H. P. Lovecraft - Nas Montanhas Da Loucura

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Nas Montanhas da Loucura

H. P. Lovecraft

Vejo-me forado a falar, porque os homens de cincia recusaram-se, no sei porqu, a seguir o meu conselho. Embora contrariado, vou revelar as razes da minha oposio projectada invaso da Antrtida, que levar ao saque de fsseis e consequente perfurao e fuso das antigas camadas de gelo. Fao-o com a maior relutncia, porque os meus conselhos podero ser inteis. Sero inevitavelmente postos em dvida os factos reais que vou relatar. Mas, se eu suprimisse o que parece extravagate e menos crvel, no fi caria nada. As fotografi as, areas tal como as mais comuns, at agora ocultas, dar-me-o razo, porque apresentam imagens ntidas. Contudo, sero tambm elas postas em causa, devido s grandes falsifi caes que nesse campo se tornaram possveis. Os desenhos a tinta, claro est, sero classifi cados de impostura, no obstante a sua tcnica apuradssima que excitar a curiosidade e o espanto dos especialistas de arte. Em ltima instncia, confi arei no parecer daqueles poucos cientistas que tm, por um lado, sufi ciente independncia de esprito para avaliarem os factos que apresento pelos seus mritos intrnsecos e ocultamente convincentes, ou ento luz de certos ciclos de mitos primordiais e absolutamente desconcertantes, e que, por outro lado, gozam de infl uncia bastante para obstarem a que o mundo da investigao em geral se precipite num programa demasiado ambicioso, naquela regio das montanhas da loucura. De facto, uma desgraa que homens relativamente obscuros como eu e os meus associados, vindos de uma universidade pouco importante, tenhamos poucas possibilidades de atrair as atenes para factos to bizarros e de natureza to controversa. Contra ns joga tambm o facto de no sermos, no sentido rigoroso da palavra, especialistas neste, campo. Como gelogo que sou, o que me levou a encabear a Expedio da Universidade do Miskatonic foi o poder familiarizar-me com rochas e solos das vrias zonas do continente antrctico, recorrendo notvel perfuradora inventada pelo Professor Frank H. Pabodie, do nosso departamento de engenharia. No me interessava ser pioneiro noutro domnio que no fosse esse, esperava, sim, que a utilizao deste novo engenho mecnico em zonas j inteiramente exploradas, permitisse extrair do solo materiais at agora no descobertos pelos mtodos normais de escavao. A mquina perfuradora de Pabodie, como o pblico j dever saber atravs das nossas reportagens, diferente e nica em leveza, facilidade de transporte e capacidade de combinar o princpio artesiano de perfurao com o da perfurao circular, de forma a poder ser aplicado, muito rapidamente, em estratos de dureza varivel. A cabea de ao, o motor a gasolina, o eixo de madeira removvel, o mecanismo de dinamitao, o cordame, a pea que remove as escrias e a tubagem desmontvel para fazer furos de cinco polegadas de largura a mil ps de profundidade, tudo isso, se

bem como uma srie de acessrios indispensveis, cabia em trs trens, puxados cada um por sete ces. A leveza fi cava a dever-se ao grande teor de alumnio usado na maior parte das peas metlicas. Quatro avies Dornier, especialmente desenhados a pensar na grande altitude de voo imposta pelo planalto antrctico, com sistemas de aquecimento do combustvel e dotados de arranque rpido, tudo montado por Pabodie, bastariam para transportar toda a expedio desde a base da grande barreira gelada at aos vrios pontos do interior para isso preparados, posto o que recorreramos a um certo nmero de ces. Tnhamos planeado explorar uma rea to vasta quanto no-la permitisse a estao antrctica ou mais ainda, se necessrio , operando especialmente nas montanhas e no planalto a sul do Mar de Ross, regies j exploradas at certo ponto por Shackleton, Amundsen, Scott e Byrd. Com mudanas frequentes de acampamento, possibilitadas pelos avies, e percorrendo distncias geologicamente mais signifi cativas, espervamos extrair do solo uma grande quantidade de material ainda inexplorado (nomeadamente na camada pr-cambriana de que s se conhecem escassas amostras). Desejvamos igualmente recolher a maior variedade possvel de rochas fossilferas da camada superior, uma vez que a histria da vida primitiva neste reino branco do gelo e da morte tem uma importncia enorme para o conhecimento do passado da Terra. do conhecimento geral que o continente antrctico foi noutros tempos temperado ou mesmo tropical, tendo possudo uma grande riqueza de vegetao e vida animal da qual sobreviveram os lquenes, a fauna marinha, os aracndeos e os pinguins da costa norte. Espervamos tambm tornar estes conhecimentos mais amplos e rigorosos. A partir do momento em que uma perfurao simples revelasse a existncia de fsseis, alargaramos a amplitude do furo e extrairamos amostras com o tamanho e as condies ideais. As nossas perfuraes, de profundidade varivel, consoante a importncia das camadas superiores do solo ou das rochas, limitar-se-iam s superfcies expostas ou semi-expostas, isto , s encostas e aos cumes, j que nas plancies baixas a espessura do gelo slido de dois mil ou quatro mil metros. No perderamos tempo a abrir furos nessa camada de puro gelo, embora Pabodie tenha elaborado um plano com vista a introduzir elctrodos de cobre e a derreter pequenas extenses de gelo com uma corrente elctrica produzida por um dnamo a gasolina. esse o projecto a que numa expedio como a nossa s recorreramos a ttulo experimental que a futura expedio Starkweather-Moore se prope levar a cabo, esquecendo os avisos por mim feitos desde que regressmos da Antrtida. O pblico conhece a Expedio da Miskatonic atravs das frequentes reportagens que envimos via rdio para o Arkham Advertiser e para a Imprensa Associada, e de artigos posteriores assinados por Pabodie e por mim. ramos quatro universitrios: Pabodie, Lake (do Departamento de

Biologia), Atwood (do Departamento de Fsica e meteorologista) e eu prprio, em representao da rea geolgica e encarregado da chefi a. Tnhamos dezasseis assistentes: sete graduados da Miskatonic e nove mecnicos experimentados. Entre os dezasseis havia doze que eram bons pilotos e, com duas excepes, todos eram bons operadores de rdio. Oito sabiam navegar com compasso e sextante, tal como Pabodie, Atwood e eu. Alm disso, os nossos dois barcos, antigas baleeiras de madeira preparadas para a navegao no gelo e equipadas com um sistema auxiliar a vapor, possuam as suas prprias tripulaes. A Fundao Nathaniel Derby Pickman, auxiliada por fundos especiais, fi nanciava a expedio; os preparativos foram extremamente cuidados, mas sem grande publicidade. Os ces, trens, mquinas, os apetrechos de campismo e as peas para a montagem dos avies, tudo foi embarcado em Boston. Estvamos perfeitamente equipados para as nossas misses especfi cas e. no que respeita a provises, regime, transporte e construo de acampamentos, aproveitmos os excelentes exemplos dos nossos brilhantes predecessores. Foi o grande nmero e a fama de tais predecessores que fez com que a nossa expedio, reconhecidamente importante, passasse to despercebida em todo o mundo. Como noticiaram os jornais, samos de Bston no dia 2 de Setembro de 1930, descemos sem novidade ao longo da costa, atravessmos o Canal do Panam, fi zemos escala em Samoa e Hobart, na Tasmnia, onde adquirimos as ltimas provises. Nenhum dos membros da nossa expedio tinha estado antes nas regies polares, pelo que os nossos guias eram os comandantes dos barcos: J.B. Douglas, comandante do brigue Arkham e da expedio por mar, e Georg Th orfi nnssen, comandante da barca Miskatonic, ambos velhos pescadores de baleias nas guas antrcticas. Aps termos deixado para trs o mundo habitado, o sol foi baixando cada vez mais para norte e fi cando cada dia menos tempo no horizonte. A uns 62 de latitude sul, avistmos os primeiros icebergues caixas enormes de faces verticais e, antes de entrarmos no crculo antrctico, que cruzmos com as devidas cerimnias no dia 20 de Outubro, os gelos trouxeram-nos os primeiros reveses. A descida da temperatura, depois da longa travessia dos trpicos, fez-me bastante mal, mas tentei dominar-me e preparar-me para o que havia de vir. Em certas alturas, os fenmenos atmosfricos despertaram em mim uma agradvel curiosidade; lembro, entre outros, a clarssima miragem a primeira que me foi dado ver em que os montes de gelo distantes me apareceram transformados em ameias de inimaginveis castelos csmicos. Depois de atravessarmos o mar gelado, felizmente. pouco extenso e pouco cerrado, alcanmos de novo o mar aberto aos 67 de latitude sul e 175 de longitude este. Na manh de 26 de Outubro, surgiu a sul uma grande extenso de terra e, antes do meio-dia, exultmos ao ver aparecer uma imensa cadeia montanhosa coberta de neve que tapava todo o horizonte.

