeira que assume a personagem responsável-portudo, o trabalho se intensifica, implicando não somente a fadiga, mas também os conflitos, uma vez
que ela apresenta dificuldades de delegar tarefas e, na medida em que interioriza tal personagem de
forma radical, apresenta dificuldade de valorizar o trabalho do outro que, do ponto de vista subjetivo, se
apresenta como incompleto, senão ineficaz.
No trabalho policial, verificamos que a ansiedade se dá em níveis e condições distintas, conforme o
posto de trabalho, sendo mais intensa e patogênica para aqueles que lidam com ela de forma passiva
(telefonia) do que para os que lidam de forma mais ativa (trabalho de rua). As mulheres, em função da
divisão sexual do trabalho, geralmente ocupavam os postos de trabalho nos quais predominavam formas
passivas de lidar com a ansiedade. No caso específico da policial “operacional”, que exercia o trabalho
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de rua, a imagem heroica, ao contrário do que ocorria com a maioria das trabalhadoras (telefonia), era
elemento que tendia a auxiliar a realização da tarefa, ainda que, tal como no caso dos trabalhadores, a
assunção de tal imagem não fosse garantia de sucesso na ocorrência policial.
A análise efetuada por Fabbro (1996) permitiu apontar que o conflito identitário da enfermeira
relaciona-se a uma dificuldade em assegurar sua ação singular, o saber que lhe é próprio, o seu espaço
no exercício profissional, sendo as relações de gênero e de poder um fator de peso na construção social
da figura da enfermeira submissa e despolitizada.
Não obstante, Fabbro (1996) ressalva que a enfermeira, apesar de ainda dependente da identidadepapel, está insatisfeita com o que vive. Tal insatisfação pode ser compreendida como um esboço de
uma consciência. Fabbro (1996) argumenta que buscar o entendimento dessa consciência é, antes de
tudo, revelar os vários níveis de submissão/opressão aos quais está sujeita. A recusa de rótulos e
estereótipos, como “empregadinha-de-médico”, “toca-serviço” e “responsável-por-tudo”, conduz a
enfermeira a perceber que não basta a competência técnica e que a competência política é tão ou mais
importante para o exercício de seu ofício. Esta competência se manifesta em pequenas, discretas e
transitórias formas de resistência.
A análise de Silva (2005) revelou que os conflitos identitários e nas relações de trabalho e familiares
são vividos de forma mais intensa pelas trabalhadoras e, consequentemente, estas tendem a ser mais
vulneráveis ao estresse em comparação aos trabalhadores. O lugar institucional da atividade laboral é
marcado pelo estigma da inferioridade e pela desvalorização.
Com base nas pesquisas acima consideradas e dos pontos de articulação entre as mesmas na
temática identidade, poder e gênero, é possível afirmar que a gestão e organização do trabalho e as
adversidades socioculturais e organizacionais, perpassadas tanto pelas relações de gênero conservadoras
como pelos dispositivos de poder, configuram-se como determinantes fundamentais do sofrimento,
adoecimento e conflitos identitários das trabalhadoras.
Concluímos que o desgaste da realidade socioinstitucional (Silva, Heloani, 2006; Seligmann-Silva,
1994; Laurell, Noriega, 1989), o bloqueio da relação homem-organização do trabalho (Dejours, 1992), a
desumanização das relações de trabalho e os processos de adoecimento e/ou sofrimento psíquico,
constituem-se como aspectos a serem corajosamente enfrentados, tendo em vista os objetivos de um
trabalho mais saudável, livre, criativo e autônomo. Tal desafio, posto em relação ao mundo do trabalho,
à vida privada e às relações neles constituídas, não pode prescindir da análise das estratégias defensivas
dos trabalhadores, assim como da análise crítica acerca das relações de gênero e da compreensão destas
enquanto históricas, relacionais e socialmente construídas (Kergoat, 2002; Scott, 1995).
Esperamos que, por meio das reflexões presentes neste artigo, tenhamos contribuído para o
adensamento da dimensão teórica acerca das relações entre trabalho e saúde, de forma a propiciar
maior diretividade e objetividade às ações práticas em prol da saúde das trabalhadoras, em particular, e
dos trabalhadores, de modo geral.
Colaboradores
Eduardo Pinto e Silva e Márcia Regina Cangiani Fabbro foram os responsáveis pela
elaboração da primeira versão do artigo, revisada, antes do envio, com base em
comentários e sugestões de Roberto Heloani. A segunda versão foi elaborada por
Eduardo Pinto e Silva e Márcia Regina Cangiani Fabbro, após as sugestões dos
pareceristas e novos comentários de Roberto Heloani.
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municipales: identidad, género y poder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31,
p.395-407, out./dez. 2009.
El objetivo de este artículo es el de analizar aspectos comunes del trabajo de la mujer
en dos categorias profesionales: enfermeras y guardias municipales. El análisis se ha
realizado a partir de releer investigaciones anteriores de los autores. Da metodologia se
ha basado en la compatación de aspectos del trabajo cotidiano tales como ansiedad,
tensión, riesgo de vida y miedo. Se abordan los conceptos de identidad, poder, género
e ideologia defensiva. Queda resaltado que el trabajo se configura como elemento
constitutivo de la identidad, siendo sobrepasado por las relaciones de género y de
poder históricamente constituidas y de carácter relacional. Se argumenta que las
actividades profesionales que integran las situaciones de ansiedad, tensión y riesgo
favorecen la constitución de ideologias defensivas de negación del miedo y movilizan
el ideal de salvar vidas, actitudes heróicas y sentimientos ambivalentes. Se concluye que
las situaciones de trabajo en ambas profesiones y las característioas de la gestión y
organización del trabajo propician sufrimiento psíquico, estrés y conflictos de
identidad.
Palabras clave: Trabajo de mujeres. Identidad. Género. Enfermera. Guardias
municipales.
Recebido em 22/08/08. Aprovado em 22/04/09.
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