Antero de Quental - Textos Doutrinarios
Antero de Quental - Textos Doutrinarios
Antero de Quental - Textos Doutrinarios
ANTERO DE QUENTAL
TEXTOS
DOUTRINRIOS
CORESPNDCIA
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Primeiro volume
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RCULO DE LEITORES
Capa de: AI/ulles
Impressa e ellcademado par Prill/er Portuguesa
1 ms de Setembro de mil lovecell/os e ai/m/a e se/e
Nlmero de edio: 220
Depsito legal Illmero: 14730/87
NOTA PRVIA
o difci l cri trio de escolha, nos vanos volumes que
constituem esta edio, das obras e dos autores da cha
mada Gerao de 70, baseia-se fundamentalmente em
dois princpios: por um lado, dar uma perspectiva o mais
vast a e rigorosa possvel da histria da cultura duma
Poca, entre, aproximadamente, 1870 e o extremo final do
sculo XIX; por outro lado, fazer uma tentativa para en
contrar a unidade de temas e de ideias at ravs da varie
dade de gneros .
Assim, logicamente, comea-se por Antero, que foi o
grande (<Ines tU)) da Gerao de 70, aquele que verdadei
ramente a ((gerou em termos de ideias, com os seus textos
doutrinrios, acompanhados por uma seleco da corres
pondncia que traasse o seu percurso simultaneamente n
t i mo e histrico .
De histria das ideias se trata ao escolhermos a Hi s
t ri a do Romant i smo em Portugal de Tefilo Braga,
o b ra essencial que resume o que na Gerao de 70 pro
l ongamento e renovao do romantismo de Ganet t e H er
culano . De histria propriamente dita se trata quanto a
Oli veira Martins. E aqui a escolha foi particularmente
difcil. Se Port ugal Cont emporneo se impunha por
ser uma viso panormica do sculo XIX no que ele teve de
mais problemt ico e mais directamente ligado histria
da prpria Gerao de 70, j mui to se hesi tou em editar ou
no a Hi s tri a de Portugal , igualmente importante.
Mas a Hi s tri a da Ci vi l i zao I bri ca pareceu-nos
dar uma outra faceta decisiva da obra de Oli vei ra Mar
tins: o i berismo . Por outro lado, uma seleco dos dois
volumes i nt i tulados Portugal nos Mares (J 889) revela
a mitologia das Descobertas, que atravessou toda a sua
gerao, alm de ser uma obra pouqussimo conhecida que
convm di vulgar ao grande pblico. Como diz o prprio
Oli veira Martins, na Introduo, esta obra estuda par
t icular e monograficamente a feio mais original, mais
simptica e mais fecunda do povo portugus, colaborador
na obra da civilizao modema.
Quanto a Ramalho Ortigo, impunha-se forosamente
fazer uma seleco d'As Farpas, da mesma maneira que
a fizemos para Os Gatos de Fialho de Almeida, dois
exemplos tpicos do jornalismo cultural, satrico e mili
tante da segunda metade do sculo XIX, embora com di
ferenas de estilo evidentes. J a escolha de A Hol anda
de Ramalho em vez de Em Pari s ou outra qualquer obr a
talvez discutvel, mas no arbi trria: de facto, A Ho
l anda refecte, quanto a ns, o ideal duma burguesia ci
vi lizada, verdadeiramente europeia e li beral, que tantas
vezes levou os principais representantes da Gerao de 70
a considerar Portugal uma choldra.
Enfim, escolher na obr a, cada vez mais vi va, de Ea de
Quei rs t rs li vros bsicos toma-se quase herico. Mas
pareceu- nos que a edio de Os Mai as se i mpunha, antes
de mais, obviamente, no s por ser a obra-prima do escri
tor e, sem dvida, o grande modelo do romance portugus
modero, mas tambm por que 1888 marca o centenrio da
sua publicao. Quanto a Not as Cont emporneas, na
sua disperso impressionista, pareceu- nos ser uma obra
decisivamente significativa do conjunto das ideias de Ea
sobre o seu tempo. E, l ast but not l eas t , a Corres pon-
d nci a de Fradi que Mendes, na ambiguidade da cria
o duma figura entre i maginria e real, ai ter ego de
Ea, figura aparentemente mundana mas de facto soli
tria e mesmo, por vezes, dramtica, pareceu-nos simboli
zar ironicament e as fundas cont radies de toda uma
ger aao que nelas plenamente, europeiamente, se soube
assumir.
O
E GERA
O DE 70
Para compreender claramente a aco cultural e es
ttica renovadora da Gerao de 70 e a prpria vida
dos seus principais representantes , imprescindvel,
antes de mais, ter uma ideia, numa breve introduo
hi strico-cultural, da poca em que ela se formou e
evolui u. Comecemos pela evocao dos dois primeiros
. perodos do romantismo que a precederam, perodos e
.
autores que a influenciaram ou contra os quais ela rea
gIU.
O pri mei ro desses perodos surge, com Garrett,
ainda imbudo de cultura clssica, a par, quer do ideal
de progresso herdado dos iluministas franceses do s
culo XVIII, quer do ideal nacionalista estrito, de raiz li
beral.
De facto, Garrett, desde os seus poemas Cames
(1825) e D. Branca ( 1826) , baseia o seu vago roman
tismo num nacionalismo de carcter liberal em que o
modelo clssico ainda predomina. S com Viagens na
Minha Terra (1846) e sobretudo com Folhas Cadas
(1853) Garrett se arrisca a um lirismo j mais livre
mente romntico, embora ainda a a tradio clssica
greco-latina aflore com frequncia. Num dado passo de
Viagens na Minha Terra) Garrett chega mesmo a afi rmar:
Romntico, Deus me livre de o ser! !
Por outro lado, Herculano, que participa igualmente
na Revoluo Liberal, proclama em 1835, na revista
Repositrio Literrio: Diremos somente que somos ro
mnticos, querendo que os Portugueses voltem a uma
l i teratura sua ( . . ) . Que amem a Ptria mesmo em
poesia. 2
Consequentemente, Garrett e Herculano so escri
tores liberais que, em grande parte, condicionam a li
teratura a princpios, rigidamente nacionalistas, de
carcter ideolgico. Todavia, ao contrrio de Garrett,
Herculano est receptivo s ideias do romantismo euro
peu em geral, sobretudo s do romantismo vindo de
Inglaterra e da Alemanha. E essa receptividade, .que
no se limita citao eventual de autores e obras,
mani fest a-se sobretudo na revi st a que Herculano
funda e dirige, em 1837: O Panorama. Com o seu pen
dor fi l osfco e a sua metodologia hi strica, Her
culano , de facto, o grande precursor da Gerao de
70 e duma renovao do romantismo portugus, re
novao urgente aps um perodo em que predomina
o excesso retrico e sentimentalista do chamado ultra
-romantismo.
Fal aremos mai s adi ant e dest a tendnci a ul tra
-romntica, contra a qual reagiram sobretudo, desde o
incio da formao da Gerao de 70, Tefilo, Antero e
Ea. Digamos, por agora, que na altura em que surgem
os primeiros textos destes representantes da Gerao de
70 a revoluo romntica, paralela Revoluo Li
beral, tivera o mesmo destino que esta: parara. E essa
paragem tinha um nome: Regenerao.
I Viagens lia Millha Terra, Lisboa, Ed. S da Costa, 1 954, p. 38.
'Repositrio Literrio, n." I I , 15 de Maro de 1 835, pp. 87-88. Note-se a
importncia destas revistas literrias para a evoluo das ideias romnticas
e para a divulgao da l i teratura estrangeira em Portugal .
o que foi a Regenerao? Recorramos aqui aos espe
cialistas de histri a. Joaquim Verssimo Serro, na sua
exemplar Histria de Portugal, define-a da seguinte ma
neIra:
o gri to de 'regenerao' , que no dia 28 de
Abril de 1 851 envolveu Saldanha no Teatro de
So Joo do Porto, constitua um apelo a uma
nova ordem nas coisas. O termo no era uma no
vidade na linguagem poltica, pois fora um dos
vectores da Revoluo de 1 820. As esperanas de
'ventura pblica' , de 'prosperidade nacional' , de
'progressos da civilizao' , de 'paz civi l ' , numa
palavra, a 'Sagrada Causa da Regenerao Pol
tica' , tinham soado no movimento vintista. Mas
s trinta anos depois encontraram a correspon
dente real i zao no desembai nhar da espada
de Saldanha. Este pretendia retomar a pureza de
um liberalismo que ainda no cumprira os seus
fins. Sem atribuir ao termo 'regenerao' a es
sncia de mudana libertadora que ele continha,
preferia dar-lhe o sentido de pacificao nacional
aps tantos anos, em Portugal, de luta e incer
tezas . 3
No centro socioeconmico deste movimento de rege
nerao nacional, ou melhor, de pacifi cao nacional,
est um jovem engenheiro e militar: Antnio Maria
Fontes Pereira de Melo ( 1 81 9- 1 887) . Homem eminen
temente prtico, foi ele quem criou, em 1 852, o Minis
trio das Obras Pblicas, do Comrcio e da Indstria,
mandando construir quatrocentos quilmetros de es
tradas, uma dezena de pontes e, em 1 856, a primeira
linha de caminho-de-ferro, entre Lisboa e o Carregado.
Histria de Portugal, vol. IX ( 1 85 1 - 1 890), Lisboa, Ed. Verbo, 1 986, p. 1 4.
o chamado fontismo provocou uma espcie de re
aco cul tural contra a idolatria do progresso, reaco
es s a que, num ext remo, deu o chamado ul t ra
-romantismo e, no outro, j como reaco a esta pri
meira reaco, toda a complexa atitude antitecnolgica
e antiburguesa da Gerao de 70.
evidente que para se compreender melhor, ainda
que esquematicamente, todas estas reaces cul turais e
propri amente l i terrias temos de recuar ao perodo
d uma certa ideali zao pol ti co-cul tural especi fica
mente romntica que, seguindo-se primeira fase do
liberalismo, se fxou na imagem revolucionria e repu
blicana de 1 848, vinda de Frana. De facto, entre 23 e
26 de J unho de 1 848, uma i nsurreio dos bai rros
operrios do Leste de Paris, esmagada pela represso,
desencadeou, inclusivamente em Portugal, um movi
mento cultural revolucionrio que no se coadunava
com o reformismo tecnolgico fontista. Mesmo para
aqueles intelectuais do primeiro romantismo, como
Herculano, que no exaltavam o radicalismo revolucio
nrio vindo de Frana, a Regenerao, desde o incio,
foi vista com desconfi ana. Ci te-se, entre tantos, um
testemunho desse facto: no j ornal O Pas de 29 de Outu
bro de 1 85 1 , Herculano fala de uma srie de descon
chavos referindo-se histria poltica em geral e acusa
os polticos da poca de no terem ideias seno as que
( . . . ) beberam nos livros franceses mais vulgares.
Esta acusao de Herculano encontrar eco nos mais
decisivos representantes da Gerao de 70. Luta contra
os desconchavos polticos e, paralelamente, contra as
vulgaridades literrias que, de certo modo, retoma a
luta da primeira gerao romntica de Garrett e Her
culano. E que, afinal, a luta duma verdadeira regenera
o do pas .
Todavia, se, em grande parte, essa luta regeneradora
para l da prpria Regenerao , desde o incio, uma
outra forma de romantismo histrico-cultural, os cami-
nhos para atingir esse ideal divergem. Assim, manifes
ta-se desde o perodo de formao uma tendncia radi
cal republicana que colide com a tendncia dum socia
lismo utpico.
A tendncia republicana revela-se desde 1 848, a 25
de Abril, com a publicao dum jornal clandestino cha
mado A Repblica -Joral do Povo, que dura dois meses .
Mas ainda algo de muito vago, que no se baseia
numa estrutura partidria, pois o Partido Republicano
Portugus s criado em 1 876, sendo ento presidido
por Antnio de Oliveira Marreca, velho idelogo fiel
aos princpios setembristas, antigo professor de Econo
mi a no Instituto I ndustrial de Lisboa e deputado.
A tendncia socialista utpica comea a manifestar
-se, alis, na mesma altura. Em 1 849, um panfleto, o
Panfleto Socialista, exprime as ideias do utopista francs
Charles Fourier (1 7 72- 1 837) e um jornal, que surge em
Abril de 1 850, O Eco dos Operrios, divulgou as mesmas
ideias fourieristas. Mais tarde, j em pleno perodo da
interveno cul tural da Gerao de 70, este jornal ter,
entre outros, a sua continuidade em A Voz do Operrio
lti
mos Trs Sculos) foi publicada e, alm do sucesso que
teve de imediato 1 0, tornou-se um texto fulcral para com
preender o incio da aco cultural de toda a Gerao
de 70. A, Antero aponta trs causas da decadncia da
Pennsula Ibrica: o catolicismo imposto pela Inquisi
o depois do Conclio de Trento ( 1 545- 1 563) , 0 ab
solutismo poltico, que causou a runa das liberdades
locais, e as conquistas longnquas, ou sej a, a disper
so das capacidades do povo em territrios longnquos
descobertos que no podiam ser devidamente coloniza
dos . Daqui resultou, segundo Antero, o desamparo de
fazendas, reinos e imprios, que Cames lastimara, a
embriaguez dos fumos da
ndia, esvaziando de po
pulao uma nao pequena. A ideia fi nal de Antero,
que condenava apenas o catolicismo, ligado Inquisio
e ao absolutismo poltico, tenta conciliar cristianismo e
revoluo: a Revoluo o
.
cristianismo do mundo
moderno
II .
10
Ver a este propsito Antnio Salgado Jnior, Histria das COllfrllcias do
Casillo, Lisboa, 1 930, pp. 29 e seguintes.
" cr. o texto de Antero in Prosas, vol. II, Coimbra, Imprensa da Universi
dade, 1 926, pp. 92- 1 40.
As outras conferncias, versando temas diferentes,
tentavam igualmente revolucionar as ideias da poca.
Citem-se, sobretudo, a de Ea, a 1 2 de Junho, sobre a
Nova Literatura (<<A afirmao do realismo como
nova expresso da arte) , exaltando Flau bert, o pintor
Courbet e as ideias estticas e sociolgicas de Taine e
de Proudhon; e a conferncia de Adolfo Coelho sobre o
ensino em Portugal, criticando a falta de preparao
cientfca dos professores e propondo reformas revolu
cionrias.
A 26 de Junho as Conferncias do Casino foram proi
bidas por atacarem a Religio e as Instituies polti
cas do Estado. Estava encerrada uma fase decisiva da
aco cultural e ideolgica da Gerao de 70. A vida e a
obra dos seus principais componentes, esquematica
mente expostas, testemunhar a seguir da amplitude e
da variedade dessa aco.
3. O Santo Antero
Originrio de famlia fdalga e letrada, proprietrios
rurais em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde nas
ceu a 1 8 de Abril de 1 842, Antero foi estudar para
Coimbra, onde se tornou uma espcie de mito. Ea,
tambm estudante de Direito em Coimbra nessa altura,
descreve-o assim, criando desde 1 862- 1 863 o mito do
Santo Antero:
Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril
ou Maio, atravessando lentamente com as minhas
sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre
as escadarias da S Nova, romanticamente bati
das da lua, que nesses tempos ainda era romn
tica, um homem, de p, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampe
j os fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, fri
sada e aguda, maneira srica, reluziam, aureola
das. ( . . . ) Parei, seduzido, com a impresso de que
no era aquele um repentista picaresco ou ama
vioso, como os vates do antiqussimo sculo XVIII
-mas um Bardo, um Bardo dos tempos novos,
despertando almas, anunciando verdades. ( . . . )
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um
camara
da, que murmurou, por entre os lbios abertos de
gosto e pasmo:
- o Antero! . . .
( . . . ) Inti mi dade, porm, com aquele que eu
depois chamava 'Santo Antero' , s verdadeira
mente comeou na manh em que o visitei, com
muita curiosidade e muita timidez, na sua casa do
Largo de S. Joo. '2
Era ento a poca em que, como diz Ea no mesmo
texto, se vivia em Coimbra um grande tumulto men
tal, com os caminhos-de-ferro que traziam livros vin
dos de Frana, torrentes de coisas novas, ideias, siste
mas, esttica, formas, sentimentos, i nteresses humani
trios , todo um mundo novo que o Norte nos arre
messava aos pacotes.
Esse mundo novo vindo do Norte vai infuenciar
Antero, que publica os primeiros sonetos em 1 861 e que
com Odes Modernas ( 1 865) inicia um novo perodo li
terrio ao qual Antnio Srgio chamou com justeza
terceiro romantismo. Um perodo em que surgem in
funcias de poetas da Alemanha romntica, como
Novalis, Hoelderlin ou Heine, para os quais a ideia filo
sfca se sobrepe ao mero lirismo sentimental. Essa
" Antero de Quentab>, in Notas Contemporneas, Porto, Lello & Irmo Edi
tores, s/d, pp. 339-341 .
ideia que Antero exalta assim no fi nal do soneto Tese
e anttese:
(. . .) a ideia num mundo inaltervel,
Num cristalino cu que vive estvel . . .
Tu, pensamento, no s fogo, s luz/13
Com Primaveras Romnticas ( 1 872) , Antero, depois de
ter viaj ado por Frana em 1 866 e pelos Estados Unidos
em 1 869, faz da poesia uma voz da Revoluo. Mas
em 1 873, com a morte do pai, Antero atravessa um
perodo de funda depresso. Regressando aos Aores,
Antero entrega-se a um pessimismo visionrio, metafi
si co e niilista. Alguns sonetos so disso impressionantes
exemplos. Oliveira Martins, no prefcio aos Sonetos, dii
o seguinte a este propsito:
( . . . ) as suas pginas foram escritas com sangue
e lgrimas! E di ver a vida do mais belo esprito
consumir-se em agonias de uma alma em luta con
sigo mesma! O comum da gente, ao ler as pginas
deste vol ume, dir ento: Quantas catstrofes,
que desgraas este homem sofreu! que singular
hostilidade do mundo para com uma criatura hu
mana! -E todavia o mundo nunca lhe foi propri
amente hostil, nenhuma desgraa o acabrunhou; a
sua vida tem corrido serena, plcida, e at para o
geral da gente em condies de felicidade.
que o geral da gente no sabe que as tempes
tades da imaginao so as mais duras de passar!
N o h d o r e s t o a guda s como as do r e s
i maginri as. 14
13 SOl/elos, segundo a edio dos SOl/elos Complelos de Oliveira Mart i ns
( 1 918), Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1980, p. 92.
" Idem, p. 1 3
o perodo de 1 864 a 1 874 foi aquele em que, como
diz Oliveira Martins, a tempestade caminha, v-se a
onda negra da desolao espraiar-se; v-se o silncio e a
escurido, que antes surgiam como surpresas medo
nhas, ganharem um lugar espraiado. Depois de 1 874 e
at sua morte, Antero escreve uma poesia de negao
de toda a aco neste mundo, como se poder ver por
este soneto, intitulado Nirvana, em que se sucedem
as imagens do nada:
.
Para alm do Universo luminoso,
Cheio de formas, de rumor, de lida,
De foras, de desejos e de vida,
Abre-se como um vcuo tenebroso.
A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida . . .
Numa imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso . . .
E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as coisas naturais.
bel
a
luz da vida, ampla, ininita,
S v com tdio, em tudo quanto fita,
A iluso e o vazio universais.
lo
Os l timos sonetos so escritos em 1 887 e em 1 890
.
Antero publica ainda na Revista de Portugal de Ea de
Queirs um importante ensaio: As Tendncias Gerais da
15 Idem, p. 1 2 1 .
Filosofia na Segunda Metade do Sculo XIX. Depois de uma
breve e decepcionante adeso Liga Patritica do
Norte, fundada na altura do Ultimatum ingls de 1 890
por causa das nossas colnias em
ltimas Farpas
( 1 9 1 1 - 1 91 4) , depois da revoluo republicana, defende
fervorosamente o regresso a uma monarquia castia,
antiga. Eis mais um elemento que caracteriza as
ntimas contradies da Gerao de 70.
7. Ea de Queirs e a renovao do romance
Filho de um magistrado e homem de letras que fizera
parte dum grupo de poetas ultra-romnticos de Coim
bra, Teixeira de Queirs Oos Maria de Almeida) , Ea
de Queirs nasce na Pvoa de Varzim a 25 de Novem
bro de 1 845, vindo a falecer em Paris a 16 de Agosto de
1 900. Dele se pode dizer desde j e sem hesitao que
foi o grande renovador do romance portugus do sculo
X. E foi-o no tanto no sentdo em que Viagens n Mi
nha Terra de Garrett, aparentando-se com um dirio n
ti mo, prope uma linguagem romanesca absol uta
mente nova, que infuenciou o prprio Ea. Foi-o no
sentido em que os diversos elementos dos romances de
Ea, e principalmente Os Maias ( 1 888) , desde a lingua
gem s personagens, passando pela anli: social e psi
colgica, formam uma estrutura de conjunto absoluta
mente nova e coerente que ultrapassa, quer o romance
ou a novela camilianos, quer a escola realista-natu
ralista em si mesma.
Todavia, preciso atentarmos no facto de o percurso
at a Os Maias ter sido longo e representar muito do
prprio percurso da evoluo geral de toda a Gerao
de 70.
Assim, temos primeiro a fase coimbr, entre 1 861 e
1 866, ano em que Ea se forma em Direito. a que ele
conhece Antero e comea a ter consci ncia de fazer
parte de uma gerao renovadora. Esta conscincia le
va-o a rebelar-se contra a prpria instituio universi
tria coimbr, considerada anacrnica: No meio de
tal Universidade, gerao como a nossa s podia ter
uma atitude -a de permanente rebelio. 29
Note-se que, nessa altura, as leituras de Ea so pre
dominantemente as de Shakespeare e dos romnticos
alemes e franceses, como Reine, Vtor Rugo, Nerval,
Mi chelet, Baudelaire. Numa carta clebre ao seu amigo
Carlos Mayer, datada de Novembro de 1 867, e publi
cada nas Prosas Brbaras ( publicao pstuma, 1 903) ,
Ea diz: Naqueles tempos, segundo a frmula do
Evangelho, o romantismo estava nas nossas almas. Fa
z amos devot amente orao di ante do bus t o de
Shakespeare3o
Depois de licenciado em Direito, Ea instala-se em
Lisboa, na casa paterna, ao Rossio, 26, 4 andar. Cola
borador da Gazeta de Portugal, os seus textos, que for
maro o volume Prosas Brbaras, revelam nessa altura
sobretudo a influncia do satanismo de Baudelaire.
Esta infuncia leva-o a criar com Antero e Jaime Bata
lha Reis a figura de Fradique Mendes, espcie de alter
ego de Ea e de heternimo colectivo da Gerao de 70.
Ea, que retoma o personagem at ao fim da sua vida,
evoca assim Fradique Mendes numa carta a Oliveira
Martins datada de Brstol, Junho de 1 885, carta em
que expe o projecto da Correspondncia de Fradique Men
des:
29 No/as COI/emporleas, ed. citada, pp. 333-334.
3 Prosas Brbaras, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s/d, p. 2 1 3.
No te lembras dele? Pergunta ao Antero. Ele co
nheceu-o. Homem distinto, poeta, viajante, fil
sofo nas horas vagas, diletante e voluptuoso, este
gentleman, nosso amigo, morreu. E eu, que o apre
ciei e tratei em vida e que pude julgar da pitoresca
originalidade daquele esprito, tive a ideia de reco
lher a sua correspondncia - como se fez para
Balzac, Madama de Svgn, Proudhon, Ablard,
Voltaire e outros imortais -e publico-a ou desejo
public-la nA Provncia. Fradique Mendes corres
pondia-se com toda a sorte de gentes vrias, all
sorts of
n
un com se diz na Bblia ofi cial desta terra.
Ele escreve a poetas como Baudelaire, a homens
de estado como Beaconsfi eld, a fi lantropos como
S. '
o
Antero, e a elegantes como (no me lembra
agora nenhum elegante a no ser o Barata Loura)
e a personagens que no so nada disto, como o
Fontes
:
Alm disso, tem amantes e discute com
elas a metafisica da voluptuosidade. 31
Mas antes de recriar o seu primeiro Fradique Men
des, o de 1 869, transpondo-o at para a personagem do
Carlos da Maia de Os Maias, Ea passa por uma fase
real is ta -na turalis ta que igualmente caracters tica da
sua gerao.
vora, O Distrito de
SICA
BARRETO, Moniz - Oliveira Martins, Estudo de Psi
cologia, 1 887. Cf. Ensaios de Crtica, Lisboa, 1 944.
CAL, Ernesto Guerra da -Lngua e Estilo de Ea de
Queiroz, Coim bra, 1 981 .
CARVALHO, Joaquim de -Estudos sobre a Cultura
Portuguesa do Sculo XIX, vol. 1 (Anteriana), Coimbra,
1 955.
CIDADE, Hernni -Antero de Quental - A Obra e o
Homem, 2" ed. , Lisboa, 1 978.
COELHO, Jacinto do Prado -Dicionrio de Literatura,
3" ed. , Porto, 1 976.
FERREIRA, Alberto -Bom Senso e Bom Gosto, Questo
Coimbr, 2 vol s. , 2" ed. , Lisboa, 1 986.
FI GUEI REDO, Fidelino de -Histria da Literatura
Romntica Portuguesa, 2' ed. , Lisboa, 1 923; Histria da
Literatura Realista, 2" ed. , Lisboa, 1 924.
FRANA, Jos-Augusto -As Conferncias do Casino no
Parlamento, Lisboa, 1 973; O Romantismo em Portugal, 3
vols. ilustrados, Lisboa, 1 975- 1 977.
MACHADO,
scar -Histria da
Literatura Portuguesa, voI . I, Lisboa, 1 966.
SERR
sia: a epopeia de
Cames interpreta minuciosamente as tendncias na
cionais, os sentimentos e paixes que ento vigoravam.
Apareceram as Meditaes ao desvanecer das ilses do
sculo XVIII, desse sculo, que, enj ei tando as crenas
acatadas pela homenagem de tantos anos, se tinha,
com a presuno da impiedade, espraiado em profecias
brilhantes sobre os venturosos destinos da humanidade.
excitao frentica, s aspiraes ardentes tinha su-
cedido o abatimento melanclico, a dvida dolorosa e
pungente: as orgias ruidosas tinham terminado num
desfalecimento e seriedade justifi cados por quarenta
anos de desgraa. A humanidade, a quem a Frana ha
via electrizado, tinha caminhado de esperana em es
perana, e quando se viu face a face com o desengano,
parou no seu devanear, olhou para os tmulos, que ti
nha aberto, para as runas de que tinha juncado a terra,
TEXTOS DOUTRINRIOS 53
e sentiu o corao comprimido pela dvida dos antigos
vaticnios. Lamartine, manifestando o estado do seu es
prito, pintou em traos vigorosos, e com um vivo bri
lho de cor, a incerteza penosa, o desapontamento afitivo
de uma gerao inteira. Nas Meditaes no se escuta s
uma voz plangente, mas uma nao inteira a lamentar
-se: ali se ouve o grito de angstia arrancado pelo abu
tre da incredulidade ao corao que o desengano enca
deou terra. Mas a dor sucedida pela consolao:
assoma, verdade, a desesperao, mas como o bulco
pej ado de troves e relmpagos, expelida pelos raios
luminosos da esperana: O cepticismo mostra o seu sor
riso glacial; mas por ltimo . . . ajoelha em orao. Para o
bardo francs, como para Byron, a terra no o templo
do gnio do mal, no um crcere em que o homem foi
com desprezo arremessado, escarnecido pelo Ser Su
premo: a essas dvidas e difi culdades que lhe oferecem
a nossa origem, a nossa natureza e os destinos da hu
manidade, encontra soluo nos dogmas e ensino do
cristianismo. Este raio de esperana que o poeta infl
trava no corao foi o que lhe acumulou sobre o nome
os encmios entusisticos, e o que excitou a aclamao
fremente dos que quinhoavam iguais incertezas e cur
tiam pesares no menos agudos. Nem admira; se o pas
seador soli trio ouve, num momento de melancolia,
sons tristes que respondem ao seu acerbo cogitar, mas
entremeados de um canto de esperana e conforto,
sobressalta-se e corre a abraar o amigo que assim o
adivinha e consola. Tal foi a sensao que produziu
esse canto doce e penetrante que eleva a alma ao cu
aquecida ao fogo do seu entusiasmo, e no fria e in
sensvel como a flosofa que perscruta os segredos do
unIverso.
A afnidade misteriosa entre o homem e a poca de
todo o ponto completa. O povo francs saa do campo
das batalhas, fatigado de pelej as e de glria. Por um
quarto de sculo no tinha cessado de correr o sangue
54 ANTERO DE QUENTAL
quer no cadafalso, quer no meio das refregas: o gnio
dos exrcitos tinha esgotado as foras de um povo cora
joso: aos olhos deslumbrava j o brilho das armas, e o
ouvido no podia suportar o troar do canho: a Frana
estava cansada de tantos confli tos, e queria viver em
paz, para si, satisfazer as tendncias individuais, gozar
da independncia e da liberdade. Aborrecendo o rudo,
deleitava-a o retiro campestre, desej ava espairecer os
olhos pela verdura dos campos, deliciar o ouvido com o
gorjeio das aves, e admirar a natureza no meio da paz e
da meditao. Qual no seria, pois, o seu alvoroo ao
ouvir descrever os campos, cantar os lagos, os bosques
e todas essas belezas rurais, que, parecia, faziam baixar
sobre ela um orvalho refrigerante de que tanta necessi
dade tinha?
Lamartine fez tambm uma completa revoluo na
poesia, revoluo quej Chateaubriand tinha realizado
na literatura, e Bossuet tentado no sculo XVII. De feito
o grande bispo a quem nenhum ramo de conhecimen
tos era estranho, tinha rectamente pensado que uma
religio, fonte de to fecundas virtudes, inspiradora de
to sublimes pensamentos no podia ser estril s na
poesia: que maior incongruncia do qe pensar ideias
crists e exprimi-las com palavras e imagens da mitolo
gia! Era necessrio expulsar do trono em que os tinha
conservado a idolatria dos clssicos gregos e latinos, os
deuses do Olimpo, os Faunos, as Musas, as Ninfas e
destruir todo o pessoal e material da teogonia. Isto fez o
poeta, no sobrepensado, mas por instinto: eram crists
as suas palavras e imagens, porque assim o era o seu
pensamento, porque eram bebidos na Bblia, que sua
me lhe tinha ensinado a ler, no corao que havia sido
educado pelos piedosos mest
r
es de Belloy, a quem ele
dirige um to pattico adeus. A sua frase era crist,
porque a natureza era um poema que, deleitando-o, lhe
elevava as inspiraes ao Cu. Como todo o grande
poeta, achava na contemplao da natureza um prazer
TEXTOS DOUTRINRIOS 55
i ndefi nvel : como saudades' que se recorda das horas
que passava deitado sobre a relva numa clareira do
bosque, a ler aJerusalm Libertada, sombra dum velho
tronco de macieira, e de tantas tardes de Outono e de
I nverno em que errava por descampados cobertos de
geada e colinas cingidas de nevoeiro, com Ossian ou
Werther por nicos companheiros. Umas vezes corria
como que arrastado por um esprito que lhe impedia os
ps de tocar o solo: outras assentava-se sobre um pe
nedo ermo, e apoiando a testa nas mos, escutava, com
um sentimento sem nome, o sopro agudo e plangente
do I nverno, ou o balancear das nuvens pesadas que se
quebravam nos ngulos da montanha, e escutava a voz
area da cotovia que o vento arrastava a cantar no seu
redemoinho. Essas impresses, que o mancebo ento
ressentia, partilhavam de todos os sentimentos. Eram o
amor e a religio, pressentimentos da vida futura, o x
tasis e o desfalecimento, horizontes de luz e abismos de
trevas, alegria e l grimas, o futuro e a desesperao.
Era a natureza falando pelas suas mil vozes ao corao
virgem do homem, era a poesia: e essa poesia respon
dendo aos sentimentos que alimentavam o esprito, em
nome da religio do Cristo, expulsava de seus domnios
os deuses do paganismo, e dava musa em l ugar de
uma lira de sete cordas as fbras do corao, vibradas
pelas emoes da alma e da natureza2: uma tal inova
o marcou uma poca notvel e causou uma revoluo
na literatura. Para falar a linguagem da poesia, no foi
necessrio dali em diante decorar o dicionrio mitol
gico, subi r ao Parnaso, ou beber as guas de Aganipe: a
linguagem fctcia foi substituda pela realidade.
O amor nunca abandonou os poetas: quanto mais
poetas so tanto mais profundo se lhes arreiga no cora-
' Des destines de la posie.
2 Pre des Mdit. 1849.
56 ANTERO DE QUENTAL
o, porque possuem maior sensibilidade; mas o amor
que vivifica os versos de Lamartine o amor cristo,
purificado de toda a mcula carnal nas chamas do
espiritualismo, o l ao misterioso que prende pela
simpatia e pelo pensamento duas almas congeniais.
a orao que eleva os olhos para Deus: a unio
que, comeada na terra, ter o seu complemento no
Cu.
Essa comunho de dois seres na esperana, esse
perfume impregnado de melancolia do nosso destino,
no o conheceram os antigos, nem o ardente Catulo,
nem o vol uptuoso Horci o, nem o meigo Ti bul o:
para estes a sensao era tudo: no assim para Lamar
tine.
Tu disais, et nos coeurs unissaient leurs souPirs
Vers cet tre inconnu qu'attestaient nos dsirs.
genoux devant lui, l 'aimant dans ses ouvrages,
Et l 'aurore et le soir lui portaient nos hommages,
Et nos yeux ennivrs, contemplaient tour tour
La terre, notre exil, et le ciel son sour.
Ah! si dans ces instants ou l'me fugitive
S'lance et veut briser le sein qui la captive
Ce Dieu du haut du ciel rpondant nos voeux
D 'un trait librateur nous eut frapp tous deux,
Nos mes d'un seul bond remontant vers leur source
Ensemble auraient franchi les mondes dans leur course
travers l'infini, sur l'aile de l'amour,
Elles auraient mont comme un rayon du jour,
Et jusqu ' Dieu lui-mme arrivant perdues
Se seraient dans son sein jamais confondues.
A reabilitao da mulher o indcio mais seguro do
espiritualismo cristo: os ateus e voluptuosos consi
deram-na apenas como um instrumento de prazer.
As Meditaes bem que compostas de trechos separa
dos formam um quadro perfeito da vida humana, com
TEXTOS DOUTRI NRIOS 57
todos os acidentes e vicissitudes que a tornam to va
riada e contraditria. Os livros santos dizem que o ho
mem tem na cabea dois exrcitos em ordem de bata
lha; e de facto um combate constante se acha travado
no esprito humano; aos arrojos celestes sucede o revol
ver na lama, a virtude vence e vencida pelo crime, o
sensualismo impera e expulsado pela castidade; agora
a alma se eleva nas asas da esperana, e logo prostra
da em terra pela desesperao; hoj e a f a vigorar, ama
nh elanguesce ao sopro mirrador do cepticismo. Tal
a l uta que dilacera o corao, assim se encontra descri
ta nas Meditaes: a triunfa umas vezes o bem, outras o
mal, mas aquele por quem a vitria defi nitivamente
alcanada.
O pensamento que domina em todo aquele escrito
o retrocesso para as ideias religiosas postergadas pelo
sculo anterior: o cepticismo desacreditado estava em
decadncia: semelhante ao escorpio que, com o dardo
envenenado de que a natureza o dotou, arranca a pr
pria vida, se por acaso brbaro brinco de crianas l he
traou em volta um crculo de chamas, impiedade
confrangida no aro de ferro da dvida, tanto se havia
torturado, que procurava um alvio a dores insofrveis .
