A Sociedade de Risco

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Captulo I Vivendo na Sociedade de Risco: aspectos gerais do risco

no pensamento de Ulrich Beck.


1. O conceito de risco e as suas esferas de influncia na sociedade
contempornea.
Como afirmmos no 1 da Introduo, a sociedade actual encontra-se dominada
pela presena potencial de ameaas que geram um sentimento de crescente insegurana
e de incerteza face imprevisibilidade das suas consequncias.
No ser de surpreender, portanto, que uma das teses mais importantes de Beck
seja esta:
- Estar em risco a caracterstica mais importante da humanidade no incio
do sculo XXI1.
Este estar em risco significa viver num contexto marcado pela desconfiana,
devido ecloso de desastres cujo impacto no pode ser previsto na sua totalidade. O
risco encontra-se presente em todas as esferas da existncia humana.
A chave para a compreenso do que representa o risco na sociedade
contempornea remete-nos invariavelmente para a cincia e para a tecnologia. Quanto
maiores so os progressos cientficos e tecnolgicos alcanados, maior a rapidez com
que so criadas novas formas de risco.
Em consequncia disso, mais exigente se torna a forma com que o ser humano se
v confrontado com um constante processo de adaptao face aos cenrios gerados quer
por possibilidades, quer por consequncias reais dos riscos e a ter que tomar decises
em relao ao seu futuro em resposta aos mesmos em contextos marcados muitas vezes
pela ausncia de conhecimento.
A sociedade contempornea, bem como a prpria Modernidade a partir da sua
fase tardia, so uma fonte inesgotvel de produo de riscos devido s consequncias
das suas actividades. Neste contexto, o risco no se resume a ser um conceito operatrio

Being at risk is the way of being and ruling in the world pf modernity; being at global risk is the human
condition at the beginning of the 21st century. Ulrich Beck, Living in the World Risk Society.
Conferncia proferida por Beck na London School of Economics, a 15 de Fevereiro de 2006.

16

capaz de descrever a sociedade em que vivemos. Ele constitui tambm uma abordagem
metodolgica e pedaggica que nos permite orientar a existncia na sociedade actual.
Numa tentativa de delimitar o conceito, Beck afirma que
O risco pode ser definido como uma forma sistemtica de lidar com os perigos e as incertezas
produzidos e introduzidos pela prpria modernizao2.

Os perigos e as incertezas no se circunscrevem apenas a eventuais


possibilidades de acidentes no plano ambiental, susceptveis de colocar em perigo a
integralidade das condies de vida do planeta. Apesar de a crise ambiental ser, sem
dvida, uma das mais graves dimenses desencadeada pela presena de situaes de
risco na sociedade contempornea, estas tm um carcter mais amplo, provocando
tambm alteraes de fundo no tecido do panorama social.
Uma outra consequncia da emergncia do risco na contemporaneidade a
ascenso do individualismo, o que conduz a alteraes sociais profundas nos padres
tradicionais que a Modernidade instituiu3. Segundo Anthony Giddens, na sua clssica
obra de introduo s questes sociolgicas, Sociology, o risco faz-se sentir tambm a
outros nveis que, por no se enquadrarem no mbito da nossa investigao do
pensamento de Beck, passaremos a dar conta dos mesmos de forma sucinta.
Assim, a presena do risco traduz-se em mudanas no contexto social
provocando as seguintes alteraes:
- Declnio da influncia e da tradio das instituies da Modernidade, como a
religio e a tica;
- Insegurana laboral motivada pela constante flutuao nos padres de
empregabilidade;
- Eroso dos padres tradicionais de famlia e dos valores a ela associados;

Risk may be defined as a systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and
introduced by modernization itself. Beck, Risk Society, p 21. O itlico do autor.
3
A forma como o risco alterou as esferas da famlia, da individualizao das relaes humanas e do
trabalho so examinadas por Beck respectivamente por esta ordem nos captulos 4, 5 e 6 de Risk Society.
Posteriormennte, o autor ir consagrar anlises mais detalhadas a estas questes nas seguintes obras: The
Normal Chaos of Love (1995), The Brave New World of Work (2000) e Individualization:
Institutionalized Individualism and its Social and Political Consequences (2002).

