Academia.eduAcademia.edu

Os Modernismos e o sentido do contemporâneo em língua portuguesa

2022, Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies

Sousa, Rui, "Os Modernismos e o sentido do contemporâneo em língua portuguesa" (2022). Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.26300/4hv6-tq65 Is Part of: Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, Issue 22 Rui Sousa Os Modernismos e o sentido do Contemporâneo em língua portuguesa [Modernisms and the meaning of Contemporary in Portuguese] https://doi.org/10.26300/4hv6-tq65 RESUMO O percurso dos Modernismos em língua portuguesa foi-se cumprindo através de uma série de contemporaneidades e movimentos de encontro e de desencontro muito significativos, alguns dos quais deixando no ar uma interrogação ainda hoje pertinente e que terá ocorrido em algum momento aos leitores de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e outros escritores. O que teria ocorrido se essa contemporaneidade tivesse sido levada às últimas consequências, ou seja, qual teria sido o panorama da literatura em língua portuguesa ao longo do século XX se esses gigantes se tivessem correspondido, tivessem interagido criativamente e por exemplo tivessem conjugado esforços numa publicação comum, com o alcance de revistas icónicas como Orpheu (1915), Klaxon (1922-1923), Contemporânea (1915; 1922-1926), presença (1927-1940) ou a Revista de Antropofagia (1928-1929)? Pessoalmente, somo a essa interrogação uma outra que me parece igualmente muito significativa. Poderia a literatura em língua portuguesa ter-se posicionado internacionalmente, se o contacto com movimentos europeus contemporâneos, como o Dadaísmo e o Surrealismo, se tivessem dado com uma amplitude e um reconhecimento que teria de esperar até à década de 1940 para conhecer os primeiros sinais inequívocos? ABSTRACT The course of Modernisms in Portuguese was fulfilled through a series of contemporaneities and very significant movements of encounter and disagreement, some of which left in the air a question that is still relevant today and that will have occurred at some point to the readers of Fernando Pessoa , Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira and other writers. What would have happened if this contemporaneity had been taken to its extremes, that is, what would have been the panorama of literature in Portuguese throughout the 20th century if these giants had corresponded, had interacted creatively and, for example, had combined efforts in a common publication, with the reach of iconic magazines such as Orpheu (1915), Klaxon (1922-1923), Contemporânea (1915; 1922-1926), presença (1927-1940) or the Revista de Antropofagia (1928-1929)? Personally, I add to this question another one that seems to me to be equally very significant. Could literature in the Portuguese language have positioned itself internationally, if contact with contemporary European movements, such as Dadaism and Surrealism, had taken place with such breadth and recognition that it would have had to wait until the 1940s to see the first unequivocal signs?

Os Modernismos e o sentido do contemporâneo em língua portuguesa [Modernisms and the meaning of contemporary in Portuguese] Rui Sousa* O percurso dos Modernismos em língua portuguesa foi-se cumprindo através de uma série de contemporaneidades e movimentos de encontro e de desencontro muito significativos, alguns dos quais deixando no ar uma interrogação ainda hoje pertinente e que terá ocorrido em algum momento aos leitores de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e outros escritores. 1 O que teria ocorrido se essa contemporaneidade tivesse sido levada às últimas consequências, ou seja, qual teria sido o panorama da literatura em língua portuguesa ao longo do século XX se esses gigantes se tivessem correspondido, tivessem interagido criativamente e por exemplo tivessem conjugado esforços numa publicação comum, com o alcance de revistas icónicas como Orpheu (1915), Klaxon (1922-1923), Contemporânea (1915; 1922-1926), presença (1927-1940) ou a Revista de Antropofagia (1928-1929)? Pessoalmente, somo a essa interrogação uma outra que me parece igualmente muito significativa. Poderia a literatura em língua portuguesa ter-se posicionado internacionalmente, se o contacto com movimentos europeus contemporâneos, como o Dadaísmo e o Surrealismo, se tivessem