A f uma necessidade: rodeado de mistrios, de enig
mas que o interessam no mais alto ponto, o homem
estorce-se, sem o conseguir, por descortinar a sua ori
gem, por descobrir as relaes que o ligam ao infnito,
por perceber o termo dos sofrimentos aturados a que se
acha condenado. S a f, s essa luz sobrenatural ca
paz de lhe apontar a estrada que tem a percorrer: dou
tra forma voga, como diz o Apstolo, arrastado por
todo o vento da doutrina, merc dos que semeiam o
erro e a iniquidade. Lamartine exal tou a f, como
dando, e s ela, a explicao das aspiraes mais vastas
que o destino natural , dessas dvidas dilacerantes, des
sa sede de infelicidade que impossvel mitigar: e para
entoar a cano de esperana, que pregava ao homem
58 ANTERO DE QUENTAL
cansado das l utas morais e da efuso de sangue a reli
gio e a paz, escolheu a vasta natureza, onde a medita
o mais concentrada, e o sossego dos campos tanto
mais aprazvel quanto tinha sido ruidosa a poca que
h pouco terminara.
De imperfeies nunca o maior gnio est isento; so
resgatadas por mil dotes de uma superioridade incon
testvel; um erro, porm, transluz no poema das Medi
taes que se torna notvel por caracterizar os escritos
posteriores do autor, o pantesmo.
impossvel j usti
ficar fi losoficamente os seguintes versos dirigidos a de
Lamennais:
L 'tre fiots ternels dcoulant de son sein
Comme un fieuve nourri par ceite source immense,
S'en chappe et revient finir ou tout commence.
I peuPle I 'infili chaque fois qu 'ii resPire .
.
No obstante essa iluso, nascida da excessiva con
templao da natureza e certa negligncia na versifi ca
o, bem como alguma exagerao no sentimentalismo,
e um errar de imaginao a que por vezes falta a solidez
do pensamento, as Meditaes sero sempre a admirao
do indiferente, o enlevo do crente, e um conforto para
os que se debatem no ecleo da dvida.
CARTA DE HENRI HEINE A GERARD
DE NERVAL
Antes de comear
Ao milagre sucede o espanto, e ao espanto nada! por
que est cheia a escala das sensaes fulminantes. Es
pantem-se logo, mas sem fazerem biocos de fei a incre
dulidade.
Eu, a exemplo do Apstolo, to-somente cobio para
mim os simples do corao, e de esprito . . . no sentido
honesto da palavra. Quem no tiver a f ingnua da
criana desvie o rosto e siga seu caminho.
Escreveu algures Tefilo Gautier, que o extraordi
nrio e sobrenatural, fora de o serem, se convertiam
para si em facto ordinrio e natural; o que o atarantava
e ensandecia era a vulgaridade e o lugar-comum! Ora
por que no sero as minhas gentis leitoras - subli
nharam-se as mulheres feias desde que Michelet e Karr
se meteram a empalmar as mulheres velhas -da por
celana fina e cintilante de Gautier?
Quando S. Tom propunha por metro da crena o
rgo visual e o tubo auditivo, parte a santidade, es
corregava na mais si ngular tolice, que nunca repetiram
ecos da montanha.
Creiam antes no que se no v que a metafisica -
e armem figas, ao que se v que chato e absurdo como
60 ANTERO DE QUENTAL
um facto. Assim escusam de recorrer Bblia, aos m
diuns, s mesas girantes, e quej andas bias de salvao
de facciosa memria. Com efeito Nerval e Reine ressus
citaram, e se VV. Ex.as os no enxergam ou palpam,
que certo fl utuam invisveis, como as vaporosas divin
dades do Ossian, ou andam disfarados guisa de prn
cipes constitucionais, viajando incgnitos por essas ter
ras . . . cultas, visto que j se no diz de Cristo.
No se lhes afigura plausvel e at racional a primei
ra hiptese? indubitavelmente. Segundo o respeitvel
Mesmer, os espritos aninham-se e encovam-se em qual
quer parte - numa secretria de pau-rosa - no sn
dalo arrendado do toucador - na copa pontiaguda
dum tromblon -e mesmo na corola dobrada e vigorosa
de uma camlia . . : vermelha! So como a prpria vir
tude -ou vont-ils se nicher!
Existem, pois, transfgurados certo; a difculdade
est em VV. Ex. "' desaventarem as paragens, em que
eles se baloiam. Derrancaram o trama nervoso e deli
cado das s uas pituitrias ao contacto desta atmosfera
ingrata que est contnuo destilando as mais preguio
sas constipaes, agora? Os espritos de alm-mundo,
bons e maus espritos, tm por vezo anunciarem-se
sempre nas grav
l
olncias de enxofre, ou nos aromas do
puro mbar.
O Patchouli e Macassar so transitrios, e por isso
muito e muito terrenos; h todavia guloso, que na ver
tigem carnal do entusiasmo, os prefere aos blsamos
celestes e pl atnicos . . . eu no! . . .
Mas no vale descoroar; cai bem o despeito em mui
to pouca gente. Se a tarntula frentica da curiosidade
as morder na fi bra oculta do desejo, desde j lhes insi
nuo um alvitre, que as jogue elegantemente ao alvo
apetecido.
Comprem uma fotografia - Nadar - que lhes re
produza as feies de Grard de Nerval e Reine, depois
rasguem essas jeremiadas do jornalismo, onde as Ra-
TEXTOS DOUTRINRIOS 6 1
quis provincianas choram inconsolveis sobre as ru
nas da viao pblica, embarrilem-se (caminho gros
seria) numa betesga pnsil , a que a linguagem eufnica
do cocheiro chama resolutamente uma diligncia, e de
satem enfi m a visitar novos cus, novos climas e estranhas
gentes que encontraro os originais plsticos dos meus
segredos de estado .
.
J aconteceu o mesmo com um insigne correspon
dente do -Freixo de Espada Cinta -, o qual, emer
gindo um dia do egosmo da sua abstraco, afogou o
verbo em carne e apareceu Balzac! ! -Era o mesmo ho
mem de facto, minucioso esmerilhador e micrgrafo po
tente dos segredos do corao humano: o teatro que
diferia um pou
c
o; a cainhez sovina de -Freixo -aba
fou-lhe as projeces radiosas, que coroaram de luz ao
Balzac de Pari s.
Vtima da fatalidade sujeitou-se inglria tarefa de
afuroar as l usas cavernas de caco, dizia el e em estilo
masculoso e enrgico -do regedor e presidente da c
mara daquela imoralssima gleba do Barroso.
Descobriu-se a luz, que crepitava acesa e vvida de
baixo do alqueive e puseram-lhe o nome brutal de Joo
Fernandes para no caluniarmos ningum! A tm; o
processo fcil, embora lhes no prometa absoluta
mente um xito doirado, porque Nerval era mais feio
que o tolervel, mesmo nestas terras de fcil e ininter
rupta pacincia.
As raas hoj e degeneram e as fealdades abundam por
a, como os bares e conselheiros.
Quanto a Heine, as leves fragosidades da expedio
alisar-se-o de per si. No exige uma sbia diplomacia de
intriga, nem longos preparos e diligncia, para chegar ao
desenlace esperado. Procurem e sero premiadas.
Moo elegante e belo, como o Antnous grego, real
ado nas feies harmnicas pela ondulao triste dum
impalpvel vu de humorismo, extrema-se bem na gale
ria viva dos tipos encontradios. Estanceia a pela l ati-
62 ANTERO DE QUENTAL
tude de Coimbra, cativado por aquela terra sagrada do
Hlicon portugus, to embrandecida nos acentos ma
viosos de Cames, Soares de Passos e Joo de Deus.
Dantes a peregrinao memorava os crentes das ru
nas santas de Jerusalm. Hoj e acena ao poeta da fonte
rumorosa de Vaucl use, do Pausi li po e da saudosa
Fonte dos Amores. Alteri temPi, alteri pensieri.
Ambos, o cantor de Reisebelder, e o nobre e infeliz
suicida, al canaram, por l icena potica, antecipar o
clangor da trombeta final, e reunir o atribulado esprito
ao invlucro terreno.
O mesmo esprito, solto das prises da matria, re
voltou crislida antiga para ensinar aos homens a
palavra do seu destino.
Oi va l 'homme sur terre! diz Victor Hugo. Eles se esfor
aro por esclarecer a palavra do abismo! Oh! Se vir
mortific-los ainda a horrvel desiluso do Adamastor,
abraando o gracioso fantasma de Ttis ! . . .
No fiquei homem, no, mas mudo, e quedo.
E junto dum penedo, outro penedo.
Agora para tranquilidade da conscincia caia uma
.
promessa dos sbios leitora. Ho-de aceitar a ressur
reio daqueles romeiros dos Eliseus e as suas confi dn
cias em p(rtugus, como factos naturais e positivssi
mos! Quem desce das regies supernas si trazer em
testemunho e sinal de sua lumino
s
a hierarquia o dom
prestigioso da linguagem universal. L em cima falam
-se todas, porque a unidade um degrau desta misteri
osa escada de Jacob, chamada progresso.
No tocante minha posio de editor, a histria
comprida, e as leitoras espirituosas me absolvero por
as forar aos percalos da sua leitura. Depois, a sua
curiosidade poder menos que a impacincia de be
berem os filtros inebriantes daquelas cartas!
Ser fei ta a sua vontade, minhas senhoras.
TEXTOS DOUTRI NRIOS 63
A carta
Ressuscitast e, meu amigo! Ressuscitaste - mas
como quem, acordando dum sonho, que lhe vestiu o
esprito com a cambraia luminosa das vises, cai de
chofre no meio desta realidade descolorida e estpida
- realidade mecnica e pautada, a que os burgueses
chamam vida, e a que o poeta no chama martrio . . .
desde que o
.
martrio se tornou apangio dos tolos,
e o sofrimento apenso de digestes trabalhosas e in
felizes.
Filho dum olhar profundo de virgem indiana cado
sobre as colinas harmoniosas da Grcia -flho do sen
timento e da luz, da perfeio e da beleza -eis-te per
dido e estranho, deslocado como um rendado gtico na
porta dum celeiro, no meio do nevoeiro espesso e nau
seativo a que se chama vida comum! Eis-te, como uma
fl or esplndida dos trpicos, toda sequiosa de ar e luz,
que amarelecesse moribunda no demi-our abafadio,
bao e hmido dalgum escritrio comercial ! ! !
Por que ressuscitaste aqui? Que metempsicose de
desgraa foi essa tua, que assim t e fez trocar algum as
tro ou sol por estes escuros chafurdos? Por que no alu
miou a lua voluptuosa do Oriente a primeira hora des
sa tua transformao, l por esses j ardins da Galileia,
que tanto amaste outrora?
Que no foi a sombra dalgum prtico de templo gre
go que te vestisse de harmonia a nudez de tua nova
encarnao?
E ressuscitas aqui! Aqui neste frio inverno das almas
- quando o cu te dava o palcio das suas estrelas; o
mar do Sul o seio arredondado de suas ondas; a terra
da
frica, diamante
nos montes do Oriente, napeia ou ondina, huri ou fada
nas margens do Bsforo, ou gigante nas florestas do
Norte . . . e preferes ser homem! - e o ltimo dos ho
mens, ento -o portugus, coisa duvidosa entre a es
ponj a do mar e o musgo da terra!
triste - triste, e ao parecer, injusto - porque te
no foi dado a escolher. No te chamou o grande Es
prito, a lei eterna - o P gigante, enfm - no te
chamou ao tribunal esplndido da Ordem, a escutar-te
as queixas de um destino anterior, e recolher-te as es
peranas de um melhor futuro, a receber-te, enfm, nas
mos feitas de raios de j ustia, o teu requerimento para
melhorias numa ulterior transformao! No desenro
lou diante de ti, como caixeiro do Infi nito, as peas in
meras, imensas, multicolores, fantsticas, sedas, velu
dos - e at chitas de pataco - que se chamam o
mundo das formas! No ps diante de teus olhos, esten
dida como deserto sem termo, a pasmosa imensidade
de ser, por que escolhesses qual gro de areia te convi
nha para veculo na tua prxima viagem! P -o selva
gem D. Juan das selvas e dos bosques - portou-se
grosseiramente contigo, meu pobre amigo. Tratou-te
como o estranho, deixou-te s nesta antecmara do
palcio dele, que o Universo, enquanto ele, ingrato ou
descuidoso, corria nas forestas, perseguindo com mos
l ascivas diades, ninfas, napeias e mais cachopas de
seus vastos domnios - com escndalo de todos os
Faunos da vizinhana!
Fez-te isto a ti - a ti, o seu amigo, o seu hspede,
o seu ntimo, a ti o pantesta!
feio, i njusto e brutal. O P de hoj e ainda o
mesmo maroufe que Hrcules levou, por uma orelha,
perante o l uminoso conclio dos Deuses .
ainda o
mesmo; insolente, fatalista e malcriado. Nem Hegel -
Hegel, o Hrcules deste sculo, que to rudemente lhe
TEXTOS DOUTRI NRIOS 65
sacudiu as agulhas orelhas, que tanto lhe quis ensinar
fil osofia, alemo, e civilidade, nem esse lhe pde torcer
o selvtico natural, sobretudo, aquela rude insolncia
antiga para com a espcie humana.
E contudo, tu tinhas direito a suas atenes, pan
testa! Tu tinhas direito a renascer sob uma forma me
lhor, tu que levaste toda uma vida anterior lapidando,
polindo, abrilhantando as formas artsticas dos mais
puros diamantes poticos que j amais ofuscaram com
seu brilho estes meus olhos cansados !
Pacincia! Ou antes, impacincia de ir correndo de
mundo em mundo, de ser em ser! Impacincia de que
se passe este tempo de dura provao, e ver se a filoso
fia com seu cortejo de santas ideias, chamadas liber
dade, j ustia e conscincia, penetra nos escuros bos
ques, e armando-lhe em volta cores harmoniosas, logra
civilizar o selvagem e grosseiro Po
Entanto, esperando, isto aqui mau, a forma que te
deram, imperfeita e ridcula. A vida que te fizeram triste,
descolorida, feia. O pssimo e o terrvel no que so o
mau. O mau o terrvel, o comum e o baixo.
a paz e o
sossego de quem no luta, porque no acha para que; vive
contente porque no sentiu nunca uma hora o desejo de
que na terra se chama o impossvel, e no cu (ou nos en
gana o corao) deve ter o nome de verdade. O mal o
gozo negativo e aptico dos que no sofrem, porque isso
que nos faz ser tristes, a impacincia sublime que o Es
prito, se lhes dissolveu e sumiu entre os tomos do vento
sem que pudesse subir-lhes cabea ou ao corao.
O Mal o Bem . . . comum.
o que isto . O que esta terra, esta gente, este
viver. Aqui no se pena. Para penar preciso desqar:
ora que desej a esta nao exausta, mais que o sono do
esquecimento? este povo caduco, mais que o recosto do
cemitrio? cada um destes homens, mais que a morte
dos vivos que se chama apatia e indiferena?
Paris - aquela tua Paris onde sofreste e amaste,
66 ANTERO DE QUENTAL
onde foste, uma, heri e mrtir, onde bebeste a glria
inebriante pela mo escura da desgraa - a cidade
-paradoxo, a terra quase fabulosa das lamas e dos es
plendores, essa podia ser para ti a luta e o sofrimento, a
tristeza e a misria, a nsia e a morte . . . a vulgaridade,
isso que ela no podia!
A angstia, o desalento, o abandono so belos, so
subl imes muitas vezes. A desgraa pode envolver-se
num manto luminoso da poesia, melhor, muito melhor
que n
'
enhuma ventura.
A trivialidade, essa que nunca pode ser infeliz.
a
compensao, se no o castigo, de sua doce felicidade.
As lgrimas de Julieta, os soluos de Hamlet - essas
lgrimas que ela nunca poder chorar -, nunca po
der
s
oluar soluos daqueles.
Consolemo-nos com i sto um pouco, meu amigo. Nem
todos podem erguer ao cu braos to descarnados, to
mirrados por uma febre interior - a do esprito -
como estes nossos.
Abracemo-nos com a nossa mesma tristeza para dela
tirarmos consolao a tanta mgoa. Ela deve ter no seio
um grande alvio e uma grande poesia, porque to
bela - ainda em meio das suas lgrimas.
E tem. Preciso dizer-te qual ela , essa consolao?
Que prola se forma no centro e da mesma decomposi
o de nossas mortas esperanas?
O sentimento duma compensao necessria para
estes destinos quebrados s mos do fado - o senti
mento da imortalidade -eis que filho belo da harmo
nia, de luz e de justia concebe em seu seio a plida
desgraa!
Hegel diz isto muito bem. Mas uma lgrima ainda o
diz melhor e com outra eloqunci a.
Lembram-me estes versos dum desconhecido:
Ah! so contadas as lgrimas
Que aqui se vo a chorar!
TEXTOS DOUTRINRIOS
Debaixo de nossos olhos
Anda-as Deus sempre a aparar.
Eu creio na Providncia.!
O tronco seco da Cru;
Rebenta no Paraso
Para dar flores e lu;.
dade antiga!
Os combatentes, no maior ardor da pelej a, fi tam-se, en
caram-se com pasmo, e sentem as mos abrirem-se
para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os bra
os . . . somos irmos!
Primeiro encontro, santo e purssimo, dos prometi
dos da histria! Manh suave dos primeiros sorrisos,
dos olhares tmidos mas leais desses noivos formosssi
mos, que o tempo aproximava assim para o casamento
misterioso das raas!
No h no mundo palcio de rei digno de lhes escu
tar as primeiras e sublimes confidncias ! s um templo,
alto como a cpula do cu, largo como o voo do desejo,
puro como a esperana do primeiro e inocente ideal hu
mano!
Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois lou
cos s e encerra tudo. Nenhuma montanha to al ta,
aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase,
a maior revelao que j amais ouvir o mundo dentro
do homem est Deus.
I I
Este facto nico, aos olhos dos que lem a histria
nas letras impalpveis mas l uminosas das ideias, e no
nos hieroglficos brbaros e confusos dos acontecimen
tos fatais, basta a explicar o mistrio que segue tudo o
que depois vir.
A adopo do ideal hebraico pelo gnio grego: o cris
tianismo, misterioso hspede oriental, recebido com
amor sob o tecto cheio de luz do Ocidente; Jesus sen
tado entre os flsofos da Alexandria, escutado e aplau
dido no
j
`
94 ANTERO DE QUENTAL
templao do mais estreito clix duma fl or sem nome
desses campos! No clix da flor, diz o poeta, se encerra
a beleza toda do universo -e que profundos e desco
nhecidos tesouros de beleza e verdade no guarda o
corao dum simples?! . . .
por isso que esta religio abraa no seu crculo
maravilhoso a alma toda e toda a vida, como o sol do
meio-dia v quanto rastej a na terra e quanto paira nas
alturas -porque no despreza ningum. Como Jesus
entre as crianas, aprende tanto quanto ensina. Missio
na, e recebe todavia lies do mais simples, do mais
humilde catecmeno. O seu declogo tem uma margem
larga bastante para que o povo o comente, quando no
acrescente um artigo lei. a religio do movimento
-o Colombo dos mundos encobertos do espri to,
erecto na proa do galeo, sondando o horizonte com os
olhos, incitando, animando todos para a conquista do
desconhecido. Sentado na trpode santa da sua inspira
o, sente correr-lhe na alma o esprito do Deus vivo:
profetiza, improvisa de contnuo e, como a chuva de
prolas da boca da fada legendria, lhe caem dos lbios
as palavras nunca interrompidas da sua revelao -a
lei, o ideal humano.
VI
A Idade Mdia no compreendeu isto. Seu grande
gnio sublime como Poesia, achamo-lo aqui estreito e
acanhado como Razo. Porque do cho saiu um dia
essa flor maravilhosa, a mais bela entre todas no j ardim
do esprito, chamada unidade, pareceu-lhe ter morrido a
fora geradora da terra e tornar-se impossvel nova flo
rescncia, outra primavera, outro perfume.
Deu por concludo o trabalho das criaes humanas,
e fechado o ciclo dos poemas divinos chamados reli
gies. Declarou o corao incapaz de novos sonhos, a
TEXTOS DOUTRINRIOS 95
al ma inerte para mais desejos, a i nteligncia morta
para outras concepes e outras formas que no fossem
as suas -porque, no ardor de sua f, uma nobre iluso
lhe fez ver o vcuo e o nada alm do espao que abran
gia a sua vista alucinada. Grande e solene dentro do
templo santo da sua crena, por isso mesmo desprezou
o resto da terra aonde j se no avistava esse prodigioso
edifcio, e o resto da alma que o calor desse raio de
amor no aquecia. As tristes flores desse deserto no
eram para adornar o seu altar -no era digno do seu
Deus o perfume sado dum corao no alumiado pelo
brilho de sua glria . . . Fez o Dogma e fechou-se nele
como num sepulcro. Largo sepulcro, em verdade, como
para um Deus, e todo mrmores e oiro . . . mas, ainda no
tmulo de Cristo, o frio que se sente sempre o frio da .
morte!
A antiguidade pag dava s suas religies um cinto
elstico, para que a Virgem pudesse crescer e engros
sar, fazer-se mulher e me, conceber e criar o filho que
l he havia suceder. Como as no revelava nenhuma voz
encoberta, saindo do meio das nuvens de fogo duma
glria sobre-humana -revelavam-se elas por si , em
toda a parte, em cada hora, e no j no cimo deserto do
Sinai, mas em baixo, no vale, onde se assentam as ten
das do povo, no aj untamento dos homens. Por isso no
havia palavra murmurada no meio da multido, que se
sumisse esquecida, que um deus amigo no ouvisse e
decorasse, como ensino duma boca humilde, mas nem
por isso desprezvel . A onda mais imperceptvel, nas
cida nos ltimos confins da sociedade, trazida com o
sopro do vento, achava sempre uma doce praia aonde
depositar o seu pequeno tributo, um canto, uma es
puma branca, uma rara flor muitas vezes .
Cada modesto veio de gua l ia dar sempre ao lago
dessas religies to humanas, que no se pej avam de os
receber, com eles crescer e alargar, ser por eles formado
-fazendo assim a divindade com o melhor e o mais
96 ANTERO DE QUENTAL
puro da humanidade. Essas religies formavam-nas em
colaborao as almas das geraes sucessivas, cada
uma com o que tinha de mais ntimo em si, de mais
elevado ao mais inocente. O sbio dava o forte pensa
mento, o simples a i ntuio profunda. Emprestava-lhes
um facto o heri, e a virgem lanava-lhes no regao
uma lgrima de piedade. A praa pblica lhes enviava
um eco de seus rumores, e a famlia um refl exo amor
vel de seu lar. Cada qual tirava do corao a prola que
l tm todos escondida: e com essas gemas preciosas,
quentes ainda e quase vivas, se adornava a divindade.
As paixes, os amores, os cuidados, as l utas dos ho
mens, tudo i sto -idealizado e puro se via brilhar sobre o
peito dos deuses, como penhor de fraternidade entre
terra e cu, e modelos de perfeio que buscava a cada
qual realizar. Ser bom eforte e grande para ser semelhante
a um Deus -;- porque este era a ltima expresso da
humanidade.
Era ela o que a criava. Ao lado da inspirao do u
gure caminhava a espontaneidade do Povo.
Ela transformava a legenda; desenvolvia a moral ;
compunha o rto; adoptava cultos; erguia outros deuses
ao lado se no sobre o pedestal dos antigos; verifi cava a
lei velha com o esprito novo; tinha autoridade, enfim,
autoridade, voto e fora para obrigar um Deus progres
sivo a medir seus passos pelos passos duma sociedade
sempre em movimento. Por detrs do Olimpo havia
muito cu ainda e muito espao. Alm da morada das
divindades via-se o infi nito sem termos -e Prometeu
profetizando a queda de Jpiter no era um mpio; era
um semideus. As religies antigas no faziam da alma
humana (e, com a alma, as sociedades e o mundo) pri
sioneira dum dogma imutvel. Sentiam ser ela mesma
o verdadeiro dogma. Abriam o seio a cada palavra ins
pirada e transformavam-na em sangue do corao . . .
Rel i gi es humanas ! uma i nt ui o profunda da
mesma lei da vida -a diversidade, o movimento, a
TEXTOS DOUTRINRIOS 97
sucesso -dava-lhes a largura, a flexibilidade e o vago
necessrios para que correspondessem a todas as for
mas inmeras e i nesperadas do esprito, s infnitas
transformaes das sociedades, s mil aparncias da re
alidade. Dava-lhes a virtude desses cordiais prprios
para todas as idades e todas as compleies: para os
fortes, calmante; e para os fracos, blsamo e conforto.
Eram como o vestido natural do corpo do homem:
acompanhando todos os movimentos, feito para todas
as atitudes : simples ao p do lar, nobre na praa, grave
no repouso, e na l uta ou na corrida ligeiro e fcil.
Esta verdade humana, que as fez to animadas, por
isso mesmo as impediu de avistarem o outro termo cor
relativo, o extra-humano, o absoluto.
No corao dessas raas, como parte que da alma,
estava esse sentimento, por certo. Mas no vinha fora
em forma de luz, no inundava dali o mundo, no doi
rava a fronte dos deuses nem a cabea dos homens .
Viram-na, a essa luz, passar como relmpago nos olhos
dalguns inspirados: mas o povo no a soube compreen
der, deixou-a morrer, quando a no matou ele mesmo.
No meio da diversidade, que o absorvia, o politesmo
no pde conceber a unidade existente com ela e nela
mesma porventura. Ao sol da Grcia e do Oriente, a
rosa viva, a for ntima da humanidade, a alma, abrira
todas as suas ptalas estranhas mas formosssimas!
uma s ficou fechada: mas essa era a mais larga e a
mais forte, que devia conter todas as outras -o senti
mento da unidade.
Unidade de Deus! Unidade do Homem! nesta onda
mstica mergulhou o cristianismo a cabea -com este
Jordo baptizou o mundo! Esta contemplao do ab
sol uto fez a sua fora: foi ela tambm quem o matou.
Em vista deste princpio resolveu corosamente o des
tino humano: mas vinculando-o a essa resoluo, des
conheceu a sua lei essencial -o movimento. No.
A contemplao inerte no pode ser o ar que o esprito
98 ANTERO DE QUENTAL
do homem pede para respirar! O ar da vida outro . . . A
vida! no seu voo para o cu, na sua sublime ambio
ideal, foi isso que esqueceu ao cristianismo -a terra, a
vida.
VII
Viver! ser homem! Que mais alta ambio pode um
corao humano conceber?
Crculo de ilimitado desejo que abraa a terra, o ho
rizonte at onde o olhar se perde, o espao at onde se
some a fantasia!
So as esperanas do cu e os cuidados da terra. Os
ardentes amores do mundo, e as vagas aspiraes de ,
alm tmulo. O finito deste momento que se sente, e o
infnito da durao que se adivinha. O que as Religies
da Natureza podem dar vida de calor e fora; e o que
podem ins
p
irar de lnguido e mstico as Religies do
Esprito. E pensar, crer, pressentir e amar! Erguer-se
para cima, sem por isso desprezar o palmo de terra
aonde se frmam os ps. I nclinar a cabea sobre o
brando regao da realidade, sem esquecer o spero ca
minho do ideal por onde tem de se seguir. Aonde h a
lei, religio, cdigo que contenha no abrao ambicioso
maior poro da verdade, da vida universal? A certeza
do roteiro, que para guiar-nos, nos do esses pilotos de
mares encobertos some-se, esvai-se na orla do horizonte
que abrangem com os olhos . Para l o desconhecido;
o oceano do possvel -e os caminhos esto todos por
abrir.
Uma bssola s, por fatdico condo, aponta o Norte
e o Sul. Mas no a civilizao dum ou outro sculo, a
tradio desta ou daquela raa, o absoluto que uns so
nham para que outros acordem em face do nada -um
cdigo ou uma religio. o secreto instinto da vida! a
revelao natural ! a voz da lei humana!
TEXTOS DOUTRINRIOS 99
ndias,
de cuj a ptrida consumpo nasce a prola nacarada,
assi m da espantosa decomposio das misrias huma
nas sai, como smbolo de toda a melancolia da vida, a
viva prola de triste e doce reflexo - uma lgrima!
Como os milhes de glbulos numa s gota de sangue,
movem-se ali, agitam-se e passam todas as tragdias
cuj a catstrofe nenhum brao de ferro pde evitar; to
das as lutas, em que a virtude e a verdade se viram
sempre esmagadas, como sob o peso de maldio des
conhecida; todas as fnebres agonias das grandes al
mas ignoradas; todos esses dramas sem nome, que no
mais baixo, no mais fundo da sociedade se revolvem
misteriosos e terrvei s!
Que assombrosos quadros de misria no alumia o
doce raio de luz, que atravessa a gua pura de uma
lgrima!
o espantoso caleidoscpio das dores da hu
manidade! E tudo isto, meu amigo, todas estas realida
des ardentes, palpitantes, sangrentas, deixaro de exis
tir, de bradar, de se estorcer, porque um dia, no fundo
do cadinho metafsico, aonde uma cincia cruel lanara
estas grandes ideias, Alma, Deus, Vida, se achou esse
resduo, essa escura abstraco, essa cousa que nenhu
ma palavra diz bem - uma negao, nada?!
No pode ser. O corao levanta-se de salto e no
pode ler essa irriso feroz, escrita no cu com letras de
oiro, com letras de harmonia. A razo no quer ouvir
essa gargalhada delirante e crudelssima, soltada con
tra a sua f, a sua lei, ela mesma, a ordem. S a intelign
cia, depois de ter recolhido as suas redes vazias, dir,
olhando para o vapor que exalam ao enxug-las o Sol:
1 08 ANTERO DE QUENTAL
eis a o destino dos homens; como este fumo se eva
poram e somem no ar vazio as dores da humani
dade? . .
Vir-se ao mundo para amar, crer, sentir, ser bom e
feliz, e forte, que tanto quer dizer homem, e achar um
leito de espinhos, e endurecer-se-lhe o corpo e a alma, e
descrer e chorar, e ser mau e ignorante e msero -uma
existncia a si mesmo traidora - um ser que renega
sua prpria lei -uma coisa feita para ser exactamente
o contrrio do seu destino -que isto, seno a contra
dio terrvel de tudo quanto temos por j ustia, por
verdade, por princpio e harmonia dos mundos?
a negao dos sentimentos mais ntimos, das ideias
mais essenciais. Ou o universo o delrio dum dem
nio, brio de sua mesma maldade; ou para alm do
extremo arco da ponte da vida nos espera o seio vasto
de uma Bondade, a quem no esquece um ai, um sus
piro s; uma mo, que ate com amor os destinos par
tidos; uma lei dej ustia, a quem chamamos Compensa
o.
Sem este equilbrio de alm-tmulo o mundo moral
inclina-se sob o peso de suas runas acumuladas de s
culos, e tomba e rola desamparado nos abismos do
nada! Quando num prato da balana eterna se lana
toda essa massa espantosa das desgraas humanas, ta
manho peso s se compensa, pondo no outro o amor
infni to - Deus .
Si m, Deus! Espri to, Fora, Princpio, Essnci a,
Jeov ou Brama, que me i mport a um nome? Eu
chamo a Deus j ustia! Na queda e triste runa das ilu
ses antigas, das velhas crenas das geraes, fica-nos
eterna essa grande palavra.
que est gravada no
corao. S arrancando-o a podero tirar de l. E nem
assi m. No deserto das alturas a guia que o empolgasse
leria justia nas carnes palpitantes . . . e cairia assombra
da!
Pois qu! no se concebe que metade do cu, um sol
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 09
com os seus planetas errassem o caminho do espao, se
sumissem para sempre na inrcia, mentindo ao seu fim,
sua lei -e concebe-se que um insecto caia sobre um
gro de p a ser alguma cousa, e no o possa ser, e lute,
e se desespere, e morra enfm para no mais viver, para
nunca mais cumprir essa sombra dum destino, que lhe
deram, e esqueceu todavia, e nem bem chegou a ser?
Pois qu! haver ordem para os astros imensos, e no a
poder haver para um tomo de areia?
A Justia do universo outra. E quanto de maior e
mais perfeito concebe o homem, tudo isso ainda som
bra e erro e desvario, bao crepsculo ao p da eterna
luz de verdade, e amor que alumia a imensidade. E,
todavia, sonha-nos a alma uma compensao para as
dores do mundo; presente, para alm do cu visvel, um
outro que no se v, mas cujas glrias adivinha o cora
o -o cu da I mortalidade. Concebemos essa cousa
bela . . . e Deus no teria fora para o executar? e no
chegaria a realidade at onde pde ir o desej o do ho
mem?
A cada ser o seu destino -a cada destino o seu cumprimento.
Aqui, ali, agora ou logo, com esta ou aquela forma, que
importa? Se esta hora, chamada vida, nos menti u, ou
tra vir por certo, e a mo de luz e bem nos conduzir
no nosso verdadeiro caminho. Se este palmo de terra se
recusa ao peso da nossa sorte, h mundos espalhados
nos espaos, h sis, criaes, formas que nem se so
nham, e algum num voo inefvel nos levar l, aonde
saciemos a sede e a fome de venturas que nos ficar deste
desterro . . .
-Ah! no se p depois de tanta mgoa!
Seno diga-me algum que alvio este
Que eu sinto quando abbada celeste
Alevanto meus olhos rasos de gua?
1 1 0 ANTERO DE QUENTAL
H depois desta vida inda outra vida:
No se aniquila um tomo de areia:
E havia de a nossa alma, a nossa ideia,
Nas runas do p ficar sumida? }
Por grande, por sublime que sej a este nobre poeta,
que todos amamos como a um ser parte, nunca sua
alma conceberia cousa to bela que Deus no possa re
alizar. No ser nunca a criatura maior do que o cria
dor: e todo o esprito divino pode dispor de maiores con
solaes do que a parte dele, que docemente se revolve
no seio do grande inspirado!
Sei que no ser talvez argumentar, isto. Mas como
vem-me estas cousas e abalam-me como nenhuma de
monstrao fria de no sei quais leis nebulosas, com
que uma filosofia cruel nos quer envolver a vida numa
cerrao de desalento e treva que sufoca o corao.
o ai dum triste, diro; o sonho vago e doentio, que
sai duma alma magoada pelas dores . . . Que pode isso
provar? que pode provar uma lgri ma? E com que
direito, perguntarei tambm, ho-de os frios argumen
tadores da cincia da terra desprezar essa viva e ar
dente voz de j ustia, que se ergue para o cu e a voz
das desgraas do mundo? Ardente e viva! que mais lhe
faltar para ser a verdade? Falta-lhe talvez aquele aus
tero compasso, aquela monotonia do esprito, chamada
lgica, por onde a filosofia mede o ritmo i mpassvel de
suas palavras fatdicas . . . Mas lgica proporo, har
monia e ordem - e a voz dos desgraados s a pedir
ordem e harmonia se levanta para o cu.
lgica tam
bm: mas duma lgica santa, sentida e quente como
o seio das mes, como o corao dos amantes. No
o mtodo da cincia? o mtodo da vida! E a cincia,
I Joo de Deus.
TEXTOS DOUTRINRIOS I I I
se o desprezar, ser cientfica muito embora, mas no
ser viva nem humana . . .
Que a fi losofa nos saia de dentro do corao, quente
e l uminosa, como uma extenso da nossa mesma alma
em volta de ns, a nossa aurola, o nosso esplendor! Por
que h-de o pensamento temer a comoo como uma
vergonha? Nunca se comover tanto, nunca ser to
doce e humano, que em doura e amor exceda a alma
i mensa do universo. Todos os argumentos de todas as
escolas do mundo, amontoados, a que al tura che
gariam? Mas o olhar duma mulher sobe, eleva-se no
cu a tais distncias, que no h j a matemtica bas
tante para lhe medir a largura do voo!
Ser isto s poesia? a poesia tambm verdadeira:
a evidncia da alma. Se o pensamento indaga, o cora
o adivinha.
