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Midia Cotidiano

The aim of this article is to reflect on the aesthetic potential of the dispositional arrangements that constitute the insurgency scenes of the secondary school movement, which occupied the streets and schools of São Paulo in 2015. The proposal involves thinking about the aesthetic fabulation of the movement from the perspectives of transformations of the black corporeities themselves, through their narratives and their artistic productions. These reflections start from the dialogue between Foucault, Rancière and Deleuze, on the formation of the political subject in the resistances. The text bets on the potentiality of the aesthetic experience for the political emancipation of the subject, as well as the power of black corporeities in communicational processes of questioning control images. He also points to the construction of the insurgent scene through the dispositional arrangements it causes, also paying attention to the vulnerabilities and intersectionalities of the subjects involved.

ISSN: 2178-602X Artigo Seção Temática Volume 16, Número 3, set-dez de 2022 Submetido em: 23/05/2022 Aprovado em: 19/08/2022 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas na articulação de corporeidades negras em torno do movimento secundarista1 Communicative, political and aesthetic emancipations in the articulation of black corporeities around the secondary-school student movement Emancipaciones comunicativas, políticas y estéticas en la articulación de las corporeidades negras en torno al movimiento estudiantil de secundaria Francine ALTHEMAN2 Ângela Cristina Salgueiro MARQUES3 Resumo Este artigo é uma reflexão sobre as potencialidades estéticas dos arranjos disposicionais que constituem as cenas de insurgência do movimento secundarista, que ocupou as ruas e as escolas de São Paulo em 2015. A proposta envolve pensar sobre a fabulação estética do movimento a partir das transformações de si das corporeidades negras, por meio de suas narrativas e de suas produções artísticas. Essas reflexões partem do diálogo entre Foucault, Rancière e Deleuze sobre a formação do sujeito político nas resistências. O texto aposta em uma potencialidade da experiência estética para a emancipação política do sujeito, bem como a potência de corporeidades negras em processos comunicacionais de questionamento de imagens de controle. Ele aponta ainda para a construção da cena insurgente por meio dos arranjos disposicionais que ela provoca, atentando também para as vulnerabilidades e interseccionalidades dos sujeitos envolvidos. A realização deste trabalho contou com o apoio do CNPq e da Fapemig. Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Comunicação na Contemporaneidade pela Faculdade Cásper Líbero. Professora do Curso de Jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). E-mail: franaltheman@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1768-7617 3 Professora Associada do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Realizou pós-doutorado em Comunicação e em Ciências Sociais na cidade de Grenoble (França). E-mail: angelasalgueiro@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2253-0374 1 2 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X Palavras-chave: Corporeidades negras, interseccionalidade, emancipação política, transformação de si, arranjos disposicionais. Abstract The aim of this article is to reflect on the aesthetic potential of the dispositional arrangements that constitute the insurgency scenes of the secondary school movement, which occupied the streets and schools of São Paulo in 2015. The proposal involves thinking about the aesthetic fabulation of the movement from the perspectives of transformations of the black corporeities themselves, through their narratives and their artistic productions. These reflections start from the dialogue between Foucault, Rancière and Deleuze, on the formation of the political subject in the resistances. The text bets on the potentiality of the aesthetic experience for the political emancipation of the subject, as well as the power of black corporeities in communicational processes of questioning control images. He also points to the construction of the insurgent scene through the dispositional arrangements it causes, also paying attention to the vulnerabilities and intersectionalities of the subjects involved. Keywords: Black corporeities, intersectionality, political emancipation, selftransformation, dispositional arrangements. Resumen Este artículo es una reflexión sobre el potencial estético de los arreglos disposicionales que constituyen las escenas de insurgencia del movimiento de la escuela secundaria, que ocuparon las calles y escuelas de São Paulo en 2015. La propuesta implica pensar la fabulación estética del movimiento a partir de las transformaciones de sí mismos de las corporeidades negras, a través de sus narrativas y sus producciones artísticas. Estas reflexiones parten del diálogo entre Foucault, Rancière y Deleuze sobre la formación del sujeto político en las resistencias. El texto apuesta por la potencialidad de la experiencia estética para la emancipación política del sujeto, así como por el poder de las corporeidades negras en los procesos comunicacionales de cuestionamiento de las imágenes de control. También apunta a la construcción de la escena insurgente a través de los arreglos disposicionales que provoca, prestando atención también a las vulnerabilidades y interseccionalidades de los sujetos involucrados. Palabras clave: Corporeidades negras, interseccionalidad, emancipación política, auto transformación, arreglos disposicionales. Introdução No final de 2015, estudantes do Estado de São Paulo iniciam um levante, que traz muitas das características dos chamados movimentos insurgentes: horizontalidade, apartidarismo, inspiração no novo anarquismo, ocupação do espaço público, que se transformam em espaços de trocas, resistência e experimentações, uso criativo das redes sociais digitais, e um engajamento atrelado à subjetividade e à transformação de si. ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 136 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X O movimento foi promovido por estudantes do Ensino Médio que ocuparam mais de 200 escolas no Estado de São Paulo contra o projeto de reorganização escolar proposto pelo governo para ser implementado no ano seguinte. Como consequência dessa medida, mais de 150 escolas seriam afetadas, com encerramento de turnos e ciclos.4 A partir do anúncio da reorganização escolar, acontece uma sucessão de eventos insurgentes, iniciando o rompimento dos estudantes com a constituição de poder do governo e a auto-organização de um movimento. Estudantes foram às ruas em diversas ocasiões para protestar contra a medida do governo estadual. Essa onda de protestos teve, entre seus episódios, o fechamento de ruas em São Paulo, fomentado por performances criativas dos alunos, que simulavam salas de aula nas principais vias e empunhavam cartazes produzidos por eles mesmos, no calor do momento (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016). Esses processos estéticos e comunicativos que envolvem a resistência dos secundaristas no Estado de São Paulo5 em 2015, promoveram transformações e emancipações nos próprios sujeitos envolvidos, configurando-se como objeto de análise deste trabalho6. Entendemos a emancipação a partir da maneira como Michel Foucault (1994a) apresenta as experiências transformadoras como capazes de alimentar práticas de liberdade, tais como o cuidado de si, dos outros e as reinvenções A proposta de “reorganização do ensino”, feita pelo então governador Geraldo Alckmin e pelo então secretário de estado da educação Ferman Voorwald, pretendia fechar 94 escolas (que seriam disponibilizadas para outras funções na área da educação) e transferir mais de 300 mil alunos da rede pública, sob o argumento de que era necessária uma separação em ciclos únicos (Fundamentais I e II e Médio) para “melhorar o desempenho”. Entre os meses de outubro e dezembro de 2015, a mobilização dos estudantes contou com 213 escolas públicas ocupadas e diversos protestos nas ruas e avenidas de São Paulo (TAVOLARI et al., 2018). 