17

- Democratizao das relaes pessoais acentuada pela ascenso do


individualismo na esfera das relaes humanas4.
Limitemo-nos a enumerar desta forma outros dos aspectos aos quais o risco
aparece associado na sociedade actual, para passarmos agora a uma anlise de outras
questes levantadas pelo conceito. Por ser, como j dissemos, um debate prprio do
foro de disciplinas como a Sociologia do Ambiente e a Sociologia do Risco e, tambm
por fugir totalmente ao mbito da nossa investigao, optamos por deixar de fora as
questes mais tcnicas que se prendem com as metodologias utilizadas na avaliao do
risco. A nossa anlise reflecte apenas os pontos que consideramos essenciais para que se
possa ter uma viso de conjunto das principais questes que se levantam no pensamento
de Beck sobre este tema.

2. A conscincia do risco: as suas diferentes formas de percepo, causas e


caractersticas nos diversos modelos de sociedade.
A forma como at agora foi apresentado o conceito de risco e a sua associao
poca moderna deve levar-nos a colocar a seguinte questo: ser que faz sentido falar
em conscincia do risco antes da Idade Moderna ou este um fenmeno tpico da
Modernidade, particularmente do advento da sociedade industrial?
Apesar de distinguir trs fases na Modernidade a sociedade pr-industrial
(sociedade tradicional), sociedade industrial (Primeira Modernidade)5 e Sociedade de
Risco (Segunda Modernidade) - , e a elas fazer corresponder caractersticas diferentes,
Beck afirma que o conceito de risco, bem como a conscincia deste, no so invenes
exclusivas da poca moderna.
Ao longo da histria, sempre existiram situaes ou factores de risco e as
implicaes levantadas por eles encontram-se j presentes mesmo antes do incio da
Modernidade. O nosso autor d como exemplo as viagens martimas de descoberta de
novos continentes do sculo XV.
Aos empreendimentos levados a cabo pelos navegadores da poca dos
Descobrimentos associava-se j uma elevada dose de risco. O que distingue os riscos
daquela poca dos riscos associados contemporaneidade , nomeadamente, o seu
4
5

Giddens, Sociology., p.965.


Ver notas 5 e 6 da Introduo.

18

alcance: enquanto o risco assumido pelos navegadores do sculo XV se revestia de


implicaes de natureza estritamente pessoal, o risco actual, ontologicamente,
caracteriza-se pela sua dimenso global e pelas consequncias que pode causar
humanidade enquanto espcie6.
Uma breve incurso pelas diferenas existentes quanto percepo e s causas de
situaes de risco no perodo anterior sociedade industrial e no decorrer desta, bem
como o tipo de catstrofes ocorridas em ambos os perodos e as caractersticas das
ameaas com que nos confrontamos actualmente, permitir-nos-o ter uma ideia mais
clara da singularidade presente nos riscos que impendem sobre a sociedade
contempornea.

2.1. Diferenas quanto conscincia, percepo e causas do risco nas etapas da


Modernidade.
A ocorrncia de acidentes de dimenso alarmante no um marco exclusivo da
Idade Moderna. Ao longo dos sucessivos perodos histricos assistiu-se sempre
ocorrncia de eventos que, pelo impacto devastador dos seus efeitos em larga escala, se
podem considerar como catastrficos.
O que varia a forma como esses eventos so percepcionados pelo ser humano.
Sendo a percepo do risco um fenmeno construdo socialmente no que toca sua
compreenso e conscincia7, podemos afirmar que as causas de uma dada ameaa so
sempre entendidas de maneira diferente consoante a poca histrica, o contexto cultural
e questes ligadas estrutura social em que ocorre8.
A genealogia do risco traada por Jacques Theys9 ilustra bem alguns dos pontos que
acabmos de afirmar sobre a sua percepo. Segundo este autor, podemos dividir a
percepo e causa do risco em dois perodos histricos diferentes:

