Sociedade de Risco
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RESUMO
Diante do atual cenário de crise ambiental destaca-se a Teoria da Sociedade de risco de Ulrich
Beck que trata dos novíssimos riscos ambientais típicos da pós-modernidade. Neste contexto,
a presente pesquisa busca tecer uma abordagem transdisciplinar referente aos contornos da
sociedade qualificada pelo risco bem como busca discutir os desafios do Direito Ambiental
nesta atual conjuntura. Com isso, percebeu-se a insuficiência da ciência em gerir tais riscos e
a transdisciplinaridade surge como exigência na gestão dos riscos pelo Direito Ambiental. A
metodologia utilizada no estudo trata-se de pesquisa bibliográfica e qualitativa.
THE RISK SOCIETY IN THE VIEW OF ULRICH BECK AND ITS CONNECTIONS
WITH LAW AND THE ENVIRONMENT
ABSTRACT
Faced with the current scenario of environmental crisis, Ulrich Beck's Risk Society Theory
stands out, dealing with the brand new environmental risks typical of modernity. In this
context, the present research seeks to weave a transdisciplinary approach referring to the
outlines of society qualified by risk as well as seeking to discuss the challenges of
Environmental Law in this current conjuncture. With this, it was noticed the insufficiency of
science to manage such risks and transdisciplinarity emerges as a requirement in risk
management by Environmental Law. The methodology used in the study is bibliographic and
qualitative research.
1. Introdução
O marco teórico norteador das reflexões propostas neste estudo pauta-se na teoria
social sobre o risco desenvolvida por Ulrich Beck. Esse sociólogo se destacou na Sociologia
Ambiental ao abordar os riscos ecológicos na sociedade contemporânea questionando as
instituições modernas e o papel da ciência frente à complexidade ambiental.
1
Mestre em Direito Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da UEA. Pós- graduada
em Direito Penal e Processo Penal. Advogada. E-mail: celcymalcher@hotmail.com
2
Embora este trabalho eleja a perspectiva construtivista de Ulrich Beck para explicar a sociedade de risco,
existem outras abordagens sociais que relacionam o risco e as questões ambientais, são elas: (1) a análise
culturalista de Mary Douglas e Aeron Wildavski; (2) a abordagem sistêmica de Niklas Luhmann e; (3) a
interpretação fenomenológica de Anthony Giddens (MATTEDI, 2002, p. 129-151).
Durante a década de 80, Ulrich Beck tece suas proposições teóricas a partir do exame
sobre a mudança ocorrida no interior da própria modernidade ao passar da sociedade
industrial clássica do século XIX (Primeira Modernidade ou modernidade simples) para a
sociedade de risco do século XXI (Segunda Modernidade). A primeira, que havia dissolvido a
sociedade agrária estamental que a antecedia, agora é dissolvida pela atual modernidade
marcando com isso um processo de mutação. (BECK, 2011, p. 12-13).
Esta nova configuração da modernidade do XXI marcada pelo intenso avanço
tecnológico e dos processos produtivos faz surgir riscos (ambientais, sociais, políticos,
econômicos, etc.) imprevisíveis que fogem ao controle das instituições e designa uma nova
etapa dentro da modernidade em que as ameaças estão a revela-se como fruto indesejado da
sociedade industrial que “(...) levanta a questão da autolimitação daquele desenvolvimento,
assim como da tarefa de predeterminar os padrões (...) atingidos até aquele momento, levando
em conta as ameaças potenciais.” (BECK, 1997, p. 17).
Beck ao analisar as transformações ocorridas na sociedade industrial verifica que o
dinamismo desta destrói seus próprios fundamentos fazendo surgir uma nova sociedade (a de
risco). A esta fase em que um tipo de modernização transforma outro tipo é chamada de
modernização reflexiva que se refere “a possibilidade de uma (auto) destruição criativa de
toda uma época: a da sociedade industrial. O sujeito da autodestruição criativa não é a
revolução, nem a crise, mas a vitória da modernização ocidental” (BECK, 1997, p. 13).
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O conceito de modernização adotado pelo autor de forma generalizante significa “o salto tecnológico de
racionalização e a transformação do trabalho e da organização” englobando, além disso, mudanças sociais e de
estruturas de poder e controle (BECK, 2011, p. 23).
A sociedade industrial se despede da história não por meio de uma revolução ou outro
fato de caráter político, mas em silenciosa normalidade contrariando o mito de que tal
sociedade significava o ápice da modernidade com suas formas de vida, trabalho, democracia
e progresso científico, etc., ou seja, contraria a ideia de que a história social teria alcançado
uma sociedade completamente moderna. (BECK, 2011, p. 13-14).