4 É importante lembrar que o movimento dos secundaristas aconteceu em vários Estados brasileiros, especialmente entre 2015 e 2016. Mas as manifestações e ocupações paulistas foram as primeiras a acontecer neste cenário dos mais novos movimentos sociais, e desencadeou as demais ocupações pelo Brasil. 5 Os estudantes conquistaram o apoio público de diversos segmentos da sociedade civil e, no dia 3 de dezembro de 2015, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo entraram com uma ação civil pública na Justiça pedindo a suspensão da reorganização escolar. As entidades afirmaram que a ação foi a última medida adotada após diversas tentativas de diálogo com o governo. No dia 4 de dezembro, o governador Geraldo Alckmin se viu obrigado a revogar o decreto da reestruturação, e o secretário da Educação, Herman Voorwald, pediu para deixar o cargo. Fundamental para essa conquista foi o reconhecimento judicial da legitimidade da ocupação de escolas, bem como a construção de uma densa rede de apoio às escolas ocupadas. ________________________________________________________________________________________________________________ 6 Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 137 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X da forma de vida que nos sustenta7. Ao apostar que as técnicas de si poderiam fraturar os dispositivos de controle das vidas e dos corpos, Foucault sugere que os modos como agimos sobre nós mesmos abrem uma possibilidade reflexiva para pensarmos sobre quem somos e como queremos ser: eles “preparam o indivíduo para enfrentar a realidade desse mundo de agora, servindo-se de um conjunto de práticas por meio das quais ele pode construir um princípio de ação permanente” (FOUCAULT, 1994a, p. 800). De acordo com Margaret Rago (2013), o interesse de Foucault seria pelas possibilidades de “invenção de novos modos de existência, construídos a partir de outras relações de si para consigo e para com o outro, capazes de escapar às tecnologias do dispositivo biopolítico de controle individual e coletivo” (RAGO, 2013, p. 42). Para essa autora, investir nas práticas de liberdade implica tornar-se sujeito pelo trabalho de reinvenção da própria subjetividade possibilitada pela experiência. A potencialidade da emancipação que resulta desse processo não é apenas pontual e efêmera8, mas desafia a violência do poder institucional para mostrar como as resistências podem investir em táticas de refazimento, sobrevivências e constelações interacionais outras. A proposta, portanto, é refletir sobre empoderamento dos jovens envolvidos no movimento associado às subjetivações e transformações de si, por meio das estéticas do corpo, especialmente do corpo negro. É importante reforçar que se entende aqui o corpo negro não somente como uma potência insurgente, estética e dissensual, mas também como potência comunicativa. Isso posto, para essa análise, apostamos na configuração de arranjos disposicionais (BRAGA, 2018; 2020), a partir do conceito de dispositivo de Foucault ([1976], 2017; [1977], 1994c; [1977], 2003), como potencialidade estética dos movimentos de resistência. Assim, tomamos o conceito de As técnicas de si “permitem que os indivíduos façam, através de seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus corpos e almas, pensamentos, condutas e modos de ser, com o objetivo de transformarem a si mesmos para alcançar felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade” (FOUCAULT, 1994a, p. 786). 7 É importante destacar que, em abril e maio de 2016, o estado de São Paulo viveu um novo ciclo de ocupações, em torno da merenda escolar nas escolas técnicas estaduais (ETECs), no Centro Paula Souza (responsável pela administração das ETECs) e na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Em meados de 2016, o movimento dos estudantes paulistas alcançou muitas conquistas. No entanto, sofreu simultaneamente um incremento brusco da repressão, inclusive por meio do uso da violência policial e prisão de estudantes, que foram acusados de danos ao patrimônio. (TAVOLARI et al., 2018). Alguns documentários foram produzidos a partir das ocupações de 2015 e 2016, como: "Acabou A Paz, Isto Aqui Vai Virar O Chile” (2016); "Escolas em Luta" (2017) e "Espero tua (Re)volta" (2018). Também foi produzida uma peça de teatro, “Quando quebra, queima” (2018), protagonizada por estudantes que vivenciaram as ocupações em São Paulo. ________________________________________________________________________________________________________________ 8 Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 138 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X construção de cenas proposto por Jacques Rancière (2018) em associação com os aportes foucaultianos para pensar experiências estéticas como uma aposta teóricometodológica. Para articular esses conceitos, também recorremos a Gilles Deleuze (1996; 2016), que desenvolve o conceito de dispositivo de Foucault. Com relação a discussão sobre raça e racismo, devemos considerar que a maioria dos estudantes que ocuparam as escolas era negra, oriunda da periferia de São Paulo. Durante todo o processo de ocupação, a mídia tradicional fez circular imagens que evidenciavam o controle sobre as narrativas estigmatizantes que eram produzidas para desmobilizar, silenciar e culpabilizar os próprios secundaristas pelo cenário de injustiça sobre o qual tentavam atuar. O entrecruzamento entre raça, classe, gênero e sexualidade produz um complexo sistema de dominação que não deriva de uma soma ou sobreposição de diferentes experiências de opressão. A interseccionalidade aponta para uma justaposição ideologicamente organizada de violências, na qual estigmas são utilizados para dificultar a construção da autonomia política, o acesso a direitos e a busca por reconhecimento. Desse modo, trazemos para o debate os trabalhos de Patrícia Hill Collins (2019), Achille Mbembe (2018a, 2018b), Angela Davis (2017), Sílvio Almeida (2019) e Joice Berth (2019). Vamos costurar essas histórias com os aportes teóricos já apontados. Empoderamento de jovens do levante secundarista Na insurgência secundarista, questões ligadas ao racismo e ao empoderamento das estudantes negras e dos estudantes negros foram intensamente colocadas em discussão, como que se chocando com o poder manifestado pelo discurso. Segundo dados coletados por Corsino e Zan (2017, 2020), os secundaristas que ocuparam as escolas em São Paulo eram, em sua