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O FRAGMENTO BARTHESIANO:
Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da
dbia poesia.
Andr Gonalves Lopes
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo de Doutor em Cincia da Literatura (Literatura Comparada).
Orientador: Prof. Dr. Antnio Jos Jardim e Castro
Revisora: Vernica Bareicha
Rio de Janeiro Dezembro de 2010. ANDR GONALVES LOPES
O FRAGMENTO BARTHESIANO: Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dbia poesia.
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo de Doutor em Cincia da Literatura (Literatura Comparada).
Orientador: Prof. Dr. Antnio Jos Jardim e Castro
Revisora: Vernica Bareicha
Rio de Janeiro Dezembro de 2010
Lopes, Andr Gonalves. L864f O Fragmento Barthesiano. Quando a inquietante filosofia procura respaldo na dbia poesia. / Andr Gonalves Lopes. Rio de Janeiro: UFRJ/2010. 366f.
Orientador: Antonio Jos Jardim e Castro Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. Departamento de Cincia da Literatura, 2010. Bibliografia: 245-261
1.Barthes, Roland, 1915-1980 - Literatura Comparada Francesa e Brasileira. 2. Fotografia. 3.Escritura Curta. 4. Dirio. I. Jardim, Antonio (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras/ Ps- Graduao em Cincia da Literatura. III. Ttulo. O fragmento Barthesiano. IV Ttulo: Quando a inquietante filosofia procura respaldo na dbia poesia.
CDD 869.37
O FRAGMENTO BARTHESIANO Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dbia poesia. Andr Gonalves Lopes Orientador: Prof. Doutor Antnio Jos Jardim e Castro
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura (Literatura Comparada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Doutor em Cincia da Literatura (Literatura Comparada).
Examinada por:
_________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Antonio Jos Jardim e Castro, UFRJ.
_________________________________________________ Prof. Dr.
_________________________________________________ Prof. Dr.
_________________________________________________ Prof. Dr.
_________________________________________________ Prof. Dr.
SUPLENTES: _________________________________________________ Prof. Dr.
_________________________________________________ Prof. Dr. Rio de Janeiro Dezembro de 2010
Ao Professor Doutor Antnio Jos Jardim e Castro, pela orientao dedicada e minuciosa; Ao Professor Doutor Alberto Pucheu, pelos valorosos conselhos na rea de filosofia. Ao Professor Doutor Lus Alberto Nogueira Alves, pelo generoso entusiasmo por meu trabalho; Professora Doutora Mrcia Atalla Pietro Luongo, pelas orientaes feitas em um trabalho inicial para esta tese. Agradeo.
A Maria Cndida, minha saudosa av materna, pelo seu carinho incondicional e compreenso infinita, presto este insufici ente tributo.
A Maria Luisa, minha me, pala ajuda financeira e apoio emocional nas horas mais difceis desta jornada, dentro e fora desta tese, declaro-me mais do que devedor.
Tu dirs que repito Algo que disse antes. Di-lo-ei de novo. Devo diz-lo de novo? Para chegares a, Para chegares onde ests, para sares de onde no ests, Deves seguir por um caminho em que o xtase no medra. Para chegares ao que no sabes, Deves seguir por um caminho que o caminho da ignorncia. Para possures o que no possuis, Deves seguir pelo caminho do despojamento. Para chegares ao que no s deves cruzar pelo caminho em que no s. E o que no sabes apenas o que no sabes E o que possuis o que no possuis E onde ests onde no ests.
T. S. ELIOT [East Coker, - No. 2 - III of Four Quartets] parafraseando a instruo espiritual de SAN JUAN DE LA CRUZ - SC. XVI
RESUMO
LOPES, Andr Gonalves. O fragmento barthesiano: Quando a inquietante filosofia procura uma nova linguagem dentro da dbia poesia. Orientador Prof. Dr. Antonio Jos Jardim e Castro. UFRJ/ FL; 2010. Tese (Doutorado em Cincia da Literatura).
Este trabalho, tripartido, trata da Fotografia a partir da viso de Roland Barthes transpassando-a com o conhecimento de outros do ramo da foto-edio; Escritura Curta e sua eficiente maneira de comunicar e curiosa forma de fazer Arte; terminando com Dirio assunto muito usado na prtica e ainda assim pouco pesquisado em teoria. Como objetivo secundrio, pretendemos a partir do corpus observados e teoria estudada criar outras teorias, para que tais temas nunca terminem de dizer.
Palavras-chave: fragmento, Roland Barthes, escritura curta, fotografia, dirio.
ABSTRACT
LOPES, Andr Gonalves. The fragment Barthes: When the disturbing philosophy for a new language into the dubious poetry. Thesis advisor Prof. Dr. Antonio Jos Jardim e Castro. UFRJ/ FL; 2010. Thesis (Ph.D. in Science Writing)
This work, tripartite, the photograph comes from the vision of Roland Barthes running through it with the knowledge of the other branch of photo-editing; Short Scripture and its efficient way of communicating and curious way of making art, Diary ending with issue widely used in pract ice and still little researched in theory. As a secondary objective, we want from the body observed and studied theory create other theories, so that such issues never end said.
Key words: fragment, Roland Barthes, writing short, photography, diary.
SUMRIO
1. Introduo 10 2. Sobre o nome e alegorias 2.1. Assim nasce um nome 22 2.2. A importncia das Alegorias 24 2.3 O porqu dessa estratgia 36 3. Procurando a palavra fragmento em Cmara clara 42 4. Escritura curta 4.1. A primeira vez que Barthes usou a palavra fragmento 71 4.2. Escrevendo fragmentos usando fragmentos 88 4.3. O prazer do texto 102 4.4 Mitologias - Escrever para gerar polmicas mveis e no verdades estticas 119 5. Dirio 5.1. Quando a Escritura Curta encontra o Dirio: Roland Barthes por Roland Barthes 144 5.2. O imprio dos Signos 174 5.3. Incidentes Dirio (Fragmento) coletivo de fragmentos 194 6. Concluso 6.1. Quando a inquietante Filosofia... 200 6.2. ... procura uma nova linguagem dentro da dbia poesia. 234 7. Referncias bibliogrficas 253 7.1. Referncia por meio eletrnico 258 7.2 BIBLIOGRAFIA de Roland Barthes publicada no Brasil 260 8. Bibliografia Barthes e fragmentos contendo fragmento (ANEXOS) 262
10 1. INTRODUO
Na capa do livro O bvio e o obtuso (Editora Nova Fronteira - BARTHES; 1990) encontramos um mosaico arcimboldesco: um todo (rosto) feito de outros todos (verduras, legumes, vegetais e frutas) ou inteiros convertidos em fragmentos, para unidos formar um nico inteiro. Na escultura Vitria de Samotrcia falta cabea e braos deusa Atena e ainda assim no falta nada. Em M. C. Escher a admirao de suas obras sem os detalhes pura iluso, com estes puro deslumbramento: estamos nos referindo ao Perodo das Metamorfoses 1937-1945 e ao Perodo das gravuras subordinadas perspectiva 1946-1956. Em Ado de Michelangelo, por Lewis Lavoie 1 (figura abaixo) os meios e os fins se fundem. E para entender melhor estes fenmenos: fragmentos que se tornam um todo e um todo que no faltam fragmentos; um todo que melhor visto em fragmentos e que em fragmentos melhor oculto um todo; escolhemos Barthes: pesquisador e produtor de fragmentos.
1 Disponvel em: http://www.muralmosaic.com/murals.html. Faces humanity series, acessado em 30/07/2010.
11 A primeira proposta desenvolvida por ns, para esta tese, se baseava em: entender a Literatura, e, criar Literatura a partir de como Roland Barthes usa/entende a palavra Fragmento. Nasceu da inquietao com a prpria palavra Fragmento. Inicialmente na obra de Barthes: um trabalho prvio de leitura realizado em alguns livros deste autor para nossa dissertao de mestrado revelou uma insistncia, uma repetio que no nos parecia gratuita, da resolvemos, para nossa tese de doutorado, pesquisar de forma mais profunda a palavra, o assunto: fragmento. E o ponto de partida foi a localizao da palavra fragmento tanto a nvel paradigmtico (maiscula e/ou minscula) como sintagmtico (relao com palavras vizinhas) e desde j, antes de prosseguir com o trabalho, salientamos que a palavra fragmento ser escrita, por vezes, com letra minscula quando significar to somente apenas o que se encontra nos dicionrios e com letra maiscula quando significar algo alm de simples notao lexical e penetrar no mundo das ideias, portanto, merecendo a postura de nome prprio. Na obra de Roland Barthes h palavras que merecem uma ateno especial: Ideologia, esteretipo, sujeito, histria, lgica, filosofia, psicologia, existencialismo, marxismo, estruturalismo, metalinguagem, mimesis, anamneses, hai-kai, e a prpria palavra literatura; alm de alguns pares de palavras naturalmente opostas: Razo-Desrazo, verso e reverso, marcado / no marcado, gosto / no gosto; alm de outros pares opostos por algum motivo: amor e morte, criadores e combinadores, Campo e Cidade, verdade e validade, escritores e escreventes, escrita e escritura 2 ; e demais pares feitos pela diferena da primeira letra entre maiscula e minscula: Livro e livro, Natureza e natureza, Dirio e dirio, Nome e nome, Poesia e poesia, e nossa palavra chave: Fragmento e fragmento. Meu discurso contm muitas noes aos pares
2 Em francs s existe uma palavra para designar a representao da fala ou do pensamento: criture. Porm, temos em Portugus duas palavras: escrita e escritura. Toda escritura , portanto uma escrita; mas nem toda escrita uma escritura (AULA: 75) e como analogia propomos: Todo escritor uma pessoa; mas nem toda pessoa um escritor.
12 (denotao / conotao, legvel / escriptvel, escritor / escrevente). (BARTHES, 1977, p. 100). Isto no so todos os casos, somente alguns como exemplo. Essa maneira de amplificar o sentido denotativo, utilizando a grafia maiscula, algo muito comum em Roland Barthes, uso este que ser copiado nesta tese. Depois, por ela mesma (a palavra fragmento): uma vez que a Fsica Moderna est constantemente dividindo o indivisvel tudo no mundo pode ser decomposto em fragmentos, este fato por si s no o inquietante, mas as consequncias da fragmentao. Diante de um todo se retira um fragmento, que raramente feito de forma aleatria, e por conta desta ao estamos diante de duas: primeira, um todo que no mais um todo, que por falta se torna um novo todo; segunda, seu fragmento separado agora, ele, um todo at ser devolvido ao mesmo lugar. No estamos propondo aqui um vandalismo sobre obras, mas a criao mental de um gabarito que possa ser montado e desmontado para com ele testar novas formas de produo e qui entender o prprio processo criativo. Talvez a tese O Fragmento Barthesiano seja pequena demais para algo to grande, e sem fim, mas ao menos ela iniciar a busca para tal. E por acreditarmos que a chegada no o mais importante, mas percorrer o caminho, sim, prosseguimos. Mesmo criando um limitador palavra fragmento, acrescentando o substantivo prprio Barthes acrescido do sufixo de provenincia -iano (diz-se de, relativo a), iremos entrar em outras reas alm da literatura como fotografia e religio, no de forma muito abrangente nem conclusiva, antes, de forma exploratria e indagadora. Mas como esta proposta: a localizao da palavra Fragmento tanto a nvel paradigmtico (maiscula e/ou minscula) como sintagmtico (relao com palavras vizinhas) se mostrou mais expositivo que explicativo, resolvemos dedicar nossa ateno questo do Fragmento em si na obra de Barthes, pois tamanha reincidncia sobre tal palavra (fragmento) e captulos dedicados ao assunto no nos pareceram acidentais, outrossim propositais; ento resolvemos buscar qual seu 13 propsito. No entanto, por acreditarmos haver muitas informaes teis na proposta anterior, na verdade um corpus: onde encontramos a palavra fragmento e se escrita com maiscula ou minscula e por que, no a descartaremos de todo. Assim como no estar de fora de nossa pesquisa algumas palavras que remetem a seu significado (a palavra fragmento); no que esta tese v trabalhar/pesquisar todos os seus sinnimos, mas para que no haja perdas alguns sero trabalhados, pois estamos falando dos que ratificam a importncia de tal palavra dentro do pensamento barthesiano e/ou a explicam, no raro, demonstrando, exemplo: [...] de modo a tornar vivo um pedao do corpo, uma lasca de homem, conservando sua vocao de parte; (BARTHES, 2007, pg. 78, grifo nosso), palavras que no so exatamente seu sinnimo, mas impossvel no ver nelas uma cumplicidade com o nosso tema: fragmento. Mas o que seria a questo do Fragmento em si na obra de Barthes? Por se tratar de uma tese, muito vai ser lido e escrito sobre Barthes e sua obra, e sempre tivemos em mente duas preocupaes: 1) No aceitaramos escrever um Resumo de Barthes e apresent-lo como Tese. 2) preciso coragem para decidir o que , e o que no Escrita de Fragmento em Barthes, pois uma vez que sua obra : 2.1) Farta (ou polivalente), como, em nome de Deus, se separa o joio do trigo com um escritor do porte de Barthes? Como colocar no mesmo saco <<Souk>> de Marrakech: rosas campestres no meio dos montes menor fragmento encontrado no livro Incidentes (1987- uma linha e meia) com Poujade e os intelectuais maior fragmento do livro Mitologias (1972 - com oito pginas)? E mais, como comparar o livro Fragmentos de um discurso amoroso (2000), livro visivelmente de Escrita Fragmento com Crtica e verdade (1982), sendo este ltimo possuidor de dezesseis incurses a palavra fragmento. Colunas paradigmticas s precisam de 1 (uma) interseo (a/h explicao) para serem identificadas/entendidas, mas nossa proposta de tese no 14 evidenciar, separar colunas por uma evidencia superficial do tipo cada pea se basta, e no entanto ela nunca mais do que o interstcio de suas palavras vizinhas: a obra feita somente de pginas avulsas (BARTHES, 1977, p. 102) e menos ainda junt-las apenas pelo nome Barthes (ou Barthesiano), mas buscar entend-las como quem quer entender o fragmento: Escrever por fragmentos: os fragmentos so ento pedras sobre o contorno do crculo: espalho-me roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o qu? (BARTHES, 1977, p. 100), pois foi sobre a ideia e no sobre a forma que escolhemos trabalhar as obras de Barthes. No que ele no fale sobre forma, e fala, mas por falar dela (a forma) de maneira includente e no excludente. O ndice de um texto no somente um instrumento de referncia; ele prprio um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que h de delirante (de interrompido) na razo das frases (Barthes,1977, p.101).
2.2) No decisiva. E o que seria algo no decisivo? Como Susan Sontag (1986, p. 127) escreveu em Sob o Signo de Saturno...
Tinha-se a impresso de que conseguia gerar ideias a partir de qualquer coisa. Bastaria coloc-lo diante de uma caixa de charutos e Barthes produziria uma, duas, muitas ideias um pequeno ensaio. No era uma questo de conhecimento (podia no conhecer a fundo certos temas de que tratou), mas de uma agilidade mental, a obstinada transio do que se podia pensar a respeito de um tema, desde que conflusse para a ateno.
Como podemos perceber no fragmento transcrito, e j havamos percebido isto h muito tempo s no tnhamos a intimidade (e o prestgio) de que gozava Sontag para escrever/especular Barthes diante de uma caixa de charutos. O autor em questo nunca escrevia para estar certo, mas para causar reaes. A apatia o incomodava. A mesmice o incomodava. Gostava de pendular entre o intelectualismo de quem escreve, com a certeza de que menos de um por cento das pessoas alfabetizadas e instrudas o ir entender como em A Controvrsia 15 Estruturalista: Mas, se no emprego a palavra pensamento, no por ach-la obscena; pelo contrrio, porque ela no suficientemente obscena (BARTHES, 1976, p. 159) e o informalismo absoluto de quem escreve apontamentos: a gente tira ento o caderninho de apontamentos,... (BARTHES, 1977, p. 102). Na obra As Ideias de Barthes (CULLER, 1998, p.16-17) est escrito tal como um jovem ciclista grita Veja, mame! Sem segurar!, Barthes grita Veja, mame! Sem conceitos! E por que Barthes assim? Talvez por ter percebido que poucas pessoas no mundo sabem quem foi Ddalo, mas quase todas j ouviram falar de caro, pois de fato ambos fugiram do labirinto de Creta, mas em verdade somente caro desobedecendo voou. A princpio, separamos a tese em trs partes para melhor trabalhar/entender a questo do Fragmento em si, na obra de Barthes. E ao fazermos isso entendemos que no tramos o que dissemos no final do 2.1. Esta separao em trs deve ser vista antes como uma organizao espacial (exterior) a classificao formal, pois assim como na matemtica pode-se obter o resultado de nmero 5 (cinco), por exemplo, em inmeras equaes na aritmtica, lgebra, trigonometria, geometria e outras; em Barthes pode-se fazer o mesmo e encontrar O Fragmento Barthesiano nos mais variados temas estudados por ele como: Teatro, Narrao, Romance, Fotografia, Escritura Curta e Dirio. Escolhemos os trs ltimos por entendermos que esta questo, O Fragmento Barthesiano, se revela com mais intensidade neles a outros. Comearemos por onde nos pareceu mais flagrante tal questo: a imagem com suas representaes, ou melhor dizendo, suas reapresentaes... seu aparecer novamente. Como feito e como lido.
Em suma, todas estas <<artes>> imitativas comportam duas mensagens: uma mensagem denotada, que o prprio analogon e uma mensegem conotada que o modo como a sociedade d a ler, em certa medida, o que pensa dela. (BARTHES, 1982, p. 15)
16 A segunda parte seria a mais complexa de se trabalhar se nos ativssemos a classificaes formais (exterior), como optamos pelo seu contedo (interior) ficou mais polivalente, como Barthes coloca obras suas de formato to singular no mesmo saco no seremos ns a nos preocupar com a forma de maneira excludente, grosso modo, classificatria.
Seu primeiro texto ou quase (1942) feito de fragmentos; essa escolha justificava-se ento maneira de Gide porque a incoerncia prefervel ordem que deforma. Desde ento, de fato, ele no cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de LEmpire des signes, artigos e prefcios dos Essais critique, lexias de S/Z, pargrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte.(BARTHES; 1977, p. 101)
Como classificar formalmente algo que foi feito sem a preocupao do formal? Como corrigir algo que no foi feito para ser corrigido? E mais, correndo o risco de ao corrigir prejudicar consideravelmente o que realmente quis ser comunicado? Como calcular e padronizar pginas em algo que, algumas vezes, no tem aluso s pginas? Como classificar a importncia de algo que foi escrito para aquele momento e logo depois descartado ou, quem sabe, para ficar guardado e marcado para todo o sempre? Mais uma vez temos que nos valer do que o autor nos ensinou Essa sutileza decisiva (BARTHES; 1984, p. 127). Sem sutileza nada ter consenso e tudo ser discrdia. Assim como o que ocorre na conhecida metfora do copo: a mesma quantidade de lquido num copo leva cada um a v-lo de forma diversa e at antagnica; o mesmo pode, e ir, acontecer com esta tese. Na terceira e ltima parte trabalharemos a importncia de O Fragmento Barthesiano no Dirio. Do fragmento ao dirio Sob o libi da dissertao destruda, chega-se prtica regular do fragmento: depois, do fragmento se desliza para o "dirio. Assim sendo, o objetivo disso tudo no se dar o direito de escrever um "dirio"? (BARTEHS; 1977, p. 103)
17 Ao terminarmos de ler o texto A morte do autor publicado em O Rumor da Lngua (BARTHES, 2004. p. 57-64.) uma inquietao se instaurou: no seria melhor l-lo novamente de trs para frente? Ento resolvemos trabalh-lo assim: de trs para frente para devolver escrita seu devir, preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor lendo apenas este encerramento, do texto em estudo, o restante (ainda no lido em nossa proposta de leitura-inversa) se apresentaria como algo absoluto, mas no o . Esta morte antes de tudo uma maneira de atingir a crtica que nunca se preocupou com o leitor e que agora se apresenta como uma defensora deste O leitor, a crtica clssica nunca se ocupou; para ela no h na literatura qualquer outro homem para alm daquele que escreve. Considerando o leitor como aquele capaz de ser o espao exato em que se inscrevem o ser total da escrita um lugar que no deveria ser preciso e fechado, mas no momento em que a crtica atribui um Autor ela o faz: Dar um Autor a um texto impor a esse texto um mecanismo de segurana, dot-lo de um significado ltimo, fechar a escrita. O scriptor hoje um homem que acredita dar conta do recado com sua vasta matria prima de lxico e sintaxe, forma que atropela substncia, passado que representa o segundo anterior e no experincia anterior; em resumo: um texto que foi bem escrito um texto que fracassou: ..., e o romance termina quando finalmente a escrita se torna possvel. Se a novela Sarrasine de Honor de Balzac o falhano do homem baudelaire, Van Gogh sua loucura, Tchaikovsky seu vcio... a Polivalncia Barthesiana ser a Bortheada na cara da crtica, palavra-valise (CAROLL, 1980, P. 197) neologismo que aprendemos a fazer graas Alice no Pas das Maravilhas. Sim, vamos matar o Autor que a crtica tanto nos fez valorizar e rotular criando, assim, uma autntica viseira (ou tapa) igual ao que os cavalos usam. Barthes mata os autores, mas no para de falar neles, admira e estuda, ento que morte essa? a morte de uma crtica que apesar de acreditar numa escrita-mltipla, no a entende. O que Barthes admira nos escritores antigos sua humildade em reconhecer que a substncia do contedo 18 ser sempre aquele lugar incrivelmente labirntico onde a forma do contedo ser apenas e to somente apenas o ato de escrever, resultado de um clculo to absurdamente complexo que os significantes da lngua, qualquer lngua, s podem ser o que realmente so: tentativas de dar conta de um recado que s pode ser dado em literatura no dando! Sob pena de fracassar, para no dizer se iludir. O texto que Barthes defende o texto que no pode ser escrito por vias normais, a menos, claro, que se queira passar apenas uma mera mensagem, algo do tipo: eu falo voc entende, mas se o que queremos o algo mais, ento ele ter que fracassar. Barthes: libertando a escrita da "tirania do autor", atribuda pela crtica, d a cada leitor o direito de adicionar, alterar ou simplesmente editar outro texto, formando assim o gabarito mental que propomos. Abrindo possibilidades de uma autoria coletiva ele incita escritores e leitores, a que estudem os textos e no os autores, pois assim como um texto no deve ser escrito para prender a histria de vida de um autor no deveria ser sua justificativa, sua explicao sobre o qu e o porqu escreve. O dirio que Barthes admira no a agenda do dia a dia, o lembrete... o perder-se para se encontrar. Valendo-se de autores consagrados, Gide e Proust - trabalha o Dirio e a Biografia respectivamente, provando/ressuscitando o direito do autor se escrever/descobrir [...] como possvel narrar algum sem se projetar nesse algum? (BARTHES, 1974, p. 45) e convidando o leitor a fazer o mesmo Entretanto, o prprio fim da comunicao a isso se ope, pois essa seria uma mensagem fria, e por conseguinte inversa, j que o que eu quero comunicar o prprio calor de minha compaixo. (BARTHES, 1980, p. 18). E como fazer isto sem contagiar o leitor? Sem fazer dele um cocriador da obra, algo que a crtica nunca se preocupou Em princpio, no h nenhuma proibio para a crtica, somente exigncias, e em seguida, resistncias. (BARTHES; 1980, p. 178). 19 Barthes percebe que o dirio um todo feito de fragmentos e que ao escolhermos um - o todo no desfeito, impossvel no caso do dirio, um trecho de nossas vidas no desaparece simplesmente porque rasgamos uma pgina, mas ao fazermos uma escolha (um fragmento de nossas vidas) como em: A costeleta (BARTHES, 1977, p. 68) e a partir dela contemplarmos novamente o todo e percebemos que ele em si no mudou, mas a maneira de como voltamos a ver este todo mudou. Parece que estamos falando da nave Argo onde cada pea gasta era substituda por outra nova, sempre uma nave nova e ao mesmo tempo sempre a mesma, mas ser que isto que ocorre com o dirio ou com as biografias?
A nave Argo Imagem frequente: a da nave Argo (luminosa e branca), cujas peas os Argonautas substituam pouco a pouco, de modo que acabaram por ter uma nave inteiramente nova, sem precisar mudar-lhe o nome nem a forma. Essa nave Argo muito til: ela fornece a alegoria de um objeto eminentemente estrutural, criado no pelo gnio, a inspirao, a determinao, a evoluo, irias por dois atos modestos (que no podem ser captados em nenhuma mstica da criao): a substituio (uma pea expulsa a outra, como num paradigma) e a nominao (o nome no est de modo algum ligado estabilidade das peas): fora de combinar, no interior de um mesmo nome, nada mais resta da origem: Argo um objeto sem outra causa a no ser seu nome, sem outra identidade a no ser sua forma. (BARTHES; 1977, p. 52-53)
A partir dos autores que amava, Barthes comea a construo de uma nova Argo No tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforo clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do dirio de Gide? (BARTHES, 1977, p.103) isto porque a ideia ... todo escritor s se torna obra quando pode variar ... (BARTHES, 1980, p. 19) no se trata de trazer tona por copiar (reproduzir), mas trazer tona por evoluir (produzir): Uma obra eterna no porque ela impe um sentido nico a homens diferentes, mas porque ela sugere sentidos diferentes a um homem nico, que fala sempre a mesma lngua simblica atravs dos tempos mltiplos: a obra prope, o homem dispe. (BARTHES, 1980, p. 213). 20 O Dirio, quando analisado, proporciona um eu o todo, um parte-do-eu uma vez que escolhemos e o retiramos do todo, e um novo-eu, pois depois de vermos o todo no com a falta deste fragmento, mas pela viso deste fragmento, tal fragmento devolvido no volta para o todo de antes, mas para um novo todo, uma vez que agora, tomados por outra viso, como dizer que o antes se mantm o de antes? A menos que no tenhamos visto nada de novo A criao ou reflexo no so aqui impresso original do mundo, mas fabricao verdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro, no para copi-lo mas para o tornar inteligvel. (BARTHES, 1980, p. 51), lembrando que uma escolha raramente aleatria, o que a fez ser escolhida (conscientemente ou subconscientemente) o essencial para tal mudana.
O Zen pertence ao budismo torin, mtodo da abertura abrupta, separada, rompida (o kien , pelo contrrio, o mtodo de acesso gradual). O fragmento (como o hai-kai) torin; ele implica um gozo imediato: um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no caf, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira ento o caderninho de apontamentos, no para anotar um pensamento, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso. (BARTHES, 1975, p. 102)
E pelo fragmento (o hai-kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) (BARTHES, 1977, p.) o todo visto (composto) e revisto, (recomposto) e o que serve para tornar o mundo inteligvel no serve para ns mesmos?
Entretanto, o que real? No o conhecemos nunca seno sob forma de efeitos (mundo fsico), de funes (mundo social) ou de fantasmas (mundo cultural); em suma, o real nunca ele prprio mais do que uma inferncia; quando se declara copiar o real, isto quer dizer que se escolhe tal inferncia e no tal outra: o realismo est, em seu prprio nascimento, submetido responsabilidade de uma escolha. (BARTHES,1980, p. 78)
Este entender pela fragmentao este se deixar levar no algo criado e/ou exclusivo de Barthes, outros tambm o fizeram como ele mesmo aponta. Barthes leu Andr Gide que leu Montaigne (e escreveu um livro sobre) que autor de um s livro: Ensaios, publicado em quatro 21 edies sucessivas, sempre os corrigindo, melhorando, juntando-lhes acrscimos com vrias citaes colhidas em suas constantes leituras, um autntico escritor de fragmentos em pleno sculo XVI. E hoje, ter essa forma de escrita sido esquecida? Acreditamos que no, e para provar, viajaremos por literaturas que nos fascinaram por sua fidelidade ao Fragmento, ainda que seus autores jamais tenham pesquisado a evoluo (histria) de tal escrita. Como o S por hoje (1998) dos Alcolatras Annimos, Reminiscncias sobre Meishu-Sama (2004) da Igreja Messinica (rica em literatura de Fragmentos) e outros autores, desde os mais conhecidos como Martin Heidegger e Susan Sontag aos menos como Arlindo Machado e Ivan Lima. Sero ambos utilizados, ora para ratificar as descobertas feitas por ns, ora para reforar os exemplos encontrados e praticados por Barthes.
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2. SOBRE O NOME E ALEGORIAS 2.1- Fragmento Barthesiano: assim nasce um nome.
O capito Walton ento surpreende a criatura na cabine, no leito de morte de Frankenstein, pranteando seu criador. E pergunta: - Quem voc? E a criatura responde: - Ele no me deu um nome. Mary Shelley
Para defender nosso argumento de que possvel entender a Literatura, e, criar Literatura a partir de como Roland Barthes usa/entende a palavra Fragmento, usaremos diversas estratgias de cunho comparativo, pois se em outras obras Chico pode ser Francisco por que em Roland Barthes no pode acontecer o mesmo? Parece confuso, mas iremos explicar. Comeamos este captulo com um rpido dilogo entre a criatura de Mary Shelley e um personagem - capito R. Walton, para instigar a curiosidade: de onde veio o nome Fragmento Barthesiano? Parece bvio, de Roland Barthes e seus estudos sobre A Escrita de Fragmentos, mas este autor no deu seu nome a tal pesquisa, diretamente, foi mais um caso de a proximidade e/ou a dedicao fazer sua contaminao, uma posse ... os colonos cuidaram de cartograf-la, isto , de desenhar e de dar nomes a seus acidentes; esse primeiro ato de inteleco e de tomada de posse um ato de linguagem (BARTHES, 1974, p. 85) e assim como no monstro criado por Shelley, o criador vira posse de sua criao. Poderamos ter comeado por um dos muitos fragmentos escritos por Barthes, s em seu livro Roland Barthes por Roland Barthes (1977) temos: O crculo dos fragmentos (ps. 101-102), O fragmento como iluso (p 103) e Do fragmento ao dirio (p. 103); seria mais acadmico, primeira vista, verdade, mas seria no 23
mnimo apressado irmos direto a questo, ao corpus, sem ao menos explorarmos ela (a palavra fragmento) encontrada j no prprio nome da tese. Por isso achamos melhor, ou pelo menos mais inovador, iniciar o trabalho lembrando o personagem mais fragmentado (se nos perdoam o trocadilho) da literatura mundial, Frankenstein; e de sua escritora. Uma vez que a biografia desta sempre apresentada como sendo ela mesma um fragmento tirado de (ou inserido em) outras biografias mais famosas, sendo este mais famosas merecendo ser transcrito entre aspas, pois quem hoje lembra do filsofo William Godwin (pai) a quem acusam de ter pedido algumas ideias emprestadas a Rousseau e que nunca se lembrou de as devolver; ou ainda da pedagoga e feminista Mary Wollstonecraft (me) autora de uma famosa Declarao dos direitos da mulher; ou ainda do poeta Percy Bysshe Shelley (marido) cujo nome s lembrado por poetas amadores e leitores profissionais, enquanto que a obra de uma menina (em 1818, tinha 21 anos) lembrada e adaptada at os nossos dias. Tudo isso para dizer que o nosso Por onde comear (BARTHES,1974, p.77) comeou pelo nome Fragmento Barthesiano, pois se tivssemos comeado por 1 (um) fragmento como justificar este escolhido a outros? E neste trabalho haver hierarquia, classificao? Seria injusto e confuso se houvesse.
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2.2. A importncia das Alegorias.
Alegoria: Rubrica: artes plsticas, literatura - simbolismo que abrange o conjunto de uma obra, num processo em que o acordo entre os elementos do plano concreto e aqueles do plano abstrato se d trao a trao. (HOUAISS, 2009, p. 88). Ou seja: o que importa a realidade representada elemento a elemento (fragmento a fragmento) em detrimento do conjunto (o todo), no que o resultado final no seja importante e ele o , mas o processo que o torna, que o faz nascer, onde encontramos o material necessrio para operarmos na linguagem do artista. At ravs do tema Alegoria faremos a ligao da inquietao provocada pela palavra fragmento em si, com a palavra Fragmento na obra de Barthes. O sentido alegrico: para ler aqui a cabea do Vero ou de Calvino, preciso de uma outra cultura que no a do dicionrio [...] e a partir do momento em que se troca o dicionrio das palavras por uma lista dos sentidos culturais, das associaes de ideias, em resumo, por uma enciclopdia das ideias recebidas, entra-se no campo infinito das conotaes.(BARTHES. 1984, p. 124-125)
A alegoria no um aviso direto como o que encontramos atrs dos maos de cigarro (Lei n 9.246/1996), mais como um conjunto de signos, uma polifonia fazendo de um nico aviso muitos e de muitos um nico. Algo que interessa a est a tese e no passou despercebida a Roland Barthes, cujo livro O bvio e o Obtuso (1982) trata do que poderamos chamar de esttica do visvel: a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura e a alegoria. A explicao sobre o ttulo do livro pode ser encontrado no captulo que fala sobre Eisenstein. E nela que iremos focar agora para melhor entender este tema: a alegoria e sua relao com a tese. Usaremos algumas obras para melhor exemplificar:
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Thodore Gricault, A jangada da Medusa (1818-1819)
O quadro pico A Jangada da Medusa (1818 - 1819) por Thodore Gricault (1791-1824) um verdadeiro representante de todas as mudanas artsticas de sua poca requisitadas, sem a menor preocupao com classificao e/ou modismo. Gricault no escolheu uma escola, ele uniu todas a partir de fragmentos de estilo, criando uma obra hbrida. Vejamos: 1. Possui fragmentos da Renascena Italiana, foi inspirado por Michelangelo com seu O juzo final (1502 - 1508), mais especificamente o canto inferior direito, dedicado a Caronte. E inspirou seu amigo Eugne Delacroix (1798 - 1863) a criar a tela "Dante et Virgile aux enfers" (1822) ou "A barca de Dante".
