Entrevista Lelia Mnu
Entrevista Lelia Mnu
Entrevista Lelia Mnu
^^
JORflfiU
JORNAL NACIONAL DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO
A magia do
Reggae: da
ao
Entrevistas
com Llia
Gonzalez
e Bryan
Stevenson
Bob
Marley:
o mito como
metfora
A cor da
Pena
de Morte
JORHOL
Cartas
Agradeo jornal e aproveito a oportunidade para retribuir com material transcrito
na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul sobre os ltimos episdios de flagrante discriminao racial.
Parabns pelo peridico do Movimento Negro
Unificado!
Flvio Koutzii Dep. Estadual, lder do PT
na Assembleia Legislativa do RS.
arquivo
Casa do Olodum
Projeto:
Arquileto: Una Bo Bardi
Colab, Arqts,;
Marcelo Ferraz
Marcelo Suzuki
Execuo:
Prefeitura Municipal do Salvador
Fundao Gregrio de Mattos
DO OLODUM
CONVITE
t
iiimvi
fotogrfico
Criao e Arte;
F inarfao Casa
EXU Pmoues
Ccftnpostao
(" g
FotoWo e Impres
jORrtnu
Editorial
A situao de calamidade que
o pas atravessa no pode
ser vista apenas como resultado das polticas adotadas no
governo Collor, pois tambm fruto de sculos do desprezo com que
as elites, brancas, sempre trataram
a sociedade brasileira.
Ao eleger o combate inflao
como ponto bsico de sua poltica
econmica, o governo criou condies para que os problemas estruturais fossem secundarizados,
abrindo brechas para a completa
deteriorao das condies de vida
do povo brasileiro.
A escola pblica faliu, os servios de sade esto em fase terminal, e no se tem notcias sobre investimentos significativos para o
transporte coletivo, as habitaes
populares e o saneamento. Em emprego j no se fala, pois a inflao
tem que baixar s custas da recesso. Somado ao desemprego crnico, que atinge especialmente os trabalhadores negros, est aquele produzido pelas crescentes demisses
por parte das grandes e mdias empresas.
No caso das grandes empresas,
nacionais ou multinacionais, preciso no perder de vista que a dispensa de trabalhadores no ocorre
apenas por efeito da recesso, mas
conjuga-se com a adoo de mudanas no processo de trabalho, via informatizao, que torna dispensvel a mo-de-obra menos especializada.
No h lugar para o negro como
produtor (o emprego no ser recuperado aos nveis em que ocorria
em 1980, antes da "crise ), tampouco haver lugar para o negro numa
economia onde as empresas tendero a localizar seus investimentos
onde haja um mercado consumidor
para seus produtos, acossados pelo
aumento da concorrncia internacional.
O QUE ACONTECER AO POVO NEGRO, NUMA SOCIEDADE
ONDE A EXISTNCIA DE UM
GRANDE NUMERO DE TRABALHADORES, POBRES E SEM
ESPECIALIZAO, TENDE A
TORNAR-SE DESNECESSRIA?
A resposta a esta questo est estreitamente relacionada com a ampla difuso das prticas de VIOLNCIA RACIAL, que tm no Estado seu principal avalista. Se ainda h dvidas quanto a esta afirmao, que se pense sobre a omisso do governo brasileiro na iminncia de uma epidemia de clera.
Uma epidemia capaz de eliminar,
aos milhares, exatamente os setores da populao que no mais interessam, que no tm e no tero espao nas estruturas de poder e riqueza da sociedade. Que reclamam por polticas sociais das quais
o governo quer se livrar.
Deixar entrar a clera no pas a
soluo perfeita, dentro de uma es-
JORNAL DO MNU
Ns 19, maio/junho/julho de 1991
O Jornal do MNU uma publicao do Movimento Negro Unificado. Imprensa negra autnoma, livre e independente
COMISSO NACIONAL DE IMPRENSA: Edson Cardoso (DF), Jnatas Conceio (BA), Josaf Mota (PE), Geraldo Jnior (GO), Jlio C. Oliveira (MG), Mriam Caetano (SP) e Jurema Batista (RJ)
DIAGRAMACO - HaroldoZager
COMPOSIO E IMPRESSO - BsB Brasil (061) 225-0771
FOTOS: Carlos Moura, Bel Pedrosa (Agncia Folhas), Jorrimar de Sousa
(CCN), ZUMVI Arquivo Fotogrfico Tasso Marcelo/AJB
FOTO CAPA: Carlos Moura (Modelos: Nethio e Lcia)
CARTUNS: Nethio Benguela
Correspondncia para MNU/BA - Caixa Postal 6423, CEP 40000 Salvador-Bahia
NOME
ENDEREO.
BAIRRO
CEP
. CIDADE
ESTADO
TEL
|
|
JORflfiU
BOB
MARLEY
A magia
do Reggae:
da Jamaica
ao Maranho
Magno Cruz (*)
"Que palavra mgica essa
Que veio da Jamaica
Enfeitiar o corao do Mara?"
(Binho)
Dia 23 de novembro de 1990 foi uma data memorvel para a comunidade negra de So Lus. A cidade literalmente parou para assistir o show ao ar livre de
Jimmy Cliff. Centenas de milhares de pessoas uma
multido jamais vista em tempo algum na capital maranhense se comprimiram para participar das vibraes positivas do cantor jamaicano, que, dias antes, na sua chegada Capital Brasileira do Reggae,
driblando protocolos, seguranas e regueiros que se
acotovelavam no aeroporto, pegou um txi e foi para
o Espao Aberto (clube de reggae muito frequentado).
L, pediu uma rede para deitar, e, comendo mangas,
ficou ouvindo discos de reggae que desconhecia na
prpria Jamaica. Por sinal, os Paralamas do Sucesso,
em 1989, durante sua estada em So Lus, tambm fizeram comentrios semelhantes.
"Dos alagados guetos da realidade
Uma nova identidade
Fruto da mesma opresso"
(Carlo)
Como o reggae chegou ao Maranho e se tornou elemento indissocivel da cultura do povo afromaranhense? Muitas explicaes, muitas pistas: facilidade de entrada de discos pelo corredor Caribe/Belm/So Lus; semelhana rtmica com o tambor-decrioula e bumba-meu-boi; mesma ascendncia tnica
de negros maranhenses e jamaicanos, etc. H, porm,
pesquisas tentando desvendar com mais profundidade esse fenmeno que se iniciou na dcada de setenta,
nos bailes perifricos da Ilha, onde se tocava merengues, lambadas caribenhas e canes bregas som
para curtir agarradinho, lenta ou aceleradamente,
conforme o compasso da msica. Tais clubes, frequentados maioritariamente pela populao negra,
eram alvo cotidianamente das "blitz" policiais, com
correrias, pancadarias e prises arbitrrias. Nesse
ambiente de festa e represso comearam a rolar as
primeiras "pedras" "pedra", "pedrada", "tijolada", so expresses que os regueiros usam para designar um reggae de boa qualidade.