dado com uma amplitude e um reconhecimento que teria de esperar até à década de 1940 para conhecer os primeiros sinais inequívocos? Ficando a pairar essas e outras vias de leitura para a investigação de dois dos sentidos possíveis da contemporaneidade – a contemporaneidade entre os mais importantes movimentos modernistas nos dois lados do Atlântico em que o português se reelaborou e adquiriu plasticidade crítica inaudita, e a contemporaneidade entre os contextos de língua portuguesa e os grandes eixos determinantes da literatura mundial –, importa acentuar um inequívoco ponto de partida comum. Em Portugal e no Brasil, novas gerações poéticas e artísticas encontraram, numa transição produtiva entre o ambiente finissecular decadentista e simbolista, e um comum encontro de inspirações e de propósitos, o espaço necessário para uma ampla e decisiva afirmação. A revista portuguesa A Águia (1910-1932), em Portugal, e a Fon-Fon! (1907-1958), no Brasil, foram órgãos importantes desse percurso, estando parcialmente implicados na génese da primeira grande revista modernista em língua portuguesa, Orpheu, * Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias. Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P., no âmbito do Projecto UIDP/00077/2020. 1 Sousa Foreword / Special Issue ajudando a reunir os novos poetas dos dois lados do Atlântico e suscitando neles o apelo de um periódico distinto, mais próximo dos vocabulários contemporâneos, prosperando nos grandes centros culturais europeus, nomeadamente os que se desenvolviam na cidade de Paris. O dossier da Pessoa Plural que agora se apresenta procura pensar a posteridade significativa desse momento de emergência comum de novos autores, novos processos, novos horizontes estéticos e criativos, num dos mais significativos casos de coincidência plena entre as literaturas de expressão portuguesa e os grandes paradigmas contemporâneos desenvolvidos um pouco por todo o mundo. Com efeito, o Orpheu só parcialmente reuniu as ambições marcantes nos dois lados do Atlântico, associando aos mais marcantes nomes de todo o Modernismo português dois dos mais relevantes poetas da fase de transição entre o Simbolismo brasileiro e o momento modernista, um dos quais teria ainda algum relevo no período cimeiro da década de 1920 – Ronald de Carvalho. Nos meses subsequentes à Semana de Arte Moderna de 1922, decorrida em São Paulo, cujo centenário se celebra este ano, da qual emergiram os nomes brasileiros equivalentes a Fernando Pessoa, Mário de SáCarneiro ou José de Almada Negreiros, só o nome ambíguo e individualista de António Ferro esteve de facto em contacto com os contemporâneos do Brasil. O diálogo entre os dois braços do rio modernista em língua portuguesa, cujo desenvolvimento se processou contemporaneamente, foi-se fazendo à distância, através de leituras e de influências silenciosas ou silenciadas, com episódicas aparições em periódicos, alguns intuitos mais conscientes de sistematização nem sempre devidamente lembrados – é o caso da revista Descobrimento (1931-1932) e dos livros de um dos principais orientadores, José Osório de Oliveira, por exemplo – e o concurso superlativo de alguns nomes singulares, como Cecília Meireles. Neste dossier, através de um sólido conjunto de contributos amplos e de diferentes naturezas, abordam-se os dois grandes esteios do Modernismo em língua portuguesa, o Orpheu e as suas derivas mais relevantes, por um lado, e a Semana de Arte Moderna e suas repercussões, por outro lado. Também se desenvolvem importantes reflexões sobre a especificidade do momento contemporâneo conforme experienciado em Portugal e no Brasil, ou sobre alguns agentes decisivos desse contexto vasto, dinâmico e plural, que não têm merecido a devida centralidade e valorização da crítica especializada; ou que partilharam um tempo pleno de metamorfoses e de revoluções, no qual se foram seguindo direcções distintas e por vezes contraditórias, mas todas elas representativas da vertigem característica das primeiras décadas do longo e tumultuoso século XX. No primeiro texto do dossier, Tania Martuscelli aborda a Contemporânea tendo presente a realidade modernista brasileira que se desenvolveu praticamente em simultâneo e que também é convocada neste número da Pessoa Plural. Afinal, a Semana de Arte Moderna de 1922, tal como algumas das mais importantes revistas do Modernismo