O juzo final (1502-1508) A barca de Dante (1822) 26
2. Possui fragmentos do Barroco, sob a influncia de Caravaggio, com seu jogo de luz e sombras, vida e morte respectivamente; mas definitivamente no para Deus (grande, posto em lugar alto e central) para quem eles olham e sim para um Argus (ou Argos: ), no o alegrico/mitolgico de Roland Barthes (BARTHES, 1977, p. 52), mas um dos barcos que seguiram junto com a fragata Medusa para a antiga colnia francesa do Senegal (pequeno e posto a meio e a direita do quadro), quase imperceptvel, nica esperana - no de homens virtuosos e convictos de suas aes, mas ao contrrio de todas as escolhas feitas por seus colegas artistas, dessa vez, os heris eram farrapos humanos, loucos, canibais, desgraados no mais literal que esta palavra aparece nos dicionrios. 3. Possui fragmentos do Neoclassicismo, escola onde os princpios da era clssica deveriam ser adaptados realidade moderna, nesta vertente , artistas como Jacques-Louis David (1748-1825) com O Juramento dos Horcios (leo sobre tela, 330 425 cm, Louvre) fez muito sucesso na Frana: o juramento de trs irmos fazendo uma saudao, jurando lutar pela Repblica Romana at a morte, vinha ao encontro dos ideais de um governo nascido da Revoluo Francesa, mas Gricault no foi Antiguidade Clssica pegar um tema, uma situao que pudesse servir (ser interpretada) realidade moderna ele foi ao jornal e escolheu uma vergonha nacional: uma fragata naufragou com bom tempo danificada por encalhar num banco de areia (O banco de areia de Arguin), erro primrio que fez o povo francs se sentir inferior marinharia inglesa, seus rivais no mar como Brasil e Argentina nos campos de futebol. 4. Possui fragmentos do Romantismo, Gricault rompe de forma violenta com o Racionalismo (caracterstica romntica) mostrando, no quadro A Jangada da Medusa, um humanismo que retrocede o homem sua origem o deixando quase ao nvel animal. Com isso 27
exerceu seu nacionalismo priorizando o homem (o cidado) comum sobre um governo que permitiu que tal tragdia acontecesse. Fez da Natureza a amiga e a inimiga com o cu dourado e o mar cor de musgo. E do homem um vencedor j que o navio Argus recolheu sobreviventes e no apenas corpos. Mas este quadro tambm pode ser considerado ponte para o que estaria por vir: o Realismo. verdade que o que Gricault pintou no foi uma foto apesar de ter entrevistado os sobreviventes, construdo uma jangada, estudado cadveres e negros; mas tal idealizao dos acontecimentos no comprometeu a objetividade que impera no Realismo, assim como sua viso do real no comprometeu o belo que impera no Romantismo. O quadro A jangada da Medusa tem um papel ilustrativo nesta tese Ter o quadro um <<assunto>> (em ingls: topic)? De maneira nenhuma: tem um sentido, mas no um assunto. (BARTHES, 1984, p. 85) Cada personagem um Fragmento do que aconteceu. E Diderot acrescenta (se assim podemos dizer); a criao do pintor ou do dramaturgo no est na escolha de um tema, est na escolha do instante premente, do quadro. (Idem, ibidem, p.85) Este instante veio de um nvel informativo visto que a fonte foi um jornal [...] temos um pargrafo na pgina quatro do Montieur Universel. (EDGE, 2006, p.29), mas o objetivo era ser uma smile de fotojornalismo? No, a informao foi o comeo, o ponto de partida para algo maior. 1. Um nvel informativo, onde se acumula todo o conhecimento que me fornecem o cenrio, os trajos, as personagens, as suas relaes, a sua insero numa anedota que eu conheo (ainda que vagamente). Este nvel o da comunicao. Se fosse preciso encontrar-lhe um modo de anlise, seria para a primeira semitica (a da mensagem) que eu me voltaria (mas desse nvel e dessa semitica j no nos ocuparemos aqui). (BARTHES, 1984, p. 43)
na escolha da composio que o artista tenta passar, ultrapassar, a mensagem do bvio, sendo no Obtuso onde encontra condies para tal.
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Quanto ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem <<a mais>>, como um suplemento que a minha inteleco no consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugido, liso e esquivo, proponho chamar -lhe o sentido obtuso. (BARTHES, 1984, p. 45).
na alegoria onde encontramos melhor esse sentido obtuso, pois no momento que a obra, por meio de suas formas, representa uma ideia abstrata, est aberta toda uma gama ilimitada de inteleco. O sentido alegrico: para ler a cabea do Vero ou de Calvino, preciso de uma outra cultura que no a do dicionrio (BARTHES, 1984, p. 124). O abstrato no uma linha reta de nico sentido, antes uma seta que aponta para onde encontraremos a bifurcao dos sentidos Um ngulo obtuso maior que um ngulo reto (Idem, p. 45). Atravs da alegoria o artista no diz o que sente, mas exprime o que sente, nos ajudando com isso a nos expressar tambm, emprestando sua reao a nossa.
O objeto esttico resume e exprime numa qualidade afetiva inexprimvel a totalidade sinttica do mundo: ele me faz compreender o mundo ao compreend-lo em si mesmo, e por intermdio de sua mediao que eu o reconheo antes de conhec-lo e que eu nele me reencontro antes de me ter encontrado. (Dufrenne, Apud RODHEN, 2007, p.13)
Portanto, no estamos falando aqui de sinais ou smbolos menos ligados ao conceito de arbitrariedade do signo. Mas a partir do momento em que se troca o dicionrio das palavras por uma lista dos sentidos culturais, das associaes de ideias, [...] entra-se no campo infinito das conotaes (BARTHES, 1984, p. 125). Estamos falando de composies feitas a partir de substituies, de linguagem no- verbal como no livro O corpo fala (WEIL & TOMPAKOW, 2007). Pois ao agir assim o artista visualiza a essncia abstrata em todas as existncias concretas e [...] exprime, em alguma forma individual, a realidade universal (ROHDEN, 2007, p.14). E tal realidade universal pode ser encontrada na obra escolhida por ns, A Jangada da Medusa. Ela possui algumas caractersticas que no nos passaram 29
despercebida: Uma tela escura para um tema mrbido, uma inquietao que no sabe como sair, e paralelismos eufmicos para suavizar um tabu. E que foram confirmadas no livro O Deus da primavera, de Arabela Edge, 1 e aqui descritas respectivamente: Imitaria a tcnica do sfumato de Leonardo em que todas as cores eram fundidas at s ficar uma monocromia escura -, mas, para atingir aquela escurido lustrosa, Gricult usaria o betume. (EDGE,2005, p. 118)
- pena - murmurou Corrad - que tenha abandonado a cena em que as cordas de reboque foram cortadas. - Santo Deus! exclamou Gricault, pousando o guardanapo com brusquido. No so os temas que estou a achar problemticos, mas sim o efeito composicional. (EDGE, 2005, p. 141)
Vernet pousou o copo. Voc tem trabalho para fazer, por isso melhor comearmos. Onde devo tomar lugar nesta jangada? Gricault indicou-lhe a popa e pediu-lhe que se sentasse de pernas cruzadas, olhando em frente, repousando a cabea numa mo. - Diga-me quem sou disse Vernet. - Est a embalar o seu filho morto no outro brao. 2
(EDGE, 2005, p. 240)
Cada personagem conta a histria do que aconteceu; alguns objetos tambm o fazem como os lenos usados para chamar a ateno do navio que os salvou, como tambm o faco sangrento que revela de forma excessivamente sutil o que no foi sutil na jangada: o canibalismo. Estas sutilezas fazem parte da composio, no obtuso tudo motivo, nada gratuito [...] devia situar -se na regio da testa: a touca, o leno-toucado estava l para alguma coisa (BARTHES, 1984, p. 48) a evidncia do fragmentado e a sutileza do escondido no so antagnicas sem que um destrua o outro (BARTHES, 1984, p. 149), pois o confundir o limite que se separa a expresso do disfarce (BARTHES, 1984, p. 48) a maneira como a alegoria O
1 EDGE, Arabela. O Deus da Primavera, 2006, uma obra de fico, mas por possuir um forte comprometimento histrico fruto de uma pesquisa patrocinada por bolsa da Literature Board do Australian Council, resolvemos usar nesta tese. Sua riqueza de detalhes: fragmentos preciosos recolhidos em vrias bibliotecas, nos inquietaram e nos impressionaram. Na contracapa deste livro temos: Tendo como pano de fundo a cidade de Paris no rescaldo da Revoluo Francesa, O Deus da Primavera narra a histria do pintor Thodore Gricault e da criao do quadro pico que se tornou um marco fundamental do movimento romntico em pintura e um marco poltico de consequncias imprevisveis para o seu autor: A Jangada da Medusa. 2 O canibalismo est simbolizado no gesto paternal de um dos sobreviventes que segura um jovem morto. uma analogia de Gricault em relao lenda do Conde Ugolino, que depois da morte dos filhos e netos, comeu-os para sobreviver.
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sentido obtuso chegar a existir, a entrar na metalinguagem do crtico. Isto quer dizer que o sentido obtuso est fora da linguagem (articulada), mas contudo no interior da interlocuo (BARTHES, 1984, p. 53), o que distorce o limitante bvio, para na metalinguagem alcanar sua realizao: o espanto. Outro bom exemplo de obra alegrica Alegoria de Guerra e Paz, de Peter Paul Rubens 3 , feito para lembrar Carlos I dos horrores da guerra. E como escolheu fazer isso? Da mesma forma que Gricault, por meio de uma verdade, um fato: as guerras so horrveis. Mas o artista no est preocupado com uma verdade contada, mas com uma verdade universalizada.
A verdade a experincia que o homem tem da realidade, esse saborear nunca poder ser feito em sua totalidade apenas pelos sentidos, nem somente pelo intelecto; h que acrescentar a faculdade intuitiva da razo, que o reflexo individual da Realidade Universal no homem (ROHDEN,2007, p.16)
Por meio da imaginao, a composio vai sendo montada no para contar uma histria, mas para nos dar significantes um sentido obtuso um significante sem significado (BARTHES, 1984, p. 53) e com eles fazer nossa inteleco, nossa prpria concluso, nossa prpria histria. Atravs de uma proposta de viso, o artista convida o pblico a interpretar sua inteno, quanto mais abstrata for a obra mais interpretaes ela suscitar. Se a interpretao vai ao encontro da inteno do artista ou de encontro, isso em si no importante, pois o objetivo mais importante que uma obra pode alcanar no seu entendimento, mas seu fazer pensar para se chegar a um entendimento, o olhar para agradar aos olhos ser sempre pequeno em comparao com seu fazer refletir. Do que adianta achar o quadro belo se no conseguirmos ver nele, atravs de seus fragmentos: a fartura no tempo de paz simbolizada e posta ao lado direito do quadro
3 RUBENS, Peter Paul. Alegoria de guerra e paz. Disponvel em:<http://www.navigo.com/wm/paint/auth/rubens/peace.jpg>. Acesso em22/06/2006. 31
com o leite que sai do peito de uma ninfa, frutas oferecidas por um stiro e um animal selvagem manso (paz) em contraste com o lado esquerdo que possui a mulher louca (guerra) perigosamente perto de uma turma de meninas inocentes (o povo) ao centro e alheias ao que parece ser a discusso entre dois homens adultos (os governantes) tambm ao centro, mas num plano mais alto; a montagem no acidental, calculada para fazer refletir usando inteiros: personagens bem definidos quanto proposta individual de cada um, e, quando devidamente agrupados a soma de cada indivduo (fragmento), cada individualidade (proposta) cria uma unidade: o quadro, cuja proposta no apenas ser belo.
Peter Paul Rubens, Alegoria de guerra e paz (1629)
Museu National Gallery, London
Mas se por um lado nem todo fragmento precisa ser belo, por outro precisa ser suficientemente claro. Algo que estudaremos melhor quando analisarmos o livro de Barthes A cmara clara (1980), mais especificamente se o que ele chama de Punctum 32
pode ou no ser acidental. Para este captulo, ainda introdutrio, compararemos a alegoria de Rubens com o quadro Guernica (1937) de Pablo Picasso para mostrarmos como fragmentos to diferentes podem ser to iguais. GUERNICA
Representao do bombardeio sofrido pela cidade espanhola de Guernica pela Legio Condor (LUFTWAFFE) em 26 de abril de 1937 4 .
Se compararmos apenas as gravuras do quadro de Rubens com as de Picasso perceberemos que so bem diferentes, no plano artstico, mas quanto inteno so iguais. Ambos os quadros falam dos horrores da guerra; o primeiro usa os fragmentos de forma precisa, ainda que postos l para abstrarem, so fragmentos que incitam: cada qual a sua maneira e cujo somatrio, o quadro (espao) formam uma sugesto: a guerra pode acabar com tudo o que existe de bom. Com Picasso temos fragmentos fragmentados e no estamos falando de consequncia cubista (estilo), que por si s tambm bem fragmentado, mas do resultado de um bombardeamento, o fragmentar natural do cubismo: ver o objeto e represent-lo como se simultaneamente pudssemos ver arestas que no seriam possveis em um mesmo lado, na verdade um
4 Disponvel em : http://cafehistoria.ning.com/photo/guernica-pablo-picasso?context=user. Acessado em 05/09/20010 33
separar que junta j que cria simultaneidade, ainda que impossvel: paradoxo possvel na arte; esse fragmentar se tornou uma espcie de redundncia macabra: o resultado fragmentar dilacerante das bombas retratado pelo fragmentar do cubismo. Pedaos de personagens contando o que aconteceu, fragmentos que falam e que at hoje ecoam. No uma obra bonita como ele mesmo disse No, la pintura no est hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo. ("No, a pintura no est feita para decorar casas. Ela uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.") Pablo Ruioz Picasso (1881-1973) 5 . Barthes nunca escreveu sobre estas obras, lutou contra o nazismo escrevendo artigos para o "Combat": importante jornal esquerdista na poca da resistncia enquanto se tratava de uma tuberculose renitente (1934 a 1947). Mas ento por que escrever sobre estes quadros? Por trs motivos: 1) Porque queremos valorizar o fragmento em si antes de falarmos dele em Barthes. Assim como ele teve inquietaes com a touca, o leno-toucado estava l para alguma coisa (BARTHES, 1984, p. 48) e o O fotgrafo me ensina como se vestem os russos: noto o grosso bon de um garoto, a gravata de outro, o pano da cabea da velha, o corte de cabelo de um adolescente... (BARTHES, 1984, p. 49 e grifado em itlico na p. 50), achamos justo mostrar, antes de nos aprofundar, que ns tambm tivemos nossas inquietaes, com nenhum bon em especial, mas com essa renitente presena: 1 (um) fragmento que nos incomoda, est visvel, no h dvidas, nossa verdadeira dvida : por que algo to natural mexe conosco, Barthes s abe do que estamos falando o sentido obtuso pode ser visto como um acento, como a prpria forma de uma emergncia, de uma prega (at de uma ruga), com que
5 Disponvel no Youtube; cmo se pint el Guernica de Pablo Picasso comVENCE - http://www.youtube.com/watch?v=JMf5Ff4BK0U&feature=related 34
marcada a pesada toalha das informaes e das significaes (BARTHES, 1984, p. 54). 2) Estas obras foram usadas para ilustrar (pictoricamente) o gabarito mental de que falamos. O tirar da obra e a partir do fragmento colhido ter e ver novas obras o problema actual no o de destruir a narrativa, mas a de subverter; dissociar a subverso da destruio, essa seria hoje a tarefa (BARTHES, 1984, p. 55). Isto dito por Barthes tem reflexo, pois o desafio hoje esse mesmo, no a alterao das obras somente, mas sua alterao por multiplicao, variao, liberdade. Artistas e pblico em plena conspirao pela obra, eternamente de cada um, sempre em movimento pelo fragmento: um dia, durante a ocupao nazista na Frana, um oficial nazista ao entrar no apartamento de Picasso (revista de rotina) observou uma fotografia do mural Guernica (1937) na parede e, apontando para a imagem, perguntou: Foi voc quem fez isso? E Picasso respondeu, aps um segundo de reflexo: No, vocs o fizeram. 3) Indo alm de suas superfcies, praticamos a palavra discernimento em sua origem, o que no significa, pelo menos para o artista e para Barthes, excluso dos matizes, dos paradoxos, dos contrastes, das ambival ncias e at das contradies; muito pelo contrrio, discernir aceit-los, v-los com clareza, pois discernimento, do latim discernere, que remonta ao grego , significa justamente: distinguir, criticar, avaliar, decidir, julgar, reconhecer, onde est implcito o ato de penetrar profundamente numa questo, procurando compreend -la com o mximo de rigor, sensibilidade e criatividade. Por tant o o fragmento como mtodo, pode e auxilia a crtica do jeito que Barthes a concebe: Pode-se dizer que a tarefa crtica (esta a nica garantia de sua universalidade) puramente formal: no consiste em descobrir, na obra ou no autor observados, alguma coisa de escondido, de profundo, de secreto, que teria passado despercebida at ento (...), mas somente em ajustar, como um bom marceneiro que aproxima apalpando inteligentemente 35
duas peas de um mvel complicado, a linguagem que lhe fornece sua poca (existencialismo, marxismo, psicanlise) linguagem, isto , ao sistema formal de constrangimentos lgicos elaborados pelo prprio autor segundo sua prpria poca. (BARTHES, 1982, p. 161)
H outros autores que poderiam explicar a resposta de Picasso como Luis Humberto quando descreve de forma tcnica a palavra crtica: A crtica uma atividade absolutamente necessria e s ela pode uma vez feita com competncia revelar parmetros de referncia de uma poca. Conduzida com serenidade vai orientar o entendimento mais ntido da relevncia ou no de propostas com aparncias inovadoras. Essa responsabilidade um peso enorme para o crtico que, na verdade, no um juiz feroz apoiado na jurisprudncia do prprio gosto, mas um analista respaldado em um conhecimento verdadeiro de como se desenvolvem os processos criativos. (HUMBERTO, 1983, p. 76)
Mas escolhemos Barthes, pois o que Picasso fez foi subverter no o contedo mas toda prtica do sentido. (BARTHES, 1984, p. 54) E tais vises to diferentes (do oficial nazista e Picasso) ocorrem pois a imagem no a expresso de um cdigo, ela deposito de um sistema, mas gerao de outros sistemas (Idem, 1984, p. 130). E explicado isso, s nos resta dizer: acreditamos que escolhemos bem.
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2.2- O porqu dessa estratgia.
Em conversas informais, e gostaramos de salientar esse informais, com diversos professores, leitores e estudiosos de Roland Barthes, descobrimos um consenso que era dito, mas nunca escrito. Falamos da questo da complexidade de entender alguns fragmentos. Como o que foi escrito na pgina que inicia este captulo (2. SOBRE O NOME E ALEGORIAS): O crculo dos fragmentos. Todos com quem falamos explicam a razo da complexidade dizendo sem hesitar: Isso filosofia. Mas onde est escrito isso? O prprio Roland Barthes nunca afirmou isso de suas obras, pelo menos no assim de forma to nua e crua. O que nos obriga a tomar mais cuidados. Acreditamos que uma possvel prova de defesa deste argumento (maneira alternativa de alcanar filosofia) seja encontrada no Hai -kai. Este poema de origem japonesa tem a ousadia, o talento de dizer muito com o pouco. Isto requer uma breve explicao. A poesia japonesa no conhece a rima nem a versificao com acentos, e seu recurso principal, como na francesa, a medida silbica. Esta limitao no pobreza, pois rica em onomatopeias, aliteraes e jogos de palavras que so tambm combinaes inslitas de som e sentido. (VEROSA, 1995, p.37)
Ele um pequeno poema que fotografa/descreve um momento em apenas trs linhas, tornando assim os relata (fsico ou abstrato / descrito) pequeno diante do muito que poderia ser dito, e ainda assim o tornando grande, pois ao relat -lo pequeno: a/h procura e ao faz-lo, o deslumbramento de seu real tamanho, um Universo numa Casca de Noz se nos permitem parafrasear a obra de Stephen Hawking, para exemplo. Tambm importante lembrar, que o lxico, a palavra: Hai- kai muito comum e fcil de ser encontrada nas obras de Roland Barthes. No estamos querendo aqui dizer que Roland Barthes era um haicasta Mas por que o 37
haicai agora? Sobretudo, pela velha tenacidade de uma certeza barthesiana: o que faz sofrer a linguagem a ideologia (BARTHES, 2002, p. 85), mas que esta ideia que contm o esprito e razo de existir do Hai -kai, influenciou sua Escrita de Fragmento, a ponto de podermos dizer que sim: O Fragmento Barthesiano vai ao encontro do Hai-kai, para que como ele - sua reduo forme ampliao. Mas como o fragmento (o hai-kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) finalmente um gnero retrico, e como a retrica aquela camada da linguagem que melhor se oferece interpretao, acreditando dispersar - me, no fao mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginrio (BARTHES, 1977, p. 103).
Quando a fotografia foi inventada, os mais apresados disseram 6 que a arte de pintar quadros havia chegado ao fim, mas o que de fato ocorreu foi: que a arte de pintar quadros havia chegado a uma definio, a arte de pintar no tinha compromisso, e nunca teve ainda que at servisse para..., de reproduo, ou seja, produzir novamente; sua arte sempre foi una (obra primeira) e, portanto original, nunca uma segunda originada de uma primeira. Se analisarmos alguns elementos do primeiro quadro proposto: A jangada da Medusa, perceberemos claramente que tais posies na jangada foram propostas pelo artista e no retratadas pelo mesmo, ainda que tivesse, e teve, a colaborao direta de sobreviventes: - Construirei sua jangada. Mas espero, Deus o ajude, que nunca encontre aquilo que procura. Disse Lavillette, o marceneiro que estava a bordo da Fragata Medusa e construiu a jangada original (EDGE; 2005, p.114). Com a fotografia, ocorre o que poderamos chamar de um vcio, trazido do compromisso que havia na pintura, e poucos se deram conta da prtica de tal vcio. A mquina serve para retratar o que capta, como estamos falando de um processo qumico que permite queimar tudo ao redor do que est sendo fotografado,
6 Gostaramos de usar a palavra especularam, mas como muita gente observou tamanha foi a certeza deles que no cabe outra aqui. 38
aparentemente sem interferncia humana, deu-se logo muita credibilidade a tal no- interferncia humana, durante o processo de queima do sal de prata pela luz. Mas e quanto interferncia dos relata em si. Ou seja, a relao/cumplicidade de quem fotografa e o que fotografado por intermdio do que ocorre dentro da mquina e fora da mquina. Tecnicamente, a Fotografia est no entrecruzamento de dois processos inteiramente distintos: um de ordem qumica: trata-se da ao da luz sobre certas substncias; outro de ordem fsica: trata-se da imagem atravs de um dispositivo ptico. (BARTHES, 1984, p. 21)
Quem j esqueceu a grande fraude fotogrfica feita por duas meninas (as primas Elsie Wright e Frances Griffith, de Yorkshire, Inglaterra), onde fotografaram fadas no jardim, num domingo de 1917. Durante muito tempo ningum soube explicar o ocorrido. Incansveis testes foram feitos s fotos e cmera e nada havia sido encontrado. Somente no ano de 1983, na edio de maro de Science, o segredo foi revelado: elas, pura e simplesmente, recortaram e prenderam com alfinetes desenhos que Elsie havia feito e os puseram no jardim e ao seu lado. Das duas possibilidades descritas por Barthes os relata escolheram a segunda, o ambiente fsico, o lado de fora, o manipular. Manipular? Se pessoas podem posar ao lado de esttuas, por que meninas no poderiam posar ao lado de fadas?
Ceticismo Aberto Fraudes Fotogrficas
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Infelizmente, como tudo foi encarado como uma guerra a ser vencida, poucos ou quase ningum reparou que este t ipo de trabalho e/ou preocupao: a de mexer no fotografado para deix-lo mais do que , sempre existiu e foi usado na pintura, eis o vcio. E esse mexer no fotografado, essa possibilidade, e o fato de interferncia humana, mais do que levantar a suspeit a da credibilidade da fotografia, a deixa lado a lado com o processo de criao da pintura. As prprias meninas revelaram no terem pressa para revelar o truque, pois a ideia de poder acreditar em algo sobrenatural e puro como uma fada, fazia as pessoas terem esperana no futuro. O quadro A jangada da Medusa com suas posies milimetricamente estudadas, no tinham a funo de fazer as pessoas refletirem sobre os limites que podem ser ultrapassados por um ser humano? Sim. E ele teria conseguido isso com uma reproduo exata de como estavam os sobreviventes, exatamente antes de serem resgatados, como numa fotografia? Acreditamos que no. Ao se mexer, os relata, sempre podemos produzir um algo mais. Ento, com base nesse raciocnio, muitos podero dizer: h perdas no fotojornalismo, mas felizmente, nem sempre h perdas; felizmente, h aqueles que sem manipular o sujeito com seus insuportveis: Fica ali, Mais pra direita, Levanta mais a cabea, e outros comandos artificiais que tem por objetivo: um pouco que jamais se tornar um muito, por mais que nos esforcemos. H aqueles que conseguem, eles mesmos, graas a um olhar de artista e no de reprter, produzir arte suficiente em sua fria mensagem relatante, a deixando quente: o fotgrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provvel ou mesmo do possvel; em ltima instncia, deve se tornar surpreendente (BARTHES, 1984, p. 56).
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Olhares.com - Fotojornalismo
Menino ganhando a vida como acrobata nas ruas do Rio de Janeiro. 7
E nesse algo mais que iremos dedicar nossos esforos. Tudo isso para dizer que o atravessar de estilos algo comum na arte e, infelizmente, ignorado e/ou desmerecido. quase coisa para se dizer: isso um preconceito! publico o apelo dos estudiosos, quando dizem que a miscigenao melhora as raas. E o mesmo no pode acontecer com a arte?
Thomas Moran William Henry Jackson Crystal Falls, 1871 Crystal Falls, Crystal Creek, 1871 27.9 x 20.6 cm (11 x 8 1/8 in) Yellowstone NP, YELL 50364 Yellowstone NP, YELL 8541
7 Disponvel em: http://www.olhares.com/galerias/?id=20, autor desconhecido. Acesso em 22/06/2006. 41
Yellowstone, o primeiro parque nacional do mundo, no foi criado graas ao encontro das fotografias de William Jackson, que deu credibilidade , com as pinturas de Thomas Moran, que deu beleza? E o mesmo no pode acontecer com a filosofia, que est a busca de uma gramaticalidade que a entenda e/ou descreva, desde o tempo dos gregos? A sutileza o elo mestre que une tudo que foi dito at agora. O Fragmento Barthesiano o filho ilegtimo de um pai filsofo e uma me poeta, onde o filho nasceu com a cara da me, visto sua forma, mas com os olhos do pai, visto que os olhos so a janela da alma.
Peguem um objeto usual: no o seu estado novo, virgem, que melhor d conta da sua essncia; antes o seu estado curvado, um pouco usado, um pouco sujo, um pouco abandonado; no dejecto que se l a verdade das coisas. (BARTHES, 1984, p. 155)
Como no somos peritos em filosofia, no somos peritos em poesia, no somos peritos em gramtica, e, como j foi dito: o prprio Roland Barthes nunca se declarou, nem titulou suas obras; a nica maneira de haver uma tese situando seu cerne na palavra sutileza. Ela o significado do significante: Fragmento. Mas no de forma denotativa, se fosse para ser apenas assim, outras poderiam ser empregadas como: resumo, mini-texto, recado, trechinho e outras formas curtas de escrita. Mas no, ela entrar aqui como significado do esquema da Metalinguagem, pois ela no ser tratada aqui como uma denotao de tamanho menor, mas uma denotao de cunho maior. Ela ser o espculo que transforma o macro em mundo. a semiologia da Fotografia est, portanto, limitada aos desempenhos admirveis de alguns retratistas (BARTHES, 1984, p. 62).