Vamos fi nalmente uma ponta de um grande continente desconhecido, do misterioso mundo da morte gelada. Aqueles cumes s podiam ser a Cordilheira Amiralty, descoberta por Ross, e a nossa misso consistia agora em rodear o Cabo Adare, descer a costa da Victoria Land e alcanar a primeira base prevista, nas praias do Estreito de McMurdo, no sop do vulco Erebus, a 77 e 9 de latitude sul. Esta ltima etapa da viagem foi qualquer coisa de deslumbrante: os misteriosos cumes multiplicavam-se constantemente em direco ao ocidente, quando o sol do meio-dia, muito baixo, no norte, ou o sol da meia-noite, no sul, varriam com os seus raios vermelhos a neve branca, o gelo azulado, as avenidas aquticas e as manchas negras do granito exposto. Atravs dos cumes desolados sopravam as rajadas intermitentes do terrvel vento antrctico, cujas cadncias traziam por vezes vagas e ferozes sugestes musicais, com notas que se prolongavam ao longo de uma escala interminvel, notas que, por subconscientes razes mnemnicas se me afi guravam inquietantes e obscuramente terrfi cas. A paisagem tinha algo que me fazia lembrar as estranhas e incmodas pinturas asiticas de Nicholas Roerich ou as ainda mais estranhas e mais perturbadoras descries do lendrio e malfi co planalto de Leng, registado no infernal Necronomicon do rabe louco Abdul Alhazred. Mais tarde, haveria de lamentar a vista de olhos que dei a esse livro monstruoso, na biblioteca da faculdade. No dia 7 de Novembro, perdemos temporariamente de vista a cadeia montanhosa a oeste e passmos em frente da Ilha de Franklin. No dia seguinte avistmos os cimos dos montes Erebus e Terror, na ilha de Ross, e, mais atrs, a longa cadeia das Parry Mountains. Para leste, estendia-se agora a linha branca da barreira de gelo que atingia uma altura de cerca de sessenta metros, tal como os recifes do Quebequel, e constitua o limite da navegao para sul. Na parte da tarde, penetrmos no Estreito de McMurdo e quedmo-nos a certa distncia da costa, a sotavento do Erebus fumegante. O pico de lava, que atingia uma altura de quase quatro mil metros, erguia-se a nascente, semelhante a uma estampa japonesa do sagrado Fujiyama, enquanto mais ao longe surgia o branco e espectral Monte do Terror, com trs mil duzentos e setenta metros de altura e o seu vulco actualmente extinto. O Erebus libertava constantemente rolos de fumo e um dos assistentes um jovem brilhante chamado Danforth apontou para aquilo que lhe parecia ser lava, na encosta coberta de neve, observando que essa montanha, descoberta em 1840, podia estar na origem da imagem a que, sete anos depois, Poe deu forma: estas lavas que sem descanso vo descendo qual rio sulfuroso pela encosta do Yaaneck, l nos ltimos confi ns do Plo, que murmuram ao descer, pela encosta do Monte Yaaneck l nos reinos remotos do Plo Boreal

Danforth lia muitos livros bizarros e falava muito de Poe. A mim, Poe interessava-me por causa da cena antrctica do nico romance que escrevera, o inquietante e enigmtico Arthur Gordon Pym. Na costa desolada e na barreira de gelo que se erguia atrs dela, grasnavam milhares de pinguins, agitando as asas, enquanto inmeras focas gordas nadavam na gua ou repousavam nos enormes blocos de gelo errantes. Entrmos nos botes e desembarcmos sem dificuldade na ilha de Ross, pouco depois da meianoite, s primeiras horas do dia 9, amarrmos os barcos e preparmo-nos para descarregar, utilizando um sistema de pols e bias. Ao pisarmos pela primeira vez o solo antrctico, as nossas sensaes eram de angstia e perplexidade, embora tivssemos sido precedidos pelas expedies de Scott e Shackleton. O acampamento que montmos na praia gelada, no sop do vulco, era provisrio, pois o quartel-general continuava a ser a bordo do Arkham. Desembarcmos os apetrechos de perfurao, os ces, os trens, as tendas, os bides de gasolina, a mquina experimental para fuso do gelo, as cmaras fotogrfi cas (tanto as normais como as areas), as peas dos avies e outros acessrios, incluindo trs aparelhagens de rdio portteis (alm das dos avies), capazes de comunicar com o rdio transmissor do Arkham, de qualquer ponto do continente antrctico que tivssemos de visitar. O rdio do navio, pondo-nos em contacto com o mundo exterior, levaria notcias nossas estao que o Arkham Advertiser possua em Kingsport, no Massachusetts. Espervamos cumprir a nossa misso no decorrer de um nico Vero antrctico, mas, se no fosse possvel, passaramos o Inverno no Arkham, mandando o Miskatonic buscar vveres ao norte, antes de comearem a formar-se os grandes gelos. No vale a pena repetir o que os jornais j noticiaram sobre o nosso primeiro trabalho, a subida ao Monte Erebus; as perfuraes coroadas de xito, em busca de minerais, realizadas em vrios pontos da ilha de Ross e a presteza singular com que a mquina de Pabodie as realizou, mesmo quando tinha de furar rocha slida; as experincias que fi zemos com a maquinaria de fuso do gelo; a penosa subida grande barreira, com trens e provises; a montagem dos cinco avies no acampamento erguido no alto da barreira. Era notvel o estado de sade de toda a expedio (vinte homens e cinquenta, e cinco ces de do Alasca habituados a puxar trens), mas tambm verdade que no tnhamos ainda passado por temperaturas glidas ou tempestades de vento. O termmetro variava entre os dezassete e os 6 ou 3 graus negativos, mas a experincia que tnhamos dos Invernos na Nova Inglaterra tinha-nos preparado para grandes rigores. O acampamento rodeado por estacas era semi-permanente e serviria, antes de mais, para armazenar combustvel, provises, dinamite e outro equipamento. Dos cinco avies, amos precisar apenas de quatro para o transporte do material de explorao. Deixmos por isso no acampamento o quinto avio, com um piloto e mais dois tripulantes dos barcos, para que, partindo do Arkham, fossem socorrer-nos no caso de perdermos