maioria, oriundos da periferia, de poder econômico baixo, afinal estudavam em escolas públicas, e muitos deles eram negros. A partir de dados da PNAD 2004-2014 (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar) e do IBGE 2019 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) os autores apontam que, no período de 2015 a 2019, foi possível verificar um crescimento do acesso à educação pela população negra, ainda que muito inferior àquele da população branca. Nesse mesmo período, a conclusão do Ensino Médio entre os jovens de 20 a 22 anos havia aumentado entre negros (58,1%), mas ainda se mantinha inferior à da população branca (76,8%) nessa mesma faixa etária. No processo de ocupação das escolas ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 139 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X públicas de São Paulo em 2015, os autores retomam dados da Secretaria Estadual de Educação dessa capital que apontam o protagonismo de alunos e alunas negras nas escolas, associando-o a pesquisas qualitativas que mostram forte consciência do retrocesso em relação às políticas públicas implementadas pelo governo federal destinadas ao combate à desigualdade racial (CORSINO; ZAN, 2020). Não podemos desconsiderar o processo político oriundo do Estado que está implícito nessa questão da reorganização escolar, que envolve o modo de ver a escola pública, que é majoritariamente composta por alunos provenientes da periferia e negros ou pardos. Mbembe (2018a) vai chamar de necropolítica as várias formas de destruir uma cultura, colocando um terror de morte real. O Estado, segundo Berenice Bento (2018), atua como um agente fundamental na distribuição desigual de reconhecimento às vidas consideradas dignas de proteção. No sentido biopolítico de uma governamentalidade de controle (FOUCAULT, [1977], 2003; 2014), o Estado segue um projeto de mercantilização da educação a longo prazo, encaixando os secundaristas em um projeto disciplinar, que dificulta as discussões políticas e as subjetivações. O que Bento nos revela, contudo, é que está em processo um conjunto de técnicas de governabilidade que entrelaça a necropolítica e a biopolítica, de maneira “a produzir interruptamente zonas de morte” (BENTO, 2018, p. 3). Quando consideramos as condições históricas de enraizamento do racismo no Brasil, fica clara a cultura política baseada na necrobiopolítica, cuja base é eliminação constante das vidas consideradas “matáveis”: O necrobiopoder unifica um campo de estudos que tem apontado atos contínuos do Estado contra populações que devem desaparecer e, ao mesmo tempo, políticas de cuidado da vida. Dessa forma, proponho nomear de necrobiopoder um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver. (BENTO, 2018, p. 7) Cabe refletir sobre as questões que envolvem o racismo estrutural nesse contexto e as transformações das corporeidades negras que foram tematizadas pelos secundaristas. A partir das reflexões de Paulo Freire (1987) e outros autores, Joice Berth (2019) discute a estética da corporeidade negra costurando com a concepção de empoderamento. Para a autora, a estética tem sido um elemento importante de dominação dos grupos oprimidos, pois ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 140 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X [...] uma vez que se criam padrões estéticos pautados pela hierarquização das raças ou do gênero, concomitantemente criamos dois grupos: o que é aceito e o que não é aceito e, portanto, deve ser excluído para garantir a prevalência do que é socialmente desejado (BERTH, 2019, p. 113). Berth (2019) reforça que o cabelo para os negros, sobretudo os jovens, é um importante elemento estético de autoafirmação, pois os preconceitos e estereótipos em torno da estética negra perpassam por essa solidificação do senso comum que ridiculariza o cabelo afro. Mas o cabelo não é o único elemento da corporeidade negra que é objeto de injúrias racistas. Os rostos negros, nariz e boca principalmente, também sofrem com o escárnio do ambiente social. Para a autora, os veículos de comunicação e mesmo as artes em geral reforçam os estereótipos que potencializam o preconceito contra a estética da corporeidade negra. Assim, para a população negra é um trabalho difícil, de ressignificação, para se libertar das estratégias de desqualificação da estética negra, configurando um trabalho de resistência e construção da autonomia. O enfrentamento às imagens de controle configura, segundo Patrícia Hill Collins (2019), um gesto de resistência contra um dispositivo de controle e classificação, uma vez as “imagens de controle são traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (COLLINS, 2019, p. 136). Dinâmicas e em constante reconfiguração, as imagens de controle enfatizam, por exemplo, padrões de beleza hegemônicos, estigmatizando corpos que não se encaixam nas regras hierárquicas e desprezando outras concepções de beleza. Elas alimentam opressões interseccionais que, entrecruzadas, produzem e amplificam desigualdades, sobretudo quando investem em oposições binárias que objetificam pessoas negras, impedindo-as de definirem suas experiências, identidades e escolhas (BUENO, 2020). Os jovens secundaristas, por meio de performances e de expressões artísticas, buscaram romper, em certa medida, com esse sistema de dominação, desencadeando processos de transformação e de emancipação dos sujeitos envolvidos no movimento de resistência. A insurgência secundarista foi além de um movimento que desestabilizou as estruturas de poder do Estado e suas manifestações de necrobiopoder, para ser também um movimento que fomentou processos subjetivos ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 141 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X mais profundos, especialmente nos jovens negros e periféricos de São Paulo. Segundo Bento (2018, p. 4), o Estado brasileiro não assume a máxima foucaultiana do “fazer viver, deixar morrer”, pois ele não abandona certas pessoas à morte: há uma constante produção de políticas de morte, destinadas a “fazer viver, com técnicas planejadas e sistemáticas”. De certa forma, a reorganização escolar em São Paulo permitiu a chance de tornar mais evidentes essas técnicas, e de elaborar táticas capazes de tematizá-las e fraturá-las. Essa situação de insurgência expõe uma série de relações interseccionais que desafiam a naturalização de opressões. A interseccionalidade atua e se configura através da práxis crítica, da reflexividade e das conexões entre sujeitos interdependentes. Entendida como espaço de relacionalidade e interdependência (COLLINS, 2019), auxilia a tematizar como vulnerabilidades, assimetrias e injustiças podem ser caracterizadas como uma matriz complexa na qual se tensionam linhas de continuidade e de descontinuidade, estratégias necrobiopolíticas e gestos biopotentes, sujeição e subjetivação. De acordo com Collins e Bilge (2021), muitas formas de ativismo estudantil se baseiam nas estruturas interseccionais e as autoras defendem que a interseccionalidade deve ser pensada como estratégia analítica em estudos de raça, classe e gênero. Para compreender essas transformações que envolveram o movimento, especialmente no que se refere ao empoderamento dos jovens negros, buscamos reconstruir as cenas de insurgência das corporeidades negras, por meio das narrativas dos próprios estudantes, que fomentam arranjos disposicionais como processos de comunicação. Em diálogo com Butler (2018), acreditamos que aparição performativa dos corpos sobre uma cena pública vai demarcar territórios, exposições, vulnerabilidades, alianças e afetos, associando ética, estética e política. Segundo ela, corpos se arriscam a aparecer não apenas para falar e para agir, mas também para sofrer e comover, para engajar outros corpos, para negociar e questionar a injustiça e a desumanização retira quase todas as possibilidades de sobrevivência. Aqui, também nos aproximamos de Achile Mbembe (2021) quando afirma que a política se estabelece como uma “questão de disposição adequada de materiais e corpos, de trabalho com, contra, sobre, por cima e através de elementos” (MBEMBE, 2021, p. 12). ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 142 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X “Corporeidade”, neste caso, não se refere apenas ao que há de maciço no corpo e em tudo o que objetivamente o compõe [...]. A corporeidade também se refere ao modo como o corpo é objeto de percepção, ou seja, como é criado e recriado pelo olhar, pela sociedade, pela tecnologia, pela economia ou pelo poder; o modo como se posiciona em relação a tudo o que o cerca ou que se move e cria um mundo ao seu redor (MBEMBE, 2021, p. 12) A produção de corporeidades tematiza a (in)visibilidade e (i)legibilidade de sujeitos e grupos, as assimetrias na regulação do espaço e dos modos de suas experiências e experimentações. A biopotência dos corpos e corporeidades coletivas se expressa nas interlocuções e articulações nas quais se inscrevem o gesto, a palavra e a enunciação do sujeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui de maneira performática, poética e argumentativa a partir da conexão e desconexão entre os múltiplos nomes e modos de narração de si que o definem. Por isso, o foco que evidenciamos neste artigo recai sobre as maneiras como corporeidades inventam as coordenadas de sua exposição e formas de vida, contrariando expectativas, promovendo fraturas, desestabilizando sentidos e alterando os arranjos que articulam os sujeitos em suas lutas e demandas. Os arranjos como dispositivos comunicacionais Para refletir sobre as cenas de insurgência do movimento secundarista, partimos do pressuposto de que uma cena polêmica, no sentido utilizado por Rancière (2009, 2018), é composta de dois movimentos: uma fabulação dos atores que “aparecem” e se fazem ver e ouvir; e uma montagem operada por aquele que relata as singularidades que tornam a cena única, mas ao mesmo tempo conectada a vários eventos e processos mais amplos. Compreendemos que a reconstrução da cena envolve uma descrição do acontecimento capaz de articular diferentes cenas, evidenciando teias discursivas que vão se entrelaçando, justapondo documentos, produções artísticas e narrativas usados para essa fabulação, aproximando as narrativas dos secundaristas, os conceitos e a reflexão das pesquisadoras. Acreditamos ser possível vislumbrar um entrelaçamento entre as cenas e os dispositivos foucaultianos, que também fazem parte do pensamento de Rancière sobre as hierarquias que estruturam uma ordem social consensual. Rancière (2018) concorda com Foucault quando este afirma que as vozes dos “homens (sic) infames” se chocam contra o poder, atraem sua ira e, justamente por isso, produzem cenas de ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 143 Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... tematização e nomeação de injustiças, nas quais pratica-se a sublevação, ou seja, “a recusa do estatuto de sujeito no qual nos encontramos.” (FOUCAULT, 2019, p. 35). É através dos gestos de interrupção e recusa que a cena promove outras possibilidades de arranjos e articulações entre temporalidades, corporeidades e espacialidades, de modo a alterar a dinâmica do aparecer dos sujeitos e dos acontecimentos, reorganizando o campo do visível, do legível e do pensável. No pensamento de Foucault ([1977], 2003), o conceito de dispositivo não se restringe aos mecanismos de controle e sujeição. Ele ressalta que existe um sistema de relações nos dispositivos, incluindo aquelas que escapam às relações de poder, como as resistências e suas criações fabulativas. A partir da leitura da entrevista que Foucault concedeu à Revista Ornicar, em 1977, e da leitura que Deleuze (1996, 2016) e Braga (2018, 2020) fazem do dispositivo foucaultiano, foi possível estruturar o conceito de forma a compreender melhor sua contribuição para a reconstrução das cenas como processos estéticos comunicacionais. Na entrevista supracitada, Foucault ([1977], 1994c) deixa claro que o dispositivo tem uma função estratégica para o enfrentamento de uma urgência. Os elementos do dispositivo são um conjunto heterogêneo de proposições (discursos, instituições, leis, decisões, enunciados etc.), tanto o que é dito quanto o que é não dito. “O dispositivo é, propriamente, o sistema de relações que se pode estabelecer entre esses elementos” (FOUCAULT, [1977] 1994c, p. 299). Relendo Foucault, Braga (2018, 2020) afirma que o dispositivo faz parte de elaborações e tentativas de arranjos que se organizam entre os sujeitos e outros componentes e que respondem a uma urgência de forma estratégica. Braga também advoga que é possível trabalhar com os conceitos de macro e microdispositivos, além dos conceitos de arranjos e dispositivos interacionais. “Há uma grande diversidade de microdispositivos, que se referem, em composições variadas, àqueles macroagenciamentos de ordem comunicacional” (BRAGA, 2018, p. 89). Em uma abordagem próxima a essa, Deleuze argumenta que o dispositivo é “composto de linhas de natureza diferente [...] que seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio e ora se aproximam, ora se distanciam umas das outras” (DELEUZE, 2016, p. 359). A partir dessas pistas, acreditamos ser possível dizer que arranjos disposicionais produzem cenas nas quais o dissenso opera outros agenciamentos de visibilidade e temporalidade, no sentido de configurar um aparecer político dos corpos e de suas demandas que os erga e os sustente em suas insurgências ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 144 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X (RANCIÈRE, 2018). Por meio de tentativas de enquadrar, montar e distribuir discursos, sujeitos, objetos, espaços e tempos, a prática de elaboração da cena revisa constantemente a forma assumida por esses arranjos, tensionados entre o controle e a autonomia dos sujeitos que nela figuram. Aqui, entendemos a autonomia como uma forma de fortalecimento emancipatório através da construção de articulações com outros indivíduos e grupos, “cada qual com seu conjunto distinto de experiências e pensamento [...] alimentando diálogos que investigam como a dominação se mantém e se transforma” (COLLINS, 2019, p. 87). Assim, a construção de cenas também pode figurar como uma possibilidade de desemaranhar as linhas que compõem os dispositivos da insurgência secundarista e que promovem essas potencialidades estéticas da corporeidade negra que levam às linhas de subjetivação e, por sua vez, podem formular novos dispositivos. Processos comunicativos e estéticos das corporeidades negras O percurso metodológico que nos orientou na produção deste artigo consistiu em recuperar relatos e