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3. PROCURANDO A PALAVRA FRAGMENTO EM CMARA CLARA
A palavra fragmento no foi encontrada no livro A Cmara clara: nota sobre a fotografia (BARTHES, 1984). No estamos desapontados ou infelizes por isso, e tampouco nos consideramos fracassados em provar que graas a este lxico, na obra de Roland Barthes, possvel entender e produzir Literatura: isto porque Barthes usa a palavra fragmento como caminho, instrumento, para algo; sempre o algo era a razo de existir, de usar a palavra fragmento. Prova disso Roland Barthes por Roland Barthes (1977) das pginas 101 a 103, onde encontramos textos especficos falando da palavra fragmento e ainda assim no exatamente a ela que eles remetem. Palavra incompleta, coringa do baralho... Para que serve uma mo cheia de coringas sem ter sequncias incompletas para serem preenchidas por eles? E por isso devemos considerar nossa pesquisa incua? De jeito nenhum, j diz um velho ditado popular: para ver melhor precisamos dos olhos de outros. Roland Barthes, provavelmente, nunca pensou que um dia algum escreveria uma tese de doutorado sobre a palavra fragmento em suas obras, que ele tanto usou como quem usa um improviso que resolve, uma carta que ignorando o naipe serve, uma palavra-seta que aponta para um texto- valise inspirado em Carroll. Ento por que no esperar que em algum livro (ou texto) tal palavra no apareceria? Substncia, senhoras e senhores, no forma. Prossigamos: A lngua simblica a qual pertencem s obras literrias por estrutura uma lngua plural, cujo cdigo feito de tal sorte que toda palavra (toda obra) por ele engendrada tem sentido mltiplos. (BARTHES. 1982, p. 214) Tambm no vem ao caso lembrar que a proposta deste livro, em particular, a Fotografia e no a Literatura. Comecemos a analisar o livro em questo pela seguinte afirmao de Barthes: A fotografia pertence a essa classe de objetos folheados cujas duas folhas no podem ser separadas sem destru-los (BARTHES, 1984, p. 15). Ora, mas isso o que Saussure afirmava sobre o signo: definido como a unio de um significante e um significado ( maneira de 43
anverso e verso de uma folha de papel) (BARTHES, 1993, p.42) ou em J. Teixeira: Deve-se observar que no h signo sem significado, do mesmo modo como uma moeda no pode deixar de ter cara e coroa (NETTO, 2003, p. 20); Charles Sanders Peirce (1839-1914) definiu o signo como um signo ou representamen, tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, est para algum em lugar de algo (NTH, 2008, p.65) e identificou dez principais classes de signos vindo de combinaes possveis (algumas no so possveis de serem feitas, por isso dez ao invs de vinte e sete) de trs tricotomias sendo o relacionamento do signo com o objeto: cone, ndice e smbolo os mais conhecidos. E ainda com Peirce considerou o cone como o melhor representante de seu objeto Ao contemplar uma pintura, h um momento em que perdemos a conscincia do fato de que ela no a coisa. (Peirce Apud NTH, 2008, p.78). E como exemplo incluiu a pintura, o desenho, e a fotografia. O que Roland Barthes quer com esse pensamento usar a teoria lingustica como fonte terica para melhor entendermos a fotografia. Algo que muito bem-vindo, embora conhecer a teoria no nos torne melhores jogadores; o prprio Roland Barthes no incio do livro vai dizer: no sou fotgrafo, sequer amador (BARTHES, 1984, p. 20), mas perto do fim dir: O que Marey e Muybridge fizeram, como operators, quero fazer como spectator: decomponho, amplio e, se podemos diz-lo: ralento, para ter tempo de enfim saber. (BARTHES, 1984, p. 148) Ou seja, ele vai usar o que sabe mais (semiologia) para tentar entender o que sabe menos (Fotografia), tentar ser to bom na teoria quanto os fotgrafos foram bons na prtica. Para ns a Fotografia algo que pendula do funcional (foto 3x4) ao artstico (Alain Fleisher, Alfred Stieglitz e muitos outros) 1 e assim como Dante Alighieri (1265 1321) disse Longo e rduo o caminho que conduz do inferno luz e Chico Xavier (1910 - 2002) disse A alma do animal est na busca da do homem como a alma do homem est na busca da dos
1 Recomendamos uma visita ao site MASTERS OF PHOTOGRAPHY para obter um melhor entendimento sobre esses fotgrafos-artistas e suas maravilhosas obras. A histria e a contemporaneidade lhes devem tributo. Disponvel em: http://www.masters-of-photography.com/T/talbot/talbot_flowers_leaves_stem.html 44
santos (trecho do filme Chico Xavier, 2010) no difcil perceber que h nas fotos uma espcie de busca ou evoluo; falamos das fotos que esto no meio do caminho deste movimento pendular da fotografia: fotos funcionais que podem ser, ou consideradas, artsticas como o que ocorre no fotojornalismo e fotos artsticas que podem ser, ou consideradas, funcionais quando usadas para vender algo como o que ocorre na publicidade: a Fotografia uma arte pouco segura (BARTHES, 1984, p. 32). Tambm existir sempre uma individualidade, algo s nosso, algo que s ns poderemos explicar na hora de classificar uma foto Pela marca de alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um satori, a passagem de um vazio (pouco importa que o referente seja irrisrio) (BARTHES, 1984, p. 77); Barthes fala por vrias pginas (101 a 110) sobre a Foto do Jardim de Inverno (sua me criana) para no fim de tantas observaes declarar: No posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno (Idem, p. 110), prova de sua dificuldade em classificar, digo: at possvel classific-la sim, o difcil convencer os outros do porqu de termos classificado deste ou daquele jeito. Por isso Barthes diz: Isso aproxima a Fotografia (certas fotografias) do Haiku. Pois a notao de um haikai tambm indesenvolvvel (BARTHES, 1984, p. 78). Longo o caminho e fcil se perder nele: no saber onde comea uma classificao e onde termina. Por isso, na falta de um Virglio que guiou Dante e um Emmanuel que guiou Chico Xavier, dissemos que a teoria lingustica, escolhida por Barthes, era bem-vinda. Nela, o classificvel (suas possibilidades e quais: nome de onde comea, nome dos nveis intermedirios e nome de onde termina) se torna lugar comum, tabuleiro com peas, regras bem definidas, em suma: usar as ferramentas que j existem dignidade de uma lngua (BARTHES, 1984, p. 16) como ponto de partida para termos com o qu trabalhar. E repetindo: no estamos falando de algo inclassificvel, mas de algo que ao ser classificado no casa com a opinio dos outros (polissemia); desenvolvvel sim, consenso no. 45
E por falar em discordncia: foi ele (Barthes) quem sugeriu uma correo em Saussure: A Lingustica no uma parte, mesmo privilegiada, da cincia geral dos signos: a Semiologia que parte da Lingustica (BARTHES,1993, p.13), devido a sua vital utilidade, e se vital, por que no dizer importncia? Ora, ento ele est certo, que se inverta a ordem por justia. Com base em tais teorias, nos faz refletir: ser a fotografia um signo seguro? privadas de um princpio de marcao, as fotos so signos que no prosperam bem, que coalham, como leite. (BARTHES, 1984, p. 16). Pensem em um fotgrafo que por descuido disparou a mquina fotogrfica sem enquadramento, sem foco, sem inteno, puro acidente e ao revelar encontrou algo amorfo sem qualquer sentido, algo que faria qualquer um dizer: Perdeu-se! Isto porque uma foto, como um signo, no pode ter seu significante separado de seu significado, todo significante tem significao, ou seja: potencial de significar e no momento em que conseguimos apreender seu significado temos o signo completo. No caso da fotografia, por seu carter polivalente, sua significao se torna mais desafiante, pois seu significante fotogrfico (BARTHES, 1984, p. 17) variado, no convencionado, nas lnguas juntam-se os fonemas (limitados) e formam-se as palavras que, devido dupla articulao (morfemas e fonemas), fazem um nmero quase infinito de associaes. Nas fotografias, logo de incio no temos alfabeto para padronizar o que quer que seja, tudo serve de escrita e assim como na lngua uma palavra pode ser decomposta/fragmentada em, por exemplo: radical, vogal temtica, morfemas de modo, tempo, nmero pessoal. Uma fotografia pode ser analisada/entendida por esse mesmo mtodo de repartio/fragmentao. Enquanto na lngua, porm, esses morfemas partidos so fixos e conhecidos, na fotografia eles so variados e desconhecidos. ela gostaria, talvez, de se fazer to gorda, to nobre quanto um signo, o que lhe permitiria ter acesso dignidade de uma lngua (idem, p.16). Por isso no 46
raro so os casos em que o entendimento no alcanado, fazendo a pessoa desatenta dizer: Perdeu-se! ao invs de dizer: Sensacional!. Observem esta foto: 2
Shadowstreet
A princpio, constatamos sua posio invertida, mas se dissermos que assim que o fotgrafo a mostra (observem o ttulo), o que diriam? Reparem, com esta proposta de inverso do significante alcana-se uma inverso do significado: as sombras, que so indcios (segundo Pierce) de que h sol e pessoas bloqueando o sol, tomam o lugar das pessoas e as pessoas se tornam sombras das suas sombras. A fotografia inclassificvel porque no h qualquer razo para marcar tal ou tal de suas ocorrncias (BARTHES, 1984, p. 16). Mas apesar de no ter, de incio, um alfabeto tem em princpio uma limitao: tudo o que ela mostra existe e reconhecido, assim como num alfabeto. Uma pessoa que faa cara de raiva ter sua expresso reconhecida seja ela de que raa for, de que idade for, de que tamanho for. Cenrios belos, horrveis, neutros (fundo branco) sero igualmente reconhecidos. Esse o carter superficial da fotografia, o que a faz coalhar metfora utilizada para apontar exatamente isso: a sua superfcie. E por sua superfcie - considerada muito mais como apenas um dos dois elementos: significante, cuja unio deste com o significado resulta em signo pode-se dizer, pois, somente que a substncia do significante sempre material (sons, objetos, imagens) (BARTHES, 1993, p. 50); visto que a chamada imagem escrita pelos prprios relata (fotgrafo fotografado) em questo Parece que em
2 Esta foto (Shadowstreet) pertence Galeria de Erathic Eric. Disponvel em: http://www.flickr.com/photos/invad3r/481858198/ e acessado em 19/04/2008. 47
latim fotografia se diria: imago lucis opera expressa; ou seja: imagem revelada, tirada, subida, espremida (como o suco de um limo) por ao da luz (BARTHES, 1984, p. 121), ou seja (no h foto sem alguma coisa ou algum) (Idem, 1984, p. 16), este em parte bloquear uma parte da luz e refletir uma outra, o sal de prata existente no interior de uma cmara escura receber um instante de luz e sombras provocadas por este alguma coisa ou algum e da sensibilidade do sal de prata a este conjunto nascer a fotografia. Ento podemos dizer que a fotografia uma forma de escrita onde o fotografado a caneta, a luz a tinta desta caneta, o papel fotogrfico o papel especfico que tem condies de receber tal escrita de um fotgrafo. Por haver sempre a necessidade de uma caneta para que haja escrita, a foto se tornou um instrumento a servio da verdade, uma verdade coalhada como j disse Barthes A Fotografia sempre apenas um canto alternado de Olhem, Eis aqui; ela aponta com o dedo um certo vis--vis e no pode sair dessa pura linguagem dictica (BARTHES, 1984, p. 14). Isto para os que no so iniciados em tal arte (ou pesquisa). No tocaremos, agora, na questo da participao e/ou influncia do fotgrafo no papel desta escrita, optando em ficar, no momento, apenas com: a arte recupera a sua prpria contestao e faz dela uma nova arte (idem, 1984, p. 168). A fotografia reputada como uma arte exacta, emprica, totalmente dedicada ao servio dos fortes valores positivos, racionais que no so a autenticidade, a realidade, a objectividade: no nosso universo policial, no a fotografia a prova invencvel das identidades, dos fatos, dos crimes? (BARTHES, 1984, p. 167)
Quando Barthes fala em coalhar, est se referindo ao carter superficial do significante fotogrfico Posso apenas varr-la com o olhar, como uma superfcie imvel (BARTHES, 1984, p. 156). Percebeu que haveria uma perda de informao se olhssemos para uma foto e s vssemos isso: um signo icnico interpretado apenas pela teoria do signo lingustico. Resolveu ir alm. 48
Podemos considerar a fotografia como um fragmento de instante congelado para sempre, sendo este para sempre proporcional a resistncia do papel onde foi revelado ...essa foto que amarelece, empalidece, apaga-se e um dia ser jogada no lixo (BARTHES, 1984, p. 140), um clssico Que no seja eterno posto que chama, mas que seja infinito enquanto dure do Vinicius de Moraes (MOISS, 2004, p. 282), que Roland Barthes deixa bem claro em sua obra, assim como em outras, a questo da histria (enquanto tempo, se nos perdoam a redundncia); a questo das mudanas ocorridas ao longo do tempo nos faz perguntar como Roland Barthes nunca escreveu um ensaio sobre Cronos e seu apetite devorador. Em estudos sobre a Fotografia existem autores como Susan Sontag com Sobre fotografia (2007) e Vilm Flusser com Filosofia da Caixa Preta (2002) que estudaram com mais afinco o binmio: velocidade-tempo. Por Barthes no se alongar muito em tal binmio, mais melanclico Para mim, a Histria isso, o tempo em que minha me viveu antes de mim (alis, essa poca que mais me interessa, historicamente) (BARTHES, 1984, p. 98) a que tcnico como fizeram os autores que sugerimos: Na obra de Sanders, todos esto devidamente situados, ningum est perdido ou desconcentrado. [...] Sanders no sabia que fotografava um mundo em via de desaparecer. Vroman sabia (sobre os ndios americanos). Tambm sabia no haver salvao para o mundo que registrava. (SONTAG, 2004, p. 76 e 77)
Os aparelhos foram inventados para emancipar o homem da necessidade do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho fotogrfico produz imagens automaticamente e o homem no mais precisa movimentar pincis esforando-se para vencer a resistncia do mundo objetivo. (FLUSSER, 2002, p. 67)
Resolvemos, como Barthes: nosso autor principal, no nos alongarmos tambm neste subtema, recomendando apenas a leitura dos autores propostos, no que eles tenham escrito propositalmente sobre, mas por terem escrito proporcionalmente mais: se prossegussemos com o estudo deste binmio (velocidade-tempo): ganharia a pesquisa sobre fotografia, mas perderia a tese sobre Barthes, numa proporo de dois para ele contra quatro de Sontag e quatro de Flusser (sem incluir outros). E se fossemos falar sobre tal binmio no seguiramos 49
o caminho proposto por nenhum deles; comearamos descrevendo o que existe hoje de mais moderno: cmeras capazes de capturar o momento exato em que uma bala (munio) atravessa/atinge um objeto ou as asas de um beija-flor batendo em pleno voo - e a praticidade de tirar uma foto com um aparelho de celular e imediatamente mand-la para uma caixa de correio eletrnico (E-mail) e dela para o mundo (o que os remanescentes da Guerra Fria estaro pensando agora?). Estaramos, inicialmente, mais preocupados em produzir um texto tcnico (novas tecnologias), mas sem ser tecnicista: como o que vemos no programa Olhar digital (RedeTV, todos os domingos s 15:45), para s depois podermos comear a filosofar sobre os efeitos disso no Sujeito. Pois acreditamos no ser possvel falar de consequncias (Sujeito que faz, envia, recebe e reage) antes de se falar das causas, na verdade os meios (o que existe hoje para o Sujeito fazer, enviar, receber, distribuir e redistribuir). O que foi escrito na aurora da fotografia (registro histrico) tem utilidade hoje, mas pela evoluo do binmio velocidade-tempo, e por acrscimo: acesso fcil em ter e fazer, praticidade em distribuir (o que seu) e redistribuir (o que voc recebeu e de terceiros), acreditamos que tais escritos precisam continuar, ser atualizados. Susan Sontag, em Sobre fotografia (2004), narra um filme: The cameraman, onde um inapto e sonhador Buster Keaton sempre atrapalhado com a cmera nunca consegue uma imagem descente, mas no fim consegue: seu macaquinho de estimao opera a cmera por descuido e capta (um furo fotogrfico de uma guerra de quadrilhas no bairro de Chinatown em Nova York) (SONTAG, 2004, p. 68). E dito isso agora pensem: h milhares de celulares com cmeras nas ruas, esto sendo usadas, captando, divulgando via jornalismo e Internet, e, proporcionalmente, poucos esto escrevendo sobre tal fenmeno: o que est sendo feito com o que existe hoje. E voltando a falar da tese (O fragmento barthesiano) e de um livro escrito originalmente em 1980: mais uma vez reafirmamos no ter encontrado a palavra fragmento nesta obra, mas o que podemos aprender com ela (a obra, esta obra: A Cmara clara: nota 50
sobre a fotografia) a respeito de seu carter fragmentrio, sendo este fragmentrio entendido desde o assunto em si: a fotografia como fragmento de um instante; e como organizao, visto que apesar de possuir uma linearidade, no deixa de ser uma obra escrita por (ou a partir de) fragmentos. Alm do fato de ela mesma ser um fragmento de obra destacada de uma bibliografia; bibliografia esta que tambm se dedicou ao cinema, comerciais, teatro, revista de moda e outros meios de comunicao que cercam nossa vida. Nunca o homem esteve to exposto a estmulos: Eros e Tnatos provocados ao limite, e como resultado disso o superego joga a toalha. Por isso gostaramos de descrever alguns pontos mais relevantes, sem necessariamente fazer uma analogia (comparao) com o texto escrito (Literatura), Barthes no o fez, diretamente nesta obra, e no seremos ns a fazer; sob pena de nos afastarmos ainda mais da proposta inicial (e lembramos): procurar a palavra fragmento e a partir dela entender e produzir Literatura. Sendo esta Literatura entendida aqui como um jogo de troca, um jogo feito com fragmentos. E porque a literatura, em particular, uma adivinhao que ela ao mesmo tempo inteligvel e interrogante, falante e silenciosa, engajada no mundo pelo caminho do sentido que ele refaz, mas liberada dos sentidos contingentes que o mundo elabora: respostas quilo que a consome e, no entanto, sempre pergunta natureza, resposta que interroga e pergunta que responde. (BARTHES, 1982, p. 55)
E conforme formos pinando alguns tpicos (os mais relevantes), analogias sero feitas quase que instantaneamente (mais do que j foi feito at agora); vejamos: A questo do Operator que o fotgrafo e o Spectator que aquele que consome e/ou fotografado. Impossvel no ver nisso o binmio escritor/leitor, aquele que escreve e aquele que consome; se aplicarmos aqui a proposta de A morte do autor ou simplesmente convidar o leitor (Spectator) a se por no lugar do escritor (Operator), como fazer isto sem se libertar do carter superficial? Por que algum ficaria melhor se levantasse mais a cabea ou ficasse um pouco mais para a esquerda? por este dilogo comum existente no bsico da fotografia que 51
convidamos o leitor (Spectator) a se aprofundar num domnio que era exclusivo, segundo a crtica, dos escritores (Operator). E no era assim que os filsofos gregos faziam, do discurso bsico (senso comum) para o aprofundamento, o questionamento do que , hoje, conhecido como verdade? Entendemos que esta proposta de Barthes (Operator/Spectator) causa uma separao no com o objetivo de criar um novo produzir, mas entender melhor o que foi produzido e consumido. A cmara obscura (mquina fotogrfica) como instrumento de transio e/ou deslocamento da realidade para um papel, algo tridimensional para o bidimensional; a reao qumica do sal de prata e os caracteres grficos no papel, como proposta de reproduo do que se v, sendo que no caso dos quadros ou da escrita o objeto almejado pode no estar necessariamente presente, mas no caso da fotografia (no h foto sem alguma coisa ou algum) (BARTHES, 1984, p. 16) ou Chamo de referente fotogrfico, no a coisa facultativamente real a que uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual no haveria fotografia. Enquanto a pintura pode simular a realidade sem t-la visto. (Idem; pgs. 114 e 115) Tanto fotografia quanto pintura precisam de Operator: A vidncia do Fotgrafo no consiste em ver, mas em estar l (Idem, Ibidem; pg. 76). Portanto, podemos dizer que a fotografia une necessariamente o observador e o observado Assim, mais vale dizer que o trao inimitvel da fotografia (seu noema) que algum viu o referente (mesmo que se trate de objetos) em carne e osso, ou ainda em pessoa (Idem, Ibidem; pg. 118). Ao passo que na pintura o observado pode ser apenas interno, na mente do observador, exteriorizando no quadro o que ou deveria ser o retratado. Mas como j vimos em uma foto propositalmente invertida, nem sempre, na fotografia, algo que precisa continuar sendo. Na fotografia o que est na mente 52
tambm pode ser exteriorizado, por outros meios ou por outras pessoas; proposital ou acidental. A respeito da fotografia em si, o Spectrum, Barthes chama a ateno para determinados detalhes (proposital ou acidental) que quase nos escapam, quase, pois assim que so notados... O espanto! muitas dessas fotos me prendiam porque comportavam essa espcie de dualidade que eu acabava de detectar (Idem, Ibidem, pg. 40). Resolveu chamar de Studium a esse varrer com o olho, um estudo assumidamente superficial que no quer dizer, pelo menos de imediato, estudo, mas a aplicao a uma coisa, o gosto por algum, uma espcie de investimento geral, ardoroso, verdade, mas sem acuidade particular (Idem, Ibidem; pg. 45). E de punctum aquele que vem quebrar a harmonia, ele no colocado, visto que j est l (alis, sempre esteve l), ns que o descobrimos.
Dessa vez, no sou eu que vou busc-lo (como invisto com minha conscincia soberana o campo do Studium), ele que parte da cena, como uma flecha, e vem transpassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete tambm ideia de pontuao e em que as fotos de que falo so, de fato, como que pontuadas.(BARTHES, 1984, p. 46)
Analisaremos agora duas fotos, que no esto no livro de Barthes, trazidas aqui apenas para pesquisarmos se pode haver Punctum proposital, ou seja, se pode haver inteno do fotgrafo, manipulao, para haver/provocar, digamos um espanto? Isto porque para alcanar nossa proposta estamos dispostos a, e lembramos o escrito na introduo: [...] entrar em outras reas alm da literatura, no de forma mui to abrangente nem conclusiva, antes, de forma exploratria e indagadora. Portanto e m Robert Doisneau, Paris, 1950 temos dois beijos: um Le baiser de LHotel de Ville que apesar de parecer ter sido arrebatado, capturado, foi na verdade encenado. E em Square du Vert-Galant o principal do primeiro vira detalhe no segundo... Ou no?!?! 53
Le Baiser de l'Hotel de Ville, Square du Vert-Galant
Em Luis Humberto temos o seguinte comentrio: Se temos o intuito de, pelo uso ordenado de uma linguagem, passar s pessoas o resultado de nossas descobertas e invenes, devemos conceder-lhes a possibilidade de se defrontarem com surpresa e dar-lhes o direito de fazerem, elas prprias, suas redescobertas. Isso pode ser conseguido no explicitando demasiadamente o contedo, mantendo-o deliberadamente oculto, permitindo apenas frestas que animem a curiosidade e o gosto pela procura de um sentido no imediatamente percebido, como se deixssemos alguns cantos escuros, s entendidos quando a vista se acostuma. necessrio confiar aos destinatrios a interpretao do no expresso. (HUMBERTO, 1983, p. 89. Grifo nosso)
Uma rpida olhada e a segunda foto s seria um guarda a conversar com uma senhora enquanto uma criana olha para o outro lado. Provavelmente a foto em questo no chamaria a ateno de Barthes, pois Certos detalhes poderiam me ferir. Se no o fazem sem dvida porque foram colocados l intencionalmente. (BARTHES, 1984, p. 75). Talvez Doisneau tenha tido a inteno, nesta segunda foto, de criar uma espcie de canto escuro de Luis Humberto ou campo cego de Barthes para surpreender o espectador. Mas qual fotgrafo pode garantir o sucesso de um Punctum intencional, visto que tal resultado no est mais nas mos dele. Em verdade todos ns tentamos algo assim, tentamos criar um diferencial, caso contrrio o que seria um melhor ngulo, para que posar para uma foto? Mas o Punctum de que Roland Barthes fala no se enquadra nessas tentativas, algo que muitas vezes est alm do prprio resultado que o fotgrafo quer alcanar. Vejamos esta foto: 54
A Navy Corpsman of the First Hospital Company assists a wounded Republic of Korea Marine. Photo taken in 1967. Chu Lai, Republic of Vietnam. 3
Quem, com toda a honestidade do mundo, reparou que este soldado ferido (Spectrum) na foto (Studium) perdeu as duas pernas (Punctum)? Se esta foto conseguiu pegar voc (Spectator), pense agora no seguinte: ao no se centralizar a amputao criou-se um canto escuro para desvelamento. Talvez o fotgrafo (Operator) tenha pensado nisso, mas talvez ele tenha apenas batido uma foto (hiptese mais provvel) e como sabedor do que fotografou, no achou escondido uma amputao com bandagem branca em um lenol branco em uma foto preto e branco em um canto inferior direito, que sobre um papel branco sem margens na foto a fez praticamente desaparecer. Isto tudo para dizer que um Punctum pode at mesmo, sem a inteno do fotgrafo, acontecer. Em resumo, A morte do autor ocorre mais facilmente na fotografia, no que os autores da fotografia no sejam importantes (e em alguns casos menos conhecidos), que na fotografia h sempre aquela preocupao que sempre deveria existir nos textos: um desafio claro para a interpretao: admirar o Studium do texto sem deixar de procurar o Punctum que seguramente h neles. Na fotografia, devido falta de um alfabeto que reduziria os significantes a um nmero bem menor, o desafio de entender, de conseguir ler, se torna mais assumido; bem verdade que com as letras podemos formar as palavras como em carro e com o Alfabeto Fontico Universal (AFI) o seu som ['kau], mas com a foto de um no temos
3 Nota: esta foto no pertence obra em estudo. uma iniciativa nossa de reforar e/ou trazer novos exemplos. Disponvel em: THE VIETNAM WAR PHOTO ALBUN, http://www.geocities.com/~nam_album/ Acessado em 19/04/2008. 55
um simples entendimento do que estamos vendo, h toda uma contaminao, um sobrepor de informaes que vai - e muito - alm do que as palavras conseguem fazer, no importando a fonte usada e seu tamanho, pois esses mtodos de ampliar o significado enfeitando o significante at surtem algum efeito, por isso utilizados, mas no disso que estamos falando; na foto de um carro inseparvel o cho onde ele est, a cor, marca, ano... Informaes que j so natas no momento em que vemos (como Kertsk poderia ter separado o cho do rabequista que sobre ele anda? (BARTHES, 1984, p. 76, foto na p. 74) e que no caso da escrita s podem existir transmutando o significante a um nvel artstico o deixando/tentando paralelo com o caso do desenho ou da fotografia por extenso pictrica; um bom exemplo do que estamos querendo dizer pode ser encontrado nos caligramas. pelo excesso de informaes, por assim dizer, que possvel transformar certezas em outras certezas. Por exemplo, onde est o carro neste anuncio 4 (2009) de exposies de carros?
Por isso na fotografia o leitor no se torna, se considera to inocente (passivo), participa do jogo: o jogo do desvelamento, para com ele no s entender, mas usufruir do que entendeu: Um vendedor veste um manequim na vitrine, uma cliente olha, convidada a entrar, mas ela agradece e vai embora, o que ela queria no era comprar era to somente apenas pegar a ideia para em casa montar algo igual com o que j tem e continuar na moda.
4 Disponvel em <http://contagiros.wordpress.com/2009/06/18/lancamento-do-poster-oficial-do-salao-de- frankfurt-2009-na-alemanha/>. E nome do Designer: Ademilson - Mek Disponvel em : http://brainbox.labin.pro.br/?p=480. Ambos acessados em 20/11/2009. 56
Agora uma questo: o esconder pode ser entendido/considerado como significao? Primeiramente necessrio lembrar que em muitos livros de semiologia a significao aparece como uma seta desenhada/representada acima dos: significante (Se) e significado (So) em direo (e que resultam) ao signo A significao pode ser concebida como um processo; o ato que une o significante e o significado, ato cujo produto o signo (BARTHES, 1993, p. 51) e dito assim parece simples: trata-se de falar e ser entendido, caso contrrio quem no entendeu tal palavra sabe que ela tem uma significao e ao ir ao dicionrio e saber seu significado, ento tal palavra passa a ser entendida como signo pleno. Mas como algo que est escondido pode comunicar? Resposta: somente quando for descoberto, tal descoberta alterar o primeiro significado. Mas essa descoberta, quando feita, desencadeia nossa proposta: a partir da escolha de um fragmento, ver o todo, sobre a tica deste fragmento. Ele ser um significante menor que alterar o significante maior (fragmento alterando o todo), como ocorre com a dupla articulao seja por morfema ou fonema temos uma alterao, nova palavra, conduzindo a significao para outro significado, diferente do primeiro. Gabarito mental em pleno funcionamento. Mas existe tambm a questo do valor. A significao tampouco pode ser confundida com o valor do signo embora, como reconhece Saussure, seja difcil saber como este se distingue daquele. (NETTO, 2003, p. 23). Mas para o que queremos este valor vai ser tratado aqui de forma individual, ou seja: valor para mim. Barthes quer entender o eu gostaria de saber o que, nessa foto, me d o estalo (BARTHES, 1984, p. 36) algo que pode existir com ou sem a inteno de quem a produziu. Se inicialmente temos uma inteno de comunicar e para tal mexe-se com a forma do significante para influenciar o significado: um esforo de promoo social para enfeitar-se com os atributos do Branco (esforo comovente, na medida em que ingnuo). (BARTHES, 1984, p. 71). Com o Punctum j no nos interessa o significante inteiro e menos ainda o que esta l de propsito, mas somente as partes que descubro, que realmente me punge e como cada parte escolhida e retirada mentalmente vai 57
ter, e tem, seu significado, o processo de significao que leva cada pequeno pedao a significar a si mesmo, pode modificar o significante principal a ponto de seu significado original ficar completamente modificado. Algo escondido no o mesmo que algo que no existe. Ele (o escondido) est l, sempre esteve. Dessa vez, no sou eu que vou busc-lo (como invisto com minha conscincia soberana o campo do Studium), ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. (BARTHES, 1984, p. 46). Portanto, num primeiro momento temos um signo (signo icnico), que sempre foi o mesmo, que cumpriu seu papel de mostrar, e o entendemos (signo pleno). Depois que passamos a fase do Posso apenas varr-lo com o olhar, como uma superfcie imvel (BARTHES, 1984, p. 156) percebemos que algo nele, um fragmento do todo (forma do significante), nos chama a ateno; um fragmento que pode ter sido colocado l intencionalmente pelo Operator ou no, isto est alm da capacidade dele, no depende s dele. Quando Roland Barthes descreve o que chamou sua ateno, num primeiro olhar, em uma foto: de James Van der Zee: Retrato de famlia, 1926 (Idem;1984, p. 70) somente em muitas pginas seguintes ele se d conta de um detalhe que lhe fugira antes No entanto, a partir do momento em que h Punctum, cria-se (adivinha-se) um campo cego: por causa de seu colar, a negra endomingada teve, para mim, toda uma vida exterior a seu retrato (Idem, Ibidem; p. 86 Grifo nosso). Ou seja, o colar no foi o motivo da foto, o Operator teve uma inteno, montou um cenrio, mas o que lhe chama a ateno a composio cnica e no os atores ou a pea em si. No que eles no tenham valor, mas para sair da superfcie eles devem ceder o valor. O Punctum (ou pungente) sempre pessoal: para mim, e dezesseis pginas depois, da pgina 70 (onde apontou alguns: a larga cintura, braos cruzados para trs das costas, e claro seus sapatos) para a 86, aquele fantasma (Spectrum) da negra endomingada ainda o incomodava. 58
Como j havamos dito, as palavras podem ser decompostas em unidades menores. Parece ser mais fcil trabalhar com signos mais conhecidos, mais seguros, mas mesmo com eles podemos ter surpresas. Vejamos o curioso caso do filme Amistad (Steven Spielberg; 1997) onde encontramos um dilogo no mnimo pitoresco: o advogado Baldwin (Matthew Mc Conaughey) tentava explicar por intermdio de um tradutor que ele pretendia, queria, gostaria de libertar seus clientes e num dado momento pergunta ao tradutor por que ele no estava traduzindo, perguntou se no existiam essas palavras na lngua dos escravos africanos que estavam sendo julgados e este respondeu que o problema no estava nas palavras, mas no tempo verbal (futuro do pretrito), pois na lngua deles, na verdade, cultura, sempre que algum diz que vai fazer, faz, portanto, o futuro do pretrito no existia. Ao refletir sobre esse curioso caso que envolve essa peculiaridade do futuro do pretrito, comeamos a pesquisar. O tempo verbal em portugus est dividido em trs: presente, o passado subdividido em trs que correspondem ordem de afastamento: pretrito perfeito, passado recente; pretrito imperfeito, passado mais distante; pretrito mais-que-perfeito, passado mais distante ainda. Mas o futuro no est subdividido em trs como o pretrito e por ordem de afastamento; ele dividido entre o que se ir fazer e a possibilidade de no se realizar o que se iria fazer, pois quando realizado responde-se no presente ainda que j tenha se realizado h algum tempo. Por isso este tempo to ingrato por assim dizer. Dificilmente algum fica bem usando o futuro do pretrito. Comeamos ento a investigar. Se ele aponta para uma impossibilidade de sucesso, por qualquer razo que seja, tentamos usar a lgica da matemtica que tambm funciona em portugus: um nmero negativo vezes outro nmero negativo igual a um positivo, ento tentamos: Voc no incompetente. funcionou, o advrbio anulou o prefixo de negao, agora vamos tentar outro exemplo com o futuro do pretrito para vermos se o advrbio acaba com a impossibilidade nata deste tempo verbal: A diplomacia no acabaria com a guerra. Constatamos agora que no funcionou, alis, piorou, pois enquanto em A 59
diplomacia acabaria com a guerra haveria uma possibilidade, chance de ela acabar se usada ou quando usada, com o advrbio de negao ela no s ainda no acabou como continuaria mesmo havendo diplomacia. Mas e se usssemos este tempo em verbos que no gostaramos que acontecessem. Vamos tentar: Ele se afogaria sem a boia ento, ele no se afogou. E em Ele morreria de infarto ento no morreu. Finalmente, um jeito de usar o futuro do pretrito sem ficar mal na fita. Parece uma bobagem essa curiosidade sobre um morfema to usado por todas as classes sociais, mas quantos j se atreveram a pensar sobre ele dessa maneira? Estamos levantando essa lebre para dizer: se em algo fixo, pequeno, sabido e estudado como um tempo verbal possvel ter toda uma significao comprometida - imaginem em algo que livre, existente no mundo e arbitrariamente convencionado. Como pode cada parte de uma fotografia, cada fragmento que compem o todo ter o mesmo significado para as pessoas. A resposta : no. Poderamos at notar o colar da negra 5 , mas este colar nela teria para ns o mesmo significado que teve para Barthes?
por isso que o Punctum sempre muito pessoal, nele no existe apenas a possibilidade de existir ou no, tambm sempre vai existir o quanto queremos que ele afunde. Uma espetada que poder ser s de leve: uma negra com colar; uma profunda como um soldado sem as duas pernas colocado propositalmente sem moldura em uma folha branca; e uma mais profunda ainda sobre o futuro do pretrito que pode ser apenas os morfemas RIA e
5 BARTHES, 1984, p. 70. 60
RIE para um estudante do primrio, parte de uma justificativa para quem no cumpriu o prometido ou uma inquietao lingustica para quem percebeu num filme uma situao do dia a dia pouco estudada. A fotografia a pesar de no ser a coisa em si e no ter suas marcaes fixas como na lngua, facilita, e muito, a tarefa de encontrar seu significado. Poucos representantes do significante conseguem fazer o mesmo de forma to rpida e fiel.
O discurso combina signos que certamente tm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes so quimeras. Ao contrrio dessas imitaes, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve l. [...] Os realistas, entre os quais estou, e entre os quais eu j estava quando afirmava que a Fotografia era uma imagem sem cdigo mesmo que, evidentemente, cdigos venham inflitir sua leitura -, no consideram de modo algum a foto como uma cpia do real mas como uma emanao do real passado: uma magia, no uma arte. (BARTHES. 1984, p. 115)
Para haver punctum no texto necessrio que haja pelo menos uma palavra (em nvel de primeira articulao ou at mesmo uma nica letra em nvel de segunda articulao), um fragmento que nos remeta a um instante de revelao. Quem j no passou por uma situao em que uma nica palavra (alterada ou no por uma letra, proposital ou no por uma situao o ato falho como verdade que o superego no conseguiu segurar); talvez esquecida em nosso passado, talvez criada por neologismo por algum mais hbil ou sensvel; j no nos abalou... Apanhados como que por um soco de sbito.
Como a Fotografia contingncia pura e s pode ser isso ( sempre alguma coisa que representada) ao contrrio do texto que, pela ao repentina de uma nica palavra, pode fazer uma frase passar da descrio reflexo -, ela fornece de imediato esses detalhes que constituem o prprio material do saber etnolgico. (BARTHES, 1984, p. 49)
Como a proposta de Barthes fazer uma anlise de um ponto de vista de quem no se assumiu como fotgrafo; nada mais justo que trazer a tona uma inveno (mais uma metfora explicativa) da aurora da fotografia, um instrumento, ironicamente chamado de no- 61
fotogrfico, apesar da histria da fotografia pagar tributo a ela (inveno) e ao seu respectivo inventor. WOLLASTON CAMERA LUCIDA 6
Trazendo para sua obra, este invento, Barthes tenta aproximar os relata de quem os observa (e vice-versa, no mesmo?), tenta dar mais credibilidade ao que relatado, ou se preferirem, tornar o meio de transio do real para o papel menos indireto (reaes qumicas por mos e instrumento para escrever, desenhar ou riscar) e mais puro - ainda que se mantenha a mo do homem a faz-lo, este homem sempre to suspeito, mas ao se tornar limitado/aprisionado a apenas circunda a imagem que ele v, por tal aprisionamento d-se credibilidade. Barthes tenta entender/achar o to falado, excludo, normalizado Sujeito; aquele que citado, puxado por todos os membros pelas cincias; a Histria puxa uma perna, a Sociologia a outra, a Antropologia um brao, a Psicologia o outro e no topo de tudo puxando a cabea at o limite de uma leso a ideologia que nada mais que a ideia enquanto domina (BARTHES, 2002, p. 41), mas domnio de que ou sobre quem... Do outro Sujeito? E ainda assim o Sujeito est l em cada cincia se escrevendo e tentando se entender. Pois o Sujeito em Barthes nada mais que os relata (fotgrafo fotografado, escritor leitor) escrito no singular.
6 Esquema do traado dos raios de luz atravs do prisma de uma cmara lcida: os raios de luz provenientes do objeto atravessam a face semiespelhada, incidem na face espelhada e se refletem novamente na face semiespelhada dirigindo-se aos olhos do observador que v a imagem como se ela estivesse sobre o papel. A imagem virtual, no projetada no papel - s o observador a v. Se algum estiver ao lado do pintor enquanto ele desenha, no ter como saber se ele est desenhando diretamente do objeto ou "copiando" a imagem projetada sobre o papel. 62
A proposta de Barthes entender esse Sujeito que produz Sujeitos reproduzindo-os nos diversos significantes de que dispe; e conforme o significante vai se acasalando com seu significado... Eis o signo; e conforme este e aquele signo se unem... Eis um signo ampliado. E aqui est o desafio de descobrirmos quem somos pelo que produzimos e/ou reproduzimos. No que diz respeito fotografia, Barthes at acredita que possvel isso acontecer, apesar dele prprio admitir que este Sujeito adore posar Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem 7 . Ora, como est escrito no Banquete, de Plato (PLATO, 1979, p. 32) 8 : - Esse ento, como qualquer outro que deseja, deseja o que no est a mo nem consigo, o que no tem, o que no ele prprio e o de que carente. Resumindo: s se deseja o que no se tem, natural que o homem busque ser, mais especificamente na foto, o que acredita ser ou o que quer que acreditem que ele seja. Buscar uma perfeio no doena, acreditar que se possa alcanar tal perfeio que : Abrao foi um s, mas todo judeu tem a obrigao de tentar ser igual; Jesus foi um s, mas todo cristo tem a obrigao de tentar ser igual; Maom foi um s, mas todo islmico tem a obrigao de tentar ser igual, Buda foi um s, mas todo budista tem a obrigao de tentar ser igual; caso contrrio, para que rezar? No que acreditar? Como viver? Agora que provamos que o posar no uma fuga deliberada, um esconder-se, mas uma escolha de viver; no devemos ver nisso um mtodo falho de se ver/encontrar o Sujeito (Homem), mas pelo contrrio, se /h uma escolha e sabemos disso, o erro estaria em esquecer isso: o posar como algo natural; fazer uma anlise da fotografia como uma tautologia onde reside o erro, pois uma verdade decalcada em uma folha, seja por qual instrumento for: cmara clara, cmara escura, lpis, pincel no deixa de ser artstica s por ser
7 BARTHES, 1984, p. 22. 8 Plato (428 ou 7-348 ou 7 A. C.) Dilogos / Plato; seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha; tradues e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores). 63
uma verdade, talvez, em alguns casos, ela consiga ser mais artstica que as prprias produes propositalmente artsticas justamente por serem verdade.
J.F. Diorio, fotojornalista do Estado de So Paulo, virou manchete aps ser premiado pelo World Press Photo 2004, na categoria Notcias Gerais. Diorio, com 14 anos de estrada, foi fotografar um incndio na favela do Buraco Quente, em So Paulo, no ms de agosto de 2004. Entre as trs e sete horas da tarde, ele registrou mais de 200 imagens. Gente desesperada, crianas correndo, barraco pegando fogo, mulher chorando, homens tentando salvar o pouco que possuam, bombeiros cumprindo seu dever. Detalhe: possvel ler na placa, ao centro: VEMDESE UM BARRACO (com M e sem hfen).
Da o fato de alguns artistas repudiarem o fotojornalismo, que ele por demais sinttico, eternamente preso a uma tautologia. Barthes termina seu livro dizendo estar a disposio da sociedade dois meios de se ver a fotografia: o primeiro consiste em fazer da Fotografia uma arte, pois nenhuma arte louca (BARTHES, 1984, p. 172) e o outro meio de tornar a Fotografia sensata generaliz-la, gregariz-la, banaliz-la, a ponto de no haver mais diante dela nenhuma imagem em relao qual ela possa se marcar, afirmar sua especialidade, seu escndalo, sua loucura. (BARTHES, 1984, p.173). 64
At possvel encontrarmos alguma arte no fotojornalismo, mas como sua proposta principal no esta, nos resta apenas a inveja pela oportunidade aproveitada e o lamento de sua raridade 9 .
Parisiense chora, nazistas em Paris. Aps 5 anos de luta. Os nazistas choram. ACABOU!
Aqui pomos uma minifotonovela: fotos que por si s no falariam muito, mas devidamente agrupadas contam uma estria, um resumo da Segunda Guerra Mundial. H livros de foto especializados em fotojornalismo e talvez, por eles existirem, devamos rever nosso comentrio sobre ser rara a proposta de se fazer arte com a verdade (jornalismo), mas como muitos sabem: a proposta de um jornalista primeiro com os fatos e somente depois com uma possibilidade de arte e colocamos a palavra entre aspas, pois ao se buscar ou fabricar uma foto tem-se como objetivo um fazer pensar, mas antes de falarmos sobre este ltimo vamos explicar o que entendemos por buscar e fabricar com um exemplo tripartido: um fotgrafo designado para cobrir a morte de um traficante chega ao local de um crime. Assim que chega d de frente com um corpo cado no cho (o traficante), ele dispara a mquina sobre o Sujeito convertido em Objeto Fotogrfico, vai at a redao do jornal e voil -
9 Disponveis em: 1) Parisiense chorando: sometime around August 25th 1944. Disponvel em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/43_0023a; 2) Homem anotando os anos com giz: Sgt. Edward Hill, Manchester, England, captured five years ago at Dunkerque was freed when American Seventh Armored Division, First Army captured Dulag-Luft POW Camp, ca. 03/29/1945 - Disponvel em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/23_0482a; 3) Mulher fazendo a saudao nazista: disponvel em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/23_0464a; 4) Foto de marinheiro beijando enfermeira na Times Square (Nova Iorque), o momento foi imortalizado pelo fotgrafo Alfred Eisenstaedt (1898 1995) em 14 de Agosto de 1945: Disponvel em: http://www.ww2incolor.com/gallery/black_and_white/5a50764r Acessadas em: 18/04/2007. 65
j est tudo pronto para ir prensa. A este tipo de viso, bem curta por sinal, sugerimos dar o nome de Primoris Visum: trata-se de expresso em latim, criada por ns, que significa Primeira Viso isto para no ofender ningum e ajudar a enumerar o exemplo, na verdade situao, tripartido.