todos os outros avies. Mais tarde, quando alguns destes pudessem j ser dispensados dos transportes de equipamento, poderamos utilizar um ou dois para o servio de vaivm entre o referido acampamento e qualquer outra base permanente a instalar no grande planalto, a mil e duzentos ou a mil e quinhentos quilmetros mais a sul, para l do Glaciar de Beardmore. Tendo embora conhecimento dos grandes vendavais e tempestades que se abatem sobre o planalto, decidimos prescindir de bases intermdias, um risco que corramos em nome da economia e da eficincia. As reportagens radiofnicas referiram o voo de quatro horas, sem escala, realizado pela nossa esquadrilha no dia 21 de Novembro sobre o planalto de gelo. vista dos picos que se erguiam a ocidente, e falaram do silncio perturbado pelo roncar dos nossos motores. O vento no nos incomodou muito e o contacto radiofnico ajudou-nos a vencer a nvoa opaca que por vezes nos envolvia. Quando, entre as latitudes 83 e 84, se nos deparou a cadeia montanhosa, percebemos que tnhamos chegado ao Glaciar Beardmore, o maior vale glacial do mundo, e que ao mar gelado se sucedia um litoral irregular com algum relevo. Tnhamos fi nalmente penetrado no mundo branco e morto do extremo sul. E entretanto avistmos tambm o cimo do Monte Nansen, no oeste distante, com os seus quatro mil e quinhentos metros de altura. Fazem j parte da histria a conseguida instalao da nossa base sul, em pleno glaciar, a 86 e 7 de latitude e 174 e 23 de longitude leste, bem como as rpidas e efi cazes perfuraes e rebentamentos que realizmos nos diversos locais que atingamos, ora de tren ora de avio; assim como a triunfal subida ao Monte Nansen por Pabodie e por dois estudantes graduados, Gedney e Carroll, entre os dias 13 e 15 de Dezembro. Estvamos a uns dois mil e quinhentos metros acima do nvel do mar e, quando as perfuraes experimentais revelavam a existncia de terra slida a trs metros e meio de profundidade, sob a camada de gelo e neve, recorramos bastante ao maquinismo de fundio, dinamitvamos os furos e assim conseguimos extrair espcies minerais numa zona de onde nunca nenhum explorador sonhou ser possvel extra-los. Os granitos e arenitos prcambrianos assim obtidos confi rmaram a nossa teoria de que aquele planalto era homogneo, semelhante ao continente que se estendia para oeste, mas bastante diferente da regio oriental, situada sob a Amrica do Sul, regio que, a nosso ver, formava um continente parte, mais pequeno, separado do outro por um brao gelado dos mares de Ross e Weddell, hiptese que Byrd posteriormente provou ser falsa. Em alguns dos arenitos dinamitados e analisados aps a perfurao do solo, encontrmos vestgios de fsseis e fragmentos de fetos, algas, trilobites, crinides e moluscos como linguelas e gastrpodes. Descobrimos tambm uma marca muito estranha, triangular, com cerca de um palmo de lado, visvel depois de Lake ter unido trs fragmentos de uma pedra retirada do solo aps a exploso. Provinha a pedra de um local situado na parte ocidental, perto da Queen Alexandra

Range; como bilogo que era, Lake julgou ver nessa marca qualquer coisa de intrigante e provocatrio, mas eu, enquanto gelogo, no vi mais do que uma variante das ondulaes que so comuns nas rochas sedimentares. Visto a pedra no ser mais do que uma formao metamrfi ca resultante de um estrato sedimentar comprimido, e dado que a presso produz efeitos de distoro nas ondulaes, no vi motivos para me espantar com aquela depresso cheia de estrias. Em 6 de Janeiro de 1931, Lake, Pabodie, Daniels, os seis estudantes, os quatro mecnicos e eu prprio fi zemos um voo mesmo por cima do Plo Sul, num dos dois avies, e vimo-nos forados a baixar de altitude, devido a um vendaval inesperado que, por sorte, no originou uma tempestade a srio. Este voo, como veio relatado nos jornais, era uma das muitas operaes de observao que levmos a cabo com a fi nalidade de descobrir novas fracturas topogrfi cas em reas que antes no tinham sido exploradas. Os primeiros voos foram, sob esse aspecto, um desapontamento, embora nos tivessem permitido presenciar magnfi cos exemplos das fantsticas e desconcertantes miragens das regies polares, de que tnhamos j visto breves exemplos durante a nossa viagem por mar. As montanhas pareciam fl utuar no cu, como cidades encantadas, e muitas vezes aquele mundo branco parecia dissolver-se em ouro, prata e prpura, como nos sonhos de Dunsany, e ganhar uma cor verdadeiramente mgica quando o sol da meia-noite declinava. Nos dias de neblina era difi climo voar, porque a terra gelada e o cu tinham tendncia a confundir-se numa massa misticamente opalescente, sem horizonte a separ-los. Resolvemos fi nalmente levar a cabo o projecto inicial de voar quinhentas milhas para oeste nos quatro avies de explorao e de estabelecer uma nova base num stio que fi cava sobre aquilo que erradamente julgvamos ser a linha de diviso intercontinental. Os espcimes geolgicos encontrados servir-nos-iam de ponto de comparao. O nosso estado de sade continuava excelente: a abundncia de sumo de lima compensava a nossa dieta base de conservas e comidas salgadas e as temperaturas geralmente superiores a zero graus permitiam-nos trabalhar sem termos de vestir os fatos de peles. O Vero ia j a meio e, com algum trabalho e mtodo, seria possvel terminarmos a nossa misso at Maro, de modo a evitar o fastidioso Inverno da noite antrctica. Tinham-se abatido sobre ns alguns vendavais predominantemente de oeste, mas foi-nos possvel domin-los graas destreza de Atwood, que improvisou uma proteco para os avies, uns quebra ventos construdos com blocos de gelo, e reforou com neve as tendas principais do acampamento. Era de facto assombrosa quer a nossa efi cincia, quer a sorte que at ali nos tinha sorrido. O mundo tinha conhecimento do nosso programa e sabia tambm do teimoso projecto de Lake em fazer uma expedio ao Oeste (mais exactamente a Noroeste), antes de nos fi xarmos na nova base. Tinha refl ectido muito e estudado doentiamente as marcas triangulares e cheias de estrias da pedra que referi. Estas revelavam-lhe certas contradies relativas natureza e ao perodo geolgico, tantas que estava ansioso por fazer novas perfuraes e dinamitagens na formao

rochosa que se estendia para oeste e qual aparentemente pertenciam os fragmentos em questo. Estava convencido de que aquela marca tinha sido deixada por um organismo enorme, consideravelmente evoludo, desconhecido e inclassifi cvel, isso apesar de a rocha de que provinha ser antiqussima (cambriana, se no mesmo pr-cambriana), o que exclua a existncia no s de vida altamente desenvolvida, mas de qualquer espcie de vida que ultrapassasse o estdio unicelular, ou sequer o trilobite. Aqueles fragmentos, com aquela estranha marca, deviam ter entre quinhentos e mil milhes de anos.