"Nos guetos de toda cidade
O brilho da raa presente se faz"
(Tadeu de Obatal)
No finais de semana, os regueiros e regueiras capricham na indumentria, ostentam gosto refinado, elegncia, orgulho. So mecnicos, lavadores de carro,.
vigilantes, camelos, empregados da construo civil;
so empregadas domsticas, mes solteiras, estudantes, desempregados. Geralmente moram em palafitas
ou favelas; so (ou de pais) originrios da zona rural
maranhense.
Os clubes de reggae proliferam pelos bairros perifricos e caracterizam-se pelas radiolas, algumas delas chegam sofisticao de terem circuito interno de
televiso, embora o que indique o menor ou maior
Omito
como
metfora
O presente artigo tem como inteno mostrar
que a pretexto de se "cultuar" determinados
smbolos mticos, espetaculares, modernos e
afirmadores de identidades, vm se desenvolvendo,
entre os jovens negros de Salvador, relaes de sociabilidade ao tempo em que se pratica a "nova etnicidade baiana".
Em nome desses mitos se expressam relaes sociais, na forma de rituais, em dois espaos culturais
comuns pelo entretenimento: os bares reggae e o carnaval dos blocos afro.
O mito tratado aqui como algo "vivo". Neste sentido ele "fornece os modelos para a conduta humana,
conferindo, por isso mesmo, significao e valor
existncia".
Por sua vez o ritual "tem como'trao distintivo a
dramatizao, isto , a condensao de algum aspecto, elemento ou relao, colocando-o em foco, em destaque, tal como ocorre nos desfiles carnavalescos e
nas procisses onde certas figuras so individualizadas e assim adquirem um novo significado, insuspeitado anteriormente, quando eram apenas partes de situaes, relaes e contextos do quotidiano".
Embora a etnicidade comportamento politizado
de um grupo social venha a compreender as relaes sociais em discusso, na "socialidade" que se
revela toda a fora da coletividade humana. Diferente
do "social" marcado pela pragmaticidade da
poltica e da economia a "socialidade" representa
a gratuidade do coletivo; o simples prazer do encontro, sem fins utilitrios, ou sem finalidades prticas
ou ligadas estruturao social.
O que caracteriza a frequncia a bares reggae e o
carnaval dos blocos afro como ritual , entre outros
fatores, que estes acontecimentos constituem-se em
relaes sociais referentes ao prprio contexto social
global, do qual procedem.
Portanto, o nosso objetivo , embora de modo assistemtico e fragmentrio, apresentar algumas das
mltiplas relaes de sociabilidade praticadas no
contexto dos bares reggae e nos blocos afro, sob a metfora dos mitos espetaculares de Bob Marley e, por
extenso, do reggae e da crena rastafari.
Para chegarmos s nossas apreciaes colocamonos no lugar de observador e participante no contexto
scio-cultural em questo; fundamentamo-nos em algumas leituras de textos tericos de antropologia, ensaios e matrias jornalsticas. As observaes foram
feitas no bar reggae "Cravo Rastafari", localizado,
desde 1988, Rua Gregrio de Matos, no Maciel, e no
bloco afro Muzenza, sediado Rua Alvarenga Peixoto no bairro da Liberdade.
Em fins dos anos 70, a imagem do artista afrojamaicano Bob Marley e a sua msica. o reggae popularizaram-se em Salvador, estimulando um comportamento redefinidor da cultura popular dos jovens
negros da capital. Associados aos mitos recmforjados Marley e reggae aqui chegaram os
princpios gerais da doutrina redencionista rastafari.
0 sistema doutrinrio e ritualstico rastafari cr na
existncia de um deus supremo (JAH); num messias
(RASTAFARI) que conduzir o "povo negro" "terra prometida" (Africa = Etipia); faz restries a alimentos animais e ao corte dos cabelos; e a maconha
j|-r|C;
O Cravo Rastafari,
no Pelourinho
em Salvador
Interior do Cravo Rastafari em noite de reggae
(kaia, ganja, etc.) funciona como um elemento de comunicao entre o crente (rastaman) e o seu mundo
mstico. O Rastafarianismo foi teorizado pelo panafricanista jamaicano Marcus Garvey que, nos anos
20, pensava num retorno de todos os negros ao seu lugar de origem (genericamente a Africa).
O reggae surgiu nos anos 60 e evoluiu de outros ritmos afro-jaipaicanos; do ponto de vista tcnico, o
reggae se caracteriza pela forte acentuao da segunda e da quarta batida em cada compasso 4/4. Os temas das canes reggae refletem as aspiraes culturais do seu jovem publico negro da classe trabalhadora.
Em Bob Marley o contedo temtico , predominantemente, a justia e as aspiraes dos negros descendentes de escravos; lembranas da escravido, a
rebeldia da juventude negra e as crticas contra o colonialismo e o sistema ocidental (a Babilnia), etc.
Ao cantar esta temtica Marley define, a si e aos
demais negros, como pessoas singulares em busca de
um tratamento singular, mas, no por isso, diferentes
de qualquer ser humano.
Na Bahia, Marley, reggae e rastafari foram absorvidos no contexto cultural moderno, numa das formas mais expressivas da comunicao negra: o entretenimento (o lazer, a diverso,etc.). Assim, o carnaval dos blocos afro e a frequncia a bares reggae se
constituem em momentos rituais onde estes smbolos
mticos so renovados e as suas "propostas" so
comparativamente atualizadas.
"Cravo Rastafari"
Muito embora Salvador nos dias de hoje comporte alguns bares especializados em reggae e sob o
aparato espetacular que o ritmo congrega, o bar
reggae "Cravo Rastafari" se destaca, entre outras
coisas, pela notria "homogeneidade" social (trabalhadores negros) e pelo acentuado carter de espetculo que marca o seu ambiente.
O "Cravo" tem 9 sua organizao administrativa
no molde familiar. frente est Wilson, 29 anos e sete
filhos; embora at use alguns anis nos dedos (os rastas jamaicanos usam em profuso), seus trajes e atitudes distanciam-se dos esteretipos rasta local
(grias, roupas coloridas, cabelos longos, etc).
O bar teve o seu incio na rua Joo de Deus, tambm localizada no Maciel/Pelourinho. Naquele tempos (de 1981 at 1988) o tipo de msica negra executada parecia definir o grau de "politizao" do ambiente. Diz Wilson: "Tocava Obina Chok, msicas do Il,
Gil... Depois me incentivaram para o reggae conscientizao e passei a tocar as msicas que vm conscientizar a populao negra: Bob Marley, Alpha
Blondy, Jacob Miller, Peter Tosh e outros".