A hipótese levantada por Beck é de que a incerteza produzida pela sociedade industrial
não resulta necessariamente na instalação do caos e na ocorrência da catástrofe. Pode haver
nessa “incerteza incalculável” uma oportunidade para novo, e neste sentido pergunta: “existe
também uma função esclarecedora nos riscos globais? E que forma ela assumiria?” (BECK,
2010, p. 361).
Sustenta Beck que a consciência dos riscos globais cria novas oportunidades para
“futuros alternativos, modernidades alternativas” onde as barreiras de interesses e conflitos
nacionais devem ser rompidas. Isto deriva do fato de que um dos efeitos desses riscos é a
“criação de um mundo comum”, embora essa ideia não soe muito atrativa aos mais egoístas
ou àqueles que têm a ilusão de criar seu “mundinho” longe dos riscos. Todos partilham o
mesmo mundo e disso não se tem como fugir (BECK, 2010, p. 364).
Além da projeção no tempo e da capacidade de controle, os novos riscos ainda tem a
capacidade de abrangência incalculável quanto ao número de pessoas afetadas conforme
comenta Bahia (2012, p. 59) “(...) os novos riscos, em virtude de sua indeterminação e
dificuldade de avaliação científica, são passíveis apenas de uma “avaliação probabilística” e
têm a potencialidade de atingir um número indeterminado de pessoas”.
Para Giddens, assim como para Beck, no decorrer da modernidade existe dentro dela
uma transformação: a primeira é chamada de modernização simples marcada pela produção
de riscos calculáveis pela sociedade industrial. A segunda, cunhada de alta modernidade,
refere-se ao período moderno em que há a produção de uma classe avançada de riscos
caracterizados por serem imprevisíveis em toda sua extensão e que levam a um estado de
insegurança social.
Giddens ao tratar sobre os riscos peculiares da sociedade hodierna, assim os define:
A ideia de risco4 sempre esteve atrelada a modernidade, mas atualmente toma novos
contornos. Para demostrar tal afirmação, estabelece a diferença entre dois tipos de riscos: o
externo e o fabricado. O primeiro refere-se às externalidades como a natureza. Já o risco
fabricado diz respeito ao risco criado como resultado da ação humana a partir de seu
conhecimento sobre o mundo e cujos níveis são cada vez mais incertos. Estes por serem
imprevisíveis envolvem situações sobre as quais pouco ou nada se sabe, como por exemplo,
as reais consequências das mudanças climáticas do planeta (GIDDENS, 2007, p. 37-38).
Os riscos fabricados criam muitas vezes um clima político de alarmismo x
acobertamento. Quando há a descoberta de um risco por parte de uma autoridade política ou
científica e existe o interesse em divulga-lo para o público, faz-se um estardalhaço se preciso
for. Mas quando se conclui que não passavam de um alarme falso os anunciantes são taxados
de alarmistas. Já quando não existe interesse em divulgar tais riscos e estes mais tarde vêm à
tona diz-se que houve um acobertamento de situações que deveriam ter sido divulgadas
podendo eventualmente ser evita-los. Como exemplo, expõe Giddens (2007, p. 39):
4
Segundo o autor a noção de risco ainda não existia para as grandes civilizações anteriores ao período moderno
uma vez que os acontecimentos estavam ligados à ideia de destino, sorte ou vontade divina. Embora este
pensamento ainda exista na atualidade é tido geralmente como superstições e não como explicação aceitável para
certos eventos, diferente, portanto, do risco que marca a dinâmica da modernidade contemporânea. (GIDDENS,
2007, p. 34).
Suponha, contudo que as autoridades avaliem inicialmente que um risco não é muito
grande, como o fez o governo britânico no caso da carne bovina contaminada. Nesse
caso, o governo começou a declarar: temos o respaldo de cientistas aqui: não há
risco significativo e quem quiser pode continuar a comer carne bovina sem nenhum
temor. Em situações como essa, se os acontecimentos tomam um rumo diferente –
como de fato tomaram – as autoridades são acusadas de acobertamento – como
realmente foram.
A ciência perdeu boa parte da aura de autoridade que um dia possuiu. De certa
forma, isso provavelmente é resultado da desilusão com os benefícios que,
associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade [...]. Mas a ciência
pode - e na verdade deve – ser encarada como problemática nos termos de suas
próprias premissas. O princípio “nada é sagrado” é em si um princípio
universalizado, que não isenta nem a aclamada autoridade da ciência (GIDDENS,
1997. p. 109).
