DA
LIMPA
passada a limpo
Organizadores
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
André Garcia Xerez Silva
A LEI DA FICHA LIMPA
passada a limpo
Organizadores
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
André Garcia Xerez Silva
Prefácio
Volgane Oliveira Carvalho
Autores
Alisson Emmanuel de Oliveira Lucena
Kelvin Peroli
dos
Luiz
Ana Claudia Santano
Carlos
Santos Gonçalves
Luiz Eduardo Peccinin
André Garcia Xerez Silva
Bruno César Lorencini
Paula Bernadelli
Daniel Falcão
Rafael Vieira de Alencar
Desirée Cavalcante Ferreira
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Eneida Desiree Salgado
Renan Guedes Sobreira
Glauco Costa Leite
Tiago Asfor Rocha
José Edvaldo Pereira Sales
Wagner Wilson Deiró Gundim
Walber de Moura Agra
José Wellington Bezerra da Costa Neto
Juliana Rodrigues Freitas
Editora Mucuripe
Fortaleza
2022
Esta obra está sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR
A lei da ficha limpa: passada a limpo
1ª edição
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
André Garcia Xerez Silva (Org.)
Editora Mucuripe
Conselho Editorial
André Parmo Folloni
Arno Dal Ri Junior
Daniela Leutchuk de Cademartori
Danielle Annoni
Denise Lucena Cavalcante
Germana de Oliveira Moraes
Gisele Cittadino
Hugo de Brito Machado Segundo
João Luís Nogueira Matias
João Ricardo Catarino
Juarez Freitas
Marcelo Cattoni
Marciano Seabra de Godoi
Marcos Wachowicz
Maria Vital da Rocha
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
Paulo Caliendo
Roberto Alfonso Viciano Pastor
Capa, Editoração e Revisão
Álisson José Maia Melo
Fotografia: Gustavo-Leighton. National Congress of Brazil (2020)
Dados internacionais de Catalogação na Publicação
L525
A lei da ficha limpa: passada a limpo / Organizadores: Raquel
Cavalcanti Ramos Machado e André Garcia Xerez Silva — 1. ed.
— Fortaleza: Mucuripe, 2022.
Vários autores.
321 p. : 21 cm.
ISBN-13: 978-65-87966-24-3
1. Direito Eleitoral - Brasil. 2. Inelegibilidade – Brasil. Poder Judi
ciário - Brasil. I. Machado, Raquel Cavalcanti Ramos. II. Silva, An
dré Garcia Xerez.
CDD
342.0781
SUMÁRIO
SOBRE OS AUTORES............................................................................ 5
LISTA
PREFÁCIO
DE ABREVIATURAS E SIGLAS........................................... 11
.............................................................................................. 15
Volgane Oliveira Carvalho
1 CORRUPÇÃO, MORALISMO E LEGITIMIDADE DO
PROCESSO ELEITORAL À LUZ DA LEI DA FICHA LIMPA:
uma radiografia das eleições suplementares de 2021
no Estado do Ceará ........................................................................... 17
André Garcia Xerez Silva
2 BREVES REFLEXÕES SOBRE OS 10 ANOS DA LEI DA
FICHA LIMPA: princípio da não culpabilidade e detração do
prazo de inelegibilidade ................................................................. 51
José Wellington Bezerra da Costa Neto
Glauco Costa Leite
3 A INELEGIBILIDADE POR REJEIÇÃO DE CONTAS
APÓS O PLP Nº 09/2021 .................................................................. 81
Luiz Eduardo Peccinin
4 OS INFLUXOS DA NOVA LEI DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA NO ARQUÉTIPO DAS
INELEGIBILIDADES .................................................................... 101
Walber de Moura Agra
Alisson Emmanuel de Oliveira Lucena
5 A MORALIZAÇÃO DA POLÍTICA E SEUS IMPACTOS NA
LIBERDADE DE ESCOLHA DOS CANDIDATOS:
uma análise da Lei da Ficha Limpa pela perspectiva
jusfilosófica do ideal democrático em Aristóteles ................... 127
Bruno César Lorencini
Wagner Wilson Deiró Gundim
4
A LEI DA FICHA LIMPA passada a limpo
6 ENTRE A ÉTICA MÉDICA E A VIDA POLÍTICA:
diálogos entre a atuação do médico candidato com
as hipóteses de inelegibilidade.................................................... 147
Daniel Falcão
Kelvin Peroli
7 LEI DA FICHA LIMPA, ONZE ANOS DEPOIS:
o leito de Procusto e o princípio da proporcionalidade ..........169
Eneida Desiree Salgado
Ana Claudia Santano
8 INELEGIBILIDADE, REJEIÇÃO DE CONTAS E
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:
provocações a partir da Lei nº 14.230/2021 .....................................191
José Edvaldo Pereira Sales
Juliana Rodrigues Freitas
9 EX SPE IN SPEM: da Lei da Ficha Limpa para onde? .............. 207
Renan Guedes Sobreira
10 A LUTA PELA MORALIZAÇÃO POLÍTICA COMO
PRETEXTO PARA RESTRIÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS.......................................................................... 237
Paula Bernardelli
11 A LEI DA FICHA LIMPA E O PARADOXO DA
LEGITIMIDADE PARA A PARTICIPAÇÃO NA VIDA
POLÍTICA ........................................................................................ 257
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Desirée Cavalcante Ferreira
12 UMA DEFESA DA LEI DA FICHA LIMPA ..............................275
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
13 NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E
INELEGIBILIDADES: apontamentos sobre a possibilidade de
aplicação retroativa das normas de prescrição intercorrente e
remessa necessária e seus reflexos no processo eleitoral ........293
Tiago Asfor Rocha
Rafael Vieira de Alencar
CAPÍTULO 9
EX SPE IN SPEM:1
da Lei da Ficha Limpa para onde?
Renan Guedes Sobreira2
INTRODUÇÃO
“Vivei como irmãos e irmãs, deixando-se conduzir pelo Espírito
de Deus, rompendo com as cadeias do pecado e do egoísmo”, foram
as palavras dirigidas pelo Papa João Paulo II à Igreja Católica brasileira
por ocasião do lançamento da Campanha da Fraternidade de 1996,
prosseguindo com: “no vosso País, possuído de inegáveis valores,
aberto à solidariedade e ao mútuo respeito, existe, às vezes, certa crise
de confiança nas Instituições. É preciso reagir, baseando-se nos valores
da honestidade, da retidão, e da dedicação generosa ao bem-estar da
Comunidade”.3 A Campanha da Fraternidade de 1996, capitaneada
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tinha como
tema “Fraternidade e Política: justiça e paz se abraçarão”.
Decorrente da campanha, em 2002, criou-se o Movimento de
Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE),4 que tem como objetivo
“combater a corrupção eleitoral, bem como realizar um trabalho edu
cativo sobre a importância do voto visando sempre à busca por um
1
2
3
4
Fórmula latina que se pode traduzir como “De esperança em esperança”, frequen
temente utilizada pela Igreja Católica, sendo o lema do cardeal brasileiro Paulo
Evaristo Arns.
Mestre em Direito Constitucional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales
de la Presidencia de España e Universidad Internacional Menéndez Pelayo, Madri,
Espanha. Pós-graduado em Direito Parlamentar, Universidad Nacional Autónoma
de México, D.F., México. Bacharel em Direito, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, Brasil. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar. As
sessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
CNBB. Campanha da Fraternidade 1996. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1996. Acesso em: 26 de jan. 2022.
MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL. Quando foi criado.
Disponível em: http://www.mcce.org.br/quando-foi-criado. Acesso em: 26 de jan.
2022.
208
Ex spe in spem
cenário político e eleitoral mais justo e transparente”.5 A parceria entre
a CNBB e o MCCE gerou forte movimento na sociedade no sentido de
moralizar o processo eleitoral, recolhendo 1.604.815 assinaturas de
apoio ao projeto que viria se tornar a Lei Complementar n. 135/2010
(LC 135), alcunhada de Lei da Ficha Limpa.6
Da Campanha da Fraternidade à promulgação da LC 135 se pas
saram catorze anos. Da promulgação da LC 135 até a atualidade, vão
se mais de dez anos. A realidade internacional mudou, assim como a
nacional, e as modificações nessa última modificada fazem necessário
perquirir se as condições materiais que ensejaram a edição da LC 135
persistem, se o propósito moralizador foi atingido ou não a fim de que
se prospecte a atividade legislativa dos próximos anos.