As mudanas de mentalidade devem-se, entre outros fatores, s influncias das lideranas negras, a
exemplo do D. J. Lino Almeida, compadre de Wilson.
O que caracteriza os bares reggae mais tradicionais
a especializao em executar, mecanicamente, msicas reggae e, como complemento, a venda de uma
infuso conhecida como "cravinho feita de cachaa, cravo da ndia, limo e mel. No "Cravo Rastafari" so adicionados, como querendo distino, beringela, gengibre e beterraba.
A decorao do "Cravo" s vezes chamado de
"bar de Wilson" feita base de posters de astros
do reggae, especialmente Bob Marley; bandeiras com
NOTA
* A "bno" ou "bena" foi abordada, do ponto de vista
Os blocos afro se constituem em modernas manifestaes culturais dos negros baianos. Dentro do esprito de confraternizao na festa, os negros expressam
suas especificidades sociais e culturais enquanto grupo distinto e inserido no contexto abrangente
da sociedade brasileira.
O bloco afro Muzenza o segundo caso, dos citados
neste artigo, onde o mito Bob Marley funciona como
um referencial capaz de sugerir uma viso polarizada
da estrutura social em que vivem seus fs. A palavra
Muzenza de origem bantu (kikongo) e denomina o
novio em Candombl Angola equivale a "ia" dos
nag.
No obstante ter sido oficialmente fundado em
maro de 1981, o bloco redefiniu a sua gnese, afetado
pelo impacto da morte de Bob Marley em maio daquele ano. Os fundadores "construram ' uma mtica que
relaciona o bloco ao contexto cultural afro-jamaicano
no que se refere aos smbolos da cultura musical moderna: Marley, reggae, Jamaica e rastafari. Na identidade mtica o Muzenza foi fundado no njs da morte
de Marley; a rua onde est sediado passou a ser conhecida como Av. Kingston equivale dizer que o
Muzenza localiza-se na prpria capital da Jamaica.
No imaginrio do grupo, seus componentes so tidos como "os verdadeiros jamaicanos" e, no raro,
algum se refere ao territrio/bloco como a Jamaica:
"Vou pra Jamaica".
Ao "criar" uma identidade mtica o bloco superou,
magistralmente, a morte de Bob Marley e com isso
fortaleceu sua prpria ideologia.
O momento "efervescente" na dramatizao do ritual ocorre quando, por ocasio do desfile, o bloco
apresenta-se frente ao palanque oficial: os componentes da "tribo" sentam-se no asfalto formando um
grande crculo, enquanto que, no centro, os componentes da ala rastafari danam, ao som do reggae da
banda Muzenza, e um deles exibe um poster de Bob
Marley. Nesses momentos o rito cumpre a sua funo
de renovador do mito e da sua "proposta" social.
Por outro lado, a organizao poltica do bloco sofre, simbolicamente, uma alterao: a ala de rastas,
antes de presena eventual no cotidiano do bloco,
passa a ter o papel fundamental de condutora de
aes rituais e mantenedora da ideologia do Muzenza.
Passa a ter, inclusive, um papel mtico particular na
dinmica do bloco. No toa que o rasta um dos
smbolos mais reivindicados no Muzenza. O componente do Muzenza, portanto, ao "assumir", simbolicamente, a identidade mtica, pode ver o quanto a vida real est distanciada da ideal e, assim, tentar
modific-la.
Os textos musicais do bloco primam por expresses
que sugerem o apocalipse: "A terra tremeu", "arrebenta Muzenza", "trovo azul", "guerrilheiros da
Jamaica", etc. Neste sentido, o bloco reflete muito
bem o contedo ideolgico do reggae. O reggae vem
proporcionando a abertura de canais simblicos entre
culturas heterogneas. A Bahia e a Jamaica esto entrelaadas no imaginrio dos amantes do reggae
por uma unio mstica, embora com veracidadede um
passado etno-histrico comum, propiciada por Bob
Marley e a sua msica. Marley vive!...
JQRnflL
Afinal, o que
civilizao branca?
O conceito de Civilizao Branca, longe de ser uma interpretao "equivocada e estreita" (ouvimos muito issol, para
ns de suma importncia para entendermos o processo de explorao do trabalho no Brasil. Sustentamos que a explorao
do trabalho est intimamente ligada desgraa espiritual,
existencial e histrica do povo negro. Para ns, nada mudou
nesses cinco sculos, contados a partir da invaso branca no
continente americano, seja no seu lado latino-ibrico, seja no
anglo-saxnico.
O Movimento Negro Unificado, por estar ciente de que o povo negro no "massa", impessoal, sem rosto, sem cor, sem
experincia histrica, procura conscientiz-lo de que a revolta
em grande escala, que sempre foi nossa caracterstica no Brasil, fundamental. Se usamos o termo Civilizao Branca, ao
invs de "classe dominante", porque estamos convictos de
que a misria brasileira, ou a riqueza, est fundamentalmente
ligada aos critrios raciais. Quem trouxe os imigrantes europeus para ocuparem as terras que por justia seriam dos negros no foi a "classe dominante", mas a Civilizao Branca,
que primeiro sentiu-se ameaada numericamente e enxergou
que a soluo era traz-los para fazer um "balanceamento";
depois porque entendia que o papel social do negro no era o
de pequeno proprietrio de terra - mas o de subempregado
faminto, esfarrapado, dilacerado em sua humanidade; anos
mais tarde, sem perspectiva, muitos foram ser subempregados dos mesmos imigrantes, que j davam sinais de enriquecimento rpido.
Se os critrios para se chegar ao Brasil na qualidade de imigrante no foram ditados pela Civilizao Branca, ento como
explicar a interceptao feita pelo governo a um navio carregado de imigrantes negros vindo dos Estados Unidos, no
inicio desse sculo?
O fato que o povo negro vive h cinco sculos sob o jugo
desse conceito feroz que o extermina fisicamente, que o enlouquece de forma explcita, que o mata pela fome, pelas doenas, que o torna vtima maior dos sucessivos "pacotes econmicos", e bucha de canho na Guerra do Paraguai. Das Capitanias Hereditrias a Fernando Collor de Mello, a Civilizao
Branca continua implacvel na sua misso de anjo da morte
do nosso povo. A clera que h cem anos dizimou milhares de
negros a mesma que hoje retorna, beira do terceiro milnio, para dizimar os descendentes daqueles que sobreviveram
sua primeira investida. Para a Civilizao Branca, resolver
o "problema negro" sempre foi torcer por uma epidemia. O fato de no ter resolvido os problemas sanitrios no pas prova
o que estamos afirmando. Problema sanitrio significa alagados, palafitas, favelas, locais onde o povo negro "reside".