Corpo de um dos traficantes que morreram em operao da Polcia Civil nas favelas da Coreia e Rebu no bairro de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro; 10 traficantes e ao menos um policial morreram durante troca de tiros. 10
Agora imaginemos um segundo fotgrafo, ele vai at o local, v o corpo cado, numa Primoris Visum, depois observa ao redor e de repente - e no mais que de repente - um poste rouba a ateno, e por qu? Porque nele h um inocente cartaz com os seguintes dizeres (s um exemplo): CIGANA DA ESTRADA. ADVINHA-SE O FUTURO. Ora, para um fotgrafo de verdade, se nos perdoam a franqueza, sensibilidade tudo! Perder uma oportunidade de juntar ironia referncia coisa de quem tem viso curta e s serve mesmo para apertar boto, como o macaquinho narrado por Sontag (2004): boa foto s se tiver sorte. Com um pouco de pacincia, busca-se uma posio para que - cartaz e corpo - tenham ambos bons lugares na foto, e no raro so os casos em que o detalhe ganha o lugar mais nobre na foto a que o prprio acontecimento original.
10 De Alexandre Campbell/Folha Imagem. Disponvel em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/i_cotidiano_00001.shtml. Acesso em 19/04/2007. 66
Ps no cho... Autor: RAFAEL BARRETO 11
bem verdade que no sabemos se o corpo em questo era cliente ou no da dita cigana, afinal de contas, pode ser apenas uma coincidncia, uma casualidade; quem pode dizer que o coitado escolheu morrer ali e ainda por cima para o cartaz sair na foto. Mas isso no importa mais, o importante que o trabalho jornalstico foi feito: fotografar o morto e ainda levar de bnus uma provocao ao leitor do jornal, porque esta ironia acrescentada na foto deve ser considerada isso mesmo: uma provocao e no uma dvida atroz sobre fatos concretos, como se a prpria questo fosse: seria ele o (ou um) traficante? Esta dvida, em si, no mais responsabilidade do fotgrafo; os reprteres que corram atrs do fato. A incluso deste cartaz, este Accessorium sequitur principale (o acessrio segue o principal) no tem por objetivo atrapalhar as investigaes ou prestar falso testemunho, antes um fotojornalismo de Attentus Visum (Vista Atenta) e j est pronto e divulgado o nome desta outra forma de fotografar. Talvez, no futuro, alguns fotgrafos (os que lerem este trabalho) a chamem de Secundus Visum (Segunda Vista), mas acharemos isso um grande desperdcio, se realmente acontecer, pois o nome Attentus Visum (Vista Atenta) no s nomeia como tambm j explica a diferena existente, que antes da ordem da ateno uma mera colocao. Agora, vamos a terceira e mais controversa das vises aqui criadas por ns: Animus Simulandi (Inteno de Simular). Um fotgrafo sobe o morro para fotografar um traficante
11 Disponvel em http://br.olhares.com/pes_no_chao_foto1809308.html. Acesso em: 03/08/2008. 67
morto, durante a subida passa por um poste e neste l o cartaz que j descrevemos. At a, nada de mais, ao chegar ao local do crime percebe que h outro poste ao lado do corpo, mas este infelizmente no possui tal cartaz. Antes de fotografar o corpo sente que est perdendo uma oportunidade de ouro. No aceitando sua fraca-sorte, volta at o outro poste, retira o cartaz, vai at o poste do morto e o coloca, procura um ngulo em que seja possvel valorizar ambos e... L vai ele todo satisfeito para a redao do jornal, j ouvindo os Parabns! dos colegas pela sensibilidade demonstrada e oportunidade de fazer o jornal vender mais por ter uma foto diferente da concorrncia. Condenar este tipo de fazer foto condenar quem tenta fazer de uma estria uma arte. Mais uma vez concordamos com quem diz: no prioridade do fotojornalista fazer arte, tais manipulaes atendem a necessidades de uma concorrncia, verdade, mas como se ultrapassa tal concorrncia, com arte? Na verdade, o diferencial que este fictcio fotgrafo do exemplo alcanou o fez sobre a inquietao e no sobre o trgico pura e simplesmente como a concorrncia o fez e faz. Mas esta inquietao no a mesma produzida pela arte? Uma arte que no faz pensar, refletir, se perder e se encontrar uma arte condenada mera classificao: existiu, mas no viveu. Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem (BARTHES, p. 22, 1984). No podemos comparar o termo batizado aqui, por ns, com o termo jurdico Concilium fraudis (Plano de fraude), pois se assim o fizermos estaremos sendo como aquelas pessoas intransigentes que no aceitam metonmia: voc diz Eu li Machado e elas corrigem Machado de Assis no um livro, uma pessoa. 68
Pnico na Zona Leste Autor: Bruno Miranda Homem embriagado em frente a um nibus incendiado pelo PCC (ele sabe que est sendo fotografado). 12
O objetivo de criarmos estes nomes em latim no o de pura e simplesmente imitar Barthes, assim como ele mesmo admitiu no sou fotgrafo, sequer amador (BARTHES, 1984, p. 20) e escreveu que se esforaria em ser to bom como eles O que Marey e Muybridge fizeram, como operatores, quero fazer como spectator (BARTHES, 1984, p. 148) decidimos ns em dar prosseguimento ao seu pensamento: enquanto que em Operator o fotgrafo. O Spectator somos todos ns [...] E aquele ou aquela que fotografado [...] eu chamaria de bom grado de Spectrum (BARTHES, 1984, p. 20) utilizamos sem nada a acrescentar, em Studium e Punctum entendemos que foi estudado/analisado do ponto de vista de quem (Spectrum) ou v (Spectator) a fotografia Eu tinha minha disposio apenas duas experincias: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha. (BARTHES, 1984, p. 21 e 22). Sugerimos ento criar igualmente em latim nomes para o que acreditamos ser do domnio Operator, algo que Roland Barthes no quis fazer Uma dessas prticas me estava barrada e eu no deveria procurar question-la: no sou fotgrafo, sequer amador (BARTHES, 1984, p. 20). E como ns tambm no somos fotgrafos profissionais, mas ao menos amadores (palavra que vem de: amado, amor) resolvemos nos aventurar. Em Primoris Visum (Viso Primeira) temos a falta de sensibilidade (ou talento) por parte do Operator, que em virtude de
12 Disponvel em http://br.olhares.com/panico_na_zona_leste_foto706406.html. Acesso em: 26/06/2006. 69
tal viso limitada produziria Studium limitante e sem valor, algo realmente feito para ser apenas varrido com os olhos e nada mais; a Attentus Visum (Vista Atenta) e a Animus Simulandi (Inteno de Simular) so propostas de diviso do Punctum barthesiano, mas sendo ambas intencionais e na medida do primeiro ser de ao natural, ou seja, aproveitando o que est circunscrito ao redor do Spectrum (fotografado) e o segundo montado, fabricado. E mais uma vez ressaltamos que pode ser atingido ou no realmente no depende s do Operator mas nesse caso aqui calculado/pensado por ns h justamente a preocupao de minimizar ao mximo o fracasso de se atingir o Punctum, utilizando desde o que est ao alcance do pequeno orifcio (estnopo) (BARTHES, 1984, p. 21): Attentus Visum (Vista Atenta) como o que est fora, mas montado para seu alcance: Animus Simulandi (Inteno de Simular). O que estamos tentando dizer que possvel estudar/encontrar o Sujeito por fotos sim, mas com a devida peneiragem. E como se faz isso? O estudo que Barthes fez sobre a fotografia em A Cmara clara: notas sobre a fotografia e O bvio e o obtuso nos ajudam a entender este Sujeito to requisitado pelas outras cincias (histria, psicologia e outras). Sujeito que faz e feito nelas como assumiu Barthes na foto, so duas posies diferentes a do sujeito olhado e a do sujeito que olha como o autor que escreve e que lido, como o cientista que estuda e no entanto ele mesmo o objeto de seu estudo. Reconhecendo-se campos opostos que se interagem, e, dentro de cada um analisando suas aes, possvel entender onde logramos xito ou fracassamos (em entender o Sujeito ou apenas figuraliz- lo) e porqu. atravs dessa peneiragem que nada mais que uma organizao no para classificar, mas para tornar o Sujeito e os meios criados para entend-lo, v-lo, mais prximos de um processo de inteleco (profundidade/filosofia) e no apenas ilustrao (superfcie coalha): Essas so as duas vias da Fotografia. Cabe a mim, escolher, submeter seu 70
espetculo ao cdigo civilizado das iluses perfeitas ou afrontar nela o despertar da intratvel realidade. (BARTHES, 1984, p. 175) Uma tarefa por vezes difcil, verdade - satisfao completa de nosso apetite de iluso por uma reproduo mecnica da qual o homem est excludo - (BAZIN apud MACHADO, 2005, p. 36); quase to difcil como foi para Digenes de Snope que passeava, em pleno dia, pelas ruas de Atenas com uma lmpada acesa. O que ele queria? Dizia Digenes: "Procuro um homem". E Barthes? Este nos ajuda a procurar o homem que Digenes procurava e que hoje atende pelo nome de: Sujeito. 71
4. ESCRITURA CURTA 4.1- A primeira vez que Barthes usou a palavra fragmento
Em seu livro Novos ensaios crticos (1974), Roland Barthes comea com, nada mais nada menos, que La Rochefoucauld e suas mximas. Por sinal onde encontramos pela primeira vez a palavra fragmento; esta no foi encontrada na primeira pgina sobre La Rochefoucauld, esta honra foi dada palavra fracionado: Essas duas leituras no so contraditrias, pois na coletnea de mximas, o discurso fracionado permanece um discurso fechado 1 ; somente na pgina seguinte, no terceiro pargrafo sobre este escritor e moralista francs, que encontramos a palavra que deu origem a tese: As reflexes so fragmentos de discurso, textos desprovidos de estrutura e de espetculo; atravs delas, uma linguagem verbal, bastante arcaica, que rege o traado da mxima. 2
Para um francs este ilustrssimo senhor deve ser to conhecido como Machado de Assis para ns. Ainda que este escritor brasileiro no seja muito conhecido por mximas, at porque nunca escreveu um livro de mximas como fez La Rochefoucauld; ainda que muitos consigam ver mximas em fragmentos/trechos de suas obras: No me podes negar um facto, disse ele; que o prazer do beneficiador sempre maior do que o do beneficiado. 3
E enquanto uma chora, outra ri; a lei do mundo, meu rico senhor; a perfeio universal. Tudo chorando seria montono, tudo rindo, cansativo; mas uma boa distribuio de lgrimas e polcas, soluos e sarabandas, acaba por trazer alma do mundo a variedade necessria, e faz-se o equilbrio da vida. 4
1 BARTHES, 1974, p. 9. 2 Idem,1974, p. 10. 3 ASSIS, Machado de. Captulo 149 - Teoria do Benefcio. in: Memrias Pstumas de Brs Cubas' Disponvel em: < http://vbookstore.uol.com.br/nacional/machadodeassis/cubas.pdf>. Acesso em 21/07/2008. 4 ASSIS, Machado de. Captulo XLV. In: Quincas Borba. Disponvel em: < http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00992.html>. Acesso em 21/07/2008 72
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... 5
Os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso do que nos que no juram nada. 6
Machado s ser lembrado aqui para ilustrar uma das dificuldades que encontramos ao ler crtica literria de outros pases. Estamos propondo esta analogia para explicar as dificuldades existentes em estudar uma crtica literria de outro pas, no caso, da Frana para o Brasil e, acreditamos, vice-versa. Vejamos, quantos franceses entenderiam o seguinte fragmento (nosso) de crtica literria do livro Memrias Pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis: um erro dizer que a proposta narrativa da obra por inverso cronolgica, visto que ele (Brs Cubas) nasce no captulo 9 (nove) chamado Transio e eis aqui como chegamos ns, sem esforo, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. 7 E no no ltimo, como se era de se esperar em uma proposta verdadeiramente de i nverso. Para se entender tal comentrio ser preciso, mais que notar a relao que existe entre as palavras que esto escritas e as que so implcitas por analogia, j que um nasce escrito ser posto em oposio morte no escrito; e o termo inverso cronolgica ser posto em dvida por tal analogia j escrita e pelo termo verdadeiramente de inverso. Resumindo e concluindo, mais vale recomendar a leitura do livro com ateno especial (ou aviso) a sua maravilhosa dedicatria: Ao verme que primeir o roeu as
5 ASSIS, Machado de. O Espelho In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Disponvel em <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/espelho.html>. Acesso em 21/07/2008. 6 ASSIS, Machado de. O Sermo do Diabo. In: A Semana : Gazeta de Notcias - 04/09/1892. Ortografia atualizada. Disponvel em: <http://www.biblio.com.br/Templates/ MachadodeAssis/osermaododiabo.htm>. Acesso em 21/07/2008. 7 ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas. Disponvel em: < http://vbookstore.uol.com.br/nacional/machadodeassis/cubas.>. Acesso em 21/07/2008. 73
frias carnes do meu cadver dedico como saudosa lembrana estas memrias pstumas (Op. cit.). Ao comear seu livro por Reflexes ou sentenas e mximas 8 , Barthes j mostra uma preferncia por uma escrita curta, de fragmentos, caso contrrio por que este a outros? Para ns isto um gesto flagrante, que anuncia o que est por vir. O nome deste escritor uma verdadeira incgnita para os no-educados na Frana; mais fcil ter ouvido falar em Michel Foucault (1926 - 1984) um importante filsofo e professor do Collge de France (1970 a 1984) visto ser mais contemporneo, mas do Duque de La Rochefoucauld (1613 - 1680), um moralista do sculo XVII s sendo um estudioso desta rea. Para Barthes e at mesmo para qualquer francs que tenha tido uma educao escolar razovel, este nome to familiar quanto foi Machado de Assis para um brasileiro de equivalente posio escolar. CITAES de La Rochefoucauld (1613 1680) 9
Raramente conhecemos algum de bom senso, alm daqueles que concordam connosco. Tema: Bom Senso prova de inteligncia saber ocultar a nossa inteligncia. Tema: Inteligncia A gratido da maioria dos homens no passa de um desejo secreto de receber maiores favores. Tema: Gratido As virtudes perdem-se no interesse como as guas do rio se perdem no mar. Tema: Virtude A confiana que temos em ns mesmos, reflecte-se em grande parte, na confiana que temos nos outros. Tema: Confiana Ningum deve ser elogiado pela sua bondade quando no tem fora para ser mau. Tema: Bondade Se resistimos s nossas paixes, mais pela fraqueza delas que pela nossa fora. Tema: Vontade H pessoas desagradveis apesar das suas qualidades e outras encantadoras apesar dos seus defeitos. Tema: Sociedade
8 Ttulo do captulo La Rochefoucauld: Reflexes ou Sentenas e Mximas, 1977, p. 9. 9 LA ROCHEFOUCAULD, F. Mximas. Disponvel em: <http://www.citador.pt/citador>. Acesso em 21/07/2008. 74
A esperana, enganadora como , serve contudo para nos levar ao fim da vida pelos caminhos mais agradveis. Tema: Esperana A prudncia e o amor no se fizeram um para o outro; medida que o amor aumenta, a prudncia diminui. Tema: Prudncia
Barthes sugere haver dois modos de se ler as mximas deste autor: um por citaes onde a colho um pensamento; e o outro de enfiada, como ele mesmo diz, leio as mximas uma a uma. D-nos a entender que prefere mais a primeira, pois assim ele escolhe com a que mais se identifica; enquanto a segunda, talvez por ser mais intensa, prolongada; nos traz por demais o autor destas: as mximas de La Rochefoucauld insistem a tal ponto sobre as mesmas coisas que no a ns que desvendam e sim ao seu autor, s suas obsesses e ao seu tempo (BARTHES, 1974, p. 9). Neste livro, Barthes no faz o que alguns poderiam chamar de uma introduo histria da escrita. Trata-se, antes, de uma tentativa de mostrar que no h literatura sem uma moral da linguagem e de afirmar a existncia de uma realidade formal independente da lngua e do estilo. Um no-iniciado ter muitas dificuldades em entender o que ele tenta mostrar. At porque, nos consideramos iniciados em tal autor (Roland Barthes) e ainda sentimos dificuldades em ler suas obras. Se talo Calvino (1993, p. 11) nos perdoa o pastiche: Barthes um autor que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
Num primeiro tempo, tudo se reduz luta de uma pseudo-Physis (Doxa, natural etc.) e de uma anti-Physis (todas as minhas utopias pessoais): uma detestvel, a outra desejvel. Entretanto num tempo ulterior, essa luta mesma lhe parece demasiadamente teatral; ela ento surdamente rejeitada, distanciada pela defesa (o desejo) do Neutro. O Neutro no pois o terceiro termo - o grau zero - de uma oposio ao mesmo tempo semntica e conflituosa; , num outro elo da cadeia infinita da linguagem, o segundo termo de um novo paradigma, cuja violncia (o combate, a vitria, o teatro, a arrogncia) o termo pleno. (BARTHES, 1977, p. 142).
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Ele prope diferenciar as mximas das reflexes usando para isso um misto de estrutura (gramatical) fechada e sensibilidade. Como as reflexes so fragmentos de discurso (BARTHES, 1974, p.10) isso as aproxima mais da realidade oral a que propriamente a da escrita, que no seu incio foi uma tentativa de reproduo da fala, mas com o tempo veio evoluo e esta (a escrita) gerou um mundo s seu, e nesta permeabilidade que Roland Barthes entra e sai como um fantasma que atravessa paredes. Mais interessado em conhecer as diferenas para maximizar seu espanto do que criar novos rtulos (isso a Gramtica Descritiva j faz muito bem, obrigado); Barthes nos mostra as sutilezas existentes nas obras como um adulto que ensina uma criana a amarrar os sapatos pela primeira vez. Ainda nesta linha de explorar as capacidades de transgresso que existem em algumas mximas, falamos em mximas e no reflexes, pois como ele mesmo disse: encontraremos, entretanto, algumas mximas isentas de qualquer estrutura; isto porque, embora ainda no ocupem muito espao, elas j abandonaram a ordem sentencial, estando a caminho da Reflexo, isto , do discurso. E no repetir, que encontraremos no s mais uma maneira de se rebelar contra uma retrica convencional, mas tambm pela segunda vez a palavra fragmento do livro. O repetir pode ser parcial (fragmento).
J a mxima vai alm: agrada-lhe repetir um termo, sobretudo quando esta repetio pode marcar uma anttese: Chora-se para evitar a vergonha de no chorar; esta repetio pode ser fragmentria, permitindo que se repita uma parte da palavra sem repetir a palavra em si mesma: O interesse fala todas as lnguas e desempenha todos os papis, at mesmo o do desinteressado. (BARTHES, 1974, p. 18.)
E tambm nesta pgina que encontramos a palavra jogo, que ele ir to bem descrever em outro de seus livros: AULA (2002). Aqui ele apenas faz uma introduo: O conceito est sem dvida em jogo; mas este jogo est a servio de 76
uma tcnica muito antiga, a do sentido; de modo que escrever bem consiste em saber jogar com as palavras, o que leva fatalmente para mais perto do traado oposicional que rege fundamentalmente o nascimento de uma significao. (BARTHES, 1974, p. 18). Aqui damos por encerrado este captulo (La Rochefoucauld: Reflexes ou sentenas e mximas) e iniciamos o prximo... Em AS PRANCHAS DA ENCICLOPDIA lamentamos a falta de imagens para auxiliar a sua posio de que ao separar as imagens do texto, enveredava a Enciclopdia por uma iconografia autnoma do objeto, cuja potncia saboreamos hoje integralmente, pois j no examinamos essas ilustraes com fins puramente informativos, como se pretenderia mostrar aqui (BARTHES, 1974, p. 27). Quisemos achar uma gravura de um moinho por dentro e de uma armaria com dois duelistas combatendo ao fundo, mas no fomos felizes em nossas buscas. Seria melhor que o prprio Barthes o fizesse, mas, talvez, como o livro foi escrito em 1972, no houvesse ainda recursos grficos bons o suficiente para acrescentar a esta obra as imagens com seus respectivos textos, exemplificando de f orma icnica, ainda que superficial (como toda imagem faz), seu ponto de vista sobre tais recursos iconogrficos; numa poca em que a Enciclopdia era realmente A Enciclopdia, no mais uma fonte de pesquisa, mas a nica fonte de pesquisa, todo conhecimento do mundo perfeitamente colocvel em livros, e como sabemos, hoje, isso simplesmente impossvel. Da o motivo de lamentarmos no haver um pequeno lembrete histrico a esse respeito. Pelo visto, Barthes acreditava que no era s por nomes que era poss vel se apropriar das coisas, mas tambm por imagens: Mal chegaram ao cume do monte [...], os colonos cuidaram de cartograf-la, isto de desenhar e de dar nomes a seus acidentes; esse primeiro ato de inteleco e de tomada de posse um ato de 77
linguagem, ... 10 . Embora este fragmento tenha vindo da pgina oitenta e cinco, ele ser de boa valia para explicar o posicionamento de Roland Barthes frente s imagens da Enciclopdia na pgina trinta. E ser neste posicionamento onde encontraremos pela terceira vez a palavra fragmento. Formalmente (o que muito perceptvel nas pranchas) a propriedade depende essencialmente de um certo fracionamento das coisas: apropriar-se fragmentar o mundo, dividi-lo em objetos prontos, sujeitos ao homem na proporo mesma de seu descontnuo: pois no se pode separar sem terminar designando e classificando, e da nasce a propriedade. 11
Encerrando o captulo AS PRANCHAS DA ENCICLOPDIA temos pela quarta vez a palavra fragmento, onde temos o entendimento de que a ao de fragmentar o mundo para melhor entend-lo nos faz cair em uma armadilha tpica de um crculo vicioso, pois cada interpretao de uma parte gera uma nova parte, to intensa como a primeira e to nova parte como a primeira o foi. A Enciclopdia procede incessantemente a uma mpia fragmentao do mundo: entretanto, o que chega a encontrar ao trmino de todo este quebrar no o estado fundamental das causas puras; as mais das vezes, a imagem a obriga a recompor um objeto que na verdade um contrassenso; uma vez dissolvida a primeira natureza, surge uma outra, to constituda quanto a primeira. Numa palavra: a fratura do mundo impossvel: basta um olhar o nosso para que o mundo se torne eternamente pleno ( 1 ). 1.Image, raison et draison, em: Luivers de lEcyclopdie, 130 pranchas da Enciclopdia de Diderot e dAlembert, Libraires associes, 1964.
Em CHATEAUBRIAND: VIE DE RANC encontramos mais um tema da literatura francesa pouco conhecido por quem no foi criado na Frana. Quem Chateaubriand e essa tal Vie de Ranc?
Franois- ren, visconde de Chateaubriand (Saint -Malo, 4 de Setembro de 1768 - Paris, 4 de Julho de 1848) um escritor e homem poltico francs. Jean-Armand le Bouthillier de Rance - nascido em Paris, 9 janeiro, 1626; falecido em la Trappe, 27 outubro, 1700. Segundo filho de Denis Bouthillier (senhor de Rance). Abade e reformador de Notre Dame de la
10 Barthes, 1974, p. 85. 11 Op. Cit., pg 30 78
Trappe, (no departamento de Soligny-la-Trape), o primeiro a ser reformado, em 1662. A Ordem Tr apista (oficialmente, Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observncia, ou em latim Ordo Cisterciensium Strictioris Observanti, OCSO), uma congregao religiosa catlica derivada da Ordem de Cister, devendo o seu nome ao mosteiro cisterciense de Ntre-Dame de la Trappe 12
A vida de Rance um livro bem conhecido na Frana, visto que o personagem j foi escrito no s por Chateaubriand como por muitos outros. 13
Foi realmente surpreendente pesquisar a vida deste abade, cuja uma parte da vida foi dedicada s alegrias mundanas, e por que no? Ele era prdigo e rico. Mas o falecimento de algumas pessoas influenciou sua vida e ele acabou passando o resto dela dedicado aos livros santos e a clausura.
O investigador sempre deixa suas marcas no objeto investigado, no havendo, de certo modo, sentido em falar -se de realidades que no sejam realidades para o pesquisador e que, portanto, so realidades que no pertencem exclusivamente ao mundo exterior (NETTO, 2003, p36).
O que Barthes pretendeu ao escrever este captulo foi trazer a questo do tempo para a literatura e a questo da marca deixada pelos autores nos resultados de suas pesquisas. O que pode hoje transmitir a um homem incrdulo, ensinado pelo seu sculo a no sucumbir ao prestgio das frases, esta biografia de um trapista da poca de Lus XIV, escrita por um romntico? (BARTHES, 1974, pg. 42)
12 Nota: possvel encontrar vrias fontes sobre Ranc, mas todas vm da mesma fonte - The Catholic Encyclopedia, Volume I. 13 LE NAIN, Vie du R. P. Armand Jean Le Bouthillier de Ranc (Paris, 1715); MARSOLLIER, Vie du T. R. de Ranc (Paris, 1703); MAUPEOU, Vie du T. R. de Ranc (AParis, 1702); D 'INGUIMBERT, Genuinus Character R. in X. Patris de Ranc;i (Rome, 1718); CHTEAUBRIAND, Vie de l'Abb de Ranc (Paris, 1844); DUBOIS, Histoire de l'Abb de Ranc et de sa rforme (Paris, 1866); D'EXAUVILLEZ, Histoire de l'Abb Ranc (Paris, 1842); SCHMID, Armand de Ranc, Abt. u. Reformator von La Trappe (Ratisbon, 1897); SERRANT, L'Abb de Ranc et Bossuet (Paris, 1903); DIDIO, La Querelle de Mabillon et de l'Abb de Ranc (Amiens, 1892); BUETTGENBACH, Armand Jean de Ranc Reformator der Cistercienser von La Trappe (Aix- la-Chapelle, 1897); FELLOW, Visit to the Monastery of La Trappe (London, 1818); GONOD, Lettres de Ranc (Paris, 1846). Disponvel em: kumenisches Heiligenlexikon, The Catholic Encyclopedia, Hinweise zur "Catholic Encyclopedia", Jean-Armand le Bouthillier de Ranc. 79
Essa marca deixada pelos autores um fato que no questionado enquanto existncia, visto que fato: como possvel narrar algum sem se projetar ne sse algum? 14 , mas questionado em nvel de incidncia, visto que a repetio torna o ato de se esconder um fracasso, no caso de Chateaubriand, este se revela de forma fragmentria. Chateaubriand no se projeta, ele superimprime-se, mas como o discurso aparentemente linear, sendo-lhe difcil toda operao de simultaneidade, o autor s pode forar sua entrada, fragmentariamente, numa vida que no a sua; a Vie de Rance no uma obra bem vazada: uma obra partida (agrada-nos esta queda incessante); de maneira contnua, porm sempre breve, o fio do Reformador interrompido em benefcio de alguma sbita recordao do narrador: Ranc chega a Comminges depois de um tremor de terra: foi assim que Chateaubriand chegou a Granada; ... 15
Em nenhum outro captulo encontramos tantas vezes a palavra fragmento; s nesta pgina possvel localizar trs, este que j foi revelado acima e mais dois abaixo. Logicamente que o fato de seu raciocnio ainda no ter acabado colaborou com o fato, mas vamos combinar que isso no justifica de todo o uso da repetio de tal palavra. que ela tem, sem dvida, um poder de resumo e ainda assim de esclarecimento que no pode ser negado, tanto em Barthes como em outros, mas em Barthes isso to flagrante como a vida de Chateaubriand na narrao da vida de Rance. Ranc deixa periodicamente transparecer Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou to pouco; h algo de duro nesta Vie, toda feita de estilhaos, de fragmentos combinados mas no fundidos; Chateaubriand no se sobrepe a Ranc: ele o interrompe, prefigurando desta maneira a literatura do fragmento, na qual as conscincias inexoravelmente separadas (do autor e do personagem) j no adotam hipocritamente uma voz compsita. Com Chateaubriand, o autor enceta a sua solido: o autor no o personagem: institui-se uma distncia que Chateaubriand assume sem a ela resignar-se; da todos aqueles retornos que conferem Vie de Ranc uma vertigem peculiar. 16
14 Idem, pg. 45 15 BARTHES, 1974, p. 46. 16 Idem, p. 46. 80
Como j foi dito, mas no concludo, esta palavra carrega consigo um pode r lexical to singular que podemos at dizer que deixa seu eco em outras, ou melhor, por razes geogrficas no texto poderamos especular que quem vem antes , vem como que para se tornar tapete desta; e quem vem depois, agora sim, como um eco. Exemplos: vejam quem aparece antes do primeiro fragmento destacado neste captulo: sendo pelo contrrio fracionrio e abrupto 17 . E agora vejam quem vem antes do segundo fragmento (sendo este segundo possuidor de duas palavras Fragmento): Existe neste esmiuamento fracionado, que justamente o oposto de uma assimilao, e por conseguinte de uma criao, de acordo com o sentido corrente, algo de no aplacado, como uma estranha ressaca: o eu inesquecvel: sem jamais absorv-lo (BARTHES, 1974, p. 46) logo a seguir encontramos o fragmento j citado. E logo depois mais um eco (ou tapete do que est por vir. J que em casos desses: de estar depois de um e antes de outro; ela acaba por se tornar hbrida), verdadeiras palavras elos se preferirem, que entendemos haver na obra de Barthes: (por vezes uma frase, por vezes um pargrafo), teremos um permanente fracionamento do sentido, como se Chateaubriand no conseguisse nunca eximir -se de voltar-se subitamente para outra coisa ... 18
bem verdade que havamos dito que no trabalharamos com os sinnimos de tal palavra, mas tambm verdade que dissemos que estes no seriam ignorados de todo. Se por um lado o trabalho com sinnimos deixaria a obra por demais obesa e relativa, por outro, ignor-los por completo deixaria a obra com, digamos: suspiros de lamentao. E para encerrar o captulo temos uma espcie de compensao, como se ele precisasse pedir desculpas por Chateaubriand e sua escrita de fragmentos
17 Idem, p. 46. 18 Idem, Ibidem, p. 47. 81
introdutrios. Talvez a expresso pedir desculpas esteja um pouco forte, mas compensao no nos parece estar em exagero com o proposto. Quem tiver escolha de palavras melhor para descrever o fragmento que ser posto agora, que o faa. A palavra literria (visto ser dela que se trata) aparece assim como um destroo imenso e suntuoso, como um resqucio fragmentrio de uma Atlntida onde as palavras, saturadas de cor, de sabor e de forma, de qualidades em suma e no de ideias, brilham como estilhaos de um mundo direto, impensado, que nenhuma lgica viria embaar, ou encher de tdio: no fundo, o sonho do escritor ver as palavras pendentes como belos frutos da rvore indiferentemente da narrativa 19
Para encontrarmos o prximo fragmento, teremos que dar um passo largo at o captulo PIERRE LOTI: AZIYAD. Logo no in cio encontramos nmeros que anunciaro a partio do captulo em subtemas. O primeiro, onde j possvel encontrar a palavra que queremos, chama-se: O Nome. oportuno dizer que neste livro h um captulo exclusivo que trata deste tema: o nome, mais especificamente Proust e os nomes, que no foi analisado aqui por no possuir a palavra da qual a tese razo de existir.
Talvez possamos aprender a desiludir o nome de Aziyad de maneira proveitosa, e depois de deslizar do nome precioso para a imagem triste de um romance fora de moda, remontar em direo ideia de um texto: fragmento da linguagem infinita que nada relata mas pelo qual perpassa algo de indito e de tenebroso. 20
Tudo isso para dizer, mais uma vez, que todo escritor deixa em sua obra marcas que ajudaro a entender sua estria e sua histria. No h escrita sem o mnimo comprometimento com a paixo, no h escrita sem heris personagens inspirados em personagens heris. E no fim deste fragmento, no captulo seguinte 2. Loti, que Barthes ir revelar todos os nomes que esto por trs de um nico nome, um nome que carrega consigo trs situaes: nome do personagem, persona (personagem literrio em que o
19 BARTHES, 1974, p. 48. 20 BARTHES, 1974, p.100. 82
autor se encarna) e autor pois o Loti que escreveu o livro no coincide de modo algum com o heri Loti: no possuem a mesma identidade: o primeiro ingls e morre muito jovem; o segundo Loti, cujo prenome Pierre, membro da Academia Francesa de Letras, ... (BARTHES, 1974, p. 101), que na verdade trat a-se do pseudnimo de Julien Viaud (1850 1923) o autor em questo. O que interessa nesse captulo para esta tese sero dois detalhes: o primeiro o fato de Aziyad ser considerado semiautobiogrfico, um assunto que nos interessar mais frente sobre o dirio ser ou no obra literria deverei manter um dirio tendo em vista public-lo? Poderei fazer do dirio uma obra? (BARTHES, 2004, p. 446 447). O segundo pelo escritor usar seu prprio pseudnimo para nomear um personagem O maior interesse no est no pseudnimo (fato corriqueiro em li teratura) e sim no outro Loti, no que e no seu prprio personagem, o que e no o autor: no me parece que existam outros casos como este na literatura (BARTHES, 1974, p. 101). Na verdade existe um caso parecido: Gide (1869-1951), escritor, que no aparecer neste captulo, e que Barthes trabalhar quase que exclusivamente em obras posteriores, como exemplo: logo nas primeiras pginas de INDITOS: 2004, mas o que Gide tem a ver com os trs nomes (nome de personagem, nome de pseudnimo, nome do autor)? Seu primeiro trabalho Les Cahiers d'Andr Walter (Os cadernos de Andr Walter) foi feito de fragmentos de seu dirio Sob o libi da dissertao destruda, chega-se prtica regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o dirio. (BARTHES, 1977, p. 103); dentro de tal obra cria um personagem que cria um personagem: estamos diante de um escritor (Gide) que cria um personagem- escritor (Andr Walter) que cria um personagem-escritor (Allain), afastando-se assim de si mesmo atravs da impessoalidade que um personagem permite (ou melhor: dois), mas no caso de Loti se temos um afastamento pelo uso de pseudnimo, temos 83
ao mesmo tempo uma aproximao (persona), j que usa seu prprio pseudnimo para nomear um personagem (Loti); revelando assim, de forma renitente, a razo que nos interessa: este livro, estas pesquisas sobre obras semibiogrficas apontam para o que estaria por vir: o interesse de Barthes pelo assunto Dirio. As prximas palavras fragmento sero encontradas no livro (ou captulo, visto que se trata de uma anexao, mas resolvemos cham-lo de livro) O grau zero da escrita: 1953. importante ressaltar que este livro por si s j d uma tese, e, portanto, no ser possvel estud-lo apenas com as duas palavras fragmento encontradas nele. No entanto, ao se estudar tal questo (o grau zero da escrita) dentro do livro e fora dele, encontramos a constatao da importncia da Escrita por Fragmentos: esforo Barthesiano de escapar ao policiamento da escrita, sempre ameaada pelo estilo das diversas escritas da dominao.
A escrita atravessou assim todos os estados de uma solidificao progressiva: primeiro objeto de um olhar, depois de um fazer, e finalmente de um assassnio, ela atinge hoje uma ltima transformao, a ausncia: nestas escritas neutras, chamadas o grau zero da escrita, temos o movimento de uma negao e a incapacidade para o realizar de uma durao. 21
Barthes ir usar de emprstimo, para este texto, o termo neutro (do grau zero) da anlise lingustica no sistema da lngua (Jakobson e Lotz: sobre o problema do fonema zero). Desde o Grau Zero da Escrita (1953) sua Lio (pronunciada em 1977 e publicada em 1978) no Collge de France, Barthes utilizou um conceito de escritura que difere do conceito de escrita. Na verdade, veremos, que esta obra (sua concluso) ser embrionria para o discurso de sua Aula Inaugural.