Sobre a nova natureza dos riscos e sobre os questionamentos que envolvem a própria
ciência comenta Bahia (2012, p. 58):
(...) nenhuma instituição encontra-se preparada para lidar com o pior acidente
possível e diversos especialistas voltam-se para a única possibilidade que lhes resta:
negar a existência dos riscos. Assim, o dogma da infalibilidade da ciência termina
sendo desmascarado a cada novo acidente e a estabilidade política das sociedades de
risco passa a depender do “não pensar nas coisas”.
Para Giddens o conceito de sociedade de risco abarcaria mais do que apenas novos
riscos e perigos a humanidade, mas refere-se também “[...] a novas relações entre sistemas de
conhecimento leigos e peritos, num contexto em que a estimação dos riscos é, em grande
parte, imponderável” (GUIVANTE, 1998, p. 21).
Diante da insuficiência da Ciência para a compreensão dos novos riscos, a confiança
nas respostas dos peritos e especialistas para enfrentar a conflitualidade dos novos espaços
poluentes atmosféricos que atacam a camada de ozônio, derretendo parte das calotas
polares e inundando vastas áreas; a destruição de grandes áreas de floresta tropical
que são uma fonte básica de oxigênio renovável; e a exaustão de milhões de áreas de
terra fértil como resultado do uso intensivo de fertilizantes artificiais. (GIDDENS,
1991, p. 114)
Assim, a sociedade de risco descrita por Beck e Giddens inaugura uma nova da
modernidade em que é necessário conviver com uma nova qualidade de riscos que colocam o
planeta em estado de alerta, onde o clima de insegurança é verificado especialmente diante da
complexidade da problemática ambiental que requer, por sua vez, uma reflexão sobre as bases
do Direito Ambiental e seu papel neste contexto, conforme se verá a seguir.
Diante de uma sociedade qualificada pelo risco onde os efeitos tecnológicos tomam a
forma de acontecimentos naturais de grande vulto e capacidade de proliferação pelo mundo,
percebe-se a insuficiência do conhecimento científico em gerir tais riscos ecológicos e em
consequência questiona-se a capacidade regulatória do Direito Ambiental para tratar tais
situações, conforme atenta Viegas (2007, p. 66) “Todo o conjunto de normas jurídicas, das
quais se esperam respostas para a chamada “crise ambiental”, passa a ser objeto de reflexão:
também o Direito Ambiental é questão para o próprio Direito Ambiental”.
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No original: “El concepto de „irresponsabilidad organizada” indica el movimiento circular entre la
normalización simbólica y las permanentes amenazas y destrucción materiales. La administración del Estado, la
política, la gestión industrial y la investigación negocian criterios que determinan que ha de considerarse
„racional y seguro‟: con el resultado de que el agujero en la capa de ozono aumenta, las alergias se extienden
massivamente, etcétera”.
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Este termo refere-se ao poder de decisão dos grandes conglomerados industriais e seus grandes impactos sobre
o meio ambiente como, por exemplos, a contaminação de recursos hídricos por poluição industrial histórica de
complexos industriais de difícil identificação; falhas nos sistemas de controle de segurança de usinas nucleares e
indústrias químicas, entre outros (AYALA, 2011, p. 21).
Segundo Beck, esta visão dogmática da ciência está errada. A racionalidade técnico-
científica “satisfeita consigo mesma” e ao mesmo tempo “embaraçada da sua crença no
progresso” está equivocada sobre o que considera “irracionalidade” da percepção popular dos
riscos e mais: deveria considerá-la e averiguá-la como base de seu estudo. Assim, segundo o
autor, as ciências não estão preparadas para os crescentes riscos e ressalta ainda o fato de que
estas tem grande parcela de culpa no surgimento e proliferação de tais riscos. As ciências,
neste aspecto, são consideradas “as madrinhas legitimadoras de uma poluição e contaminação
industrial em escala mundial do ar, da água, dos alimentos etc., assim como da decriptação
generalizada com ela associada e da morte de plantas, animais e seres humanos” (BECK,
2011, p.71).
Diante disso, o Direito ambiental tem em vista novos problemas que exigem certas
modificações no tocante:
(a) a forma de identificação dos novos conflitos que qualificam a proteção jurídica a
do ambiente nas sociedades de risco; (b) a forma de compreensão e entendimento
prático e comum dessas novas relações por todos os cidadãos; e (c) o modo pelo
qual são definidas as opções, e pelo qual são orientados os julgamentos das
alternativas possíveis para a tomada de decisões a partir de problemas de risco.