Alis, quanto a essa afirmao, no sculo XIX os negros comearam a desconfiar do pouco caso que os mdicos faziam
da epidemia de clera nas senzalas e mocambos; razes para
essa desconfiana no faltavam. Se eles eram uma propriedade, igual a um porco, uma vaca, um cavalo, ento por que o
pouco caso? que nas regies Sul e Sudeste comeavam a
chegar em massa os imigrantes irlandeses (setores da Civilizao Branca j preparavam o golpe do treze de maio) para
ocupar lotes de terra ou trabalhar nas lavouras de caf. De
senzala em senzala, de mocambo em mocambo, os negros foram espalhando que o pouco caso das "autoridades" era, na
verdade, um plano sinistro para mat-los e assim resolver o
"problema negro".
Para Fernando Collor de Mello, que tem a mesma mentalidade escravista de Tom de Sousa, a clera ser sua aliada no
combate misria, mesmo porque a Civilizao Branca, da
qual ele faz parte, no ser atingida. Pena de morte, esterilizao das mulheres negras, clera... Pronto, est resolvido.
Quando afirmamos que misria e riqueza seguem risca os
critrios de raa e de cor, no estamos cometendo nenhuma
barbaridade sociolgica ou histrica. O que existe no Brasil
so realidades sociais conflitantes baseadas na secular pendncia entre negro e branco, entre Civilizao Negra e Civilizao Branca. Negar esse conflito negar a realidade do pas.
A Questo da
Esquerda Branca
Quando j estava participando ativamente da guerrilha urbana, o capito Carlos Lamarca, numa carta escrita esposa,
usou o seguinte brado guisa de despedida:
Hoje 4 de julho, aniversrio dos Estados Unidos. Viva
os Panteras Negras!
Falar de quem j morreu no bom; complicado porque algum pode alegar que no h resposta, no h defesa nem ataque. Os mortos no atacam nem se defendem quando seus
atos e palavras so julgados por quem est vivo. Por isso, longe de mim sepultar numa cova-rasa a coerncia de Carlos Lamarca, que abandonou tudo, vida estvel, famlia e promoes para combater a ditadura militar.
A questo no essa, mas outra, bem diferente. E impossvel algum imaginar o capito Carlos Lamarca fazendo
esse brado:
Hoje 7 de setembro, aniversrio do Brasil. Viva o Movimento Negro Unificado!
A experincia nos diz que no seria apenas impossvel. Seria improvvel. Se hoje, doze anos depois da criao do
M.N.U., a esquerda branca ainda nos combate, imaginem o
que ela no faria h vinte...
Ento, qual o motivo da sinipatia do capito Carlos Lamarca pelos Panteras Negras? que a esquerda branca sempre
teve admirao por movimento negro desde que ele esteja
fora do Brasil. Quanto mais radical for o movimento negro,
mais admirao provoca. Panteras Negras, Muulmanos Negros, Conscincia Negra, tudo isso vlido e justo.
curioso como Gilberto Freyre e a esquerda branca se encontram to facilmente quando o tema movimento negro no
Brasil. E curioso mas ao mesmo tempo compreensvel, pois
ela parte da Civilizao Branca que, embora rachada nos
conceitos esquerda & direita, mantm seu predomnio sobre
os povos no brancos das Amricas.
Racismo no s barrar um negro na porta de um elevador
social, bem como movimento negro no s fazer trana africana. Se hoje h setores da esquerda branca que limitam o
Os Negros e
as Tendncias
No Estado de Alagoas existe um quilombo chamado Caj
dos Negros. Segundo a tradio local, esses negros so sobreviventes do massacre que as foras coloniais fizeram em Palmares. Se isso for verdade eles esto h trs sculos neste local onde, naturalmente, a terra um bem comum, socializada.
Agora, imaginem um companheiro negro de uma dessas tendncias fazendo uma palestra em Caj dos Negros sobre a IV
Internacional ou sobre a Albnia. Por a avaliamos o grau de
distncia entre esses companheiros negros e sua prpria Histria. Sabemos que no fcil tornar-se negro, politicamente
negro; difcil tanto para um membro da Causa Operria como para um da Assembleia de Deus. Porm, fiquem certos os
companheiros dessas tendncias: entrar para um movimento
negro consequente dar um passo adiante na luta, libertarse por inteiro.
JORnfiL
Em cima desses dois casos flagrantes dentre vrios outros notria a empfia e a coragem desses
indivduos em desafiarem a carta magna que "rege"
as relaes sociais do pas a Constituio Federal,
captulo I, art. 5S, item XLII, que afirma ser o racismo um crime inafianvel. No vamos nos deter apenas na anlise legal dos fatos, mas do ponto de vista
poltico tambm, e questionar at que ponto o poder
constitucional capaz de barrar o poder racista que
ainda permeia as cabeas de muitos brasileiros, coordenando suas aes?
Esta uma resposta que s poder ser dada quando
todas as pessoas comprometidas com as transformaes estruturais deste pas, e o conjunto da classe
oprimida, despertarem das suas iluses democrticas, e comearem a ocupar os espaos que ainda esto
sob o domnio do poder racista. Pois o poder racista
que decide se tem de atirar ou matar, ou no tem de
atirar em absoluto; se tem de prender ou no, se tem
que romper piquetes ou no, o poder racista que decide quem pode comer e viver com a ajuda do Estado
quando perde o emprego, e quem no pode comer nem
receber esta ajuda; quem pode utilizar os meios de
transporte e quem no pode; onde se recolhem os restos e onde no; quais as ruas que tm iluminao e
bons passeios; e aqueles que no necessitam nem de
uma coisa nem de outra; quais os bairros que se reconstroem e quem poder viver neles. E o poder racista que resolve qual o cidado a ser chamado para
incorporar-se ao exrcito, e contra que pases vai lutar o exrcito e em que momento.
O que se coloca na ordem do dia a contradio entre a ideologia da "democracia racial" e a prtica autoritria, que culmina na violncia racial.
Como bem demonstra Clvis Moura em seu livro
"BRASIL: As Razes do Protesto Negro", o discurso
liberal, por incrvel que parea, o suporte da poltica discriminatria, racista, violentamente preconceituosa que caracteriza a sociedade brasileira. Quando
se afirma que somos uma democracia racial, joga-se
ao mesmo tempo, sobre o segmento negro explorado e
discrinado, a culpa da sua situao atual no sistema
de estratificao de classe. Porque se h iguais oportunidades para todos, o negro no se encontra no cume da pirmide porque no quer: dissipa seu tempo
no samba, na maconha e no lcool. A igualdade perante a lei desse discurso justifica a desigualdade social real em que o negro brasileiro se encontra. O formalismo jurdico, a concepo formalista do processo
de interao social, determina, em ltima instncia,
que esse discurso liberal absolva os racistas.