II A imaginao popular, a meu ver, reagiu entusiasticamente aos nossos boletins informativos e notcia da partida de Lake para o Noroeste, nunca antes pisado ou sequer imaginado pelo homem, muito embora no tivssemos mencionado as enormes esperanas por ele alimentadas de revolucionar toda a biologia e toda a geologia. A sua primeira viagem exploratria de tren, entre os dias 11 e 18 de Janeiro, acompanhado por Pabodie e outros cinco viagem assinalada pela perda de dois ces e por um acidente com o veculo, ao atravessar uma depresso mais cavada , proporcionou-lhe mais algumas amostras de rocha arcaica. Tambm eu comeava a fi car interessado pela singular profuso de evidentes marcas fsseis em estratos incrivelmente antigos. Tais marcas, porm, eram de formas de vida muito primitivas, sem nada de paradoxal, a no ser terem existido na poca pr-cambriana a que a rocha parecia pertencer. No via por isso grande fundamento na pretenso que Lake apresentou de se interromper por algum tempo o nosso programa, j de si apertado, porque pretendia, durante essa interrupo, usar os quatro avies, muitos homens e toda a aparelhagem mecnica da expedio. Acabei por no vetar este projecto, mas decidi no ir com ele nessa viagem ao Nordeste, apesar de Lake me pedir que fosse, por necessitar bastante dos meus conselhos de gelogo. Enquanto eles iam, eu fi caria na base com Pabodie e mais cinco homens a ultimar os planos da viagem ao Leste. Com vista aos preparativos, um dos avies teria de ir ao Estreito de McMurdo buscar uma boa reserva de gasolina; mas havia ainda muito tempo at l. Fiquei com um tren e nove ces, pois tolice fi car-se sem meio de transporte num mundo to vasto e desolado. Da subexpedico de Lake ao desconhecido, como todos sabem, foram sempre chegando informaes, graas aos transmissores em onda curta dos avies; chegavam simultaneamente ao nosso aparelho da base sul e ao de Arkham, no estreito de McMurdo, de onde eram transmitidas para o mundo exterior em comprimentos de onda de cinquenta metros. A partida foi no dia 22 de Janeiro, s quatro da manh; e a primeira mensagem recebida chegou s duas horas depois, a anunciar-nos que Lake se preparava para aterrar e iniciar uma operao de fuso de gelo em pequena escala e umas perfuraes num local situado a seiscentos quilmetros do local onde estvamos. Seis horas depois, uma mensagem dominada pela excitao falava-nos do trabalho frentico, de toupeira, que j tinham realizado, da perfurao e dinamitagem de certa poro de terreno e, fi nalmente, da descoberta de fragmentos de rocha com marcas mais ou menos semelhantes outra que tanto nos tinha intrigado. Trs horas depois, um boletim breve anunciava que iam iniciar mais um voo, sob uma violenta tempestade; e, tendo eu enviado um protesto contra um projecto to arriscado, Lake limitou-se a replicar que os espcimes que estavam a recolher mereciam todos aqueles riscos. Vi logo que a

excitao dele era j rebeldia e que no me era possvel fazer nada para o impedir de pr assim em risco toda a. expedio. Mas doa-me pensar que ele estaria a embrenhar-se cada vez mais profundamente naquela imensido traioeira e sinistra, semeada de tempestades e mistrios, que se prolongava por mais de trs mil quilmetros, na costa, meio conhecida, meio suspeitada, das Queen Mary e Knox Lands. E, cerca de uma hora e meia depois, chegou, vinda do avio de Lake, uma mensagem agitada que me deixou transtornado e excitou em mim o desejo de fazer parte do grupo: 10.05 da tarde. Em voo. Depois de uma tempestade de neve avistmos cadeia de montanhas nossa frente mais altas que tudo quanto at agora vimos. Provavelmente iguais Himalaias, somando altitude do planalto. Latitude provvel 76 e 15, longitude 113 e 10. Ocupa todo horizonte direita e esquerda. Possivelmente dois vulces em actividade. Cumes todos negros e sem neve. Ventania sobre eles impede navegao. Ao ouvirmos isto, Pabodie, os homens e eu ficmos presos ao receptor, contendo a respirao. A imagem daquelas montanhas titnicas, a mil e duzentos quilmetros de distncia, reacendera todo o nosso sentido da aventura; e alegrmo-nos por um dos nossos, embora no propriamente ns, ter feito essa descoberta. Passada meia hora, Lake voltou a contactar-nos: Avio de Moulton obrigado a aterrar no planalto, nenhum ferido, avaria porventura reparvel. Transferiremos essencial para outros avies, de modo a regressarmos ou prosseguirmos, mas de momento desnecessria qualquer viagem area com carga. Montanhas ultrapassam quanto possa imaginar-se. Irei no avio de Carroll sem carga explorar arredores. Uma coisa inimaginvel. Picos mais altos tero dez mil e quinhentos metros. Evarest muito inferior. Atwood calcular altitude com teodolito, enquanto eu e Carroll levantamos voo. Vulces provavelmente eram engano, pois as formaes parecem estratifi cadas. Talvez rocha pr-cambriana com outros estratos mistura. Formas estranhas, seces regulares de cubos ligadas aos picos mais altos. Coisas maravilhosas luz vermelho-ouro do sol declinante. Como o mundo misterioso de um sonho ou porta aberta para o mundo proibido de maravilhas por desvendar. Embora, teoricamente, fossem horas de dormir, nenhum dos ouvintes do rdio pensou sequer em retirar- se. O mesmo deve ter acontecido no Estreito de McMurdo, onde as mensagens eram recebidas no armazm de vveres e no Arkham; de facto, o comandante Douglas deu a toda a gente os parabns pela descoberta e Sherman, operador do armazm, secundou estas felicitaes. Lamentvamos, evidentemente, o avio avariado, mas espervamos que isso pudesse remediar-se. E s 11 da noite chegou nova mensagem de Lake: Voando com Carroll sobre os pncaros.

Com este tempo, no nos atrevemos a sobrevoar os mais altos de todos, iremos mais tarde. Subidas terrveis, difi climo mantermo-nos nesta altitude, mas vale a pena. Massa to compacta que no se v o que h por detrs. Muitos montes excedem Himalaias, estranhssimos. Cadeia parece rocha pr-cambriana, mistura com vestgios de muitos outros estratos em desordem. Vulces eram engano. Prolonga-se em ambas as direces at onde a vista alcana. Nenhuma neve altura de seis mil e trezentos metros. Estranhas formaes nas encostas das montanhas mais altas. Enormes blocos cbicos, de faces perfeitamente rectas formando paredes baixas e verticais, como os antigos castelos asiticos que trepam pelas montanhas nos quadros de Roerich. Impressionantes vistas de longe. Sobrevomos algumas de perto e Carroll cr que so formadas por blocos separados, de menor tamanho, mas talvez seja efeito da eroso. Muitas das abas apresentam desmoronamentos e desgastes, devidos talvez a tempestades e mudanas climticas no decurso de milhes de anos. H partes, principalmente as mais altas, que parecem de rocha mais clara do que a dos estratos visveis nas encostas, parecendo de origem cristalina. Voando mais baixo, distinguem-se aberturas de cavernas, algumas de contornos regulares, quadradas ou semicirculares. Ter de vir c investigar. Julgo ter visto umas rampas em forma de quadrado no alto de um cume. A altura parece-me ser de nove mil ou de dez mil metros. Estou agora a uma altitude de seis mil e quinhentos, o frio cortante, diablico. O vento assobia ao passar nas aberturas das cavernas, mas no pe problemas de voo. E durante mais meia hora Lake bombardeou-nos com os seus comentrios, manifestando, a inteno de subir a p ao alto de algumas montanhas. Eu respondi-lhe que iria ao encontro deles assim que pudessem mandar-me um avio, e que Pabodie e eu trataramos de resolver o problema da gasolina (onde e como concentrar as reservas de combustvel, tendo em conta as alteraes no programa da expedio). Como evidente, as perfuraes de Lake e os voos a realizar obrigavam a concentrar o material numa nova base, que ele planeava instalar no sop das montanhas. O mais provvel que o voo para oeste no pudesse afi nal realizar-se durante aquela estao. Perante isto, chamei o capito Douglas e pedi-lhe que transferisse tudo o que pudesse dos navios para o armazm instalado junto da barreira, utilizando para isso o nico tren que l tnhamos deixado. Era preciso abrir uma rota directa entre Lake e o Estreito de McMurdo. Lake tornou a contactar-me para me dizer que tinha decidido montar o acampamento no local onde o avio de Moulton fora obrigado a aterrar, e que a reparao deste ia j numa fase adiantada. A camada de gelo era muito fi na, de onde em onde podia ver-se o solo negro e, sendo assim, faria ali mais umas perfuraes e uns rebentamentos, antes de iniciar qualquer viagem de tren ou a p. Falou da inefvel majestade de toda a paisagem e da estranha sensao que era estar ali, abrigado pelos pinculos silenciosos daquelas montanhas, que se erguiam como uma muralha at ao cu e se estendiam a perder de vista. As observaes de Atwood com o teodolito. tinham-no levado a