In that earlier period, the word risk had a note of bravery and adventure, not the threat of selfdestruction of all life on Earth. Beck, op.cit., p. 21.
7
Mythen, op. cit., p. 14. Este autor afirma que a compreenso e percepo do risco varia com o tempo,
lugar, contexto cultural e nvel de informao que os indivduos possuem sobre o risco. Nessa medida, a
percepo e a construo do risco so construes de teor arbitrrio, sujeitas ao contexto cultural de cada
sociedade e da sua relao com o risco. Cf. tambm Beck, op. cit., p.34, que afirma que o risco, para ser
reconhecido como tal, tem que passar primeiro por um processo de reconhecimento social.
8
Ver nota anterior.
9
Jacques Theys, La Socit Vulnerable in La Socit Vulnerable valuer et Maitriser les Risques, pp.
3-36.

19

Entre 1350 e 1750 Perodo dominado pelo medo de pestes, fome, secas, grandes
epidemias (por exemplo, a peste negra), incndios, inundaes e terramotos.
As catstrofes naturais so compreendidas como algo inevitvel e comportam uma
dimenso fatalista. A sua atribuio normalmente reside quase sempre em causas
sobrenaturais representadas aqui pelo temor que certos elementos naturais exercem
sobre o imaginrio humano - ou numa expresso da vontade divina.
Entre 1750 e 1950 Existe uma alterao na forma como so percepcionadas as
situaes de catstrofe, em grande medida devido a trs fenmenos: o fim das grandes
epidemias com o progresso dos cuidados de higiene e desenvolvimentos no saneamento
bsico das populaes, o Iluminismo como antropocentrizao da razo humana e
deslegitimao da origem divina de eventos catastrficos e o incio da Revoluo
Industrial que, submetendo a natureza ao domnio do homem, atenua o temor deste
perante as foras naturais.
Essencialmente, com a Revoluo Industrial, e com as primeiras ameaas de
degradao ambiental geradas pela interveno humana na fase tardia da Modernidade
Clssica sculo XIX -, que se comea a desenhar um novo panorama no domnio da
percepo e das causas do risco.
A actividade humana, alicerada no domnio do homem sobre os recursos
naturais, substitui gradualmente o elemento natural como causa da produo de riscos e
a percepo dos mesmos comea a excluir quase por completo o mbito divino para a
sua explicao. A ascenso do risco na sociedade contempornea ir alterar ainda mais
este cenrio.
A transio da sociedade industrial para a Sociedade de Risco introduz dois
dados fundamentais. Por um lado, a participao humana na produo de riscos
aumenta vertiginosamente atravs da proliferao de riscos ambientais, da
possibilidade de utilizao de armas qumicas e dos progressos desenvolvidos na
biotecnologia e na engenharia gentica.
Por outro, a natureza dos riscos assume um teor cada vez mais perigoso, torna-se
cada vez mais difcil de gerir e ameaa o planeta de um modo outrora considerado
impensvel10.
10

Secondly, the increasingly hazardous quality of risk is said to have generated apocalyptic
consequences for the planet. Mythen, op.cit, p.16.

20

Esta transio pauta-se pela introduo de novas caractersticas que os riscos no


continham nas etapas anteriores da Modernidade.

3. O risco na sociedade contempornea: caractersticas e questes do risco


contemporneo.

3.1. O efeito boomerang e o fim da noo de classe.


A ascenso do risco na contemporaneidade comea por estabelecer uma
diferena fundamental no que diz respeito lgica do processo de distribuio definido
pela poltica social na distribuio de recursos e bem-estar social presentes na sociedade
industrial11 e na sociedade actual.
Enquanto o processo de distribuio de recursos na sociedade industrial se
preocupava principalmente com a distribuio de riqueza e recursos materiais entre as
diversas classes sociais num contexto de escassez, a sociedade contempornea trabalha
essencialmente na preveno e mitigao das consequncias geradas pelos riscos. A
lgica do padro de distribuio altera-se: o que est em jogo j no mais a
distribuio de riqueza, mas sim a distribuio dos danos causados pelos riscos.
Apesar das consequncias dos riscos no serem de todo equitativas, dado que
existe sempre uma parte da populao que sempre mais afectada do que outra na sua
distribuio e crescimento12, a nova lgica de distribuio ameaa tambm a prpria a
noo de classe social associada sociedade industrial.
Segundo Beck, uma das caractersticas explosivas do risco o que ele denomina
como efeito boomerang13, que faz ruir o conceito de classe, tpico da Modernidade
Clssica, e introduz alteraes na hierarquia social, no que toca distribuio dos danos
provocados pelos riscos.
Ao passo que, na sociedade industrial, a distribuio de riqueza criava enormes
clivagens entre as diversas classes sociais, nomeadamente entre ricos e pobres, na
sociedade contempornea, os riscos derivados da actividade humana, devido sua
natureza transfronteiria, minam por completo a hierarquia de classes at ento existente
11