-o,
sobretudo, porque o corao lhe sente a verdade eterna
que o anima. O resplendor da verdade - as.sim defi niu a
beleza um dos mais profundos gnios antigos, e que
mais a amou e segui u. Um instinto incompreensvel nos
leva sempre para o lado da luz. Muito antes ainda que
a cincia saia do limbo dos factos, e a razo das fatali-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 1 3
dades da natureza. Anteriores s ideias esto os senti
mentos-tesouro oculto, a que a pobreza da i nteligncia
recorre cada vez que tem de aparecer no mundo, ra
diante daquela formosura que s prende as vontades e
arrebata os coraes. So o mesmo fundo essencial da
alma. A alma a verdade do homem. Por isso, quando
por defronte dela passa, desenrolando-se como uma
tela de mil figuras, o universo em suas mil formas, tudo
aquilo que ela escolher e saudar pelo nome de irmo,
tudo isso ser verdade tambm. Renegar do sentimento
rej ei tar metade do mundo, a poesi a, Homero ou
Isaas: metade da histria, e trabalho dos simples, Buda,
Cri sto, ou Joana d'Arc: metade do homem, o corao!
Por que ser essa metade condenada, por que no
ter ela razo, e h-de a ter a outra, a mais fria, a mais
incerta e a mais fraca tambm? E poder estar assim a
al ma em contradio consigo mesma, a alma, a harmo
nia por excelncia?
Grave, intrincada questo para os impassveis argu
mentadores, que medem a extenso do universo pela
medida de seus silogismos! Para quem lhe sente a or
dem maravilhosa, sem lhe importar que exceda o cr
culo estreito que a impotncia humana traa em volta
de suas ideias, para esses basta-lhes o bom senso, a con
fi ana na perfeio absoluta do mundo moral . . .
Orgulhosas geraes, que quando s e opem na
tureza, lhe chamam a ela falsa e desordenada! Ela,
porm, fica eterna: e os sistemas, que a condenavam,
so esses que em vez de a esmagarem, estalam, porque
a no podem conter dentro do apertado anel que to
maram pela cintura do mundo.
E, neste grande pleito da imortalidade, a cincia
que est fora da natureza, ela que se engana, porque
fei tura nossa, e no o sentimento humano, que esse mal
nos pertence, e foi Deus quem o criou, assoprando um
sonho de luz sobre a alma adormecida. Filosofa, que
despreza a histria, que fecha os ouvidos a essa grande
1 1 4 ANTERO DE QUENTAL
voz do instinto espiritual da humanidade, que, de s
culo em sculo, se lanam as geraes, e cada vez mais
forte e mais clara, uma tal filosofia ser metdica e ri
gorosa muito embora, ser boa na escola, mas na vida
falsa, porque a vida vivem-na os homens -e ela no
humana.
Fora da escola, fora da cincia, que importa? mas no
meio dos homens, no aj untamento dos que sentem, com
a cabea banhada pela doce atmosfera de crenas que
todos respiramos - a, meu amigo, que eu assentarei
a minha humilde tenda de crente. Humilde mas lumi
nosa: que a banha o sol da confiana todo o dia, e,
noite, sob o cu, visitam-na com sua meiga luz todas as
serenas estrelas da esperana. Para elas ergueram os
olhos, levantando as faces plidas, quantos homens tm
sentido dentro em si, como possessos dum deus, esse
desconheci do mas i rresi stvel hspede chamado o
Ideal . Fitou-as Cristo muita vez, por entre a ramagem
das oliveiras do seu monte de paz e recolhimento. Con
templou-as Scrates, cheio de espanto, quando come
avam a surgir no cu da Grcia, como no mar uma
armada vitoriosa que se aproxima. E Zoroastro, do alto
da sua montanha sublime, viu-as bem, e pde contar
uma a uma todas essas ovelhas do rebanho de Deus I . Assim
passaram na terra: acompanhou-os esta grande con
fiana, como misterioso enviado doutro mundo desco
nhecido, at l tima fronteira da. vida. L, desse extre
mo confim, nos traz o vento o som de suas derradeiras
passadas, e esse som como um eco de imortalidade!
Os maiores, os melhores dentre ns creram nisto,
como crem os mais simples e mais humildes. E ser
possvel que a alma mentisse e errasse exactamente na
queles em que mais brilhou, por quem se revelou, na
hora do seu maior esplendor?
I Expresso da poesia popular.
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 1 5
Pensemos nisto, meu amigo. Que as maiores explo
ses de verdade no mundo sejam os momentos do mais
tri ste desvario humano, isto o que deve espantar e
encher de confuso toda a alma crente ainda em al
guma cousa de harmnico e ordenado no mundo! Que
os nossos guias, esses que vm por favor do cu de s
culos em sculos a mostrar-nos o caminho, sej am os
primeiros a transviar-se, e a ns com eles, eis a suma
deriso, lanada por um destino infernal sobre a fra
queza e escuridade dos homens! As mais belas, as mais
vivas e bem dotadas raas de homens s depois dum
trabalho secular de aperfeioamento e conscincia che
gam a esta concluso, e fecham a abbada das maiores
civilizaes com esta grande chave - I mortalidade.
E todo esse trabalho, dolorosamente perseguido, ser bal
dado? e o fecho da construo ser de vento? e ser o '
eplogo das mais belas civilizaes esta palavra iluso? e s
ho-de ter razo, em face da
squilo, pelo
contrrio, o poeta nobre
e audaz, independente at
rudeza, o contemporneo de Salamina e Maratona,
da poca de maior grandeza, de maior elevao do es
prito grego. O Canto de Roland, esse poema da altivez e
TEXTOS DOUTRINARIOS 1 39
do denodo, aparece no grande tempo espontneo, libr
rimo, da formao do mundo feudal, nesse grande es
foro da Europa para constituir uma sociedade fun
dada toda na independncia quase feroz do indivduo.
O chato e manhoso Poema de Renard, baixo e traioeiro,
a Farsa de Pathelin, vil e indigna, so obras contem
porneas do estabelecimento da tirania real, da destrui
o das comunas, do esprito de pequena prudncia
e cobardia que precedeu a Reforma e a Renascena.
Os poetas cortesos e convencionais de Lus XI V
fazem esquecer Frana a sua independncia, doiram
os grilhes que lhe lana aquele senhor desptico e or
gulhoso. Pelo contrrio, a literatura turbulenta do s
culo XVIII, hertica em Voltaire, plebeia em Rousseau,
democrtica em Diderot, eleva o esprito francs at
quela ebulio sufi ciente para conceber a grande obra
dos tempos novos, a Revoluo.
Sempre o esprito do lado da liberdade. Sempre a
independncia, como solo ubrrimo, deixando rebentar
do seio as obras boas e fecundas. Sempre a dignidade, a
irreverncia pelos mestres e senhores, pelas autoridades
oficiais, garantindo a verdade e elevao dos pensa
mentos e das palavras. O mineiro quer os braos sol
tos para cavar buscando o oiro por entre as areias gros
sas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos
astros o caminho da nau por entre as ondas incertas .
O s acerdote quer o corao limpo de paixes, de in
teresses, para aconselhar, guiar, j ulgar, imparcial e
justo. O escritor quer o esprito livre de j ugos, o pensa
mento livre de preconceitos e respeitos inteis, o cora
o livre de vaidades, intemerato e incorruptvel . S as
sim sero grandes e fecundas as suas obras: s assim
merecer o lugar de censor entre os homens, porque o
ter alcanado, no pelo favor das turbas injustas e in
conscientes, ou pelo patronato degradante dos grandes
e i l ustres, mas elevando-se naturalmente sobre todos
pela cincia, pelo paciente estudo de si e dos outros,
1 40 ANTERO DE QUENTAL
pela limpeza interior duma alma que s v e busca o
bem, o belo, o verdadeiro. ( Carta ao Ex. mo Sr. A. F. de
Castilho. ) Escrevamos afoutamente esta sentena do
filsofo antigo - um grande escritor antes de tudo
um grande homem: o bom poeta pressupe o homem
de bem. Ora concebe-se, j no digo o grande homem,
que nem todos podem ser, mas o homem de bem, que
todo tem obrigao de ser, pedindo o auxlio de uma
autoridade qualquer para pensar, consul tando o term
metro da convenincia e aprovao dos mestres para
falar, recebendo o santo e a senha como um soldado
disciplinado, fei to autmato escravo na cousa espont
nea e individual por excelncia, o pensamento? Um ho
mem de bem no faz isto: e toda a literatura que o faz
uma desonesta literatura.
porque a essncia, a cousa vital das literaturas no
a harmonia da forma, a perfeio exacta com que se
realizam certos tipos convencionais o bem dito, o bem
feito, um arranjo e uma curiosa faculdade feita para
divertimento de ociosos e pasmo de quem no concebe
nada acima dessas raras mas fteis habilidades de pres
tidigitador. Para isso basta um certo j eito, uma arte
delicada mas puramente exterior s grandes faculdades
do esprito, um estudo especial e por nica virtude a
pacincia. Se assim fosse, seguramente que se dispensa
vam todas as outras virtudes; a habilidade bastava; e
podia-se ser um grande escritor e, todavia, um homem
pouco digno e nada altivo. Os poemas seriam nesse
caso como pulseiras ou brincos admirveis realmente, e
que no requerem mais merecimentos em seus autores
do que o desenvolvimento particular de certas faculda
des e dispensam perfeitamente todo o cortejo dos gran
des e excelentes dons, a hombridade, e o severo esprito
que s fazem o verdadeiro homem.
Provada, porm, e admi tida a diferena entre um
bom ourives e um bom poeta, entre uns lavrados e deli
cadssimos enfeites e um sentido e pensado poema, pro-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 41
vada fica a necessidade que tem o ministrio sagrado
das letras de mais alguma virtude alm dos dotes mec
ni cos e exteriores - isto , a necessidade dum simples
mas levantado esprito, duma livre inspirao, duma
franqueza e independncia extrema . . . de alma, para
tudo dizer.
III
A alma! sim: dela que precisa toda a literatura que,
em vez dos aplausos que passam e dos interesses que
rebaixam, tivesse por nica e nobilssima ambio le
vantar, melhorar os espritos abatidos, ir adiante mos
trando os caminhos encobertos do bem, responder s
necessidades morais do tempo, dar um alimento sadio e
forte nsia, fome e sede de saber e de sentir, ser
enfim nacional e popular no grande e belo sentido da
palavra.
U ma li teratura assim compreenderia estas coisas :
que toda a soltura e independncia pouca; que se a
tirania da moda e da opinio insuportvel, no o
menos a dos mestres e das reputaes opressivas e or
gulhosas; que, tendo-se em vista dizer alguma cousa
nova, descobrir, no copiar e repetir, bom que haja
l i berdade de procurar, que no se perturbe nunca o
pesquisador de bem e de verdade, ainda aquele que a
pretende encontrar nos desvios mais arredados e estra
nhos; que se creia no possvel e se respeite ainda o erro
quando for flho dum desejo to sincero e dum to hon
roso empenho.
Ora i sto que no fazem as literaturas ofciais. No
concebem salvao fora do grmio estreito de suas igre
jas, para no dizer capelas e oratrios. No entendem
outras palavras seno as poucas do seu dicionrio in
completo e mutilado. Acham que o mundo est todo
explorado, todas as ideias, todos os sentimentos, todas
1 42 ANTERO DE QUENTAL
as formas, e que tudo isso o tm eles nas suas gavetas
e nas suas pastas. Classifcam de louco e de ignorante
quem, a dum canto, se levanta e pretende ter achado
alguma cousa nova - ainda que no sej a seno um
seixo descolorido ou uma erva rasteira. Querem que se
olhe para o mundo atravs das vidraas dos seus gabi
netes e se vej a refectido todo o cu no fundo dos seus
tinteiros . . .
Isto assim pode ser que sej a til, fcil , vantajoso;
pode ser que assim se conquiste a opinio das maiorias
boais, que do a fama, ou o favor das minorias inteli
gentes, que do alguma cousa melhor do que a fama,
que do a importncia, o interesse e o poder . . . Pode ser
que seja hbil isto e at profundo -s no nem digno
nem verdadeiro.
Mas so assim as literaturas oficiais, governamen
tais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o
pensamento um nfi mo meio e no um fm grande e
exclusivo; para quem as ideias so uns instrumentos de
fortuna mundana, uma ocasio mais de sacrificar s pe
quenas ou ms paixes, em vez de serem uma fortaleza
aonde se guardem do contacto das impurezas e das mi
srias; para quem esta santa tribuna da palavra no
passa dum marco daonde lancem o prego de vergo
nhosos leiles; para quem a glria uma especulao
feliz, no uma sagrada palma que preciso colher com
mos puras; para quem, enfim, nobreza, desinteresse,
ideal, sinceridade, sacrifcio, so apenas boas e sonoras
palavras, fei tas para levantar o perodo e encher a frase,
el egantes, brilhantes, excelentes para tudo . . . menos
para se tomarem a srio. So assim as literaturas of
ciais; e, o que mais, no podem ser doutro modo. A
fatalidade de seus princpios impe-l hes necessaria
mente estas tristes consequncias . Como no buscam a
verdade pela verdade, a beleza pela beleza, mas s a
verdade pelo prmio e a beleza pelo aplauso, tm de as
renegar tantas vezes quantas a beleza no agradar aos
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 43
olhos embaciados da turba que aplaude, e a verdade
ofender os senhores que premeiam e recompensam.
Ora, quantas vezes num sculo premeiam os senhores a
verdade sincera e inteira? quantas vezes aplaudem as
turbas sensuais e ininteligentes a formosura ideal, lm
pida e simples?
Mas quanto mais fogem das ideias tanto mais respei
tam e adoram as cousas. Quanto mais ignoram os prin
cpios, os infl exveis princpios que no se vem nem
rendem nem louvam, impassveis e pobrssimos, tanto
menos se atrevem contra os homens, os homens que
vem perfeitamente as genufl exes e as
'
agradecem e
galardoam, que ouvem distintamente as lisonj as e se
dobram e torcem, os homens maleveis, os homens ex
plorvei s, ricos em aplauso e mesmo em dinheiro . . .
Como no tm no corao uma voz eterna, " uma ins
pirao que os leve no seu caminho, sob pena de no
andarem, tm de seguir algum, os passos dalgum ser
privilegiado que l hes faa as vezes de conscincia, de
cincia e de crtica. Como no tm um credo, tm de
ter um papa cuj a pessoa sagrada sirva de doutrina,
de crena, de f. Como no tm bandeira em volta
de que se aj untem todos iguais e livres, precisam en
to dum chefe, um general muito condecorado, muito
dourado, muito fardado, envolto todo em ftas, comen
das, gales, um fetiche, um dolo que s por si faa
as vezes de pendo, de palavra sagrada, de ideia, de
tudo . . .
assim que nascem as realezas li terrias. Nascem
dum vcio, como todas as realezas. Nascem para o mal
dos homens, para o abaixamento das almas, como to
das as autoridades, todos os poderes desnecessrios.
Mas estas so piores e dum mais pernicioso efeito. As
outras oprimem os corpos, as cousas da matria, as fa
zendas, os i nteresses : mas estas tiranizam o pensa
mento, as ideias, o esprito. Estas que so as verdadei
ras, as detestveis tiranias. As outras podem deixar-nos
1 44 ANTERO DE QUENTAL
a a um canto, sem tecto, sem lar, sem dinheiro, nus e
ao frio. Mas isso satisf-las: e esse miservel nu pode
livremente pensar, cismar, ter a opinio que lhe convier
e um mundo i nterior to belo como aquele de que o
privam os opressores: pode, di z muito bem Michelet,
chamar-se o escravo Epicteto. Mas estas opresses do
esprito, ainda que nos dessem, como falsa compensa
o, casas, riquezas, servos, luxo e brilho, deixavam
-nos to escravos e miserveis como dantes, sem libero
dade interior, sem capacidade para pensar, julgar por
ns mesmos, moralmente paralticos. Quem, ainda no
meio das maiores grandezas, no pode seno amar, ad
mirar cousas pequenas e mesquinhas, que seno mes
quinho e pequeno? Quem, ainda no pas mais livre,
obedecer sem reflexo ao aceno dalgum, o que seno
escravo? Os tiranos da matria deixam-nos pobres e de
sabrigados : estes do esprito fazem-nos baixos e estpi
dos - qual prefervel? E no me digam que uso de
grandes palavras numa pequena questo; que invoco os
maiores santos numa ocasio de to pouco perigo. No
assim. Tanto se sofre duma pedrada atirando-se-nos
com um seixo como com uma pedra preciosa. Que im
porta que a violncia que se faz alma seja dum ou
doutro modo, numa grande ou numa pequena cousa?
Todas as liberdades so solidrias: e o que as faz boas e
estimveis no o darem-se num caso e no noutro,
mas no facto mesmo da liberdade. Tambm so soli
drias todas as opresses; e o que as faz pssimas e de
testveis no virem duma ou doutra mo, pesarem
num lado ou no outro, mas somente o facto da tirania.
No h pequenas opresses, pequenas inj ustias, pe
quenas misrias. H s misrias, inj ustias e opresses.
Todas so ms e desprezveis.
E, depois, a literatura ser cousa to pequena, to
indiferente e secundria? ser de to mnimo interesse,
que aqueles mesmos que no sofrem a menor vexao,
, a menor violncia, nesse ponto tolerem ou nem sequer
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 45
si ntam o mal e as durezas do j ugo? Ser cousa sem con
sequncias o pensamento escrito, o teatro, o livro, o ro
mance, a poesia, que no valha ao menos a pena inda
gar por que mos andem, que que pretende explicar
os sentimentos e as ideias, quem forma o gosto bom ou
mau, quem critica e organiza a opinio, quem faz tudo
isto e com que direito?
Lembremo-nos que a literatura, porque se dirige ao
corao, inteligncia, imaginao e at aos sentidos,
toma o homem por todos os lados; toca por isso em
todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimen
tos; influi no indivduo como na sociedade, na famlia
como na praa pblica; dispe os espritos; determina
certas correntes de opinio; combate ou abre caminho a
certas tendncias; e no muito dizer que ela quem
prepara o bero aonde se h-de receber esse misterioso
flho do tempo -o futuro.
ele, com efeito, quem as literaturas convencionais
e falsas comprometem. A pequenez e estreiteza de es
p ri to que as caracteri za, o acanhamento de seus
j uzos, a incerteza e indeciso de seus princpios, a ba
nalidade, o comum de suas criaes, e sobretudo o seu
servilismo e misria moral caem, como um veneno,
no s angue das geraes nascentes, corrompem-no
logo a princpio, e o futuro, de belo e forte que Deus
o tinha preparado, sai raqutico, incerto, fraco, triste,
baixo e apto para sofrer todas as misrias e todas as
servides .
Porventura no foi a literatura picaresca, cptica e sem
brios, que entorpecendo com o espesso vapor de nau
seabundas banalidades a alma audaz dos Espanhis,
lhes fez sofrer resignados a opresso austraca, o rei
nado infame de Carlos V, Filipe I I e a I nquisio, e
compromoteu por sculos a causa da civilizao na Es
panha?
1 46
ANTERO DE QUENTAL
I V
Ah! ant es mi l vezes o excesso, a ext ravagnci a
mesmo, a desregrada audcia, a petulncia aventureira
de concepes e formas, o abuso da liberdade, enfim,
do que esta estreita e pequena prudncia; do que esta
submisso i ninteligente, este temor de cego que no
anda com medo de cair e, como no v, por isso se dis
pensa de falar em luz; do que o acanhamento i ntelec
tual que uma prova oU um motivo de entorpecimento
moral e este culto do vulgar, do rasteiro, das ideias ao
alcance dos que no sabem pensar e dos sentimentos
acessveis aos que no tm alma; do que, finalmente,
esta morna, adocicada e nauseabunda atmosfera artifi
cial que nos querem fazer respirar como se fosse o ar
livre, extenso e forte da vida do esprito. I sto no faz
doudos, seguramente, porque a doudice ainda uma
energia, e isto mortal e inerte. No faz extravagantes,
porque a extravagncia supe ao menos um desej o de
subir e elevar-se, e i sto tacanho e ordinrio como um
anncio mercantil. No faz as Llias e as Pulqurias
ultra-romnticas e ardentes, mas cria as Emas piegas,
sem alma e sem sentidos, to pouco virtuosas como as
outras e sem ao menos terem como elas uma desculpa
nos delrios dum esprito excessivo mas nobre, oU nas
excitaes dum sangue de bacante, mas vivo em todo o
caso. As li teraturas ofi ciais, realistas e banais no fa
zem destas extravagncias, que ao menos tm a eleva
o e toda a poesia da febre e do delrio. Mas produzem
a imbecilidade, a baixeza, a vulgaridade - sem por
isso serem mais virtuosas . . .
Isto um pouco pior, cuido eu. H nas extravagncias
da exaltao alguma cousa nobre e aspiradora de melhor,
que, ainda quando sorrimos, nos faz pensar que um
corao desregrado sim mas vivo que inspira essas doudi
ces. Mas nem ao menos ter por desculpa uma generosa
loucura; errar, mas errar a sangue-frio; ser falso reflectida
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 47
e prudentemente -isto que ter plena conscincia da
sua misria, comprazer-se nela e habitar alegre no seu
nada como se fosse o mais rico palcio!
certo que se no estranho, confuso, visionrio;
mas no porque pela verdade se chegasse simplici
dade, pela elevao se alcanasse aquele ponto sublime
que parece primeira vista fcil e corrente. No por
isso; mas simplesmente porque se abstrai do pensa
mento, ocasio de confuses, de fantasia, origem de es
tranhas vises, do sentimento, causador de mpetos
apaixonados; exactamente como aqueles que j amais es
corregaram ou caram nos precipcios da montanha,
no porque so fortes e resolutos, mas s porque nunca
saram de ao p do lar domstico, entre as mulheres,
quentes e satisfeitos . . .
Mas esta a dura fatalidade das literaturas que sa
crificam ao dolo vulgar do favor pblico e no s aras
severas da conscincia, do pensamento isolado mas
enrgico. Como a fama que procuram, passam ao la
do da verdade e no a vem nem a conhecem sequer.
Servem um senhor caprichoso e grosseiro: tm de lhe
oferecer umas vezes manjares acres e ardentes que esti
mulem a sua rude sensualidade, outras, pelo contrrio, as
mais refinadas e requintadas iguarias com que lisonjeiem
o seu extravagante sibaritismo de brbaro. Jamais a nu
trio simples mas sadia, forte sem ser grosseira, pura
sem ser requintada. Essa no a quer ele, excessivo, cheio
dos mais contraditrios caprichos, como criana perdida
de mimos ou sulto a quem nunca uma contrariedade
educou para a pacincia e a verdade.
Esta, a verdade, quer s dar-se a quem a procura por
amor, excl usivamente por sua formosura, no ' pelo
aplauso ou pelo preo que possa render. Ora isto o
que no podem fazer as literaturas oficiais . Seria rene
gar o seu mesmo princpio, o culto da opinio, e o seu
fi m, os bravos de momento, o triunfo ruidoso mas ef
mero das praas pblicas. Falam s maiorias, tm de
1 48 ANTERO DE QUENTAL
ser comuns . Dirigem-se ao vulgo, tm de ser vulgares.
Especulam com as paixes pblicas, tm de as aceitar e
lisonjear. Dependem dos dolos do dia, tm de os incen
sar. Recolhem j uro dos prej uzos e iluses nacionais,
tm de conservar esse capital rendoso. Tm por infal
vel pontfice o j uzo popular, no podem renegar de
suas doutrinas, seus dogmas, seus cultos. Ho-de ir
sempre ao nvel do esprito pblico, do pensar das mai
orias : nunca acima. Sero entendidos, aplaudidos, esti
mados. Nunca, porm, elevaro, nunca ho-de ensinar,
nunca ho-de mostrar mais do que pode ver qualquer
dos que esto no meio da turba . . .
As naes, porm, que tm direito a exigir dos que
falam no meio delas alguma palavra melhor ou maior
do que as usadas e costumadas palavras de todos e de
todos os dias . Por que razo, com efeito, levantar-se no
meio des homens, cham-los em volta de si, para no
dizer mais nem melhor do que eles sabem, pensam e
dizem? As naes tm um instinto secreto ainda que
confuso de seus destinos e do que para o cumprimento
deles convm. Se um momento aplaudem quem as li
sonja, em breve desprezam e esquecem. Para amar pre
cisam odiar primeiro. Aqueles cujos nomes tm de gra
var no corao, no so os aduladores, so os amigos
sinceros e independentes, que lhes dizem as verdades
em toda a sua dolorosa mas sal utar crueza. So os
Proudhons, os Larras, os Herculanos : no os Castilhos,
os Martinez de la Rosa, os Sainte-Beuve. Estes, porque
so das academias, dos conselhos reais, dos senados,
dos altos cargos, por isso mesmo que no so nem do
povo nem da nao. Ele, o povo, quer que o eduquem,
que o melhorem, que o repreendam. Quer obras se
veras, graves, srias, fortes; no brincos de crianas,
distraces de ociosos, entretenimentos de fteis -
porque ele trabalha e no o consolam nem aliviam es
sas polidas mas ocas ninharias . Sabe que ignorante e
quer que o alumiem, que o castiguem s vezes: o seu
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 49
bom senso desconfia dos que o adulam e chamam sbio
e i nspirado. Uma li teratura cortes, convencional, res
peitadora de todas as convenincias, menos da ver
dade, s pode ser aplaudida pela multido dos ociosos,
dos banais, cujo mau gosto iludem as aparncias de es
tilo, melodias de forma e exterioridades.
O povo, a verdadeira nao, isto , os homens que
sentem e os homens que pensam, esses no tm simpa
tia nem admirao pelos formosos sofi smas duma arte
brilhantemente estril, que s serve para entorpecer o
esprito adormecendo-o ao som de um canto doce mas
fraco, sensual e sem altura. Esses no prezam a retri
ca, mas s o pensamento. No amam a potica; basta
-lhes a poesia. No querem ser divertidos, mas somente
ensinados e melhorados .
v
Ah! mas nesta terra, em tempo fecunda e santa e
agora fria e estri l , a esta gente outrora nobre e altiva e
hoj e baixa e envilecida, a esta gente e nesta terra que
era fazer ouvir as grandes palavras de esperana, de
coragem e de f! Levantar esses ' nimos incertos e ca
dos, animar esses coraes descrentes, aquecer com um
fogo vivo de amor, de sentido e ardente amor, esse san
gue meio regelado, esses pei tos que esfriam de de
salento, alumiar esses olhos que o desgosto embacia e
essas almas ainda mais baas pelos crepsculos dum
espantoso abaixamento de luz moral ! Aqui que era
fazer triunfar o esprito, pondo-o to alto que fosse um
como sol a aquecer, a alumiar uma terra e uma gente
que, ao sentir faltar-lhe o mundo, soubesse tirar daque
le s astro o calor e a luz para a vida, e no isolamento
da decadncia, fizesse nova ptria, mais rica e formosa,
da virtude e da nobreza!
Nunca li teratura alguma teve obrigao de ser ele-
1 50 ANTERO DE QUENTAL
vada, grave, sria, desambiciosa, como a l iteratura
deste povo decadente, cujas ltimas misrias a esto
para inspirar a compaixo ou o desespero, a dedicao
ou a blasfmia, o amor ou o insulto, tudo, menos os
pequenos sentimentos do interesse pessoal e da vai
dade. Oh! quem se pode lembrar de especular com os
l timos alentos dum moribundo? quem pode folgar
com a runa de um grande e formoso edifcio que de
saba, s porque nesta queda aproveite algumas pedras
para fazer um muro sua horta? quem se consola de
ver retalhado o man t o nobre de um grande rei s por
que uma nesga lhe pode servir para os seus usos doms
ticos?
isto, todavia, o que tem feito e o que faz ainda a
nossa literatura ofcial . Ri, graceja, cisma, murmura,
fantasia, procura rimas ' bonitas, desenterra palavras
obsoletas e construes exticas de frase, diverte-se e
cuida divertir-nos, no meio de um grande luto nacional,
numa hora das mais solenes deste povo . . . Quando, no
meio da triste dissoluo do passado, a alma portugue
sa incerta e vaga procura um caminho novo, hesita e
est em perigo de se assentar cheia de dor nalgum
marco isolado e deixar-se a fnar de desgosto, nesta
hora que a nossa li teratura que se diz nacional no
acha, para a confortar, esclarecer, animar, conduzir,
uma s palavra viva, um s sentimento profundo, uma
alta ideia, ao menos uma lgrima bem triste, nada . . . s
frases, rimas, estilos, palavra -wOl'ds, wOl'ds, WOl'ds .. o
Havia um grande exemplo de meditao a dar ao
povo - e vemos a futilidade entronizada. Havia um
grande exemplo de patriotismo -e vemos o desamor e
a indiferena premiados . Havia um grande exemplo de
desinteresse e independncia -e no vemos seno cor
tesias, genufl exes, reverncias, baixezas . . . Ah! com a
mo na conscincia, ser isto bastante para constituir a
literatura, isto , o pensamento, a alma duma nao?
Eu pergunto-o aos homens de bem, que ainda no
TEXTOS DOUTRI NRIOS 1 5 1
coram deste nome honradssi mo de patriotas, que
ainda no acharam ser cousa de bom gosto o cepti
cismo, a indiferena e o desprezo da ptria e dos cida
dos. A esses pergunto: representam realmente o espri
to deste povo a futilidade, o desamor e a baixeza? Ser
assim o corao desta gente toda, que os que se dizem
intrpretes de seus sentimentos no achem l seno o
vcuo e inanidade moral?
A conscincia da nao, da parte honrada, sri a e
realmente viva dela, responde-me que no. No me res
pondem, seguramente, os especuladores da capital, os
cpticos da moda, que esses no sabem seno rir com
um riso baixo e i ni nteligente, que compunge mais
ainda que as lgrimas. Mas eu no falo com eles . Esses
entendem que o povo est bom e. forte ainda e prs
pero por isso que ainda pode pagar. Para esses a misso
das letras est cumprida com meia dzia de folhetins e
alguns romances inspidos quando no imoralssimos .
Mas a nao, a nao verdadeira, no sois vs, se
nhores do funcionalismo, parasitas, ociosos, improduti
vos . A nao portuguesa so trs milhes de homens
que trabalham, suam, produzem, activos e honrados,
que vivem no segundo a moral dos especuladores, mas
segundo a lei do dever e da conscincia. Esse, o verda
deiro povo, tanto aprova os vossos fei tos e os vossos
dizeres, que no conhece os vossos governos seno para
os maldizer, e aos vossos grandes homens, aos homens
de conveno, nem sequer lhes sabe os nomes obscuros
a trs lguas de distncia das vossas academias e das
vossas redaces . . .
Oh! meus pobres amigos da provncia! pobres ho
mens que sois os que trabalhais e fecundais o solo, cuj o
melhor fruto devoram esses senhores inteis; que sois
honestos e bons; que tendes no corao os restos do
senti r portugus que h ainda nesta terra! Homens sin
ceros das vilas, das aldeias, dos campos, das lavoiras,
dos trabalhos ; dizei -me quantas vezes tendes fei to
1 52 ANTERO DE QUENTAL
parar o arado no meio de um rego para recordar as
glrias oficiais, que as gazetas recomendam, e exultar
com elas, e consolados por esta l embrana continuar
mais enrgicos e alegres?
Lembro-me de vs e dos vossos rudes labores, das
lidas fadigosas que vos consomem as honradas e mo
destas vidas ! Por vs e pela vossa causa sofro contente
os risos i nsultosos, os desdns e as i nj ustias, porque
vs tendes direito a alguma cousa melhor do que reque
bros de frase, algumas lies mais altas do que os exem
plos de conivncia com as torpezas e as abj eces do
tempo, a alguma doutrina mais consoladora do que a
resignao e a condescendncia com as loucuras da
poca, a alguma moral mais santa do que o amor sen
sual e exclusivo da forma, do som, das palavras ocas e
esterilmente harmoniosas !
Vs, porque pagais , nutri s, sustentai s toda essa
gente, tendes direito a que em troca vos dem belos e
bons pensamentos, santas inspiraes, crenas, confor
tos, luz e f.
As literaturas ofi ciais sero tudo e de todos - do
governo, da academia, do agrado dos botequins e das
gazetas, sero ricas, estimadas, lisonj eadas - s no
sero jamais nacionais e do corao dD povo!
Eu, como filho do povo, como cidado, em nome des
tes direitos menosprezados, protesto contra essa falsa
literatura, contra os seus chefes, contra as suas obras,
contra os seus discpulos, contra as suas tendncias,
contra as suas opresses . . .
Protesto e m nome da minha conscincia de homem . . .
Protesto e m nome do esprito nacional, que no tem
que ver com esses dolos convencionais duma nfi ma
igreja, duma comunho de meia dzia de fis infi dels
SImos . . .
Protesto, fnalmente, e m nome das mesmas regalias
do esprito humano, que no consente que lhe impo
nham admiraes e respeitos, como se o respeito e a
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 53
admirao no fossem por excelncia as cousas espon
tneas e livres da alma.
Coimbra, Dezembro de 1 865.
ANTERO DE QUENTAL
NOTA
Provas tiradas das
p
rinci
p
ais obras
do Sr. A. F. de Castilho
Para que se vej a claramente a verdade de quanto
acabo de afirmar nas pginas antecedentes; a impotn
cia das l iteraturas oficiais, fundadas no respeito das
convenincias, dos costumes, das opinies e ainda das
iluses comuns, para se levantarem acima do nvel des
sa corrente em que se deixam boiar indolentes e sem
energia prpria; a incurvel vulgaridade de todas as
obras que no tiverem outro fim mais do que divertir a
entreter os cios do vulgo; a pequenez i ntelectual e
moral de escritores que, mirando s ao efeito, tm de
sacrificar a verdade simples e forte a requintes esquisi
tos e falsas delicadezas, que iludem por uma passageira
origi nalidade; a fraqueza de pensamentos e formas
duma literatura sem audcia, convencional, retrica,
acadmicas, rotineira; o nada, enfim, que so todas es
sas criaes que, sem f no esprito e nas ideias, s se
fiam em aparncias e exterioridades; para vermos tudo
isto basta olharmos com uma ateno imparcial e fria
para as obras de um dos grandes pontfices da nossa
literatura oficial, o Sr. Castilho, e do pouco do mestre
deduziremos o nada dos discpulos.
Quais so os fundamentos da fama, evidentemente ex-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 55
cessiva, do Sr. Castilho? A que cousa nova e duradoura
ligou o seu nome? Com que ideia, com que descoberta
enriqueceu o tesouro do esprito nacional? Que trao dou
rado tem de marcar para o futuro o seu caminho atravs
da histria literria dos ltimos trinta anos?
A estas perguntas no fcil responder.
Almeida Garrett cria o teatro e a poesia moderna em
Portugal; inspira-se da alma da nao, ressuscita-a, in
terpreta-a e, j pela boca dos grandes homens antigos
magicamente evocados do tmulo, j fazendo-a reben
tar com fora num lirismo profundo e vivo, revela-a de
novo a um mundo que a tinha quase esquecido, faz des
pertar, nos coraes que agita, sentimentos que so
desta terra e deste sangue, fala ao crer ntimo do povo,
e cada uma de suas palavra uma pgina animada da
histria do renascimento do esprito nacional . Esta mis
so explica o homem e a glria dele. Sabe-se o que fez e
v-se que o trabalho correspondeu a alguma cousa
eterna e que o h-de eternizar consigo -a vida moral
do povo.
um grande nome criado por uma grande
obra: uma esttua com um pedestal slido: concebe-se e
v-se claramente porque se sustenta erguida e to alta.