Este artigo apresenta as condições políticas, jurídicas e sociais
que levaram à edição da LC 135; e aquelas referentes ao momento pos
terior, isto é, com a vigência da norma. A partir desse comparativo,
pretende-se aferir se a lei complementar tem cumprido o papel que lhe
foi atribuído, de moralizar a atividade política nacional.
1 UT OMNES UNUM SINT:7 A FASE PRÉ-LEI DA FICHA
LIMPA
Ut omnes unum sint, isto é, “de modo que todos sejam um”, é
expressão latina frequentemente utilizada pela Igreja Católica, lema
do cardeal brasileiro Orani Tempesta. A fórmula sugere unidade de
propósitos e ações visando o atingimento de um único objetivo, o que
bem caracteriza o contexto que antecede e envolve a edição da Lei da
Ficha Limpa.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), na década de 1990, cerca de 89% da população brasileira se
5
6
7
MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL. Objetivo. Disponí
vel em: http://www.mcce.org.br/objetivo. Acesso em: 26 de jan. 2022.
MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL. Lei Complementar
135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Disponível em: http://www.mcce.org.br/leis/lei
complementar-1352010-lei-da-ficha-limpa. Acesso em: 26 de jan. 2022.
Fórmula latina que se pode traduzir como “De modo que todos sejam um”, fre
quentemente utilizada pela Igreja Católica, sendo o lema do cardeal brasileiro
Orani Tempesta.
SOBREIRA, Renan G.
209
declarava cristã, católica romana, evangélica ou de outras denomina
ções.8 Já em 2000,9 cerca de 74% da população brasileira se declarava
católica romana e outros 15%, evangélicos, totalizando, aproximada
mente, 89% de seguidores do cristianismo. No ano de 2010, católicos
somavam 65%; e evangélicos, 22%; totalizando 87% de brasileiros e
brasileiras cristãos.
Assim, plausível afirmar que as Campanhas da Fraternidade de
senvolvidas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil desde
1964, com pioneirismo da Arquidiocese de Natal,10 atingem fática e
moralmente grande parcela da população brasileira. Os temas adota
dos são variados, transitando de questões relativas à preservação do
Meio Ambiente, ao racismo, à desigualdade agrária e, também, à cida
dania e participação política.
Sobre a última temática apontada, em 1970 foi lançada a campa
nha “Ser Cristão é Participar”, na qual se afirmava que “muitos são os
perseguidos políticos e exilados” e que “à Igreja coube mergulhar no
escuro dos tempos para reacender fachos de reflexão e incentivo à par
ticipação política”.11 Destacava-se o contexto da Ditadura Militar
(1964-1985) e o ufanismo nacionalista com o tricampeonato mundial
de futebol conquistado pelo Brasil como elementos entorpecedores da
consciência social.
Em 1978, foi posto o tema “Trabalho e Justiça para Todos”, asse
verando que “sim: é impressionante, hoje, o número dos sem-trabalho
e o daqueles que, trabalhando, sofrem por falta de justiça”.12 Destacou
se que a participação na sociedade é o caminho para a justiça social,
geradora de trabalho e renda.
No ano de 1996, o lema “Fraternidade e Política: justiça e paz se
abraçarão” explicitou a necessidade de participação política. Repri
sando um dos objetivos fundamentais da República do Brasil (art. 3º, I
da Constituição de 1988), a CNBB estabelece como meta a “formação
IBGE. Séries Históricas e Estatísticas: religião. Disponível em: https://seriesesta
tisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=POP60. Acesso em: 4 fev. 2022.
9 IBGE.
Atlas do Censo Demográfico 2010. Disponível em: https://
censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203. Acesso em: 4 fev. 2022.
10 CNBB.
Campanha da Fraternidade. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha-da-fraternidade. Acesso em: 4 fev. 2022.
11 CNBB. Campanha da Fraternidade de 1970. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1970. Acesso em: 4 fev. 2022.
12 CNBB. Campanha da Fraternidade de 1978. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1978. Acesso em: 4 fev. 2022.
8
210
Ex spe in spem
política dos cristãos para que exerçam sua cidadania sendo sujeitos da
construção de uma sociedade justa e solidária”, a fim de eliminar a
existência de “certa crise de confiança nas Instituições”.13
A questão foi ligeiramente recuperada em 1998, quando a cam
panha “A Serviço da Vida e da Esperança” estabeleceu como propó
sito “estimular o exercício da cidadania em favor de uma sociedade
justa e solidária”, que seria construída a partir da garantia de “forma
ção integral para a solidariedade e a cidadania”.14
Entre essas duas campanhas, “Comissão Brasileira Justiça e Paz
(CBJP) órgão vinculado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), lançou o Projeto ‘Combatendo a corrupção eleitoral’ em feve
reiro de 1997” e “assim, era plantada, em 1998, a semente da iniciativa
popular contra a corrupção eleitoral”.15
Politicamente, a década de 1990 no Brasil se iniciara com a elei
ção de Fernando Collor à Presidência da República, que havia ocu
pado o cargo de Governador do Estado de Alagoas e se notabilizara
na imprensa como “O Caçador de Marajás”, em referência à prática de
sua gestão de combater salários elevados no setor público. Collor fi
zera campanha presidencial com o mote da mudança, da oportuni
dade de o povo – em antagonismo aos políticos tradicionais, profissi
onais – governar.16
Pouco tempo após a posse, o Governo Collor passa a receber
acusações de que seus integrantes, inicialmente os de segundo escalão,
estariam envolvidos em casos de corrupção. O crescente acusatório en
volve o Presidente da República em 1992, abrindo-se Comissão Parla
mentar Mista de Inquérito a fim de investigar as imputações.
Presidida pelo Deputado Federal Benito Gama, contando com
Vice-Presidente o Senador Maurício Correa, a CPMI foi relatada pelo
Senador Amir Lando. Chama a atenção a presença como titulares dos
Campanha da Fraternidade de 1996. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1996. Acesso em: 4 fev. 2022.
14 CNBB. Campanha da Fraternidade de 1998. Disponível em: https://campa
nhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1998. Acesso em: 4 fev. 2022.
15 MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL. Quando foi criado.
Disponível em: http://www.mcce.org.br/quando-foi-criado. Acesso em: 26 de jan.
2022.
16 Um de seus jingles de campanha deixava isso bastante claro: https://www.you
tube.com/watch?v=qbBOsICP0ME
13 CNBB.
SOBREIRA, Renan G.
211
Deputados Federais José Dirceu e Roberto Jefferson, que seriam per
sonagens importantes pouco tempo depois.17
O relatório final da CPMI foi lido e aprovado em 26 de agosto de
1992, incriminando o Presidente da República e outras pessoas. Seis
dias depois, foi apresentado pedido de impeachment de Collor, o que se
consuma em 30 de dezembro daquele ano, com a declaração de inabi
litação para o exercício de função pública, por oito anos, obtida com 76
dos 81 votos do Senado da República.
Itamar Franco, então Vice-Presidente, assume a Presidência da
República e realiza, ao término do mandato, a transição política ao Go
verno de Fernando Henrique Cardoso, que fora Ministro das Relações
Exteriores e Ministro da Fazenda da Presidência Franco. O governo
FHC foi marcado pela estabilização da nova moeda, o Real, e, especi
almente, pelas privatizações “envolvidas em denúncias de corrup
ção”.18
Apresentada a Emenda Constitucional a fim de permitir a ree
leição presidencial, essa foi aprovada em meio a “denúncias de com
pra de votos de congressistas pelo governo FHC”.19 De todo modo,
Fernando Henrique foi reeleito em 1998, sendo sucedido politicamente
por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, o qual logrou reeleição em 2006.
A linha política do Partido dos Trabalhadores, de Lula, foi mantida
por Dilma Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014. Embora o país
tenha gozado de estabilidade política nesse período, fazendo a transi
ção governamental sem sobressaltos, esses anos foram marcados por
denúncias e investigações de casos de corrupção.
Conforme levantamento,20 entre 1990 e 2004 funcionou a cha
mada Máfia dos Vampiros da Saúde, operação na qual era desviado
“dinheiro público fraudando licitacões para a compra de derivados do
sangue usados no tratamento de hemofílicos”; entre 1998 e 1999 foi
DOS DEPUTADOS. 20 anos do impeachment do Collor. Disponível
em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escre
vendohistoria/destaque-de-materias/20-anos-do-impeachment. Acesso em: 4 fev.
2022.