21 BARTHES, 1974, p. 119. 84
Com base em fragmentos de autores que ele gosta: A escritura branca, a de Camus, a de Blanchot ou de Cayrol, por exemplo, ou a escritura falada de Queneau (BARTHES, 1974, p. 119) considera tais escrituras como no marcadas pelo estilo, ou pela rigidez das formas (evitando portanto servir qualquer Lei, ou ordem social ; mas como nem tudo que reluz ouro: encontrou um problema Infelizmente, nada mais infiel do que uma escritura branca (BARTHES, 1974, p. 161) ela incorre continuamente em cristalizaes sucessivas da linguagem, transformando-a numa rede de formas endurecidas abafada cada vez mais o frescor primeiro do discurso (Idem, 1974, p. 161). E importante salientar que mesmo no encontrando a palavra fragmento no captulo INTRODUO, este deve ser lido com muita ateno, pois ele um fragmento retirado do jornal de esquerda Combat: O que pretendemos aqui esboar essa ligao; afirmar a existncia de uma realidade formal independente da lngua e do estilo; tentar mostrar que esta terceira dimenso da Forma tambm liga, no sem um trgico suplementar, o escritor sociedade; fazer sentir, enfim, que no existe Literatura sem uma Moral da linguagem. Os l imites materiais deste ensaio (do qual algumas pginas saram em Combat, em 1947 e 1950) indicam suficientemente que se trata apenas de uma Introduo ao que poderia ser uma Histria de Escritura 22 .
Barthes preocupado com o pouco entusiasmo da esquerda com a luta cultural trabalhou em suas anlises com a ideia de que a literatura tem de ser a subverso da forma, o logro, a trapaa da linguagem. Em Oposies classificadas conforme a relao entre os termos da oposio de Elemento de Semiologia (1993, p. 81) encontramos:
O segundo problema colocado pelas oposies privativas o termo no- marcado: chama-se grau zero da oposio; o grau zero no , pois, a bem dizer, um nada (contrassenso corrente, no entanto), uma ausncia que significa; atingimos aqui um estado diferencial puro; o grau zero demonstra o poder de qualquer sistema de signos que, destarte, fabrica sentido com nada: a lngua pode contentar-se com a oposio de alguma coisa com nada.
22 BARTHES, 1974, p. 120. 85
Dito isto, em lingustica, a ausncia de um fonema no si gnifica necessariamente que ele no exista, pois esta ausncia significativa, o no estar l diferencia um significado de outro; como nos tempos de escola, quando o professor de matemtica dizia que zero era nmero e os alunos no entendiam muito bem; como algo que significa zero podia ser relevante? E um professor muito experiente retrucava com exemplos prticos Perguntem a algum que est zerado, mas sem dvidas, se zero nmero; ou melhor ainda, peam aos seus pais que lhes tirem um zero da mesada e vejam se d para ser feliz assim (lembrana de nosso ensino secundrio). O mesmo ocorre em lingustica; o mesmo, sugere Barthes, ocorre no texto: vai interpretar a neutralizao como um emergir no discurso (no texto) de algo que se observa apenas nos seus efeitos, e que se deixa simbolizar bem pela folha branca de papel, que prefiguraria a brancura da nova escrita, mas tambm o risco de maculao (pelas marcas indevidas) dessa escrita. Como podemos notar, Barthes traz do passado uma linha de pensamento (j existente) e adapta ou amplia para os nossos dias tal pensamento para iluminar problemas e especular solues. Passemos agora, diretamente, para as palavras fragmento encontradas:
O QUE A ESCRITURA? O estilo no passa de metfora, [...], o estilo sempre um segredo; [...]; seu segredo uma lembrana encerrada no corpo do escritor; a virtude alusiva do estilo no um fenmeno de velocidade, como na fala, onde o que no se diz permanece, mesmo assim, um nterim da linguagem, mas um fenmeno de densidade, pois aquilo que se mantm erguido e profundo sob o estilo, congregado dura ou ternamente nas suas figuras, so os fragmentos de uma realidade completamente estranha linguagem. O milagre de tal transmutao faz do estilo uma espcie de operao supraliterria, que leva o homem ao limiar da potncia e da magia. Pela sua origem biolgica, o estilo situa-se fora da arte, ou seja, fora do pacto que liga o escritor sociedade. 23
23 BARTHES, 1974, p.123. 86
A ESCRITURA E O SILNCIO Essa arte tem a estrutura mesma do suicdio: nela, o silncio um tempo potico homogneo, que aperta a palavra entre duas camadas e a faz explodir no como fragmento de um criptograma, mas sim como uma luz, um vazio, um assassnio, uma liberdade. (Sabe-se o quanto tal hiptese de um Mallarm assassino da linguagem deve a Maurice Blanchot.) Essa linguagem mallarmeana Orfeu que s pode salvar o que ama renunciando a ele, mas que assim mesmo olha um pouco para trs; a Literatura levada s portas da Terra prometida, ou seja, s portas de um mundo sem Literatura, mas do qual caberia aos escritores dar testemunho. 24
Como j dissemos no incio deste captulo, ele por demais complexo para apenas duas incidncias de fragmento darem conta. Elas nem sequer aparecem nos trechos mais importantes (explicativos e/ou conclusivos), so meras palavras que merecem mesmo o estatuto de serem escritas com letras minsculas. No entanto, ao terminar o estudo deste, constatamos a presena delas em letras maisculas quanto compreenso. Para Barthes o grau zero uma espcie de diferena de potencial que permite a dinmica do sentido, mas tambm a cristalizao dos sentidos, a sua organizao em estilos, em imagticas, dotadas de Poder, que incorpora toda a deciso do Poder, uma nova forma que no fundo no traz nada de novo: falhano, utopia. A frase em que nos diz que Cada escritor que nasce abre em si o processo da literatura; mas se a condena, concede-lhe sempre um prazo, que a Literatura vai usar para reconquist-lo (BARTHES, 1974, p. 166-167) bem indicativa no malogro do sentido, que ao mesmo tempo em que se arrisca queda na represso, ganha nova vitalidade na maneira como esse risco afrontado. Barthes acredita que essa ordem branca da linguagem, que se acha para alm da Lei, procura adequar a universalidade da linguagem (gabarito mental) universalidade do mundo, prova: que no pode haver linguagem universal fora de uma universalidade concreta, e no mais mstica ou nominal do mundo civil e conclui dizendo A Literatura torna -se a Utopia da
24
BARTHES, 1974, p.160. 87
linguagem. (BARTHES, 1974, p. 166-167), a nica que pode, como ele mesmo disse em sua Aula Inaugural, vencer o fascismo da lngua.
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4.2- Escrevendo fragmentos usando fragmentos
Fragmentos de um discurso amoroso (2000) um dos livros mais conhecidos de Barthes por sua irreverncia: palavra que no denota algo necessariamente engraado - senso comum, mas devido ao que os dicionrios lembram/apontam: seu prefixo de negao, a palavra torna-se o que realmente : no reverncia, no obedincia. Mas o qu e a quem? As respostas esto na primeira pgina escrita por Roland Barthes aps o ndice. A necessidade deste livro se apoia na seguinte considerao: o discurso amoroso hoje em dia de uma extrema solido (BARTHES, 2000, p. 11). Isto porque seu discurso impreciso e louco: 1) Mas como algum (Sujeito) que - ainda hoje - estudado pode escrever algo preciso sobre sua inquietao, sua impreciso? Barthes acena com uma possvel soluo: Podemos chamar essas fraes de discurso de figuras. Palavra que no deve ser entendida no sentido retrico, mas no sentido ginstico ou coreogrfico (Idem, p. 14). O que Barthes chama de figura o fragmento (fraes de discurso) de nossa tese s que com outro nome, ou melhor, com um sentido mais elstico (ginstico ou coreogrfico). A tese que defendemos inclui esta impreciso - no no sentido de errar, mas no sentido de criar. O preciso costuma ser um lugar que no aceita outros lugares, o preciso singular e o impreciso plural, O demnio plural (Meu nome legio, Lucas 7-30) (Idem, p. 108). 2) LOUCO. O sujeito atravessado pela ideia de que est ou est ficando louco. (idem, p. 215) E como nos ensinou um professor de psicologia na Faculdade de Educao: um louco no tem problemas, quem tenta entender o louco ou tir -lo da loucura que tem, pois o louco aquele que por no gostar ou no conseguir resolver seu problema entrou/criou em um mundo s seu onde neste mundo o 89
problema que o assolava no o incomoda mais. Talvez por isso o discurso amoroso e o louco sejam descritos/considerados como solitrios, um bom esconderijo dificilmente serve para dois e quando serve raramente confortvel. E por conta disto foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excl udo no somente do poder, mas tambm de seus mecanismos (cincias, conhecimento, artes) (BARTHES, 2000, p. 11). Mas o Sujeito que tenta ser compreendido aqui, no algum que busca respostas para sua inquietao ou loucura, algum que quer simplesmente ter o direito de falar: o lugar de algum que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que no fala (BARTHES, 2000, p. 13). E que por ser difcil falar - pega palavras que j foram proferidas, em outros contextos, trazidas agora para um novo, no muito diferente do seu original (por isso trazidas), mas agora sendo um novo: novos significados se fazem por assimilao e deslocamento de seu original; no basta apenas falar sobre o mesmo, no se trata apenas de colunas paradigmti cas, mas de sintagmas criados a partir de fragmentos que no so s recortados, mas como ecos se somam a um coral de outros ecos e seu plural se torna uno por resultado final de uma estrutura, mas eternamente plural em seu agrupamento de sentido feito por grupos de frases (BARTHES, 2000, p. 17) que tm como tarefa mais do que repetir em um novo lugar, criar em conjunto novas vozes e/em novos lugares. O Fragmento como lugar de fuga da Literatura, ou melhor: fuga dos regentes dela, lugar onde o Sujeito pode descansar de ser o que as outras cincias, conhecimento, artes acham que ele e ser ele mesmo, seja ele quem for. As palavras nunca so loucas (no mximo perversas), a sintaxe que louca; no ao nvel da frase que o sujeito procura seu lugar e no o encontra ou encontra um lugar falso que lhe impossvel pela lngua? (Idem, p. 16).
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Fragmentos de um discurso amoroso foi um livro escrito por Barthes em 1977, ano em que se anuncia/aproxima uma virada, pois se nos anos 60 se normaliza o sujeito, nos anos 80 se retorna a ele. Um sujeito que foi expulso pela porta para depois reaparecer pela janela (DOSSE, 1993, p. 65). Mas no o mesmo sujeito que retorna No entanto, no se trata de simples retorno do sujeito tal qual era visto outrora, na plenitude de sua soberania postulada e de uma transparncia possvel (DOSSE, 2001, p. 41) nesta dcada ainda se estudaro as estruturas, mas sem a excluso do sujeito, pois como fazer experincias, testar os limites das estruturas sem p-las prova de quem ir as ler. Enquanto nas Mythologiques I-IV, (1964- 1971) de Claude Lvi-Strauss o autor exprime quanto universal o ser humano, em Mythologies (1957) Roland Barthes j exprimia o quanto era universal a maneira como um ser humano podia influenciar o outro: por meio das palavras certas nos lugares adequados. Com Fragmentos de um discurso amoroso vai alm. No est interessado em convencer ningum, um experimento para dar voz a um sujeito normalizado pela lngua, e pela mesma lngua que o aprisionou - tenta o libertar; como um salva-vidas sabe: a nica maneira de escapar de uma correnteza na praia fazendo uma curva, nadando para fora, mas a favor (se deixando levar), caso nade ao contrrio dela, em direo praia, por mais que parea prximo, o banhi sta (Sujeito) no conseguir venc-la e fatalmente se afogar. Talvez teve, Roland Barthes, pensamento semelhante e dentro da prpria lngua, por meio de montagens/estruturas to valorizadas no apogeu do Estruturalismo, fazendo uma curva a favor , conseguiu se libertar, conseguiu dar voz. Mas ele o faz com a voz de outros, verdade, mas em A Morte do Autor (BARTHES, 2004. p. 57-64.) fica claro que no h problema algum em tentar reproduzir (produzir novamente) uma outra voz o texto um tecido de citaes, pisar onde outros j pisaram o escritor no pode deixar de imitar um 91
gesto sempre anterior, nunca original; o seu nico poder o de misturar as escritas, de as contrariar umas s outras, e no estamos falando aqui de qualquer um, mas como o salva-vidas: fazer o mesmo para obter o mesmo Proust deu escrita moderna a sua epopeia: por uma inverso radical, em lugar de pr a sua vida no seu romance, [...] fez da sua vida uma obra, se eles conseguiram ter sucesso: se escrever sem se importar com a opinio da crtica e as limitaes impostas por sintaxes castrantes a linguagem que fala, no o autor; escrever , atravs de uma impessoalidade prvia impossvel de alguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista (BARTHES, 2004, p. 59), por que no seguir em frente, no somente para copi-los, como j dissemos, mas para alm de lhes prestar o devido tributo, prosseguir com seus pensamentos, agora no mais repetidos como prova (ou acreditamos estar provando) o Fragmentos de um discurso amoroso: um repetir que devido ao seu deslocamento se torna um novo criar. Ao longo de suas obras tenta trazer o Sujeito de volta ao cenrio, no como algum que cria regras para depois as utilizar: escolheram a lngua para normalizar o sujeito, mas linguisticamente, o autor nunca mais do que aquele que escreve, assim como eu outra coisa no seno aquele que diz eu: a linguagem conhece um sujeito, no uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da enunciao que o define, basta para sustentar a linguagem, isto , para exauri -la. (BARTHES, 2004, pg. 60). No, este homem um ser naturalmente inquietante, e, por ser naturalmente no deve ser tratado como um paciente que est no div. Esse sujeito que Barthes nos fala um homem em paz com sua inquietao. um ser que no pretende resolv-la, apenas conviver com ela. No um psiquiatra que tenta entrar na cabea de um louco (denotativo), um louco (metafrico) que tenta dividir seu esconderijo com algum. Solido que procura se anular com outra solido, mas no ouvida e/ou 92
entendida. Como compreenso e intransigncia raramente se combinam, o verdadeiro amor no pede para o outro mudar, pede apenas para ele prprio no precisar mudar. No que diz respeito a uma das proposta da tese: a localizao da palavra Fragmento... Curiosamente, de todas as obras lidas nesta que encontramos o menor nmero de aparies da palavra Fragmento. Apesar de a obra ter a tal palavra no prprio ttulo, esta no abunda na obra. Isto porque o ttulo do livro aponta para um possvel mtodo (estrutura) para se chegar ao Sujeito, neste primeiro momento no o universal, mas um em particular: aquele que faz (cria) um discurso amoroso, no para meramente romancear, mas por tentativa-e-erro, eco/reflexo, repetio fragmentria que se revela de fato outro texto e no repetio per si, eis o mtodo, o Fragmento mostra o caminho, mas no ele prprio o caminho, como aquela brincadeira que fazemos quando algum pergunta para aonde (usado em verbos de movimento) vai a estrada e respondemos que A estrada no vai a lugar nenhum... Somente as pessoas que seguem seu caminho que vo. Obra fragmentada como o personagem do livro Frankenstein, no se trata aqui somente de cabea de um, brao de outro e por a vai, aqui , ela bem mais fragmentada que isso, num nico dedo podemos encontrar trs falanges, cada uma pertencente a algum. Portanto, temos uma obra que pertence a Barthes feita de fragmentos de outras que no pertencem a Barthes. A escolha das partes foi dele como foi para o doutor Victor Frankenstein. E como algum que estava tentando dar voz a um Sujeito excludo/esquecido, fez do Fragmento o mtodo e no o assunto, ento por que se preocupar com quantas vezes a palavra fragmento aparece? O mtodo j estava revelado no ttulo, foi praticamente o quanto bastou, seu quinho, para ela (a palavra: fragmento). Por isso a palavra fragmento quase no aparece. E quando aparece muitas vezes no rodap, prova de sua fragmentalidade: mtodo - e 93
aqui nada mais que isso; interessando apenas a aplicao do Fragmento e no no nome (a palavra: fragmento) presente na obra. Entretanto no nos passou despercebido certas palavras ou expresses que nitidamente remetiam a ela como o j mencionado fraes de discurso (BARTHES, 2000, p. 14), cada figura (Idem, p. 15), matrizes de figuras (Idem, p. 16), grupos de frases (Idem, p. 17), suas figuras no possam se arrumar: se ordenar (Idem, p. 18) e pedaos de origem diversa (Idem, p. 19). claro que no estamos esgotando aqui todas as possibilidades de palavras ou expresses que a substituem; so apenas alguns exemplos do que foi encontrado e percebido. Resultado, alm do prprio ttulo, s encontramos a palavra fragmento: 1) Em notas de Rodap WINNICOTT, Fragmento de uma anlise (comentado por J. - L.B.). Pg. 112.
NIETZSCHE: todo esse fragmento, evidentemente, segundo Nietzsche- Deleuze, principalmente 60,75. Pg. 158.
BALZAC: Ela era experiente e sabia que o carter amoroso assinalado de alguma forma nas pequenas coisas. Uma mulher instruda pode ler seu futuro num simples gesto, assim como Cuvier sabia dizer ao ver o fragmento de uma pata: isso pertence a um animal de tal dimenso etc. (Os segredos da Princesa de Cadignan). Pg. 262.
2) E em duas pginas
Rusbrock Pequeno grupo dos Mortos de Fome, dos Suicidas de amor (quantas vezes um mesmo enamorado no se suicida?), aos quais nenhuma grande linguagem (a no ser, fragmentariamente, a do Romance Passado) emprestou sua voz. Suicdio - IDEIAS DE SUICDIO, pg. 271.
Tabula gratulatria THEODOR REIK, Fragment dune grand confession (Denol) 25 . WINNICOTT, Fragment dune analyse (Payot) Ambos encontrados na pgina 296.
25 Este fragmento encontrado na pg. 83 como nome de REIK; provrbio citado por Reik, 184. E citamos: O lugar mais sombrio, diz um provrbio chins, sempre embaixo da lmpada. 94
Durante o processo releitura ficvamos atentos s palavras, visto que no s a leitura em si nos interessava, era preciso achar a palavra que justificasse a existncia desta tese (e do prprio ttulo do livro). Durante este processo algumas palavras nos causavam palpitaes, dizamos: ela! e no era, Achamos! e no era de novo. Isso somado com o fato de no ir encontrando a bendita palavra. Com o tempo, foi gerando uma inquietao que viria a ultrapassar o campo do lxico. Foi ento que nos lembramos de nossa proposta, no incio da tese: Mas como esta proposta: a localizao da palavra Fragmento tanto a nvel paradigmtico (maiscula e/ou minscula) como sintagmtico (relao com palavras vizinhas) se mostrou pobre, portanto ineficaz 26 e logicamente, pelo que j esclarecemos: O Fragmento em Fragmentos de um discurso amoroso um mtodo, um caminho para se andar, no o tema em si, seria pobre, portanto ineficaz se buscssemos s isso: ela, a palavra fragmento. Mas como tambm dissemos que no abandonaramos esta vertente de todo, continuamos a explorar o lxico, at porque quem sabe haveria um jogo nele: o lxico? As palavras comeadas apenas pelo F + R + A e sem necessariamente o G como j era de se esperar, uma espcie de radical incompleto, j nos deixavam ansiosos; portanto as palavras fraes e, pelo incrvel que parea, frase j chamavam nossa ateno sempre que apareciam; figura tambm mexia conosco, mas esta com bem menos intensidade visto que o I j anunciava o fracasso, tornando a presena do G numa simples lamentao. Mas a palavra que foi a gota dgua que transbordou o balde foi Fragrncia (BARTHES, 2000, p. 210), talvez pela palavra haicai ter aparecido ao lado dela, dentro de uma sequncia de exemplos que tentava explicar e/ou visualizar O quadro
26 Cf. p. 12. 95
amoroso (BARTHES, 2000, p. 209). Ora, estar ao lado dela desta maneira revela, sem dvida, uma relao que ultrapassa a contiguidade; cria quase um parentesco. Logo depois, apareceram outras como nauFRAGaria (BARTHES, 2000, p. 216) e FRGil (BARTHES, 2000, p. 221), sendo esta ltima bastante sugestiva para o que queremos e/ou procuramos. Pois ser esta palavra fragmento forte o suficiente para sustentar uma tese ou frgil como uma curiosidade acadmica que logo ser contestada? Nesta obra grafada com letra minscula por certo no se sustenta, visto aparecer pouco (como prova o corpus), mas com letra maiscula, visto aparecer no ttulo (como tese): sim, ela assim/aqui ser forte; lembramos mais uma vez o incio da nossa tese: gostaramos de salientar que a palavra fragmento ser escrita, por vezes, com letra minscula quando significar t o somente apenas o que se encontra nos dicionrios e com letra maiscula quando significar algo alm de simples notao lexical e penetrar no mundo das ideias, portanto, merecendo a postura de nome prprio (cf. p. 9). Afinal, como j dissemos, esta tese pode ser facilmente provada como facilmente questionada: pois como as provas ou corpus so os mesmos, tanto para o sim como para o no; a metfora do copo meio cheio ou meio vazio se torna altamente pertinente. E acreditando haver - ou ser possvel criar - um jogo lexical dentro desta obra (Fragmentos de um discurso amoroso) propomos agora uma analogia, tal qual a (analogia) encontramos no dicionrio Houaiss ( 2009) na rubrica filosofia: na filosofia grega, identidade de relao entre pares de conceitos dessemelhantes (como na proposio a inteligncia est para a opinio assim como a cincia est para a crena) ou ainda, se preferir dentro da prpria rubrica lngustica processo de mudana lingustica que consiste na alterao de uma forma, para adapt-la a um modelo preexistente (p.ex.: o neol. aidtico foi criado prov. por analogia com 96
diabtico, morftico) (HOUAISS, 2009, p. 125): se considerarmos, por comparao lexical, aglutinao fantasiosa criada por ns, a palavra metfora como filha ilegtima das palavras metamorfose e Novesfora 27 , a palavra Fragrncia (BARTHES, 2000, p. 210) passou a ser considerada por ns como a me da palavra fragmento; mas e o pai, ou melhor seu complemento: o segundo elemento da aglutinao, palavra que aparece no dicionrio como modo pelo qual elementos distintos se unem e integram, formando um todo em que dificilmente se reconhecem as partes originais (HOUAISS, 2009, p. 69). Ento fomos procura do pai (ou de um pai). A tarefa no era fcil, assim como at hoje no o no que diz respeito a filhos ilegtimos. Entretanto, achamos alguns fortes candidatos titulao de pai e muito respeitosamente os convidamos a fazer o exame de DNA lexicolgico. Lembramos que isto que est sendo feito agora apenas um jogo, uma brincadeira, Barthes declarou Podemos chamar essas fraes de discurso de figuras (BARTHES, 2000, p. 14) e ns, que procuramos pacientemente a palavra, resolvemos dividir com o leitor nossa experiencia ao longo de tal procura/pesquisa; ns que pen(s)amos (penamos e pensamos) em tal busca acreditamos que conquistamos o direito de fazer tal jogo. Se Barthes brincou/montou tais figuras em sua obra para com o deslocamento delas produzir algo mais, por que no fazer o mesmo em um nvel mais bsico elegendo no as figuras (plural): conjunto de frases (fraes de discurso), mas as palavras (singular) que nos inquietaram? Seja por smile grfica ou fnica - com a palavra fragmento. Se desta brincadeira no surgir algo de til a esta tese, fica ao menos a homenagem a quem escreveu Palavra que no deve ser entendida no sentido retrico, mas no sentido ginstico ou coreogrfico (Idem, pg.14).
27 Nota: Noves fora no costuma ser escrito junto, mas por razes de sentido uno aqui ser escrito assim. 97
O primeiro corajoso foi apalavra momento: extrado de No haicai japons, o cdigo exige que haja sempre uma palavra que indique o momento do dia e do ano; e o kigo, a apalavra-estao (BARTHES, 2000, p. 231), este foi trazido clnica por seu pai haicai, que como bom japons no tolera desonra. Mas como os testes foram inconclusivos e a fila precisava andar, continuamos. A palavra enamoramento extrada de:
RAPTO. Episdio tido como inicial (mas pode ser reconstitudo depois) durante o qual o sujeito apaixonado raptado (capturado e encantado) pela imagem do objeto amado (nome popular: gamao; nome cientfico:enamoramento). (BARTHES, 2000, p. 245)
Era por demais sui generis, at as palavras sujeito apaixonado apareceram: verdadeiro tema do livro cujo mtodo para dar voz a ela foi o Fragmento. Mas ainda assim era muito cedo para encerrarmos a procura e continuamos; havia tambm o acasalamento: extrado de Certamente preciso algo que d partida ao amor, como ao rapto animal; o engano ocasional mas a estrutura profunda, regular, assim como cclico o acasalamento entre os animais (BARTHES, 2000, p. 248), mas estando convencidos de que ele foi o ato em si e no o noivo, dispensamos seu teste. O mesmo aconteceu com movimento: extrado de por outro lado, bem que percebo o pequeno movimento de agressividade que levou X... - sem que ele mesmo o saiba a me transmitir uma informao que magoa. (BARTHES, 2000, p. 255), afinal, o que um acasalamento sem movimento. O encantamento: extrado de Werther se fantasia. De qu? De namorado encantado: ele recria magicamente o episdio do encantamento, aquele momento em que ele foi siderado pela imagem. (BARTHES, 2000, p. 258) parecia mais um daqueles amantes moda antiga que jamais aguentariam ouvir um tomar no rabo Proustiano de sua amada e tambm foi dispensado. 98
Quando Albertine deixa escapar a expresso grosseir a tomar no rabo, o narrador proustianos fica horrorizado, pois o gueto temido da homossexualidade feminina, da conquista grosseira, que se revela repentinamente: uma cena inteira pelo buraco de fechadura da linguagem. (BARTHES, 2000, p. 40)
E por falar em no aguentar, eis que surge tambm, l no incio do livro, um estremecimento: extrado de... Adorvel quer dizer: este meu desejo, tanto que nico: isso! exatamente isso (que amo)! No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nome-la; preciso do alvo corresponde um estremecimento do nome; o prprio do desejo no pode produzir seno um imprprio do enunciado: Deste fracasso da linguagem, s resta um vestgio: a palavra adorvel!(a boa traduo de adorvel seria o ipse latino: ele, ele mesmo em pessoa) (BARTHES, 2000, p. 32).
Mas este apesar de possuir certa fora, que at encontramos em fragmento, no foi considerado o pai. A honra ou o martrio que carrega este nome (Pai) foi dado a quem mais apareceu no livro. Quantas vezes? No sabemos, mas muito fcil encontr-lo e ele : pensamento. Sem ele no h nada, e no falamos aqui do Nada budista que de fato tudo. No, aqui nada de niente, de nada feito, de coisa alguma... Puff. Alguns podem at estar pensando que as outras apresentadas tambm tiveram sua cota na criao da palavra fragmento. E no estamos aqui para tirar o direito de ningum, afinal as palavras me e pai, aqui, so apenas pares criadores figurados, e sendo assim damos o direito de qualquer um criar outros pares criadores. Seguindo esta linha de pensamento criador e fictcio, acreditamos que o pensamento foi quem fecundou a fragrncia, como fecundou outras, como fecundou tudo. Nada acontece sem que antes tenha sido pensado. No teremos, aqui, a ousadia (heresia) de dizer que ele (o pensamento) Deus, mas assim como Deus teve seu papel como criador, acreditamos que ao dizer isso, a semelhana j estar revelada. 99
Percebemos agora que ao brincar com o lxico, tal brincadeira s seria possvel/alcanada quando tais palavras (lxico) escolhidas eram no s escritas, mas tambm reveladas onde se encontravam, revelando assim a importncia de um sentido que vai alm do estilstico, penetrando largamente no semntico e no s grfico e/ou fonolgico, como inicialmente (ingenuamente?) foi proposto/experimentado por ns. E feito isso, agora como ficariam os corpus escolhidos por ns - agrupados como Roland Barthes fez/ensinou no livro Fragmentos de um discurso amoroso? Vamos responder a isto agora:
Werther 1. [...] O quadro amoroso, assim como o primeiro rapto, feito de lembranas posteriores: a anamnsia, que s reconstitui detalhes insignificantes, no dramticos, como se eu me lembrasse apenas do prprio tempo e nada mais; um perfume sem suporte um gro de memria, uma simples fragrncia; alguma coisa como um gasto puro, como s o haicai japons o soube dizer, que no recuperado em nenhum destino. (BARTHES, 2000, p. 209-210)
Werther 2. Achamos que todo enamorado louco. Mas podemos imaginar um louco enamorado? De modo algum. Eu s tenho direito a uma loucura pobre, incompleta, metafrica: o amor me deixa como louco, mas no comunico com a sobrenatureza, no h em mim nada de sagrado: minha loucura, simples perda da razo, insignificante e at invisvel; de resto totalmente recuperada pela cultura: ela no mete medo. ( entretanto no estado amoroso que certos sujeitos razoveis adivinham de repente que a loucura existe, possvel, esta bem prxima: uma loucura na qual o prprio amor naufragaria.) (BARTHES, 2000, p. 216)
Haicai No haicai japons, o cdigo exige que haja sempre uma palavra que indique o momento do dia e do ano; e o kigo, a apalavra-estao. Do haicai, a notao amorosa guarda o kigo, essa leve aluso chuva, tarde, luz, a tudo que banha, espalha. (BARTHES, 2000, p. 231)
RAPTO. Episdio tido como inicial (mas pode ser reconstitudo depois) durante o qual o sujeito apaixonado raptado (capturado e encantado) pela imagem do objeto amado (nome popular: gamao; nome cientfico: enamoramento). (BARTHES, 2000, p. 245)
Werther 3. [...] Certamente preciso algo que d partida ao amor, como ao rapto animal; o engano ocasional mas a estrutura profunda, regular, assim como cclico o acasalamento entre os animais (BARTHES, 2000, p. 248),
Rusbrock 4. [...] por outro lado, bem que percebo o pequeno movimento de agressividade que levou X... - sem que ele mesmo o saiba a me transmitir uma informao que magoa. (BARTHES, 2000, p. 255)
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Werther Werther se fantasia. De qu? De namorado encantado: ele recria magicamente o episdio do encantamento, aquele momento em que ele foi siderado pela imagem. (BARTHES, 2000, p. 258)
Proust Quando Albertine deixa escapar a expresso grosseira tomar no rabo, o narrador proustianos fica horrorizado, pois o gueto temido da homossexualidade feminina, da conquista grosseira, que se revela repentinamente: uma cena inteira pelo buraco de fechadura da linguagem. (BARTHES, 2000, p. 40)
Lacan 3. [...] Adorvel quer dizer: este meu desejo, tanto que Proust nico: isso! exatamente isso (que amo)! No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nome-la; preciso do alvo corresponde um estremecimento do nome; o prprio do desejo no pode produzir seno um imprprio do enunciado: Deste fracasso da linguagem, s resta um vestgio: a palavra adorvel!(a boa traduo de adorvel seria o ipse latino: ele, ele mesmo em pessoa). (BARTHES, 2000, p. 32)
O que quer dizer "pensar em algum"? Quer dizer: esquec-lo (sem esquecimento a vida impossvel) e despertar frequentemente desse esquecimento. Por associao, muitas coisas te trazem para o meu discurso. "Pensar em voc" no quer dizer nada mais que essa metonmia. Porque, em si, esse pensamento vazio: eu no te penso; simplesmente te fao voltar (na mesma proporo que te esqueo). essa forma (esse ritmo) que chamo de "pensamento": nada tenho para te dizer, a no ser que esse nada para voc que digo: (BARTHES, 2000, p. 59)
Goethe "Por que recorri novamente escritura? No preciso, querida, fazer pergunta to evidente, Porque, na verdade, nada tenho para te dizer; Entretanto tuas mos queridas recebero este papel." (BARTHES, 2000, p. 59)
Gde ("Pensar em Hubert", escreve comicamente na sua agenda o narrador de Paludes, que o livro do Nada.) (BARTHES, 2000, p. 59)
claro que esta brincadeira lexical feita aqui, s poderia existir em uma tese sobre F(f)ragmentos e fora de uma tautologia: a coisa por ela mesma (palavra muito utilizada por Barthes). Mas a inquietao que nos perseguiu ao longo deste livro precisava ser revelada, pois se por ventura algum se dispuser a conferir se o trabalho de busca e captura da palavra fragmento foi bem feito, fatalmente encontrar a mesma inquietao ou outras. E se isso acontecer, recomendamos que sente-se e escreva alguns fragmentos sobre o que est sentindo a gente tira ento o caderninho de apontamentos, no para anotar um pensamento, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso (BARTHES, 1975, p. 102). Para terminar este Freud dd 101
captulo s falta o ttulo, para esse corpus feito por ns, agrupados como Roland Barthes o fez: Fragmentos de uma leitura inquietante.
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4.3- O prazer do texto
O que um sentimento de prazer se no um sentimento animal, no aqui posto de forma pejorativa, mas como algo natural: no o homem um animal racional, os animais tambm no sentem prazer? E o que um texto se no algo produzido para ser lido: smbolos colocados em uma superfcie, que quando decodificados geram uma mensagem, mas para quem? Parece tudo muito claro e por isso algo at desnecessrio de se dizer, mas para ns que temos como tema, objeto de procura a palavra fragmento, dar uma parada (antes mesmo de comear?) de bom tom, pois nossa palavra totmica, por assim dizer, s aparece 3 (trs) vezes: fragmentos (BARTHES, 2002, p. 19), fragmentado (Idem, p. 55) e fragmentao (Idem, p. 74) e visivelmente concordado nas trs vezes em que apareceu contra as vinte e sete (27) da palavra sujeito (pp. 8, 12, 13, duas vezes na pgina 18, duas vezes nas pginas 21, 23, trs vezes nas pginas 28, 40, 41, 48, duas vezes na 58, 59, quatro vezes na 72, quatro vezes na 73, 74, 75) e todas s vezes, no singular! E tambm no nos passou despercebido: o trao de um corte (BARTHES, 2002, p. 28), repartidos e fracionam sendo estes dois ltimos na mesma pgina (BARTHES, 2002, p. 36). Lembrando que na introduo da tese dissemos que trabalharamos com alguns sinnimos, no todos, apenas com os que achssemos pertinentes. Mas por que essa diferena de 1 (um) para 9 (nove)? Nada mais natural j que quem escreve, escreve primeiro para si: seu primeiro crtico Gide sempre afirmou que escrevia por necessidade e que teria se suicidado se no tivesse podido escrever (DELAY, 1992, p. 575) e uma vez saciada tal nsia, depois, a questo Ponho-me a questo do texto do ponto de vista do outro; o outro no aqui o pblico, ou um 103
pblico (essa a questo do editor); o outro, colhido numa relao dual e como que pessoal, quem me ler. (BARTHES, 2004, p. 458), ou seja, o revelar para o outro: to sujeito como/quanto ele. E o que fazer agora, mudar de palavra (para sujeito?), pedir uma licena (carter de exceo)? Ainda no, continuemos com o que temos: a palavra (fragmento), num primeiro momento, parece ser aplicada de forma pejorativa: (1) Leiam lentamente, (2) leiam tudo, (3) de um romance de Zola, (4) o livro lhes cair das mos; (5) leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, (6) esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: (7) vocs querem que ocorra alguma coisa, e no ocorre nada (BARTHES, 2002, p.19)
Mas com Roland Barthes e sua escrita furiosa, caneta carregada de pontuaes que fazem os leigos tropearem como quem pula nas pedras de um rio pela primeira vez; em poucas linhas todo um universo que precisa ser desvendado com calma, e com o mesmo cuidado de quem quer desmontar uma bomba ou resolver um enigma, nos valeremos agora da mesma tcnica adotada por ele em S/Z: cada linha analisada (O significante de apoio ser recortado em uma sequncia de curtos fragmentos contnuos, que aqui chamaremos lexias, j que so unidades de leitura)(BARTHES, 1992, p. 47), no exausto, mas opinio (e para cada lexia, esses significados no visam estabelecer a verdade do texto [...] mas sim seu plural) (Idem, p. 48). No ser aqui apenas uma repetio de estilo, mas a partir deste: fragmentar sim, mas no s; organizar lentamente - na verdade dar mais nfase/tempo s paradas: uma vrgula com o tempo de um ponto final; ressuscitar significados h muito esquecidos: no ficar com apenas o Eu acho que sei o que significa essa palavra, mas ir de fato ao dicionrio pedir ajuda e descobrir o porqu de Roland Barthes a ter usado. E comecemos:
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(1) Leiam lentamente, - H duas velocidades, obviamente outra mais rpida; desde Novos ensaios crticos (seu primeiro livro) em La Rochefoucauld: Reflexes ou sentenas e mximas seu primeiro captulo: Pode-se ler La Rochefoucaud de dois modos diferentes: por citaes, ou de enfiada (BARTHES, 1974, p. 9) sua primeira linha; estamos falando de um livro publicado, originalmente, em 1953 e, agora, de O Prazer do texto publicado, originalmente, em 1973 e ele (Barthes), vinte anos depois ainda fala de velocidades e provavelmente ainda estaria falando se no fosse pela velocidade de uma caminhonete (de uma lavanderia) que o atropelou na rua des coles, diante do Collge de France, no dia 25 de Fevereiro de 1980, um dia nublado lembram testemunhas, s no sabiam nublado o quanto. Roland Barthes faleceria 6 de maro, nove dias depois, em consequncia dos ferimentos.