Sem sombra de dvidas, a questo central, que deve nortear o Movimento Negro em sua luta contra a
discriminao racial, e contra o "poder racista" est
na sua capacidade de mobilizao e ao, juntamente
com todos os setores organizados da sociedade. Com
uma militncia que desencadeie dentro de um processo irreversvel a conquista das conscincias, da verdadeira sociedade igualitria, que possibilite a participao efetiva no poder para que se possa de fato melhorar as condies de vida do povo negro, que foi jogado s margens da sociedade como sendo o exrcito
de reserva disposio do capitalismo selvagem. Para levarmos isso a bom termo, tero de ser levados em
conta quatro pressupostos bsicos: utopia, vontade
poltica, audcia e conscincia de mudar.
do primitivismo na execuo
primria, sem qualquer defesa, de indivduos socialmente
marginalizados.
Com efeito, num caso a populao desencadeia um processo de ao-reao, que s
encontra espao pela "ausncia" do Estado; noutro, agentes do Estado assumem postura ativa e promovem a chacina.
Como vemos, a condenao
morte j realidade no B: isil
para os negros discriminados.
Assim, evidente a "collorao" da proposta de legalizao da pena de morte, quando
o que se deveria fazer formular projetos que efetivamente
pusessem fim acintosa concentrao de riquezas em pouqussimas mos; que retirassem das ruas, para alimentar e
educar, os 25 milhes de crianas abandonadas; que construssem moradias para as milhares de famlias sem-teto.
No entanto, em vez de enfrentar os grandes desafios
que possam ns levar a uma vida digna e justa, quer o deputado Amaral Netto impor a escolha sobre como deve o Estado, oficialmente, matar os seus
cidados; se por enforcamento,
fuzilamento, cadeira eltrica.
Para os inimigos da vida, tais
formas so apenas "detalhes".
E lamentvel.
VERA LCIA
ARAJO-MNU/DF
JORflfiL.
D ENTREVISTA
LELIA GONZALEZ
Jornal do MNU Llia, em que o Movimento Negro
tem contribudo para a cidadania do negro brasileiro?
Gostaramos que voc fizesse um balano do movimento, dos anos setenta at aqui.
Llia Gonzalez Eu acho que a contribuio foi
muito positiva, no sentido de que ns conseguimos sensibilizar a sociedade como um todo, levamos a questo
negra para o conjunto da sociedade brasileira, especialmente na rea do poder poltico e nas reas relativas questo cultural. E a a nossa contribuio muito mais nossa, digamos assim, produto dessa criatividade que marca a comunidade negra. Estou pensando
em termos de Bahia, fundamentalmente, porque eu
acho que a Bahia um grande fulcro nesse sentido da
emergncia da identidade a partir do cultural. A Bahia,
como diria o Gil, deu a rgua e o compasso. E estou
pensando, especificamente, nos afoxs e blocos afros
pelo papel que eles tm tido de levar essa conscientizao para dentro da comunidade negra, embora levem
tambm para fora. Eu vejo como meus alunos brancos
esto atentos para a questo da Bahia, dos blocos
afros, do reggae. Eles vm aqui aprender alguma coisa.
Em termos da comunidade mesmo, acho que necessrio aprofundarmos muito. Aqui em Salvador a gente
percebe como isso rola tranquilo. Uma tranquilidade
que a gente sente at mesmo na postura fsica do negro
na Bahia. Uma coisa muito interessante de a gente observar e tem a ver com um mnimo de conscincia de
suas razps, de suas origens culturais. Tanto que o pessoal diz que os negros da Bahia so bonitos. Quando as
pessoas dizem isto, no percebem que elas esto se sensibilizando por uma postura de algum que sabe que
ele ele mesmo e no um outro, aquele outro determinado pelo poder branco. E nisso, efetivamente, os blocos afros tiveram uma contribuio assim extraordinariamente fundamental, a ponto de sensibilizarem grandes estrelas da msica popular, que no podem deixar
de falar nesses blocos afros. Inclusive, a articulao do
Olodum com Paul Simon, muito interessante tambm
porque levar mais adiante, como aconteceu com o reggae de Bob Marley. Me recordo uma vez que eu estava
numa biboca do Senegal, uma birosquinha numa rea
perifrica, e havia l uma caixinha cheia de discos. O
cara vendia tudo ali na loja, gato, sapato, no sei que
mais... e Bob Marley. E voc fica pensando at onde
ele chegou e marcou. Nesse lado cultural a acho que
ns sempre fomos vitoriosos, a verdade essa. Agora,
no que diz respeito s questes poltico-ideolgicas, a
coisa sria, a meu ver. O que a gente percebe que o
MNU futucou a comunidade negra no sentido de ela dizer tambm qual a dela, podendo at nem concordar
com o MNU. Hoje a gente verifica que pintou uma certa autonomia no que diz respeito a algumas entidades
a pelo Brasil, que articulam reas de ao que no so,
especificamente, aquelas que ficam numa poltica abstrata, genrica, mas reas de ao no sentido concreto,
dentro da comunidade, dentro das propostas e das exigncias desta comunidade. Para dar um exemplo interessante, me recordo do momento da Constituinte, em
Braslia, quando eu atuava enquanto mulher negra
dentro do movimento de mulheres, no Conselho Nacional. Havia uma passagem de informaes, porque o
Movimento Negro estava reunido l para fazer suas
propostas aos constituintes. E eu me recordo que, de
repente, chegou uma mulher dizendo assim: "Olha, o
Movimento Negro est reunido levantando uma questo incrvel, a questo do crime inafianvel com relao discriminao racial, a gente tem que trazer isso
tambm para ns". Esse tipo de troca, de contribuio,
que para mim era uma coisa abstrata que eu lia nas histrias, por exemplo, do Movimento de Mulheres, do
Movimento Negro e do Movimento de Homossexuais
nos EUA. E eu verificava uma anterioridade do Movimento Negro na colocao de uma srie de questes para o Movimento Feminista que, por sua vez, passou para o Movimento Homossexual e, de repente, voc constata isso a partir de sua experincia concreta. Eu acho
que isso significa um avano do Movimento Negro,
uma contribuio extremamente positiva. Quer dizer,
ns deixamos de ser invisveis, a verdade essa. No
d mais para se ficar escamoteando a questo das relaes raciais no Brasil, pois ns estamos a, de uma forma ou de outra.
Jornal do MNU Ns estamos a dez anos do sculo
XXI, com uma populao negra em sua maioria analfa-
beta ou semi-analfabeta, sem preparo profissional nenhum. Quais seriam as tarefas mais importantes do
Movimento Negro para a prxima dcada, j de olho no
sculo da automatizao?