concluir que a altura dos cinco picos mais altos devia situar-se entre os nove mil e os dez mil e quinhentos metros. O vento que incessantemente soprava no local era a maior preocupao de Lake, pois era prenncio de ocasionais intempries mais violentas do que alguma vez tnhamos imaginado. O acampamento dele fi cava a mais de dez quilmetros do local onde as montanhas se erguiam abruptamente. Era fcil notar algum alarme subconsciente nas palavras de Lake (que chegavam at mim, atravessando uma extenso glacial de mil e quinhentos quilmetros), quando me pedia para ir ter com ele o mais depressa possvel nova e estranha regio em que ele se encontrava. Estava agora na disposio de descansar, ao cabo de todo um dia de actividade cansativa com bons resultados vista. J pela manh, estabeleci uma dupla comunicao com Lake e com o capito Douglas. Acordmos em que viria um avio dos de Lake buscar-me, juntamente com Pabodie, cinco homens e todo o combustvel que fosse possvel carregar. O resto do combustvel necessrio para o caso de ser decidida uma nova viagem ao Leste, esperaria uns dias, uma vez que Lake tinha ainda gasolina sufi ciente para se manter no acampamento e para as perfuraes. A antiga base do Sul ia precisar de ser reabastecida, mas, se a viagem ao Leste fi casse adiada, no recorreramos a ela antes do prximo Vero; Lake teria, entretanto, de mandar um avio estudar uma rota directa entre as novas montanhas e o Estreito de McMurdo. Pabodie e eu preparmo-nos para encerrar a nossa base durante um perodo curto ou longo, de acordo com a evoluo da situao. Se passssemos o Inverno no Antrctico, poderamos voar directamente da base Lake at ao Arkham, sem passarmos por esta base. Tnhamos j construdo fortifi caes com blocos gelo em volta das tendas e resolvemos completar e tarefa, construindo uma aldeia permanente. Tnhamos tendas de sobra, e Lake tinha levado para a sua base tendas sufi cientes, mesmo contando com a nossa chegada. Comuniquei- lhe que Pabodie e eu estvamos preparados para seguir para o Noroeste, depois de mais um dia de trabalho e uma noite de descanso. O trabalho, de resto, s comeou depois das quatro da tarde, porque no tardou que Lake nos contactasse para nos dar as mais extraordinrias notcias. O dia no tinha comeado bem, pois, ao sobrevoarem as superfcies rochosas expostas, no conseguiram descobrir os tais estratos arcaicos e primordiais que procuravam e que constituam uma boa parte dos picos colossais que se erguiam a uma distncia proibitiva do acampamento. A maioria das rochas que avistaram era primeira vista arenitos jurssicos e comanchianos, ou xistos prmicos e trisicos, com uma ou outra componente negra e brilhante, indcio de carvo ptreo e duro. Lake tinha fi cado bastante desanimado, porque o projecto dele era desenterrar espcimes com mais de quinhentos milhes de anos. Era claro que, para tornar a encontrar o veio

rochoso arcaico, onde tinha detectado as tais marcas, iria ser obrigado a fazer uma longa viagem de tren desde o sop at s vertentes mais altas das montanhas gigantescas. Resolveu, mesmo assim, fazer perfuraes nos arredores, como estava consignado no programa geral da expedio. Montou a perfuradora e deixou cinco homens a trabalhar com ela, enquanto os outros acabavam de montar o acampamento e reparavam o avio acidentado. A mais macia das rochas visveis (um arenito, a cerca de quinhentos metros do acampamento) foi objecto das primeiras pesquisas e a perfuradora realizou um trabalho satisfatrio, sem ser preciso recorrer a grandes rebentamentos. Ao cabo de umas trs horas, depois da primeira exploso a srio, um dos homens que trabalhavam com a perfuradora deu um grito e o jovem Gedney, que dirigia as operaes, correu a trazer a notcia ao acampamento. Tinham descoberto uma caverna. Mal comearam a perfurao do arenito, surgiu um veio de gesso comanchiano, semeado de pequenos fsseis de cefalpodes, corais, equindios, espirferos, bem como vestgios de esponjas siliciosas e ossos de vertebrados marinhos, provavelmente telesteos, tubares e ganides. Tratava-se de um achado importante. Eram os primeiros fsseis de vertebrados descobertos pela expedio. Porm, quando, logo a seguir, a perfuradora penetrou no que parecia ser um espao oco, os homens foram envolvidos por uma vaga de nervosismo. Uma carga explosiva devidamente colocada ps a descoberto um subterrneo secreto e, para l da abertura com metro e meio de altura e um de largura, surgiu diante dos olhos ansiosos dos escavadores uma cavidade gpsica que h mais de cinco milhes de anos fora aberta pelas guas subterrneas de um mundo tropical desaparecido. A caverna teria dois ou dois metros e meio de profundidade, mas estendia-se indefi nidamente em todas as direces e atravs dela corria ar fresco, o que levava a admitir que pertencia a uma extensa rede de subterrneos. No tecto e no solo viam-se numerosas estalactites e estalagmites, muitas delas em forma de colunas. Mas o achado mais importante era o depsito considervel de conchas e ossos, em tal quantidade que por vezes impediam a passagem. Provenientes de ignoradas fl orestas mesozicas de fetos e fungos, ccadas tercirias, palmeiras e angiosprmicas primitivas, aqueles depsitos de ossos incluam espcimes representativos de mais cretcicos, exocnicos e outras espcies animais que o mais importante paleontlogo alguma vez registou e classifi cou num ano inteiro de trabalho. Havia moluscos, carapaas de crustceos, peixes. anfbios, rpteis. pssaros e mamferos primitivos, grandes e pequenos, conhecidos e desconhecidos. No era de espantar que Gedney tivesse corrido para o acampamento, aos gritos, que todos largassem o trabalho e, indiferentes ao frio de arrepiar, corressem para a porta que a sonda abrira, numa abertura que estabelecia comunicao com os segredos ntimos da terra e com as idades esquecidas.