depoimentos dos jovens secundaristas que atuaram nas ocupações de 2015 e 2016 em São Paulo a partir da decupagem e transcrição dos enunciados que integram os seguintes documentários: “Acabou A Paz, Isto Aqui Vai Virar O Chile” (2016); “LUTE como uma menina!” (2016), "Escolas em Luta" (2017) e "Espero tua (Re)volta" (2018). Por ocasião da apresentação da peça de teatro, “Quando quebra, queima” (2018), protagonizada por estudantes que vivenciaram as ocupações em São Paulo, registramos por escrito algumas das falas e testemunhos das personagens. Além disso, trazemos para essa rede de relatos, alguns dos poemas que integram a obra “Perifatividade nas escolas, a poética dos direitos humanos” (2016). Fontes documentais como jornais, revistas e reportagens também foram utilizados, sobretudo quando traziam depoimentos dos secundaristas acerca de suas experiências. Os processos comunicativos e estéticos que atravessaram o movimento secundarista, principalmente relacionados ao feminismo negro e ao racismo, podem ser considerados arranjos disposicionais em cenas dissensuais, em uma articulação entre as perspectivas de Braga (2018, 2020) e Rancière (2018), que geram microdispositivos políticos orientadores de linhas de subjetivação por meio da redefinição de espacialidades, temporalidades e corporeidades. É possível mostrar um pouco desse processo emancipatório pelo olhar da estudante Marcela de Jesus, que participou das ocupações e tinha 16 anos na época. Marcela, negra e moradora da ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 145 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X região da cracolândia em São Paulo, conta que sua vida mudou radicalmente depois do movimento secundarista, não somente sua vida em sociedade, mas também sua visão de si mesma, como mulher negra. Ela foi uma das protagonistas do documentário “Espero tua (Re)volta” (2018), de Elisa Kapai, que mostra a movimentação dos secundaristas na Jornada de Junho de 2013 e nas ocupações de 2015. Ela conta no documentário que passou por uma transição interior, que refletiu em sua aparência, a partir das discussões sobre feminismo dentro do movimento secundarista. Ao mesmo tempo, Marcela nomeia as estratégias necrobiopolíticas que amplificam as condições de vulnerabilidade da população negra: Sou a primeira da minha família a terminar o ensino médio. Fui criada no centro de São Paulo numa condição em que muitas vezes tínhamos que escolher entre comer ou morar, e como comer é mais importante, muitas vezes fomos despejados. [...] O Brasil não quer negros e pobres na universidade. A formação do ensino fundamental e médio é precária por isso mesmo. As pessoas não têm emprego e precisam fazer seu ‘corre’ vendendo coisas no trem, mas agora vão colocar a polícia militar dentro dos trens para reprimir isso! São ações propositais para manter os pobres longe de tudo (Marcela de Jesus, E. E. João Kopke) 9. No documentário supracitado, Marcela produz um relato de si conta que sua transformação passou pela descoberta de si mesma como uma menina negra, o que levou a uma transformação de sua aparência física. É comum que questões físicas, como cabelo e rosto, sejam questões complexas no movimento negro (COLLINS, 2019). O cabelo, por exemplo, é um dispositivo de empoderamento importante, tendo em vista que muitos negros passam pelo processo conhecido como transição capilar: não gostam de seu cabelo, alvo de “brincadeiras” preconceituosas e xingamentos, mas, ao se transformarem, costumam abandonar as tentativas de mudar o cabelo. Obviamente, a manifestação desse desejo repentino de ser branco se dá pelo aprisionamento elencado pela rejeição de si mesmo e de sua aparência negra em detrimento da brancura que lhe parece ser a única portadora de dignidade (BERTH, 2019, p. 133). DONATTO, Mauro. Como o engajamento social transformou a vida de uma secundarista que lutou por educação. Diário do Centro do Mundo (on-line), 28 fev. 2019. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-o-engajamento-social-transformou-a-vida-deuma-secundarista-que-lutou-por-educacao-por-mauro-donato/. Acesso em: 22 set. 2021. ________________________________________________________________________________________________________________ 9 Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 146 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X Durante o movimento secundarista, com 16 anos, Marcela já começou o processo de transição capilar e nunca mais usou técnicas de alisamento em seu cabelo. Hoje, as únicas químicas que penetram em seu cabelo são as tintas que a deixam com os cabelos coloridos de vez em quando. Marcela afirma que compreendeu que não precisava viver de acordo com os padrões impostos por uma cultura que enaltece a branquitude e que ela se sentia mais empoderada sendo ela mesma. Esse relato evidencia a ocupação e ressignificação das escolas produziram um território no qual [...] o conhecimento construído do ‘eu’ emerge da luta para substituir as imagens de controle pelo conhecimento autodefinido, considerado pessoalmente importante, um conhecimento muitas vezes essencial para a sobrevivência das mulheres negras (COLLINS, 2019, p. 184). Ainda que a estudante ressalte as barreiras que existem na escola para fazer esse tipo de discussão sobre sexualidade, beleza e feminismo, debates acerca do racismo estrutural foram organizados durante as ocupações de modo a questionar o papel disciplinador e excludente da institucionalidade escolar. Fizemos [secundaristas] questão de dar mais voz para aquilo que a sociedade cala, as mulheres sempre foram caladas. A população LGBT também e a gente dá mais voz. Para os negros também. Eu tento fazer a desconstrução no dia a dia, mas na minha escola acho que eu desisti, porque as pessoas olham pra mim e falam: ‘nossa, tudo pra você é machismo’, ‘ah, lá vem a feminista’. É difícil desconstruir essas pessoas. Elas são ignorantes, entra por um ouvido e sai pelo outro. Não prestam atenção em nada do que você fala (Marcela de Jesus, E. E. João Kopke). As discussões sobre racismo estrutural também foram importantes durante o movimento secundarista, tendo em vista que muitas meninas e meninos negras e negros também passaram por um processo de transformação de si. Tal transformação, segundo Foucault (1994a; 1994b), implica a criação de técnicas e práticas de liberdade destinadas a ampliar as possibilidades de invenção de condutas capazes de redefinir e alterar o campo de ação possível, tanto para si como para os outros, em uma dinâmica de autoconstituição existencial, relacional, estética e política. Achille Mbembe (2018b) afirma que a formação das identidades africanas contemporâneas passa por um processo de recusa do brutalismo da colonização e da cultura liberal, que não consideravam todos os sujeitos como iguais e não faria com que os indivíduos colonizados fossem reconhecidos como seres humanos. Desse ciclo ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 147 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X histórico, pode-se dizer que nasceu o racismo estrutural. De forma semelhante, o filósofo Sílvio Almeida (2019) afirma que o racismo é sempre estrutural, porque não se pode limitar o olhar apenas para os aspectos superficiais que produzem o racismo. Ele é um processo histórico que, junto com o racismo institucional, atuam para manter