Mythen, op.cit., pp. 23./24.


Some people are more affected than others by the distribution and growth of risks []. Beck, op.cit.,
p.23.
13
They contain a boomerang effect, which breaks up the pattern of class and national society. Beck,
op.cit., p.23.
12

21

e introduzem um certo carcter de democratizao quanto aos seus efeitos, que so


sentidos de igual forma, pelo menos potencialmente, por todas as classes sociais14.
Convm realar que Beck tem em mente principalmente os riscos ambientais, como a
radioactividade ou a poluio atmosfrica15, que so sentidos por todos os indivduos.
Perfilam-se ento dois tipos de posio social consoante o tipo de sociedade:
sociedade industrial agrega-se uma posio de classe que se relaciona com a habilidade
de conseguir riqueza produzida socialmente. sociedade contempornea corresponde
uma posio de risco, marcada pela probabilidade da exposio a ameaas
imprevisveis, devido a circunstncias sociais, econmicas ou geogrficas16.
Vemos ento que a democratizao das suas consequncias cria uma nova
lgica quanto sua distribuio. Esta uma das notas que constitui o risco
contemporneo e que o distingue dos perodos anteriores da Modernidade, luz da
distino efectuada nos pargrafos anteriores.
Passemos agora a analisar outras caractersticas que compem o risco e que
colocam em evidncia a sua especificidade no mundo contemporneo.

3.2. Caractersticas do risco contemporneo.


um dado adquirido. O perodo da era moderna a que Beck faz corresponder a
categoria de Sociedade de Risco encontra-se ocupado a debater, gerir e impedir a
propagao de potenciais efeitos catastrficos criados pelas pela prpria actividade
humana17.
Se, durante a Modernidade Clssica, a produo de riscos e a sua gesto pelas
instituies se fez baseada num conhecimento claro sobre como lidar com as ameaas
produzidas pelo homem18, a transio para a Sociedade de Risco coloca-nos perante um

14

A este propsito recordamos uma das mais famosas citaes de Risk Society: [] poverty is
hierarchic, but smog is democratic. Cf. op.cit., p.36. O itlico do autor. Beck prima por defender uma
posio democrtica no que se refere forma como os riscos so distribudos. A sua posio acaba por ser
contestvel, por exemplo, no mbito das catstrofes ecolgicas, onde se verifica que so sempre os
escales mais baixos do tecido social a serem vtimas das piores consequncias. As classes mais
abastadas, por terem maior acesso a informao sobre os riscos, acabam por no estarem to expostas aos
mesmos.
15
Beck, op. cit., p.22.
16
Mythen, op. cit., p.27.
17
Modern society has become a risk society in the sense that it is increasingly occupied with debating,
preventing and managing risks that it itself has produced. Beck, Living in the World Risk Society.
18
At this stage of development, a discrete pool of knowledge exists about how to regulate both natural
and man-made risks. Mythen, op.cit., p.16.