Depois de ter satisfeito um primeiro impulso de curiosidade. Lake rabiscou uma mensagem num bloco de papel e enviou o jovem Moulton ao acampamento para nos comunicar radiofonicamente o sucedido. Foi a primeira de uma longa srie de notcias que tive do achado: identifi cava conchas primitivas, ossos de ganides e placodermes, restos de labirintodontes e tecodontes, grandes fragmentos de crnios de mesossurios. vrtebras e carapaas de dinossauros, dentes e ossos de asas de pterodctilos. restos de arqueoptrix, dentes de tubares do mioceno. crnios de aves primitivas e ossadas de mamferos arcaicos, como paleotrios, xidofontes, eohipos, oreodontes e titanotrios. No se viam vestgios de animais recentes como mastodontes, elefantes, camelos verdadeiros, veados ou animais bovinos. Da concluiu Lake que os ltimos depsitos datavam da idade oligocnica e que o estrato oco se conservava assim seco, morto e inacessvel havia pelo menos trinta milhes de anos. Por outro lado, a predominncia de formas de vida muito primitivas era altamente singular. Embora a formao gpsica como o atestava a presena de fsseis to tpicos como os ventriculitos fosse indubitavelmente comanchiana e no anterior, os fragmentos dispersos pela caverna incluam um nmero surpreendente de organismos at ento considerados tpicos de perodos muito anteriores: peixes rudimentares, moluscos e corais to remotos como o siluriano e o ordoviciano. A concluso inevitvel era que nesta parte do mundo tinha havido uma continuidade excepcionalmente notvel entre a vida de h mais de trezentos milhes e a de h trinta milhes de anos. Ficava para especulaes posteriores avaliar se tal vida se prolongou tambm pela idade oligocnica, depois de a caverna ter sido fechada. Fosse como fosse, os terrveis gelos do Pleistoceno, havia quinhentos mil anos ou seja, ontem, relativamente idade daquela caverna , tinham posto termo a todas as formas de vida primitiva que lograram sobreviver at ento. Lake no se contentou em enviar esta primeira mensagem. Escreveu logo outro boletim que transmitiu atravs do espao gelado, antes de Moulton ter regressado do acampamento. Apoderando-se da aparelhagem de um dos avies, Moulton comeou a transmitir-me assim como ao Arkham que as retransmitia para o resto do mundo as frequentes rectifi caes que os mensageiros de Lake iam trazendo. Quem acompanhou tudo pelos jornais recorda a excitao criada entre os homens de cincia pelas informaes transmitidas naquela tarde, informaes que acabariam por resultar, passados todos estes anos, no envio da expedio Starkweather-Moore, embora eu faa tudo para a dissuadir. O melhor transcrever na ntegra as mensagens enviadas por Lake, tal como o operador McTighe, da nossa base, as retransmitia, interpretando fi elmente o apontamento tirado a lpis:

Fowler faz descoberta da maior importncia nos arenitos e gessos extrados do solo sujeito a rebentamentos. Vrias marcas triangulares e estriadas, muito ntidas, como as da rocha arcaica, o que prova de que foram deixadas por seres: que sobreviveram desde h seiscentos milhes de anos at poca comanchiana, sem grandes mudanas morfolgicas, a no ser uma ligeira diminuio do tamanho, sendo essas mesmas marcas um pouco mais primitivas ou decadentes do que as anteriores. Dar nfase na imprensa descoberta. Signifi car para a Biologia o que Einstein signifi ca para a Matemtica e para a Fsica. Vem ao encontro dos meus trabalhos anteriores e refora as minhas concluses. Parece indicar, como eu suspeitava, que na terra houve todo um ciclo ou vrios ciclos de vida orgnica antes do que se sabe ter comeado com as clulas arqueozicas. A vida desenvolveu-se e especializou-se h mais de mil milhes de anos, quando o planeta era jovem e inabitvel para qualquer forma de vida ou estrutura protoplsmica normal. Falta s saber quando, onde e como se deu o tal desenvolvimento. *** Mais tarde. Examinando certos fragmentos do esqueleto de grandes surios terrestres e marinhos e de mamferos primitivos, encontrei singulares danos ou ferimentos na estrutura ssea, no atribuveis a qualquer predador ou carnvoro de qualquer perodo. So de duas espcies: orifcios alongados, penetrantes, e incises nitidamente cortantes. Um ou dois casos de ossos cortados cerce. Poucos espcimes afectados. Mandei buscar lanternas ao acampamento. Alargaremos rea de pesquisa a uma profundidade maior, destruindo estalactites. *** Mais tarde ainda. Descobri um fragmento muito peculiar de pedra-sabo com cerca de doze centmetros de comprimento e trs de espessura, completamente diferente de qualquer formao local visvel; esverdeado, mas no tem caractersticas que permitam dat-lo. Pedra muito lisa e regular. O formato o de uma estrela de cinco pontas arredondadas e sinais de outras clivagens nos ngulos internos e no centro. Depresso pequena e suave no centro da superfcie que no apresenta clivagens. Desperta a maior curiosidade a sua origem e o desgaste que apresenta. Presso da gua, possivelmente. Com uma lupa, Carroll julga poder observar outros sinais de interesse geolgico. Grupos de pontos pequenos formando desenhos regulares. Ces muito incomodados com os trabalhos, parecem detestar pedra- sabo. Temos de ver se tem algum cheiro especial. Tornaremos a informar quando Mills voltar com as lanternas, depois de explorarmos a rea subterrnea.

*** 10:15 da noite. Descoberta importante. Orrendorf e Watkins, estando a trabalhar na caverna com lanternas, encontraram um fssil monstruoso em forma de barril, de natureza completamente desconhecida; provavelmente vegetal, se no se tratar de uma espcie marinha ignorada, prxima dos celenterados. Tecido evidentemente preservado graas a sais minerais. Resistente como couro, mas aqui e ali com uma certa fl exibilidade. Marcas de fracturas nos extremos e nos lados. Quase dois metros de extremidade a extremidade e metro e meio de dimetro no centro, estreitando-se nos extremos at cerca de um palmo. Um autntico barril com cinco excrescncias semelhantes a aduelas. Nos lados, sulcos penetrantes, perpendiculares s tais excrescncias. Entre as excrescncias, uma curiosa srie de cristas ou asas que se abrem e fecham como leques. Todas muito danifi cadas, excepo de uma que tem uma abertura de dois metros. No todo, faz lembrar certos monstros dos mitos primitivos, especialmente os fabulosos Seres Antigos do Necronomicon. Asas aparentemente membranosas, com uma estrutura de tubos glandulares. Pequenos orifcios na estrutura, nas pontas das asas. Os extremos do corpo danifi cados no permitem adivinhar o interior ou a natureza das partes amputadas. Temos de o dissecar quando chegarmos ao acampamento. Impossvel decidir se vegetal ou animal. Evidentes e numerosas caractersticas de incrvel primitivismo. No h mos a medir no trabalho de quebrar estalactites para podermos descobrir outros espcimes. Descobertos mais ossos dispersos, mas vo ter que esperar. Problemas com os ces. No toleram o novo espcime e j o tinham desfeito em pedaos, se no os mantivssemos distncia. *** 11:30 da noite. Ateno, Dyer, Pabodie, Douglas. Assunto da maior direi mesmo transcendental importncia. O Arkham ter de contactar imediatamente estao de Kingsport. O estranho barril afi nal o ser arcaico que deixou marcas nas rochas. Mills, Boudreau e Fowler descobriram mais um grupo de treze debaixo da terra, a doze metros da abertura, mistura com pedaos de pedra- sabo curiosamente arredondados e mais pequenos do que a pedra que antes encontrmos, em forma de estrela, mas sem vestgios de fractura, excepto em certos pontos. Dos espcimes orgnicos, h oito que parecem em perfeito estado de conservao, com todos os apndices. Trouxemo-los para o exterior e mantemos ces distncia. No suportam estas coisas. Prestem ateno descrio e repitam a ver se confere. Os jornais devem ser exactos.