(2) leia tudo, E existe outra maneira de ser seno tudo? Sim, pois junto com a variao de velocidade, por assim dizer, vem tambm uma escolha: citaes ou enfiada. Na primeira a colho um pensamento (BARTHES, 1974, p. 9) e na segunda leio as mximas uma a uma, como uma narrativa ou um ensaio (Idem, p.9).
(3) de um romance de Zola, - Roland Barthes no Zola, ento devemos l-lo como? Se em obras clssicas parece ser possvel uma escolha: por citaes ou de enfiadas, em Barthes (escritor contemporneo/moderno) apenas usando a segunda maneira, isto se torna, no mnimo, perigosa, no que haja o risco de As mximas de La Rochefoucauld insistem a tal ponto sobre as mesmas coisas que no a ns que desvendam e sim ao seu autor (Idem. p. 9), mas por sua maneira de escrever: pontuaes que tornam a leitura ramificante (para dizer o mnimo); palavras de 105
pouco uso cotidiano como tmese e charivari (escondidas/esquecidas) 1 , que Barthes sabe ser do conhecimento de poucos, mas sabe tambm que se escrevesse tendo como base apenas o senso comum (o mediano, vocabulrio rotineiro), jamais seria o bom escritor que foi. E mesmo para aquelas palavras que pensamos conhecer devemos ficar atentos, pois seu texto s ser pertinente para os que realmente conhecem as palavras e no apenas sua superfcie 2 ; no estamos querendo, com estas observaes: palavra que no conhecemos e palavra que pensamos conhecer ou apenas conhecemos sua superfcie - chamar o leitor de inapto, mas apenas alertar para um hbito existente no texto barthesiano: estilstica melindrosa que tem por
1 tmese (pg. 17): - substantivo feminino 1 Rubrica: gramtica. Estatstica: pouco usado. m.q. mesclise 2 Rubrica: lingustica. Separao de dois elementos (normalmente adjacentes) que compem uma palavra ou uma construo, pela insero de um termo intermedirio (nas lnguas clssicas, pode ser simples intercalao como o elemento pr-verbal separado do verbo na poesia grega ou at mesmo ter as caractersticas do hiprbato, como no latim) (HOUAISS, 2009, pg.1850) .
2 articulao (pg. 18): - substantivo feminino Ato ou efeito de articular (-se) 11 Rubrica: lingustica. Propriedade das formas lingusticas de serem suscetveis de desmembramento em unidades menores (HOUAISS, 2009, pg.196).
perempto (pg. 19): - adjetivo Que no se encontra mais em vigor; que foi extinto por perempo; caduco (HOUAISS, 2009, pg.1472).
interstcio (pg. 19): - substantivo masculino Pequeno espao entre as partes de um todo ou entre duas coisas contguas (p.ex., entre molculas, clulas, dedos etc.) (HOUAISS, 2009, pg.1100).
fruio (pg. 19): - substantivo feminino 1 ato, processo ou efeito de fruir 2 posse, usufruto de vantagem ou oportunidade 2.1 Rubrica: direito civil. Num sentido amplo, aproveitamento ou utilizao de uma coisa 3 ato de aproveitar satisfatria e prazerosamente alguma coisa (HOUAISS, 2009, pg.932) . 106
objetivo a carnavalizao, palavra esta, aqui no s no sentido de subverso, mas tambm no sentido liberatrio (libertador), pois se em Aula ele afirma que a lngua fascista pois o fascismo no o impedir de dizer, obrigar a dizer (BARTHES, 2002, p.14) fica a pergunta: como algo que fascista pode permitir que algum (Sujeito) fuja de seu poder a lngua entra a servio de um poder (Idem, p. 14) usando suas mesmas ferramentas? Ser essa forma deturpada trapacear com a lngua (Idem, p. 14) to eficiente assim? E a resposta nos parece ser: sim, mas infelizmente tal ao para quem sabe. Talvez por isso s seja possvel desvendar o autor Roland Barthes por cmera lenta: mtodo mais seguro em se descobrir trapaas.
(4) o livro lhes cair das mos e isto por qu? Porque o escritor de hoje ainda no aprendeu a trapacear essa esquiva, esse logro magnfico que permite ouvir a lngua fora do poder, no esplendor de uma revoluo (BARTHES, 2002, p. 16) ou ainda no teve a coragem de se projetar sobre quem escreve como possvel narrar algum sem se projetar nesse algum (BARTHES, 1974, p. 45), ou ainda no teve uma vida como a de Proust que por uma, digamos, inverso em lugar de pr a sua vida no seu romance [...] fez da sua prpria vida uma obra (BARTHES, 2004. p. 57- 58.), diferente de Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou to pouco (BARTHES, 1974, p. 46), Proust tambm praticava a tal trapaa de Barthes atribuiu-se a tarefa de confundir inexoravelmente, por uma substituio, a relao entre o escritor e as suas personagens. E o dia que aprenderem (escritores modernos) que o romance termina quando finalmente a escrita se torna possvel (BARTHES, 2004. p. 57-58.), todos ns teremos o prazer de ter a reao de quem no conseguiu segurar o livro. 107
(5) leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, - As palavras texto moderno s aparecem duas vezes neste livro, ambas no mesmo pargrafo (p. 19); mas ao retrocedermos um pouco encontramos claramente o que Barthes quer dizer com Da dois regimes de leitura (BARTHES, 2002, p. 18), numa narrativa clssica o leitor fica tentado (e muitas vezes o faz) a sobrevoar ou passar por cima de certas passagens (pressentidas como aborrecidas) para encontrarmos o mais depressa possvel os pontos picantes da anedota (Idem, p. 17) e ao fazer isso fica igual a um espectador de cabar que subisse ao palco e apressasse o strip-tease da bailarina (Idem, p. 17), o texto moderno esse bvio: ter -se- alguma vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra? (Idem, p. 17). (6) esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: Se este livro (originalmente escrito em 1973: moderno, contemporneo) for lido de forma rpida e j sendo ele fragmentado, perder-se- muitas sutilezas, palavra que j salientamos na introduo desta tese: Essa sutileza decisiva (BARTHES, 1984, p. 127) - ser de vital importncia; pois somente com a ateno que uma leitura lenta pode proporcionar percebemos que o que Barthes sugere neste pargrafo no apenas um confronto entre narrativa mais clssica (Idem, 1984, p. 17) e o texto moderno (Idem, p. 19), mas sim um confronto desigual, que uma leitura rpida nos deixaria escapar: o que ele sugeriu foi, de fato leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola ou seja lentamente e tudo em oposio a leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, por tanto no se trata de simples clssico oposto ao moderno, mas um clssico: lento e tudo oposto a um moderno: rpido e fragmentado.
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(7) vocs querem que ocorra alguma coisa, e no ocorre nada. Realmente, se este livro for lido rpido - muito se perder, mas a quanto ser fragmentado: isto no ser um problema: no a extenso (lgica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significncia (Idem, p. 18). Barthes escreveu (como mtodo) neste livro o que gosta de encontrar nos clssico, um jogo, um saber trapacear com a lngua para mudar o desempenho da linguagem Mas a lngua, como desempenho de toda linguagem... (BARTHES, 2002, p. 14), que poucos conseguem entender, mesmo ele (Barthes), agora, ao explicar o que fez: como no jogo da mo quente, a excitao, provm, no de uma pressa processiva, mas de uma espcie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de sua destruio) (Idem, p. 18), no obter xito, pois muitos tm pressa e poucos pesquisam o significado de algumas palavras e como dissemos no incio deste captulo h palavras que merecem ser investigadas: as que desconhecemos e as que pensamos conhecer. E o sujeito para quem Roland Barthes escreveu o livro, aparece aqui como vocs, mas independente dessa interpretao/atribuio que demos, a palavra chave deste livro que no a palavra fragmento, mas sim sujeito e esta aparece algumas linhas (duas vezes) acima no momento em que cada mo (diferente) salta por cima da outra (e no uma depois da outra), que o buraco se produz e arrasta o sujeito do jogo o sujeito do texto (Idem, p. 18 grifo nosso). E agora em um comentrio nico, fugindo t emporariamente do mtodo usado por Barthes em S/Z, falaremos agora no de um encontro com a palavra fragmento, mas com o que acreditamos ser uma smile, e por no contradizer tudo o que escrevemos e acreditamos (se isso acontecesse estaramos dispostos a discutir e quem sabe at rever tudo, mas no foi o caso) achamos pertinente seu estudo.
Mas se creio, ao contrrio, que o prazer e a fruio so foras paralelas, que elas no podem encontrar-se e que entre elas h mais do que um 109
combate: uma incomunicao, ento me cumpre na verdade pensar que a histria, nossa histria, no pacfica, nem mesmo pode ser inteligente, que o texto de fruio surge sempre a maneira de um escndalo (de uma claudicao), que ele sempre o trao de um corte, de uma afirmao (e no de um florescimento) e que o sujeito dessa histria (esse sujeito histrico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar -se levando em conjunto o gosto pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialtico de sntese, nunca mais do que uma contradio viva: um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, atravs do texto, da consistncia de seu ego e de sua queda. (BARTHES; 2002, p. 28)
Aqui no temos a palavra fragmento, mas temos uma expresso no mnimo inquietante, isto , para quem tem a obrigao para com tal palavra (fragmento) em sua tese, ou seja: ns. No daria para passar despercebida tal expresso. Se enquanto em outros livros foi possvel/vivel estudar certos sinnimos (no todos, s os que achssemos pertinentes), como fugir de nossas obrigaes diante de um o trao de um corte: isso no o mesmo que fragmento s que em plena ao? Todo o contexto mostra sua fora: corte versus florescimento e uma possvel, a nosso ver, comparao com o que j estudamos de Punctum em Barthes. Ou seja: ser pessoal e por isso, muitas vezes, estar fora do alcance de quem quis produzir o Punctum, podendo ele mesmo: o autor do Studium, ser pego por um Punctum que ele mesmo no previu. O prprio Gide escrevia de tal maneira que fazia a obra agir sobre quem escrevia (ele mesmo), acreditando que uma obra fracassa quando no consegue alcanar tal modificao no escritor. Aqui, Barthes se assumiu como sujeito, ou melhor, um antropos () da histria ( assim que ele costuma chamar o sujeito) em particular dentre o antropos ( ) que so todos, que somos todos ns e que o sujeito dessa histria (esse sujeito histrico que eu sou entre outros). Na terceira palavra sujeito ele j retrata aqui a possibi lidade de existir um antropos () em paz com o que procura (ou encontra?), um ser to especial que somente dentro da Literatura: sentido de produtor e leitor, poderia receber um nome to sutil como sujeito, que ds entranhas da gramtica descrito como aquele que sofre ou pratica a 110
ao aqui descrito como sujeito clivado 3 , mas de todos os significados possveis atribudos a este adjetivo (clivado), qual o mais pertinente? Ter Roland Barthes pensado em divises do zigoto j que escreveu (e no de um florescimento); substituio de uma orao relativa no lugar de um sintagma - j que escreveu o trao de um corte; ou tal palavra foi usada como quem compara o texto como algo uno como um mineral, mas ao mesmo tempo fragmentvel ao longo de pl anos paralelos? Em Barthes certas palavras precisam ser esgotadas ao extremo, sob pena de no vermos a mgica na hora em que ela acontecer: no a extenso (lgica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significncia (Idem, p. 18). Na pgina trinta e seis (36) encontramos mais duas palavras que remetem a fragmento e so elas: repartidos e fracionam. ... Cada povo tem acima de si um tal cu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigncia da verdade, entende doravante que todo deus conceitual no seja buscado em outra parte a no ser em sua esfera (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidvel rivalidade que regula sua vizinhana. Pois cada falar (cada fico) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: o falar pretensamente apoltico dos homens polticos, dos agentes do Estado, o da imprensa, do rdio, da televiso; o da conversao; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tpica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, topos guerreiro. (BARTHES; 2002, p. 36- Grifo nosso)
O que d fora a primeira palavra sua vizinha pr-posta matemtica, ela produz ares de preciso (como em ares de fidalgo) que de fato no existe, j que
3 clivado (pg. 28): vem de clivagem - substantivo 1 Rubrica: embriologia. Cada uma das divises iniciais do zigoto 2 Rubrica: gramtica gerativa. Encaixe de uma orao relativa no lugar de um sintagma (Ex.: ele gosta de poesia, passa a; de poesia que ele gosta) 3 Rubrica: mineralogia. Propriedade que apresenta um mineral de se fragmentar ao longo de planos paralelos Ex.: a c. da mica em lamelas feldspato 4 Derivao: por extenso de sentido. Rubrica: poltica, sociologia. Separao, diferenciao ou oposio de grupos sociais ou tnicos 5 Rubrica: qumica. Quebra de uma molcula complexa em molculas mais simples 111
estamos falando de povo, que constitudo de sujeitos, que por sua vez mudam de opinio como um ator muda de cena, ento como precisar? Mas ao constatarmos que isto pertence a Nietzsche - este detalhe exegeta morre e ela ganha nova fora, pois o que o escritor quis de fato dizer que no importa a preciso em repartir, pois tal repartio vir sempre de sua esfera, ou seja: novos fragmentos podem ser montados, mas sempre sero limitados ao que a esfera deles puder oferecer. E por que Roland Barthes se vale deste comentrio? Porque para ele a linguagem tamb m possui um lugar limitante estamos todos presos na verdade das linguagens, nela tambm h uma luta pelo poder Pois cada falar (cada fico) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa e esta doxa o que seno a soma dos matematicamente repartidos de Nietzsche, lugar uno e provavelmente pobre at o dia em que a verdade possa ser encontrada em outras esferas. E enquanto isto no acontecer no vai adiantar o famoso Dividir para conquistar que Napoleo pegou emprestado de Jlio Cesar e nunca devolveu - os falares se fracionam, lutam entre si, pois a verdade de quem ganha ser sempre uma verdade impositiva Uma impiedosa tpica, regula a vida da linguagem, sempre lutando para no ser substituda a linguagem vem sempre de algum lugar por isso, sem dvida, um lugar de eterna guerra topos guerreiro e sendo assim, bem poderia ter utilizado a palavra topo-macheo (o-e) que significa guerrear ocupando os pontos estratgicos (PEREIRA, 1990, p. 577). Pena que na pgina quarenta e um (41) no aparea a nossa palavra estudada, l onde encontramos o que Barthes pensa sobre ideologia dominante: [Diz-se correntemente: ideologia dominante. Esta expresso incongruente. Pois a ideologia o qu? precisamente a ideia enquanto ela domina: a ideologia s pode ser dominante. Tanto justo falar de ideologia da classe dominante porque existe efetivamente uma classe dominada, quanto inconsequente falar de ideologia dominante, porque no h ideologia dominada: do lado dos dominados no h 112
nada, nenhuma ideologia, seno precisamente e o ltimo grau da alienao a ideologia que eles so obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de emprstimo classe que os domina. A luta social no pode reduzir-se luta de duas ideologias rivais: a subverso de toda ideologia que est em causa.] (BARTHES, 2002, p. 41)
bem verdade que um pouco antes, na pgina quarenta (40), aparece a palavra cortada, mas como aconteceu com sua sinonmia anterior, na pgina trinta e seis (36), foi usada de forma pejorativa, crtica, quase um salpico; exceto para dizer que s vezes o fragmentar no adianta, pode at ser feito, mas quando a origem/fonte est comprometida por ideias/ideais limitantes o que fazer? E isto compromete a tese? No, apenas avisa que, muitas vezes, fragmentar preciso e acontece a toda a hora, mas de pouca valia ter se o que for fragmentado, seus pedaos, no tiverem a liberdade de ser outras coisas se no o que a doxa ou a tpica permitir. Agora, voltemos ao mtodo S/Z de Barthes: (1) A. me confia que no suportaria que sua me fosse desavergonhada mas suportaria que o pai o fosse; (2) acrescenta: estranho, isso, no ? (3)
Bastaria um nome para pr fim a seu espanto: dipo! (4) A. est a meu ver muito perto do texto, pois este no d os nomes ou suspende os que existem; (5) no diz (ou com que inteno duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; (6) o Nome no vem aos lbios; fragmentado em prticas, (7) em palavras que no so Nomes. (8) Ao se transportar aos limites do dizer, numa mathesis d linguagem que no quer ser confundida com a cincia, (9) o texto desfaz a nomeao e essa defeco que o aproxima da fruio. (BARTHES, 2002, p. 55 Grifo nosso)
(1) A. me confia que no suportaria que sua me fosse desavergonhada mas suportaria que o pai o fosse o sexismo nada mais que a atitude de discriminao fundamentada no sexo (HOUAISS, 2009, p. 1740), Balzac com base justamente nessa predeterminao: quem faz o que, onde criou uma obra esplndida: em S/Z algo que deveria ter sido percebido logo de incio, no foi E algum dia subiram mulheres ao palco, em Roma? (BARTHES, 1992, p. 31), que Barthes no hesitou em analisar: nesta parte (a de nmero 469) considera revelado o que o personagem Zambinella um eunuco (Idem, p. 203) s que de forma sutil: o personagem no 113
responde, apenas abaixa a cabea e como no fragmento sacado o Nome no vem aos lbios, mas existe. (2) acrescenta: estranho, isso, no ? no nos inquietou aqui a pergunta em si: se era ou no estranho, mas a permisso de dar ao outro (sujeito) no a oportunidade de responder, mas a oportunidade de julgar, pois o que seria esta resposta seno uma sentena, mais do que uma mera explicao. (3) Bastaria um nome para pr fim a seu espanto: dipo! Barthes tem certa preocupao com os nomes, estes, mesmo quando no pronunciados esto l, ocultos por nuvens de medo ou desconfiana (quem sabe?), mas esto l, pode -se senti-los, talvez at melhor que quando so de fato pronunciados. (4) A. est a meu ver muito perto do texto, pois este no d os nomes ou suspende os que existem Barthes aponta tal prtica de ocultamento no texto, talvez, aqui o mgico comece a explicar como se faz o truque, a trapaa. (5) no diz (ou com que inteno duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; - Mas essa trapaa no exclusiva da literatura, dos textos; outros tambm fazem usam do ocultamento e junto com os nomes no ditos se escondem tambm as intenes no ditas: para o bem e para o mal. (6) o Nome no vem aos lbios; fragmentado em prticas, - O fragmento serve para esconder tanto quanto serve para revelar, no segundo caso - no um revelado somente (oculto versus exposto), mas a alterao do que j era exposto: o camuflado O senhor no sabe quais criaturas fazem os papis femininos nos domnios do Papa? (BARTHES, 1992, p. 31); no primeiro caso o ocultamento se faz no em retirar os elementos, mas em expor demasiados elementos tpico, conhecidos; mas que por um descuido do sujeito passivo, provocado/iludido por 114
demasia de informaes sui generis do sujeito ativo (fragmentos encadeados em srie), fica escondido por interpretao errnea e no por ocultao fsica. (7) em palavras que no so Nomes. A palavra (nome) eunuco simplesmente no aparece na novela Sarrasine de Balzac: O senhor no sabe quais criaturas fazem os papis femininos nos domnios do Papa? (BARTHES, 1992, p. 31), , pois at um... No terminou a frase. (BARTHES, 1992, p. 32), a origem de uma fortuna que provm... (Idem, p. 34), No se fabricam mais dessas infelizes criaturas (Idem; p. 35). (8) Ao se transportar aos limites do dizer, numa mathesis d linguagem que no quer ser confundida com a cincia, curioso, essa palavra mathesis que quer dizer matemtica: j apareceu em O Prazer do texto citado por Nietzsche e agora talvez por Descartes, se a entendermos como uma aluso a mathesis universalis (matemtica universal): designao criada por ele para tentar padronizar a razo usando as teorias matemticas; ela vem ( dita) e ao mesmo tempo recusada (que no quer ser confundida com a cincia), Barthes no nega a utilidade da matemtica, caso contrrio por que cit-la trs vezes (matematicamente repartidos p. 36, mathesis geral p. 45, mathesis da linguagem p. 55)? Mas sempre a usa do mesmo modo daqueles que ele cita, de forma adaptativa: Palavra que no deve ser entendida no sentido retrico, mas no sentido ginstico ou coreogrfico (BARTHES, 2000, p. 14). (9) o texto desfaz a nomeao e essa defeco que o aproxima da fruio. na omisso de uma palavra (desfaz a nomeao) por sua substituio (defeco: abandono voluntrio e consciente de uma obrigao ou compromisso, apud HOUAISS, 2009, p, 605) que o que se quis dizer dito, no mais agora de forma sutil (dentro do texto), mas por sua ausncia o questionamento de no a usar, 115
fugir, gera no sujeito (fora do texto) um novo texto; o que se usou para eufemizar uma situao (constrangedora?) na verdade a hiperboleizou: eis a fruio! Agora trabalharemos a ltima palavra fragmento encontrada no livro; mais uma vez a palavra sujeito a acompanha. (1) Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura ou dos leitores de prazer; no seria sociolgica, pois o prazer no um atributo nem do produto nem da produo; s poderia ser psicanaltica, empenhando a relao da neurose leitora na forma alucinada do texto. (2) O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentao das citaes, das frmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. (3) O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (esta classe reuniria todos os logfilos, linguistas, semiticos, fillogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). (4) O paranoico consumiria ou produziria textos retorcidos, histrias desenvolvidas como raciocnios, construes colocadas como jogos, coeres secretas. (5) Quanto ao histrico (to contrrio ao obsessional), seria aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comdia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que j no o sujeito de nenhum olhar crtico e se joga atravs do texto (o que muito diferente do se projetar nele). (BARTHES, 2002, p. 74 Grifo nosso)
(1) Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura ou dos leitores de prazer; no seria sociolgica, pois o prazer no um atributo nem do produto nem da produo; s poderia ser psicanaltica, empenhando a relao da neurose leitora na forma alucinada do texto. O prazer no ser de responsabilidade nem do produto: resultado final, nem da produo: ato de produzir, sendo assim, s restaria mesmo recair sobre o sujeito: leitura e leitores so atributos do sujeito.
(2) O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentao das citaes, das frmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra Mais uma vez lembramos que a escolha de palavras que Barthes faz em suas obras de vital importncia; algumas vezes esclarecedoras, mas em outras intrigantes, por exemplo: 116
fetichista no necessariamente um homem apressado em obter prazer, ento por que a usou? Talvez pelo fato de sua caracterstica mais marcante ser a individualidade do seu objeto de prazer, para ele s interessa aquilo, da a permisso de excluir o resto, cortar, fragmentar.
(3) O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (esta classe reuniria todos os logfilos, linguistas, semiticos, fillogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). aqui temos palavras que nos remetem a vrias sutilezas, verdadeira orgia de sutilezas, se nos permitem dizer: comeando com obsessional bem poderia estar em itlico, j que o prprio dicionrio Houaiss no a reconhece, mas o de Ingls o reconhece como obsession (COLLINS, 2001, p. 222) por tanto, temos um neologismo formado do ingls (j que em portugus seria obsesso, obsessivo, obsesso e no obsessional) com o prefixo al que indica relativo a... como em comportamental; a palavra voluptuosidade tem mais definies ligadas a prazer, sexo, libido a que volume propriamente dito; a palavra logfilos geralmente esta mais liga a um sentido pejorativo a que elogioso, principalmente quando a encontramos perto de fillogos: Em Elementos de filologia romnica temos o seguinte comentrio Ao fillogo interessa a comunicao, o contedo significativo e enriquecimento da mensagem, enquanto para o logfilo palavras so palavras apenas. Evidente o sentido pejorativo de logfilo (BASSETTO, 2001, p. 24) e pelo visto Barthes no concorda com este sentido, caso contrrio por que incluir este nome ao lado de outros em que admitem a palavra como algo ginstico ou coreogrfico (BARTHES, 2000, p. 14) ?
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(4) O paranoico consumiria ou produziria textos retorcidos, histrias desenvolvidas como raciocnios, construes colocadas como jogos, coeres secretas. Este tipo parece exerce um jogo, mas no o jogo de que Barthes prega em Aula, a escrita paranoica, a princpio, parece ser usada para fugir do poder, mas na verdade ela nada mais que uma consequncia de uma vtima, talvez sequelada, deste poder e no a prpria mente em sua fuga por trapaa e/ou esquiva.. .
(5) Quanto ao histrico (to contrrio ao obsessional), seria aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comdia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que j no o sujeito de nenhum olhar crtico e se joga atravs do texto (o que muito diferente do se projetar nele) Um histrico no uma pessoa que classificaramos como algum que gosta de ganhar dinheiro, mas se entendermos como aquele que se mostra extremamente nervoso e exaltado (HOUAISS, 2009, p. 1028) por dinheiro, ento entendemos que em sua pressa de ganh-lo - se perde, atropela as sutilezas, que at so substitudas por outras, mas por sua evidncia fracassam Certos detalhes poderiam me ferir. Se no o fazem sem dvida porque foram colocados l intencionalmente pelo fotgrafo (BARTHES, 1984, p. 75) e assim como nas fotos um punctum colocado no texto no deve ser histrico. A charivari um barulho que para Barthes causa uma multiplicao de possibilidades, mas para outros uma impossibilidade de compreenso, da a soluo de acelerar a leitura; o que torna o texto moderno perempto no a fragmentao, mas essa pressa de alcanar um prazer que de fato existe, mas est escondido/colocado fora de alcance para aqueles que no quiserem participar do jogo, um jogo que s possvel numa releitura, pesquisando, comparando: internamente e exteriormente ao texto do livro, dentro da obra Barthesiana como em 118
outras, enfim, tudo o que uma pessoa (sujeito) apressada/ansiosa no quer, e no fim o que restar? Provavelmente algum que no gostou de um livro chamado: O prazer do texto. Em Novos ensaios crticos, Barthes diz que podemos ler La Rochefoucauld por citaes, ou de enfiada (BARTHES, 1974, p. 9), em O prazer do texto propem Leiam lentamente tudo, de um romance de Zola [...] leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno (BARTHES, 2002, p.19); e ns o que fizemos? Ficamos com os dois, de forma adaptada, mas ficamos com os dois: ns lemos por citaes j que nossa proposta era procurar e entender como Roland Barthes usa/entende a palavra fragmento e depois que a localizamos ns lemos de enfiada tudo que estava relacionado a ela. 119
4.4. Mitologias - Escrever para gerar polmicas mveis e no verdades estticas
Em Mitologias (1957), livro dividido em duas partes, na primeira encontramos breves artigos mensais intitulados Mitologia do Ms para Les Lettres Nouvelles e que acreditamos: formam uma escrita de fragmento, no que cada captulo (artigo) seja fragmentado como em Fragmentos de um discurso amoroso (1977) ou em O prazer do texto (1973), mas por os considerarmos fragmentos completos cuja soma resulta em um inteiro - o mito: segunda parte intitulada Myth Today (2. O MITO, HOJE). Mas sendo assim o que torna este livro diferente de outros escritos por ele como Crtica e Verdade (1966) ou A Aventura Semiolgica (1985)? A diferena est justamente na existncia de uma segunda parte - que funciona - como uma cola ou uma rea limitante em nosso gabarito mental, sendo esta ltima palavra (limitante) usada aqui no de forma pejorativa, antes funcional para no nos perdermos no grande e polivalente corpus apresentado por Barthes: Luta livre (o mundo do cath) (BARTHES, 1972, p. 11), cinema (os romanos no cinema), brinquedos (um microcosmo adulto), bife com batatas fritas (quem j no disse ou ouviu: voc esteve na minha casa, comeu da minha comida) (Idem, p. 54), cozinha ornamental (... prpria finalidade da cobertura, que de ordem visual,...) (Idem, p. 77), strip-tease (ler este mito junto com 10. Trajes de Pierre Loti: AZIYAD de novos ensaios crticos algo bem complementar) (Idem, p. 93), fotografia (fotos-choque: no basta que o fotgrafo nos signifique o horrvel para que o sintamos (Idem, p. 67) e fotografia eleitoral: ... a fotografia possui um poder de converso que se deve analisar) (Idem, p, 102) e isto no so todos os exemplos que encontramos em Mitologias (1957), so apenas alguns. 120
O importante agora entendermos que a diferena no reside apenas no fato de haver pura e simplesmente uma segunda parte, s em A Aventura Semiolgica (1985) existem trs, mas por esta segunda parte (apesar dela mesma estar sub-dividida em onze partes) apresentada no livro Mitologias (1957) funcionar como a explicao terica dos fragmentos em ao, que a primeira parte toda (1. MITOLOGIAS). Se s tivssemos a primeira no livro, este bem poderia ter outros nomes como Provocaes ou Inquietaes, teramos um inteiro sim, do mesmo jeito, mas seria um inteiro voltil. Fragmentos (artigos/captulos) reunidos apenas pelo ttulo no deixam de ser fragmentos, mas no so os fragmentos que queremos estudar, so pobres, so s exemplos (Todo exemplo vagabundo: como diz nosso orientador), so peas de qualquer quebra-cabeas, loucos por demais Estou louco (BARTHES, 2000, p. 215); para algumas obras o melhor ser fraco-atirador como Barthes. E por Mitologias (1957) ser/ter diferena escolhemos esta obra em detrimento de outras menos representativas. por ser como ela : contedo funcional e no somente parte (uma das partes) do que , que chegamos concluso: Mitologias (1957) seguramente uma das melhores obras para se trabalhar em se tratando de Escrita de Fragmento. Exprimi esse ofuscamento e essa esperana no posfcio das Mitologias, texto cientificamente envelhecido talvez, mas texto eufrico, pois que dava segurana ao engajamento intelectual dando- lhe um instrumento de anlise e responsabilizava o estudo do sentido dando-lhe um alcance poltico. (BARTHES, 2001, p. XIII)
Em A Aventura Semiolgica (1985), de onde veio este fragmento acima, tambm temos/encontramos um agrupamento de textos (fragmento) Os textos que se seguem pertencem todos ao que foi a atividade de pesquisa e de 121
docncia de Barthes (BARTHES, 2001, p. VII), mas como ocorre tambm em Crtica e verdade (1966) no h neles algo como o que ocorre em Mitologias (1957): um posfcio que d vida ao que foi apresentado anteriormente. Tanto no primeiro: dividido em trs partes (1.ELEMENTOS, 2.DOMNIOS, 3.ANLISEA) como no segundo: dividido em ENSAIOS CRTICOS e CRTICA E VERDADE as partes no se interagem como ocorre assumidamente em Mitologias (1957) e admitido pelo prprio Barthes no livro A Aventura Semiolgica (1985). verdade que ele coloca Crtica e verdade (1966) na lista de livros que ele considera Escritura Curta, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), e exclui A Aventura Semiolgica (1985), pois como podemos notar pelas datas, este ltimo s seria escrito dez anos depois.
Desde ento, de fato, no cessou de praticar a ecritura curta: quadrinhos das Mythologies e de LEmpiere des signes, artigos e prefcios dos Essais critiques, lexias de S/Z, pargrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plasir Du texte.(BARTHES, 1977, p. 101).
Mas para o melhor desenvolvimento desta pesquisa elegemos trabalhar assumidamente com este: Mitologias (1957), deixando/usando outros livros com seus respectivos fragmentos para momentos que julgarmos oportunos, como acabamos de fazer em unir o mtodo que Barthes usou em S/Z (1970) para trabalharmos no livro O prazer do texto (1973) e neste mtodo inclumos fragmentos de outras obras tanto as de Barthes como as de outros. Mas a tese no se limita s a copiar tcnica e colar fragmentos. Tambm h a preocupao em contribumos com o pensamento de Barthes, dando uma continuidade a seu trabalho. Fizemos isso em Cmara clara (1980): ao imputarmos um pensamento pela tica de quem tira a foto: o Operator 122
(Primoris Visum, Attentus Visum, Animus Simulandi) j que como ele mesmo disse: Uma dessas prticas me estava barrada e eu no deveria procurar question-la: no sou fotgrafo, sequer amador (BARTHES, 1984, p. 20) e por isso escreveu sobre a tica de quem (Spectrum) ou v (Spectator) a fotografia Eu tinha minha disposio apenas duas experincias: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha. (BARTHES, 1984, p. 21 e 22). Em Novos ensaios crticos (1972) comparamos La Rochefoucauld e suas mximas com o que poderamos chamar (e quem sabe um dia se chamar) as mximas de Machado de Assis. Ao analisarmos Fragmentos de um discurso amoroso (1977) fizemos um texto final usando todo o corpus estudado ao estilo que usou para produzir o prprio livro. Em O prazer do texto (1973) j dissemos o que fizemos (usamos o mtodo em S/Z) e neste agora, Mitologias (1957), uniremos a semitica explicativa de Barthes esse meio era a semiologia ou anlise fina dos processos de sentido (BARTHES, 2001, p. XIII) com exemplos (corpus) potencialmente equivalentes se no em assuntos ao menos equiparados em euforia mas texto eufrico (BARTHES, 2001, p. XIII), esta ser nossa contribuio, neste. A propsito do mito, diz Barthes que tudo pode lhe servir de suporte: Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existncia fechada, muda, a um estado oral, aberto apropriao da sociedade, pois nenhuma lei, nat ural ou no, pode impedir-nos de falar das coisas.(BARTHES, 1972; p. 131)
Partindo de casos concretos da vida cotidiana francesa, Barthes pretendeu realizar um trabalho de depurao dos mitos contemporneos, numa crtica ideolgica da cultura de massa. Algo o incomodava profundamente no modo como esses mitos se veiculavam, na confuso entre Natureza e Histria 123
sobre a qual eles se instalavam esse meio era a semiologia ou anlise fina dos processos de sentido graas aos quais a burguesia converteu a sua cultura histrica de classe em natureza universal (BARTHES, 2001, p. XIII). Queria chamar a ateno para os significados ocultos que, desprevenidamente, consumimos nos diferentes discursos. O prprio desses discursos (fossem eles verbais ou icnicos) era apresentarem-se com uma aparncia de naturalidade absoluta, como aquilo que simplesmente assim, que o senso comum no discute, mas apenas aceita. O autor analisa o embuste na prpria forma de mensagem que, desmontada, revela sua artificialidade. Ora, a eficcia da mensagem ideolgica reside justamente no fato de ela se apresentar como transparente, sem nenhuma inteno, pois um mito sempre conta com um libi pronto: seus praticantes sempre podem negar (ou esconder) que um sentido de segunda ordem esteja envolvido, afirmando que vestem certas roupas por uma questo de conforto ou de durabilidade, e no de sentido. Quando Barthes considera o automvel moderno... O equivalente das grandes catedrais gticas: quero dizer, a suprema criao de uma era, concebida com paixo por artistas desconhecidos e consumida, em sua imagem, seno em seu uso, por todo um povo que se apropria dele como de um objeto perfeitamente mgico (BARTHES, 1967, pg.150 do original em francs) 1
Como um automvel pode ter todo este poder? Estamos falando de quatro rodas e um volante, certo? Ou ao adquirirmos um nouvelle Citron estaremos ganhando mais do que simples locomoo?