brasileiro, casos de Klaxon, Estética (1924-1925), A Revista (1925Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 2 Sousa Foreword / Special Issue 1926) ou Terra Roxa e Outras Terras (1926), além de textos capitais como Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade (1922), o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, ou o Manifesto Regionalista, de Gilberto Freyre (1926), coincidiram em grande medida com os anos da Contemporânea. O importante tour de António Ferro pelo Brasil, em 1922 e 1923, é lido pormenorizadamente neste trabalho, tal como as diferentes repercussões do Futurismo em Portugal e no Brasil. Oferecendo importante contextualização dos bastidores de Contemporânea, o contributo de João Macdonald oferece ao dossier o acesso a um acervo documental do qual só muito recentemente se tomou conhecimento: o espólio de Henrique Oliveira Mouta, um dos financiadores da revista, considerado por alguns, incluindo pelo próprio José Pacheco, um nome crucial no desenvolvimento da revista. Em nome da revista, agradeço aos familiares de Oliveira Mouta a oportunidade de conhecer e divulgar estes documentos preciosos, essenciais para a confirmação da ideia de que o devir do Modernismo português se fez de uma série de actores menos lembrados, mas cujo levantamento tem de ser feito para que se perceba a espessura profunda dessa espantosa década de 1920. João Macdonald aborda com grande pormenor as relações entre a Contemporânea e os periódicos franceses e espanhóis da época, oferecendo importantes contextualizações da segunda vida da revista no início da década de 1920, depois de um efémero número specimen em 1915 e na esteira do polémico Comício dos Novos, de 1921. Ricardo Marques introduz a revista Contemporânea, talvez o mais consistente projecto de continuação de alguns dos aspectos constitutivos da revista Orpheu, a par da revista Athena, no panorama mais vasto dos periódicos modernistas nacionais e internacionais. O director da Contemporânea, José Pacheco, é estudado enquanto leitor dos periódicos modernistas europeus, evidenciando os importantes mecanismos de difusão e transfiguração de paradigmas entre os centros europeus mais reconhecidos e os contextos mais periféricos que adaptaram modelos a realidades muito diversas. O artigo apresenta um amplo elenco dos periódicos modernistas mais representativos, assinalando as respectivas especificidades, e demarca bem a Contemporânea como uma das revistas mais emblemáticas do seu tempo. Ainda tendo a Contemporânea como principal foco, Carlotta Defenu descreve pormenorizadamente os artigos publicados por Fernando Pessoa na revista, recorrendo a uma linha de leitura recente que tem dado alguns contributos relevantes: o estudo dos intuitos polémicos de Pessoa na escolha dos textos a publicar em cada momento e em cada periódico que lhe ofereceu a oportunidade de dar a conhecer a sua produção literária plural. Assim, textos e poemas célebres como “O Banqueiro Anarquista”, “António Botto e o ideal estético em Portugal”, “Lisbon Revisited (1923)”, “Lisbon Revisited (1926)” ou “O Menino da sua Mãe” são apresentados enquanto peças decisivas de um diálogo ambíguo entre Pessoa e a revista de José Pacheco, diálogo esse que é também um dos primeiros palcos reconhecíveis do debate polémico entre Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 3 Sousa Foreword / Special Issue Fernando Pessoa e Álvaro de Campos, com expansão mais expressiva na revista Athena (1924-1925). Bruno Silva Rodrigues oferece-nos um texto em que se traça uma panorâmica das manifestações da narrativa breve no contexto do Modernismo português, aplicando aos mais significativos cultores do género uma definição operativa de micronarrativa. O percurso dos principais nomes associados ao Orpheu, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e José de Almada Negreiros, é interpretado atendendo às diferentes manifestações da narrativa breve na sua produção e às diferentes fontes e influências subjacentes a essas produções. O caso de Almada é particularmente significativo, dada a sua centralidade no texto, através da abordagem criteriosa a textos que vão do Orpheu 1 (“Frizos”) ao momento editorial da Olisipo, com A Invenção do Dia Claro. Finalmente, aprofundando a atenção que este número da Pessoa Plural dedica à revista Contemporânea, analisa-se a forte presença de diferentes