22

dado inteiramente novo que escapa lgica de previso e controle anterior: os riscos
actuais tm uma maior mobilidade que as suas representaes anteriores19.
Alm de uma maior mobilidade, os riscos produzidos pela ascenso da
tecnologia gentica, do poder nuclear e da depleo ambiental20 acarretam consigo
tambm as seguintes caractersticas:
Deslocalizao geogrfica As suas consequncias no esto limitadas a uma
determinada localizao ou espao geogrfico. Os riscos contemporneos no conhecem
fronteiras21 e ultrapassam, na maior parte dos casos, o mbito do Estado-nao,
acentuando a incapacidade deste para lutar sozinho contra as suas consequncias22.
Incalculabilidade As suas consequncias so imprevisveis e incalculveis e
os mecanismos de avaliao de risco que possumos actualmente s nos permitem
traduzir o risco sob a forma de probabilidade.
No compensabilidade Os possveis efeitos gerados pelos riscos rompem com
todos os esquemas de segurana e compensao criados pela Modernidade Clssica. A
dimenso que as suas consequncias podem atingir faz com que seja impossvel
determinar uma forma de compensao adequada.
Dimenso cumulativa no tempo O perodo de latncia dos riscos faz com que
as suas consequncias efectivas no possam ser determinadas de acordo com um
horizonte temporal estritamente definido23.

19

These socially produced risks are more mobile and more oblique than the preceding forms of danger.
Mythen, op.cit., p.18.
20
Segundo Beck, os trs cones primordiais da Sociedade de Risco. Cf. Mythen, op.cit., p.19.
21
Vinte anos depois, as nefastas consequncias de Chernobyl para a sade das populaes locais expostas
radiao nuclear ainda se fazem sentir a vrios nveis.
22
Hoje em dia possvel vermos isto em relao s potenciais causas das alteraes climticas. Os seus
efeitos ultrapassam largamente as fronteiras de qualquer Estado-nao e a sua mitigao s pode ser feita
no quadro de uma cooperao global. Veremos mais frente que o risco tambm uma possibilidade
para a criao de novas instituies polticas e condio indispensvel para uma cooperao forada
entre as diversas instituies responsveis pela sua gesto.
23
A este respeito, mais uma vez, as consequncias das alteraes climticas, bem como da radiao
nuclear, servem como exemplos claros do que acabmos de afirmar.

23

As caractersticas dos riscos que acabmos de expor confrontam directamente as


entidades responsveis pela sua determinao, avaliao e gesto e obrigam-nas a uma
actuao marcada muitas vezes por um contexto de ignorncia operativa.
Ao referirmo-nos a entidades responsveis, falamos da cincia e das instituies
polticas que detm a responsabilidade social de mitigar as possveis repercusses que
podem causar as consequncias dos riscos.
Num clima em que a extenso total de impactos reais que os riscos podem
provocar se apresenta marcada pela imprevisibilidade, a tese da Sociedade de Risco
confronta-nos com um dado novo no que toca definio do risco: a incapacidade das
instituies em desenvolverem dispositivos adequados que permitam oferecer
solues efectivas de combate s ameaas ocorridas.
Essa incapacidade de resposta das instituies de definio do risco marcada, a
nvel social, pela tenso e por um conflito de racionalidades entre a esfera cientfica e a
esfera social.

4. A avaliao do risco: paralisia institucional e conflito de racionalidades


entre a esfera cientfica e social.
Como j fizemos referncia anteriormente24, o risco, para ser outorgado como
tal, necessita de ser reconhecido/construdo institucionalmente, sujeito a padres de
definio decorrentes contexto social e cultural no qual ocorre.
No quadro da Sociedade de Risco, a avaliao e definio dos riscos passa, em
grande medida, pela actuao da poltica e da cincia como focos institucionais
responsveis pela avaliao da natureza e impactos que uma dada ameaa pode gerar.
Segundo Beck, face s crescentes ameaas impulsionadas pela ecloso de riscos,
a autoridade da esfera poltica, e tambm a autoridade da cincia enquanto participante
na avaliao e definio da natureza do risco, encontram-se sujeitas ao fracasso25,
precisamente pelo facto de a actividade cientfica ser uma das principais fontes de
produo de riscos.
A legitimidade da cincia posta em causa perante a impossibilidade de gesto
dos riscos e tambm devido incomensurabilidade da natureza destes - por via dos
24

Cf. 3.1. relativamente aos diferentes modos de percepo do risco.