18 SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015, p. 631.
19 SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015, p. 631.
20 LIMA, Cláudia. Os maiores escândalos de corrupção do Brasil. Disponível em:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-maiores-escandalos-de-corrupcao
do-brasil. Acesso em: 5 fev. 2022.
17 CÂMARA
212
Ex spe in spem
desviada verba da Superintendência de Desenvolvimento da Amazô
nia (SUDAM), envolvendo 143 acusados, entre eles o Senador Jader
Barbalho, que renuncia ao mandato a fim de não o ter cassado pelo
Conselho de Ética e ficar inabilitado;21 em 2006, a Máfia dos Sangues
sugas foi descoberta, cumulando um desvio de mais de cento e qua
renta milhões de reais por meio do superfaturamento de ambulância,
mas nenhum dos 3 Senadores ou dos 70 Deputados Federais foi res
ponsabilizado; em 2007, a Operação Navalha na Carne desbaratou es
quema de fraude a licitações relativas ao Programa de Aceleração do
Crescimento.
Um dos casos mais emblemáticos do período talvez seja o Escân
dalo do Mensalão. O destaque que merece se deve não ao montante de
recursos desviado ‒ já que a cifra é bastante maior noutros casos ‒ mas
às circunstâncias de descoberta, apuração e, especialmente, às conde
nações.
Em junho de 2005, durante o primeiro Governo Lula, o Depu
tado Federal Roberto Jefferson, que integrara a CPMI contra Collor de
Mello, denuncia o esquema pelo qual, segundo ele, parlamentares re
ceberiam quantias mensais ‒ uma mensalidade aumentada, um men
salão ‒ a fim de votar a favor dos projetos de interesse do Poder Execu
tivo federal. José Dirceu, que também integrara a CPMI contra Collor
de Mello, então Chefe da Casa Civil, foi apontado como o mentor do
esquema. Parte da verba seria captada por meio de propina paga por
privados a Marcos Valério, publicitário, que se encarregaria da distri
buição dos valores ‒ o chamado valerioduto.
A fim de diluir os montantes e assim chamar menos atenção, fo
ram utilizadas diversas empresas públicas ‒ Furnas Centrais Elétricas
S.A., Eletrobrás Eletronuclear, Petrobrás, Empresa Brasileira de Cor
reios e Telégrafos (EBCT) ‒, empresas privadas ‒ DNA Publicidade,
Banco Opportunity, SMPeB, Banco Rural, BMG ‒, além de contar com
pagamentos a jornalistas da grande mídia, encarregados de divulgar
notícias positivas sobre o governo.
À medida que as investigações avançavam, autoridades foram
sendo removidas de seus postos ou entregando o cargo voluntaria
mente. Em junho de 2005, por exemplo, toda a diretoria da EBCT deixa
Barbalho renuncia ao mandato no Senado em 2001. Em 2003 é eleito Depu
tado Federal pelo Pará, cargo que ocupa até 2011, quando é eleito novamente ao
Senado da República, onde permanece atualmente.
21 Jader
SOBREIRA, Renan G.
213
da
a direção
empresa. No mesmo mês, José Dirceu entrega o cargo de
Ministro Chefe da Casa Civil. Até o final de 2005, quarenta e nove au
toridades deixaram seus postos.
Roberto Jefferson, ao depor ante o Conselho de Ética da Câmara
dos Deputados, depoimento que durou mais de seis horas, afirmou:
“Ô Zé Dirceu, se você não sair daí, rápido, você vai fazer réu um ho
mem inocente, que é o Presidente Lula. Rápido, sai daí rápido, Zé, para
você não fazer mal a um homem bom, correto, que tenho orgulho de
ter apertado a mão”.22 Reiterando que o Chefe do Poder Executivo fe
deral desconhecia o esquema, Jefferson prossegue afirmando “A gente
não passava do Zé Dirceu. Eu entendi: porque o Presidente Lula
abraça a gente assim e deixa a gente abrir o coração. Não é fácil dizer
o que eu disse a ele, mas eu medi a sua reação, feri um inocente e sei
que ele tomou atitude”.
Jefferson, conclamando outras pessoas a delatar o que soubes
sem sobre o esquema, afirmou ante o Conselho de Ética: “conte aquilo
que lhe deu vontade de vomitar e que faz vontade de vomitar ao povo
brasileiro”; e então: “O valor que o povo espera de nós, nós vamos
construir, colocando um basta. Isso, sim, nós temos que fazer”. Se
gundo o parlamentar, fazia aquilo para “lavar a honra do meu partido.
Eu vou lavar a honra dos eleitores que acreditaram no PTB. Eu vou
lavar a honra dos meus colegas de partido”.23
O caso ocupou diversas sessões do Tribunal Pleno do Supremo
Tribunal Federal, no ano de 2012, sob relatoria do Ministro Joaquim
Barbosa e revisão do Ministro Ricardo Lewandowski. Compunham,
ainda, a Corte os Ministros e as Ministras: Rosa Weber, Luiz Fux, Dias
Toffoli, Cármen Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Marco Aurélio,
Celso de Mello e Carlos Ayres Britto. Cézar Peluso e Ayres Britto se
aposentaram no curso da votação, de modo que não votaram sobre a
22 CÂMARA
DOS DEPUTADOS. Conselho de Ética e Decoro Parlamentar: processo
nº 1 de 2005. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
mostrarintegra;jsessionid=3BED999E2A98F3123BD021A203753A4F.proposi
coesWebExterno1?codteor=335813&filename=Tramitacao-REP+28/2005. Acesso
em: 7 fev. 2022.
23 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Conselho de Ética e Decoro Parlamentar: processo
nº 1 de 2005. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
mostrarintegra;jsessionid=3BED999E2A98F3123BD021A203753A4F.proposi
coesWebExterno1?codteor=335813&filename=Tramitacao-REP+28/2005. Acesso
em: 7 fev. 2022.
214
Ex spe in spem
totalidade dos temas. O Procurador-Geral da República, Roberto Gur
gel, no início do julgamento fez afirmação que repercutiu em diversos
meios jornalísticos: “Creio que o Supremo fará justiça. E, na visão do
Ministério Público, justiça é condenar todos”.24
Conforme dados consolidados pelo Ministério Público Federal,
vinte e cinco pessoas foram condenadas no Caso do Mensalão, cum
prindo penas que variaram de restrição de direitos (Emerson Eloy Pal
mieri, José Rodrigues Borba) a detenção de mais de vinte e cinco anos
(Cristiano de Mello Paz), mais de vinte e nove anos (Ramon Holler
bach Cardoso) e mesmo mais de quarenta anos (Marcos Valério).25
A alta cúpula do Partido dos Trabalhadores foi condenada por
formação de quadrilha e corrupção ativa: José Dirceu foi apenado com
dez anos e dez meses; Delúbio Soares Castro, oito anos e onze meses;
e José Genoíno, seis anos e onze meses. Outros membros do partido
foram condenados, como João Paulo Cunha – nove anos e quatros me
ses por peculato, lavagem de dinheiro e corrupção passiva –, Henrique
Pizzolato – doze anos e sete meses, por peculato, lavagem de dinheiro
e corrupção passiva.
Durante as investigações e mesmo quando tramitava o julga
mento, havia certa desconfiança social sobre o desfecho. Cerca de 60%
das pessoas ouvidas afirmava que os acusados não seriam condenados
ou presos.26 Posteriormente, em sede de embargos infringentes, o Su
premo Tribunal Federal readequou as penas dos condenados, e “com
isso, Dirceu e sua turma conseguiram escapar da pena em regime fe
chado, o que gerou revolta em parte da população, diante do clima de
impunidade com os criminosos de Brasília”.27
As frases famosas do mensalão. Disponível em: https://exame.com/bra
sil/as-frases-famosas-do-mensalao. Acesso em: 7 fev. 2022.
25 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Mensalão Quadro Réus Penas Final. Dispo
nível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/copy_of_pdfs/mensalao_quadro_reus_penas_final.pdf/view.
Acesso em: 7 fev. 2022.
24 EXAME.
CIÊNCIAS CRIMINAIS. População ainda não acredita na prisão dos
condenados do Mensalão. Disponível em: https://grupocienciascriminais.blogs
pot.com/2012/09/populacao-ainda-nao-acredita-na-prisao.html. Acesso em: 7 fev.
2022.
27 GHANI, Alan. E aí, STF, vai mesmo livrar Lula e outros políticos da cadeia? Dis
ponível em: https://www.infomoney.com.br/colunistas/economia-e-politica-di
reto-ao-ponto/e-ai-stf-vai-mesmo-livrar-lula-e-outros-politicos-da-cadeia. Acesso
em: 7 fev. 2022.