Llia Gonzalez Na Africa, num desses Congressos
em que estive, essa questo pintou, levantada por um
companheiro do Movimento Negro dos EUA. A grande
questo levantada foi esta: "Ns estamos aqui falando
do passado, de glrias ou de derrotas, mas como que
estamos nos colocando em termos de perspectivas, em
termos de futuro? O ano 2000 est a, o mundo se automatiza cada vez mais e ns?". Exatamente a mesma
questo que voc est fazendo agora. Essa preocupao est no ar e quem est pensando a questo do negro
est pensando nela tambm. Ento me parece que a
questo passa por a, ns temos que estabelecer tarefas
dentro de um campo concreto e rapidinho desenvolver
uma militncia muito ativa junto s prprias comunidades negras espalhadas pelo Brasil. Porque no estamos mais naquele tempo (claro, quando for necessrio,
tudo bem) de s ficar fazendo manifestaozinha de
rua, no. Temos que nos voltar para dentro do quilombo e nos organizarmos melhor no sentido de dar um
instrumental para esses que vo chegar e vo continuar o nosso trabalho. Veja que isso muito srio, em
termos de nossa comunidade, essa ausncia de instrumental que lhe possibilite se colocar em p de igualdade com as populaes no-negras, que tm um acesso
extraordinrio informao. Voc percebe isso nas pequenas coisas, como esses videogames da vida. As nossas crianas nem sabem o que isso, porque elas esto
nas ruas, sem escola, vendendo balas. Me parece que a
tarefa passa por a, por essa viso prospectiva, pelo estabelecimento de campos nesse sentido a. Hoje a militncia se diversifica, e ela obrigada a se diversificar
em face dos terrveis problemas que ns temos pela
frente. O pessoal da rea de informtica d cursos para
o pessoal que no conhece, senta e conversa, mostra
como que . Assim voc instrumentaliza, por exemplo, o pessoal que vai trabalhar na rea de educao.
Recordo-me de um papo com Darcy Ribeiro, ele dizendo justamente essa coisa. Eu estava defendendo a oralidade, a cultura oral. E ele dizia que achava vlido o
que eu estava dizendo, mas que no era suficiente. Porque se no souber ler, dana. arrancado da chamada
civilizao, no tem espao e vai ser aquele tipo de
massa annima que a gente v nos romances de fico
cientfica, no verdade? Acho que o Movimento Negro tem que pensar seriamente nessa questo. E veja
que uma de nossas grandes bandeiras, sempre levantamos a questo da educao. Agora acho que ns no
a implementamos devidamente, a gente falava muito
mas no desenvolvemos trabalhos concretos nesse sentido. E temos que partir para isso urgentemente, ontem.
Jornal do MNU A tarefa muito grande, rdua e o
sistema no est interessado. Como que o Movimento
Negro se articula, e com quem, para que esta tarefa
mnima que alfabetizar o povo se concretize. O fato
de termos hoje governadores negros teria alguma influncia, ainda que no tivessem sido eleito por voto
negro explcito?
Llia Gonzalez A questo dos governadores negros muito importante. Eles tm um mnimo de poder
para desenvolver esse tipo de tarefa, no h dvida.
Eu acho que o Movimento Negro tem que estar junto
desses caras, tem que pressionar. Eles no podem somente ficar l dizendo: "Olha, sou o primeiro governador negro eleito". importante que eles percebam a tarefa, a exigncia tica que eles tm com relao a sua
comunidade. E se uma exigncia tica, tem que ser
poltica tambm, porque as duas coisas se articulam.
Jornal do MNU Existem hoje no pas algumas
centenas de entidades negras. Pulverizamos ideias por
esse Brasil afora, mas no conseguimos consolidar um
programa mnimo no s para o prprio movimento,
como para ser assumido por outros setores da sociedade. Como voc avalia isso?
Llia Gonzalez Nos faltou exatamente esse instrumento de trabalho, uma reflexo crtica muito profunda no sentido dessa articulao a. Eu acho que nos falta, eu falo isso atravs de uma vivncia e experincia
pessoal, um sentido de solidariedade enquanto movimento. A gente verifica, e isso uma questo da maior
importncia, que determinados quadros que poderiam
JORflfiU
9
locando. Agora, na prpria fala, na postura, no gesJornal do MNU Quando falamos h pouco de tica
tual, voc verificava que a questo racial era... Isso a
e Movimento Negro, Ficaram no ar algumas avaliaes
gente j discutiu muito e a experincia mais positiva" da militncia que voc poderia retomar agora para conque eu tive foi num encontro na Bolvia promovido pecluir.
lo MUDAR (Mulheres por um Desenvolvimento AlterLlia Gonzalez A questo tica no interior do Monativo), uma entidade internacional que foi criada um
vimento Negro e tambm uma outra questo que se enpouco antes do encerramento da dcada da mulher em
caixa a, a da perspectiva histrica. Uma conscincia
1985. Foi ali, pela primeira vez, que eu encontrei um tihistrica que, de repente, a gente perde, na medida em
po de eco, uma maturidade por parte do movimento, no
que nos jogamos com tal intensidade para dentro do
sentido de parar e refletir sobre as questes que a gente
movimento, pensando como nossa contribuio divicoloca enquanto mulher negra, a dimenso racial que
na e maravilhosa (e a entra a questo do narcisismo,
esta presente em tudo e voc no pode fingir que ela
que preciso tambm exorcizar), a gente acha que vai
no existe. Mas no h dvida de que existe um setor
resolver todas as questes numa vidinha que a nossa
do movimento de mulheres que est preocupado com a
vida. E acontece que o buraco muito mais embaixo.
questo racial. O feminismo, como uma feminista inEstvamos falando do que a gente pode fazer nos prglesa colocava, no ter cumprido sua proposta de muximos dez anos em termos de comunidade negra e veja
dana dos valores antigos, se ele no levar em conta a
as dificuldades que a gente tem. A perspectiva a de
questo racial. O que eu percebo que o nosso cultural
que a gente abra alguns caminhos e a gente tem que ter
nos d elemento muito fortes no sentido da nossa orgaa conscincia da nossa temporalidade, ou seja, a gente
nizao enquanto mulheres negras. Uma histria que
vem e passa, vem e passa no sentido de passar mesmo e
rolou e gera uma grande luta interna com o homem nepassa tambm a nossa experincia para quem est chegro, uma questo muito sria dentro do Movimento Negando. A que me parece que os africanos podem nos
gro, um ressentimento muito grande das mulheres diz
ensinar muito. Precisamos ter a pacincia revolucionrespeito sexualidade, porque muitos homens negros
ria para verificarmos o seguinte: olha, sabe, no queira
preferem as mulheres brancas. Isso verdade, no d
abraar o mundo com pernas e braos, porque no d
pra voc ficar escondendo o sol com a peneira. Eles injeito e, a partir da, voc tem a conscincia histrica da
ternalizaram o valor branco como supremo, como totemporalidade, do processo, o que vai te permitir ter
dos ns s que a gente est tentando sair dessa. At almuito mais tranquilidade no que diz respeito a tua ingumas lideranas dentro do Movimento Negro s transero no movimento. Voc adquire uma sabedoria.