Al exandre Herculano, esse a antiga, a severa, a ad
mirvel honra e gravidade do carcter portugus, ins
pirando todas as concepes duma inteligncia recta e
forte, tendo por fm ltimo o triunfo da verdade moral,
to herico nos combates do pensamento como os mai
ores heris dos nossos fastos nas p
e
lej as da liberdade e
da honra ptria. A histria para ele no uma curiosi
dade de antiqurio: uma lio dada ao presente por
um filsofo cujo carcter est altura das mais fortes e
nobres pocas do passado. O seu trabalho no um
deleite de artista: uma luta de morte conta a hipocri
sia, a vileza, as ms paixes dum tempo contraditrio e
cptico como o nosso. Tem uma grande misso, que
sabe cumprir como poucos . I sto explica uma glria
pura e honrada como nenhuma.
1 56 ANTERO DE QUENTAL
o Sr. Castilho, esse o que ? e que representa?
triste para a admirao do pas no haver uma
resposta cabal a esta pergunta. Mas a sua fama explica
-se dizendo que uma tradio antiga, um uso velho e
convencional: e esses ordinariamente aceitam-se e no
se discutem. As maiorias pouco instrudas e muito ocu
padas acham mais cmodo admirar sob palavra do que
examinar, estudando e analisando, cousas estas que fa
zem pensar e roubam muito tempo. As minorias inteli
gentes e ociosas, essas dizem entre si o que pensam do
Sr. Castilho, mas dizem-no baixo e para poucos. Por
menos lisonj eiro que sej a este juzo, como no transpira
do recinto estreito de certas reunies de amigos, a ilu
so conserva-se e continua a haver em Portugal uma
grande fama fundada em mui to fracos motivos.
Eu por mim assento que nesta nossa terra de noventa
lguas estamos todos em famlia, e por isso o que tantos
pensam ou dizem em voz baixa melhor e mais franco
repeti-lo alto e claramente para que todos nos entenda
mos.
O merecimento do Sr. Castilho um merecimento
exclusivamente externo e formal . O seu carcter essen
cial no uma ideia, um sentimento, um princpio, um
modo seu de conceber a sociedade, o indivduo ou a
natureza, alguma cousa ntima que distinga entre todas
as suas criaes, lhe d uma feio original e indestrut
vel e sej a como que a razo de ser, o elemento gerador
delas. Nada disto. A sua faculdade dominante e talvez
exclusiva apenas o dom exterior da forma, o gnio da
proporo e da harmonia, o segredo das aparncias for
mosas - o estilo.
isto o que o torna essencialmente
prprio para o papel artifi cial que representa. Tem to
dos os longes duma grande cousa; tem a elegncia, .
arte, a distino; ilude e faz vista. Menos um pouco, era
um escritor mediano; um pouco mais, um grande escri
tor. Nem um nem outro serve para chefe de literaturas
ofici ais . No primeiro caso estaria demasiadamente
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 57
abaixo do pblico; no segundo demasiadamente acima
dos que precisam dele como dum pendo, dum heri
convencional . Uma ideia fxa, uma aspirao domi
nante, um esprito nico, so muito exclusivos, muito
absorventes, muito rgidos para se dobrarem s exign
cias de um papel cuj o carcter varia de hora em hora
com a futuao do gosto e do capricho pblico. Mas se
com a negao destas cousas incmodas se puder com
binar uma maravilhosa faculdade imitativa, formal , ca
paz de fingir tantos espritos quantos a voga for pe
dindo, mas sem nunca se fi xar num s e exclusivo; se
for possvel ter a forma de todas as ideias sem se deixar
dominar por nenhuma delas, imitar os sentimentos sem
sentir de modo algum; nesse caso poder-se-o seguir as
variaes do gosto comum, acompanhar o capricho on
dulante e incerto da opinio, e agradar sempre a todos,
ainda aos mais contraditrios, aos mais inconciliveis.
Este o grande, o espantoso talento do Sr. Castilho.
admirvel nesta negao da individualidade prpria.
assombroso nesta faculdade de ser quanto quer ou
querem que sej a, semelhana desses bastidores de
teatro aonde se penduram todas as vistas, sala e rua,
fl oresta e palcio, crcere e igrej a . . . No representa, en
tre os escritores nacionais, uma opinio, uma tendn
cia, um esprito: no tem uma misso prpria: no se
sabe bem o que quer e o que vem fazer. Mas nenhum
nos espantar com mais extraordinrias metamorfoses,
transformaes admirveis at ao absurdo, uma malea
bilidade, um deixar-se dobrar nas mos das convenin
cias de momento, que faria honra ao mais fi no poltico.
Por este lado o Sr. Castilho um diplomata das letras.
verdade que no diz nada, nada ensina, no concorre
para o movimento geral. A civilizao, os progressos do
pensamento, as conquistas da liberdade moral nada lhe
devem. Mas um artista primoroso, um admirvel es
tilis ta, a quem s falta uma ideia generosa e inspiradora
para ser um grande escritor.
1 58
ANTERO DE QUENTAL
Consultemos os anos, e vejamos quantos papis tem
representado este grande e habilssimo comediante. Em
1 81 6 elmanista em poesia, em poltica indiferente: poe
ta monrquico e ofi cial em 1 81 8: pastoril e novamente
indiferente de 1 822 a 1 825, e alguns anos depois socia
lista radical e proftico: clssico e acadmico em 1 826 e
em 1 836 ul tra-romnti co e shakespeariano; algum
tempo depois vemo-lo virar-se de novo para os vultos
venerandos dos poetas e dos mestres antigos . Cuidais
v-lo ocupado na composio de rimas populares? ele
traduz os cantos da musa romana. Esperais ach-lo no
meio dos documentos histricos dos nossos primeiros
sculos? ele redige artigos e proclamaes polticas . J ul
gais encontr-lo em admirao diante das glrias da
literatura ptria? ele declara que qualquer metrifi cador
contemporneo se deveria envergonhar de pr o nome
debaixo das oi tavas de Cames . Ouviste-lo ontem, en
fi m, declamar contra a prepotncia dos tiranos, radical
e republicano? escutai-o hoje, fazendo a apologia dum
governo antipopular e opressivo. Clssico, romntico,
monrquico, republicano, novo, antigo, filsofo, reli
gioso, quem ? que quer? no se sabe. E um belo escri
tor. . . tem um estilo admirvel . . .. Pode-se dizer retr
grado com Chateaubriand, e demagogo com Fourier,
inovador com Victor Hugo e conservador como Pon
sard . . . que sempre verdade e sempre falso. No liga
o seu nome a uma ideia nica como cada um destes :
mas especula com todas. Uma cousa s no varia: o
bom estilo, porque esse o instrumento de todas estas
vanaes . . .
Isto ser hbil, fantasioso, fcil e delicado: mas no
indica seguramente uma alta moralidade intelectual,
isto , o grave esprito e srio pensamento da vida que
s faz os grandes poetas e os homens superiores.
por isso que o celebrado chefe da literatura ofi cial
feliz, glorioso, ilustre e aplaudido escritor - mas por
isso mesmo que no tem misso, no representa um
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 59
princpio, no diz uma certa cousa ao esprito do povo e
no um grande escritor.
Levem ao cadi nho da anlise cada uma de suas
obras: vero se no fundo fica mais do que essa cinza
doirada, essa poeira brilhante de um belo estilo, muitas
formosas frases e nada mais . Um ensino, um ideal, uma
crena, uma verdadeira cincia da alma e da vida, isso
que no se pode l encontrar.
Nas Cartas de Eco e Naniso, estreia do poeta, aparece
este esprito artificial e mesmo artificioso j formado e
inteiro, e no difcil prever o que vir depois.
a
mesma harmonia de frase, encobrindo a mesma carn
cia completa de pensamento. A escolha do assunto j
por si d a medida do gnio do poeta. No um destes
dramas simples e profundssimos, cheios de imensas li
es de verdade e cincia do corao, como os criou a
alma brilhante, mas intuitiva da Grcia.
uma fbula
da decadncia da mi tologia, uma cousa subtil e falsa,
uma difculdade a vencer, um motivo para se admira
rem os raros dotes do escritor, mas sem um sentimento
vivo, sem uma ideia eterna, que no comove nem in
digna, refnada e artificiosa e que por fm chega a nau
sear como acontece com todas as douras inspidas. So
tudo suspiros, ternos dsticos gravados em troncos de
lamos, passeios em barco, festes e grinaldas, bran
duras ou friezas . . . s no se v a alma, s nenhum da
queles sentimentos existe daquele moo no corao.
Nesse poema dos gemidos amorosos h de tudo; menos
um cousa s: o amor. Tirada a inveno, o fundamento
moral, a inteligncia dos segredos da vida, que fica?
O estilo - eis tudo.
Mas no poema A Primavera que mais se palpa esta
carncia completa de funda inspirao, sada das entra
nhas mesmas da natureza, que a verdadeira essncia
da poesia. A pedra de toque do poder e fora de inter
petao das realidades (que outra cousa no o gnio
potico) essa pedra de toque a poesia da natureza.
1 60 ANTERO DE QUENTAL
nela que Wolfgang Goethe revela as suas mais as
sombrosas faculdades intuitivas, o seu dom de explicar
a vida do mundo ou de o animar prestando-lhe uma
vida roubada ao excesso da sua prpria.
como intr
prete e altssimo sacerdote da natureza que Virglio nos
aparece, distncia de sculos, erguido e imenso s por
esse condo, no meio da runa de tudo quanto cantou,
do mundo que o inspirava. Victor Hugo s nos d a
verdadeira medida do seu gnio quando nos faz como
que sentir debaixo das mos o palpitar do corao da
terra, a vida universal, a seiva e a alma do
g
rande
Todo. Compare-se tudo isto com A Primavera. E como
se nos corressem de repente entre os olhos e a vasta
extenso dos campos, das forestas, das montanhas,
uma cortina de fumo alvacento: nem ainda isso.
como se saltssemos, arrebatados por algum demnio
irnico, das matas virgens da Amrica, cheias de vozes,
cores estranhas, l umes, fantasmagorias, mistrios e ter
rores, para o meio de alguma horta bem amanhada e
bem til dos arredores de Lisboa, com suas moitas de
buxo pelo meio, para nos dar ideia das energias podero
sas do mundo vegetal. Parece que assistimos a um ho
nesto ch de famlia, aonde algum conselheiro velho
conta s inocentes meninas as impresses duma pere
grinao buclica a Vila Franca ou ainda Alhandra.
So os cordeirinhos enfeitados de M. re Deshoulieres e
de Florian. Parece que no h montes j na terra, nem
precipcios, cascatas, rumores t errveis da noite na
montanha, ou horizontes largos aonde o peito e a alma
bebam a longos tragos o ar da vida e o ar da liberdade.
So tudo colinas, vergis, festes de rosas, passarinhos
ensinados, grutas alcatifadas de relva macia, brandos
ribeirinhos e at dos prprios cedros, como de canios,
se podem cortar frautas e avenas pastoris . . . Tudo isto
num encantador estilo, recendendo a rosmaninhos,
destilando mel, doce, doce, como para embalar o sono
de crianas .
que realmente uma adorvel criancice
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 6 1
aquele poema! Deve-se conceber assim a natureza aos
seis anos, quando a ama nos passeia no quintal que
rodeia a casa da famlia; e devem-se dizer as cousas
com aquela meiguice infantil. Mas entre essas lindas
pi eguices e a expresso animada do grande movimento
natural, de suas energias, de suas foras poderosas, de
seus dramas, das actividades criadoras da Primavera,
do mundo dos seres vivos, nas guas, nas grandes fo
lhas da fl oresta, em aves, feras, pinhais, devesas, por
toda a parte . . . entre isto e as bem descritas pastorais do
Sr. Castilho h toda a diferena que vai de Gessner e
Florian, seus mestres, a Goethe, Hugo, Senancourt,
verdadeiros poetas das belezas e das grandezas na
turais.
Que fica? Sem forte pensamento, sem verdadeira
compreenso das foras vivas do mundo, dos sentimen
tos correspondentes ' do corao, da alma mesma do na
t uralismo, fi ca do clebre poema didctico uma sofrvel
aguarela no gosto das de Watteau e Boucher, os paisa
gis tas ofi ciais de Sua Maj estade Lus XV, os Rem
brandts efeminados dos Trianons de M.me Dubarry.
Um brando, gent
l
I e mimosinho estilo, o que resta sem
pre e exclusivamente das obras do Sr. Castilho, quando
bem estudadas - palavras!
Mas, dir-se-, talvez essa fraqueza no seja mais
do que um indcio de excessiva fora. Talvez que o g
nio ardente e arrebatado do poeta se achasse mal e
apertado na estreiteza dum assunto didctico, frio e
compassado. Eis a esto obras cheias de movimento e
ardor, A Noite do Castelo por exemplo . . .
Ah! A Noite do Castelo! Mas um verdadeiro castelo
de cartas aquele castelo, e aquela noite uma verdadeira
noi te de teatro! O castelo, borda dum 'lago, roma
nesco, elegaco e trgico ao mesmo tempo, parece so
nhado pelo visconde de Arlincourt, de fnebre mas di
vertidssima memria. H um cavaleiro, um simptico
tirano, como em Ana de Radcliff, e no esquece a don-
1 62 ANTERO DE QUENTAL
zela to formosa como p/fida . . . O cavaleiro, ao chegar da
Palestina ( ainda se chega da Palestina nos poemas do
Sr. Castilho! ) v-se trado pela ingrata, que j mai o
conhece. Era de esperar: e, como tambm de supor h
imprecaes e choros e terrores e muitas frases atrozes e
ferozes, conquanto sempre em estilo doce, brando e en
cantador. Tudo isto dum efeito admirvel: mas se
guramente no gtico, nem moderno, nem antigo,
nem meia-idade, nem romntico, nem histrico. No se
sabe o que .
o fantasiado mundo rOmanesco e cava
l heiroso dos escritores do primeiro i mprio francs,
convencional e falso, cheio de frases imensas e peque
nos sentimentos, sem estudo do corao, sem conheci
mento dos grandes efeitos das paixes, sem intuio do
esprito das pocas histricas, sem unidade, com ditos
Shakespeare e pensamentos dignos do Sr. Conselheiro
Bastos! . . . Tudo isto, em Frana, depois da Notre Dame
de Paris de Victor Hugo, depois dos trabalhos de Mi
chelet sobre a I dade Mdia, depois do Getz Bedichigen
de Goethe e dos Salteadores de Schiller, em Alemanha,
depois sobretudo do grande voo ideal da poesia levan
tado pela escola romntica, tudo isso tinha cado mi
seravelmente em 1 830, enterrado como se enterram ni
nharias e pieguices -s gargalhadas. E isto o que o
Sr. Castilho, em 1 836, inventava em Portugal! O cime,
que o dado moral d' A Noite do Castelo, quando a gente
o v no Otelo de Shakespeare, parece-nos uma paixo
imensa, se no pura e santa. No poema do Sr. Castilho
aprende-se que no assim. Essa grande cousa, naque
les versos comicamente terrveis, tem a particularidade
de fazer rir. Depois, a aco esgota-se em se chegando
tera parte do poema. O resto (dois teros) so impre
caes e frases e ditos, que s variam nas palavras e
nunca na vulgaridade do sentimento, superfi cial e i n
signifi cante. Tal A Noite do Castelo, tentativa infeliz
para naturalizar entre ns um gnero em toda a parte
impopular e impossvel de sustentar-se, porque era fal-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 63
so e sem fundamento nem na histria nem na natureza
moral do homem.
Evidentemente nesta obra o Sr. Castilho est ainda
abaixo de si mesmo. O estilo, esse grande mentiroso,
sempre pronto a encobrir os erros e os vcios dos livros
do nosso poeta, nem esse mesmo se salva desta vez. Se
exceptuarmos algumas raras descries finas e bem
acbadas e um ou outro movimento lrico mais feliz, o
resto artificial e embrulhado, difcil, arrastado, frouxo
e contrastando extravagantemente pela sua brandura
com as feras paixes que lhe querem fazer exprimir . . .
Mas eis-nos chegados em frente dO livro ntimo, do
livro sentimental, do livro ideal, do livro consolador e
simptico Amor e Melancolia!
Custa-me, realmente, no poder escrever deste livro
tudo quanto pensaram dele nossas mes, ento ainda me
ninas ingnuas e romanescas. Pelos sentimentos inocentes
de que foi confi dente ele sagrado como um travesseiro
de leito virginal. Pelas lgrimas de pura saudade que lhe
caram em cima ele inviolvel como um seio materno.
Pelas tristezas que consolou, os dissabores que mitigou,
ele deve ser recebido como um amigo de famlia . . . E eu,
por debaixo do ttulo deste livro to querido h trinta
anos dos belos olhos que tm hoje cinquenta, eu hei-de ir,
com a minha mo cruel de revolucionrio, e escrever esta
palavra infamante banalidade!?
Mas, que hei-de eu fazer, entre a piedade e o bom
gosto? Acima de tudo o dever. Sim; hei-de diz-lo:
uma banalidade esse admirvel livro! esse livro sublime
uma cousa vulgar! Nossas mes foram no seu tempo
umas santas e adorveis raparigas; mas no sabiam li
teratura . . . mas no sabiam esttica . . . para bem delas
ento, e mal dos fi lhos, hoje!
Abro este livro ao acaso. Encontro: versos ao triste
cipreste; quadras ao cemitrio; quadras cruz do ermo;
mais quadras melancolia; versos terna sauda
d
e:
fala-se-me do arroio, do choro, do goivo e do mal me-
1 64 ANTERO DE QUENTAL
quer . . . basta! fecho o livro assustado. Por entre aquelas
folhas melanclicas pareceu-me ver surgir a face pli
da, longa e piedosamente romanesca do visconde de
Arlincourt!
O goivo! o malmequer! a terna saudade! mas ns ve
mos destes arrojos lricos todos os dias nos jornais li
terrios da provncia, entre um logogrifo e uma chara
da, e no admiramos ! e temos a crueza de nem sequer
verter uma lgrima de estreme melancolia! 6 dureza
dos tempos modernos ! Decididamente o livro sentimen
tal do Sr. Castilho no para esta gerao estragada
por Byron, Victor Hugo e Goethe . . . No somos dignos
dele . . . Que fique, pois, com as suas antigas leitoras que
o compreendem e amam! Fique e repouse no cestinha
de costura das meninas de 1 830, que ainda no ca
saram e precisam de consolaes!
Do estilo escusado falar. Sempre o mesmo, belo,
lmpido, doce, mavioso estilo. O perodo cheio e cor
recto, sem retumbncia nem afectao. A frase corrente
e agradvel como as palavras da boca duma criana
alegre. Neste livro, ento, realmente admirvel; e
tanto mais nos faz lembrar quo bem teria exprimido
altas ideias, verdadeiros sentimentos, rasgos de natura
lidade, conceitos profundos . . . se o autor tivesse posto
disto no seu lindo livrinho!
Por est e tempo ti nha Lamart i ne publ i cado em
Frana as Meditaes e as Harmonias. Em Alemanha
apareciam os versos de Novalis. Em Portugal concebia
Alexandre Herculano aquela nobre e profundssima
A Harpa do Crente, aonde h um verdadeiro e grave amor
da ptria e toda a melancolia dum corao que se despede
das iluses do passado - mas que esta gente boal no
compreende . . . . porque tem versos duros! . . .
O nome do nosso ilustre historiador recorda-me as
tentativas histricas do Sr. Castilho.
nesse livro, os
Quadros Histricos, que aparecem num relevo imenso to
dos os brilhantes dotes artsticos do autor, a frase perfei-
TEXTOS DOUTRINARIOS 1 65
ta, a imagem original, o genuno dizer portugus, a har
monia, o colorido l uminoso do estilo,. a fantasia deli
cada ou o imaginoso arrebatamento, as fi guras, as des
cries, as narraes, toda a retrica e potica do retri
co poeta. I nfelizmente tudo isto serve para pr em evi
dncia os vcios inseparveis do excesso ou antes do ex
cl usivismo destes excel entes dons. Uma concepo
geral ou compreenso da unidade do drama histrico;
um pensamento capital que, dominando cada poca e
cada acontecimento, d a todos na sua variedade um
comum esprito, os explique e faa compreender uns
pelos outros, mostrando a necessidade de cada um na
harmonia do todo; uma crtica que, em vez de buscar as
origens dos factos em meras coincidncias de datas, e
fazer depender do acaso os maiores sucessos, estude e
explique a lgica necessria das instituies e dos ele
mentos sociais, modificada s vezes pelas paixes dos
homens e arrastando-os a eles outras vezes: uma intui
o da alma de cada poca, do seu modo particular de
sentir e obrar; uma histria crtica, enfim, dominadora
dos factos pelo esprito e no escrava deles, uma his
tria filosfica, isto que o Sr. Castilho se no lembrou
de fazer, contente com arredondar os seus perodos, li
mar as suas frases, acabar as suas descries, pr, en
fim, as grandes cousas hericas antigas, adoadas, pin
tadas, burnidas, ao alcance do gosto nada grande dos
s e us poucos he r i cos l e i tores cont emporneos .
O Sr. Castilho no teve em vista, como tiveram Thierry,
Mi chelet, Quinet, que nesse tempo criavam uma cin
cia histrica digna do sculo de Hegel, Creuzer e Her
der, dar-nos a alma, a conscincia; a razo ntima das
pocas e dos homens, ressuscit-los por uma intuio
to l argamente sentida como profundamente meditada
e dalgum modo fazer-nos assistir concepo das gran
des cousas da histria no seio das naes. Tanto no
precisava o bem-falante acadmico para agradar no
crcul o precioso dos refinados puristas da capital e
1 66 ANTERO DE QUENTAL
merecer os aplausos do pblico admirador de fogos de
artificio. Buscou apenas um assunto para declamar ele
gantemente; um palco aonde se pudesse pavonear nas
galas arcdicas da sua retrica: um pretexto para fazer
brilhantes figuras e efeitos de estilo; tomando s gran
des pocas e aos grandes homens quanto baste para
uma frase original ou um conceito feliz, e ao esprito
antigo da nao o sufi ciente para fazer sobressair os
recursos da lngua moderna. A alma, essa, dispensa-se
em boa retrica. I sto, porm, no histria.
Todas aquelas belas cousas se podem dizer igual
mente tanto da histria contempornea como da primi
tiva, tanto da portuguesa como da italiana ou da tr
tara. Os acontecimentos s que variam. O resto serve
para todos, porque no se inspira do carcter particular
duma raa e duma civilizao, dum certo ponto de
vista da crtica nacional, mas s da eloquncia, de suas
figuras e efei tos, que no so patrimnio da histria de
nenhum povo. Por isso o belo livro do Sr. Castilho no
uma histria, mas s um exerccio eloquente de decla
mao.
As lendas populares dos tempos semibrbaros mas
i ngenuamente poticos aparecem ali vestidas mo
derna, como se tivessem estudado na escola dos Luce
nas e dos Freires, usando de frases dignas certamente
do grande sculo clssico, mas nada primitivas, nada
populares, nada gticas e por isso nada verdadeiras e
nada histricas . As ingnuas tradies, as crenas ru
des e simples ficam, depois do rifacimento do Sr. Casti
lho, como essas armaduras da I dade Mdia, grevas, co
tas, escudos que se fabricam hoje em Paris e se vendem
aos curiosos ignorantes, polidas, elegantes, novas em
folha, como qualquer outro produto da indstria con
tempornea. A alma dessas remotas idades some-se,
perde-se, no meio daquela culta fraseologia, como um
ribeiro sado da rocha viva ao atravessar um areal -
sej a embora um areal de areias de ouro . . . I sso, todavia,
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 67
essa brbara expresso, que o nosso rcade j ulgou in
digna da sua eloquncia, isso mesmo o princpio es
sencial da histria, pelo menos da histria como a con
ceberam Vico, Herder, Wolff, e modernamente Jacob
Gri mm, Michelet, Thierry - ainda que isto repugne
ao cultismo dos declamadores elegantes, nem a faam
assi m Roll i n, Sai nt- Real , o conde da Ericeira e o
Sr. Castilho . . .
Mas, para quem sabe o que representa de trabalhos, de
meditaes, de profundos pensamentos e altas vistas filo
sficas esta concepo moderna e realssima da cincia
histrica
'
e como este mtodo se liga ao desenvolvimento
do esprito humano no sculo XIX, para esses os Quadros
Histricos do Sr. Castilho podem ter o valor de belos mas
banais exemplares de eloquncia, modelos de frase, mas
nunca o alcance de uma sria e viva obra de histria.
Sempre o estilo! Essa exclusiva preocupao, a que o
seu falso ponto de vista e ainda o seu mesmo tempera
mento de artista o obrigam, que faz a aparente beleza
de momento, mas a real e profunda falsidade de todas
as criaes de uma arte superfcial, que esconde um
grande vazio de ideias, de cincia das cousas e dos ho
mens, sob as fantasmagorias fosforescentes dum enredo
de palavras, luzentes mas frias e estreis.
por isso que
o Sr. Castilho , sobretudo, excelente nas tradues.
Como o original teve por ele o trabalho de pensar, sen
tir e criar, o tradutor pode dar todos os seus cuidados e
e x c l u s i v a a t e n o fr a s e , c o mp o s i o ,
ao metro - e nisto, e talvez nisto s, eminente o
Sr. Castilho. Do-lhe um corpo vivo e animado, so
mente nu; e ele veste-o com umas galas e um l uxo dig
nos de um rei. Mas o que certo que um alfaiate,
mesmo alfaiate de reis, sempre um alfaiate. Um p
timo tradutor no um grande poeta. Os homens como
Virglio, Dante, Corneille, Cames, Garrett, no se
imortalizam compondo descuidadamente e enfeitando
o que outros sentiram, pensaram com muito trabalho e
1 68 ANTERO DE QUENTAL
muitas dores s vezes. Esses pensaram e sentiram por
si. Viram, entenderam, experimentaram, deduziram,
observaram-se a si, aos homens e ao mundo; e s por
isso lhes chamamos criadores, originais e inspirados. O
mais slido esteio em que se apoia a fama do Sr. Casti
lho seguramente este trabalho das suas tradues.
So bons versos, realmente, e boas palavras harmonio
sas: somente o que dizem de bom e profundo no per
tence ao compositor mas s ao poeta original . Este
criou; o outro comps. Um, como a me que traz no
seio e amamenta e robustece e educa uma criana, deu
a vida e a alma. O outro apenas um mestre, que apro
veita certas tendncias, desenvolve certas inclinaes,
ensina uma ou outra s prenda, mas no d ao ser vivo
um s elemento, uma faculdade mais. O Sr. Castilho
ser pois um grande poeta - mas com a colaborao
dos grandes poetas que traduz. Em qualquer pas esta
espcie de merecimento d direito a uma meno hon
rosa nos dicionrios bibliogrfcos . Na nossa terra
quanto basta para se ser um gnio.
E, depois, traduz-se realmente um poeta? J Victor
Hugo escreveu para traduzir Homero preciso pelo
menos, um outro Homero. Ora no nascem dois Ho
meros, nem dois Virglios, nem dois Petrarcas, nem
dois Miltons; e por uma razo muito simples: porque
qualquer deles foi produzido por um concurso de cir
cuns tncias que se no repetem mais, de raa, de
ideias, de religio, de governo, de tempo, de tudo; e eles
representam tudo isso, tm o ntimo sentimento dessas
cousas, em todas as suas mais ligeiras cambiantes, que
s eles viram uma vez e ningum mais ver, seja o
talento que for, porque tudo isso passou e no pode
repetir-se. Seguramente que Dante vale tanto como
Virglio. Mas Dante, se em 1 300 tivesse querido refazer
A Eneida teria feito uma cousa absurda e insuportvel.
Quem h a que possa compreender, distncia de mil
anos , uma i dade remota, ainda mais do que pel o
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 69
tempo, por um abismo de ideias religioas, polticas,
sociais? perceb-la no mais ntimo do seu pensamento
e, o que mais impossvel, naquilo que ela mesma ig
norava, a parte fatal e instintiva, o sentimento vago
mas absorvente e que o que constitui sobretudo a poe
sia? Qual h a homem de gnio que entenda tudo isto e
se identifique a ponto de dar, traduzindo, a cada afecto,
a cada ideia, o peso, a forma, o maior ou menor relevo,
maior ou menor luz com que o viu ou o sentiu o poeta
daquela sociedade extinta? que ele mesmo lhe tinha
dado em virtude da relao necessria em que o seu
pensamento estava com tudo quanto o rodeava, deter
minando essas propores impossveis de medir?
O Sr. Castilho declara-se-nos capaz de fazer tudo
isto. O pblico acredita-o; porque o pblico no se
guramente crtico, erudito, filsofo, quanto se requer,
para entender bem estas cousas elementares.
Todavia bem certo que uma traduo de Ovdio,
no sculo XIX e pelo Sr. Castilho, cousa to extraordi
nria e falsa como, sendo possvel, teria sido a traduo
d' A Noite do Castelo, feita por Ovdio, em Roma e no
tempo de Augusto.
Mas a ginstica deslumbrante de palavras, as presti
digitaes surpreendentes de frase, as habilidades de
acrobata do estilo entretm os olhos com passos e posi
es difceis e complicadas; e, presa a ateno, enleada,
esquecida, o resto passa facilmente . . .
isso o que faz que passem todas as outras obras
secundrias de que no me ocupo, e as contradies de
princpios e as loucuras e a falta completa de ensino
verdadeiro da natureza, do corao, da vida.
assim
que passam tambm as extravagncias, os absurdos ri
dculos ou odiosos, como por exemplo, a crtica i nclas
sificvel aonde se contesta o merecimento d' Os Lusadas,
dum poema poltico e social, por isso que no pode servir nas
escolas de primeiras letras! Criticar uma epopeia nacio
nal, dizia a este respeito o meu Joo de Deus, porque
1 70 ANTERO DE QUENTAL
no serve para cartilha do Mestre I ncio, o mesmo
que criticar a cartilha do Mestre I ncio porque no
serve para epopeia nacional .
Que concluir de tudo isto? Uma cousa triste, na ver
dade, para a admirao pblica, extraviada e iludida,
mas no fundo consoladora para a dignidade do pensa
mento humano. Conclumos que a lisonj a do gosto co
mum, arvorada em supremo princpio de crtica, pode
chegar a produzir homens hbeis, desenvolver faculda
des brilhantes, mas no chega j amais a inspirar uma
poesia e um poeta verdadeiros. S a beleza da natureza
humana, revelada pela voz livre do corao e ensinada
pela severa meditao da filosofia e da histria, no
varia j amais . A opinio dos homens essa incerta e
vria. Quem deixar aquele firme solo eterno por estas
arei as movedi as cons t rui sem al i cerces, como o
Sr. Castilho, embora sejam brilhantes de adornos e arre
biques postios esses palcios inconsistentes. Tem de ir
e vir a capricho da onda gue eternamente flutua. No
ter, logo, um princpio nico, o mesmo, firme, indis
solvel. No dir, logo, uma e a mesma cousa i nteli
gncia e ao corao da sociedade. No representar,
logo, um movimento vivo, necessrio e verdadeiro do
esprito nacional. No ser um grande poeta, porque a
necessidade de lisonjear a mudvel opinio no lhe
dar lugar para seguir uma imutvel ideia, ter uma
misso e como que instalar-se numa parte da alma e do
pensament o humano. Fica-l he o est i l o, apenas, a
.
forma, a arma desses enganos, a divindade desse culto
de iluses. Esse que serve para os sucessos. Mas os su
cessos so para a glria como so para o amor sereno,
puro e constante esses estremecimentos da paixo ar
dente e sensual, to rpidos como fogosos.
Se quem s procura a verdade raras vezes chega
fama, quem procura s a fama que j amais alcana a
verdade. Essa h-de ser buscada por si e por seu exclu
sivo amor. Quem quer escrever bem s porque seja
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 7 1
uma celebridade da sua terra, e no uma celebridade
s porque escreve bem, esse tal pode tomar de assalto a
opinio: mas a natureza e o verdadeiro gosto que no
pode nem conquistar nem iludir: por isso, tarde ou
cedo, tem de cair e esquecer.
Eu no quero outra melhor prova de quanto tenho es
tabelecido do que uma obra mesma do nosso poeta. Essa
sim, uma obra sentida e profundamente verdadeira, fei
ta com alma, paixo, sangue e vida, que se sente palpitar
e nos toma o corao e o domina com este absolutismo
que s tem a verdadeira beleza.
um dos mais formosos
dramas do teatro portugus e a nica admirvel e inata
cvel obra do Sr. Castilho -o drama Cames. Nunca se
dir bastante desse livro surpreendente que excede muito
o Cames de Garrett no estudo da poca, na interpretao
do verdadeiro carcter do heri, na inteligncia intuitiva
do gnio da nao e no grande esprito potico e dram
tico que anima todas as cenas, salas amplas e luminosas
dum maravilhoso palcio de poesia.
Pois bem: esta obra exactamente aquela que o autor
concebeu, di sps e executou na poca em que as
ingratides de muitos lhe tinham feito criar pelo vulgo,
pelo pblico, pelo mundo todo, uma repulso dolorosa,
um desprezo das pequenas cousas desta nfma socie
dade ofcial, aquele soberbo desdm, enfi m, indepen
dente e altivo que s liberta o poeta do j ugo das conve
nincias e dos j uzos convencionais e lhe d lugar a rea
lizar a verdadeira beleza, simples, boa e incompreens
vel ao vulgo. Na solido, na tristeza, no desgosto, na
indiferena das apreciaes dos que se dizem entendi
dos e do aplauso grosseiro das maiorias, no isolamento
moral dum corao ferido e no apartamento fsico dum
exlio no meio do oceano' que foi concebida aquela
obra. O mundo convencional est to longe, to longe e
I Na ilha de S. Miguel.
1 72 ANTERO DE QUENTAL
esquecido, que a sua sombra nem de leve escurece uma
pgina, uma palavra s daquele poema. No dia em que
as exigncias de um bri l hante mas profundamente
triste papel de chefe da l iteratura ofcial o deixam livre,
o poeta encontra um corao, uma lcida inteligncia,
uma palavra de vida e amor, fala e diz como os que
melhor tm dito e falado nesta terra. Como despreza o
pblico sufcientemente para o no temer j, para no
condescender com suas vulgares exigncias, por isso
entra com passo seguro por caminhos novos e, fora j
de sendas trilhadas, penetra na foresta rumorosa das
ideias livres, dos livres sentimentos, vai e vem, senhor
das extenses que descobriu e de que rei, rei desses
grandes desertos cheios de vida, como nunca entre os
muros dos povoados aonde a morte moral estende o siln
cio terrvel das almas e das fantasias . . .
I sto quanto basta para mostrar quanto o Sr. Casti
lho poderia ter feito, se um destino bom lhe tivesse afas
tado do corao aquelas ambies tristes, aquelas sedes
de falsa glria que, se lhe tm dado, levantando-o ao
posto oficial de chefe literrio, passageiras satisfaes
de vaidade, lhe entorpeceram ao mesmo tempo facul
dades admirveis, privando a sua obra duma cousa
eterna e que nenhum respeito convencional dos seus
admiradores pode substituir nem encobrir -a grande
originalidade e a elevao moral.