[] the sciences are entirely incapable of reacting adequately to civilizational risks, since they are
prominently involved in the origin and growth of those very risks. Beck, op.cit., p.59. O itlico do
autor.
25

24

mtodos de avaliao actual, que se traduzem numa questionamento da exequibilidade


metodolgica dos mesmos26.
A incapacidade da poltica e da cincia em fornecerem solues para a resoluo
dos riscos insere-se num contexto de paralisia institucional das esferas poltica e
cientfica. Algo que Beck vai designar como irresponsabilidade organizada27, ou seja,
a evocao da inadequao dos instrumentos e estratgias das instituies dominantes
para gerirem os riscos de origem tecnocientfica.
Na Sociedade de Risco, a confiana ilimitada na infalibilidade do trabalho
cientfico um facto constantemente posto em causa. No nos pretendemos deter muito
por agora neste ponto, dado que ele ir constituir objecto de uma anlise mais detalhada
numa fase mais adiantada da nossa investigao.
Alm de instaurar um clima de discusso e crtica sob os mtodos e propsitos
do trabalho cientfico, a era contempornea caracteriza-se tambm pela crescente
emergncia de um nvel de conscincia e sensibilidade sociais face aos assuntos
relacionados com os riscos como nenhum outro momento anterior da Modernidade viu
surgir. Beck afirma que h uma coincidncia entre o despertar da conscincia social face
s ameaas da cincia e a crtica que lhe exercida28.
O despertar da conscincia social face aos riscos amplia o espao de debate
sobre os mesmos. A cincia que, atravs de peritos cientficos e governamentais,
detinha at a o monoplio da definio e discusso sobre os riscos v-se obrigada a
partilhar a informao que possui sobre eles.
Este facto vai gerar uma lgica de conflito entre duas racionalidades e discursos
distintos na abordagem ao risco: a racionalidade cientfica, erigida com base nos
discursos tcnicos de anlise do risco e a racionalidade social, com incidncia nas
avaliaes culturais que surgem no decorrer da experincia quotidiana29.

26

However, in the mid to late twentieth century the legitimacy of the calculus of risk becomes
threatened by the generation of unmanageable risks which began to outstrip prevailing methods of
calculation and liability. Mythen, op.cit., p.57.
27
[] the institutions involved and affected do not merely dispose of highly effective instruments and
strategies for normalizing industrial self-jeopardization. Beck, Ecological Politics in an Age of Risk, p.
58. A incapacidade das instituies polticas na abordagem conveniente gesto dos riscos o tema
principal desenvolvido pelo nosso autor nesta obra.
28
The history of the growing consciousness and social recognition of risks coincides with the history of
the demystification of the sciences. Beck, Risk Society, p.59. O itlico do autor.
29
Scientific rationality refers to dominant technical discourses utilised by scientific experts. Conversely,
social rationality stems from cultural evaluations convened through everyday lived experience. Mythen,
op. cit., p.56.

25

Enquanto a Modernidade Clssica, caracterizada pela crena inquebrantvel nas


possibilidades ilimitadas da cincia na prossecuo da prosperidade social e, isenta de
qualquer questionamento dos seus mtodos, integrava a racionalidade cientfica e a
racionalidade social sob uma mesma tnica de ausncia de conflito, a Sociedade de
Risco vai perpetuar a ciso marcada pelo antagonismo entre os peritos, que seguem as
directrizes da racionalidade cientfica e os leigos, que avaliam os riscos luz dos
conceitos e expectativas da racionalidade social30.

5. Risco ou incerteza? Um aspecto polmico no pensamento de Beck.


Neste ltimo pargrafo pretendemos dar conta de um dos aspectos do
pensamento de Beck que mais tem suscitado polmica entre os seus crticos. Referimonos utilizao abusiva e generalizada que Beck faz do conceito de risco, confundindoo, na opinio de alguns autores31, com o conceito de incerteza.
o caso de Joan Martinez-Alier. No entender deste autor, s ameaas
produzidas pela cincia e pela tecnologia no mundo contemporneo caberia melhor o
nome de incertezas do que de riscos32. Martinez-Alier afirma ainda que Beck no soube
distinguir os conceitos de risco, incerteza e ignorncia33, nomeadamente os dois
primeiros. Principalmente, devido ao conceito de probabilidade que est intimamente
associado ao conceito de risco.
O risco implica, seguindo as palavras de Martinez-Alier,
[] uma distribuio conhecida da probabilidade, ou, pelo menos, de probabilidades
subjectivamente acordadas []34,

ao passo que a incerteza se d


35

[] quando no sabemos a probabilidade de ocorrncia [de um dado perigo]