26 GRUPOS
SOBREIRA, Renan G.
215
do
Os anos entre a denúncia do Caso
Mensalão (2005) e o início
do julgamento e as primeiras condenações (2012-2013) foram marca
dos por verdadeiras devassas na máquina pública a fim de identificar
e punir rigorosamente qualquer ato que pudesse, ainda que indiciari
amente, sinalizar corrupção.
Considere-se, por exemplo, o Caso da Tapioca. Orlando Silva,
então Ministro do Esporte, comprara, utilizando cartão corporativo do
Ministério, uma tapioca no valor de R$ 8,30. A compra foi questionada
em Comissão Parlamentar de Inquérito, ainda que tenha sido reem
bolsada aos cofres públicos antes da apuração.28
Naturalmente, não se trata de diminuir a importância dos atos
de corrupção, malversação do dinheiro público. Pretende-se, na ver
dade, enfatizar como mesmo elementos de baixa repercussão, como o
Caso da Tapioca, geravam grande agitação social e política nos anos
que antecederam e envolveram a edição da Lei da Ficha Limpa.
Em julho de 2009, Dom Orani Tempesta comunicou que “o epis
copado brasileiro, reunido na sua 46ª Assembleia Geral dos Bispos, em
Indaiatuba (SP), no ano de 2008, aprovou a Campanha chamada de
‘Ficha Limpa’”. O religioso afirmava à imprensa que “as tristes situa
ções que presenciamos todos os momentos pelos meios de comunica
ção social nos conclamam a uma mudança de mentalidade” sendo essa
a motivação da campanha, a fim de que “a legislação coíba aqueles e
aquelas que não têm respeito pela coisa pública”, de “banir da vida
pública aqueles que se encontram inábeis”, “impedindo-os de ascen
der ao poder”.29
Anos depois, o Deputado Federal José Carlos Araújo (PSD-BA)
afirma em justificativa de projeto de lei que a Lei da Ficha Limpa foi
“resposta marcante de indignação da sociedade, diante das crescentes
e inadmissíveis afrontas às condutas morais por parte principalmente
DE SÃO PAULO. Orlando Silva diz que comprar tapioca com cartão cor
porativo foi engano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/
ult96u390119.shtml. Acesso em: 7 fev. 2022.
29 TEMPESTA, Orani João. Campanha “Ficha Limpa”. Disponível em: https://
www.cnbb.org.br/campanha-ficha-limpa. Acesso em: 7 fev. 2022.
28 FOLHA
216
Ex spe in spem
de maus agentes públicos, com suas repercussões negativas, sobre
tudo no âmbito do processo eleitoral democrático de escolha de can
didatos”.30
Segundo magistrado idealizador da Lei da Ficha Limpa, essa
surge da “necessidade de impulsionar o Parlamento a estabelecer hi
póteses de inelegibilidade que levem em conta a vida pregressa, o his
tórico objetivo dos candidatos”, pois em matéria eleitoral “não se
aplica o princípio da presunção de inocência”, que “se dirige exclusi
vamente à esfera penal”.31 Segundo o magistrado, “não há obstáculo
constitucional, político ou ético a impedir que preventivamente sejam
32
excluídas dos pleitos pessoas que já ostentem condenações criminais”.
A norma foi sancionada em 4 de junho de 2010 pelo Presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva, sendo publicada no Diário Ofi
cial de 7 de junho de 2010 como Lei Complementar n. 135. O Presi
dente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante,
afirmou que “a sanção do Projeto Ficha Limpa sem vetos demonstra
que o presidente da República, tal e qual o Congresso Nacional, inter
pretou o sentimento de quase dois milhões de eleitores, que por ele
disseram: basta de corrupção!”.33
Almir Pazzianotto Pinto, ex-Presidente do Tribunal Superior do
Trabalho, publica no Jornal Correio Braziliense um artigo intitulado
“A impunidade dos corruptos”, no qual afirma que “o saneamento da
vida pública pode ter início por meio da Lei da Ficha Limpa”.34 O Ca
derno Política do Correio Braziliense estampava em 19 de junho de
2010 a manchete: “Bloco dos Encardidos”, listando políticos eventual
mente atingidos para as eleições gerais daquele mesmo ano. No
mesmo dia, o periódico publicou na página 6 do Caderno Política: “In
dignação popular virou lei”, louvando os méritos da nova norma. No
DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 1629/2015. Disponível em: https://
www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1337528&filename=Tramitacao-PL+1629/2015.
Acesso em: 7 fev. 2022.
30 CÂMARA
Márlon. A Campanha Ficha Limpa. Disponível em: https://congressoem
foco.uol.com.br/reportagem/a-campanha-ficha-limpa. Acesso em: 7 fev. 2022.
32 REIS, Márlon. A Campanha Ficha Limpa. Disponível em: https://congressoem
foco.uol.com.br/reportagem/a-campanha-ficha-limpa. Acesso em: 7 fev. 2022.
33 CONJUR. Lula sanciona, sem vetos, Lei da Ficha Limpa. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2010-jun-04/lula-sanciona-lei-ficha-limpa-aplicacao-neste
ano-duvida. Acesso em: 7 fev. 2022.
34 PINTO, Almir Pazzianotto. A impunidade dos corruptos. Correio Braziliense, 1º
jun. 2010, caderno 1, p. 23.
31 REIS,
SOBREIRA, Renan G.
217
dia 20 de junho de 2010, o Correio Braziliense expunha sua própria
visão “Visão do Correio”, na página 20 do primeiro caderno daquela
edição, afirmando que “com a Lei da Ficha Limpa, a cidadania volta a
ter certeza de que esse é um combate que vale a pena travar [contra a
corrupção]”.
Do que se expôs, possível concluir que os acontecimentos, as de
núncias, as apurações administrativas, as investigações policiais, os
julgamentos judiciais e mesmo midiáticos agiram conformando pen
samento majoritário de que todos os atos corruptivos, independente
mente de seu alcance e do dano gerado, deveriam ser peremptoria
mente repudiados com a mesma intensidade e que os agentes envol
vidos deveriam ser afastados definitivamente da arena pública, nota
damente da atividade política.
O contexto, portanto, estabeleceu ampla movimentação social e
política num único sentido – ut omnes unum sint, de modo que todos
sejam um –, mas não imunizou a nova norma de críticas e mesmo
questionamentos judiciais. Supérstite, a LFL já ultrapassa dez anos de
vigência e agora incide em contexto diverso, que se passa a analisar.
2 OMNES VOS FRATES:35 A FASE PÓS-LEI DA FICHA
LIMPA
Da promulgação da Lei Complementar n. 135, em 4 de junho de
2010, até a atualidade, isto é, passados mais de dez anos, o Brasil pas
sou por modificações profundas, que alcançam não apenas o âmbito
político, mas também o social e econômico.
Politicamente, na esfera federal, considere-se que chegava ao fim
o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Traba
lhadores, PT), havendo certa incógnita quanto sua sucessão dentro da
agremiação política. Após deliberações, oficializou-se a candidatura
de Dilma Rousseff – ex-Ministra de Minas e Energia; e ex-Ministra da
Casa Civil após a demissão de José Dirceu no Caso Mensalão –, tendo
como candidato à Vice-Presidência Michel Temer (Partido do Movi
mento Democrático Brasileiro, PMDB).
35 Fórmula
latina que se pode traduzir como “Vós sois todos irmãos”, frequente
mente utilizada pela Igreja Católica, sendo o lema do cardeal brasileiro Cláudio
Hummes.
218
Ex spe in spem
No primeiro turno realizado em 3 de outubro de 2010, foram os
mais votados à Presidência da República: Dilma Rousseff, com 46,91%
dos votos válidos; José Serra (Partido da Social Democracia Brasileira,
PSDB), com 32,61%; Marina Silva (Partido Verde, PV), com 19,33%. As
outras seis chapas não obtiveram nem mesmo um por cento dos votos
válidos. No segundo turno, realizado em 31 de outubro de 2010, Dilma
Rousseff se sagrou vencedora com 56,05% dos votos válidos.36
Assim, inicia-se o primeiro Governo Rousseff em 2011. Em 2013
eclodem por todo o país diversas manifestações que, além de reivindi
car mais estabilidade financeira e melhoria na qualidade de vida, bran
diam contra a corrupção. O “Brasil amanheceu atônito” já que “nin
guém imaginava a explosão social que se seguiu a um protesto contra
o aumento das passagens de ônibus”, externando “um sentimento de
insatisfação e de frustração e uma aspiração difusa de mudança”.37
As manifestações sociais se alongaram de 2013 a 2014, ano em
que se inicia a Operação Lava-Jato, investigação conduzida pela Polí
cia Federal a fim de apurar desvios de recursos da estatal Petróleo Bra
sileiro S.A. (PETROBRAS), que se estenderia até 2021 e influenciaria
significativamente a vida política nacional.