expressões da narrativa breve, como haikai, fábulas ou greguerías, nas páginas da publicação. Num texto de grande fôlego e actualidade, António Fernando Cascais introduz um debate marcante dos primeiros anos da década de 1920 que, cem anos depois, permanece pleno de actualidade: o confronto entre Pessoa, a sua editora Olisipo e alguns autores que lhe eram próximos, como Raul Leal e António Botto, e o Portugal conservador e inquisitivo em cujos contornos já se reconheciam muitos dos traços fundamentais do Estado Novo que condicionaria todo o devir da cultura portuguesa nas décadas subsequentes. A abordagem parte de Sodoma Divinisada (1923), livro publicado pela Olisipo, para situar o seu autor, Raul Leal, no contexto mais amplo da polémica inaugurada no ano anterior com “António Botto e o ideal estético em Portugal”, de Pessoa, e com a réplica imediata de Álvaro Maia, “Literatura de Sodoma: o Sr. Fernando Pessoa e o ideal estético em Portugal”, nos números 3 e 4 da Contemporânea. O texto relaciona as perspectivas fundamentais de Sodoma Divinisada com as produções de Raul Leal ao longo das décadas subsequentes, sempre orientadas pela singularidade filosófica do colaborador de Orpheu que assinava também como Henoch. Nicolás Barbosa oferece-nos o primeiro resultado de uma original investigação em curso, em torno de um modo particular de diálogo entre os principais poetas do Orpheu e o motivo cristão da Santíssima Trindade, definido pelo próprio como “um padrão melodramático”. O ensaio percorre composições de Fernando Pessoa, de Alfredo Pedro Guisado e de José de Almada Negreiros, num arco temporal que antecede o momento modernista de Orpheu, encontra expressão nas páginas dessa revista e tem algumas repercussões eloquentes também nas páginas da Contemporânea. As importantes ilustrações de Almada Negreiros para a Contemporânea, em 1922, merecem particular atenção. Trata-se, também, de um contributo que abre caminho a futuras incursões no estudo da religiosidade de Pessoa, aspecto presente nas Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 4 Sousa Foreword / Special Issue diferentes etapas e facetas da sua vida e obra, mas ainda por explorar em todas as suas dimensões. Atentando no pano de fundo característico dessa década tão importante para o Modernismo um pouco por toda a Europa, os icónicos, ambíguos e dinâmicos anos 20, Luís Trindade prossegue os importantes contributos que tem desenvolvido nos últimos anos em torno das vertentes audiovisual e jornalística. O período, marcado pela vertiginosa ascensão de novas linguagens comunicativas, como o cinema e o periodismo diário, é abordado em função dos contributos que esses vocabulários criativos foram dando à instituição e reconfiguração do Modernismo português, de acordo. com as manifestações que o autor designa como “modernismo banal ou vernacular”. Trata-se de uma etapa de transição entre um momento de acentuado afastamento entre os autores modernistas e o campo cultural predominante em Portugal, ainda muito associado aos processos de Oitocentos, e um tempo mais próximo de alguns traços constitutivos da nossa contemporaneidade, que convertem o Modernismo em parte da expressão literária e artística oficial, muito devido a uma das personagens que marcam presença no filme que serve de pretexto para este artigo, Como se Faz um Número do Diário de Notícias (1928): o escritor e jornalista António Ferro. Ana Salgueiro, José Rui Teixeira e José Luís Garcia ajudam com os seus contributos a uma mais ampla e espessa perspectiva sobre o tempo do Modernismo português na sua contemporaneidade múltipla. Ana Salgueiro foca o caso exemplar de João Cabral do Nascimento, um dos nomes imprescindíveis num panorama completo do Orpheu, se entendido, não como designação de uma revista e de um grupo, mas como realidade movediça em torno de uma atitude perante a cultura e a individualidade criadora. Aproveitando com pertinência o conceito de constelação, explorado por Maria Irene Ramalho para pensar a obra de Pessoa e a sua relação com diferentes contextos literários, Ana Salgueiro aborda os vários exemplos de contacto directo entre João Cabral do Nascimento e os autores associados ao Orpheu e às revistas subsequentes, apresentando as coincidências e desconfianças com que o poeta madeirense pensou o panorama cultural da época e se posicionou relativamente ao influxo modernista