Os objectos medem cerca de dois metros e meio de comprimento total. Dois de bojo, um a um metro e meio de dimetro central, um palmo de dimetro nos extremos. Castanhos-escuros, fl exveis, infi nitamente resistentes. Dois metros as asas membranosas da mesma cor que se encontram fechadas entre as aduelas. Estruturas das asas tubulares ou glandulares, de cor mais clara, com orifcios no topo. Abertas, as asas tm um rebordo dentado. Em volta da parte mediana, nos vrtices centrais de cada uma das cinco aduelas verticais, h cinco sistemas de braos ou tentculos cinzentos-claros, fl exveis, todos enrolados mas com capacidade de se prolongarem at cerca de um metro, como os braos dos crinides primitivos. Cada um tem seis centmetros de dimetro at extenso de doze centmetros, posto que se ramifi ca em cinco partes de dezasseis centmetros, as quais se ramifi cam em tentculos pequenos, tendo assim cada tentculo cerca de vinte e cinco ramificaes. No cimo do bojo, um pescoo cinzento mais claro, bulboso, com uma espcie de guelras, e por cima a cabea amarelada em forma de estrela de cinco pontas, coberta de clios fortes e multicolores com seis centmetros de comprimento. Cabea espessa e irregular, com cerca de meio metro, com uns tubos fl exveis e amarelados de seis centmetros, um de cada lado. Uma abertura no alto, ao centro, rgo da respirao possivelmente. Na extremidade de cada tubo uma esfera com uma membrana amarelada que, afastada com a mo, deixa ver um globo vtreo, avermelhado no centro, evidentemente um olho. H cinco tubos vermelhos bastante maiores, que partem dos ngulos internos da cabea em forma de estrela e terminam num bolbo da mesma cor que, comprimido, revela uns orifcios campaniformes com uns quatro centmetros de dimetro, guarnecidos de salincias brancas e dentiformes. Devem ser bocas. Todos os referidos tubos, clios e pontas da cabea em forma de estrela se encontram dobrados e cados sobre o corpo, e os tubos e pontas literalmente enroscados no pescoo bulboso e no dorso. Apesar da dureza geral, uma flexibilidade surpreendente. Na base do corpo, o mesmo esquema da cabea. Um pseudo pescoo bulboso e acinzentado, sem vestgios de guelras, sustenta uma espcie de estrela de cinco pontas esverdeadas. Braos robustos, musculosos, com metro e vinte de comprimento, que se vo estreitando e que, medindo na base uns catorze centmetros de dimetro, atingem dez na extremidade. Cada um dos extremos apresenta a forma de um tringulo esverdeado e membranoso, com cinco veias, medindo dezasseis centmetros de comprimento e doze de largura no lado maior. Foi esta a pata, barbatana ou pseudpode que deixou marcas nas rochas, num perodo cuja data se situa entre mil milhes e cinquenta ou sessenta milhes de anos. Dos ngulos internos desta estrela, partem tubos avermelhados, com meio metro de comprimento, seis centmetros de dimetro na base e dois na ponta. Orifcios nas extremidades. Tudo isto duro como couro, mas extremamente fl exvel. Braos

de quatro patas indubitavelmente usadas para locomoo, no mar ou fora dele. Pegando nelas, temse a impresso de uma muscularidade exagerada. Quando encontrmos estes seres, todos os apndices estavam colados cerradamente contra o pseudo pescoo e o corpo, tal como na outra extremidade. Impossvel afi rmar se pertence ao reino animal ou ao vegetal, inclinamo-nos para o animal. Representa provavelmente uma fase incrivelmente avanada dos celenterados, sem perda de algumas caractersticas primitivas. Inegavelmente parecidos com os equinodermes, apesar de algumas caractersticas contraditrias. intrigante a estrutura da asa, quando se pensa num habitat marinho, mas indiscutivelmente usada no meio aqutico. Simetria curiosamente semelhante dos vegetais, sugerindo mais uma estrutura vegetal, idntica em cima e em baixo, a uma estrutura animal, distinta frente e atrs. Data de evoluo fabulosamente remota, anterior aos prprios protozorios arcaicos at agora conhecidos, sendo intil fazer conjecturas no que respeita origem. Os espcimes completos apresentam uma semelhana to estranha com certas criaturas dos mitos primitivos que se torna inevitvel pensar numa antiga existncia fora da Antrtida. Dyer e Pabodie leram o Necronomicon e viram pinturas de pesadelos da autoria de Clark Ashton Smith baseadas nesse texto: compreender-me-o quando falo dos Seres Antigos que, por engano ou escrnio, criaram toda a vida da terra. Os estudantes atribuem a sua formao a uma imaginao doentia que agiu sobre celenterados tropicais muito antigos. Falam tambm de tradies populares e pr-histricas referidas por Wilmarth, caso dos objectos do culto Cthulhu, etc. todo um vasto campo de estudo que se abre. Provavelmente restos do ltimo Perodo Cretcico ou do primeiro perodo neocnico, a julgar pelos exemplos associados. Montes de estalagmites depositadas sobre eles. Difi climo arranc- las, mas foi a dureza delas que impediu danos maiores. Prodigioso estado de conservao, devido evidentemente aco do gesso. No se descobriram mais, retomaremos mais tarde as buscas. Falta agora levar os catorze espcimes gigantescos para o acampamento, mas sem recurso aos ces, que continuam a ladrar e tm de ser mantidos distncia. Com nove homens (fi caro trs de guarda aos ces) devemos conseguir puxar os trens, apesar da ventania desabrida. Temos de estabelecer contacto areo com o Estreito de McMurdo e comear a transportar o material. Mas terei de dissecar uma destas coisas antes de ir descansar. Quem me dera ter aqui um laboratrio. Dyer deve lamentar ter procurado impedir-me de fazer esta viagem ao Oeste. Primeiro as montanhas maiores do mundo e agora isto. Se no este o grande acontecimento da expedio, no sei qual ser. Sentimo-nos realizados enquanto cientistas.

Parabns, Pabodie, pela perfuradora que nos abriu as portas da caverna. Arkham, repitam toda a descrio, por favor! *** O que Pabodie e eu sentamos ao ouvirmos todo este relatrio fi ca aqum de toda a descrio e o entusiasmo dos nossos companheiros no era inferior. McTighe, que pressa tinha tomado nota dos pontos essenciais da comunicao, medida que a rdio a transmitia, repetiu a mensagem completa, com base nas notas resumidas, e despediu-se do operador de Lake. Todos aprecimos o grande alcance do achado e envimos a Lake os parabns, depois de o operador do Arkham ter repetido a mensagem recebida, como ele pedira. Sherman, do posto de armazenamento de McMurdo seguiu-nos o exemplo e o mesmo fez o capito Douglas do Arkham. Mais, tarde, como comandante da expedio, acrescentei algumas observaes que o Arkham deveria retransmitir para o mundo. Era, evidentemente, absurdo descansar no meio de tanta excitao; o meu nico desejo era ir ter ao acampamento de Lake o mais depressa possvel. Fiquei desapontadssimo quando ele nos contactou a dizer que a tempestade se abatera sobre as montanhas e no permitiria a viagem de avio. Todavia, meia hora passada, o entusiasmo anulou de vez tal desapontamento. Atravs de novas mensagens, Lake fez-nos saber que tinham chegado sem novidade ao acampamento, com os catorze espcimes. O transporte fora difcil, porque essas coisas eram surpreendentemente pesadas; mas os nove homens tinham desempenhado bem a tarefa. Alguns deles estavam agora a construir pressa uma cerca de gelo, a alguma distncia do acampamento, para l meterem os ces. Os espcimes estavam deitados no cho perto do acampamento, excepo de um que Lake tentava com difi culdade dissecar. A dissecao era afinal um trabalho mais difcil do que se esperava, porque, apesar do calor do fogo do laboratrio, improvisado numa das tendas, os tecidos ilusoriamente fl exveis do exemplar escolhido um espcime robusto e intacto no perderam a sua dureza de couro. Lake no conseguiu descobrir como fazer as incises necessrias sem recorrer a uma violncia destruidora que acabaria por destruir as estruturas delicadas que pretendia estudar minuciosamente. Era um facto de que dispunha de mais sete exemplares perfeitos, mas no eram tantos que pudesse utilizlos a seu bel-prazer, a no ser que a caverna pudesse depois fornecer-lhe uma reserva inesgotvel. Retirou assim do laboratrio aquele espcime e transportou para l um outro que, tendo ainda intactos os rgos em forma de estrela-do-mar em ambas as extremidades, se encontrava bastante danifi cado e com uma rotura parcial ao longo de um dos sulcos dorsais. Os resultados, prontamente comunicados pela rdio, eram intrigantes e provocatrios. No era possvel ser-se delicado ou cuidadoso com instrumentos que a bem dizer no conseguiam cortar aquele tecido anmalo; mas o pouco que se pde fazer deixou-nos perplexos e impressionados.