30

The risk society is distinguished by an ongoing conflict of rationality of meaning between experts
following the guidelines of scientific rationality and lay public gazing through the lens of social
rationality. Mythen, op. cit., p.57.
31
Veja-se, a este respeito, Joan Martinez-Alier, Conflitos de distribuio ecolgica num contexto de
incerteza in Razo Tempo e Tecnologia Estudos em Homenagem a Hermnio Martins e Helena Mateus
Jernimo, A peritagem cientfica perante o risco e as incertezas in Anlise Social, vol. XLI (186). A
partir deste ponto seguimos as objeces que Martinez-Alier faz a Beck.
32
Martinez Alier, op.cit., p.412.
33
Martinez-Alier, op.cit., p. 414.
34
Martinez-Alier, op.cit., p. 414.

26

Na opinio de Martinez-Alier, Beck no enfatiza a distino conceptual entre


risco e incerteza que j havia sido traada pelo economista Frank Knight nos anos
vinte36 e a sua concluso face a esta questo contundente e taxativa:
37

O risco de Beck na realidade incerteza

5.1. A multidimensionalidade do conceito de risco.


O conceito de risco tem uma natureza multidimensional no pensamento de
Beck38 e , frequentemente, utilizado com referncia a fenmenos que designam perigos
ou ameaas. Riscos, perigos e ameaas, no pensamento de Beck, designam por vezes
uma e a mesma coisa. Gabe Mythen, na sua anlise da teoria da Sociedade de Risco,
alerta-nos para a dificuldade que existe em subsumir o risco sob uma definio precisa:
A vrios ttulos, o conceito de risco est para l de uma articulao concisa39.

Em relao a este facto, que tem suscitado as maiores objeces entre os seus
pares, estamos em crer que existe por parte do prprio Beck uma recusa em limitar o
seu entendimento da categoria de risco em favor do desenvolvimento do seu
pensamento sobre o mesmo.
Devemos mesmo aduzir que a forma como ele entende o conceito de risco tem
sofrido diversas flutuaes ao longo dos anos. Se, aquando da elaborao de Risk
Society, em 1986, a compreenso do conceito de risco se fazia sob uma perspectiva
realista, em World Risk Society, treze anos depois, a abordagem ao risco efectua-se j
nos moldes do construtivismo social40.
A polissemia do conceito de risco surge-nos ento como uma das caractersticas
mais peculiares do pensamento de Beck, mas tambm, contrariamente ao que se possa

35

Martinez-Alier, op.cit., p. 414.


Frank Knight distingue risco de incerteza num contexto de clculo estatstico e de especulao bolsista
dentro da economia. Assim, para este autor, o risco seria a distribuio de resultados num grupo de casos
em que as probabilidades so calculveis e conhecidas e incerteza estaria associada a dificuldade de
clculo das probabilidades. Cf. Mythen, op. cit., p.13.
37
Martinez-Alier, op.cit., p. 414. O sublinhado nosso.
38
Mythen, op.cit., p.15.
39
In many ways, the concept of risk beyond concise articulation. Mythen, op.cit., p.15.
40
Mythen, op.cit., p.188, nota 3 do Captulo I.
36

27

pensar, como uma das chaves que nos permite articular as linhas mestras do seu
pensamento e aceder s implicaes da Sociedade de Risco.
Segundo Mythen, uma tentativa de restringir as diversas acepes do risco seria
infrutfera porque iria apartar-nos da compreenso no s da tese, bem como do prprio
esprito da Sociedade de Risco41.
Chegados que estamos ao fim deste primeiro captulo, onde tramos um
panorama geral das caractersticas do risco bem como das questes mais importantes
que lhe esto associadas, altura de nos debruarmos mais de perto sobre as suas
origens. Recuemos ento ao que denominaremos como o projecto tecnocientfico da
Modernidade.

41

[] restricting our understanding of risk is contrary to the usage and the spirit of risk in risk
society thesis. Mythen, op.cit., p.15.

28

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