1 Roland Barthes, MYTHOLOGIES (verso francesa, a verso traduzida para o portugus NO POSSUI DEZ MITOS: Lacteur dHarcourt, Dominici, Romans et Enfants, Paris na ps t inond, Quelques paroles de M. Poujade, Adamov et l langage, Racine est Racine, L procs Dupriez, L Tour de France comme pope E La nouvelle Citron; sendo este ltimo - o citado - encontrado na pg. 150 do original em francs). 124
Barthes no revela neste ensaio as artimanhas usadas na propaganda, prefere agora entrar na fila como todos os outros e como os filsofos faziam na antiguidade, vai aos poucos provocando: onde estaria o encanto, por que tanto alvoroo? Ele existe, fato, est at na capa da Paris Match n 340. Neste momento Barthes trabalha dentro da lngua, combate iluso no com explicao, mas antes com um ver melhor; enquanto outros discutem se o copo est meio cheio ou meio vazio, o mitlogo abre uma conversa sobre a prpria metfora do copo: o que torna esta discusso profcua at hoje. E como Barthes s vai trabalhar como semilogo na segunda parte, ficou para ns a tarefa de analisar semiologicamente a razo de tamanho alvoroo, e j que no vivemos na Frana do ano de 1955 o melhor pegarmos hoje (2010) o que existe de melhor para nos ajudar na rdua tarefa. Em Semitica visual (PIETROFORTE, 2007) encontramos um professor/autor que estuda os textos de J. M. Floch 2 , em Smiotique, marketing e communication ele encontrou um texto que atende no s a propaganda de automveis, mas a propaganda de um modo geral, no captulo Jaime, Jaime, Jaime... (FLOCH, 1995, p.119-152) tal ensaio prope uma apologia dos modos de valorizao utilizados pela propaganda publicitria, que pode fornecer as bases para a rede de relaes que buscamos determinar:
2 O semioticista francs Jean-Marie Floch (1942 2001) considerado um dos fundadores da Semitica visual, foi um dos principais e mais prximos colaboradores de Algirdas J. Greimas na elaborao da teoria semitica geral. 125
a valorizao prtica corresponde aos valores de uso, concebidos como contrrios aos valores de base (so os valores utilizados, como o manuseio, o conforto, a potncia,...); a valorizao utpica correspondente aos valores de base, concebidos como contrrios aos valores de uso (so os valores existenciais, como a identidade, a vida, a aventura, ...); a valorizao ldica corresponde negao dos valores utilitrios (a valorizao ldica e a valorizao prtica so contraditrios entre si; os valores ldicos so o luxo, o refinamento,...) a valorizao crtica corresponde negao dos valores existenciais (a valorizao crtica e a valorizao existencial so contraditrias entre si; as relaes qualidade/preo e custo/benefcio so prprias dos valores crticos).(FLOCH Apud PIETROFORTE, 2007, p.33, grifo e setas nosso)
Toda propaganda trabalha cruzando essas informaes, ora evidenciando uns e escondendo outros, por exemplo: h uma marca de detergente que diz fazer o mesmo trabalho do concorrente a um preo mais baixo, ou seja, a valorizao prtica (lavar mais, menos trabalho) evidenciada junto com a valorizao crtica (custo/benefcio), mas eis que vem o concorrente e diz que ambas as vises de valor esto distorcidas, pois para se fazer o mesmo trabalho 126
seria preciso fazer mais de uma lavagem (quebra da valorizao prtica), logo isso no seria prtico e por conseguinte tambm no seria econmico (quebra da valorizao crtica). E vale salientar que ainda no vimos o primeiro concorrente dar uma resposta (contrarrplica) a essas duas quebras. Na propaganda La nouvelle Citron temos a clara valorizao utpica, que Antonio Vicente Pietroforte salienta utpico aqui no quer dizer ilusrio, mas relativo a uma meta final (PIETROFORTE, 2007, p. 32) que bem poderia ser exemplificada como A cenoura na frente do burro; quem no quer vencer na vida, e mais, mostrar que venceu. Para que isso acontea a valorizao crtica (custo/benefcio), que no quadro semitico apresentado nega a utpica (identidade, vida, aventura), no entra aqui como obstculo uma vez que caro, mas como superao de obstculo: uma vez que isso, o preo, no impediu o sujeito de acrescentar valorizao prtica (a necessidade de se deslocar) o conforto de quem merece mais por ter feito mais, a valorizao ldica (luxo, refinamento). O mitlogo se coloca numa posio de cumplicidade com relao ao que ataca, conforme articula aquilo que no preciso dizer, desvelando o sentido mtico - ele no nada contra a correnteza, mas como um judoca que usa a fora do prprio adversrio contra ele mesmo, com a lngua, usa: no o obrigar a dizer (BARTHES, 2002, p. 14) do fascismo, mas um completar ao dizer. Um sujeito compra um televisor de LCD maior, maior que o do vizinho, logo vai se divertir, pois um televisor maior,e, maior que o do vizinho. Em Mitologias (1957) Barthes revela o jogo, a trapaa salutar que lemos em Aula (BARTHES, 2002, p. 16), pois aqui o que est em jogo no um ouvir a lngua fora do poder (Idem, p. 16), mas um revelar o poder para que 127
ele perca sua fora, sua influencia, enfim, um E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertar. (Joo 8:32) como est escrito na bblia no para demonstrar religiosidade, pois Barthes era Protestante num pas catlico como a Frana, canhoto num mundo de destros e homossexual assumido em plena sociedade conservadora 3 , mas para avisar o Sujeito de que "Nem tudo que reluz ouro." (Adgio Popular). E quem sabe, conhec-lo melhor. E aps a primeira parte, onde no encontramos a palavra fragmento, logo no incio do que O MITO COMO SISTEMA SEMIOLGICO: Efetivamente, como o estudo de uma fala, a mitologia apenas um fragmento desta vasta cincia dos signos que Saussure postulou h cerca de quarenta anos atrs, sob o nome de semiologia. A semiologia ainda no se constituiu. No entanto, desde o prprio Saussure, e por vezes independentemente do seu trabalho, todo um setor da pesquisa contempornea retorna incessantemente o problema da significao: a psicanlise, o estruturalismo, a psicologia eidtica, certas novas tentativas de crtica literria que Bachelard inaugurou, pretendem estudar o fato apenas na medida em que ele significa. Ora, postular uma significao, recorrer semiologia. No quero dizer com isto que a semiologia cubra igualmente todas estas pesquisas: elas tm contedos diferentes. Mas todas tm estatuto comum, so todas elas contedo elas cincias dos valores; no se contentam em circunscrever o fato: definem-no e exploram-no como um valor de equivalncia. (BARTHES, 1972, p.133)
Para falarmos desse pargrafo transcrito acima, ser preciso fazermos uma rpida visita Elementos de Semiologia (BARTHES, 1993). Logo no incio Barthes prope uma correo ao pensamento de Saussure que era: que a Lingustica era apenas uma parte da cincia geral dos signos (BARTHES, 1993, p. 11). Pois ao analisar mais de perto esta questo A semiologia s se ocupou, at agora, de cdigos de interesse irrisrio, como o cdigo rodovirio [...] parece cada vez mais difcil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujo significados posam existir fora da linguagem: perceber o que significa uma substncia ,
3 BAYLEY, Barthes is Back. Disponvel em <http://www.jorwiki.usp.br/gdmat06/index.php/Barthes.>. Acesso em 20/11/2009. 128
fatalmente, recorrer ao recorte da lngua: sentido s existe quando denominado, e o mundo dos significados no outro seno o da linguagem (Idem, p. 12)
Sendo linguagem aqui entendida como forma de pensar. Mas o que ele quer dizer com isso que acabou de ser revelado? Como o pensar pode mudar um significado? Atravs da significao, que nada mais que o significado aberto, buscar novos significados, em resumo, o potencial de/para significar. Por exemplo, vamos usar os cdigos de interesse irrisrio, como o cdigo rodovirio (Idem, p. 12), quem j parou para pensar em quantas possibilidades existem em uma simples placa de: Proibido estacionar. Vamos contar juntos e descobrir:
1 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar e no estaciona. A placa entendida no seu sentido denotativo (valor de dicionrio) 4
4 Acreditem se quiser, foi dificlimo achar uma foto de Proibido estacionar sendo respeitada na Internet, esta aqui foi conseguida em um Site sobre fotografias (Meu mundo em Preto e Branco - A viso do mundo nos olhos de um fotgrafo amador). Autor da foto: Carlos Altman , titulo: Proibido. Disponvel em: <http://i211.photobucket.com/albums/bb278/irmaosbrain2/proibido-estacionar-post.jpg>. Acesso em 16/06/2007. 129
2 O sujeito alega no ter visto a placa de Proibido estacionar 5 , pois esta se encontrava escondida por folhagens.
3 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar e como ele no est de carro, no s pode como serve 6 .
4 O sujeito avista a placa, mas como esse sujeito no um sujeito qualquer 7 ... e como j diz a msica Z NINGUEM do Biquini Cavado Eu
5 Esta foto foi tirada em 29 de abril de 2007 em Menino Deus, Porto Alegre, RS, Brasil, usando um Sony Ericsson W800i. Por analoca (Ana Paula Locatelli), ttulo: Warning Sign. Disponvel em http://www.flickr.com/photos/analoca/477244759/ Acesso em 29/06/2007. 6 Autor da foto: Joo Miguel, ttulo: Proibido estacionar. Disponvel em http://www.trekearth.com/gallery/South_America/Brazil/Northeast/Pernambuco/Triunfo/photo1035273.ht m. Acesso em 23/07/2009; 7 Foto esquerda de Angelo 'Thunder' e Rafaela Mattia, ttulo Guarda municipal dando exemplo. Disponveis em: 130
sou do povo, eu sou um Z Ningum Aqui embaixo, as leis so diferentes ... 8
5 O sujeito avista uma placa 9 , mas alega s ter obrigaes com as placas oficiais 10
6 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar e, para no ter que obedecer ou ter problemas, retira a placa 11 : como fez esse flanelinha, nesta foto publicada pelo jornal O LIBERAL no dia 27/02/2007. Flanelinha,
< http://umdenosdois.blogspot.com/2009/11/guarda-municipal-dando-o-exemplo.html. E foto direita disponvel em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/08/123919internauta+flagra+carro+da+secretaria+da+faze nda+estacionado+em+local+proibido+em+vitoria.html>. A Gazetaonline no divulgou o nome do internauta (autor da foto) por motivo de segurana, o ttulo: Internauta flagra carro da secretaria da fazenda estacionado em local proibido em Vitria. Aceso em 23/08/2009; 8 Letra da msica disponvel em: http://letras.terra.com.br/biquini-cavadao/44611/ Acesso em 23/08/2009. 9 Placas ridculas, postado por ViOxX on 12 de agosto de 2008 Marcadores: Imagens / disponvel em: http://static.blogstorage.hi-pi.com/photos/portrui.spaceblog.com.br/images/gd/1224357019/Proibido- Estacionar.jpg Acesso em 16/06/2009. E Estacionamento proibido, por : Odete Ronchi Baltazar. Disponvel em: http://www.riototal.com.br/coojornal/odetebaltazar053.htm. Acesso em 16/06/2009. 10 Disponvel em : http://www.placasonline.com.br/sistema/ListaProdutos.asp? Aceso em 16/06/2009 11 A foto acima foi publicada pelo jornal O LIBERAL no dia 27/02/2007. O jornal no revelou o nome do fotgrafo por motivo de segurana. Disponvel em: http://euodeioflanelinhas.blogspot.com/2009/07/flanelinha-e-flagrado-retirando-placa.html. Acesso em 16/06/2009. 131
espertalho, retira placa que probe estacionamento na 15 de Novembro, simples como isso!
7 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar nibus e caminhes, mas como quem a colocou parece ser intransigente (talvez insensvel) com quem trabalha, logo, quem trabalha parece ser intransigente (talvez impaciente) com quem a colocou: Caminhes fazem fila em local proibido para estacionarem Valparaso, na Serra (ES). Diariamente! 12
12 Foto: enviado por Pedro Carlos Monteiro Filho | CIDADO REPRTER. Disponvel em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/03/613013- motoristas+de+caminhao+nao+respeitam+placa+de+proibido+estacionar+em+valparaiso+na+serra.html. Acesso em 16/06/2009; 132
8 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar e a respeita: no estaciona na rua... estaciona na calada 13 , afinal, d para o pedestre passar! ?!?
9 O sujeito avista uma placa, mas no a entende, pois ele est em Portugal 14 e no no Brasil, e l as placas so diferentes.
10 O sujeito avista a placa de Proibido estacionar, mas como - no vai demorar - estaciona do mesmo jeito. A foto a seguir de uma reportagem
13 Por Flvio Lapa Claro em 13/02/2009, ttulo: Os donos do pas. Disponvel em: http://www.investigadordepolicia.blog.br/wp-content/uploads/2009/02/das13feb_0011.jpg . Acesso em 16/06/2009; 14 A primeira sem autor por se tratar de placa oficial. Disponvel em: <http://www.4freephotos.com/pt/Estacionamento_proibido_assinar-image- f83c5738224858691f1d1f1b21e7a445.html . Acesso em 16/06/2009. - E a segunda por: Joo Dias, ttulo: Padro dos descobrimentos, disponvel em: http://br.olhares.com/proibido_estacionarmorarfoto621565.html>. Acesso em 16 /06/2009. C16 - Paragem e estacionamento proibidos Indicao da proibio permanente de parar ou estacionar quaisquer veculos. Esta segunda foto possui uma brincadeira visual, mas s ser entendida por quem conhecer o significado da placa em Portugal 133
do jornal O Globo Os veculos, segundo a Guarda, ficaram no local por menos de meia hora 15
. 11 O sujeito avista a placa de Proibido Estacionar, mas como calcula que haver espao, estaciona: Motoristas ignoram entrada de garagem - Texto e fotos enviados ao jornal Zero Hora por Jlio Alexandre Santos, 42 anos, representante comercial e morador da 24 de Outubro 16
Como podemos observar o que parecia, de incio, prova de dvidas se transformou numa Babel de interpretaes adaptadas, e como isso foi possvel?
15 Viaturas da guarda municipal estacionadas em lugar irregular na Rua Gotemburgo, em So Cristovo, por Cleber Jnior. Disponvel em< http://oglobo.globo.com/rio/mat /2009/03/10 / guarda-municipal- estaciona-carros-sobre-calcada-em-local-proibido-754778204.asp> Acesso em 16/06/2009; 16 Motoristas ignoram entrada de garagem, por Jlio Alexandre, enviados ao jornal Zero Hora. Disponvel em: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1862292.xml&template =3898.dwt&edition=9866§ion=821. Acesso em 16/06/2009. 134
Enquanto a semiologia estuda a substncia visual (BARTHES, 1993, p. 12): a arbitrariedade do signo, o smbolo como algo menos arbitrrio mas ainda assim arbitrrio, no consenso universal (vide Portugal) por isso menos. Outros poderiam constituir o smbolo atual: a letra E que inicia a palavra Estacionamento, em negrito, tamanho de folha A4, em um crculo vermelho que a sinaliza com mais uma diagonal que a probe, e, ainda assim todos seriam transpassados por interpretaes que fazem a regra especfica para todos se transformar em casos individuais para alguns; pois logo que passamos a conjuntos dotados de uma verdadeira profundidade sociolgica, deparamos novamente com a linguagem (Idem, 1993, p.12). Muitos podem dizer que esta pequena mitologia sobre: placas de transito aqui demonstrada; no s como possibilidades tericas, mas por fatos que ocorrem em nossa sociedade, da ser mitologia, e devidamente documentadas por jornais; no pertence Semiologia, mas a outras cincias, o que ser uma verdade se nos ativermos apenas a sua teoria bsica, pois se a utilizarmos alm disso cujas unidades no so mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a objetos ou episdios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela (Idem, 1993, p. 12). Mesmo que escrevamos, com todas as letras: proibido estacionar, tal escrito pode ser alterado ou at acrescido de outros, como vimos e provamos por matrias jornalsticas, que o adaptam e at mesmo o anulam, ora, se isso acontece com o prprio da lngua: sua escrita, por que no aconteceria o mesmo com seus substitutos? E como combater essa liberdade em demasia que esquece que seu limite s vai at onde comea o dos outros? 135
A Semiologia talvez, ento, chamada a obsorver -se numa translinguistica,cuja matria ser ora o mito, a narrativa, o artigo de imprensa, ora os objetos de nossa civilizao, tanto quanto sejam (por meios da imprensa, do prospecto, da entrevista, da conversa e talvez mesmo da linguagem interior, de ordem fantasmtica). (Idem, 1993, p. 13)
No h como comemorar o sucesso ou denunciar o fracasso de um sistema de comunicao fora da prpria comunicao parece cada vez mais difcil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujos significados possam existir fora da linguagem: perceber o que significa uma substancia , fatalmente, recorrer ao recorte da lngua (Idem, 1993, p. 12). E baseado nesta observao, Barthes admite a possibilidade de: ... revirar um dia a proposio de Saussure: a lingstica no uma parte, mesmo privilegiada, da cincia geral dos signos: a Semiologia que uma parte da Lingustica; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso (Idem, 1993, pg. 13)
Num exemplo prtico, Barthes cita uma capa da revista Paris-Match, que mostra um soldado negro, envergando o uniforme francs, na posio de saudao militar, com os olhos fixos na bandeira nacional (BARTHES, 1972, p. 138).
Eis agora um outro exemplo: estou no cabeleireiro, do-me um exemplar do Paris-Match. Na capa, um jovem negro vestindo um uniforme francs faz a saudao militar, com os olhos erguidos, fixos sem dvida numa prega da bandeira tricolor. Isto o sentido da imagem.
Paris-Match, N 326 25 JUIN 2 JUIL, 1955. 136
Mas, ingnuo ou no, bem vejo o que ele significa: que a Frana um grande Imprio, que todos os seus filhos, sem distino de cor, a servem fielmente sob a sua bandeira, e que no h melhor resposta para os detratores de um pretenso colonialismo do que a dedicao deste preto servindo os seus pretensos opressores. Eis-me pois, uma vez mais, perante um sistema semiolgico ampliado: h um significante, formado j ele prprio por um sistema prvio (um soldado negro faz a saudao militar francesa); h um significado (aqui uma intencionalidade de francidade e de militaridade); h enfim uma presena do significado atravs do significante. (BARTHES: 1972)
Mostrem este fragmento de Mitologias para algum que fez Marketing ou at mesmo Jornalismo e ouviro um sonoro claro! Nenhuma capa gratuita ou aleatria. E se pedirmos para eles falarem um pouco mais do trecho final perante um sistema semiolgico ampliado (BARTHES, 1972, p. 138) eles iro ser redundantes Tudo que no gratuito, no gratuito. Por exemplo: Um creme rejuvenescedor tudo o que voc precisa vender, no necessrio vender junto (e/ou explicar) as vantagens de se tornar mais jovem. J est includo, isso que um sistema semiolgico ampliado, na verdade sobreposto, trepado como pio no cavalo e agarrado como um carrapato... e sempre foi assim, s se vende se for assim. O segredo, diro eles, ser sempre sutilmente impositivo, pois na verdade voc no est impondo nada a sociedade em que voc vive que impe. Voc s est oferecendo o creme sistema-minimizado-explcito o et coetera (e outras coisas) sistema-amplificado-implcito quem se encarrega do que fica-mal voc dizer.
Falta examinar um ltimo elemento da significao: a sua motivao. Sabe-se que, na lngua, o signo arbitrrio: nada obriga naturalmente a imagem acstica rvore a significar o conceito rvore: o signo, neste caso, imotivado. No entanto, este arbitrrio tem limites, que derivam das relaes associativas da palavra: a lngua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos (por exemplo diz-se aimable e no amable, por analogia com aime). (BARTHES; 1972, p.147)
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Para falarmos deste fragmento usaremos tambm uma foto, na verdade um cartaz de cinema, que possui um fragmento quase imperceptvel, que apesar de sua evidencia est no prprio ttulo (INDIGNES). Estamos falando do filme Dias de Glria:
Um soldado negro pega num tomate, algum segura sua mo e diz: O tomate no pra voc! logo a seguir inicia-se um tumulto. O sargento no consegue resolver o problema criado por motivo racista e chama um oficial de patente maior. E antes de entrar no recinto...
Esse artilheiro morreria por ns sem pestanejar, capito. Mas, se houver injustia, vamos ter problemas. Voc conhece bem os indgenas. Evite esse termo. E muulmanos? To ruim quanto. Como quer que os chame ? De homens, capito... de homens.
No ttulo temos algo que poderia soar para ns, falantes do portugus, como Indigentes, j que por analogia lexical s faltaria acrescentar o t para formar tal palavra (por exemplo diz-se aimable e no amable, por analogia com aime) (BARTHES, 11972, p. 138), sua traduo correta : indgenas, mas como essa palavra mais usada/entendida para designar ndios, e como os esteretipos que temos no so os de soldados da Segunda Guerra Mundial (cartaz do filme) mas figuras seminuas com arcos e lanas - ficou por acrscimo de sentido a primeira tentativa de traduo e no a verdadeira, que por sinal (a verdadeira) realmente 138
bem mais pertinente ao filme em questo, mas esta compreenso s ocorre quando abandonamos nossa humildade de s conhecer um (1) significado: o de pessoas seminuas com arco e flechas, e entramos na aventura de conhecer mais, a o que era bvio relativo a ou populao autctone de um pas [...] se revela esclarecedor para o confuso: o porqu desta palavra a outras: [...] ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador (HOUAISS, 2009, p. 1073) ou seja, um ttulo perfeito para um filme que mostra argelinos (colonizados) servindo aos seus colonizadores assim como o soldado negro da foto o faz. Quanto significao mtica, no nunca completamente arbitrria, sempre em parte motivada, contm fatalmente uma parte de analogia. Para que a exemplaridade latina coincida com a denominao do leo, uma analogia necessria: a concordncia do atributo; para que a imperialidade francesa se apodere do negro que faz a saudao militar do negro e a saudao militar do soldado francs. A motivao necessria prpria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: no existe mito sem forma motivada 7 . (Barthes, 1972, p. 147) 17
Trata-se do primeiro nvel de significao, o denotativo, o bvio, ou melhor o quase bvio, pois como j vimos, algo simples como um Proibido estacionar pode e tem vrias formas de significar/interpretar, ou ao menos de ser obedecida. Mas no possvel ficarmos no bsico (significante mais significado igual a signo) por muito tempo. Barthes fala de rosas que significam rosas, mas ao mesmo tempo explica que no existe apenas isto, h a inteno que jamais pode ser desassociada: Do mesmo modo que, no plano da experincia, do vivido, no posso dissociar as rosas da mensagem que transportam (BARTHES, 1972, p. 135). As formas e cores so
17 Este fragmento continuao do pargrafo onde encontramos a palavra fragmento e possui como Nota de rodap o seguinte comentrio: (7) Do ponto de vista tico, o que incmodo no mito precisamente o fato da sua forma ser motivada. Pois, se existe uma sade da linguagem, o arbitrrio do signo que a fundamenta. O que repulsivo, no mito, o recorrer a uma falsa natureza, o luxo das formas significativas como esses objetos que decoram a sua utilidade com uma aparncia natural. Esse desejo de oferecer significao o peso, a cauo de toda a natureza, provoca uma espcie de nusea: o mito demasiado rico, e o que ele tem a mais , precisamente, a sua motivao. Esta nusea a mesma que sinto perante as artes que no decidem escolher entre physis e a anti-physis, utilizando a primeira como ideal, e a segunda como economia. Esteticamente, uma baixeza jogar simultaneamente nos dois campos. (BARTHES, 1972, p.147 - a numerao refere-se a nota de rodap existente no livro) 139
interpretadas como um soldado negro envergando o uniforme francs. Mas, arriscando-me a ser ingnua, escreve Barthes, Vejo muito bem o que isso significa para mim: que a Frana um grande imprio, que todos os seus filhos, sem distino de cor, a servem fielmente sob sua bandeira e que no h melhor resposta aos detratores de um alegado colonialismo que o zelo demonstrado por esse jovem negro ao servir a seus alegados opressores (BARTHES, 1972, p. 138).
O fato de realmente haver soldados negros no exrcito francs d fotografia uma certa naturalidade ou inocncia; seus defensores podem dizer que ela simplesmente uma fotografia de um soldado negro e nada mais, isto porque no esto diante de uma fotografia de um soldado branco fazendo a saudao para a bandeira argelina. No filme apresentado por ns h uma espcie de inverso, enquanto que em Madame Baterfly (pera de Puccini) uma mulher oriental se apaixona por um ocidental, aqui temos uma mulher francesa que se apaixona por um homem argelino, suas cartas so censuradas e suas chances encerradas, pois no filme eles no terminam juntos. A motivao fatal. No entanto, no deixa de ser muito fragmentria. Para comear no "natural": a histria que fornece forma as suas analogias. Por outro lado, a analogia entre o sentido e o conceito sempre apenas parcial: a forma renuncia a muitos anlagos, conservando apenas alguns: conserva o telhado inclinado, as vigas aparentes do chal basco, abandona a escada, a granja, a ptina etc. devemos mesmo ir mais longe: uma imagem total excluiria o mito, ou, pelo menos, obrig-lo-ia a consider-la apenas na sua totalidade: este ltimo caso o da pintura, toda ela baseada no mito do cheio e do acabado ( o caso inverso, mas simtrico do mito do absurdo, onde a forma mitifica uma ausncia; no caso da pintura mitifica um excesso de presena). Mas em geral, o mito prefere trabalhar com imagens de pobres, incompleta, onde o sentido j diminudo, disponvel para uma significao: caricaturas, pastiches, smbolos etc. Finalmente, a motivao escolhida entre vrias possibilidades: posso dar imperialidade francesa muitos outros significantes, alm da saudao militar de um negro: um general francs condecora um senegals maneta, uma freira oferece uma tisana a um negro doente, um prof essor branco d aula a jovens negrinhos atentos: a imprensa encarrega-se de demonstrar todos os dias que a reserva dos significantes mticos inesgotvel. (BARTHES; 1972, p.148)
A motivao ideolgica e a ideologia precisamente a idia enquanto ela domina e no caso dos dominados temos a emprestada do lado dos dominados [...] 140
a ideologia que eles so obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de emprstimo classe que os domina. (BARTHES, 2002, p. 41). Como j dissemos poderamos dar outros significantes para Proibido estacionar, mas estes falhariam igualmente, pois cada um acharia neles o significado que melhor pudesse desfrutar: a motivao escolhida, pois quando uma flor desabotoa se vai ao mel por dois caminhos: um por onde a abelha voa e a formiga entre os espinhos. Qualquer matria significante (qualquer coisa na vida social revestida de significado) pode, Segundo Barthes, se tornar um mito: basta sobrepor ao seu sistema semiolgico prvio (denotativo) um segundo nvel de significao (conotativo). Ou seja, o quadro que encontramos em ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA (BARTHES, 1993, pg. 96) no que se refere conotao, utilizado no quadro de MITO em MITOLOGIAS (BARTHES, 1972, pg.137):
Lngua Conotao MITO
No mito, podemos encontrar o mesmo esquema tridimensional, ainda que este esteja de cabea para baixo em MITOLOGIAS: o significante, o significado e o signo. Alis, quem est de cabea para baixo o esquema em ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA j que representa a denotao e repre- senta a conotao, ficando o signo implcito (no escrito) nele e explicito (escrito) em MITO. Mas o mito no apenas um sistema que copia a conotao: o que signo no primeiro sistema (denotao), transforma-se em simples significante do segundo (conotao); ele torna-se ampliado visto que no estamos mais falando apenas de comunicao e sim de significao. Por tanto, mais do que falarmos aqui de: um Se So Se So 1.signifi- cante 2.signifi- cado 3. signo I. SIGNIFICANTE
II. SIGNIFICADO III. SIGNO Se So Se So 141
termo final de uma primeira cadeia semiolgica que ir se transformar em primeiro termo de um sistema aumentado; o estudo que realmente est por trs do mito : o que que est realmente sendo vendido em oposio ao que est sendo comprado. A isca da ideologia est funcionando ou precisa ser aprimorada? Outros significantes podem ser criados, mas nunca apenas para serem rosas so rosas, mas para serem rosas: a extenso do meu amor, pois no posso confundir as rosas como significante e as rosas como signo: o significante vazio, o signo pleno, um sentido. (BARTHES, 1972, p. 135) Em A BURGUESIA COMO SOCIEDADE ANNIMA, Barthes usa a palavra fragmento para revelar o que est escondido: como uma ponta de sapato que se projeta de uma cortina determinados nomes, como no caso: burguesia, parecem causar um certo incmodo, pois causam divises, so rtulos cujo o objetivo, mais do que meramente nomear, separar. Este fenmeno de subtrao da denominao importante e preciso examin-lo um pouco mais detalhadamente. Politicamente, a hemorragia do nome burgus produz-se atravs da idia de nao. Foi uma idia progressiva, em tempos, que serviu para excluir a aristocracia; hoje, a burguesia dilui-se na nao, mesmo que para isso, seja necessrio rejeitar os elementos que ela considera halgenos (os comunistas). Este sincretismo dirigido permite que a burguesia recolha a cauo numrica dos seus aliados temporrios: todas as classes intermedirias, logo informes. Um uso prolongado no conseguiu despolitizar profundamente a palavra nao: o substrato poltico permanece, bem prximo, prestes a manifestar-se subitamente: existem, na Cmara, partidos nacionais, e o sincretismo nominal ostenta assim o que pretendia esconder: uma disparidade essencial. Assim, o vocabulrio poltico da burguesia postula j que existe um universal: nela, a poltica j uma representao, um fragmento de ideologia. (BARTHES; 1972, p.159)
E diluda/escondida dentro de algo universal como nao a burguesia usa sua voz, a propagao de suas idias (ideologia) em um ambiente supostamente igualitrio: pessoas do povo eleita pelo povo, nada mais just o e ao mesmo tempo nada mais perigoso, pois a democracia permite que a burguesia recolha a cauo 142
numrica dos seus aliados temporrios e aps o referendo os aliados temporrios se tornam isso mesmo: temporrios. E na pgina seguinte continua usando a palavra fragmento para revelar, mas dessa vez no mais a ocultao de um nome: burguesia, no meio de um projeto unificante: nao, mas para dizer que s possvel combater, com alguma eficincia, o poder (a idia enquanto ela domina) se for de dentro para fora, como um Cavalo de Tria, como ele mesmo sugere em Aula (2002) e faz em todos os seus livros. Existem, sem dvida, certas revoltas contra a ideologia burguesa. Constituem aquilo a que se chama, de um modo geral, a vanguarda. Mas tais revoltas so socialmente limitadas, permanecem recuperveis. Para comear, porque provm de um fragmento da prpria burguesia, de um grupo minoritrio de artistas e de intelectuais, sem outro pblico que a prpria classe que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para se poderem exprimir. E, ademais, estas revoltas inspiram-se sempre numa distino muito ntida entre o burgus tico e o burgus poltico: o que a vanguarda contesta o burguesismo da arte e da moral; , como nos belos tempos do romantismo, o marceneiro, o filistino; mas contestao poltica, nenhuma. (BARTHES; 1972, p.160)
Mas esta forma de combater exige um preo, ele diz, e isso tambm revelado, tambm tem que ser pesado; aquele que veio da burguesia vive dela, deve a ela e apesar de querer/desejar um mundo melhor neste mundo melhor aquele que a combate raramente estar disposto a perder seu mundo melhor para que o mundo dos outros fique melhor. Da o motivo de Barthes apontar para a existncia de duas vanguardas: uma interessada na arte e na moral e outra em poltica; e, quanto aos artistas que vem e dependem da burguesia, a primeira. Para concluir este captulo faremos, agora, um apanhado geral do que foi o fragmento neta obra: Mitologias (BARTHES, 1972). O livro considerado de fragmento, pois o prprio Roland Barthes o aponta na enumerao de obras de escritura curta (fragmento) em Roland Barthes por Roland Barthes ele no cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies... (BARTHES, 1977, p. 101). Neste livro, Barthes, chama a mitologia de fragmento a mitologia apenas um 143
fragmento desta vasta cincia dos signos (Idem, p. 133). Em nossa tese afirmamos que atravs de um gabarito mental o fragmento pode ser retirado de seu inteiro e contemplar o todo sem ele, assim como contemplar a si mesmo sem o todo e at mesmo contemplar outros fragmentos, como ele, se relacionando entre eles mesmos; neste obra o fragmento faz este movimento mental atravs de relaes associativas da palavra: a lngua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos (BARTHES, 1972, p. 147). O motivo que nos leva a deturpar interpretaes, que deveriam ser claras, o cerne de tudo; mas enquanto o motivo uno (a razo do sujeito) o deturpar fragmento (a linguagem do sujeito): A motivao fatal. No entanto, no deixa de ser muito fragmentria (Idem, p. 148). E para concluir, Barthes, chama a nossa ateno para algo que j havamos percebido e tambm dito na tese: um todo que melhor visto em fragmentos porque provm de um fragmento da prpria burguesia (Idem, p.160) e que em fragmentos melhor oculto um todo Politicamente, a hemorragia do nome burgus produz-se atravs da idia de nao. [...] nela, a poltica j uma representao, um fragmento de ideologia (Idem, p. 159). Se por um lado a palavra fragmento s aparece escrito neste livro com letra minscula, por outro aparece implcito como letra maiscula, pois se no posso nunca desvincular as rosas da mensagem que elas transportam, como desvincular a palavra fragmento de sua palavra maior Fragmento, sua filosofia. 144
5. DIRIO
5.1. Quando a Escritura Curta encontra o Dirio: Roland Barthes por Roland Barthes
Livro que une experincias anteriores como S/Z (1970), que trabalha com fragmentos em forma de lexias O significante de apoio ser recortado em uma sequncia de curtos fragmentos contnuos, que aqui chamaremos lexias, j que so unidades de leitura (Barthes, 1992, p. 47); Imprio dos Signos (original de 1970 tambm) que o incentiva a fazer um gabarito mental de que falamos e que de fato a tese: a essncia do fragmento Ele apenas me fornece uma reserva de traos cuja manipulao, o jogo, inventado, me permite afagar a ideia de um sistema simblico indito, inteiramente desligado do nosso. (BARTHES, 2007, p.8) e O Prazer do texto (original de 1973) Ento o velho mito bblico se inverte, a confuso das lnguas no mais uma punio, o sujeito chega fruio pela coabitao das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer Babel feliz. (BARTHES, 2002, p. 8). Por tudo que foi mostrado/montado: os fragmentos de textos anteriores ao livro que estudamos agora, Barthes faz das lexias algo inteiramente arbitrrio (Barthes, 1992, p. 47) e a partir delas produz um vazio Imprio dos Signos? Sim, se entendermos que esses signos so vazios e que o ritual sem deus (BARTHES, 2007, p. 146). ROLAND BARTHES por Roland Barthes: livro de fragmentos onde cada lexia carrega consigo uma arbitrariedade/independncia que no a obriga a completar o seu antecedente, apenas degrau fsico para o sucessor.