Sem estas duas cousas, porm; no se pode dirigir,
dominar, encaminhar a corrente dos espritos e o movi
mento das ideias literrias. E por isso que a velhice
dos grandes homens oficiais, imobilizados na sua pr
pria glria e incapazes de compreender as transfrma
es sucessivas e lentas do esprito naciov,
S
empre
semelhante triste velhice de Lus-- XIV, grande ho
mem- tambmartirizaa-pelo espectculo da runa
da prpria grandeza. Assistem, como ele, morte de
tudo quanto tinham levantado e por que s se reputa
vam gloriosos. Perdem, enterrando-se cada vez mais no
TEXTOS DOUTRINRI OS 1 73
passado que os atrai, a conscincia do seu tempo e das
legtimas necessidades dele. Parecem espectros doutra
idade; e na face deles v-se s vezes passar como que
uma sombra das civilizaes mortas e esquecidas. No
tm j uma misso: no dizem uma nica cousa que v
ao corao ou i nteligncia das geraes transforma
das e melhoradas. No dirigem, no levantam, no ca
minham. Conservam-se . . . sustentam-se apenas . . .
por isso que tudo quanto novo, esperanoso, e
para tudo dizer revolucionrio, se afasta cada dia deles
a ponto de nem os conhecer mais que de nome. Respei
tam-nos ainda por convenincia ou hbito: mas no os
amam j. Do desamor no vai mais que um passo ao
esquecimento. Mas, como tudo aquilo o futuro, pois
o futuro quem os desestima e esquece . . .
assim que a nova gerao renega do culto conven
cional do Sr. Castilho. Uns, os mais francos, protestam:
outros, mai s tmidos, aderem apenas com a vontade: os
indi ferentes esquecem. Lance o Sr. Castilho os olhos
em volta de si: quem v rodear-lhe o seu tabernculo, o
seu altar de dolo potico? Velhos, velhos de corpo e
esprito -e os poucos moos, esses, velhssimos como
quem nunca mereceu este belo nome dejovem. Veja que
mos piedosas recebem o depsito das suas doutrinas,
das suas inspiraes e da sua glria . . . Restos estreis do
passado; e do presente, apenas a parte i mpotente,
moralmente senil, que atraioa a idade e se apega ao
passado, sem se l embrar que o respeito aos cabelos
brancos no implica a escravido s iluses, aos enga
nos e s fraquezas dos velhos. Eis a que dbeis mos
confia o Sr. Castilho o cuidado da sua memria. Mas
essas mos so to fracas como piedosas: sabem enter
rar como fi lhos: no defender como com'batentes . . .
Entretanto o tempo caminha. Se o que h-de ser
amanh o futuro no est em volta do altar do Sr. Cas
tilho porque est noutra parte, visto que o futuro dal
gures tem de sair. Est noutra parte: e quando surgir
1 74 ANTERO DE QUENTAL
luz no trar na fronte o sinal consagrado da sua bn
o patriarcal, no saber de suas doutrinas, no se
l embrar de seus ensinos, fal ar em nome doutras
ideias, outros princpios, outros mestres . . . e o Sr. Casti
lho ser esquecido para sempre.
Digo isto porque o creio firmemente; porque isto que
o pede a lgica do esprito humano; porque os sintomas
raros, mas j bem claros, que se manifestam o indicam
para quem sabe ler neste livro sibilino da opinio.
Isto que aqui afirmo e que a mui tos parecer atre
vido e irreverente paradoxo, a esses mesmos, dentro em
alguns anos, se lhes representar cousa evidente e sim
ples, estranhando s a brandura e timidez das minhas
concluses .
Eu por mim falo destas cousas sem paixo nem aze
dume, com a serenidade interior da convico. Sei qU,e
um desacato o que fao aqui. Mas nem por isso me
penitencio diante do pblico, nem lhe peo perdo. Ele
que me h-de agradecer ao depois esta dedicao com
que lhe aturo agora as rudezas, pelo menos incmodas
e nada divertidas, s para bem dele e seu ensino. Des
preocupado inteiramente com o que se chama vaidade,
fama e nomeada, que lucro eu com um escndalo cujo
rudo pelo menos me perturba os cios de uma contem
plao intelectual, indolente e descansada?
Mas estas cousas estavam por dizer: tinham de ser
ditas. Pareceu-me que diz-las eu primeiro me punha
bem com a minha conscincia, porque so a verdade.
E por isso tambm que no lastimo a runa que pre
vejo.
a runa de um homem apenas. Por detrs dessa
queda vejo as ideias que se levantam mais belas e cami
nham mais desassombradas . Vejo que nesta pequena
questo l i terria est envolvida uma cousa dalgum
valor -a maior liberdade do pensamento e os progres
sos do espri to.
quanto basta para me consolar; para me alegrar
at.
CAUSAS DA DECADtNcIA
DOS POVOS PENINSULARES
Programa das Conferncias Democrticas
Ningum desconhece que se est dando em volta de
ns uma transformao poltica, e todos pressentem
que se agita, mais forte que nunca, a questo de saber
como deve regenerar-se a organizao social.
Sob cada um dos partidos que l utam na Europa,
como em cada um dos grupos que constituem a socie
dade de hoje, h uma ideia e um i nteresse que so a
causa e o porqu dos movimentos.
Pareceu que cumpria, enquanto os povos lutam nas
revolues, e antes que ns mesmos tomemos nelas o
nosso lugar, estudar serenamente a signifi cao dessas
i dei as e a legi timidade desses i nteresses; investigar
como a sociedade , e como ela deve ser; como as na
es tm sido, e como as pode fazer hoj e a liberdade; e,
por serem elas as formadoras do homem, estudar todas
as ideias e todas as
.
correntes do sculo.
No pode viver e desenvolver-se um povo, isolado
das grandes preocupaes i ntelectuais do seu tempo;
o que todos os di as a humanidade vai trabalhando,
deve tambm ser o assunto das nossas constantes medi
taes.
Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os
1 76 ANTERO DE QUENTAL
trabalhos que caracterizam este momento do sculo,
preocupando-nos sobretudo com a transformao so
cial, moral e poltica dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo
-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a
humanidade civilizada;
Procurar adquirir a conscincia dos factos que nos
rodeiam, na Europa;
Agitar na opinio pblica as grandes questes da
F
ilosofia e da Cincia moderna;
Estudar as condies da transformao poltica, eco
nmica e religiosa da sociedade portuguesa:
Tal o fm ds Conferncias Democrticas.
Tm elas uma imensa vantagem, que nos cumpre es
pecialmente notar: preocupar a opinio com o estudo
das ideias que devem presidir a uma revoluo, do
modo que para ela a conscincia pblica se prepare e
ilumine, dar no s uma segura base constituio
futura, mas tambm, em todas as ocasies, uma slida
garantia ordem.
Posto isto, p
.
edimos o concurso de todos os partidos,
de todas as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda
que no partilhem as nossas opinies, no recusam a
sua ateno aos que pretendem ter uma aco - em
bora mnima -nos destinos do seu pas, expondo p
blica mas serenamente as suas convices e o resul tado
dos seus estudos e trabalhos.
Lisboa, 1 6 de Maio de 1 87 1 .
Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Sorome
nho, Augusto Fuschini, Ea de Queirs, Germano Viei
ra de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha
Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomo
Saragga, Tefilo Braga.
PROTESTO
Contra o Encerramento da Sala
das Conferncias Democrticas
Em nome da liberdade de pensamento, da liberdade
de palavra, da liberdade de reunio, bases de todo o
direito pblico, nicas garantias da j ustia social, pro
testamos, ainda mais contristados que indignados, con
tra a portaria que mandou arbi trariamente fechar a
sala das conferncias democrticas. Apelamos para a
opinio pblica, para a conscincia liberal do pas, re
servando-nos a plena liberdade de respondermos a este
acto de brutal violncia como nos mandar a nossa cons
cincia de homens e de cidados.
Lisboa, 26 de Junho de 1 87 l .
Antero de Quental, Adolfo Coelho, Jaime Batalha
Reis, Salomo Saragga, Ea de Queirs.
CAUSAS DA DECADtNCIA
DOS POVOS PENINSULARES
NOS LTIMOS TRtS SCULOS
Discurso
p
ronunciado na noite de 27 de Maio
de 1 87 1 , na sala do Casino Lisbonense
Meus Senhores :
A decadncia dos povos da Pennsula nos trs lti
mos sculos um dos factos mais incontestveis, mais
evidentes da nossa histria: pode at dizer-se que essa
decadncia, seguindo-se quase sem transio a um
perodo de fora gloriosa e de rica originalidade, o
nico grande facto evidente e incontestvel que nessa
histria aparece aos olhos do historiador filsofo. Como
peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa
assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidn
cia. Mas, se no reconhecermos e confessarmos franca
mente os nossos erros passados, como poderemos as
pirar a uma emenda sincera e defnitiva? O pecador
humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de
contrio, e s assim perdoado. Faamos ns tam
bm, diante do esprito de verdade, o acto de contrio
pelos nossos pecados histricos, porque s assim nos
poderemos emendar e regenerar.
Conheo quanto delicado este assunto, e sei que
por isso dobrados deveres se impem minha crtica.
Para uma assembleia de estrangeiros no passara esta
TEXTOS DOUTRI NRI OS 1 79
duma tese histrica, curiosa sim para as inteligncias,
mas fria e indiferente para os sentimentos pessoais de
cada um. Num auditrio de peninsulares, no porm
assim. A histria dos ltimos trs sculos perpetua-se
ainda hoje entre ns em opinies, em crenas, em in
teresses, em tradies, que a representam na nossa so
ciedade, e a tornam de algum modo actual. H em ns
todos uma voz ntima que protesta em favor do pas
sado, quando algum o ataca: a razo pode conden-lo:
o corao tenta ainda absolv-lo.
que nada h no ho
mem mais delicado, mais melindroso do que as i l uses:
e so as nossas iluses o que a razo crtica, discutindo
o passado, ofende sobretudo em ns.
No posso pois apelar para a fraternidade das ideias:
conheo que as minhas palavras no devem ser bem
aceites por todos. As ideias, porm, no so felizmente
o nico lao com que se ligam entre si os espritos dos
homens. I ndependentemente delas, seno acima delas,
existe para todas as conscincias rectas, sinceras, leais,
no meio da maior divergncia de opinies, uma frater
ni dade moral, fundada na mtua tolerncia e no mtuo
respeito, que une todos os espritos numa mesma comu
nho -o amor e a procura desinteressada da verdade.
Que seria dos homens se, acima dos mpetos da paixo
e dos desvarios da inteligncia, no existisse essa regio
serena da concrdia na boa-f e na tolerncia recproca!
Uma regio onde os pensamentos mais hostis se podem
encontrar, estendendo-se lealmente a mo, e dizendo
uns para os outros com um sentimento humano e pac
fi co: s uma conscincia convicta!
para essa comunho
moral que eu apelo. E apelo para ela confadamente,
porque sentindo-me dominado por esse sentimento de
respeito e caridade universal, no posso crer que haj a
aqui algum que duvide da minha boa-f, e s e recuse
a acompanhar-me neste caminho de lealdade e tolern
CIa.
J o disse h dias, inaugurando e explicando o pensa-
1 80 ANTERO DE QUENTAL
mento destas Conferncias: no pretendemos impor as
nossas opinies, mas simplesmente exp-las: no pedi
mos a adeso das pessoas que nos escutam; pedimos s
a discusso: essa discusso, longe de nos assustar, o
que mais desejamos; porque ainda que dela resultasse a
condenao das nossas ideias, contanto que essa conde
nao fosse j usta e inteligente, ficaramos contentes,
tendo contribudo, posto que indirectamente, para a
publicao de algumas verdades. So prova da sinceri
dade deste desejo aqueles lugares e aquelas mesas, des
tinadas particularmente aos jornalistas, aonde podem
tomar nota das nossas palavras, tornando-lhes ns as
sim franca e fcil a contradio.
Meus senhores: a Pennsula, durante os sculos XVII,
XVIII e XIX, apresenta-nos um quadro de abatimento e
insignificncia, tanto mais sensvel quanto contrasta
dolorosamente com a grandeza, a importncia e a origi
nalidade do papel que desempenhmos no primeiro
perodo da Renascena, durante toda a I dade Mdia, e
ainda nos l timos sculo
s
da Antiguidade. Logo na
poca romana aparecem os caracteres essenciais da ra
a peninsular: esprito de independncia local, e origi
nalidade do gnio inventivo. Em parte alguma custou
tanto dominao romana o estabelecer-se, nem che
gou nunca a ser completo esse estabelecimento. Essa
personalidade independente mostra-se claramente na
l iteratura, aonde os espanhis Lucano, Sneca, Mar
cial , introduzem no latim um estilo e uma feio intei
ramente peninsulares, e singularmente caractersticos.
Eram os prenncios da viva originalidade que ia apare
cer nas pocas seguintes. Na Idade Mdia a Pennsula,
livre de estranhas infl uncias, brilha na plenitude do
seu gnio, das suas qualidades naturai s. O instinto
poltico de descentralizao e federalismo patenteia-se
na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em
que se divide a Pennsula, como um protesto e uma
vitria dos i nteresses e energias locais, contra a unidade
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 81
uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma
dessas divises, as comunas, os forais, localizam ainda
mais os . direitos, e manifestam e firmam com um sem
nmero de instituies, o esprito independente e auto
nmico das populaes. E esse esprito no s inde
pendente: , quanto a poca o comportava, singular
mente democrtico. Entre todos os povos da Europa
Central e Ocidental, somente os da Pennsula esca
param ao j ugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo
do castelo feudal no assombrava os nossos vales, no
se i nclinava, como uma ameaa, sobre a margem dos
nossos rios, no entristecia os nossos horizontes com o
seu perfil duro e sinistro. Existia, certamente, a nobre
za, como uma ordem distinta. Mas o foro nobilirio ge
neralizara-se tanto, e tornara-se de to fcil acesso, na
queles sculos hericos de guerra incessante, que no
exagerada a expresso daquele poeta que nos chamou,
a ns Espanhis, um povo de nobres. Nobres e populares
uniam-se por interesses e sentimentos, e diante deles a
coroa dos reis era mais um smbolo brilhante do que
uma realidade poderosa. Se nessas idades ignorantes a
ideia do Direito era obscura e mal defnida, o instinto
do Di reito agitava-se enrgico nas conscincias, e as ac
es surgiam viris como os caracteres.
A tais homens no convinha mais o despotismo reli
gioso do que o despotismo poltico: a opresso espiri
tual repugnava-lhes tanto como a suj eio civil. Os po
vos peninsulares so naturalmente religiosos: so-no
at duma maneira ardente, exaltada e exclusiva, e
esse um dos seus caracteres mais pronunciados. Mas
so ao mesmo tempo i nventivos e i ndependentes :
adoram com paixo: mas s adoram aquilo que eles
mesmo criam, no aquilo que se lhes impe. Fazem a
religio, no a aceitam feita. Ainda hoj e duas teras
partes da populao espanhola ignora completamente
os dogmas, a teologia e os mistrios cristos: mas adora
fielmente os santos padroeiros das suas cidades. Por-
1 82
ANTERO DE QUENTAL
qu? Porque os conhece, porque os fez. O
nosso gnio
criador e individualista: precisa rever-se nas suas cria
es. Isto Uunto falta de coeso do maquinismo ca
tlico da Idade Mdia, ainda mal definido e pouco' dis
ciplinado pela inexorvel escola de Roma) explica suf
cientemente a independncia das igrej as peninsulares,
e a atitude altiva das coroas da Pennsula diante da
cria romana. Os papas eramj muito: mas os bispos e
as cortes eram ainda bastante. Para as pretenses itali
anas havia um no muito franco e mui to fi rme. E essa
resistncia no saa apenas da vontade e do i nteresse de
alguns: saa do i mpulso incontrastvel do gnio po
pular. Esse gnio criador via-se no aparecimento de ri
tuais indgenas, numa singular liberdade de pensa
mento e interpretao, e em mil originalidades de disci
plina. Era o sentimento cristo, na sua expresso viva e
humana, no formal e ininteligente: a caridade e a tole
rncia tinham um lugar mais alto do que a teologia
dogmtica. Essa tolerncia pelos mouros e j udeus, ra
as infelizes e to meritrias, ser sempre uma das gl
rias do sentimento cristo da Pennsula da I dade M
dia. A caridade triunfava das repugnncias e precon
ceitos de raa e de crena. Por isso o seio do povo era
fecundo; saam dele santos, individualidades uma in
gnuas e sublimes, smbolos vivos da alma popular, e
cuj as singelas histrias ainda hoj e no podemos ler sem
enternecimento.
No mundo da inteligncia no menos notvel a ex
panso do esprito peninsUlar durante a I dade Mdia.
O grande movimento intelectual da Europa Medieval
compreende a filosofia escolstica e a teologia, as cria
es nacionais dos ciclos picos, e a arquitectura. Em
nada disto se mostrou a Pennsula inferior s grandes
naes cultas, que haviam recebido a herana da civili
zao romana. Demos escola flsofos como Rai
mundo Llio; Igreja, telogos e papas, um destes por
tugus, Joo XXI . As escolas de Coimbra e Salamanca
TEXTOS DOUTRINRIOS 183
tinham uma celebridade europeia: nas suas aulas viam
-se estrangeiros de distino, atrados pela fama dos
seus dout ores . Entre os pri mei ros homens do s
culo XIII est um monarca espanhol, Afonso, o Sbio,
esprito universal, filsofo, poltico e legislador. Nem
posso tambm deixar esquecidos os mouros e j udeus,
porque foram uma das glrias da Pennsula. A reforma
da escolstica, nos sculos XI e X, pela renovao do
aristotelismo, foi obra quase exclusiva das escolas ra
bes e j udaicas de Espanha. Os nomes de Averris (de
Crdova) , de I bn-Tophail (de Sevilha) , e os dos j udeus
Maimnides e Avicebron sero sempre contados entre
os primeiros na histria da fi losofia na Idade Mdia.
Ao p da filosofia, a poesia. Para opor aos ciclos picos
da Tvola Redonda, de Carlos Magno e do Santo
Graal, tivemos aquele admirvel Romancero, as lendas
do Cid, dos infantes de Lara, e tantas outras, que se
teriam condensado em verdadeiras epopeias, se o es
prito clssico da Renascena no tivesse vindo dar
Poesia uma outra direco. Ainda assim, grande parte,
a melhor parte talvez, do teatro espanhol saiu da mina
inesgotvel do Romancero. Para opor aos trovadores pro
venais, tivemos tambm trovadores peninsulares. Dos
nossos reis e cavaleiros trovaram alguns com tanto pri
mor com Bel tro de Born ou do conde de Tolosa.
Quanto arquitectura, basta lembrar a Batalha e a ca
tedral de Burgos, duas das mais belas rosas gticas de
sabrochadas no seio da Idade Mdia. Em tudo isto
acompanhramos a Europa, a par do movimento geral.
Numa coisa, porm, a excedemos, tornando-nos inicia
dores: os estudos geogrficos e as grandes navegaes.
As descobertas, que coroaram to brilhantemente o fim
do sculo XV, no se fzeram ao acaso. Precedeu-as um
trabalho i ntelectual, to cientfico quanto a poca o
permitia, inaugurado pelo nosso infante D. Henrique,
nessa famosa escola de Sagres, de onde saam homens
como aquele herico Bartolomeu Dias, e cuj a influn-
1 84 ANTERO DE QUENTAL
cia, directa ou indirectamente, produziu um Maga
l hes e um Colombo. Foi uma onda, que levantada
aqui , cresceu at ir rebentar nas prai as do Novo
Mundo. Viu-se de quanto era capaz a inteligncia e a
energia peninsular. Por isso a Europa tinha os olhos em
ns, e na Europa a nossa infl uncia nacional era das
que mais pesavam. Contava-se para tudo com Portugal
e Espanha. O Santo I mprio alemo oferece a orgulho
sa coroa imperial a um rei de Castela, Afonso, o Sbio.
No sculo xv, D. Joo I , rbitro em vrias questes in
ternacionais, geralmente considerado, em infuncia e
capacidade, como um dos primeiros monarcas da Eu
ropa. Tudo isto nos prepara para desempenharmos,
chegada a Renascena, um papel glorioso e prepon
derante. Desempenhmo-lo, com efeito, brilhante e rui
doso: os nossos erros, porm, no consentiram que fosse
tambm duradouro e profiquo. Como foi que o movi
mento regenerador da Renascena, to bem preparado,
abortou entre ns, mostr-Io-ei logo com factos decisi
vos. Esse movimento s foi entre ns representado por
uma gerao de homens superiores, a primeira. As se
guintes, que o deviam consolidar, fanatizadas, entorpe
cidas, i mpotentes, no souberam compreender nem
praticar aquele esprito to alto e to livre: desconhe
ceram-no, ou combateram-no. Houve, porm, uma pri
meira gerao, que respondeu ao chamamento da Re
nascena; e enquanto essa gerao ocupou a cena, i sto
, at ao meado do sculo XVI, a Pennsula conservou-se
altura daquela poca extraordinria de criao e li
berdade de pensamento. A renovao dos estudos, re
cebeu-a nas suas universidades novas ou reformadas,
onde se explicavam os grandes monumentos literrios
da Antiguidade, muitas vezes na prpria lngua dos ori
ginais. Entre as quarenta e trs universidades estabele
cidas na Europa durante o sculo XVI, catorze foram
fundadas pelos reis de Espanha. A filosofia neoplat
nica, que substitua por toda a parte a velha e gasta
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 85
escolstica, foi adoptada pelos espritos mais eminen
tes. Um estilo e uma literatura nova surgiu com Ca
mes, com Cervantes, com Gil Vicente, com S de
Miranda, com Lope de Vega, com Ferreira. Demos s
escolas da Europa sbios como Miguel Servet, precur
sor de Harvey, flsofos como Seplveda, um dos pri
meiros peripatticos do tempo, e o portugus Sanches,
mestre de Montaigne. A famlia dos humanistas, verda
deiramente caracterstica da Renascena, foi represen
tada entre ns por Andr de Resende, por Diogo de
Teive, pelo bispo de Terragona, Antnio Augustin, por
Damio de Gis, e por Cames, cuj a inspirao no
exclua uma erudio quase universal. Finalmente, a
arte peninsular ergue nessa poca um voo poderoso,
com a arquitectura chamada manuelina, criao duma
originalidade e graa surpreendentes, e com a brilhante
escola de pintura espanhola, imortalizada por artistas
como Murillo, Velsquez, Ribera. Fora da Ptria guer
reiros ilustres mostravam ao mundo que o valor dos
povos peninsulares no era inferior i nteligncia. Se as
causas da nossa decadncia existiam j latentes, ne
nhum olhar podia ainda ento descobri-las: a glria, e
. uma glria merecida, s dava lugar admirao.
Deste mundo brilhante, criado pelo gnio peninsular
na sua livre expanso, passamos quase sem transio
para um mundo escuro, inerte, pobre, ininteligente e
meio desconhecido. Dir-se- que entre um e outro se
meteram dez sculos de decadnci a: pois bastaram
para essa total transformao de cinquenta ou sessenta
anos! Em to curto perodo era impossvel caminhar
mais rapidamente no caminho da perdio.
No princpio do sculo XVII, quando Portugal deixa
de ser contado entre as naes, e se desmorona por to
dos os lados a monarquia anmala inconsistente e des
natural de Filipe I I ; quando a glria passada j no
pode encobrir o rui noso do edifcio presente, e se
afunda a Pennsula sob o peso dos muitos erros acumu-
1 86 ANTERO DE QUENTAL
lados, ento aparece franca e patente por todos os lados
a nossa i mprocrastinvel decadnci a. Aparece em tudo;
na poltica, na influncia, nos trabalhos da intelig
.
ncia,
na economia social e na indstria, e como consequncia
de tudo isto, nos costumes. A preponderncia, que at
ento exercramos nos negcios da Europa, desaparece
para dar lugar insignificncia e i mpotncia. Naes
novas ou obscuras erguem-se, e conquistam no mundo,
nossa custa, a influncia de que nos mostrmos indig
nos . A coroa de Espanha posta em leilo sangrento no
meio das naes, e adjudicada, no fim de doze anos de
guerra, a um neto de Lus XIV. Com a dinastia estran
geira comea uma poltica antinacional, que envilece e
desacredita a monarquia. E esse rei estrangeiro custa
Espanha a perda de Npoles, da Siclia, do Milans,
dos Pases Baixos! Em Portugal, a influncia inglesa,
que, por meio de cavilosos tratados, faz de ns uma
espcie de colnia britnica. Ao mesmo tempo as nos
sas prprias colnias escapam-nos gradualmente das
mos : as Molucas passam a ser holandesas; na
ndia
lutam sobre os nossos despojos holandeses, ingleses e
franceses; na China e no J qpo desaparece a infuncia
do nome portugus. Portugueses e Espanhis vamos de
sculo para sculo minguando em extenso e importn
cia, at no sermos mais que duas sombras, duas na
es espectros, no meio dos povos que nos rodeiam! . . . e
que tristssimo quadro o da nossa poltica interior!
s
liberdades municipais, iniciativa local das comunas,
aos forais, que davam a cada populao uma fi siono
mia e vida prpria, sucede a centralizao uniforme e
esterilizadora. A realeza deixa ento de encontrar uma
resistncia e uma fora exterior que a equilibre, e trans
forma-se no puro absolutismo; esquecendo a sua ori
gem e a sua misso, cr ingenuamente que os povos no
so mais do que o patrimnio providencial dos reis. O
pior que os povos acostumam-se a cr-lo tambm!
Aquel e esprito de independnci a, que inspirava o
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 87
firme si no, no! da I dade Mdia, adormece e morre no
sei o popular. O povo emudece; negam-lhe a palavra,
fechando-lhe as Cortes; no o consultam, nem se conta
j com ele. Com quem se conta com a aristocracia
palaciana, com uma nobreza cortes, que cada vez se
separa mais do povo pelos i nteresses e pelos sentimen
tos, e que, de classe, tende a transformar-se em casta.
Essa aristocracia, como um embarao na circulao do
corpo social, i mpede a elevao natural de um ele
mento novo, elemento essencialmente moderno, a clas
se mdia, e contraria assim todos os progressos ligados
a essa elevao. Por isso decai tambm a vida econ
mica: a produo decresce, a agricultura recua, estag
na-se o comrcio, desaparecem uma por uma as inds
trias nacionais; a riqueza, uma riqueza faustosa e es
tril, concentra-se em alguns pontos excepcionais, en
quanto a misria se alarga pelo resto do pas: a popula
o, dizimada pela guerra, pela emigrao, pela mi
sria, diminui duma maneira assustadora. Nunca povo
al gum absorveu tantos tesouros, fi cando ao mesmo
tempo to pobre! No meio dessa pobreza e dessa ato
ni a, o esprito nacional desanimado e sem estmulos,
devia cair naturalmente num estado de torpor e de in
diferena.
o que nos mostra claramente esse salto
mortal dado pela inteligncia dos povos peninsulares,
passando da Renascena para os sculos XVII e XVIII. A
uma gerao de fi lsofos, de sbios e de artistas cria
dores sucede a tribo vulgar dos eruditos sem crtica, dos
acadmicos, dos imitadores. Samos de uma sociedade
de homens vivos , movendo-se ao ar livre: entrmos
num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma at
mosfera turva pelo p dos livros velhos, e habitado por
espectros de doutores. A poesia, depois da exaltao
estril, falsa, e artifcialmente provocada do gongo
rismo, depois da afectao dos conceitos (que ainda
mais revelava a nulidade do pensamento) , cai na imita
o servil e ininteligente da poesia latina, naquela es-
1 88 ANTERO DE QUENTAL
cola clssica, pesada e fradesca, que a anttese de toda
a inspirao e de todo o sentimento. Um poema com
pe-se doutoralmente, como uma dissertao teolgica.
Traduzir o ideal : inventar, considera-se um perigo e
uma inferioridade: uma obra potica tanto mais per
fei ta quanto maior nmero de versos contiver traduzi
dos de Horcio, de Ovdio. Florescem a tragdia, a ode
pindrica, e o poema heri-cmico, isto , a afectao e
a degradao da poesia. Quanto verdade humana, ao
sentimento popular e nacional, ningum se preocupava
com isso. A inveno e originalidade, nessa poca de
plorvel, concentra-se toda na descrio cinicamente
galhofeira das misrias, das intrigas, dos expedientes
da vida ordinria. Os romances picarescos espanhis, e as
comdias populares portuguesas, so os irrefutveis actos
de acusao, que, contra si mesma, nos deixou essa so
ciedade, cuj a profunda desmoralizao tocava os limi
tes da ingenuidade e da inocncia no vcio. Fora desta
realidade pungente, a literatura oficial e palaciana, es
praiava-se pelas regies inspidas do discurso acad
mico, da orao fnebre, do panegrico encomendado
-gneros artifciais, pueris, e mais que tudo soporfi
cos . Com um tal estado dos espritos, o que se podia
esperar da arte? Basta erguer os olhos para essas lgu
bres moles de pedra, que se chamam o Escurial e Ma
fra, para vermos que a mesma ausncia de sentimento e
inveno, que produziu o gosto pesado e inspido do
classicismO, ergueu tambm as massas compactas, e fri
amente correctas na sua falta de expresso, da arqui
tectura j esutica. Que triste contraste entre essas mon
t anhas de mrmore, com qu se j ul gou ati ngi r o
grande, simplesmente porque se fez o monstruoso, e a
construo delicada, area, proporcional e, por assim
dizer, espiritual dos Jernimos, da Batalha, da catedral
de Burgos! O esprito sombrio e depravado da socie
dade refectiu-o a Arte, com uma fdelidade desespera
dora, que ser sempre perante a histria uma incorrup-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 89
tvel testemunha de acusao contra aquela poca de
verdadeira morte moral . Essa morte moral no inva
dira s o sentimento, a imaginao, o gosto: invadira
tambm, invadira sobretudo a intelignci a. Nos lti
mos dois sculos no produziu a Pennsula um nico
homem superior, que se possa pr ao lado dos grandes
criadores da cincia moderna: no saiu da Pennsula
uma s das grandes descobertas intelectuais, que so a
mai or obra e a mai or honra do esprito moderno.
Durante duzentos anos de fecunda elaborao, reforma
a Europa culta as cincias antigas, cria seis ou sete
cincias novas, a anatomia, a fsiologia, a qumica, a
mecnica celeste, o clculo diferencial, a crtica histri
ca, a geologia: aparecem os Newton, os Descartes, os
Bacon, os Leibnitz, os Harvey, os Buffon, os Ducange,
os Lavoisier, os Vico -onde est, entre os nomes des
tes e dos outros verdadeiros heris da epopeia do pen
samento, um nome espanhol ou portugus? Que nome
espanhol ou portugus se l i ga descoberta duma
grande l ei cientfi ca, dum sistema, dum facto capital? A
Europa culta engrandeceu-se, notabilizou-se, subiu so
bretudo pela cincia: foi sobretudo pela falta de cincia
que ns descemos, que nos degradmos, que nos anul
mos . A alma moderna morrera dentro de ns completa
mente.
Pelo caminho da ignorncia, da opresso e da mi
sria chega-se naturalmente, chega-se fatalmente, de
pravao dos costumes. E os costumes depravaram-se
com efeito. Nos grandes, a corrupo faustosa da vida
da corte, onde os reis so os primeiros a dar o exemplo .
do vcio, da brutalidade, do adul tri o: Afonso VI ,
. Joo V, Filipe V, Carlos I V. Nos pequenos, a corrup
o hipcrita, a famlia vendida pela misria aos vcios
dos nobres e dos poderosos.
a poca das amsias e
dos fi lhos bastardos . O que era ento a mulher do povo,
em face das tentaes do ouro aristocrtico, v-se bem
no escandaloso processo de nulidade do matrimnio de
1 90 ANTERO DE QUENTAL
Afonso VI, e nas memrias do Cavaleiro de Oliveira.
Ser rufi o um ofcio geralmente admitido, e que se
pratica com aproveitamento na prpria corte. A reli
gio deixa de ser um sentimento vivo; torna-se uma
prtica ininteligente, formal, mecnica. O que eram os
frades, sabemo-lo todos : os costumes picarescos e ign
beis dessa classe so ainda hoj e memorados pelo Dec
meron da tradio popular. O pior que esses histries
tonsurados eram ao mesmo tempo sanguinrios. A In
quisio pesava sobre as conscincias como a abbada
dum crcere. O esprito pblico abaixava-se gradual
mente sob a presso do terror, enquanto o vcio, cada
vez mais requintado, se apossava placidamente do lu
gar vazio que deixava nas almas a dignidade, o senti
mento moral e a energia da vontade pessoal, esmaga
dos, destrudos pelo medo. Os casutas dos sculos XVII
e XVIII deixaram-nos um vergonhoso monumento de re
quinte bestial de todos os vcios, da depravao das
imaginaes, das misrias ntimas da famlia, da perdi
o de costumes que corria aquelas sociedades deplor
veis. I sto por um lado: porque, pelo outro, os casustas
mostram-nos tambm a que abaixamento moral che
gara o esprito do clero, cavando todos os dias esse lo
do, revolvendo com afinco, com predileco, quase com
amor, aquele monto graveolente de abjeces. Todas
essas misrias ntimas refectem-se felmente na l i tera
tura. O que era no sculo XVII a moral pblica, as intri
gas polticas, o nepotismo corteso, o roubo audaz ou
sub-reptcio da riqueza pblica, v-se ( e com todo o
relevo duma pena sarcstica e inexorvel) na Arte de
Furtar) do padre Antnio Vieira. Quanto aos documen
tos para a histria da famlia e dos costumes privados,
encontramo-los na Carta de Guia de Casados) de D. Fran
cisco Manuel, nas Farsas Populares portuguesas, e nos
romances picarescos espanhis. O esprito peninsular des
cera de degrau em degrau, at ao ltimo termo da de
pravao!
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 9 1
Tais temos sido nos ltimos trs sculos: sem vida,
sem liberdade, sem riqueza, sem cincia, sem inveno,
sem costumes. Erguemo-nos hoj e a custo, espanhis e
portugueses, desse tmulo onde os nossos grandes erros
nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da
mortalha ainda nos embaraam os passos, e pela pali
dez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que
regies lgubres e mortais chegamos ressusci tados !
Quais as causas dessa decadncia, to visvel, to uni
versal, e geralmente to pouco explicada? Examinemos
os fenmenos, que se deram na Pennsula durante o
decurso do sculo XVI, perodo de transio entre a
Idade Mdia e os tempos modernos, e em que apare
cem os grmens, bons e maus, que mais tarde, desen
volvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada
qual o seu verdadeiro carcter. Se esses fenmenos
forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas
da actividade nacional, desde a religio at indstria,
ligando-se assim intimamente ao que h de mais vital
nos povos - estarei autorizado a empregar o argu
mento (neste caso, rigorosamente lgico) post hoc, elgo
propter hoc, e a concluir que nesses novos fenmenos
que se devem buscar e encontrar as causas da decadn
cia da pennsula.
Ora esses fenmenos capi tais so trs , e de trs
espcies: um moral, outro poltico, outro econmico.
O primeiro a transformao do catolicismo, pelo Con
clio de Trento. O segundo, o estabelecimento do ab
solutismo, pela runa das liberdades locais. O terceiro, o
desenvolvimento das conquistas longnquas. Estes fen
menos assim agrupados, compreendendo os trs gran
des aspectos da vida social, o pensamento, a poltica e o
trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e
universal revoluo se operou, durante o sculo XVI,
nas sociedades peninsulares. Essa revoluo foi funesta,
funestssima. Se fosse necessria unia contraprova, bas
tava considerarmos um facto contemporneo mui to
1 92 ANTERO DE QUENTAL
si mples : esses trs fenmenos eram exactamente o
oposto dos trs factos capitais, que se davam nas naes
que l fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteli
gentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da ci
vilizao. Aqueles trs factos civilizadores foram a liber
dade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a
elevao da classe mdia, instrumento do progresso nas
sociedades modernas, e directora dos reis, at ao dia em
que os destronou: a indstria, finalmente, verdadeiro
fundamento do mundo actual, que veio dar s naes
uma concepo nova do Direito, substituindo o traba
lho fora, e o comrcio guerra de conquista. Ora, a
liberdade moral, apelando para o exame e a conscincia
individual, rigorosamente o oposto do catolicismo do
Conclio de Trento, para quem a razo humana e o
pensamento livre so um crime contra Deus: a classe
mdia, impondo aos reis os seus interesses, e muitas ve
zes o seu esprito, o oposto do absolutismo, esteado na
aristocracia e s em provito dela governando: a inds
tria, finalmente, o oposto do esprito de conquista, an
tiptico ao trabalho e ao comrcio.