sam com mulheres brancas e isto uma forma de reproVoc verifica sua temporalidade, seu tempo de inserduo do esquema racista, sem sombra de dvidas.
o, o que voc pode fazer, e tem a humildade de dizer:
Dentro da proposta de feminismo que a gente est teneu posso dar essa contribuio e darei com todo o caritando colocar, me parece fundamental no perder de
nho, mas eu no sou o nico, no sou o salvador da pvista a relao homem negro/mulher negra. No s a
tria. Porque entra muito a aquela viso centralista, eu
gente se olhar enquanto mulher negra, mas nos vermos
diria at fascista, de quem se acha dono da verdade.
na relao com o homem negro, e ele com a gente. PorGraas a essa viso distorcida da realidade, tem ocorque tem que ser uma coisa dinmica, sobretudo porque
rido lutas internas terrveis, cobranas absurdas. Voc
fazemos parte de uma comunidade que discriminada
exige a perfeio do seu companheiro, porque voc a
pela dimenso racial. E me parece que as respostas de
exige de voc. Voc acha que tudo tem que acontecer
parte a parte , at o momento, no so satisfatrias. De
como um milagre divino, e voc o porta-voz dessas
um lado ns temos uma postura muito machista de parcoisas divinas. E o que acontece, muitas vezes, que
te do homem negro, e eu vejo que a sua procura da muvoc sacrifica sua existncia pessoal em funo do molher branca passa por a. Pela nossa experincia histvimento e temos verificado quantos companheiros se
rica juntos (homem negro/mulher negra) a gente se coperderam no meio do caminho. Se perderam por falta
nhece muito bem, h toda uma cumplicidade no que diz
de clareza poltica, evidentemente, mas tambm porrespeito ao enfrentamento de uma srie de questes.
que se jogaram de uma forma tal que, para eles, a consMas no caso da mulher branca, ela no vivncia essa
truo de sua prpria vida era um negcio to secundexperincia da discriminao racial. Ento acontece
rio porque eles estavam apostando nica e exclusivaque, muitas vezes, os homens negros vo exercer seu
mente no movimento. E eu acho que no pode ser asmachismo junto s mulheres brancas. De certa forma,
sim, no. Voc tem que ter um equilbrio. Eu vejo meu
o homem negro atualiza sua rivalidade com o homem
prprio caso, eu fui muito assim, uma autocrtica o
branco na disputa da mulher branca. Ele tem, portanque eu estou fazendo tambm. Eu achava que tinha que
to, uma afirmao muito grande como macho e se acha
estar em todas, me jogando loucamente, e meu projeto
ento o rei da cocada branca. E a mulher negra fica jopessoal se perdeu muito, agora que eu estou catando os
gada pra escanteio. O ressentimento surge por a.
pedaos para poder seguir a minha existncia enquanAcontece que os dois so muito carentes, h uma proto pessoinha que sou. E a gente sai muito ferido e mafunda carncia de parte a parte. Na medida em que, no
chucado dessa histria toda. Porque, evidentemente,
interior do movimento, ns mulheres constatamos isseu sonho to grandioso e a realidade to... que voc
so, a coisa assume uma dimenso to forte que, muitas
sai machucado. Machucado no s porque voc invesvezes, nos leva a assumir as mesmas posturas do movitiu demais nesse tipo de projeto, mas machucado tammento feminista branco. Ns no podemos reproduzir
bm pelas porradas que os outros lhe do, no h dvimecanicamente as propostas de um movimento femidas. A questo da militncia tem que ter esse sentido e
nista ocidental judaico-cristo, etc.
a ns temos que aprender com os nossos antigos, os
Jornal do MNU Quais so essas propostas?
africanos, esse sentido da sabedoria, esse sentido de
Llia Gonzalez A questo da sexualidade tem que
saber a hora em que voc vai interferir e como voc vai
ser discutida num nvel mais amplo e no no nvel do
interferir, fora desse lance individualista. E importanorgasmo, pura e simplesmente. Estou propondo um orte distinguir o seguinte: projeto pessoal no quer dizer
gasmo muito maior, um prazer e uma felicidade muito
individualismo, no. E voc se ver na sua dignidade de
maiores. E claro que a gente necessita ter conhecimenser humano. Voc enquanto pessoa tem que buscar
to do prprio corpo, tudo bem. Mas me parece que, nescrescer, desenvolver-se tambm. Agora, no Movimento
sa relao da mulher com a sua prpria sexualidade, a
Negro, voc no vai crescer se misturar isso. Se mistugente pode cair em algumas armadilhas do tipo uma
rou, danou. Voc vira um fantico, que ningum
exaltao exagerada de nossa prpria feminilidade,
aguenta, que ningum suporta. Acho que isso fundaporque evidentemente eu no posso deixar de reconhemental e vai lhe permitir essa reflexo e ainda lhe percer que eu tenho um lado masculino tambm, como vomitir no cair na seduo da cooptao. Voc desenvolcs tm um lado feminino. Na medida em que eu exageve sua vida dignamente, seu projeto pessoal, e nesse joro a minha parte feminina, eu estou em desequilbrio,
go dialtico com o movimento voc vai ter a capacidade
embora no negue que uma das grandes coisas que
de vislumbrar o que est acontecendo em torno. Se voaconteceram no mundo nos ltimos anos foi o Movic mergulhar no movimento, voc se afoga e depois?
mento de Mulheres, quanto a isso no h dvidas. PreDepois vai acabar se suicidando, vai acabar um nihiliscisamos assumir uma posio mais equilibrada em ter,ta danado: "Sai fora, no quero mais saber de movimos dessa relao homem/mulher, por que eu no sou
mento negro, acabaram comigo". Vai embora cuidar do
mulher sozinha, eu sou mulher com um homem, e nesseu projeto individual e no pessoal, e no quer mais
sa relao que eu vou afirmar a minha mulheridade,
saber do Movimento Negro, capaz at de trair o movinuma relao de troca com o homem, se no a gente
mento. Ento me parece que esse equilbrio fundadana. E esses valores da cultura africana esto l esmental. Voc constri sua vida pessoal, voc tem a posquecidos no inconsciente da gente, e tm muito a consibilidade de ser universal, humano, de entender o totribuir no sentido do equilbrio da relao homem/mudo, de sentir esse todo dentro de voc. Ento voc no
lher. Se ns continuarmos muito ressentidas com nosse sectariza, radicaliza mas no sectariza. E para isto
sos companheiros do Movimento Negro, se eles contitem que estar muito atento. Se no vai ser a grande
nuarem buscando uma relao de possessividade e de
danada. A gente cansa, a gente morre na praia.
afirmao de seu machismo, ns, enquanto comunidade, estamos danados, a esquizofrenia j se instalou
a, tranquilamente. E ns, mulheres negras, temos que
ter uma viso muito crtica desse movimento feminisLlia Gonzalez uma militante, pesquisadora, professora, antroploga, de mritos excepcionais. Entre muitos outros trabalhos publicou Festas Populares no
ta, porque no d para ficar reproduzindo determinaBrasil llndex. 1987). Esta entrevista foi realizada, em Salvador, por Jnatas Condas prticas.
ceio da Silva e editada por Edson Cardoso.