Historiadoras, escrevendo em 2015, entenderam aquele mo
mento como a sinalização de que “a redemocratização do país havia
terminado”, sendo momento de “contribuir com um novo passo à
frente no processo de fortalecimento de nossas instituições públicas,
de expansão da democracia”,38 o que pode ser severamente contestado
a partir dos fatos que se seguiram. De fato, havia aparente normali
dade institucional. Ainda que a Presidenta da República tivesse soci
almente questionada sua permanência no cargo, exercia suas funções
sem embaraços e, dessa mesma forma, ocorreram as eleições presiden
ciais de 2014.
Contando com onze chapas concorrendo à Presidência da Repú
blica em 2014, chegaram ao segundo turno, realizado em 26 de outu
bro, Dilma Rousseff (PT), com 41,59% dos votos válidos e Aécio Neves
36 Todos
os dados são do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Estatísticas. Dispo
nível em: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2010/estatis
ticas. Acesso em: 9 mar. 2022.
37 SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Com
panhia das Letras, 2015, p. 505.
38 SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Com
panhia das Letras, 2015, p. 506.
SOBREIRA, Renan G.
219
com
(PSDB),
33,55% dos votos válidos. Marina Silva (Partido Socialista
Brasileiro, PSB) somou 21,32% dos votos válidos; Luciana Genro (Par
tido Socialismo e Liberdade, PSOL), 1,55%; enquanto as outras sete
candidaturas não somaram, individualmente, nem mesmo um por
cento. Aproveitando-se da pequena diferença de votos ‒ menos de três
milhões ‒, o candidato derrotado passou a questionar a idoneidade do
pleito, tese que seria judicialmente refutada apenas em 2015,39 sendo
esse o primeiro tremor democrático do período analisado.
O avanço das investigações da Operação Lava Jato e o envolvi
mento de membros do Partido dos Trabalhadores nos fatos apurados
‒ ainda que a maior parte dos políticos investigados integrasse o Par
tido Progressista (PP), atual Progressistas ‒ levou a desgaste político
acentuado da segunda Presidência Rousseff, que culminou na aber
tura de processo de destituição em 2 de dezembro de 2015 com o aca
tamento de denúncia pelo Deputado Federal e Presidente da Câmara
dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB).
Em 12 de maio de 2016, o Senado Federal autorizou a tramitação
do processo de destituição e ordenou o afastamento de Dilma Rousseff
do cargo. Após a regular marcha processual, em 31 de agosto de 2016
o mandato presidencial de Rousseff foi cassado, mantendo-se os direi
tos políticos da acusada. No mesmo dia, o Vice-Presidente da Repú
blica, Michel Temer (PMDB), assume definitivamente a Presidência.
Já à época dos fatos se afirmava que inexistia crime de responsa
bilidade a autorizar a destituição da Presidenta da República. Ocorre
que um mandato pode chegar ao final por meios legítimos e ilegítimos.
No Brasil, entre os legítimos, há aqueles naturais ‒ como o falecimento
do detentor do mandato ou o decurso do prazo do mandato ‒ e aque
les extraordinários ‒ como a renúncia; a destituição, sendo essa regu
lada por lei; ou a determinação judicial após regular trâmite legal. Ine
xiste no ordenamento brasileiro a figura do recall ou a moção de cen
sura, típica do sistema parlamentarista, as quais levam à perda do
mandato por falta de apoio popular ou político. Os meios ilegítimos
de pôr termo a um mandato são todos aqueles que não figuram entre
os legítimos, ou seja, formas residuais de diagnóstico por exclusão.
39 TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL. Plenário do TSE: PSDB não encontra
fraude nas eleições 2014. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noti
cias-tse/2015/Novembro/plenario-do-tse-psdb-nao-encontra-fraude-nas-eleicoes2014. Acesso em: 9 mar. 2022.
220
Ex spe in spem
Diversos atores políticos, sociais e juristas defenderam que no
Caso Rousseff inexiste configuração de crime de responsabilidade, de
modo que o instrumento da destituição foi utilizado de forma impura,
portanto, ilegítima.40 Em 2019, Michel Temer utiliza o termo “golpe”,
porque o afirma socialmente consolidado para se referir ao impeach
ment de Rousseff.41 Em fevereiro de 2022, o Ministro do Supremo Tri
bunal Federal Luís Roberto Barroso afirmou que a destituição de Ro
usseff ocorreu por falta de apoio político,42 o que, como visto, figura
entre os meios ilegítimos de finalização de mandato.
O fato é que houve abalo democrático, sendo esse o segundo
grande estremecimento das estruturas democráticas nacionais. O Go
verno Temer (2016-2018) foi marcado pelas investigações da Operação
Lava Jato, implicando o próprio Presidente, denunciado ante o Su
premo Tribunal Federal.43 Sem insurgências sociais significativas, Mi
chel Temer chega ao final do mandato como o Presidente com a maior
rejeição do mundo.44
Conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral,45 em 2018 foram
registradas 14 candidaturas à Presidência da República. As duas cha
pas mais votadas foram a de Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal,
PSL) com 46,03% dos votos válidos; e de Fernando Haddad (PT),
29,28% dos votos válidos. No segundo turno, o primeiro somou
40 CLETO,
Murilo; DORIA, Kim. Por que gritamos golpe? Para entender o impeach
ment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016.
41 UOL. Depois de falar em "golpe", Temer diz que processo de impeachment foi
legal. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/09/
17/depois-de-falar-em-golpe-temer-diz-que-processo-de-impeachment-foi-legal.html. Acesso em: 9 mar. 2022.
42 G1. Barroso atribui impeachment de Dilma à falta de apoio político e chama 'pe
daladas' de 'justificativa formal'. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/
noticia/2022/02/03/barroso-atribui-impeachment-de-dilma-a-falta-de-apoio-politico-e-chama-pedaladas-de-justificativa-formal.ghtml. Acesso em: 9 mar. 2022.
43 EL PAÍS. Temer é denunciado por corrupção e se torna primeiro presidente a
responder por crime durante mandato. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2017/06/26/politica/1498485882380890.html. Acesso em: 9 mar. 2022
44 O GLOBO. Levantamento aponta Temer como presidente mais rejeitado do
mundo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/levantamento-aponta-te
mer-como-presidente-mais-rejeitado-do-mundo-21994959. Acesso em: 9 mar.
2022.
45 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Estatísticas. Disponível em: https://
www.tse.jus.br/eleicoes/ estatisticas/estatisticas-eleitorais. Acesso em: 14 mar.
2022.
SOBREIRA, Renan G.
221
55,13% e o segundo, 44,87% dos votos válidos; havendo mais de vinte
por cento de abstenção do eleitorado.
O candidato eleito apresenta perfil nacionalista, militarista e au
toritário, defendendo propostas armamentistas e ideias amplamente
disseminadas entre conservadores como defesa do modelo tradicional
de família e a utilização de discursos religiosos cristãos, de índole
evangélica pentecostal, como baliza às atuações políticas.46
Conforme Revisão Periódica Universal (RPU) publicada em
2020,47 considerando o agravamento das situações devido à pandemia
do Sars-CoV-2, a proteção e a garantia dos Direitos Humanos no Bra
sil, desde o início do Governo Bolsonaro, têm degringolado de forma
acintosa.
Quanto ao Meio Ambiente, afirma-se: “o desmonte das políticas
ambientais e de fiscalização chegaram a patamares tão escandalosos”
que “12 Procuradores da República pediram à Justiça Federal, no dia
6 de julho, o afastamento do cargo do ministro do Meio Ambiente”;
sobre a prática de tortura: “a tortura e outros tratamentos cruéis, de
sumanos e degradantes são práticas institucionalizadas no Brasil, raci
almente organizadas e utilizadas de maneira sistemática pelo Estado
brasileiro para obter confissões e informações, como forma de punição,
ou para impor medo e terror como estratégia de controle sobre pessoas
e/ou comunidades inteiras”; quanto à saúde: “O governo federal mos
trou-se despreparado para enfrentar a emergência” e “cumpre ressal
tar que o governo Bolsonaro eliminou por completo todas as políticas
de saúde voltadas à equidade”; o “Comitê Nacional de EDH [Educa
ção em Direitos Humanos] foi desarticulado” e “o atual governo ex
tinguiu a área do Ministério da Educação (MEC) responsável pela
pasta”; há limitação ao acesso de dados e à publicidade de informa
ções: “As decisões políticas autoritárias do governo vigente contra
riam totalmente as recomendações realizadas, restringem a democra
DE REPÚBLICA. Biografia do Presidente. Disponível em: https://
www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-presidencia/biografia-do-presidente.