Assim, enquanto as outras naes subiam, ns baix
vamos . Subiam elas pelas virtudes modernas; ns des
camos pelos vcios antigos, concentrados, levados ao
sumo grau de desenvolvimento e aplicao. Baixva
mos pela i ndstria, pela poltica. Baixvamos, sobre-
tudo, pela religio.
.
Da decadncia moral esta a causa culminante!
O catolicismo do Conclio de Trento no inaugurou
certamente no mundo o despotismo religioso: mas or
ganizou-o de uma maneira completa, poderosa, formi
dvel, e at ento desconhecida. Neste sentido, pode
dizer-se que o catolicismo, na sua forma defini tiva,
imobilizado e intolerante, data do sculo XvI. As ten
dncias, porm, para esse estado vinham j de longe;
nem a Reforma signifi ca outra coisa seno o protesto do
sentimento cristo, livre e independente, contra essas
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 93
tendncias autoritrias e formalsticas. Esas tendn
cias eram lgicas, e at certo ponto legtimas, dada a
i nterpretao e organizao romana da religio crist:
no o eram, porm, dado o sentimento cristo na sua
pureza virginal, fora das condies precrias da sua re
alizao poltica e mundana, o sentimento cristo,
numa palavra, no seu domnio natural, a conscincia
religiosa.
necessrio, com efeito, estabelecermos cui
dadosamente uma rigorosa distino entre cristianismo e
catolicismo, sem o que nada compreenderemos das
evolues histricas da religio crist. Se no h cristia
nismo fora do grmio catlico ( como asseveram os te
logos, mas como no pode nem quer aceitar a razo, a
equidade e a crtica) , nesse caso teremos de recusar o
ttulo de cristos aos luteranos, e a todas as seitas sa
das do movimento protestante, em quem todavia vive
bem claramente o esprito evanglico. Digo mais, tere
mos de negar o nome de cristos aos apstolos e evan
gelistas, porque nessa poca o catolicismo estava to
longe do futuro, que nem ainda a palavra catlico fora
inventada!
que realmente o cristianismo existiu e
pode existir fora do catolicismo. O cristianismo sobre
tudo um sentimento: o catolicismo sobretudo uma insti
tuio. Um vive da f e da inspirao: o outro do dogma
e da disciplina. Toda a histria religiosa, at ao meado
do sculo XVI, no mais do que a transformao do
sentimento cristo na instituio catlica. A Idade Mdia o
perodo da transio: h ainda um, e o outro aparece j.
Equilibram-se. A unidade v-se, faz-se sentir, mas no
chega ainda a sufocar a vida local e autonmica. Por
isso tambm esse o perodo das igrej as nacionais. As
da Pennsula, como todas as outras, tiveram, durante a
Idade Mdia, liberdades e iniciativa, conclios nacio
nais, disciplina prpria, e uma maneira sua de sentir e
praticar a religio. Daqui, dois grandes resultados, fe
cundos em consequncias benficas . O dogma, em vez
de ser imposto, era aceite, e, num certo sentido, criado:
1 94 ANTERO DE QUENTAL
ora, quando a base da moral o dogma, s pode haver
boa moral deduzindo-a de um dogma aceite, e at certo
ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequncia,
de incalculvel alcance. O sentimento do dever, em vez
de ser contradito pela religio, apoiava-se nela. Daqui a
fora dos caracteres, a elevao dos costumes. Em se
gundo lugar, essas igrej as nacionais, por isso mesmo
que eram i ndependentes, no precisavam opri mi r.
Eram tolerantes .
sombra delas, muito na sombra
verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e
Mouros, raas i nteligentes, industriosas, a quem a in
dstria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e
cuj a expulso tem quase as propores duma calami
dade nacional. Segunda consequncia, de no menor
alcance do que a primeira. Se a Pennsula no era ento
to catlica como o foi depois, quando queimava os j u
deus e recebia do geral dos Jesutas o santo e a senha da
sua poltica, era seguramente muito mais crist, i sto ,
mais caridosa e moral, como estes factos o provam.
Rasga-se, porm, o sculo XVI, to prodigioso de re
velaes, com ele aparece no mundo a Reforma, segui
da por quase todos os povos de raa germnica. Esta
situao cria para os povos latinos, que se conservavam
ligados a Roma, uma necessidade instante, que era ao
mesmo tempo um grande problema. Tornava-se neces
srio responder aos ataques dos protestantes, mostrar
ao mundo que o esprito religioso no morrera no seio
das raas l atinas, que debaixo da corrupo romana
havia alma e vontade. Um grito unnime de riorma
saiu do meio dos representantes da ortodoxia, opondo
-se ao desafo que, com a mesma palavra haviam lan
ado ao mundo catlico Lutero, Zwingle, Ccolam
pado, Melanchthon e Calvino. Reis, povos, sacerdotes
clamavam todos riorma! Mas aqui aparecia o proble
ma: que espcie de reforma? A opinio dos bispos e, em
geral, das populaes catlicas pronunciavam-se no
sentido duma reforma l iberal, em harmonia com o es-
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 95
pInto da poca, chegando muitos at a desejar uma
conciliao com os protestantes: era a opinio ePiscopal
representante das igrejas nacionai s. Em Roma, porm,
a soluo, que se dava ao problema, tinha um bem di
ferente carcter. O dio e a clera dominavam os cora
es dos sucessores dos apstolos. Repelia-se com hor
ror a ideia de conciliao, da mais pequena concesso.
Pensava-se que era necessrio fortificar a ortodoxia,
concentrando todas as foras, disciplinando e centrali
zando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalvel .
Era a opinio absolutista, representante do papado. Esta
opinio (para no dizer este partido) triunfou, e foi esse
triunfo uma verdadeira calamidade para as naes ca
tlicas. Nem era isso o que elas desejavam, e que pe
diram e sustentaram os seus bispos, lutando indefesos
durante dezasseis anos contra a maioria esmagadora
das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira re
forma, sincera, liberal, em harmonia com as exigncias
da poca. O programa formulava-se em trs grandes
captulos fundamentais. 1 . 0 I ndependncia dos bis
pos, autonomia das igrejas nacionais, inaugurao dum
parlamentarismo religioso pela convocao amiudada
dos conclios, esses estados gerais do cristianismo, su
periores ao Papa e rbitros supremos do mundo espiri
tual . 2. 0 O casamento para os padres, isto , a secula
rizao progressiva do clero, a volta s leis da humani
dade duma classe votada durante quase mil anos a um
duro ascetismo, ento talvez necessrio, mas j no s
culo XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3. Res
tries pluralidade dos benefcias eclesisticos, abuso
odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro
feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Des
tas reformas saa naturalmente a humanizao gradual
da religio, a liberdade crescente das conscincias, e a
capacidade para o cristianismo de se transformar dia a
ia, de progredir, de estar sempre altura do esprito
humano, resultado imenso e capital que trouxe a Re-
1 96 ANTERO DE QUENTAL
forma aos povos que a seguiram. Os graves prelados,
que no combatiam pelas reformas que acabo de apre
sentar, no desejavam, certamente, nem mesmo pre
viam estas consequncias: o prprio Lutero no as pre
viu. Mas nem por isso as consequnCias deixariam de
ser aquelas . Bartolomeu dos Mrtires e os bispos de
Cdis e Astorga no eram, seguramente, revolucio
nrios: representavam no Conclio de Trento a ltima
defesa e o protesto d
a
s igrejas da Pennsula, contra o
ultramontanismo invasor: mas obra deles que era,
pelas consequncias , revolucionria; e, trabalhando
nela, estavam na' corrente e no esprito do grande e
emancipador sculo XVI. Se houvessm alcanado essa
reforma, teramos ns talvez, espanhis e portugueses,
escapado decadncia. Quem pode hoj e negar que
em grande parte Reforma que os povos reormados de
vem os progressos morais que os colocaram natural
mente frente da civilizao? Contraste significativo,
que nos apresenta hoj e o mundo! As naes mais inteli
gentes, mais moralizadas, mais pacfcas e mais indus
triosas so exactamente aquelas que seguiram a revolu
o religiosa do sculo XVI: Alemanha, Holanda, Ingla
terra, Estados Unidos, Sua. As mais decadentes so
exactamente as mais catlicas! Com a Reforma estara
mos hoj e altura dessas naes; estaramos livres,
prsperos, inteligentes, morais . . . mas Roma teria cado!
Roma no queria cair. Por isso resistiu longo tempo,
iludiu quanto pde os votos das naes, que reclama
vam a convocao do conclio reformador. No po
dendo resistir mais tempo, cede por fim. Mas como o
fez? Como cedeu Roma, dominada desde ento pelos
Jesutas? Estamos em I tlia, meus senhores, no pas de
Maquiavel! . . . Eu no digo que Roma usasse deliberada
e conscientemente duma poltica maquiavlica: no
posso avaliar as i ntenes . Digo simplesmente que o
parece; e que, perante a histria, a poltica romana em
toda esta questo do Conclio de Trento aparece com
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 97
um notvel carcter de habilidade e clculo . . . muito
pouco evanglicos! Roma, no podendo resistir mais
ideia do Conclio, explora essa ideia em proveito pr
prio. Dum instrumento de paz e progresso, faz uma
arma de guerra e dominao; confsca o grande impul
so reformador, e f-lo convergir em proveito do ultra
mont ani smo. Como? Duma manei ra si mpl es : 1 . ,
dando s aos legados do Papa o direito de propor refor
mas; 2., substi tuindo, ao antigo modo de votar por na
es, o voto por cabeas, que lhe d com os seus cardeais e
bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta
e resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das ou
tras naes. Basta dizer que a Frana, a Espanha, Por
tugal e os Estados catlicos da Alemanha nunca ti
veram, j untos, nmero de votos superior a sessenta, en
quanto os italianos contavam cento e oitenta e mais !
Nestas condies, o conclio deixava de ser universal:
era simplesmente italiano; nem italiano, romano ape
nas! Desde o primeiro dia se pde ver que a causa da
reforma l i beral estava perdida. Provocado para essa re-
.
forma, o conclio s serviu contra ela, para a sofi smar e
anular!
Composta e armada assim a mquina, vej amo-la ta
balhar. Para sujei tar na terra o homem, era necessrio
faz-lo condenar primeiro no cu: por isso o conclio
comea por estabelecer dogmaticamente, na sesso
cinco, o pecado original, co
m
todas as suas consequn
cias, a condenao hereditria da humanidade, e a in
capacidade de o homem se salvar por seus merecimen
tos, mas s por obra e graa de Jesus Cristo. Muitos
telogos e alguns poucos snodos particulares se ha
viam j ocupado desta matria: nenhu conclio ecu
mnico a definira ainda. Um conclio verdadeiramente
liberal deixava essa questo na sombra, no indefinido,
no prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa
algema: o Conclio de Trento fez dessa defnio o prlogo
dos seus trabalhos. Convinha-lhe, logo no comeo, conde-
1 98 ANTERO DE QUENTAL
nar sem apelao a razo humana, e dar essa base ao seu
edificio. Assim o fez. De ento para c, fcou dogmatica
mente estabelecido no mundo catlico que o homem deve
ser um corpo sem alma, que a vontade individual uma
sugesto diablica, e que para nos dirigir basta o Papa em
Roma e o confessor cabeceira. Perinde ac cada ver, dizem
os estatutos da Companhia de Jesus.
Na sesso treze confirma-se e precisa-se o dogma da
eucaristia, j defnido, ainda que vagamente, no 4. Con
clio de Latro, e vibra-se o antema sobre quem no crer
na presena real de Cristo no po e no vinho depois da
consagrao.
mais um passo (e este decisivo) para fazer
entrar o cristianismo no caminho da idolatria, para colo
car o divino no absurdo. Poucos dogmas contriburam
tanto como este materialismo da presena real para embru
tecer o nosso povo, para fazer reviver nele os instintos
pagos, para lhe sofismar a razo natural! Parece que era
isto o que o conclio desejava!
Na sesso catorze trata-se detidamente da confsso.
A confisso existia h muito na Igrej a, mas comparati
vamente livre e facul tativa. No 4. Conclio de Latro
restringira-se j bastante essa liberdade. Na sesso ca
torze de Trento a conscincia crist defnitivamente
encarcerada. Sem confi sso no h remisso de peca
dos! A alma incapaz de comunicar com Deus, seno
por intermdio do padre! Estabelece-se a obrigao de
os fiis se confessarem em pocas certas, e exortam-se
a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui
o poder, to temvel quanto misterioso, do confessio
nrio. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Da
por diante h sempre na famlia, imvel cabeceira,
invisvel mas sempre presente, um vulto negro que se
para o marido da mulher, uma vontade oculta que go
verna a casa, um i ntruso que manda mais do que o
dono. Quem h aqui, espanhol ou portugus, que n
o
conhea este estado deplorvel da famlia, com um che
fe secreto, em regra hostil ao chefe visvel? Quem no
TEXTOS DOUTRINRIOS 1 99
conhece as desordens, os escndalos, as misrias intro
duzidas no lar domstico pela porta do confessionrio?
O concl i o no queria i sto, decerto: mas fez tudo
quanto era necessrio para que isto acontecesse.
Na parte disciplinar e nas relaes da I grej a com o
Estado predomina o mesmo esprito de absolutismo, de
concentrao, de invaso de todos os direitos. Na ses
so cinco, tornam-se as ordens regulares independentes
dos bispos, e quase exclusivamente dependentes de Ro
ma. Que arma esta na mo do Papado, que j de si no
era mais do que uma arma na mo de j esui tismo! Na
sesso treze s o Papa, pelos seus comissrios, pode j ul
gar os bispos e os padres.
a impunidade para o clero!
Na sesso quatro pem-se restries leitura da Bblia
pelos seculares, restries tais que equivalem a uma
verdadeira proibio. Ora, o que isto. seno a suspei
o da razo humana, condenada a pensar e a ler pelo
pensamento e pelos olhos de meia dzia de eleitos? Nas
sesses sete, nove, dezoito e vinte e quatro estabelecem
-se igualmente disposies tendentes todas a suj eitar os
governos, a impor aos povos a polcia romana, apa
gando implacavelmente por toda a parte os l timos
vestgios das igrej as nacionais. Finalmente, a superiori
dade do Papa sobre os conclios triunfa nas sesses
vinte e trs e vinte e cinco, pela boca do j esuta Lainez,
inspirador e alma do conclio . . . se permitido, ainda
metafori camente, falando dum j esuta, empregar a
palavra alma . . . A redaco dum catecismo vem coroar
esta obra de alta poltica. Com esse catecismo, imposto
por toda a parte e por todos os modos aos espritos mo
os e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu
grmen, de absorver as geraes nascentes, de as defor
mar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos
duma doutrina seca, formal, escolstica e subtilmente
ininteligvel. Se se conseguiu ou no esse resultado fu
nesto, respondam umas poucas de naes moribundas,
enfermas da pior das enfermidades, a atrofa moral!
200
ANTERO DE QUENTAL
Sim, meus senhores! essa mquina temerosa de com
presso, que foi o catolicismo depois do Conclio de
Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolern
cia, o embrutecimento, e depois a morte! Tomo trs
exemplos. Sej a o primeiro a Guerra dos Trinta Anos, a
mais cruel, a mais friamente encarniada, mais siste
maticamente destruidora de quantas tm visto os tem
pos modernos, e que por pouco no aniquila a Alema
nha. Essa guerra, provocada pelo partido catlico, e
por ele dirigida com uma perseverana infernal, mos
trou bem ao mundo que abismos de dio podem ocultar
palavras de paz e religio. O padre no dirigia so
mente, assistia execuo. Cada general trazia sempre
consigo um director jesuta: e esses generais chama
vam-se Tilly, Picolomini, os mais endurecidos dos vere
dugos. Salvou ento a Alemanha e a Europa a firmez
indomvel dum corao to grande quanto puro, sere
no em face dessas ordens fanticas. O verdadeiro heri
(e nico tambm) dessa guerra maldita, o verdadeiro
santo desse perodo tenebroso, um protestante, Gus
tavo Adolfo. Quanto ao Papa, esse aplaudia a matana!
O segundo exemplo a I tlia. O terror que inspirava
ao Papado a criao em I tlia dum Estado forte, que
lhe pusesse uma barreira ambio crescente de dia
para dia, tornou-se o maior inimigo da unidade italia
na.
o Papado quem semeia a discrdia entre as cida
des e os prncipes i talianos, sempre que tentam ligar-se.
o Papado quem convida os estrangeiros a descerem
os Alpes, na cruzada contra as foras nacionais, cada
vez que parecem querer organizar-se. O Papado, diz
Edgard Quinet, tem sido um ferro sagrado na ferida
da Itlia, que a no deixa sarar. Hoje mesmo, se essa
suspirada unidade se consumou, no foi no meio das
maldies e cleras do clero e de Roma? O nico pensa
mento que hoj e absorve o Papado, desmanchar aque
la obra nacional, chamar sobre ela os olhos do mundo,
o ferro estrangeiro, podendo ser; assassinar a Itlia
TEXTOS DOUTRINRIOS 201
ressuscitada! Estes factos so por todos sabidos. O que
talvez nem todos saibam o papel que o catolicismo
representou no assassinato da Polnia. A intolerncia
dos jesutas e ultramontanos, diz Emlio de Lavelaye,
foi a causa primria do desmembramento e queda da
Polnia. Esta nao herica, mas pouco organizada,
ou antes, pouco unificada, era uma espcie de federa
o de pequenas nacionalidades, com costumes e reli
gies diferentes. Encravada entre monarquias podero
sas e ambiciosas, como a
frica, pelaf
catlica, no pela nao portuguesa. Carlos V e Filipe I I
pem o mundo a ferro e fogo, porqu? pelos interesses
espanhis? pela grandeza de Espanha? No: pela gran
deza e pelos interesses de Roma! Durante mais de se
tenta anos, a Espanha, dominada por estes dois inquisi
dores coroados, d o melhor do seu sangue, da sua ri
queza, da sua actividade, para que o papa desse outra
vez leis I nglaterra e Alemanha. Era essa a poltica
nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simples
mente trair as naes.
Tal uma das causas, seno a principal, da decadn
cia dos povos peninsulares . Das infuncias deletrias
nenhuma foi to universal, nenhuma lanou to fundas
razes. Feriu o homem no que h de mais ntimo, nos
TEXTOS DOUTRI NIOS 205
pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no sentir
-no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secre
tas. Essa transformao da alma peninsular fez-se em
to ntimas profundidades, que tem escapado s maio
res revolues; passam por cima dessa regio quase
inacessvel, superficialmente, e deixam-na na sua inr
cia secular. H em todos ns, por mais modernos que
queiramos ser, h l oculto, dissimulado, mas no intei
ramente morto, um beato, um fantico ou um j esuta!
Esse moribundo que se ergue dentro de ns o inimigo,
o passado.
preciso enterr-lo por uma vez, e com ele
o esprito sinistro do catolicismo de Trento.
Est a causa actuou pri nci pal mente sobre a vi da
moral : a segunda, o absolutismo, apesar de se refectir
no estado dos espritos, actuou principalmente na vida
poltica e social . A histria da transformao das mo
narquias peninsulares longa, e, para a minha pouca
cincia, obscura e at certo ponto desconhecida: no a
poderia' eu fazer aqui. Basta dizer que o carcter qessas
monarquias durante a Idade Mdia contrasta singular
mente com o que lhes encontramos no sculo XVI e nos
seguintes. Os reis ento no eram absolutos; e no o
eram, porque a vida poltica local, forte e vivaz, no s
no l hes deixava um grande crculo de aco, mas
ainda, dentro desse mesmo crculo, lhes opunha ex
panso da autoridade embaraos e uma contnua vi
gilncia. Os privilgios da nobreza e do clero, por um
lado, e, pelo outro, as instituies populares, os munic
pios, as comunas, equilibravam com mais ou menos os
cilao o peso da coroa. Para as questes sumas, para
os momentos de crise, l estavam as Cortes, aonde to
das as classes sociais tinham representantes e voto.
A l iberdade era ento o estado normal da Pennsula.
No sculo XVI, tudo isto mudou. O poder absoluto
assenta-se sobre a runa das instituies locai s. Abai
xou a nobreza, verdade, mas s em proveito seu: o
povo pouco l ucrou com essa revoluo. O que certo
206 ANTERO DE QUENTAL
que perdeu a liberdade. A vida municipal afrouxa gra
dualmente, as comunas espanholas, depois dum san
grento protesto, caem exnimes, aos ps dum rei, que
nem sequer era inteiramente espanhol . As instituies
locais, cerceadas por todos os lados, sentem fal tar-lhes
em volta o ar, e o cho debaixo de si. Quem poder
j amais contar essas invases surdas, insensveis do po
der real no terreno do povo, essas lutas subterrneas, as
abdicaes sucessivas da vontade nacional nas mos
dum homem, as resistncias infelizes, a longa e cruel
histria do desaparecimento dos foros populares?
uma histria to triste quanto obscura, que ningum
fez nem farj amais ! V-se o desfecho do drama: os inci
dentes escapam-nos . Mas ao lado dessa luta surda,
houve outra manifesta, cuja histria se erguer sempre
como um espectro vingador, para acusar a realeza. Es
sa l uta a grande guerra communera das cidades espa
nholas. Vencidas, esmagadas pela fora, as cidades es
panholas encontraram um heri, de cujo peito saiu ar
dente um protesto, que ser eterno como a condenao
de quem o provocou. Eis aqui o que D. Juan de Padilla,
chefe dos communeros, escrevia sua cidade de Toledo,
horas antes de ser decapitado. A ti, cidade de Toledo,
que s a coroa de Espanha, e a luz do mundo, que j no
tempo dos Godos eras livre, e que prodigalizaste o teu
sangue para assegurar a tua liberdade e a das cidades
tuas irms, Juan de Padilla, teu filho legtimo, te faz
saber que pelo sangue do seu corpo mais uma vez vo
ser renovadas as tuas antigas vitrias . . . A cabea de
Padilla rolou, e com ele, decapitada tambm, caiu a
antiga liberdade municipal . A centralizao monrqui
ca, pesada, uniforme, caiu sobre a Pennsula como a
pedra dum tmulo. A respirao de milhares de ho
mens suspendeu-se, para se concentrar toda no peito de
um homem excepcional, de quem o acaso do nasci
mento fazia um deus. Se, ao menos, esse deus fosse pro
pcio, bom, providencial ! Mas a centralizao do ab-
TEXTOS DOUTRINRI OS 207
solutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmo
tempo o rei. D. Joo I I I , esse rei fantico e de ruim condi
o, Filipe I I , o demnio do Meio-Dia, inquisidor e ver
dugo das naes, Filipe I I I , Carlos IV, Joo V, Afonso
VI , devassos uns, outros desordeiros, outros ignorantes
e vis, so bons exemplos da realeza absoluta, enfatuada
at ao vcio, at ao crime, do orgulho do prprio poder,
possessa daquela loucura cesariana, com que a natureza
faz expiar aos dspotas a desigualdade monstruosa, que
os pe como que fora da humanidade. A tais homens,
sem garantias, sem inspeco, confaram as naes ce
gamente os seus destinos ! Se Filipe I I
n
o fosse absolu
to, jamais teria podido tentar o seu absurdo proj ecto de
conquistar a Inglaterra, no teria feito sepultar nas
guas do oceano, com a I nvencvel Armada, milhares
de vidas e um capital prodigioso inteiramente perdido.
Se D. Sebastio no fosse absoluto, no teria ido enter
rar em Alccer Quibir a nao portuguesa, as ltimas
esperanas da ptria.
Outras monarquias, a francesa por exemplo, suj ei ta
vam o povo, mas aj udavam por outro lado o seu pro
gresso. Aristocrticas pelas razes, tinham pelos frutos
mui to de populares. A burguesia, a quem estava desti
nado o futuro, erguia-se, comeava a ter voz. As nossas
monarquias, porm, tiveram um carcter exclusiva
mente aristocrtico: eram-no pelo princpio, e eram-no
pelos resul tados. Governava-se ento pela nobreza e
para a nobreza. As consequncias sabemo-las ns to
dos . Pelos morgados, vinculou-se a terra, criaram-se
imensas propriedades . Com isto, anulou-se a classe dos
pequenos proprietrios; a grande cultura sendo ento
i mpossvel, e desaparecendo gradualmente a pequena,
a agricultura caiu; metade da Pennsula transformou-se
numa charneca: a populao decresceu, sem que por
isso se aliviasse a misria. Por outro lado, o esprito
aristocrtico da monarquia, opondo-se naturalmente
aos progressos da classe mdia, impediu o desenvolvi-
208 ANTERO DE QUENTAL
mento da burguesia, a classe moderna por excelncia,
civilizadora e iniciadora, j na indstria, j nas cin
cias, j no comrcio. Sem ela, o que podamos ns ser
nos grandes trabalhos com que o esprito moderno tem
transformado a sociedade, a inteligncia e a natureza?
O que realmente fomos; nulos, graas monarqui a
aristocrtica! Essa monarquia, acostumando o povo a
servir, habituando-o inrcia de quem espera tudo de
cima, obliterou o sentimento instintivo da liberdade,
quebrou a energia das vontades, adormeceu a inicia
tiva; quando mais tarde lhe deram a liberdade, no a
compreendeu; ainda hoj e a no compreende, nem sabe
usar dela. As revolues podem chamar por ele; sacudi
-lo com fora: continua dormindo sempre o seu sono
secular! A estas infuncias deletrias, e estas duas cau
sas principais de decadncia, uma moral e outra pol
tica, junta-se uma terceira, de carcter sobretudo eco
nmico: as conquistas. H dois sculos que os livros, as
tradies e a memria dos homens, andam cheios dessa
epopeia guerreira, que os povos peninsulares, atraves
sando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por to
das as partes do mundo. Embalaram-nos com essas his
trias: atac-las quase um sacrilgio. E todavia esse
brilhante poema em aco foi uma das maiores causas
da nossa decadncia.
necessrio diz-lo, em que pese
aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradi
cional. Tanto mais que um erro ecmmico no neces
sariamente uma vergonha nacional. No ponto de vista
herico, quem pode neg-lo? foi esse movimento das
conquistas espanholas e portuguesas um relmpago
brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrpida
peninsular. A moralidade subj ectiva desse movimento
indiscutvel perante a histria: so do domnio da
poesia, e s-lo-o sempre acontecimentos que puderam
inspirar a grande alma de Cames. A desgraa que
esse esprito guerreiro estava deslocado nos tempos mo
dernos: as naes modernas esto condenadas a no fa-
TEXTOS DOUTRINRIOS 209
zerem poesia, mas cincia. Quem domina no Ja a
musa herica da epopeia; a economia poltica, Calo
pe dum mundo novo, seno to belo, pelo menos mais
j usto e lgico do que o antigo. Ora, luz da economia
poltica que eu condeno as conquistas e o esprito guer
reiro. Quisemos refazer os tempos hericos da idade
moderna: enganmo-nos; no era possvel ; camos.
Qual , com efeito, o esprito da idade moderna? o
esprito de trabalho e de indstria: a riqueza e a vida das
naes tm de se tirar da actividade produtora, e no j
da guerra esterilizadora. O que sai da guerra no s
acaba cedo, mas alm disso um capital morto, consu
mido sem resultado. necessrio que o trabalho, sobre
tudo a indstria agrcola o fecunde, lhe d vida. Do
mina todo este assunto uma lei econmica, formulada
por Ado Smith, um dos pais da cincia, nas seguintes
palavras : O capi tal adquirido pelo comrcio e pela
guerra s se torna real e produtivo quando se fixa na
cultura da terra e nas outras indstrias. Vejamos o
que tem fei to a I nglaterra com a
ndia e o Brasil
enri queci am. A mul tido, porm, morria de fome.
A misria popular era grande. A esmola portaria dos
conventos e casas fidalgas passou a ser uma instituio.
Mendigavam aos bandos pelas estradas. A tradio,
num smbolo terrivelmente expressivo, apresenta-nos
Cames, o cantor dessas glrias que nos empobreciam,
mendi
g
ando para sustentar a velhice triste e desalen
tada. E uma imagem da nao. As crnicas falam-nos
de grandes fomes. Por tudo isto, decrescia a olhos vistos
a populao. Que remdio se procura a este mal? um
mal i ncomparavelmente maior: a escravido! Tenta-se
i ntroduzir o trabalho servil nas culturas, com escravos
vindos da
ndia! Vai-se
ndia buscar
um nome e uma fortuna, e volta-se para gozar, dissipar
esterilmente. A vida concentra-se na capital. Os nobres
deixam os campos, os solares dos seus maiores, onde vi
viam em certa comunho com o povo, e vm para a corte
brilhar, ostentar. . . e mendigar nobremente. O fidalgo faz
-se corteso: o homem do povo, no podendo j ser traba
lhador, faz-se lacaio: a libr o selo da sua decadncia.
A criadagem duma casa nobre era um verdadeiro estado.
O luxo da nobreza tinha alguma coisa de Oriental. Do'
luxo desenfreado, ao vcio, corrupo, mal dista um
passo. A paixo do jogo estendeu-se terrivelmente: joga
va-se nas tavolagens, e jogava-se nos palcios. O cio,
acendendo as imaginaes, levava pelo galanteio s intri
gas amorosas, s aventuras, ao adultrio, e arruinava a
famlia. Lisboa era uma capital de fidalgos ociosos, de
plebeus mendigos, e de rufies.
Ao longe, fora do pas, foram outras as consequn
cias do esprito de conquista, mas igualmente funestas .
A escravatura (alm de todas as suas deplorveis con
sequncias morais) esterilizou pelo trabalho servil. S o
trabalho livre fecundo: s os resultados do trabalho
livre so duradoiros. Das colnias que os Europeus fun
daram no Novo Mundo, quais prosperaram? quais fi
caram estacionrias? Prosperaram na razo directa do
trabalho livre: o Norte dos Estados Unidos mai s do que
o Sul : os Estados Unidos mais do ue o Brasil . E essa
jovem Austrlia, cuja populao duplica todos os dez
anos, que j exporta para a Europa os seus produtos,
cujas instituies so j hoj e modelo e invej a para os
povos civilizados, e que ser antes de um sculo uma
TEXTOS DOUTRI NRIOS 2 1 3
das maiores naes do mundo, a que deve ela essa pros
peridade fenomenal, seno ao influxo maravilhoso do
trabalho livre? numa terra que ainda no pisou o p de
um homem que se no dissesse livre? A Austrlia tem
feito em menos de cem anos de liberdade o que o Brasil
no alcanou com mais de trs sculos de escravatura!
Fomos ns, foram os resultados do nosso esprito guer
rei ro, quem condenou o Brasil ao estacionamento,
quem condenou nulidade toda essa costa de
frica,
em que outras mos podiam ter talhado larga uns
poucos de i mprios . Esse esprito guerreiro, com os
olhos fi tos na luz duma falsa glria, desdenha, desacre
dita, envilece o trabalho manual -o trabalho manual,
a fora das sociedades modernas, a salvao e a glria das
futuras . . . Mas um fantstico idealismo perturba a alma
do guerreiro: no distingue entre interesse honroso e in
teresse vil: s as grandes aces de esforo herico so
belas a seus olhos: para ele a indstria pacfica s pr
pria de mos servis. A tradio, que nos apresenta D.
Joo de Castro, depois duma campanha em
frica, re
tirando-se sua quinta de Sintra, onde se dava quela
estranha e nova agricultura de cortar as rvores de fruto, e
plantar em lugar delas rvores silvestres, essa tradio
deu-nos um perfeito smbolo do esprito guerreiro no seu
desprezo pela indstria. Portugal, o Portugal das conquis
tas, esse guerreiro altivo, nobre e fantstico, que volun
tariamente arruna as suas propriedades, para maior gl
ria do seu absurdo idealismo. Ej que falei em D. Joo de
Castro, direi que poucos livros tm feito tanto mal ao es
prito portugus, como aquela biografia do heri escrita
por Jacinto Freire.
J. Freire, que era padre, que nunca vira a
ndia, e
que ignorava to profundamente a poltica como a eco
nomia poltica, fez da vida e feitos de D. Joo de Cas
tro, no um estudo de cincia social, mas um discurso
acadmico, li terrio e muito eloquente, seguramente,
mas enftico, sem crtica, e animado por um falso ideal
2 1 4 ANTERO DE QUENTAL
de glria antiga, glria clssica) atravs do qual nos faz
ver continuamente as aces do seu heri. H dois s
culos que lemos todos o D. Joo de Castro, de Jacinto
Freire, e acostummo-nos a tomar aquela fantasia de
retrico pelo tipo do verdadeiro heri nacional. False
mos com isto o nosso j uzo, e a crtica de uma poca
i mportante.
preciso que se saiba que a verdadeira
glria moderna no aquela: exactamente o contrrio
daquela. Uma s coisa h ali a aproveitar como exem
plo: a nobreza de alma daquele homem magnnimo:
mas essa nobreza de alma deve ser aplicada pelos ho
mens modernos a outros cometimentos, e dum modo
muito diverso. Foi aquele gnero de herosmo, to apre
goado por J. Freire, que nos arruinou!
Como era possvel, com as mos cheias de sangue, e
os coraes cheios de orgulho, i niciar na civilizao
aqueles povos atrasados, unir por i nteresses e senti
mentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raas, e
fundar assim, depois do domnio momentneo da vio
lncia, o domnio duradoiro e j usto da superioridade
moral e do progresso? As conquistas sobre as naes
atrasadas, por via de regra, no so j ustas nem inj ustas.
Justificam-se ou condenam-nas os resultados, o uso que
mais tarde se faz do domnio estabelecido pela fora. As
conquistas romanas so hoj e j ustificadas pela fi losofia
da histria, porque criaram uma civilizao superior
quela de que viviam os povos conquistados. A con
quista da
ramos man
dados) somos agora governados: os dois termos quase que
se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, con
servou-se o velho esprito monrquico: quanto basta
para no estarmos muito melhor do que nossos avs.
Finalmente, do esprito guerreiro da nao conquista
dora, herdmos um invencvel horror ao trabalho e um
ntimo desprezo pela indstria. Os netos dos conquista-
TEXTOS DOUTRINRIOS 2 1 7
dores de dois mundos podem, sem desonra, consumir
no cio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secre
tarias um emprego: o que no podem, sem indignidade,
trabalhar. uma fbrica, uma oficina, uma explorao
agrcola ou mineira, so coisas imprprias da nossa fi
dalguia. Por isso as melhores indstrias nacionais esto
nas mos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem,
e se riem das nossas pretenses. Contra o trabalho ma
nual, sobretudo, que universal o preconceito: pare
ce-nos um smbolo servil! Por ele sobem as classes de
mocrticas em todo o mundo, e se engrandecem as na
es; ns preferimos ser uma aristocracia de pobres
ociosos, a ser uma democracia prspera de trabalha
dores .
o fruto que colhemos duma educao secular
de tradies guerreiras e enfticas!
Dessa educao, que a ns mesmos demos durante
trs sculos, provm todos os nossos males presentes.
As razes do passado rebentam por todos os lados no
nosso solo: rebentam sob forma de sentimentos, de h
bi tos, de preconceitos. Ge'memos sob o peso dos erros
histricos . A nossa fatalidade a nossa histria.
Que pois necessrio para readquirirmos o nosso lu
gar na civilizao? para entrarmos outra vez na comu
nho da Europa culta?
necessrio um esforo viril,
um esforo supremo: quebrar resolutamente com o pas
sado. Respeitemos a memria dos nossos avs: me
moremos piedosamente os actos deles : mas no os imi
temos . No sej amos, luz do sculo XIX, espectros a
que d uma vida emprestada o esprito do sculo XVI . A
esse esprito mortal oponhamos francamente o esprito
moderno. Oponhamos ao catolicismo, no a indiferena
ou uma fria negao, mas a ardente afirmao da alma
nova, a conscincia livre, a contemplao directa do di
vino pelo humano (isto , a fuso do divino e do hu
mano) , a fi losofia, a cincia, e a crena no progresso, na
renovao incessante da humanidade pelos recursos
i nesgotveis do seu pensamento, sempre i nspirado.