(AYALA, 2011, p. 21)
(...) para conhecer, não podemos isolar uma palavra, uma informação; é necessário
ligá-la a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura, para chegar a um
conhecimento apropriado e oportuno da mesma. (...) Ora, hoje vivemos uma época
de mundialização, todos os nossos grandes problemas deixaram de ser particulares
para se tonar mundiais: o da energia e, em especial, o da bomba atômica, da
disseminação nuclear, da ecologia, que é o da nossa biosfera, o dos vírus, como a
Aids, imediatamente se mundializam. Todos os problemas se situam em um nível
global e, por isso, devemos mobilizar a nossa atitude não só para os contextualizar,
mas ainda para os mundializar, para os globalizar (MORIN, s/d, p. 02-03).
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O saber ambiental é assim definido por Leff (2001, p. 168): “é afim com a incerteza e a desordem, com o
campo do inédito, do virtual e dos futuros possíveis, incorporando a pluralidade axiológica e a diversidade
cultural na formação do conhecimento e na transformação da realidade”.
5. Conclusões
Diante de todas as considerações aqui trazidas, pode-se concluir que dentre dos
diversos efeitos negativos à que estão expostas as sociedades contemporâneas, os resultantes
da crise ambiental ganham especial destaque uma vez que afetam o cotidiano de todos ao
redor do mundo: os riscos ecológicos transcendem fronteiras e cruzam diferentes ambientes e
culturas.
Percebeu-se que diante da sociedade de risco diversos são os obstáculos encontrados
pelo Direito Ambiental e isto fica evidente pelas demandas ambientais cada vez mais inéditas
e carentes de respostas à altura da natureza dos novíssimos riscos globais. Essa complexidade
ambiental aliada à ausência de políticas de gestão dos riscos típica da irresponsabilidade
organizada colocam o Direito e suas formas tradicionais de lidar com o dano em situação
delicada e aponta para um novo paradigma.
O pensamento cartesiano que predominou na modernidade encontra-se em crise. As
respostas absolutas, cujo rigor científico era baseado em quantificações e redução da
complexidade, já não são mais buscadas. Embora essa visão não tenha sido abolida de todo,
na sociedade atual de risco uma concepção sistêmica do conhecimento científico tem se
mostrado mais adequada.
Um exemplo típico da insuficiência do modelo cartesiano está no trato do meio
ambiente. As múltiplas dimensões (físicas, sociais, éticas, morais, econômicas, jurídicas, etc.)
da natureza requerem um modo de pensar global no processo de compreensão da realidade.
Neste sentido, a racionalidade que despreza valores subjetivos como a espiritualidade e os
sentimentos, por exemplo, não resultará em um conhecimento pertinente sobre o bem em
questão.
O paradigma emergente pautado na visão holística, na abordagem sistêmica e na
interdisciplinaridade tem seus reflexos na área jurídica e mais especificamente no Direito
Ambiental. Com efeito, esta mudança trouxe a incorporação de uma nova hermenêutica sobre
a juridicidade do dano ambiental e deu novas funções à responsabilidade civil através da
observância de princípios estruturantes como o da dignidade da pessoa humana, a proteção da
sadia qualidade de vida e a reparação integral do meio ambiente.
REFERÊNCIAS
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Heline Silvini Ferreira; Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira. (orgs.). Dano ambiental na
sociedade de risco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 55- 80.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião
Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
_____. Diálogo com Ulrich Beck. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad.
Bruno Simôes. São Paulo, 2010, p. 361- 376. Entrevista.
_____. La Sociedad del Riesgo. Segunda Edición. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo
XXI, 2006.
LEITE, José Rubens Morato, AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: do individual
ao coletivo extrapatrimonial. 7. ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015.
______, José Rubens Morato, BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Dano ambiental na
sociedade de risco: uma visão introdutória. In: Heline Silvini Ferreira; Maria Leonor Paes
Cavalcanti Ferreira. (orgs.). Dano ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 13-54.
VIEGAS, Thaís Emília de Sousa. Do silêncio à crise: Uma perspectiva do Direito Ambiental
a partir da Teoria da Sociedade de Risco. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade
Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007. Disponível em:
<www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33917-44602-1-PB.pdf.>. Acesso em: 10
de março 2021.