que em grande medida também foi o seu. José Rui Teixeira destaca uma outra personalidade da época, Guilherme de Faria, autor representativo de um outro momento cultural também muito vivo no panorama cultural português nas primeiras décadas do século XX, e também ele com relações próximas com alguns dos representantes do plural Modernismo português, como Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Alfredo Pimenta, Raul Leal, Vitoriano Braga, Mário Saa, José de Almada Negreiros, António Botto, António Pedro ou o próprio Fernando Pessoa, ao qual foram oferecidos os seus dois livros. Guilherme de Faria esteve associado a algumas manifestações nacionalistas que também interessaram a Pessoa, caso do episódio de Sidónio Pais, e foi equacionado pelo Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 5 Sousa Foreword / Special Issue poeta dos heterónimos para alguns dos seus múltiplos projectos de antologias de poesia portuguesa. José Luís Garcia atenta num outro veio decisivo da época, a emergência de um pensamento anticolonialista, sobretudo em relação com algumas manifestações anarquistas em Portugal. Partindo do centenário dos importantes textos de Mário Domingues, “Para a história da colonização portuguesa”, publicados no diário antisindicalista A Batalha, em Junho-Julho de 1922, este ensaio salienta a integração de Domingues no panorama internacional do movimento negro, na viragem do século XIX para as primeiras décadas do século XX. Mário Domingues, que também manteve ligações com a constelação em que Pessoa e os modernistas desenvolveram a sua actividade cultural, aproximou-se do pensamento e da acção de W. E. B. Du Bois e foi dos primeiros pensadores portugueses a denunciar os malefícios do colonialismo e a lutar pelo ideal de independência de Angola e das demais colónias africanas portuguesas. Lutas que, como os últimos anos têm deixado evidente, estão entre as mais marcantes da agenda contemporânea. Acompanhando estes textos dedicados ao contexto do Modernismo português, e expandindo os dados transmitidos pelo texto de Tania Martuscelli, este dossier inclui trabalhos muito importantes de Arnaldo Saraiva e de Patrícia Lino. Arnaldo Saraiva tem sido desde há décadas o grande pioneiro das investigações sobre os encontros e desencontros dos movimentos modernistas nos dois lados do Atlântico. A sua investigação tem sido ao longo dos anos vocacionada para o contacto entre alguns portugueses, como Luís de Montalvor, António Ferro, Fernanda de Castro ou Osório de Oliveira, e os mais importantes interlocutores da literatura brasileira, desde o tempo da Fon-Fon! e ao longo das várias gerações modernistas. Neste ensaio, Arnaldo Saraiva oferece-nos um olhar sobre o outro lado da questão, analisando a presença de autores brasileiros nas páginas das revistas portuguesas. Uma representação escassa, sobretudo depois dos casos de Ronald de Carvalho e de Eduardo Guimaraens, representantes brasileiros nos dois primeiros números de Orpheu, contemporâneos de outra revista importante no diálogo luso-brasileiro, a Atlântida (1915-1920). Esse percurso começou a dever algum do seu impulso a António Ferro, dado que os ecos da sua passagem pelo Brasil e das amizades que ali foi mantendo tiveram impacto na revista Contemporânea (1922-1925) e no Diário de Notícias (1923), para passar depois por esporádicas aparições nas páginas de periódicos com diferentes registos, como a Revista Portuguesa (1923), a Nação Portuguesa (1924), a Portugália (1925), a Descobrimento (1931-1932), a presença (19271940), a Ocidente (1939), entre outros. Patrícia Lino dá a conhecer algumas das mais singulares e criativas produções da artista multifacetada e interdisciplinar Patrícia Galvão (Pagu), uma personalidade nem sempre lembrada nas abordagens às várias gerações de modernistas brasileiros. O artigo trabalha dois livros de poemas ilustrados, Álbum de Pagu ([1929]; 1975) e Dia Garimpo (1939), nos quais a qualidade expressiva das produções de Pagu se Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 6 Sousa Foreword / Special Issue associa exemplarmente a um tópico do qual foi uma voz proeminente e que corresponde a outra das questões que permanecem plenamente contemporâneas: a luta feminina, quer pela conquista de um espaço de afirmação criadora quer pela denúncia de situações de abuso e discriminação. Pagu representa a conquista de