2 1 8
ANTERO DE QUENTAL
Oponhamos monarquia centralizada, uniforme e impo
tente, a federao republicana de todos os grupos auto
nmicos, de todas as vontades soberanas, alargando e
renovando a vida municipal, dando-lhe um carcter ra
dicalmente democrtico, porque s ela a base e o ins
trumento natural de todas as reformas prticas, po
pul ares, niveladoras . Finalmente, inrcia industrial
oponhamos a iniciativa do trabalho livre, a indstria do
povo, pelo povo, e para o povo, no dirigida e protegida
pelo Estado, mas espontnea, no entregue anarquia
cega da concorrncia, mas organizada duma maneira
solidria equitativa, operando assim gradualmente a
transio para o novo mundo industrial do socialismo,
a quem pertence o futuro. Esta a tendncia do s
culo: esta deve tambm ser a nossa. Somos uma raa
decada por ter rej eitado o esprito moderno: regene
rar-nos-emos abraando francamente esse esprito.
O seu nome Revoluo: revoluo no quer dizer
guerra, mas sim paz: no quer dizer licena, mas sim
ordem, ordem verdadeira pela verdadeira l iberdade.
Longe de apelar para a insurreio, pretende preveni
-l a, torn-la i mpossvel : s os seus inimigos, deses
perando-a, a podem obrigar a lanar mo das armas.
Em si, um verbo de paz, porque o verbo humano
por excelncia.
Meus senhores: h mil e oitocentos anos apresentava
o mundo romano um singular espectculo. Uma socie
dade gasta, que se alua, mas que, no seu aluir, se deba
tia, lutava, perseguia para
'
conservar os seus privilgios,
os seus preconceitos, os seus vcios, a sua podrido: ao
lado dela, no meio dela, uma sociedade nova, embrio
nria, s rica de ideias, aspiraes e justos sentimentos,
sofrendo, padecendo, mas crescendo por entre os pade
cimentos. A ideia desse mundo novo impe-se gradual
mente ao mundo velho, converte-o, transforma-o: che
ga um dia em que o elimina, e a humanidade conta
mais uma grande civilizao.
TEXTOS DOUTRINRIOS 2 1 9
Chamou-se a isto o cristianismo.
Pois bem, meus senhores: o cristianismo foi a Re
voluo do mundo antigo. A Revoluo no mais do
que o cristianismo do mundo moderno.
CORRESPONDNCIA
CARTA A WILHELM STORCK
Ponta Delgada ( Ilha de S. Miguel, Aores)
24 de Maio de 1 887
Ex. "'O Sr. :
S agora me chegou s mos a sua estimada carta de
23 de Abril ltimo, pelo facto de me encontrar, h dois
meses, nesta ilha (que a minha ptria) trazido aqui
por urgentes negcios de famlia. A demora das comu
nicaes com o continente explica este atraso.
Agradeo a V. Ex." as amveis e para mim to hon
rosas expresses de sua carta, e nada me pode ser,
(l0 poeta e come homem, mais grato do que o apreo
que um tal mestre e crtico manifesta pelas minhas
composies, ao ponto de querer ser meu i ntrprete e
i ntrodutor j unto do pblico o mais culto do mundo e
que mais direito tem a ser exigente. Discpulo da Ale
manha fi losfica e potica, oxal que ela receba com
benignidade essas pobres flores, que uma semente sua,
trazida pelo vento do sculo, faz desabrochar neste solo
pouco preparado. Qual quer que sej a a sua fortuna,
toda a minha gratido devida ao bom e gentil esprito,
224 ANTERO DE QUENTAL
que generosamente me toma pela mo, para me apre
sentar.
As i nformaes biogrfcas e bi bliogrfcas que
V. Ex. " me pede, podem reduzir-se ao seguinte: nasci
nesta ilha de S. Miguel, descendente de uma das mais
antigas famlias dos seus colonizadores, em Abril de
1 842, tendo por conseguinte perfeito 45 anos. Cursei,
entre 1 856 e 1 864, a Universidade de Coimbra, sendo
por ela bacharel formado em Direito. Confesso, porm,
que no foi o estudo do Direito que me interessou e
absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficando
um insignificante legista.
O facto importante da minha vida, durante aqueles
anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a esp
cie de revoluo intelectual e moral que em mim se deu,
ao sair, pobre criana arrancada do viver quase patri
arcal de uma provncia remota e i mersa no seu plcido
sono histrico, para o meio da irrespeitosa agitao in
telectual de um centro, onde mais ou menos vinham
repercutir-se as encontradas correntes do esprito mo
derno. Varrida num instante toda a minha educao
catlica e tradicional, ca num estado de dvida e incer
teza, tanto mais pungentes quanto, esprito natural
mente religioso, tinha nascido para crer placidamente e
obedecer sem esforo a uma regra reconhecida. Achei
-me sem direco, estado terrvel de esprito, partilhado
mais ou menos por quase todos os da minha gerao, a
primeira em Portugal que saiu decididamente e cons
cientemente da velha estrada da tradio.
Se a isto sejuntar a imaginao ardente, com que em
excesso me dotara a natureza, o acordar das paixes
amorosas prprias da primeira mocidade, a turbuln
cia e a petulncia, os fogachos e os abatimentos de um
temperamento meridional, mui to boa f e boa vontade,
mas muita falta de pacincia e mtodo, ficar feito o
quadro das qualidades e defeitos com que, aos 1 8 anos,
penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.
CORRESPONDNCIA 225
No meio das catlicas leituras a que ento me entre
gava, devorando com igual voracidade romances e li
vros de cincias naturais, poetas e publicistas e at te
logos, a leitura do Fausto de Goethe (na traduo fran
cesa de Blaze de Bury) e o livro de Rmusat sobre a
nova filosofi a alem exerceram todavia sobre o meu es
prito uma impresso profunda e duradoura: fi quei de
finitivamente conquistado para o germanismo; e, se entre
os franceses, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi
sem dvida por serem estes dois os que mais se ressen
tem do esprito de alm-Reno. Li depois muito de He
gel, nas tradues francesas de Vera (pois s mais tarde
que aprendi alemo) ; no sei se o entendi bem, nem a
independncia do meu esprito me consentia ser disc
pulo: mas certo que me seduziam as tendncias gran
diosas daquele estupenda sntese. Em todo o caso o he
gelianismo foi o ponto de partida das minhas especula
es fi losfi cas, e posso dizer que foi dentro dele que se
deu a minha evoluo intelectual.
Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do
apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o
socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mistrios
da incoerncia da mocidade! O que certo que, reves
tido com esta armadura mais brilhante do que slida,
desci confi ado para a arena: queria reformar tudo, eu
que nem sequer estava ainda a meio caminho da forma
o de mim mesmo! Consumi muita actividade e algum
talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de
j ornais, em folhetos, em proclamaes, em conferncias
revolucionrias: ao mesmo tempo que conspirava a fa
vor da Unio I brica, fundava com a outra mo socie
dades operrias e i ntroduzia, adepto de Marx e de En
gels, em Portugal a Associao Internacional dos Tra
balhadores. Fui durante uns sete ou oito anos uma es
pcie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de v
popularidade.
Do que publiquei por esse tempo, a vai o que ainda
226 ANTERO DE QUENTAL
posso lembrar. O meu primeiro folheto do ano de
1 864. I ntitula-se: Desa da Carta Encclica de S. S. Pio IX
contra a Chamada Opinio Liberal.
um protesto contra a
falta de lgica com que as folhas liberais atacavam o
Syllabus, declarando-se ao mesmo tempo fis catlicos.
O autor, glorifi cando o Pontfice pela beleza da sua ati
tude intransigente em face do sculo, via nessa i ntransi
gncia uma lei histrica, rezava respeitosamente um De
profundis sobre a Igreja condenada pela mesma gran
deza da sua instituio a cair i nteira mas no a render
-se, e atacava a hipocrisia dos j ornais liberais.
O meu ltimo folheto de l 87 l . I ntitula-se: Carta ao
Ex.mo Marqus de
'
O MACHADO DE FARI A
E MAIA
1 865
Joo:
No vou a Coimbra. Este propsito inquebrantvel
na minha vontade. Note-se que no vou igualmente a
Tomar. Reputo estes termos correlativos. A mesma po
sio de esprito d a razo dum igual pensamento, do
minando duas situaes paralelas . Nada mais acres
cento, porque tinha ento de acrescentar muitssimo.
Mas muitssimo no , s para a palavra, para a vista,
para o corao? A escrita apenas o esqueleto da ideia.
Adeus.
T eu e vosso amigo
ANTERO
N. B. Esta gente aqui desgraada. Entendo que o
mais alto resultado da flosofia prtica sobretudo a
piedade. Mas porventura este sentimento, to distante
de qualquer cincia ou sistematizao, no pressupe
toda uma concatenao filosfica, explicando a cons-
CORRESPONDtNCIA
241
cincia humana, a l iberdade, a virtude ou o vcio, por
uma superior concepo metafisica, que nos d parale
lamente a explicao das l utas, instabilidade e movi
mento fatal do mundo fisico? O que eu noto que no
mais responsvel o homem, que rouba a luz e o ar a seu
irmo, do que a planta, que estiriliza ou estiola outra
mais fraca, que o destino fez nascer sua sombra.
O agiota, ou i ntrigante poltico, so to natural
mente inocentes (ou to naturalmente infames) como o
chacal ou o milhafre. O que uns e ouros so desgraa
dos . Tristes (mais ainda do que quem os sofre) quem
os v, os entende, e nem sequer lhe dado odi-los.
Mas o Mundo uma formosura toda feita de asquerosi
dades . Em todo o caso no feito para alegrias excessi-
vas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O ( . . . ) esse que tolo
e contente.
A.
CARTA A JOO DE DEUS
1 865
Meu Joo:
Li os teus belos versos na Folha do Sul. Mas nas linhas
que os precedem foste inj usto para com a cincia mo
derna, e cruel para com aqueles que no tendo a F
(no basta querer, nem ainda crer, para isso) tentam
levantar sobre o nico alicerce que les fica -a Razo
( e o nico possvel para eles) esse edifcio da vida do
esprito, a que vinte bases de granito e vinte contrafor
tes de bronze no do ainda assim solidez bastante.
Queres-lhe mal porque no podem mais, Joo, no
generoso, confessa. A ironia ou o desprezo no a me
lhor consolao, para quem vergando sobre um fardo
excessivo l ana em volta os olhos e no v aonde se
firme seno no seu esforo interior, no estoicismo duma
vontade herica. Para esses, uma piedade amiga e com
padecida: essa sim, digna da nobreza deles e da posi
o superior de quem, sentado na pedra cbica da sua
F, os v passar trmulos e sem terem a que se apegar.
Depois, Renan no chama aos apstolos patuscas.
CORRESPONDNCIA 243
Chama-lhes folgazos, da folgada paz de uma boa e
inocente concincia. Os bons, os simples, os crentes e
pacficos so e devem ser assim -alegres. A tristeza
para os confusos e descrentes. O mesmo Cristo l lhes
aconselha que folguem, porque para alegrias e folguedo
deve ser na Terra o tempo em que o esposo dela a vi
sita. Cri sto vai aos rsticos banquetes dos seus amigos e
no seria ele, to bom, quem perturbasse nas bodas a
alegria inocente da esposa com pesares e lamentaes.
Renan no meio da cincia moderna, to hostil ao
cristianismo, atreve-se contra ela e defende em Cristo a
extenso da sua personalidade histrica, a grandeza da
sua al ma e a verdade das suas concluses. As escolas
mais avanadas da Alemanha e da Frana, sabes como
lhe chamam? Reaccionrio. Todas as biografias o pintam
homem austero, triste e de boa f. No se lhe pode cha
mar macaco de Voltaire. Fizeste uma grande inj ustia
a um dos homens que neste tempo tem mostrado uma
mais nobre independncia de esprito.
Teu
ANTERO
CARTAS A GERMANO VIEIRA MEIRELES
1 866
Caro Germano:
Sado o amigo! Que fazes e, sobretudo, como vais?
Estar a o A. , que, segundo me escreveu, fazia teno
de ir brevemente ao Porto! Se est, sada-o por mi m.
Eu c estou, sempre na mesma; mas doena impass
vel oponho uma pacincia que cada vez luta com ela
com mais vantagem. Por isso estou contente. Abenoa
da doena, se fizer de mim o homem impassvel dos
Esticos, o Santo de Marco Aurlio. No digo isto brin-
.
cando, e para mim o livro das mximas de Epicteto
um dos livros mais srios que tm sido escritos . Por
que o no ls? Mas talvez fora isso, infelizmente, intil,
porque no tens a F. A F no s patrimnio do
cristo, h tambm a F da Filosofia idealista, que pelo
menos to boa. Mas tu s Positivista, meu pobre Ger
mano. Pobre Filosofa essa, e fraco apoio! Quem me
dera que tu pudesses crer! Esta orgulhosa razo pre
ciso humilh-la num acto de sentimento ntimo: pre
ciso tambm chorar, e amar aquilo mesmo que nos faz
CORRESPONDtNCIA 245
chorar. Ento ouve-se em ns uma voz, que no a da
razo, menos forte ou sonora, mas mais pura e sobre
tudo mais consoladora. Isto tenho feito e fao, e s de
sej o que o faas tu tambm. Pensa nisto. Se achares
esta homilia muito lrica, considera que escrevo isto s
seis horas da manh, comeando a amanhecer, e tendo
eu perdido a noite -perdida para o sono, mas aprovei
tada para muitos pensamentos .
Adeus, querido amigo. D notcias ao do teu corao
ANTERO
1 866
Caro Germano:
No estou pior, e, apesar de me custar a escrever um
pouco longamente, ainda posso traar meia dzia de
linhas. Mas a monotonia dum viver condenado a uma
quase imobilidade produz-me uma agitao de esprito,
ou, se quiseres, de crebro, que chego em momentos a
temer dispare em loucura. Uma inquietao, um susto,
uma apreenso, um mau humor, coisas que juntas e
prolongadas do a soma dum verdadeiro tormento.
Isto s vezes chega a um estado agudo, que de tudo me
faz esquecer quant o no sej a aquel e l utar comigo
mesmo, com a rebeldia do organi smo que se quer
emancipar da razo.
como tenho passado estes lti
mos quinze dias, e a tens porque te deixei tanto tempo
sem notcias minhas . Vo agora estas, que no so
boas, mas podiam ser piores, se a estes males eu no
juntasse uma f crescente em cada dia no poder da von
tade e da razo. Tenho f em que hei-de por elas domi
nar todos os fenmenos da doena, produzindo no
246 ANTERO DE QUENTAL
uma cura no sentido mdico, mas uma eliminao do
mal para a conscincia. Sou estico em teoria e espero
chegar a s-lo na prtica. Mas vejo diante de mim
ainda muito caminho que andar e caminho asprrimo.
Embora! o nico grande e verdadeiro triunfo o triunfo
da liberdade. Quando penso nisto chego at a abenoar
a doena que me d ocasio para exercer a virtude por
excelncia dos fortes, e se no me abandono a um tal
sentimento s por me parecer orgulho demasiado,
quando certo que a frequncia das misrias morais
me adverte da nativa fraqueza. Mas pr os olhos num
grande alvo no j, num certo sentido, merec-lo?
No lastimes pois o teu amigo, que est talvez nesta
hora entrando no perodo mais nobre da sua vida
moral . Ser isto tambm iluso, como tantas teorias,
tantos sistemas pretensiosos? No posso cr-lo. A razo
especulativa um terreno movedio e so precrios os
sistemas que nele assentem. Mas a razo prtica (como
diz Kant) , a conscincia imediata que temos do nosso
ser moral, da natureza livre e racional que em ns
existe, uma verdade de intuio, umfacto de conscincia,
a expresso da nossa mesma realidade. Conformar
mo-nos com ela pois estar (se no na verdade do Uni
verso) com certeza na verdade da nossa natureza.
Mas isto pedia muitos desenvolvimentos, e eu no
posso mais. Ser algum dia que nos vejamos e conver
semos.
Adeus . Abraa-te o teu
ANTERO
CARTAS A ANTNIO DE AZEVEDO
CASTELO BRANCO
1 867
Tenho vivido desgostoso e abatido nestes ltimos
tempos. A est a razo por que no te tenho escrito; e
nem tu deves supor outra coisa. Sabes que h toda uma
ordem de desgostos por natureza silenciosos e incapa
zes de expanso. Por esses tenho eu passado. Digo-te
que no me tiram nem a memria nem o amor. Mas
no me deixam falar, embora o corao mo estej a s
vezes pedindo bem de rijo. Preocupado, dificilmente
poderei falar de outra coisa; e deles no quero. Custa
-me tanto a queixa como o mesmo mal. Sinto, entre
tanto, que no posso louvar a Deus pelo que me acon
tece. Aqui tens a chave deste meu silncio.
Se desej as agora saber em que ideias me deixaram
estes meses de experincia e abalo, direi que me vejo
mais perto da resignao do que da revolta. Todavia, a
resignao vem-me pela inteligncia, do conhecimento
do carcter inflexvel das leis e irremedivel dos factos
cujos encontros e desencontros decidem do destino do
indivduo, e no pelo corao, duma paz ntima e como
que orgnica, superior ou indiferente ao sentimento do
mal . Equivale isto a dizer que me no tira a inteligncia
e a sensibilidade a ponto de concordar com a sorte na
248 ANTERO DE QUENTAL
justia de seus caprichosos rigores; mas tambm me
no d aquele sossego e ainda uma certa fora relativa
que as conscincias passivas encontram na sua mesma
inteira abdicao.
a moral a que tenho podido chegar. Nem cuido que
chegue algum dia mais adiante, porque me parece ser
este o limite da cincia do sculo sobre esta matri a.
Sustento que tudo quanto excede esta concluso no se
contm nos elementos actuai s do pensamento. o
mundo intuitivo e santamente visionrio de Michelet.
Positivamente sabemos apenas o suficiente para respei
tar no mal a ordem e necessidade infl exveis da sobera
na Natureza: no sabemos, porm, quanto baste para
conciliar as suas durezas e desigualdades com a alta
ideia de j ustia que se levanta com fora indestrutvel
da conscincia do homem. Quero dizer que o nosso es
prito, em face do Deus novo que se revela, a Necessi
dade, chega j ao respeito; mas o que no pode ainda
dobrar-se e amolecer-se at ao amor. Por certos lados
pode dizer-se que voltamos aos sentimentos antigos do
Hebreu em face de Jeov.
Por quanto fica dito podes muito bem recompor o
meu estado de esprito e a ordem de sentimentos que
pairam na minha atmosfera moral . S acrescentarei
que estou a to grande distncia do romantismo intil,
como do ilusrio bramanismo e doura de coelho man
so, em que se embalaram os bons pastores da Bactria
na, mas que no satisfaz de modo algum os contem
porneos de Byron e de A. Comte. Podemos com efeito .
considerar a vida como uma coisa sria e razovel sem
concluirmos logo que uma coisa grata e encantadora.
A v i da um fa c t o . Tudo e s t ne s t a pa l avr a .
A nica arte de tornarmos a vida aceitvel no nos
encobrirmos nunca o quanto ela tem de detestvel.
Fiz a minha confsso. Custa-me j a falar destas coi
sas; nem eu sei porqu. Tantas concluses se tm aba
tido debaixo de mim, como um cavalo ferido debaixo
CORRESPONDtNCIA 249
do seu cavaleiro! Ser talvez por isso. Hs-de acreditar
que tenho criado um horror indizvel, e mais de uma
vez ridculo, a tudo quanto afirmao? Que distncia
entre esta triste prudncia de hoj e e aquela audcia,
aquel a i ntemperana de confiana doutros tempos !
Mas silncio! No nos oia o fantasma melanclico dos
anos idos. A rverie da saudade para a alma que se
deixa envolver nela como a hera para os muros que
veste e abraa. A princpio um adorno, uma gala.
Mas as razes vo entrando di a a di a por entre as pe
dras . mai s bem ligadas, abri ndo- as, descol ando-as .
Quando se lhe acode no mais j do que uma runa
uma runa encoberta e protegida por uma iluso. As
si m, pois, procuremos o sossego interior como ltima
salvaguarda das liberdades do esprito.
o que se pode
conservar no deserto de todas as esperanas. Sofrer no
i mporta descer; pelo contrrio. O homem vtima das
inj rias da sorte pode num momento levantar-se su
perior e moral mente vencedor dela: quando pela
conscincia se constitui seu j uiz. Que vous reste-t-il?
moi, disait Mde. S' il reste moi, c' est tout. Esta doutri
na de Mi chelet no a enjei taria Proudhon.
Isto para ns o que ? Um conselho, uma aspirao,
um ideal. Aquele trgico moi est bem abatido, bem
doente dentro em nossas almas ! No me julgo estico.
Foi essa uma das minhas mais deplorveis iluses. To
mei ento o desej o da virtude pela prtica dela. Nada
disto, porm, me far esquecer que no dia em que os
nossos espritos cansados puderem com o peso duma
flosofia, nenhuma outra nos convir, nem pelas nossas
ideias, nem pelas nossas vidas, seno aquela.
a nica
que, no podendo remover uma incurvel tristeza, sabe
ao menos tornar o bem digno dela.
Por l timo termino pedindo-te que no tomes estas
palavras seno pelo que elas valem, isto , a expresso
de um desejo, nunca uma manifestao de fora. Eu
sou o p da terra. A t i e aos meus amigos peo me des-
250 ANTERO DE QUENTAL
culpem os ares de forte e altivo combateRte que me te
nho por mais de uma vez dado -em palavras. Mas eu
era sincero. Tenho cado hoj e na conta dos meus enga
nos. Ponhamos as coisas no seu lugar. Tenho si
d
o v
tima da iluso do doente que toma pela sade o grande
desejo que tem del a. Numa s coisa mostro energia:
em no querer nem poder abdicar desse desejo. Mas
i sto apenas o instinto da conservao, revelando-se no
mundo moral.
Adeus. Se a est o Manuel Duarte transmite-lhe um
cordial abrao. No sei ainda quando nos veremos: tal
vez sej a mais breve do que j ulgas. Tenho assentado de
finitivamente entrar de novo na comunho dos destinos
portugueses. Em toda a parte se pode ser homem.
Do C.
ANTERO
1 867
Dispunha-me a escrever-te, pedindo uma carta tua,
quando a que acabo de ler me veio agradavelmente sur
preender. O que eu desej ava sobretudo eram notcias
do teu ser moral, depois desse decisivo encontro com a
realidade, que o casamento. E acrescentarei que no
era s com interesse de
a
migo que procurava essas in
formaes. Confesso que instava tambm comigo uma
certa curiosidade, deixa-me assim dizer, filosfica, bem
desculpvel para quem considerar a natureza do pro
blema que te impuseste resolver, tornando-te um como
exemplo para ns outros, para ns, como tu e pelos
mesmos moti vos, confusos e indecisos em face do
mundo da realidade. O que a este respeito me dizes
contenta-me. Mas sabe que as tuas palavras j no vie-
CORRESPONDtNCIA 251
ram seno confi rmar as minhas previses, porque eu
conheo o grau de moralidade de que s capaz. Sempre
esperei que o casamento (fora das condies perturba
doras do ideal e da paixo) te fi zesse bem. E se alcan
aste a serenidade, sem ter perdido a inteligncia, tens
o essencial. O essencial o mundo interior, porque o
outro em toda a parte para muito pouco. So estes os
pensamentos em que estou, e desejo que sej am os teus
tambm. Os nossos Ideais tinham efectivamente uma
parte de verdade: mas no , como ns j ulgvamos,
para se realizarem na vida prtica. Servem s para le
vantar os espritos altura dum critrio superior ao
mundo visvel. Neste sentido pode dizer-se que no ex
perimentmos uma nica desiluso, porque fcmos
crendo nas ideias como dantes; mais talvez; por minha
parte mai s, porque a nica coi sa em que crei o.
E desde a ocasio em que atribumos o pouco que so
mos e fazemos ordem natural e necessria das coisas,
no h por que nos enfademos com o nosso destino.
Falavas-me em abatimento e desalento. J vs que,
com estes pensamentos, so pouco para recear. E tanto
assim que, mais do que nunca, me sinto bem disposto
para o estudo, aquele estudo que minha natureza ad
mite, irregular e acidentado, mas enfm dirigido mais
ou menos para um alvo razovel. No sei o que poderei
fazer, nem quando, sobretudo, por que ideias e carcter
est tudo em mim to inconsciente que mais que ab
surdo afirmar qualquer coisa. Mas tenho o deseo e
ainda mesmo um pouco a vontade.
o mais satisfatrio
que se podia esperar. Adeus.
Escreve-me. Se a esto os nossos amigos Duartes,
sada-os da minha parte cordialmente.
Teu do C.
ANTERO
252 ANTERO DE QUENTAL
1 867
Fazes-me realmente mui ta honra supondo que o meu
silncio signifi ca a incubao dalguma coisa extraordi
nria -e no me fazes menos honra supondo que sig
nifca um abatimento completo e irremedivel . Meu
amigo, essas posies extremas e fortemente defi nidas
no so nem para o nosso tempo nem para as nossas
organizaes modernas. Ns e o tempo somos muito
complexos, muito inteligentes e muito pouco hericos
para no preferirmos o vago do cepticismo racional
claridade mentirosa da iluso, e a. imobilidade contem
plativa ao herosmo cego, ou que v apenas um ponto
nico, o que vem a dar no mesmo. Tenho chegado (e
impossvel no se chegar) ao conhecimento de que no
h no Mundo motivo para muito esperar, assim como
no o h para desesperar inteiramente. Por isso me vou
conservando quanto posso a igual distncia do conten
tamento e do abatimento, julgando-os a ambos igual
mente perniciosos . Sei hoje que a verdade, a justia, o
belo no existem realmente e dum modo completo se
no no esprito do homem, ou, como diz Kant, nas ca
tegorias da Razo. Os factos do mundo objectivo po
dem aproximar-se mais ou menos desses tipos ideais,
mas, assim como nunca chegam a unir-se e confundir
-se com eles, assim tambm no chegam nunca a des
viar-se inteiramente do crculo de atraco deles.
uma questo de mais e menos, uma oscilao dentro
dos limites duma mdia, cuja distncia aos dois pontos
extremos, maior e menor, da oscilao no pode nunca
ser extremamente notvel. Saindo, por este raciocnio,
fora dos pontos de vista do antigo Idealismo, que no
concebia seno uma medida exacta para a verdade e
para o bem, e alm desse limite infexvel via tudo mi
sria e erro, saindo dessa estreita flosofia achamos o
Mundo incomparavelmente menos dramtico, a vida
menos nobre, as paixes menos exclusivas, mas tam-
CORRESPONDNCIA 253
bm encontramos uma tolerncia para com os outros e
para com ns mesmos, cujo sossego e quase indiferena
nos deixa apreciar melhor a harmonia do Universo na
complexibilidade das tantas mil antteses de que se
compe. Desta filosofa sai naturalmente uma tica,
que se pode em grande parte resumir neste preceito
viver o mais possvel da vida contemplativa, o menos
possvel da vida activa. As religies antigas j h mui
tos mil anos que tm pregado esta novidade: a Imi tao
est cheia deste esprito. Mas a contemplao, como
elas a entendiam, que era falsa, estreita e estril. Hoj e
entendemo-la de uma maneira mais realista e por isso
mesmo mais profunda; e a contemplao das ideias, de
cincia, a flosofia no excluem a vida real e os traba
lhos dela - excluem s a paixo, o interesse cego e
exaltado dessas mundanidades: mas isso muito, isso
tudo, porque sem paixo nem cegueira no h um
nico acto da vida real que se no possa fazer com um
nimo sereno e superior, conservando-se o esprito vira
do para a contemplao do absoluto no meio das ocu
paes mais estreitas e particulares do viver comum.
Aqui tens os meus princPios, como se diz em estilo de
circular eleitoral . Mas nota que esta filosofi a raciocino
-a mais do que a pratico. Por ora as revoltas do tem
peramento, antigos prej uzos, erros velhos, etc. , tudo isto
me impede de ter alcanado o sossego que as teorias me
prometem. Preciso dalguns anos para isso, alguns anos
de vida e estudo dos homens e dos livros tambm. J cri
em tempos que os livros de nada serviam. Vejo agora
que me enganava.
bom saber o que se tem pensado e
o que se tem feito no Mundo. Conhece-se ento o grau
de i mportncia que merece o que se hoje faz e pensa, e
at que ponto nos devem comover as dvidas, as dores,
as misrias dos nossos contemporneos. Traz-se da his
tria para a vida a serenidade dos tmulos e no esprito
aquela paz das coisas mortas to imparcial e alta como
indiferente . . . e talvez por isso mesmo . . . Sem esta coura-
254 ANTERO DE QUENTAL
a, esta garantia de fria serenidade no meio dos ardores
dos combates do dia, entendo que ningum se deve
aproximar da arena da vida real . Eu por mim no sei se
o alcanarei: mas tenho protestado no fazer coisa al
guma sem isso. Por isso estes primeiros dez anos (pelo
menos) esto por mim consagrados ao si l nci o: ao
silncio para com o Mundo, se entende, no para com
os amigos, porque diante desses doce, no vergonhoso
nem cruel, mostrar-se a gente desarmado, na sua fra
queza, nas s uas dvidas e nas suas tristezas. Assim me
achars sempre aqui e em outra parte (porque talvez
empreenda al guma l onga vi agem) e mesmo neste
ponto, ainda que em tudo o mais mudado e desfigura
do.
Adeus. Escreve-me e extensamente se podes, que me
desgostam cartas como a tua ltima, concisas como
uma incrio lapidar
Do C.
ANTERO
N. B. Lembra-me muito amigavelmente aos Duartes,
se algum deles a est, e manda-me dizer o que feito
do Fontelas, se est no Porto ainda e nesse caso onde
mora l.
CARTA A JOO PENHA
1 873
Meu caro J. Penha:
Agradeo infinitamente a sua amvel carta.
Enquanto teologia de Proudhon, traduzindo em
linguagem da crtica moderna o credo quia absurdum de
St. Agostinho, definiu a cincia do infinitamente absurdo,
direi que campo que deu e d para eternas discusses,
sem que nunca cheguem a convencer-se de erro as mil
encontradas asseres. Entretanto, o descuido do meu
soneto parece-me realmente flagrante: evitemos, pois,
como V. aconselha, fluca dos telogos, a ocasio de
mais um pecado de soberba.
Emendemos assim, por exemplo:
No creio em ti, Deus filho, em cuja mente
Foi o bem inefvel feito e nado,
que exprime um pouco melhor o que eu queria dizer,
isto , que se so sobretudo criador o Pai, e insPirador o
Esprito, o Filho sobretudo justicador ou salvador, in-
256 ANTERO DE QUENTAL
terpretao, pelos Padres geralmente seguida, do Sm
bolo em que a unidade divina se manifesta nas trs po
tncias essenciais ou hypostasis. Neste sentido que eu
empreguei a palavra Verbo, sem refectir que se pres
tava a equvoco ou contradio que V. aponta. Mas
deixemos isto. Recebi o mimo de um exemplar da poe
sia formosssima Espanha, do nosso G. Junqueiro. Por
falta de tempo no lhe escrevo a ele agora, mas peo-lhe
a Vo que em meu nome lhe agradea.
Depoi s de lhe enviar o Possesso, compus sobre o
mesmo tema, e desenvolvendo-o, um outro soneto, que
deve ser junto ao primeiro, com o ttulo comum, e uma
nota que no me parece escusada, atenta a parvoce de
mui tos dos nossos contemporneos, contemporneos
digo no tempo e em nada mais.
Favorea-me sempre, meu caro Penha, com o auxlio
da sua apurada crtica, e creia-me seu muito afeioado
e obrigado.
ANTERO DE QUENTAL
CARTAS A OLIVEIRA MARTINS
I
1 7 de Maio 1 876
Meu caro Amigo:
Receba o abrao da despedida.
Parto, sem dvida, depois de amanh. De l lhe es
creverei . Oxal que esta mudana me d alguns meses
de melhor sade, que eu aproveite num programa de
leituras srias que levo talhado. Quisera en finir com
certas questes transcendentais, que a todo o momento
me surgem no meio das coisas concretas e perturbam
tudo. Mas talvez que esta sej a uma v aspirao: a me
tafisica no ser sempre o X ltimo, posto alm das
sol ues de todas as equaes posi tivas? Mas, ao
menos, determinar a relao desse X com o nosso
pensamento e com as coisas cognoscveis, isso deve
ser possvel , porque sem isso todo o nosso edificio
i ntel ectual , e at moral, ficar suspenso e oscilante
como um castelo de nuvens. Eu, por mim, sinto-me
incapaz de caminhar direito pela realidade enquanto
no tiver, como um espartilho de fino ao, que me
sustente, todo um si stema de ideias transcendentais -
258 ANTERO DE QUENTAL
e isto o que me faz muitas vezes parecer estranho e
sonambulesco.
Li o livro do Hartmann, mas proponho-me rel-lo,
porque um bom tema para cogitaes. Ainda que o
acho conciso e deficiente em certos pontos, agradou-me
todavia mui to: de tudo quanto tenho lido sobre o as
sunto o que entra mais no meu modo de ver. Vou
percebendo que o pessimismo de Hartmann se parece
singularmente com o meu optimismo, e estou morto por
ler alguma obra mais extensa deste simptico flsofo.
Talvez que eu tenha inventado a Filosofa do Incons
ciente sem o saber!
Adeus. Do seu do C.
ANTERO DE QUENTAL
Ponta Delgada, 3 de Junho de 1 876
Querido Amigo:
No lhe escrevi logo que aqui cheguei e pelo paquete
que me trouxe, por essa minha dificuldade em fazer
sej a o que for dentro dum prazo fxo. Agora, porm,
que tenho diante de mim, tempo indeterminado, escre
vo-lhe para lhe dizer que c estou e no pior do que me
achava em Lisboa, ainda que no melhor tambm -
mas pode ser que ainda no seja tarde para que a mu
dana de clima opere favoravelmente. O que tenho estado
triste bastante nesta casa, onde vim ao Mundo no sei
para qu -pensamento pouco religioso, bem sei, e con
tra que reajo, mas que afnal se me impe em certas oca
sies.
uma fraquez
'
a, que h-de passar; e sendo assim e
nestes limites, a sensibilidade (ou sensiblerie?) tem tambm
a sua utilidade na economia moral do homem.
CORRESPONDtNCIA 259
Aqui me vou ocupando, como planeara, com certas
questes metafisicas, mas entro a conhecer que estas
questes no so daquelas que se resolvem de emprei
tada, e que o melhor mtodo ser ainda deix-las entre
gues a uma ruminao lenta e quase insentida do pen
samento. Pelo menos para mim, se algum mtodo tem
de me aproveitar, creio ser este de preferncia a qual
quer outro. Terrvel metafisica!
o nosso ecleo, escre
veu-me V. uma vez. E . Mas, como ela a essnci a da
religio, tem cada qual, nestas pocas cruis em que a
grande crena colectiva se dissolve, de a procurar sozi
nho com o suor do seu rosto e a ansiedade do seu cora
o, para conseguir uma espcie de religio individual,
que no fim de contas nunca pode equivaler em firmeza,
confiana, serenidade, quela ampla comunho espiri
tual, ideia-sentimento, em que a fraqueza do indivduo
se ampara na potncia da colectividade. Por este pouco
que digo, j V. tem entendido que abundo no modo de
ver do Hartmann, enquanto ao futuro da religio.