uma hegemonia do grupo racial dominante nas instituições públicas que detêm o poder. Para romper com esse ciclo, Mbembe (2018b) compreende que é necessário produzir uma crítica da razão negra, que seria uma forma de controlar o discurso para que o sistema de relações de poder mantenha a dicotomia brancos e negros, e que estes sejam assujeitados pelo sistema. A formação de um discurso que imprime uma interdição ao povo negro e coloca-os em uma condição subalterna, muitas vezes como não sujeito. Angela Davis (2017) reforça que essas questões sobre racismo devem passar pela educação e pela arte. Para a autora, a escassez de aspectos da cultura negra nas escolas e nas artes faz com que os sujeitos ignorem as questões sobre política racial, o que alimenta ainda mais o racismo. A secundarista Marcela Reis, negra, reforça essa consideração, ao mencionar que eles só aprendem na escola a história contada pelo ponto de vista europeu. Eu sonho com uma escola colorida, cheia de grafite, onde os alunos possam sentar em roda, ou do jeito que eles quiserem, do jeito que eles aprenderem melhor. Eu sonho com uma escola onde as salas de aula sejam menos lotadas. Uma escola onde as meninas possam ir vestidas do jeito que elas querem. Uma escola que fale da cultura negra, que eu não ouvi, só ouço falar dos portugueses (Marcela Reis, E. E. Godofredo Furtado)10. Os meninos negros da ocupação também elaboraram corporeidades potentes durante o movimento e promoveram uma transformação de si mesmos importante. Quando eu entrei na ocupação eu era careca, sem barba, eu tinha um pouco de vergonha do meu cabelo... e depois que eu saí de lá, eu me aceitei mais, como homem negro (André Dias, estudante). LUTE como uma menina! Direção de Flávio Colombini e Beatriz Alonso. São Paulo, 2016. 77 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA&t=1157s&list=PLx6HesqJ7yTiTGMQ8YBFce84NV9OQjwm&index=4. Acesso em: 22 set. 2021. ________________________________________________________________________________________________________________ 10 Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 148 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X No sentido de a gente não ter vergonha e não precisar mais esconder quem a gente é! (Ícaro Pio, E. E. Fernão, fala enquanto aponta o seu cabelo de homem negro, descolorido)11. Ícaro Pio, negro e homossexual, foi aluno da Escola Estadual Fernão Dias durante a ocupação de 2015, quando tinha 16 anos. Ele relata que, antes das ocupações, ele tinha vergonha de mostrar seus cabelos, por isso raspava a cabeça, e tinha vergonha de quem ele era. O movimento deu a ele uma oportunidade para investir em um processo de emancipação para assumir seus cabelos e sua sexualidade, permitindo um “cuidado de si” que implica a consideração progressiva do próprio corpo12, as possibilidades de ressignificação da experiência vivida, sem desconsiderar relações de poder. A consideração da singularidade das experiências vividas, corporificadas e narradas dão a ver que projetos identitários combinam condições específicas e comuns, investimento pessoal e contribuições oriundas das relações intersubjetivas, revelando contingências entre as determinações institucionais e as diferentes interseccionalidades e formas de deslocamento que fissuram e rearticulam tais determinações sem eliminá-las (MBEMBE, 2021; COLLINS, BILGE, 2021). Emancipação política pelas experiências estéticas Existe uma experiência estética, uma espécie de modalidade do regime estético, que se funda nas cenas de dissenso da insurgência secundarista. Produzidas no momento das disputas políticas, nas manifestações e ocupações, as experiências estéticas insurgentes também acontecem em outras camadas do movimento, em processos de produção sensíveis individuais, que levam à emancipação e à subjetivação. Uma dessas experiências foi a produção de poesias pelos estudantes durante as ocupações. Eles produziram esses poemas não somente para expor a luta em si, mas também para mostrar quem são e de onde vieram, para demarcar a negritude que carregam consigo. Vejamos uma das poesias13 produzidas naquele período: 11 QUANDO Quebra Queima. Direção de Emiliano Goyeneche. Trip TV, reportagem, 5 min, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3-Rk5lg0dKE. Acesso em 22 set. 2021. 12 Para Mbembe (2021), corpo é o que as relações concretas e o ambiente social permitem que seja, mas ganha existência também à luz dos projetos e formas de atuação dos indivíduos (em relações de engajamento com os outros). 13 Poesias publicadas em: PERIFATIVIDADE, Coletivo. Perifatividade nas escolas, a poética dos direitos humanos. São Paulo: Coletivo Perifatividade, 2016. ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 149 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X Viver como estudante Viver como estudante, Ser tratado como desinformado, Mas a briga é de cachorro grande E não queremos ser ditados. Na luta nós entramos, Garanto, não somos covardes Todos juntos lutaremos Pois já cansamos de ficar no aguarde! Cada vez mais nós aumentamos Estamos para todos os lados Somos todos secundaristas Mas não aceitamos ser secundários. Não finja não nos ver, Isso não é utopia Queremos educação de qualidade Nesta classista democracia! (Jhon, E. E. Raul Fonseca) Rancière (1996) nos fala sobre a dimensão estética da política, que transforma a percepção que temos da distribuição desigual de espaços, palavras e temporalidades entre os sujeitos. Ela diz respeito a uma ruptura com um tipo de ordem sensível que se pretende natural e que define que pode ou não tomar parte nas atividades coletivas, ancorando corpos a lugares e identidades impostos. A estética da política promove uma fratura em um sistema de identidades constituídas, inventa novos modos de experimentar outras formas de enunciação e de existência (MARQUES, 2010). Os poemas escancaram problemas que permeiam não somente as ocupações, mas realidades que vigoram muito antes do movimento insurgir: a realidade dos alunos de escolas públicas, das meninas, do negro. Patrícia Hill Collins (2019), ao falar do blues como expressão artística utilizada como forma de permitir às mulheres negras construírem suas próprias narrativas, destaca o papel da música como refúgio e refazimento no seio de territórios de afeto que abrigam comunidades políticas de práticas de liberdade e cuidados de si e dos outros. As músicas podem ser vistas como poesia, como expressão de mulheres negras comuns rearticulada pelas tradições orais negras. [...] Os blues cantados por muitas intérpretes negras desafiam as imagens de controle definidas externamente e usadas para justificar a objetificação das mulheres negras como o Outro (COLLINS, 2019, p. 194) Collins e Bilge (2021) também compreendem a poesia como um espaço de crítica à pobreza, ao racismo, à violência e aos problemas sociais que esses jovens ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 150 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X enfrentam cotidianamente. Segundo as autoras, a interseccionalidade também é uma forma de contestação e isso é feito por meio de uma afirmação ousada da política identitária coletiva, muitas vezes por meio da poesia. “A poesia da palavra falada constitui um lugar importante em que o conteúdo das narrativas identitárias juvenis reflete uma injeção da narrativa da interseccionalidade