10
Com uma programao diversificada, a I Semana
Goiana de Reao Violncia Racial marcou a opinio pblica
do Estado. "O que MNU? Como
est aquele caso de racismo? Por
que vocs no realizam algo em
nosso bairro?, so perguntas estimuladas por uma maior exposio
da entidade no difcil campo da reao efetiva violncia racial. No
se trata de apenas denunciar os vrios casos de racismo, mas de tomar atitudes concretas que contribuam para sua diminuio e futura
extino total, se possvel.
O motivo-base para a detonao
da I Semana Estadual foi o caso de
racismo envolvendo brbara tortura em delegacia policial, sofrida
por Albino de Souza, 29 anos, trabalhador braal residindo h 17
anos na segunda maior cidade do
Estado, Anpolis. Somados mais
trs casos um de discriminao
no trabalho, outro tambm de espancamento e priso ilegal e, por
fim, um de arquivamento escuso de
um processo por crime de racismo
em local de moradia, a I Semana
Goiana de Reao Violncia Racial foi fruto de um caldo de cultura
cujo ponto timo de ebulio se deu
no Congresso' Nacional do MNU,
realizado em fins de maro, no Rio
de Janeiro.
Racismo e violncia
policial
A violncia policial contra o negro no Brasil data do perodo colonial, quando as tropas portuguesas
ostensivamente armadas mantinham sob o imprio do terror todo
um povo. A herana colonial persegue a "elite" dirigente e faz com
que ela s vezes, contra seus prprios interesses de longo prazo
negue o carter "revoluciorrio"
de sua classe. Neste e em outros aspectos, o forte rano conservador
da classe impede aquele tipo de mudana segundo o qual "perdem-se
os anis mas mantm-se os dedos".
O conservadorismo brasileiro est
cada vez mais investindo num caminho que mostra no querer somente manter seus dedos e anis
como, violentamente, arrancar os
dedos dos outros, num canibalismo
social que acaba por ser autodestrutivo.
E neste contexto que ocorre o
aumento da violncia policial, antecedida por atos violentos para todos os gostos: ideolgicos, polticos, econmicos, culturais... numa
lista de agresso quase interminvel. O caso do trabalhador braal
Albino de Souza exemplar. Mantido preso durante quatro dias,
acusado injustamente de estupro
seguido de homicdio, foi colocado
no "pau-de-arara" instrumento
de tortura que consiste em uma trave na qual, pelos ps e mos, se
pendura a vtima, deixando-a
merc dos torturadores , seviciado sexualmente por meio de um pe-
JORflRL
Goianos
reagem
violncia
racial
GERALDO JNIOR
Imprensa conivente
Neste sentido, a ponta do iceberg
mais visvel at o momento surgiu
na prpria imprensa de Goinia,
onde foi publicada no Jornal Dirio
da Manh uma matria difamatria
e sem levar em conta os mnimos
preceitos da tica jornalstica. Publicada no dia 13.04.91, a "sacanagem" j comea pelo ttulo, "Araponga e Lorendi so estupradores". O apelido de "Araponga" foi
cunhado pelos prprios torturadores quando julgaram ser Albino de
Souza um criminoso. Alm disso, o
jornal adotou como verdade uma
declarao emocional de uma parente da vtima de estupro e assassinato que, sem prova alguma, afirmava que Albino era o criminoso.
O que ocorreu foi algo tristemente
comum num pas do Terceiro Mundo em direo acelerada ao Quarto;
Outras violncias
Tambm os jovens Roberto de
Sousa e Nilton da Silva, ambos
com 20 anos, sofreram violncia policial. Ficaram presos ilegalmente
por quatro horas vtimas de espan-
Reagindo violncia
A exemplo das demais vtimas,
Maria Eullia Ferreira no deixou
por menos. Reagiu violncia racial recorrendo assistncia jurdica e processando o proprietrio do
restaurante com base no Artigo 59,
item XLIII da Constituio Federal que determina "a prtica de racismo constitui crime inafianvel
e imprescritvel, sujeito pena de
recluso nos termos da lei".
Foi neste clima que se deu a I Semana Goiana de Reao Violncia
Racial entre os dias 09 e 13 de abril,
com uma programao que incluiu
uma mostra de vdeo seguida de debate com o tema "A Violncia Racial Vista pelos Meios de Comunicao de Massa", entrega de Carta
de Repdio Assembleia Legislativa e Secretaria de Segurana Pblica, viagem a Anpolis numa manifestao de desagravo a Albino
de Souza e manifestao e panfletagem s portas do restaurante "Muralha Chinesa". At o momento
(meados de maio) sequer fomos
agendados pelo secretrio de Segurana Pblica do governo ris Resende, Joaquim Tomaz. Mas o objetivo final foi alcanado: todos os
processos foram pelo menos indiciados, seja judicialmente ou por
meio da Corregedoria de Polcia.
Os negros reagem violncia racial.
ffi
11
JORflfiL.
Bryan Stevenson (segundo esquerda, ao lado de Sueli Carneiro do Geleds) com representantes do Movimento Negro de So Paulo em 24 de
abril de 1991. Estiveram presentes reunio, na sede do Geleds, representantes das seguintes entidades: MNU (Milton Barbosa, terceiro direita, na foto), Nao Cerco, Unegro, Soweto Organizao Negra, Coordenadoria Especial do Negro (CONE), Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra e Grupo de Bancrios Negros.
Poder branco"
ameaa
12
Reaja
violncia racial*(II)
Ori (Reinaldo Santana)
Isso, me bata,
me bata
me bata...
quebre o cacetete em
minhas costas.
Agora... percebe?.
Reconhece o meu
gemido? . Nosso
av gemia assim...
No seu tempo era
um perigo um
SUSPEITO negro
como eu.
Hoje no
diferente. Voc j ^o/]
se perguntou por que
hoje eu sou caae voc
caador? Mas, se a
esperana demora a
morrer, eu s quero crer
que um dia voc
sabendo do que nos une,
pode (quem sabe?) hesitar
No bater com tanta fora
ou parar pra pensar...
Poder se libertar das
migalhas do opressor
e travar junto comigo
a luta de vov.