Acesso em: 14 mar. 2022.
47 INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO E DIREITOS HUMANOS. Relatório da
Sociedade Civil: revisão periódica universal dos Direitos Humanos no contexto
da COVID-19. Disponível em: https://plataformarpu.org.br/storage/publications_
documents/EfrkBCBQ8IF1CKSyP9gwX2vIJo0RO6kpz9YSC7Am.pdf. Acesso em:
14 mar. 2022.
46 PRESIDÊNCIA
222
Ex spe in spem
cia participativa e justificam a avaliação”; ainda “houve desinvesti
mento nas políticas públicas, encerramento de programas importan
tes, como as Casas da Mulher Brasileira, além de cortes orçamentários
em programas sociais como o Programa Bolsa Família, Minha Casa,
Minha Vida, Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf)” e aumento dos “entraves para reconhecimento e regulariza
ção dos territórios quilombolas e indígenas (MP 870)”.
Registre-se que essas práticas foram viabilizadas com o apoio do
chamado centrão mediante o loteamento de cargos e distribuição de
prebendas no Governo Federal, garantindo governabilidade no perí
odo. O que outrora fora noticiado como Escândalo do Mensalão, no Go
verno Temer passa a ser manchete como jantar comemorativo;48 e no
Governo Bolsonaro, mera negociação,49 chegando ao Supremo Tribu
nal Federal com o questionamento das chamadas Emendas do Relator.50
A Federação Nacional dos Jornalistas lavra relatório no qual
afirma que “O presidente Jair Bolsonaro foi o principal autor de ata
ques a veículos de comunicação e jornalistas, em 2020, repetindo a
mesma posição ocupada no ano anterior, quando assumiu a Presidên
cia da República”, sendo responsável “por 175 ocorrências (40,89% do
total), a maioria delas tentativas de descredibilização da imprensa
(145), mas também por 27 casos de agressões diretas aos profissio
nais”.51 Afirma-se, ainda que “o ano de 2020 foi o mais violento para
os jornalistas brasileiros, desde o início da série histórica dos registros
dos ataques à liberdade de imprensa feitos pela Federação Nacional
dos Jornalistas (FENAJ), iniciada na década de 1990” e que “a explosão
de casos está associada à sistemática ação do presidente da República,
Jair Bolsonaro, para descredibilizar a imprensa e à ação de seus apoia
dores contra veículos de comunicação social e contra os jornalistas”.
GLOBO. Temer faz jantar com centrão para comemorar aprovação da DRU.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/temer-faz-jantar-com-centrao
para-comemorar-aprovacao-da-dru-19426674. Acesso em: 14 mar. 2022.
49 BBC NEWS BRASIL. Cargos que Bolsonaro negocia com centrão têm mais de R$
10,6 bi ‘livres’ para investir em 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portu
guese/brasil-52466624. Acesso em: 14 mar. 2022.
50 ADPF 850, 851 e 854, sob relatoria da Ministra Rosa Weber.
51 FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS. Violência contra jornalistas e
liberdade de imprensa no Brasil: relatório 2020. Disponível em: https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2021/01/relatorio_fenaj_2020.pdf. Acesso em: 14
mar. 2022.
48 O
SOBREIRA, Renan G.
223
O sistema de voto eletrônico consolidado no Brasil tem sido alvo
de questionamentos legislativos e por parte do próprio Presidente Bol
sonaro, que, em sua página institucional, afirma defender o voto im
presso,52 além de reiteradamente tentar retirar a credibilidade da Jus
tiça Eleitoral. O tema da forma de voto chegou ao Supremo Tribunal
Federal, que declarou inconstitucional a impressão do registro de vo
tação, pois ameaça o sigilo e a liberdade do voto.53
Importante destacar, ainda, que no período pós-LFL, em feve
reiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal julgou conjuntamente a
Ação Direta de Inconstitucionalidade 4578 e as Ações Declaratórias de
Constitucionalidade n. 29 e 30, tendo como objeto a Lei da Ficha
Limpa. Por maioria de votos, a Corte declarou a compatibilidade da
norma com a Constituição de República.
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal passou a analisar a Ação
Direta de Inconstitucionalidade 6630, que pretende a limitação do
tempo da inelegibilidade a oito anos, já que a norma, nos termos pos
tos, “tem acarretado uma inelegibilidade por tempo indeterminado
dependente do tempo de tramitação processual”. O Ministro Nunes
Marques, relator da ADI 6630, votou pela interpretação conforme da
norma à Constituição a fim de impedir o alargamento da penalidade.
O Ministro Luís Roberto Barroso votou para que a detração somente
ocorra se houver demora processual em razão de atos da administra
ção da justiça.
O Ministro Alexandre de Moraes abriu nova divergência no sen
tido do não conhecimento da ADI, pois “quando declarou a validade
da Lei da Ficha Limpa, o STF entendeu que o prazo previsto no dispo
sitivo é uma opção política legislativa para garantir a efetividade das
normas relativas à moralidade administrativa, à idoneidade e à legiti
midade dos processos eleitorais” e que a “rediscussão, a seu ver, po
deria resultar no afastamento da inelegibilidade, em alguns casos”.54
DE REPÚBLICA. Biografia do Presidente. Disponível em: https://
www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-presidencia/biografia-do-presidente.
Acesso em: 14 mar. 2022.
53 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Impressão de registro põe em risco sigilo e
liberdade do voto. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDeta
lhe.asp?idConteudo=451785. Acesso em: 14 mar. 2022.
54 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF rejeita rediscutir inelegibilidade da Lei
da Ficha Limpa. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDeta
lhe.asp?idConteudo=483108&ori=1. Acesso em: 14 mar. 2022.
52 PRESIDÊNCIA
224
Ex spe in spem
Acompanharam o Ministro Alexandre de Moraes, os Ministros Edson
Fachin, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux; e as Ministras Carmén Lú
cia e Rosa Weber, formando-se a maioria pela rejeição da ADI.
Além da degradação das condições de exercício e garantia de
Direitos Humanos no período recente, advindo sobretudo do desman
telamento de políticas públicas, a crise econômica agravada pela crise
sanitária do cenário pandêmico instalado em 2020, contribuiu para a
piora na qualidade de vida do povo brasileiro.
Conforme noticiado, em 2021 eram aproximadamente 28 mi
lhões de brasileiros e brasileiras abaixo da linha da pobreza, isto é, em
miséria absoluta; enquanto em 2019, 23 milhões.55 14.487.733 nacionais
vivem em extrema pobreza ‒ renda per capita de até R$ 89,00 ‒, número
que não se encontrava tão alto desde outubro de 2014 e distante em
2.660.165 pessoas do patamar mais baixo, em janeiro de 2016.56 Se
gundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de feve
reiro de 2021,57 a inflação acumulou incremento de 10,54% nos últimos
doze meses, achatando o poder de compra do povo brasileiro.
A situação de congruência de crises de diversas naturezas e a
desassistência estatal têm obrigado a sociedade civil a organizar-se a
fim de evitar o perecimento coletivo. Há uma retomada de consciência
coletiva de cunho assistencial, de solidariedade, como a lembrar o
lema do cardeal brasileiro Cláudio Hummes: omnes vos frates (Vós sois
todos irmãos).58
Delineia-se, portanto, um período pós-edição da Lei da Ficha
Limpa em que a democracia brasileira sofreu e segue sofrendo ataques
55 CNN.
Quase 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil.
Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/quase-28-milhoes-de-pes
soas-vivem-abaixo-da-linha-da-pobreza-no-brasil. Acesso em: 14 mar. 2022.
56 UOL. País tem recorde de extrema pobreza com 14,5 milhões de famílias na mi
séria. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/
05/23/com-145-mi-de-familias-na-miseria-brasil-bate-recorde-de-extrema-pobreza.htm. Acesso em: 14 mar. 2022.