de múltiplas identidades” (COLLINS e BILGE, 2021, p. 195). Além da poesia, do encontro desses estudantes nasce também outra forma de experiência estética: a ColetivA Ocupação, um grupo de ex-secundaristas das ocupações de 2015 que resolveu fazer da arte o seu processo de emancipação. Esse grupo criou e passou a encenar a peça “Quando Quebra Queima”, que estreou no dia 5 de maio de 2018, na Casa do Povo, em São Paulo. Durante a peça, os estudantes recontam a história do movimento e narram as suas próprias dificuldades, conquistas e as relações que se fortaleceram durante as ocupações. Assim como as poesias, a elaboração da peça de teatro se configurou como oportunidade singular para o “cuidado de si”, evidenciando como os modos a partir dos quais agimos sobre nós mesmos abrem uma possibilidade reflexiva para pensarmos sobre quem somos e como queremos ser. “Precisamos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto durante vários séculos” (FOUCAULT, 2014, p. 128). Salientamos que o cuidado de si aparece como uma intensificação das relações sociais: não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular diferentemente a relação com os outros pelo cuidado de si. Isso implica um trabalho constante e crítico de redefinição de quem somos diante da recusa das identidades que nos são socialmente impostas. Além disso, a criação de práticas e técnicas de si não são inventadas pelos sujeitos, mas “são esquemas que eles encontram em sua cultura e que lhes são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (FOUCAULT, 1994b, p. 719). O cuidado de si é sempre também um cuidado com os outros, pois promovem práticas afetivas, de solidariedade, de amizade e de cuidado. A forma excessiva de linguagem, como proposto por Rancière (2016), está aberta a todos e qualquer um pode tomar parte no processo político e ao mesmo tempo estético de construção dessa resistência. Tomar a palavra e articular um relato – que é ao mesmo tempo individual e coletiva – são técnicas narrativas de si muito potentes em vários momentos da peça. Quando os estudantes-atores contam a sua própria ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 151 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X história, por exemplo, eles se sentam com a plateia e mostram fotos deles mesmos na época da ocupação, destacando suas experiências. Vejamos um desses relatos, de um menino negro que passou por um processo de transformação de si: Este sou eu antes das ocupações [mostra sua foto]. É muito louco a gente rever a nossa história, rever as nossas fotos, rever as nossas imagens, rever o nosso jeito de ser. Eu lembro que eu tirei essa foto eu tava na quadra da minha escola, e meu cabelo aqui estava muito pequeno, porque meus pais não deixavam meu cabelo crescer, porque quem é preto e pobre sabe o quanto que pra pais pretos é realmente duro ver um filho deixar o cabelo crespo crescer, porque isso significa não ser aceito em vaga de trabalho e significa não ser aceito dentro da escola. Dentro das ocupações eu comecei a entender que não tinha problema nenhum deixar o meu cabelo crescer, porque na verdade isso significava respeitar minha família, respeitar os meus traços e que não é natural desnaturalizar o nosso cabelo pra agradar um sistema que não tá nem aí pra gente preta e pra gente como a gente. Então me ver aqui e me vendo hoje, deixando o cabelo do jeito que eu quero, levando minha vida do jeito que eu quero, do jeito que eu sonho, significa que jovens pretos também têm sonhos e que a gente também merece sonhar (Abraão Santos, durante a peça). As narrativas de si durante a peça escancaram a questão do racismo, especialmente ligadas ao cabelo afro, que representa, para eles, um símbolo de seu empoderamento como homem preto e mulher preta. Abraão reforça essa questão no final de sua narrativa, entendendo que muitas pessoas ignoram a importância do cabelo, da transição capilar, para a comunidade negra. O preconceito também é reforçado por causa do cabelo. Como Abraão conta, usar cabelo raspado, para os homens, é aceitável, mas deixar o cabelo crescer, o famoso “black power”, é considerado impróprio. Esse é, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes e transformadores da peça. É um processo de “relatar a si mesmo” (BUTLER, 2015) em que está envolvida a emancipação de cada um, uma construção de subjetividade, um processo de deviroutro, já que eles não são mais os mesmos de antes das ocupações. O relato é também uma ação de autotransformação, autorreflexão e autocriação, que reconfigura os sentidos discursivos de quem fala. Também estabelece relações com outros sujeitos que vivenciaram aquela mesma narrativa ou acontecimento parecido, dividindo ansiedades, desejos e inseguranças. Aqui fica claro como a construção social do racismo pode se dar a partir da imposição de imagens “negativas da condição de mulher negra promovidas pelos ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 152 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X brancos, sustentando práticas sociais discriminatórias” (COLLINS, 2019, p. 45). Para Collins, mulheres negras desenvolvem processos de autodefinição para reformular o lugar ocupado pelos saberes e experiências de matriz africana em suas trajetórias de modo a lutar contra imagens de controle centradas no “aparato conceitual do grupo dominante, pondo em xeque concepções de feminilidade do tipo ‘boneca Barbie’, pressupostas nas experiências de mulheres brancas de classe média” (COLLINS, 2019, p. 71). Os padrões dominantes de beleza – em particular a cor da pele, as características faciais e a textura do cabelo – são um exemplo específico de como as imagens de controle depreciam as afro-americanas. [...] No pensamento binário que sustenta as opressões interseccionais, as loiras magras e de olhos azuis não poderiam ser consideradas bonitas sem o Outro – as mulheres negras com características tipicamente africanas: pele escura, nariz largo, lábios carnudos e cabelo crespo. [...] Independentemente da realidade subjetiva de qualquer mulher, esse é o sistema de ideias com o qual ela se depara (COLLINS, 2019, p. 166167). No lugar de discursos de causalidade e de apagamento das sutilezas e texturas das experiências, é vital apostar na escolha de outro enquadramento para “ler” os enunciados imagéticos, para abrir intervalos narrativos que permitam duas ações simultâneas: criar uma narrativa intervalar e através dos intervalos, permitir aos espectadores uma outra forma de legibilidade do tempo e do comum (COLLINS, 2019). O palco do teatro, ainda que se defina no enredamento de arranjos institucionais de poder, pode atuar como espaço seguro de apropriação e transformação, colocando em xeque as imagens que acentuam a matriz de dominação. Imagens que controlam a existência feminina e negra, que atribuem submissão, animalização, agressividade e uso, são contestadas de forma potente, demandando por um renascimento da mulher, do seu corpo e da sua alma negra. Performances e produtos artísticos contemporâneos, portanto, se reúnem para compor um grande ritual de decolonialidade, propondo o enterro do olhar alheio, branco e masculino sobre as narrativas da mulher negra. (CARRERA; MEIRINHO, 2020, p. 77) Nos espaços seguros resultantes dos arranjos produzidos nas ocupações, na elaboração de poemas, relatos e na peça de