Impunha-se uma reviso de toda a biologia, porque aquela coisa no era produto de qualquer desenvolvimento celular que a cincia conhecesse. No se notava qualquer mineralizao e, apesar dos quarenta milhes de anos de espera, os rgos internos permaneciam intactos. A dureza impenetrvel e inatacvel do couro era um atributo inerente natureza daquele ser que pertencia de certeza a algum ciclo paleogeico da evoluo dos invertebrados, sobre o qual no se poderia especular. A princpio, Lake verifi - cou que tudo estava seco, mas, logo que o calor da tenda se fez sentir, apareceu no lado intacto daquela coisa um lquido orgnico de cheiro forte e repugnante. No era sangue, era um fl uido espesso, verde-escuro, aparentemente com a funo do sangue. Quando Lake chegou a tal descoberta, os trinta e sete ces estavam j metidos numa cerca incompleta, perto do acampamento. No entanto, mesmo distncia, desataram a uivar desenfreadamente, perturbados por aquele cheiro acre e difuso. Em vez de ajudar a identificar aquele estranho ser, a sua dissecao provisria adensara mais o mistrio. Estava correcto tudo quanto se tinha especulado a respeito dos seus membros internos e, perante isso, difi cilmente se poderia hesitar em chamar quilo um animal. Porm, a inspeco das partes internas revelou tantas caractersticas vegetais que Lake no sabia o que pensar. Era dotado de digesto e circulao, e eliminava excrees atravs dos tubos vermelhos com que terminava a estrela da parte inferior. primeira vista, podia dizer-se que o aparelho respiratrio funcionava base de oxignio, mais do que de dixido de carbono, e havia estranhos vestgios de cmaras-de-ar e mtodos respiratrios desde o orifcio externo at pelo menos dois outros desenvolvidos sistemas de ventilao: guelras e poros. Era evidentemente anfbio e tambm estava adaptado a longos perodos de hibernao sem requerer ar. Parecia haver rgos vocais em conexo com o sistema respiratrio central, mas apresentavam anomalias que, de momento, no eram explicveis. Dificilmente se poderia conceber que tivesse fala articulada e capacidade de utilizar slabas, mas era provvel que pudesse produzir uma vasta gama de sons musicais. O sistema muscular era anormalmente desenvolvido. O sistema nervoso desse espcime era to complexo e to altamente desenvolvido que Lake ficou extremamente surpreendido. Embora excessivamente primitiva e arcaica em certos aspectos, a coisa tinha uma srie de gnglios e centros de conexo que apontavam para um desenvolvimento extremamente especializado. O crebro de cinco lbulos era surpreendentemente avanado e havia sinais de actividade sensorial, servida em parte pelos clios duros da cabea, envolvendo factores estranhos a qualquer outro organismo terrestre. Tinha, provavelmente, mais de cinco sentidos e, portanto, os seus hbitos no poderiam ser previstos com base em analogias conhecidas. Na opinio de Lake, deveria ter-se tratado de uma criatura de sensibilidade apurada, com funes delicadamente diferenciadas no seu mundo primitivo, como hoje em dia acontece com as formigas e as abelhas. Reproduzia-se como as

plantas criptogmicas, nomeadamente os pteridfitos, pois tinha bolsas de esporos nos extremos das asas, que se desenvolviam a partir de um talo ou protalo. Mas dar nome a um tal estdio seria leviandade. Tinha aspecto de celenterado, tinha trs quartas partes da estrutura elementar animal. Era de origem marinha, assim o indicavam o contorno simtrico e alguns outros atributos. Ningum, contudo, poderia dizer com exactido quais os limites das suas adaptaes posteriores. As asas, ao fi m e ao cabo, sugeriam que se adaptara ao elemento areo. Era inconcebvel que ele tivesse passado por to completa evoluo num mundo de formao to recente como o indicavam as marcas deixadas nas rochas arcaicas. Por isso que Lake recorria timidamente aos primitivos mitos dos Seres Antigos que, vindos das estrelas, plasmaram a vida na terra por escrnio ou engano, se bem como s narrativas brbaras das montanhas csmicas do mundo exterior, referidas pelos nossos colegas folcloristas do Departamento de Ingls na Universidade do Miskatonic. Como natural, ps a hiptese de as marcas pr-cambrianas terem sido deixadas por um antecessor menos desenvolvido daqueles espcimes, mas teve de rejeitar essa teoria fcil ao observar as qualidades estruturais avanadas dos antigos fsseis. Se alguma coisa mostravam as formas posteriores, seria a decadncia e no a evoluo. O tamanho do pseudpode era menor e a morfologia era de um modo geral mais rude e simples. Alm disso, os nervos e os rgos acabados de analisar sugeriam uma regresso relativamente a formas ainda mais rudes e simples. As partes atrofiadas e reduzidas eram as que prevaleciam. Pouco se poderia afirmar que fosse definitivo, e Lake recorreu mitologia, para descobrir um nome provisrio e chamou aos seus achados Os Ancestrais. Cerca das 2:30 da manh, decidiu adiar as investigaes para depois e descansar um instante. Cobriu o organismo dissecado com um oleado, saiu da tenda-laboratrio e estudou exemplares intactos com redobrado interesse. O calor constante do sol antrctico tinha comeado a amolecer os tecidos; as pontas da cabea e alguns dos tubos comeavam a descolar-se do corpo. Lake no receava que quela temperatura negativa, houvesse riscos de decomposio. Tratou, porm, de juntar os exemplares intactos e de os tapar com o pano de uma tenda, para fi carem abrigados dos raios directos do sol. Com isto evitava tambm que o cheiro fosse captado pelos ces, cujo desassossego se tornara um problema, mesmo afastados como estavam, atrs da cerca de neve, cada vez mais alta, que um nmero acrescentado de homens continuava a levantar. Segurou bem as pontas do pano com blocos de neve, no fosse o vento levant-la, pois, sobre as montanhas titnicas estava a formar-se uma grande tempestade. Ressurgiam as antigas apreenses sobre os ventos sbitos da Antrtida e, sob a superviso de Atwood, todas as tendas foram reforadas, assim como o abrigo dos ces e os dos

avies, especialmente do lado voltado para a cadeia montanhosa. Os abrigos dos avies, construdos nas horas vagas com blocos de gelo, no eram to altos como seria necessrio, e Lake ordenou que se largassem quaisquer outros trabalhos e que todos fossem apenas trabalhar nos abrigos. Passava das quatro horas quando Lake deu a tarefa por terminada e nos aconselhou a descansar, partilhando do perodo de repouso que a sua equipa ia iniciar, pois as fortifi caes tinham j uma boa altura. Via rdio, tagarelou um bom bocado com Pabodie e repetiu os elogios sua espantosa perfuradora que tanto tinha contribudo para aquela descoberta. Tambm Atwood mandou felicitaes e desejou xitos. Exprimi a Lake, da minha parte, as minhas congratulaes, reconhecendo que a sua viagem ao Nordeste fora uma boa ideia, e concordmos todos em retomar o contacto pela rdio s dez da manh. Se, a essa hora, a tempestade tivesse acalmado, Lake enviaria um avio at base para nos levar. Antes de um bem merecido repouso, enviei uma mensagem para o Arkham, com instrues para que as notcias do dia fossem suavizadas antes da sua transmisso para o mundo, pois as descobertas eram sufi cientemente radicais para desencadearem uma onda de incredulidade, antes de serem mais consubstanciadas.

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