uma voz modernista em plena afirmação, na esteira de nomes cimeiros como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Rego Monteiro, Jorge Lima, entre outros, dando continuidade a uma exigência de hibridez de materiais e de vocabulários muito marcante no panorama global dos Modernismos. Finalmente, o dossier conclui com um ensaio de Marco Bucaioni que situa o debate em torno da herança dos Modernismos no contexto de uma das linhas de investigação com mais relevo actualmente, o estudo das relações entre contextos literários com diferente centralidade no panorama de circulação global. Partindo da leitura que o Warwick Research Collective (2015) tem feito do fenómeno vasto da modernidade literária, o ensaio equaciona o impacto dos diferentes ritmos de desenvolvimento das literaturas em língua portuguesa no modo como as literaturas africanas receberam as heranças portuguesa e brasileira. Considerados como exemplos significativos, os romances contemporâneos do moçambicano Jorge Paulo Borges Coelho (Museu da Revolução, 2021) e do angolano João Melo (Será Este Livro um Romance, 2022) ilustram de que modo esses ritmos de desenvolvimento são desiguais, mesmo quando partem de paradigmas comuns. Através deste sólido e múltiplo conjunto de ensaios, o presente dossier da Pessoa Plural espera contribuir para novas leituras dos Modernismos em língua portuguesa, propondo também diferentes ângulos de leitura dos movimentos mais marcantes e consensualmente lembrados; é convicção da Pessoa Plural que o estudo do devir modernista português e brasileiro, também nas suas repercussões um pouco por todo o espaço de língua portuguesa, deve prosseguir através de uma progressiva diversificação dos nomes a integrar um retrato de família cada vez mais vasto, multicultural, interartístico e questionador dos próprios limites do conceito de “Modernismo”. Esse trabalho inspira muitos dos trabalhados dados a público neste dossier, incluindo a atenção a revistas menos celebradas do que seria expectável, a recuperação de nomes que foram parcialmente silenciados pelo olhar estreito da historiografia literária, mas igualmente decisivos, e a integração de contextos que vão muito para além do sentido estrito da noção de literatura e que passam, por exemplo, pela discussão das influências internacionais ou da realidade material da composição das revistas e dos livros fundamentais. Acima de tudo uma dedicação atenta e cuidada a essa fascinante década de 1920, por vezes obscurecida pelo peso justificado que se tem conferido ao momento fundador do Orpheu, mas que reúne em si todos os ingredientes que marcaram o passado, os diversos presentes e os futuros possíveis dos Modernismos em língua portuguesa. Algo que nunca é demais sublinhar, agora que se comemora o centenário paralelo da revista de José Pacheco, Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 7 Sousa Foreword / Special Issue a Contemporânea, e da Semana de Arte Moderna de São Paulo, acontecimento maior do Modernismo brasileiro. A Pessoa Plural acompanha, através deste dossier, uma série de iniciativas que celebram o centenário modernista em Portugal e no Brasil, de que se destacam a exposição Contemporânea Centenária 1922-2022, promovida pelo Centro Nacional da Cultura e pela Biblioteca Nacional de Portugal entre 25 de Maio e 15 de Julho; o número 46 da revista Cadernos de Literatura Comparada (Modernismos Revisitados II: 1922-2022: https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/issue/view/39); o Seminário Modernismo(s) em Português, que foi, a 10 de Novembro, com importante atenção à contemporaneidade dos dois movimentos modernistas, promovido pelo Instituto de História da Arte; o Congresso Internacional 100 Modernismo, organizado pelos grupos 1 e 3 do CLEPUL, nos dias 16 e 17 de Novembro de 2022 (https://coloquiointernacional-100-modernismo.jimdosite.com/programa/); e as diversas iniciativas promovidas em São Paulo e noutras cidades brasileiras e estrangeiras para celebrar a Semana de Arte Moderna. Uma palavra ainda para o encontro 1922-2022: Un centenario modernista, uma das actividades integradas no festival Olá Bogotá: festival de cultura en portugués, que teve lugar no dia 14 de Setembro de 2022, tendo reunido na Universidad de los Andes três colaboradores deste dossier, Carlotta Defenu, João Macdonald e Nicolás Barbosa. Pessoa Plural: 22 (O./Fall 2022) 8