teatro, imagens de controle foram questionadas e rasuradas: ao oferecerem condições de escuta, partilha, cuidado e afeto, ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 153 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X esses espaços contribuem para “o empoderamento das mulheres negras por meio da autodefinição, ajudando-as a resistir à ideologia dominante” (COLLINS, 2019, p. 185). A persistência de mulheres negras em definirem suas próprias narrativas é um exercício de validação do empoderamento dessas mulheres, um poder que está inscrito na retomada da sua humanidade. Desafiar as imagens de controle e construir noções de feminilidade que são próprias englobam um aspecto central da busca por autodefinição, processo que ocorre preponderantemente nos espaços seguros (BUENO, 2020, p. 142) A tarefa de assegurar as articulações, as redes de solidariedade e amizade, por exemplo, foi importante matéria de produção do comum para os secundaristas: houve um trabalho paciente de tessitura constante dos laços, de uma coletividade partilhada, mas também de sabedoria, que consistiu em aproveitar-se dessas articulações para alterar a situação de vulnerabilidade em que se encontravam, permitindo a sobrevivência e a emergência de transformações. Considerações finais Nas ações e gestos insurgentes elaborados pelos secundaristas através de poemas, cartazes, peça de teatro e relatos de si, a palavra não pode ser controlada: ela vai para lugares que não deveria ir, incluindo as mãos/olhos daqueles que não deveriam manejá-la. O jogo da palavra desierarquizada mostra que o poder nela contido pode ser retomado e desviado por qualquer um (MARQUES; PRADO, 2018). As palavras carregam uma potência política para alterar as relações entre a ordem dos corpos e a ordem das palavras: é quando aqueles que foram tornados inaudíveis pela distribuição socialmente autorizada de papéis efetivamente comunicam suas demandas que a hierarquia social é alterada e novos meios de fazer, ser e dizer aparecem. Ao contar a sua história e de seus colegas, o jovem negro impõe a si mesmo uma ressignificação do passado pessoal e coletivo, vendo-o de uma outra perspectiva. Narrar a própria história em territórios afetivamente construídos e protegidos é, segundo Winnie Bueno (2020), afirmar a agência e a autonomia que alimentam o processo de autodefinição e empoderamento político de mulheres e homens negras e negros. A experiência estética das corporeidades negras é muito potente no movimento em 2015. Tendo em vista que a maioria dos estudantes que ocuparam as escolas eram ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 154 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X negros, moradores de periferia, a tensão presente nas discussões sobre racismo permeia todo o movimento (CORSINO; ZAN, 2017, 2020). Entretanto, não podemos nos esquecer que essa experiência de redefinição das coordenadas das experiências de jovens negras e negros se faz em constante tensionamento com uma prática de gestão necrobiopolítica que não são vistos como interlocutores, que não se afirmam como sujeitos produtores de enunciados, de saberes ou de arte, sendo ainda muito difícil atribuir a seus corpos e suas corporeidades qualquer qualidade que produza um campo de intersecção com os sujeitos reconhecidos como legitimados (BENTO, 2018). Ao analisar a experiência estética do cinema negro, Barros e Freitas (2018) nos mostram que “os regimes de visibilidade (e de invisibilidade) e de percepção só podem ser compreendidos a partir dos seus contextos históricos, sociais, raciais e culturais” (p. 106). Assim, não podemos deixar de pensar nas duas Marcelas, cujos depoimentos foram vistos acima, como mulheres negras periféricas; assim como não podemos deixar de lado que André, Ícaro e Abraão são negros, o que muda suas perspectivas e narrativas pessoais. Na cultura brasileira sabemos que tais condições criam invisibilidades preponderantes na formação desses sujeitos. “E quanto o outro não é visto como sujeito, como um ser humano, todos se coisificam e perdem a condição humana” (BARROS; FREITAS, 2018, p. 100). As falas de ambas as Marcelas, de Ícaro, de André e de Abraão mostram que a partilha do sensível esconde também uma forma de (in)visibilizar parte importante das corporeidades negras presentes no movimento. Achille Mbembe (2018b) defende que o racismo tem um lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder. Dessa forma, o controle dos corpos e de sua aparição no espaço público é uma das formas de manter uma certa ordem e soberania. Um rosto humano autêntico é convocado a aparecer. O trabalho do racismo consiste em relegá-lo ao segundo plano ou cobri-lo com um véu. No lugar desse rosto, faz-se emergir das profundezas da imaginação um rosto de fantasia, um simulacro de rosto e uma silhueta que, desse modo, tomam o lugar de um corpo e um rosto humanos. O racismo consiste, pois, em substituir aquilo que é por algo diferente, uma realidade diferente (MBEMBE, 2018b, p. 69). Não é só a substituição dos rostos e das corporeidades negras que está em jogo nessas cenas, mas também o uso da linguagem, da palavra, da imagem como afirma Mbembe. ________________________________________________________________________________________________________________ Volume 16 | Número 3 | setembro-dezembro de 2022 155 Emancipações comunicativas, políticas e estéticas... Mídia e Cotidiano – ISSN 2178-602X [...] a palavra nem sempre representa a coisa; o verdadeiro e o falso tornam-se indissociáveis e a significação do signo não é necessariamente a mais adequada à coisa significada. Não foi só o signo que substituiu a coisa. Muitas vezes, a palavra ou a imagem têm pouco a dizer sobre o mundo objetivo. O mundo das palavras e dos signos autonomizou-se a tal ponto que não se tornou apenas uma tela para a apreensão do sujeito, de sua vida e das condições de sua produção, mas uma força em si, capaz de se libertar de qualquer vínculo com a realidade. A razão disso pode ser atribuída em grande medida à lei da raça (MBEMBE, 2018b, p. 32). As experiências aqui reconstruídas podem ser vistas como possibilidade de emancipação dos grupos marginalizados, como propõe Rancière (2016), ao associar a emancipação ao aparecer político dos corpos e anseios, alterando a disposição dos arranjos que os tornam visíveis e reconhecíveis. A biopotência despertada pela insurgência é uma forma de reenquadramento de sentidos que levam a novos processos de existir, de questionar e subverter a partilha do sensível. São os devires em revolução. Referências ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BARROS, Laan Mendes de; FREITAS, Kênia. Experiência estética, alteridade e fabulação no cinema negro. Revista Eco-Pós, v. 21, nº 3, p. 97-121, 2018. BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. Cadernos Pagu (UNICAMP), v. 1, p. 1-16, 2018. BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BRAGA, José Luiz. Interagindo com Foucault – os arranjos disposicionais e a Comunicação. Questões Transversais – Revista de Epistemologia da Comunicação, v. 6, nº 12, p. 81-91, jul-dez 2018. BRAGA, José Luiz. Uma conversa sobre dispositivos. Belo Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG, 2020. BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patrícia Hill Collins. 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