57 IBGE. Inflação. Disponível em: https://ibge.gov.br/explica/inflacao.php. Acesso
em: 14 mar. 2022.
58 FOLHA DE SÃO PAULO. Solidariedade aumenta durante a pandemia. Disponí
vel em: https://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/06/geral/1262782-solidarie
dade-aumenta-durante-pandemia.html. Acesso em: 14 mar. 2022. CORREIO BRA
ZILIENSE. Em meio à pandemia, onda de solidariedade toma conta do país. Dis
ponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/03/26/
interna-brasil,836879/em-meio-a-pandemia-onda-de-solidariedade-toma-contado-pais.shtml. Acesso em: 14 mar. 2022.
SOBREIRA, Renan G.
225
de
de variadas naturezas, especialmente de dentro
si mesma. Agentes
políticos encarregados de mandatos por meio democrático passaram
a agir contra a própria democracia, minando suas bases sociais e a li
berdade de expressão. Nesse contexto, a LFL foi objetada judicial
mente duas vezes, mas segue hígida com sua redação original.
3 MIHI FECISTIS:59 UMA ANÁLISE COMPARATIVA
A partir dos dois tópicos precedentes, verifica-se que a realidade
brasileira foi profundamente alterada em pouco mais de três décadas,
enquanto a Lei da Ficha Limpa permanece com seu texto inalterado.
Cediço que normas jurídicas devem guardar conexão com a realidade
fática em dois sentidos.
O primeiro se refere à possibilidade de aplicação. Norma que
não guarda conexão com a materialidade, deixa de ser aplicada, ou
seja, é preciso haver congruência entre o plano teórico e aquele prático
para que a norma incida. O segundo diz respeito aos efeitos gerados.
Ocorre que normas de caráter pedagógico – como pretende ser a LFL
ao passar o ensinamento à sociedade de que candidatos ficha limpa
são mais adequados – necessitam atingir os efeitos pretendidos para
que suas existências permaneçam plausíveis. Afinal, ausente efetivi
dade, cumprimento de propósitos, a norma se torna inútil e, portanto,
passível de revogação.
Quanto à LFL, há certas incongruências com o ordenamento ju
rídico brasileiro desde o momento de sua feitura. As afirmações en
contram reprovações técnicas de variadas formas. Inicialmente cum
pre destacar que as afirmações do magistrado idealizador da norma
(“necessidade de impulsionar o Parlamento a estabelecer hipóteses de
inelegibilidade que levem em conta a vida pregressa, o histórico obje
tivo dos candidatos”; em matéria eleitoral “não se aplica o princípio
da presunção de inocência”, que “se dirige exclusivamente à esfera pe
nal”;60 “não há obstáculo constitucional, político ou ético a impedir que
59 Fórmula
latina que se pode traduzir como “A mim o fizestes”, frequentemente
utilizada pela Igreja Católica, sendo o lema do cardeal italiano Augusto Paolo Lo
judice.
60 REIS, Márlon. A Campanha Ficha Limpa. Disponível em: https://congressoem
foco.uol.com.br/reportagem/a-campanha-ficha-limpa. Acesso em: 7 fev. 2022.
226
Ex spe in spem
preventivamente sejam excluídas dos pleitos pessoas que já ostentem
condenações criminais”)61 parecem não se sustentar.
A pretensão de impingir o Parlamento a legislar sobre o tema não
encontra respaldo técnico. O art. 14 da Constituição da República prevê
as condições de elegibilidade, de modo que seria necessária Emenda
Constitucional para se fazer as modificações pretendidas,62 mas não há
no Brasil a figura da Emenda Constitucional advinda de iniciativa po
pular. Ainda que o termo “impulsionar” utilizado pelo idealizador
seja meramente figurado, deve-se recordar que há plena liberdade no
exercício do mandato representativo, não sendo admissível no país o
mandato imperativo. Ademais, tardando tantos anos a se manifestar
sobre o tema, pode-se dizer que não se tratava de prioridade de repre
sentantes da vontade popular, de parlamentares.
A tese de que o Princípio da Presunção de Inocência se aplica
apenas ao âmbito penal é rechaçada pela interpretação constitucional
fixada pelo Supremo Tribunal Federal. Há, por exemplo, aplicação em
matéria infracional63 e em matéria administrativa.64 Decorre desse
princípio constitucional a expressão civilista comum de que a boa-fé
se presume, enquanto a má-fé exige provas: “A presunção de boa-fé é
Márlon. A Campanha Ficha Limpa. Disponível em: https://congressoem
foco.uol.com.br/reportagem/a-campanha-ficha-limpa. Acesso em: 7 fev. 2022.
62 Sobre o tema: SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legisla
tivo ao Judiciário: a LC C135/10 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização
da vida pública e os direitos fundamentais. A&C ‒ Revista de Direito Adminis
trativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54, p. 121-148, out./dez. 2013.
63 Habeas Corpus 122.072, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 02/9/2014, Habeas
Corpus 84.078, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 05/02/2009.
64 “Viola o princípio da presunção de inocência a negativa em homologar diploma
de curso de formação de vigilante, com fundamento em inquéritos ou ações penais
sem o trânsito em julgado” (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
805.821, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 24/06/2014; Agravo
no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 943.503, Relator Ministro Ro
berto Barroso, julgado 08/12/2016; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
559.135, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 20/05/2008. Em aná
lise de Processo Administrativo Disciplinar (Mandado de Segurança 23.262, Rela
tor Ministro Dias Toffoli, julgado em 23/04/2014). Em análises de concurso público
(Agravo Interno 829.186, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 23/04/2013;
Agravo no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 847.535, Relator Minis
tro Celso de Mello, julgado em 30/06/2015). Análise para promoção de patente mi
litar (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 459.320, Relator Ministro Eros
Grau, julgado em 22/04/2008.
61 REIS,
SOBREIRA, Renan G.
227
de
princípio geral
direito universalmente aceito, sendo milenar a pa
rêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova”.65 Destarte, não há como
afastar a incidência desse princípio do âmbito eleitoral, como afirma o
magistrado idealizador da LFL.
Há, ainda obstáculos constitucional, político ou ético à LFL. Cons
titucionalmente, como afirmado, há a presunção de inocência e necessi
dade de Emenda Constitucional, sendo insuficiente a regulação por Lei
Complementar. Politicamente está claro que cabe à própria população
estabelecer os parâmetros para escolher seus representantes, devendo o
povo soberano estar plenamente livre no balizamento. Fixar vedações le
gais às escolhas de representantes contraria a própria lógica da represen
tação política, eis que se trata de interferência externa na vontade do elei
torado.
A questão ética remete ao que Michael Sandel chama de creden
cialismo. Sandel analisa como as sociedades passaram a entender de
sejável que seus governantes sejam pessoas com boas credenciais acadê
micas, o que seria sinônimo de bons governantes. No entanto, o autor
destaca que “governar bem exige sabedoria pragmática e virtude cí
vica – uma habilidade para deliberar sobre o bem comum para efeti
vamente obtê-lo. Mas nenhuma dessas capacidades é muito bem de
senvolvida na maioria das universidades hoje, nem mesmo naquelas
com a mais alta reputação”.66 A lógica credencialista é transponível ao
caso da LFL, uma vez que com a norma se pretende obter candidatos
e candidatas com credenciais adequadas: sem condenações.
Um exemplo pode aclarar a discrepância da norma. Considere
se que a alínea m do art. 1º da Lei Complementar n. 64/1990 estabelece
que são ficha suja aqueles que “forem excluídos do exercício da pro
fissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em
decorrência de infração ético-profissional”.
65 Agravo
Regimental no Recurso Especial 1.533.380/SP, Relator Ministro Antônio
Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 07/12/2021, DJe 14/12/2021. No mesmo
sentido: Recurso Especial 1.381.734/RN, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Pri
meira Seção, julgado em 10/03/2021, DJe 23/04/2021; Recurso Especial 1.769.209/
AL, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 10/03/2021,
DJe 19/05/2021; Recurso no Mandado de Segurança 62.878/RJ, Relator Ministro Sér
gio Kukina, Primeira Turma, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020.
66 SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? 6.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 143.
228
Ex spe in spem
O art. 38, I da Lei Federal n. 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e
a Ordem dos Advogados do Brasil) estabelece que a exclusão do qua
dro da advocacia pode ocorrer quando aplicada, por três vezes, a pena
de suspensão. Essa pode ser aplicada quando o agente incidir nas con
dutas do art. 34, XVII a XXV ou reincidir em quaisquer das infrações,
como dispõe o art. 37 da mesma norma. Entre as possibilidades, está o
inciso XXII do art. 34, que fixa a suspensão quando o agente retiver,
“abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confi
ança”.