A maneira, porm, por que el e defne a religio no me
satisfaz; defciente e parece deixar margem ao mara
vilhoso, pelo menos aos imaginoso. Tenho, nestes lti
mos tempos, cismado bastante em volta disto, e creio
ter chegado a concluses defnitivas sobre a natureza
racional e sentimen tal ( consciente e inconsciente, como
diz Hartmann) e individual e colectiva da religio, con
cluses que V. apreciar na primeira ocasio em que
falarmos -se antes disso no tiver ensej o de lhas pr
por escrita.
E V. que tem colhido da leitura da Histria da Igrea?
Bastante, sem dvida, porque leitura essa sugestiva
(como dizem os Ingleses) mais do que dzias de filso
fos . O grande filsofo a Humanidade e desse grande
flsofo o melhor e maior sistema (por ora) o cristia
,.1ismo catlico. H ali abismos de gnio, uma viso pro
digiosa dos mais l argos horizontes ideais, e ao lado
disto um senso prtico, uma prudncia admirvel, um
260
ANTERO DE QUENTAL
profundo sentimento da estranha combinao de gran
deza e misria que a natureza humana, de tal sorte
que quem no conhece e compreende o cristianismo
no pode dizer que conhece e compreende a Humani
dade. Est V. por isto? Mui to desejo sab-lo.
Esta minha admirao no impede, j se v, de reco
nhecer o lado fraco do cristianismo, a lacuna que, esta
belecendo uma contradio fundamental, devia produ
zir, com o andar do tempo, a sua perverso e fi nal dis
soluo. Essa lacuna a ignorncia da natureza. In
comparvel como religio metafsica e moral, est abai
xo, como compreenso das condies positivas da reali
dade, do prprio politesmo. A razo deste fenmeno,
que t al vez excl usi vament e hi s tri co, conhece-a
V. perfeitamente. Se uma religio no mais do que a
sntese colectiva da concepo do Universo numa dada
poca, cada religio deve reflectir fielmente o grau de
desenvolvimento dessa concepo, com o ponto de vista
determinado pela tendncia geral e os conhecimentos
da poca, as suas lacunas, o seu forte e o seu fraco. Ora
a poca em que se formou o cristianismo caracteri
zada por uma extraordinria preocupao pelos pro
blemas metafIsicos e morais, por um desenvolvimento
excessivo e quase monstruoso neste sentido, enquanto o
conhecimento positivo da natureza (apesar de estarem
formadas ou em via de formao quatro ou cinco cin
cias, mas que s davam vistas parciais e insufi cientes)
no s no entrava de modo algum na preocupao
geral dos espritos mas at era por ela contrariado. A
religio que devia sair deste estado de coisas vinha pois
fadada a uma desarmonia, um desequilbrio irremedi
vel . Forte e profunda como concepo metafsica e
moral da exi stncia humana, falsa, inconsistente ou
quase nul a como concepo das condies naturais,
fora das quais a metafsica e a moral s produzem so
nhos, por muito sublimes que sej am, e, no fi m de certo
tempo, perverso e abatimento. Quer-me parecer que,
CORRESPONDtNCIA 261
sem se fazer esta distino, no possvel compreender
a histria do cristianismo, histria dominada por esta
contradio: hostilizada pela razo, pela cincia, pelos
i nstintos, por todas as coisas naturais, e ao mesmo
tempo opondo-se triunfantemente a tudo i sto, impon
do-se e justi ficando-se por uma eficcia espiritual to
extraordinria, que ela para os apologistas uma das
maiores provas da inspirao e, origem divina do cris
tianismo. Creio que a obra destes sculos mais prxi
mos ser, no destruir o cristianismo (quero dizer, o
esprito cristo, e ponto de vista de transcendncia me
tafsica e moral) mas complet-lo com a cincia da rea
lidade. A religio do futuro, de que nos fala Hartmann,
no pode ser outra, e no julgo necessrio ir procurar o
budismo, quando o que nele h de melhor se encontra
no cris tianismo e com uma forma sentimental mais
pura, mais humana.
Estabelecer em que termos normais s e deve ser ms
tico, dentro da realidade, de acordo com ela e consi
derando-a como um meio, um instrumento adequado
para essa ascenso espiritual, tal , meu querido amigo,
a grande coisa, a obra da nova redeno. Fora disto s
vej o um novo paganismo, uma nova e monstruosa su
perstio, culto do Grande Todo, culto da Humani
dade, e outros cultos, que, sob forma refinada, reflectida,
ci vi l i zada, so uma vol ta bes ti al i dade pri mi tiva
donde partiu a nossa espcie.
Adeus, carssimo. Receba um abrao do seu amigo
e frater
ANTERO
CARTA A ANA DE QUENTAL
( l 882?)
Minha querida irm:
H dois dias que estou em Vila do Conde, e escrevo
-te no meio da confuso que inerente a esta calami
dade chamada mudanas. Por isso s responderei ao
essencial da tua carta. O procedimento do Sr. Nunes d
uma triste ideia dos sentimentos deste senhor, e fi quei
como tu possudo de mgoa e indignao! Dispe para
a trasladao provisria, de que falas, do dinheiro meu
que est na vossa mo, e agradece da minha parte ao
Jos o que tem feito nesta ocorrncia. Dizes que me
caber dois mil ris, mas, se for necessrio mais, dispe
livremente do que for preciso.
Depois trataremos da trasladao definitiva, que in
felizmente no podemos fazer j , mas eu espero, antes
de muito, de ter algum dinheiro disponvel, e a isso
o apl icarei . Mas sobre i sto te escreverei com mais
pausa.
Em
,
vista disto, continua na mo do Jos o resto do
dinheiro do Carlos, que vej o serem dezanove mil e
CORRESPONDtNCIA 263
quinhentos ris, tanto para o que me couber na despesa
da trasladao, como para o que se fi zer com a remessa
dos livros que me legou nosso tio, que a fi caro ainda
esperando outros que mandar o Batalha Reis, e com a
D. Eugnia, para vir tudo junto, e ento vir o resto dos
tais dezanove mil e quinhentos, com o mais que se
apurar da venda do que a h, pois creio que por muito
ou pouco se poder vender a grad.e dajanela das peque
nas (custou posta quatro mil e quinhentos) , o tal lava
trio e umas trs dzias ou mais de garrafas de diferen
tes calibres, que a tinha. O armrio e o fogo so da
menina. Peo aoJos que faa vender os obj ectos acima
ditos.
Quanto aos trs mil ris do tal pano vendido, a Tere
sa j se pagou (dos cinco mil ris que a menina lhe
entregou) , de sorte que a mim que os deve agora: com
os dois mil ris antigos, faz cinco mil ris, de que me
fica devedora, sem que eu porm exia que venham com
o outro dinheiro, mas s quando melhor puder.
Nada mais me ocorre sobre o assunto contas.
Por ora nada posso dizer da minha instalao, pois
ainda anda tudo no ar. De sade, tambm no sei se
melhorei, pois com a agitao que tenho tido, estes pri
meiros dias no fazem regra. Fico esperando que os ba
nhos continuem fazendo-te bem; talvez ainda valham
maIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
nest a ocasi o. O Carlos tem o seu di rei to seguro.
Quanto ganha pois num pleito j udicial, onde vai gastar
dinheiro, sem nada adiantar, antes complicar tudo,
quando pode entender-se com o Andr ou Anica, sobre
a forma de pagamento? O Jos que lhe faa ver tudo
i sto, para impedir um grande dissabor para ns todos, e
uma aco indelicadssima para o Carlos, com a qual
de mais a mais nada tem a ganhar e porventura a per
der alguma coisa.
Adeus, minha querida irm. Podes imaginar o dia
264 ANTERO DE QUENTAL
melanclico que tenho hoje passado. D-me notcias do
que for ocorrendo. O Jos que no se afl ij a, pois no
responsvel . Recebe um beij o do teu irmo mui to
amigo do corao
ANTERO
CARTA A CARLOS CIRILO MACHADO
Vila do Conde, 15 de Dezembro de 1 881
Meu jovem amigo:
Li cqm prazer a sua carti nha. Creio que meu
amigo, e, da mi nha parte, de entre os rapazes da ltima
gerao, est o Carlos no nmero limitado daqueles que
eu estimo e de quem espero alguma coisa s. Concebo
que lhe tenha feito alguma falta: as nossas conversas
no eram vs, e o Carlos no daqueles que, por terem
talento, se cuidam dispensados de ouvir e atender. Eu
no penso voltar to cedo a Lisboa. Mas tenho ideia de
que vem s vezes ao Porto, no Vero. Pois quando isso
suceda, venha aqui passar um dia comigo, que apenas
jornada de uma hora pelo caminho-de-ferro. De resto,
faclimo que nos vej amos no Porto, onde vou com fre
quncia a casa do Oliveira Martins. Folguei com a im
presso que lhe causou a leitura do Portugal Contempor
neo daquele nosso escritor, que se est tornando verda
deiramente grande. Uma vez que gostou, e como livro
para se reler, em vez de me o devolver, guarde-o, e f
car tambm como lembrana minha. Agora publicou
266 ANTERO DE QUENTAL
ele mais dois volumes, As Raas e a Civilizao Primitiva,
que eu considero obra magistral, especialmente o se
gundo volume, onde escreve no s como sbio e pensa
dor profundo e original, mas como moralista eloquente.
Recomendo-lhe aquela obra, como alis lhe recomendo
tudo quanto sai daquela pena, que, de dia para dia,
ganha mais fora e autoridade. Se Portugal de hoje, as
sim como produziu um homem daqueles, tivesse pro
duzido oito ou dez, ainda se salvava. Verdade que, se
Portugal, nesta gerao, tivesse tido fora para produ
zir oito ou dez homens como Oliveira Martins, no pre
cisava de quem o salvasse, porque esse facto s por si
era o indcio da fora e fecundidade do esprito nacio
nal, da sua vitalidade e sade perfeita. Infelizmente
no assim e o futuro poltico, social e moral desta
terra parece-me comprometido, quanto o futuro de um
povo o pode estar. O abaixamento do nvel do esprito
pblico espantosamente rpido. I nvade e arrasta
tudo.
um triste conselho para se dar a um rapaz, que
mal entra agora na vida, dizer-lhe abstm-te! . E to
davia o nico que lhe posso dar. Nesta cheia de mi
sria que, transbordando, leva consigo quantO encon
tra, s h escapar ileso quem refugir para os pontos
mai s al t os , onde nat ur al ment e se e s t i s ol ado.
Aprenda, meu jovem amigo, a viver de s i , porque a
vida social tornou-se um perigo para quem quer con
servar a elevao da sua i nteligncia e a pureza da sua
conscincia. Creia que, de resto, ainda numa posio
solitria, se pode, de um modo ou de outro, fazer muito
bem. E no isso o essencial? Tudo o mais s instru
mento para tal fi m. Que importa pois que o instru
mento varie, se o fim sempre o mesmo?
Adeus.
Do corao
ANTERO DE Q.
CARTA A JOO MACHADO DE" FARIA
E MAIA
Vila do Conde, 2 de Janeiro de 82.
Meu caro Joo:
No sei h quanto tempo te no escrevo, mas bem
sabes que s daqueles poucos que tenho sempre perto
do corao. Lembrei-me agora escrever-te, porque ouvi
dizer ao O. Martins que fora inventada recentemente
uma mquina, destinada talvez a causar uma certa re
voluo na indstria dos tecidos, mquina que prepara
a fibra da urtiga branca em termos de a tornar to boa
para se fiar e torcer como o algodo. Como sabes, era
esta a dificuldade, que embaraava o desenvolvimento
da cultura daquela planta fibrosa. Tenho ideia de que
se tem ensaiado aquela cultura em So Miguel, ou, pelo
menos, de que se tem pensado nisso. O Daupias de Lis
boa mandou vir j uma das tais mquinas : mas, como
sabes, industrial e no cultivador: precisa, pois, que
lhe forneam matria-prima -e porventura se poderia
abrir por esse lado um horizonte para a nova cultura.
Se o entendesses til, podias pedir directamente infor
maes ao dito Daupias . E basta de urtigas.
268 ANTERO DE QUENTAL
Participo-te que fxei actualmente a minha residn
cia em Vila do Conde, terrazinha antiga, plcida e
campestre, muito ao sabor dos meus humores de soli
trio. Vivo aqui, como verdadeiro eremita, e quando
quero sociedade que no me faa envergonhar de ser
homem, vou, at ao Porto, conversar com o O. Mar-
tins.
.
Vila do Conde quase nos arredores do Porto. Penso
que no sou naturalmente misantropo, antes muito so
civel: mas a sociedade de Lisboa, com tantas misrias,
sem lado algum bom que as resgate, acabou por me
fazer tomar tal enjoo por tudo isto, e tal desalento, que
vim meter-me neste buraquinho, com um sentimento
de alvio ineXprimvel.
Considero tudo perdido em Portugal e sem remisso
possvel. Sendo assim, para que h-de a gente afligir-se
inutilmente? A natureza, para quem sente crescer-lhe a
vida interior no meio dela, basta. Adeus. Recebe um
muito grande abrao.
Do teu do C.
ANTERO DE QUENTAL
CARTAS A JOO DE DEUS
Vi l a do Conde, 1 3 de Janeiro de 1 882
Meu Joo:
o rapaz tem efectivamente quelque chose. H ali um
pensamento, coisa rara! Vir esse pensamento a dar o
que promete? Espero-o, porque lhe vejo, alm do flego
intelectual, carcter e, digam o que disserem, o carcter
a metade do talento. Digo, do verdadeiro, so e til.
Por ora, h ali grandes lacunas: a imaginao sufoca a
anlise.
D
eus, ou nada, ou a plenitude do Ser, o Ab
soluto, a Perfeio. O que no pode ser uma matria
i ndeterminad
a
, com pensamento sem conscincia e
uma espcie de vcuo. Depois, contra os famosos pr
-tomos h a dizer tudo exactamente quanto se tem dito
vitoriosamente contra os velhos tomos, sem pr. Aque
l a maneira de fugir difculdade faz lembrar as tartaru
gas da cosmogonia ndia: a Terra repousa sobre dois
elefantes, e para que os elefantes no fiquem no ar, re
pousam eles sobre duas tartarugas. E ainda aquela en
genhosa maneira ( tambm de inveno indiana) de fa
zer sair os homens de Deus.
270 ANTERO DE QUENTAL
Como os homens, to imperfeitos, saram de Brama,
a perfeio? Perfeitamente. Primeiro, gerou Brama uns
seres que tinham trs quartos de deuses e s um quarto
de humano; estes, outros j com dois quartos divinos e
dois humanos; estes ainda, outros s com um quarto
divino e trs humanos; estes, fnalmente, os homens.
Nada mais simples.
Tudo aquilo, digo, todo o sistema, repousa sobre
uma fal sa metafsica, fal sa por incompleta e pouco
aprofundada, onde h mais imaginao do que anlise.
Mas h vigor, fl ego, penetrao, em tudo aquilo
Pelo meio das extravagncias rebentam verdadeiros
lampej os . A vocao, o quid genial est ali.
Ainda no escrevi ao jovem filsofo, porque lhe que
ro escrever uma longa carta crtica, e no sei quando
estarei de mar para isso. Cada vez me custa mais e
aborrece esta maneira de comunicar o pensamento.
Nasci peripattico e declamador, no escriba.
Quanto aos Sonetos antipombalinos, no sei se vale
r a pena public-los. Dizes que so curiosos, mas no
suponho que o possam ser seno historicamente. Ora,
nestes l timos vinte ou trinta anos, durante os quais a
nao acabou de se descaracterizar inteiramente, aca
bou tambm o resto de interesse pelas coisas ptrias.
Ningum compra nem l j livros de histria portugue
sa ou que a ela se refiram. O editor que publicasse os
tais sonetos perdi o seu dinheiro, podes estar certo
disso.
Eu dou-me aqui bem, apesar de viver completa
mente s. Quando quero falar, v'ou ao Porto conversar
com o O. Martins. Se tu ali estivesses tambm, tinha
tudo quanto desejo.
Aqui as praias so amplas e belas, e por elas passeio
ou me estendo ao sol, com a voluptuosidade que s co
nhecem os poetas e os lagartos, adoradores da luz.
Adeus. D mil lembranas ao teu padre Antnio. Se
vires o Gomes Leal, diz-lhe que o considero completa-
CORRESPONDtNCI A 27 1
mente doido -doido de pedras -mas que o amo sem
pre.
Um abrao do
Teu do c.
Velho amigo
ANTERO DE QUENTAL
Vila do Conde, 1 5 de Maro de 1 882
Meu caro Joo:
S agora respondo tua, que todavia pedia uma res
posta imediata. Desculpa-me: mas nem sempre sou se
nhor da minha vontade, ainda para coisas que pedem
um pequeno esforo. Tal a misria do meu nervoso!
O artigo, se eu conseguisse faz-lo, era coisa que me
dava muito gosto . . Mas f-Io-ei eu? Por ora vejo que no
posso. Em vez de ser senhor dos meus pensamentos e
da direco deles, so os meus pensamentos que me
dominam e dirigem. Acho-me, h um tempo, to preo
cupado com ideias, que me agitam, e nelas to embe
bido, que no me resta gosto nem vontade para coisas
li terrias, e sinto que neste momento nada poderia di
zer que prestasse. Quanto tempo durar esta espcie de
crise intelectual; o que no posso dizer; mas, en
f":r ela durar, nada h a esperar de mim. Vinte ve
zes por dia me lembra o teu verso
Esta imaginao um tormento
sentindo quanto a imaginao a causa nica das con
tradies eternas do meu esprito, deste rodopiar em
volta dos mesmos problemas insolveis, e da incapaci
dade de fi xar uma vez por todas o meu c
r
edo fi losfico.
Esta confisso aos 40 anos - fao-os daqui a um
272 ANTERO DE QUENTAL
ms deplorvel! Mas parece que quanto mais ca
minho, mais perspectivas, mais horizontes novos se
abrem diante de mi m. Sou positivamente o Ashavero
da fi losofia!
Mas deixamos isto.
Estive h dias no Porto, onde o O. Martins me leu
dois artigos sobre o Tarroso - um sobre o autor -
outro sobre o l ivro. Gostei, so sinceros e simpticos .
Assim o nosso flsofo (que me parece um tanto orgu
lhoso) sej a capaz de aceitar os excelentes conselhos que
ali lhe do. Os artigos so para o Jornal do Comrcio,
onde o O. M. publica semanalmente um folhetim li
terrio.
E adeus. Saudades ao Fernando e ao Padre Antnio.
Um abrao do
Teu
ANTERO
CARTA A OLIVEIRA MARTINS
Vi l a do Conde ( 1 882?)
Meu caro Amigo:
Espero aqui o Alberto domingo, e chegou o momento
de aformosear condignamente o meu qui ntal . Como
aquele agrcola anuncia que demorar poucos dias,
para no perder tempo peo-lhe desde j que me
mande as plantas, a saber: razes daquela espcie de
cana de penacho, trepadeira para os muros e planta de
morango.
Creio que quanto a h, que me convenha, e peque
na quantidade bastar.
Adeus.
Do seu do C.
ANTERO
CARTA A HENRIQUE DAS NEVES
Vi l a do Conde, l . 0 de Maio ( 1 88 . . . )
Meu excelente Amigo:
o seu escrito comoveu- me; comoveu-me o senti
mento que o ditou. E eu a julgar que j ningum se
lembrava das Conferncias! Aquilo foi uma aurora, mas
qual se no seguiu dia, ou s um dia fusco.
Veremos se os que pretendem levar agora a coisa por
outro caminho sero mais felizes. Do corao lhes de
sejo o xito, que a mim, por muitas circunstncias, me
no foi dado obter. Peo-lhe me deixe conservar, entre
os raros papis que conservo, aquele seu escrito: quero
rel-lo de tempos a tempos, como um testemunho dos
sentimentos generosos e simpticos que encontrei ent
em volta de mim, e cuj a lembrana me ser sempre
gratssima. Os sentimentos duradouros consolam mais
do que os triunfos efmeros . Quanto a publicar aquele
escrito, o meu Amigo, referindo-se a mim em termos
duma benevolncia to excessiva, no se lembrou que
me tornava impossvel apresent-lo, sem verdadeiro
impudor de imodstia, na redaco de qualquer folha.
CORRESPONDtNCIA 275
Depois, sinceramente, para qu? Aquele episdio est
quase esquecido, e o meu nome e influncia quase ex
tintos. Talvez provocasse um sorriso em muita gente.
Deixe-me pois guardar, como um papel particular e n
timo, o seu artigo. O sentimento to sincero e simp
tico, que ali se patenteia, no ser profanado por ne
nhum sorriso irnico, e ter para mim um valor dobra
do.
Creia, meu caro Henrique das Neves, na muita es
tima do seu
Amigo Obg.mo
ANTERO DE QUENTAL
CARTA ASSOCIAO DE TRABALHA
DORES -FEDERAO DO NORTE
Vila do Conde, 10 de Junho de 1 882
Meus prezados correligionrios:
S hoje recebi o vosso ofcio, que me foi devolvido de
Lisboa, onde h tempo no resido j, achando-me ac
tualmente nos arredores de Vila do Conde, procurando
no ar do campo e na vizinhana do mar algum alvio
para a minha quebrantada sade. Por este motivo, ser
-me-ia penoso, e direi at, um verdadeiro sacrifcio, o
ter de ir agora a Lisboa, viagem que julgo superior s
minhas foras fsicas.
No julgo o caso para tal sacrifcio, pois a Associao
dos Trabalhadores do Porto pode facilmente nomear
em Lisboa pessoa que me substitua naquela comisso,
e porventura com vantagem, atento o mau estado da
minha sade.
Termino agradecendo Associao dos Trabalha
dore
do Porto a to honrosa prova de confi ana que
me deu, nomeando-me para a representar.
Recebei, meus prezados correligionrios, as minhas
saudaes fraternais.
ANTERO DE QUENTAL
CARTA A JOO DE DEUS
Vila do Cond
e
, 26 de Junho ( 1 882?)
Pediram-me para uma publicao, que se vai fazer
na Figueira, para se vender em benefcio no sei de que
obra pia, uns versos meus e outros teus. Os meus, fi-los,
ainda que com difculdade; mas como no posso, por
mais que queira, fazer os teus, tens tu de faz-los. Estas
festas pias, so ao mesmo tempo simpticas e maa
doras. Tem pacincia. Quatro versos, um provrbio de
Salomo, por exemplo, bastaro. E tu como vais? No
sei se terei de ir ainda este Vero a Lisboa. Ao mesmo
tempo que o receio, porque me custa a deslocar-me,
desejo-o, porque ser uma ocasio de ver ainda trs ou
quatro amigos velhos.
E adeus.
Do teu do C.
ANTERO
CARTA A ANA DE QUENTAL
Vila do Conde, 14 de Julho ( 1 882?)
Minha querida Irm:
J h mais tempo te devia ter escrito, mas estive uma
temporada no Porto, e distra-me por l. Eu vou sem
novidade, seno s nervoso de mais com este tempo
elctrico que tem feito continuamente. E tu como vais?
Espero que completamente restabelecida. As notcias
do Andr ( que tive directamente pelo Craveiro) ale
gram-me e do-me alguma esperana: mas no a deve
mos exagerar, pois aquelas doenas enganam muito.
Espero, entretanto, que a vista da mulher e filhos, que
brevemente para a iro, lhe faa bem. Por ora, como te
digo, no ouso confar muito naquelas melhoras.
Perguntas-me quando penso em se trasladarem os
restos da nossa Me. Respondo que desejo sej a o mais
breve possvel, mas que isso j no depende de mim,
mas das me
n
inas, pois eu tenho aqui prontos cem mil
ris para esse fim: resta agora saber quanto a mais
necessrio, e se as meninas podem concorrer com isso
que fal t ar.
poi s necessrio fazer um oramento
CORRESPONDtNCIA 279
exacto, e repartirem entre si o que for alm dos cem
mil . Estes so cinquenta mil, que o Francisco Xavier
me devia e eu lhe pedi para aquele fm e ele logo resti
tuiu, e mais cinquenta mil das minhas economias aqui.
Esto prontos . Resta pois saber-se ao certo quanto
pode ser a despesa total, tanto em Lisboa como em So
Miguel . Isso, s a em Lisboa se pode saber. Depois as
meninas vero quando podem entrar com a sua parte.
Como digo, tudo agora depende das Meninas e no de
mI m.
No me respondeste precisamente ao que eu pergun
tava do dinheiro que a tenho. Eu referia-me ao resto do
dinheiro que deu o Carlos, do qual tenho despendido
parte, ignorando quanto ainda resta. Era isso que eu
desej ava saber.
Adeus. Saudades ao Jos e Matilde, e tu recebe um
abrao e um beij o do teu
I rmo m. 'O amigo
ANTERO
CARTA A JOO DE DEUS
Vila do Conde, 20 de Julho de 1 882
Meu Joo:
No sei o que te diga quele respeito. Gostava imen
so de te ter aqui mais perto, por todas as razes que
apontas e, por cima delas, porque te amo. Mas para o
teu mtodo, que hoje a tua vida ( moral e material) ,
necessrio, como para todas as iniciativas, nas nossas
sociedades centralizadas, a capital . Tu constituste-te
uma espcie de ministro da instruo primria, e o mi
nistro reside no centro. Dirs que o Porto uma meia
capital, a famosa caPital do Norte. uma pura lenda.
O Porto apenas, como diz o Oliveira Martins, o Porco.
Tudo aqui sindicato. Foi-o sempre e s-lo- sempre.
Junta a isso que a vida no Porto trinta por cento
m
ais
cara do que em Lisboa.
Concluo, com desgosto, que deves continuar em Lis
boa. Eu deixei Lisboa, porque ( como tu dizes) filsofo
no tinha a misso e o meu protesto fora intil, e pas
saria sem ser compreendido. Mas tu exerces uma ver
dadeira misso, e protestas, de facto, exercendo-a.
CORRESPONDtNCIA 281
o teu protesto o bem que fazes . Daqui por algumas
dezenas de anos, a histria dir que, no meio de toda
essa gente, eras tu o nico ou quase o nico que fazias
alguma coisa. Que eles se agitem no vazio, podes tu rir
dessa v agitao, com a conscincia de que tens direito
de rir.
A vai um soneto. Ser talvez o primeiro de que gos
tes por mais alguma coisa do que s pela forma.
O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida
contemplativa no meio da boa natureza. Reconheci que
andar por toda a parte a proclamar, com voz lgubre,
que o mundo vo, era ainda uma ltima vaidade . . . L
vai o soneto:
Na mo de Deus, na sua mo direita,
Descansou afnal meu corao.
Do palcio encantado da Iluso
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as fores mortais, com que se enfeita
A ignorncia infantil, despojo vo,
Depus do Ideal e da Paixo
A forma transitria e imperfita.
Como criana, em lbrega jornada,
Que a me leva no colo, agasalhada,
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto . . .
Dorme o teu sono, corao liberto,
Dorme na mo de Deus eternamente.
E adeus. Com um abrao do
Teu do C.
ANTERO DE QUENTAL
CARTA A ANA DE QUENTAL
Vila do Conde, 3 de Agosto de 1 882
Minha querida Irm:
Podes imaginar como me afligiu a notcia da separa
o do Paulo.
No sei se alm do desgosto, isso trar complicao
com as leis militares e lhe renovaro a licena para con
tinuar nos estudos, ou se ter de ir fazer servio para o
corpo.
uma coisa que me tem preocupado. Sinto mui
to este caso, j pelo Paulo, j e talvez mais ainda pela
pobre Anica, para quem tudo so desgostos!
Espero que te vs achando melhor. Parece-me que
no fazes bem em voltar to cedo para Lisboa. O calor
agora ali est sendo excessivo e no o que convm a
uma convalescente.
Eu vou indo sem novidades. As pequenas esto boas
e fortes. Vo brevemente comear com banhos do mar,
para combater algum linfatismo que ainda haj a, ainda
que aparentemente j o no h. Andam sempre ao sol,
e isso tem sido para elas o melhor dos remdios. A Al
bertina l embra-se sempre de ti.
CORRESPONDtNCIA 283
Vai vagar a comarca da Pvoa de Varzim, que aqui
ao p, coisa de meia lgua, e o Lobo de Moura pretende
ser para ali transferido e tem boas esperanas de conse
guir essa pretenso. Imagina como vai ser bom para
mim ficarmos assim vizinhos . Com o Lobo na Pvoa, o
Ol iveira Martins no Porto e o Alberto Sampaio em Fa
malico, fco literalmente rodeado de amigos.
E adeus. No escrevo directamente para a, porque
sumi a tua ltima carta (digo penltima) e por isso no
sei a direco .
.
Recebe um abrao e um beijo do teu
Irmo muito amigo
ANTERO
Quando voltares para Lisboa e fores ver o Andr,
d-lhe lembranas minhas, e dize-lhe que sempre me
lembro dele quando te escrevo.
CARTA A JOAQUI M DE ARAJO
Vila do Conde, 23 de Dezembro de 1 882
Meu caro Joaquim:
Ando h bastantes dias para lhe escrever, mas o frio
pe-me em estado que o mais pequeno esforo se me
torna dificlimo, e escrever sempre para mim coisa de
esforo. Agora mesmo, aproveitando um momento de
coragem, tomo a pena s para lhe dizer que sou sempre
seu amigo e do mesmo feitio. V. atribuiu a frieza o que
em mim simplesmente o resultado dum certo abati
mento de esprito, que com os 40 anos se tem pronun
ciado, arrefeci mento da imaginao, que j me no
mostra, como mostrava, o mundo atravs dum calei
doscpio, cujas imagens ora me atraam vivamente, ora
com a mesma vivacidade repeliam, e dando por conse
guinte ao meu modo de ser uma animao particular.
Hoje, fora das coisas morais e do ponto de vista moral,
tudo me parece igualmente curioso e igualmente indi
ferente. Naturalmente a minha atitude, as minhas con
versas revelam este estado; mas V. , com a susceptibili
dade duma fina amizade, tomou para si o que em
CORRESPONDNCIA 285
mim simplesmente ordinrio e fao com todos. Em vez
de supor que sou menos seu amigo, diga simplesmente
que me tenho tornado bastante mono, que essa a ver
dade.
No compreendo bem o seu proj ecto migratrio que,
demais a mais, se no coaduna com outras coisas que
diz para trs. Sobre isto e outros pontos, falaremos no
Porto, onde irei es tar uns dias no princpio do ano
novo. Bem sabe quanto me custa escrever.
E adeus. Oxal seu Pai tenha alguns alvios. Mas V.
deve acostumar-se ideia de que o no pode j ter por
muito tempo. Ainda que h uma certa crueldade em
lhe dizer isto, quero dizer-lho, porque as grandes coisas
da vida e da morte devem encarar-se virilmente. Assim,
ponha-me alto o pensamento e a coragem.
Do seu do corao
ANTERO DE QUENTAL
CARTAS A TOMMASO CANNIZZARO
Vila do Conde, le 1 0 Mars 1 884
Mon cher Confrere:
Je suis bien en rtard avec vous mais um poete doit
comprendre et savoir excuser cette maladie invtre
des poetes - la paresse pistolaire. En fait, je voulais
aussi vous envoyer ma photographie: mais demeurant
la campagne et n' allant que tres rarement Porto, cela
a contribu aussi mon rtard. Enfin, voil mes excu
ses faites et je m' empresse de vous remercier de l ' envoi
de votre photographie, et surtout de votre charmante et
amicale lettre, dont les sentiments douloureux me vont
directement ao crur.
J e vois que mes Odes vous ont pl u, et plaire en art et
en l ittrature, c' est tout . J' aurais donc mau vais e gr
ce di re encore du mal de mon pauvre livre, quoique
je reste touj ours convaincu qu' i l y a l , gnralement
( et surtout dans la deuxieme partie) plus de passion
et d' exaltation que de vraie posi e. Mai s n' allez pas
croire, je vous en prie, que je suis devenu un raction
naire, un rac comme ils di sent Pari s. Non je reste
CORRESPONDtNCIA 287
aussi rvolutionnaire que j adi s, peut-tre pl us, mais
j ' ai transport mon ardeur dans des rgions pl us hau
tes, trop hautes pour n' tre pas srei nes. Je doi s cel a
un peu l a philosophie des l ivres , et pl us encore
celle de l ' exprience et de l ' ge -car j ' ai dj doubl
de cap de l a quarantaine - et du j eune j acobin de
1 864 i I ne reste guere plus que l a peau d' un vieux
phi losophe, sachant trop bien que l a colere, mme la
colere de l aj ustice, est encore un reste d' ignorance, et
que l e monde ne sera dfni tivement sauv que par la
Raison scur j umelle de l ' Amour. II se peut que la
passion et l a violence aient encore, et avant peu,
j ouer un grand rl e, pour dblayer les restes du vieux
monde et rendre possible l a construction du nouveau.
J e prvois de grandes convulsions . Mai s ce na sera
l que l ' cuvre aveugl e, quoi que ncessai re, de l a
Nature: ce qui se fondera apres ne sera fond que
par l a Raison et par l ' Amour. Mai s me voil bien
loin de mon pauvre bouqui n. Je voulais seulement
vous dire que je l e trouve auj ourd' hui trop exalt
trop jacobin ce qui, mes yeux, constitue un grave
dfaut , aussi bi en sous le rapport phi losophi que,
que sous celui de l ' esthtique. Mais puisque iI a pl u
un poete tel que vous, j e croirai dsormais qu' i l
doi t val oi r pl us que mon i mplacable criti
s
i sme ne
me l e l ai sse voi r. J e vous envoye l a Lira Intima de
Araj o, un de nos pl us j eunes poetes, a qui j ' ai
parl de vous et qui m' a pri de vous fai re parvenir
son volume. Ce petit l ivre vous donnera une ide du
ton et des tendances gnrales de notre j eune cole:
t r op de mus i que et trop de s tyl e, et pas assez de
pense - selon moi . On tourne ici, comme partout,
au Parnassi sme.
Mon cher poete, j e vous serre la mai n bi en afectueu
semente.
RIOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
As Meditaes Poticas de Lamartine. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Carta de Henri Heine a Grard de Nerval . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
A Entrevista de Edgar Poe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
A Bblia da Humanidade de Michelet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
O Sentimento da Imortalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 05
Prosas da Questo Coimbr . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 7
Bom Senso e Bom Gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 7
A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32
Causas da Decadncia dos Povos Peninsulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 75
CORRESPOND
NCIA
Carta a Wilhelm Storck . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
Carta a Ea de Queirs. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234
Carta a Antnio de Azevedo Castelo Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Carta aJoo Machado de Faria e Maia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240
Carta aJoo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242
Cartas a Germano Vieira Meireles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244
Cartas a Antnio de Azevedo Castelo Branco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
Carta aJoo Penha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
Cartas a Oliveira Martins. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
Carta a Ana de Quental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262
Carta a Carlos Cirilo Machado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Carta aJoo Machado de Faria e Maia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . :(i7
Cartas aJoo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Carta a Oliveira Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
Carta a Henrique das Neves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Carta Associao de Trabalhadores -Federao do Norte . . . . . . . 276
Carta aJoo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 7
Carta a Ana de Quental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
Carta aJoo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 280
Carta a Ana de Quental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
Carta aJoaquim de Arajo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
Cartas a Tommaso Cannizzaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 286
Carta a Antnio Feij . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 1
Cartas a Carolina Michaelis ele Vasconcelos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292
Carta a Bulho Pa to . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300
Carta a Tommaso Cannizaro.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
Carta aJaime de Magalhes Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Carta aJoo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308
Carta a Ferando Leal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 1 0
Cartas aJaime de Magalhes Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + . . . . . . . . . . . 3 1 3
Carta a Wilhelm Storck . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
Carta a Jaime de Magalhes Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322
Cartas a Tommaso Cannizzaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
Carta a Oliveira Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . :. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329
Carta a Jaime de Magalhes Lima. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 1
Carta a Maria Amlia Vaz de Carvalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333
Cartas a Oliveira Martins. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336
A GERA
O DE 70
Primeiro volume
A Gerao de 70
por
-
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I
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