Noutros termos, o advogado ou a advogada que por três vezes
extraviar autos, com ou se intenção, que tenha retirado em vista, está
sujeito à expulsão do quadro da OAB e, por conseguinte, inelegível
por oito anos, conforme a LFL. Atualmente o número de autos físicos
tem diminuído, considerando a informatização do Poder Judiciário.
Sem embargo, não parece excessivo o extravio, total ou parcial, de au
tos físicos com muitos volumes em mais de uma ocasião.
Considere-se o disposto no art. 34, XXIV da Lei Federal n.
8.906/1994 que torna penalizável o profissional que “incidir em erros
reiterados que evidenciem inépcia profissional”. A subjetividade da
análise é alarmante. De todo modo, incidir nessa hipótese pode levar
à expulsão dos quadros da OAB e, por conseguinte, à suspensão de
direito fundamental político em decorrência da LFL.
Não parece adequada a concatenação lógica de que um profissi
onal inepto para exercer a advocacia seja também inepto a exercer um
cargo público de preenchimento eletivo, afinal, as habilidades reque
ridas são absolutamente distintas. Não há fundamento ético para con
siderar que esse profissional inepto à advocacia seja desprovido de
“sabedoria pragmática e virtude cívica – uma habilidade para delibe
rar sobre o bem comum para efetivamente obtê-lo”, como salienta San
del.
Ademais, as penalidades estabelecidas na LFL se demonstram
excessivas, o que é incompatível com a Constituição da República e
com simples análise ética. Considere-se, por exemplo, que o Decreto
Lei n. 201/1967 estabelece que a pessoa ocupante do Poder Executivo
Municipal que tem o mandato cassado resta inabilitada eleitoralmente
por cinco anos, contados da condenação (art. 1º, § 2º). A LFL estabelece
punição ao mesmo agente, na mesma circunstância, “para as eleições
que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos
SOBREIRA, Renan G.
229
ao
do
subsequentes
término
mandato para o qual tenham sido elei
tos”.
Suponha-se que determinado agente foi eleito Prefeito para
exercício de mandato entre 2020 e 2023, mas no primeiro ano de go
verno (2020), teve o mandato cassado por decisão definitiva nos ter
mos do Decreto-Lei 201/1967. Conforme essa norma, está inabilitado
eleitoralmente até 2024, uma vez que se inclui o ano da condenação.
Aplicando-se a LFL, a inabilitação se inicia no ano subsequente ao tér
mino do mandato, isto é, inicia-se em 2024 e prorroga-se até 2032. A
pena estabelecida na LFL excede significativamente aquela posta no
Decreto-Lei.
O fato de estabelecer restrição a exercício de direito fundamental
para além daquela prevista em norma específica revela, na verdade,
preconceito velado para com aqueles que já cumpriram suas penas por
infrações para com a sociedade. Trata-se de estigmatização social que
impõe a separação legal entre o cidadão ficha limpa, adequadamente
credenciado, e o cidadão ficha suja, ainda que já tenha sanado sua dí
vida para com a sociedade. Cria-se uma cidadania de “segunda
classe”, cujos integrantes permanecem desprovidos desse direito polí
tico mesmo cumprindo suas penas.
Sandel destaca que “as elites não se sentem constrangidas com
seus preconceitos. Talvez condenem racismo e sexismo, mas não se ar
rependem dos comportamentos negativos direcionados a pessoas com
menor formação educacional”67 ou, pode-se acrescentar, com ficha suja,
ainda que essa advenha, eventualmente, de reiterado extravio não in
tencional de autos ou de conclusões de análises subjetivas sobre habi
lidade profissional.
A questão ética, portanto, é mais profunda do que a mera seleção
moral de governantes. Trata-se de segregação social amparada em cri
térios subjetivos e imprecisos de superioridade moral: “a ideia de que
‘os melhores e mais brilhantes’ governam melhor do que seus colegas
cidadãos com menos credenciais é um mito que surgiu a partir da ar
rogância meritocrática”, acadêmica ou de outra natureza.68
67 SANDEL,
Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? 6.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 139.
68 SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? 6.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 144.
230
Ex spe in spem
A realidade fática brasileira, ainda, parece demonstrar mais cla
ramente o fracasso da LFL. Considerando que, a partir da entrada em
vigor dessa norma, governantes seriam melhor selecionados, os resul
tados de gestão deveriam ser positivos, a qualidade de vida deveria
ser incrementada e, por conseguinte, a popularidade dos gestores es
taria mais elevada. Isto é, exatamente o oposto daquilo que o Brasil
hoje demonstra ser.
Segundo dados do Latinobarômetro, de 2020, o apoio à demo
cracia no Brasil saiu de seu índice mais alto, 55% em 2009, isto é, pré
Lei da Ficha Limpa, e atingiu 40% em 2020. Em 2016, ano dos maiores
abalos democráticos com o impeachment de Rousseff, período pós-Lei
da Ficha Limpa, apenas 32% do povo brasileiro apoiava o regime de
mocrático. Em 2018, quando eleito Jair Bolsonaro, apenas 34% manti
nham esse apoio.69 O Relatório de 2020 do Latinobarômetro ainda in
dica que 53% da população brasileira apoia “soluções não democráti
cas, ainda que rechace um governo militar, sendo mais factível uma
autocracia eleitoral no Brasil do que uma ditadura”.
Sandel afirma que “transformar Congresso e Parlamentos em
domínio exclusivo das classes com credenciais não tornou o governo
mais eficiente, mas o tornou menos representativo”,70 podendo ser pa
rafraseado no sentido de que transformar os Poderes Legislativo e Exe
cutivo em domínio exclusivo dos ficha limpa não tornou os governos
mais eficientes, mais transparentes, mas tornou a seleção mais mora
lista. O que tem sido feito na legislação eleitoral é efetivo mihi fecistis (a
mim o fizestes) à democracia nacional: a desconsideração da vontade
social, o que leva ao desacreditar social na democracia, com uma ten
dência à autocracia eleitoral.
Annual Reports. Disponível em: https://www.latinobaro
metro.org/latContents.jsp. Acesso em: 14 mar. 2022.
70 SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? 6.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 145.
69 LATINOBARÓMETRO.
SOBREIRA, Renan G.
231
EX SPE IN SPEM:71 CONCLUSÕES
A Lei da Ficha Limpa ultrapassa dez anos de vigência, supérstite
a ações direta de inconstitucionalidade, com a redação substancial
mente inalterada ‒ ainda que tramite legislativamente o Projeto de Lei
Complementar (PLP) n. 9/2021 visando alterar a alínea g da norma.
Sem embargo, a realidade nacional pré-Lei da Ficha Limpa e do mo
mento de redação e aquela atual são substancialmente díspares. Desa
fortunadamente, a qualidade da democracia e os reflexos disso na so
ciedade decresceu sobremaneira, havendo episódios recentes e graves
de abalo às instituições democráticas.
Os vícios de constituição da Lei da Ficha Limpa não foram resol
vidos nessa trajetória. A realidade fática demonstra que os objetivos
da norma fracassaram. Percebe-se uma espécie de credencialismo mo
ralista na política, que é incompatível, de diferentes maneiras, com o
ordenamento jurídico brasileiro e mesmo com padrões éticos aceitá
veis.
A esperança posta na Lei da Ficha Limpa, tanto por seus ideali
zadores, suas idealizadoras, como por seus e suas entusiastas, parece
haver fracassado, eis que não tem ocorrido a seleção de agentes políti
cos com mais habilidade de gestão democrática, de melhor qualidade
administrativa.
É necessário encarar os problemas nacionais com pragmatismo
e consciência social, diminuindo as disparidades sociais a fim de que
maior percentual do povo esteja livre e instruído a fazer escolhas de
parlamentares e chefes do Poder Executivo com mais compromisso
com o bem comum, mais acurado senso cívico. Somente com trabalho
adequado de conscientização democrática social, o Brasil deixará de
saltar ex spe in spem (de esperança em esperança) e definirá adequada
mente seu rumo.
que se pode traduzir como “De esperança em esperança”, frequen
temente utilizada pela Igreja Católica, sendo o lema do cardeal brasileiro Paulo
Evaristo Arns.
71 Fórmula latina
232
Ex spe in spem
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