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A simbiose possvel
Em nenhum outro livro, Barthes falou tanto sobre o fragmento e ainda assim no a ele que remete. Mtodo quase suspeito (impreciso?) de conhecer o Sujeito, que neste caso ele mesmo. Aqui lxico vira filosofia e filosofia recorre/deve ao lxico: Permite intimidades No comeo do ano, ele recenseava solenemente, no quadro negro, os parentes dos alunos que tinham tombado no campo de honra; os tios, os primos abundavam, mas fui o nico a poder anunciar um pai (BARTHES, 1977, p. 51); Trabalha de forma alegrica, ou melhor, alegoresca: Afinidade carnavalesca do fragmento e ao ditado: o ditado voltar aqui algumas vezes, como figura obrigatria da escritura social, farrapo da redao escolar . (BARTHES, 1977, p. 51); Descreve um gesto, metafrico verdade, mas ainda assim um gesto: O gesto do arspice. Em S/Z (p. 20), a lexia (o fragmento de leitura) comparada quele trecho de cu recortado pelo basto do arspice. (BARTHES, 1977, p. 54) e o que este livro seno um dirio metaforizado, fragmentos ao gabarito mental desfeito e espalhado; Repete palavras, como o hai-kai: [...] , sem remisso, um continuum de imagens: a pelcula (bem denominada: uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutria do fragmento, do hai-kai. (BARTHES, 1977, pp. 61-62), que j haviam sido trabalhadas incansavelmente em obras passadas: Ao mesmo tempo que inteligvel, o haicai no quer dizer nada.[...] Assim o haicai parece dar ao Ocidente direitos que sua literatura lhe recusa, e comodidades que ela 146
lhe regateia (BARTHES, 2007, p. 91). E continuariam sendo em outras futuras como Fragmentos de um discurso amoroso (livro seguinte), no captulo Amor inexprimvel (BARTHES, 2000, p. 139-141) boa parte dele dedicada ao hai-kai e seu experimento; Produz vazios lancei a costeleta e sua gaze do alto do balco, como se estivesse dispersando romanticamente minhas prprias cinzas, na rua Servandoni, onde algum cachorro deve ter vindo farej-las. (Idem, 1977, p. 68-69); Considera a amizade um campo rico a ser explorado, lugar onde o sujeito se recria (ele encontra a prtica daquele novo sujeito cuja teoria se busca hoje) e ao tentar se encaixar (captar-se nela), se encontrar ( questo da heterotopia), cria um gabarito mental em pleno movimento e, para que no se perca, escreve: Assim se escreve dia a dia um texto ardente, um texto mgico, que nunca terminar, imagem brilhante do Livro liberto. e a palavra que queremos s figura neste pargrafo como nota sem importncia, isto porque, o principal j foi dito: Assim, por magia, este fragmento foi escrito por ltimo, depois de todos os outros, como uma espcie de dedicatria (3 de setembro de 1974).(BARTHES, 1977, p. 71-72).
Gostar de dividir
No so sinnimos, so paradigmas barthesianos, temas comuns para algo incomum: o gabarito mental desfeito com suas peas (possibilidades) expostas, uma preferncia em mtodo um... Gosto pela diviso: as parcelas, as miniaturas, os contornos, as precises brilhantes (tal o efeito produzido pelo haschsich, segundo Baudelaire), a vista dos campos, as janelas, o hai -kai, o trao, a escritura, o 147
fragmento, a fotografia, o palco italiana, em suma, o que se quer, todo o articulado do semanticista ou todo o material do fetichista. (BARTEHS, 1977, p. 77). Maria vai com as outras
Nelson Rodrigues (escritor, jornalista, dramaturgo e teatrlogo) j dizia: Toda unanimidade burra. Quem pensa com a unanimidade no precisa pensar (ROLLEMBERG, 2000, p. 25) e pelo visto Barthes concordava: Formaes reativas: uma doxa (uma opinio corrente) posta, insuportvel; para me livrar dela, postulo um paradoxo (BARTHES, 1977, p. 78). E apesar de dizer A Doxa constantemente alegada, mas no definida: nenhum fragmento sobre a Doxa. (BARTHES, 1977, p. 81) em O Prazer do texto (livro anterior) j falava da existncia de duas o tempo da doxa, da opinio, e o da paradoxa, da contestao. (BARTHES, 2002, p.25).
E tudo se resume a isto
Finalmente chagamos onde o fragmento abunda para... E ainda assim, dele, nada fala. No se bate palmas para o martelo de Michelangelo, mas o fragmento no mero instrumento inanimado, ou parte material abandonada; por ele todo um espao preenchido e desfeito, eternamente pesquisado, pois eternamente em movimento. E quem far tal usufruto? O Sujeito, elemento ativo-passivo do fragmento. O crculo dos fragmentos Escrever por fragmentos: os fragmentos so ento pedras sobre o contorno do crculo: espalho-me roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o qu? (BARTHES, 1977, p. 101)
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E tudo comeou assim
Escrever por fragmentos no escrever pouco por se conhecer pouco, muito pelo contrrio, no escrever pouco reside toda uma sntese que mostra o quanto a pessoa observou, e, no raro: observao singular. uma sntese que no peca pela pobreza de informao, antes uma primazia da escolha da informao e o que fica registrado no deixa dvidas: ele sabe.
Seu primeiro texto ou quase (1942) feito de fragmentos; essa escolha justificava-se ento maneira de Gide "porque a incoerncia prefervel ordem que deforma". Desde ento, de fato, ele no cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L'Empire des signes, artigos e prefcios dos Essais critiques, lexias de S/Z, pargrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte. (BARTHES, 1977, p. 101)
Deus reside nos detalhes
Quem, em algum momento da vida, j no se deparou com a atpica situao de ser o nico a ver algo que os outros no consegui am ver, um punctum pessoal, o colar da negra endomingada (BARTHES,1984, p. 86), e, a partir da o comum para todos passa a ser o exclusivo seu.
Ele j via a luta livre como uma sequncia de fragmentos, uma soma de espetculos, pois "na luta livre o que inteligvel cada momento, e no a durao" (My, 14); ele olhava com espanto e predileo esse artifcio esportivo, submetido em sua prpria estrutura ao assndeto e ao anacoluto, figuras da interrupo e do curto-circuito. (BARTHES, 1977, p. 101)
O fragmento frankensteiniano
Antes de ser barthesiano poderamos arriscar dizer que ele foi frankensteiniano, pois Victor Frankenstein jamais escolheria um membro deformado 149
para compor sua criao ou os olhos de um cego; parece evidente, mas depois de pronto poucos se lembram disso: todo o todo feito de certas escolhas certas (oposto de errado).
No somente o fragmento cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior do fragmento reina a parataxe. Isto se v bem quando se faz o ndice desses pedacinhos; para cada um, a reunio dos referentes heterclita; como um jogo de rimas prvias: "Tomem-se as palavras fragmento, crculo. Gide, luta livre, assndeto, pintura, dissertao, Zen, intermezzo; imagine- se um discurso que as possa ligar." Pois bem, ser simplesmente este fragmento. O ndice de um texto no somente um instrumento de referncia; ele prprio um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que h de delirante (de interrompido) na razo das frases. (BARTHES, 1977, p. 101)
A escolha dele pela minha
Quando pomos o gabarito mental em movimento, trocamos os fragmentos do original de posio, assim como muitas vezes trocamos o prprio fragmento original por um dos nossos, na mesma posio ou em outra, uma completa mudana s vezes, verdade, mas ainda assim sempre com 2 (duas) coisas em comum: a obra (com seus fragmentos e espaos) e o prazer (individual com aspiraes ao coletivo).
No tendo praticado, em pintura, mais do que borres tachistas, decidi comear uma aprendizagem regular e paciente do desenho; tento copiar uma composio persa do sculo XVII ("Senhor caando"); irresistivelmente, ao invs de procurar representar as propores, a organizao, a estrutura, copio encadeio ingenuamente pormenor por pormenor; de onde certas "chegadas" inesperadas: a perna do cavaleiro acaba encarapitada l no alto do peito do cavalo, etc. Em suma, procedo por adio, no por esboo; tenho o gosto prvio (primeiro) do pormenor, do fragmento, do rush, e a inabilidade para o levar a uma "composio": no sei reproduzir "as massas". (BARTHES, 1977, p. 101 e 102)
Causa e efeito
Quando se quer resumir e/ou explicar o que a relao causa e efeito, geralmente se usam exemplos pitorescos como: camisinha furada (causa) mulher 150
grvida (efeito) ou sacar dinheiro (causa) ser vtima da saidinha de banco (efeito) e poucos param para pensar que enquanto a causa sempre una, o efeito sempre plural. O efeito de ser me dura a vida dela (ou do filho) toda, o efeito traumtico de ser assaltado dura, tambm, toda uma vida. Quando trocamos a palavra causa por razo ou motivo fica mais fcil para o aluno entender, assim como trocar a palavra efeito por consequncia: qual a razo ou motivo que traz um aluno para a sala de aula? Resposta: o diploma ou passar em algum concurso. E qual o efeito ou consequncia que fica aps a conquista do diploma ou o fracasso em algum concurso? Resposta: a assimilao da matria por ter estudado muito que servir para dar aulas no exerccio da profisso ou de base para um estudo mais intenso para o prximo concurso. E mais uma vez: a causa una e o efeito plural. Enquanto, em Barthes, escrever fragmentos causa, o gabarito mental que ele gera efeito, o plural. Gostando de encontrar, de escrever comeos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos comeos, tantos prazeres (mas ele no gosta dos fins: o risco de clusula retrica grande demais: receio de no saber resistir ltima palavra, ltima rplica). (BARTHES, 1977, p. 102)
A gente...
Existe maneira mais carinhosa de falar Sujeito, e se incluir neste sujeito que fala, do que usar o informalismo a gente? Muito poderia se escrever sobre o Zen e sua curiosa prtica de abertura pela no-escolha de pensamentos, o deixar vir: catarse 1 perigosa, mas ainda assim necessria, pois como algum pode ter liberdade
1 HOUAISS, 2009, p. 422. substantivo feminino 1 na religio, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertao, expulso ou purgao do que estranho essncia ou natureza de um ser e que, por isso, o corrompe 2 Rubrica: esttica, teatro. 151
para escrever, desmontar originais, montar novos se, se encontra aprisionado na priso mais intransponvel que se tem notcia: aquela em que a chave fica do lado de dentro da cela. Barthes ao escrever a gente no s se inclui ou permite um informalismo comum entre amigos, como pelo fragmento mostra a outros sujeitos como se vira a chave da cela que nos mantm presos.
O Zen pertence ao budismo torin, mtodo da abertura abrupta, separada, rompida (o kien , pelo contrrio, o mtodo de acesso gradual). O fragmento (como o hai-kai) torin; ele implica um gozo imediato: um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob a forma de pensamento- frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no caf, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira ento o caderninho de apontamentos no para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102)
Respondendo com perguntas
Paulo Leminski j dizia em uma entrevista que a TVE Brasil mostrava esporadicamente ao longo de sua programao; os "Clipoticos" eram "interprogramas" de at 30 segundos de durao, inseridos nos intervalos da programao, explorando a relao entre poesia e imagem, veiculando versos de consagrados artistas nacionais e estrangeiros; dizia ele: A poesia uma daquelas coisas que no precisa de por qu (?) pra que por qu? e com o fragmento, poderamos fazer a mesma contestao ou no? Seria ele demasiado fraco, confuso, solitrio? O que importa?
purificao do esprito do espectador atravs da purgao de suas paixes, esp. dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplao do espetculo trgico 3 Rubrica: medicina. evacuao dos intestinos 4 Rubrica: psicanlise. operao de trazer conscincia estados afetivos e lembranas recalcadas no inconsciente, liberando o paciente de sintomas e neuroses associadas a este bloqueio 5 Rubrica: psicologia. liberao de emoes ou tenses reprimidas, comparvel a uma ab-reao 6 Rubrica: psicologia. efeito liberador produzido pela encenao de certas aes, esp. as que fazem apelo ao medo e raiva 152
Como? Quando se colocam fragmentos em sequncia, nenhuma organizao possvel? Sim: o fragmento como a ideia musical de um ciclo (Bonne Chanson, Dichterliebe): cada pea se basta, e no entanto ela nunca mais do que o interstcio de suas vizinhas: a obra feita somente de pginas avulsas. O homem que melhor compreendeu e praticou a esttica do fragmento (antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo; ele multiplicou em suas obras os intermezzi: tudo o que produzia era finalmente intercalado: mas entre que e qu? Que quer dizer uma pura sequncia de interrupes? (BARTHES, 1977, p. 102)
O Hai-kai musical
A seguir temos o fragmento exemplificado/caracterizado na msica O fragmento seu ideal: uma alta condensao, no de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na mxima), mas de msica: ao desenvolvimento, opor-se-ia o tom (BARTHES,1977, pp. 102-103): o gabarito mental que defendemos, exemplificado/explicado aqui na msica, verdade, mas no somente a ela (nela) se aplica. Barthes traz tona novamente o nome de Webern (Anton von Webern 18831945) 2 s que agora como persona principal e no mero sucessor de Schumann. Webern considerado por alguns como um haicasta da msica; ao ouvirmos duas das msicas mais representativas de seu estilo (Five Pieces for Orchestra Op.10 3 e 6 bagatelles for string quartet 4 ) entendemos o porqu de serem utilizadas como exemplo, mas ficou um lamento, pois assim como o que ocorre com o Hai -Kai poucas pessoas entendem/percebem o elaborar por trs da obra, em NEN NEN NI / KKU NI OMOWN / OMOWARN de Shiki, um dos discpulos de Bash,
2 Com exceo dos seus Op. 1 e 2, todas as obras de Webern so atonais. O seu estilo muito pessoal, extraordinariamente conciso, puro e transparente, afirmou-se quase desde os primrdios. Algumas obras, como as admirveis Cinco peas Op. 10 para orquestra, ou as Seis bagatelas para quarteto, so breves e sutis que fazem lembrar o estilo dos hai-kai japoneses. Mas uma vez ultrapassada a surpresa que pode ser provocada por uma desintegrao da melodia, da harmonia e o ritmo, do timbre, levada ao limite para alm do qual a msica deixaria de existir, o descobre, nesta arte, um secreto lirismo extraordinariamente penetrante. Disponvel em < http://www.classicos.hpg.ig.com.br/webern.htm>. Acesso em 21/07/2010. Grifo nosso. 3 Disponvel no YouTube - Webern - Five Pieces for Orchestra Op.10: http://www.youtube.com/watch?v=CTn0Y016atE&feature=related. Acesso em 21/07/2010. 4 Disponvel no YouTube - 6 bagatelles for string quartet: http://www.youtube.com/watch?v=t7uDPvT_vNg&feature=related. Aceso em 21/07/2010. 153
Paulo Leminski traduziu: todo ano / pensando nos crisntemos / sendo pensado pelos mesmos; talvez sabendo que para muitos seria de difcil compreenso resolveu fazer uma traduo mais acessvel que resultou em: nem vem que no tem / eu penso crisntemo / crisntemo em mim tambm. (LEMINSKI, 1983, p. 35). Mas e quanto obra de Webern, como explicar o que Arnold Schoenberg passou oito anos estudando: estudo das tcnicas de contraponto, do uso dos timbres, do tratamento das dissonncias e da forma, [...] que serviriam para sistematizar as possibilidades harmnicas e meldicas de uma pea atonal: o mtodo dodecafnico (RODRIGUES, 2010). Resposta: Fazendo o mesmo que Paulo Leminski fez; tendo como base a substncia e no a forma do fragmento: arriscamos como exemplo, contemporneo do que Barthes tenta explicar (a importncia do fragmento para a composio), a msica The Sound of Silence de Simon & Garfunkel tocada atualmente (filme WATCHMEN cena do enterro do Comediante) 5 , lembrando que no somos msicos... Na melhor das hipteses apreciadores, nela h uma bateria que entra de forma complementar ao violo, mas h momentos em que ela se manifesta de forma impositiva mas ainda assim sutil, e dentro da sua sutileza, somente em alguns momentos (na hora certa) se torna um fragmento do todo com o todo e ainda assim com vida prpria. Nada mais natural j que inicialmente, quando esta msica foi includa no primeiro lbum da dupla (Wednesday Morning, de 1964), s havia o violo, que com mudanas de velocidade, paradas repentinas e dedilhados espordicos fazia as mudanas de ritmo da msica, que atualmente feito pela bateria de que falamos, simbiose perfeita, ela s substitui/completa o suficiente: boa dica para quem usa o gabarito mental. E parafraseando Barthes: quanta soberania ela (a bateria) conquistou em no ir longe. Quem fizer a comparao auditiva dessas
5 Disponvel no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=p910iXIbYmk&feature=related 154
msicas, aqui propostas por Barthes e por ns, perceber que nosso exemplo apesar de to diferente do dele (forma) bebe da mesma gua (substncia) ou chega ao mesmo destino ainda que por caminhos bem diferentes.
O fragmento seu ideal: uma alta condensao, no de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na Mxima), mas de msica: ao desenvolvimento, opor-se-ia o tom, algo de articulado e de cantado, uma dico: ali devia reinar o timbre. Peas breves de Webern: nenhuma cadncia: que soberania ele pe em no ir longe! (BARTHES, 1977, p. 102 - 103)
A permisso de ser metafrico
No fragmento seguinte encontramos, no a iluso, mas a permisso de ser metafrico, de ser voc mesmo, mas escrito de outra maneira, visto de outra forma; no se trata de ser sistemtico, mas de ser elitista consigo mesmo pela escolha de palavras, prova so os exemplos: no sinnimos pela descrio denotativa, mas smiles pela ideia que representam. O imaginrio a permisso de sermos ns mesmos pelo libi que a fantasia permite ter.
O fragmento como iluso
Tenho a iluso de acreditar que, ao quebrar meu discurso, cesso de discorrer imaginariamente sobre mim mesmo, atenuo o risco de transcendncia: mas como o fragmento (o hai-kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) finalmente um gnero retrico, e como a retrica aquela camada da linguagem que melhor se oferece interpretao, acreditando dispersar-me, no fao mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginrio. (BARTHES, 1977, p. 103)
Escrever redobrando sua prpria histria
E eis que mais uma vez aparece o nome de Gide (Andr Paul Guillaume Gide, 1869-1951), e por qu? Talvez por ter sido um escritor cujo primeiro trabalho Les Cahiers d'Andr Walter (Os cadernos de Andr Walter) foi feito de fragmentos de 155
seu dirio; trata do que poderamos chamar de uma metalinguagem da metalinguagem, sendo esta palavra entendida aqui no sentido de emprstimo do que realmente representa: linguagem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial (HOUAISS, 2009, p. 1282), isto porque em sua obra, diferente do que acontece em Machado de Assis - neste ltimo a prpria narrativa trata de se autoexplicar: o personagem-narrador da obra (Dom Casmurro) fala sobre a obra (a obra fala da obra), em Gide seu dirio (Lngua-Objeto) transforma-se em obra (Metalngua) tradutora de si mesmo. E nesta obra pratica uma metalinguagem (a obra dentro da obra), numa espcie de encaixe: Gide fala de si, atravs de um personagem que tambm usa um personagem para falar de si: nela estamos diante de um escritor (Gide) que cria um personagem-escritor (Andr Walter) que cria um personagem-escritor (Allain), afastando-se assim de si mesmo atravs da impessoalidade que um personagem permite: seu libi, e no caso dele em dois nveis (dois personagens: o primeiro gerando um segundo), quanto mais se afasta mais pode ser livre (usufruto de um libi reforado em dois nveis), mas tamanha liberdade tem um preo e seus personagens comeam a ficar loucos um aps o outro; talvez essa liberdade excessiva, liberada no papel, tenha funcionado como vlvula de escape (catarse), Gide sempre afirmou que escrevia por necessidade e que teria se suicidado se no tivesse podido escrever 6 .Usamos os Sistemas Modelizantes Primrio e Secundrio: Lngua-Objeto e Metalngua do livro Fundamentos de lingustica contempornea de Edward Lopes 7 mais o significado de metalinguagem do dicionrio Houaiss para frisar bem as diferenas que existem entre essas
6 DELAY, J. La jeunesse dAndr Gide. Paris,Gallimard, 1992, vol. I, pg. 575. 7 Se algum realiza um filme baseado num romance, pratica uma operao de transcodificao na qual o romance a lngua-objeto traduzida, e o filme a metalngua tradutora. Essa primeira transcodificao pode ser seguida por outras; se eu vi o filme do exemplo acima, posso, digamos, cont-lo com minhas prprias palavras, a um amigo que no o tenha visto. Nesse caso, o filme, que era a metalngua tradutora do romance, passa a ser lngua-objeto para a nova metalngua que a minha narrao do filme (segunda transcodificao) (LOPES, 2003, pgs. 18 e 19). 156
terminologias. Poder-se-ia at dizer que o que ocorre de fato so sucessivas alteraes entre lngua-objeto e metalngua (dirio, Gide, Andr Walter, Allain), sim, mas que nome poderamos dar para essas sucessivas alteraes? Quanto a ns, ficamos satisfeitos em chamar de metalinguagem, ainda, como j dissemos no incio desta anlise, que de emprstimo de sua significao, digamos , clssica. muito natural que um escritor se esconda por trs de um personagem (primeira metalinguagem: personagem que fala de si em sintonia com autor que fala de si) e atravs dele exorcize certas inquietaes; quem poder negar que o prprio Machado de Assis j fez desabafos usando, por exemplo, um aplogo: A agulha e a linha Tambm eu tenho servido de agulha a muita linha ordinria! (MOISS, 1995, p. 285), mas em Gide isso foi muito alm, sua genialidade reconhecida por Barthes.
Do fragmento ao dirio
Sob o libi da dissertao destruda, chega-se prtica regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o dirio. Assim sendo, o objetivo disso tudo no se dar o direito de escrever um "dirio"? No tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforo clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do "dirio" de Gide? No horizonte terminal, talvez esteja simplesmente o texto inicial (seu primeiro texto teve por objeto o Dirio de Gide). (BARTHES, 1977, p. 103)
A catarse como rubrica mdica: evacuao dos intestinos
Em O rumor da lngua (1987), Barthes comenta o que percebeu em suas tentativas de escrever um dirio: num primeiro momento a escrita fcil, talvez to fcil como ir ao banheiro, no se trata aqui de catarse na rubrica psicolgica, mas da rubrica mdica: evacuao das fezes; num segundo momento o que parecia ser algo, de incio, prazeroso, se transforma em decepo no dia seguinte (pouco tempo posterior), pois como levar a srio algo to simples? Um Hai -Kai tambm simples e 157
sua beleza no desaparece no dia seguinte, que no caso de tais poemas o elaborar faz toda diferena, de outro modo no o teria comparado a Webern; num terceiro momento, valendo-se de uma certa distncia temporal vrios meses, vrios anos depois (BARTHES,1987, p. 303), o escrito lhe ajuda a lembrar de situaes vividas, o que lhe d prazer, mas o que mais lhe intriga justamente o fato das lembranas remetidas pela escrita irem alm do escrito, e, justamente o que no foi escrito: o marginal ao que foi escrito, digamos assim, o que mais lhe d prazer mas, coisa curiosa, ao rel-lo, aquilo que melhor revivia era o que no estava escrito, os interstcios da notao (BARTHES, 1987, p. 310).
O "dirio" (autobiogrfico) est entretanto, hoje em dia, desacreditado. Cruzamentos: no sculo XVI, quando se comeava a escrev-lo sem repugnncia, chamavam-no um diaire: diarrhe e glaire (diarreia e ranho). (BARTHES, 1977, p. 103)
Um pouco de ligao narcsica?
Ainda em O rumor da lngua, Barthes faz uma concluso com ares de confisso Em suma, neste ponto, nenhum interesse (salvo pelos problemas de formulao, isto , de frase), mas uma espcie de ligao narcsica (suavemente narcsica: preciso no exagerar) (BARTHES, 1987, p. 303). E como no ser narcsico (em qualquer nvel que seja) em um dirio? E por que chamar de dejetos? Por s interessar a quem o escreveu? Barthes, deixe ao leitor a escolha dos adjetivos... Est bem?
Produo de meus fragmentos. Contemplao de meus fragmentos (correo. polimento, etc). Contemplao de meus dejetos (narcisismo).
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O charuto de Freud
Certa vez, alguns discpulos (os mais audaciosos) perguntaram a Freud (Sigmund Freud, 1856 - 1939) sobre a possibilidade de seu charuto representar um smbolo flico. O psicanalista, no querendo fomentar tal questo (frum ntimo) respondeu com algo que entraria na histria como uma das respostas mais sintticas e evasivas que algum pode fazer uso em sua prpria defesa: "s vezes um charuto apenas um charuto" (CHICHESTER & ROBINSON, 1999, p. 32) 8 . Certas frases so escritas no para explicar, mas para jogar (sentido de lanar) ao leitor uma essncia reduzida do Fragmento, para que com ele possa jogar (sentido de jogo) e no apenas ler (sentido de preto-no-branco). A Frase A Frase denunciada como objeto ideolgico e produzida como gozo ( uma essncia reduzida do Fragmento). Pode-se, ento, ou acusar o sujeito de contradio, ou induzir dessa contradio um espanto, qui uma volta crtica: e se houvesse, ttulo de perverso segunda, um gozo da ideologia? (BARTHES, 1977, p. 112)
Do bvio para o mais alm Agora iremos encontrar uma dica de como este livro foi escrito, mais do que seu processo de montagem, sua preocupao; uma espcie de fragmentos que vem de fragmentos: um ndice suspeito, tentativa de classificao? No, mais como a gravura Puddle (Charco) 9 de M. C. Escher onde a descrio em si do que se v no relevante (estrada mole e lamacenta, dois tipos diferentes de marcas de pneus, dois conjuntos de pegadas indo em direes opostas, duas faixas feitas por bicicletas e um charco ao centro refletindo a floresta a sua volta), assim como a descrio do que Barthes fez neste fragmento, em si, tambm no o , mas em sua simplicidade
8 Algum certa vez perguntou a Sigmund Freud, o mascador de charutos e pai da psicanlise, se aqueles charutes eram smbolos flicos. s vezes, teria respondido Freud, um charuto s um charuto. (CHICHESTER & ROBINSON, 1999, p. 32.) 9 Disponvel em: http://en.wikipedia.org/wiki/Puddle_(M._C._Escher). Acesso em 29/07/2010. 159
(excessiva?) um questionamento se autorresponde: e por que o bvio no seria um lugar to bom como outro qualquer para o imaginrio se ns estamos falando de encenao?
O imaginrio
O esforo vital deste livro visa encenao de um imaginrio. "Encenar" quer dizer: escalonar suportes, dispersar papis, estabelecer nveis e, no fim de contas: fazer da ribalta uma barra incerta. Importa pois que o imaginrio seja tratado segundo seus graus (o imaginrio uma questo de consistncia, uma questo de graus), e existem, ao longo desses fragmentos, vrios graus de imaginrio. A dificuldade, entretanto, reside de no se poder numerar esses graus, como os graus de bebida alcolica ou de uma tortura.(BARTHES, 1977, p. 113)
A 3 pessoa do plural e o espelho
Barthes aponta para uma antiga soluo quando o autor pressentia que o embarao fosse sempre seguro. Hoje em dia refugiar -se na terceira do plural: quando no se sabe ou no se quer determinar, e quanto alvio esta permisso gramatical no d aqueles que precisam de um subterfgio. Mas mais importante que isso o comentrio (aviso?) que Barthes faz quando o sujeito assina seu imaginrio. Se esquecermos por um momento que o nosso crebro tende sempre a nos proteger, e lembrarmos que ao entrar num mundo imaginrio estaremos usando muito mais do nosso subconsciente a que o racional propriamente dito (caso contrrio no seria imaginrio, mas sim clculo), esta informao aqui postada por ns j ser o suficiente para dar crdito preocupao de Barthes quanto a um sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal) em fazer seu, digamos, inventrio alternativo.
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Antigos eruditos acrescentavam por vezes, sabiamente, aps uma proposio, o corretivo "incertum". Se o imaginrio constitusse um trecho bem delimitado, cujo embarao fosse sempre seguro, bastaria anunciar cada vez esse trecho por algum operador metalingustico, para se eximir de o haver escrito. Foi o que se pde fazer aqui para alguns fragmentos (aspas, parnteses, ditado, cena, redente, et c.): o sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal), consegue por vezes assinar seu imaginrio. Mas esta no uma prtica segura; primeiramente, porque h um imaginrio da lucidez e porque, separando os nveis do que digo, o que fao no , apesar de tudo, mais do que remeter a imagem para mais longe, produzir uma segunda careta; em seguida, e sobretudo, porque, frequentemente, o imaginrio vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretrito perfeito, um pronome, uma lembrana, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a prpria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu. (BARTHES, 1977, p. 114)
Descries incertas, mas necessrias
Certa vez, um professor de Psicologia I da Faculdade de Educao /UFRJ nos ensinou algo muito interessante a respeito dos sonhos, dizia ele: sempre que se tem um sonho daqueles bem malucos (com muitas coisas estranhas acontecendo ao mesmo tempo), para se ter uma pista do que o nosso subconsciente est permitindo vir tona, basta descrev-lo com palavras e aquela palavra que mais se repetir ser a que - de fato - deve ser estudada, por exemplo: em uma descrio fala-se de um vaso torto, um pouco mais torto para cima do que torto para baixo; era s um pouco torto mas ainda assim torto. Mas isso muito mais eficiente quando outra pessoa que faz a contagem das palavras possivelmente relevantes. O revelar de um sonho prova de confiana com o outro e simultaneamente um pedido de ajuda (cumplicidade?). Impossvel falar de um sonho para algum sem terminar com um: o que voc acha? O sonho seria pois: nem um texto de variedade, nem um texto de lucidez, mas um texto de aspas incertas, de parnteses flutuantes (nunca fechar parnteses exatamente: derivar). Isso depende tambm do leitor, que produz o escalonamento das leituras. (Em seu grau, o Imaginrio se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraoso escrever. Ou ainda: o que s pode ser escrito com a complacncia do leitor. Ora, cada leitor tem sua complacncia; assim, por pouco que se possa classificar essas complacncias, torna-se possvel classificar os 161
prprios fragmentos: cada um recebe sua marca de imaginrio daquele mesmo horizonte onde ele se acredita amado, impune, subtrado ao embarao de ser lido por um sujeito sem complacncia, ou simplesmente: que olhasse.) (BARTHES, 1977, p. 113 - 114)
O labirinto de folhas
Ddalo e caro foram lanados ao labirinto como forma de punio, mas o que Barthes sugere agora, no um fragmentar-se para complicar as coisas, at d para complicar, mas no para isso; o se dar o direito de se fragmentar como passear por um labirinto de folhas de um jardim, voc no o faz para se estressar, faz para no pensar em nada e ao no pensar defesas elaboradas (mecanismos de defesa do ego, Freud) se desfazem, todo, um todo desnudo pelo ato de dispersar-se. Ddalo e caro, guardem suas asas, pra que asas se eu posso ver claramente que o labirinto feito de pedras sobre o contorno do crculo: espalho-me roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o qu? (BARTHES, 1977, p. 101). E aos poucos a prpria obra se responde.
A pessoa dividida? Para a metafsica clssica, no havia nenhum inconveniente em dividir a pessoa (Racine: Trago dois homens em mi m); muito pelo contrrio, provida de dois termos opostos, a pessoa funcionava como um bom paradigma (alto/baixo, carne/esprito, cu/terra); as partes em luta se reconciliavam na fundao de um sentido: o sentido do homem. Eis por que, quando falamos hoje de um sujeito dividido, no de modo algum para reconhecer suas contradies simples, suas duplas postulaes, etc.; uma difrao que se visa, uma fragmentao em cujo jogo no resta mais nem ncleo principal, nem estrutura de sentido: no sou contraditrio, sou disperso. (BARTHES, 1977, p. 153)
Apesar de numerado, sem referncias diretas
Quando vimos o quadro com suas observaes devidamente enumeradas, logo pensamos estar diante de uma correlao direta com o quadro exposto, mas no, ao tentarmos fazer uma (de cima para baixo, de baixo para cima, da direita para 162
esquerda, da esquerda para direita) nos perdemos completamente. Ao que parece as observaes falam muito e at carregam consigo relaes com o contedo exposto no quadro, mas elas no o fazem de forma direta, Roland Barthes fala, joga, taca, quem sabe at desabafa; fragmentos organizados/contados por nmeros e ainda assim dispersos. Quem sabe (?) o objetivo dele foi fazer uma espcie de Numere a segunda coluna de acordo com a primeira: quadro e textos separados numa mesma pgina, ligados pelo leitor. Fases
Observaes: 1. o intertexto no , forosamente, um campo de influncias; antes uma msica de figuras, de metforas, de pensamentos-palavras; o significante como sereia; 2. moralidade deve ser entendida como o exato contrrio da moral ( o pensamento do corpo em estado de linguagem); 3. primeiramente intervenes (mitolgicas), depois fices (semiolgicas), em seguida estilhaos, fragmentos, frases; 4. entre os perodos, evidentemente, h encavalamentos, voltas, afinidades, sobrevivncias; so em geral os artigos (de revista) que assumem esse papel conjuntivo; 5. cada fase reativa: o autor reage quer ao discurso que o cerca, quer a seu prprio discurso, se um e outro comea a tomar demasiada consistncia; 6. assim como um prego empurra o outro, segundo se diz, uma perverso expulsa uma neurose: obsesso poltica e moral, sucede um pequeno delrio cientfico, desfeito por sua vez pelo gozo perverso (com um fundo de fetichismo); 7. o recorte de um tempo, de uma obra, em fase de evoluo embora se trate de uma operao imaginria permite entrar no jogo da comunicao intelectual: a gente se torna inteligvel. (BARTHES, 1977, p. 156)
Intertexto Gnero Obras
(Gide) (desejo de escrever)
Sartre L degr zro Marx mitologia social Escritos sobre o teatro Brecht Mythologies
Saussure semiologia Elments de smiologie Systme de la mode
Sollers S/Z Julia Kristeva textualidade Sade, Fourier,Loyola Derrida Lacan LEmpire des signes
(Nietzsche) moralidade L plaisir du Texte R.B. par lui-mme 163
Com um mnimo de organizao
Barthes prope no fragmento a seguir uma espcie de organizao mnima onde tal organizao no oprimiria o processo de criao, ou seja: as ideias poderiam ser desenvolvidas sem uma necessria continuao, sem que a prxima ideia tivesse que completar (como a interao entre os pargrafos de uma dissertao) a antecedente. A ordem Uma ideia por fragmento, um fragmento por ideia seria apenas organizada pela ordem alfabtica (e separadas por: ponto e vrgula?). Este livro: Roland Barthes por Roland Barthes construdo/montado por pensamento semelhante, mas aqui a ordem alfabtica no usada; como algum que d uma dica, Barthes escreve este fragmento, talvez, pensando/lamentando: quantos entendero que tudo aquilo que privado de sentido deve ser estudado com mais euforia e no com mais pressa apressasse o striptease da bailarina (BARTHES, 2002, p. 17) justamente porque : privado de sentido.
O alfabeto
Tentao do alfabeto: adotar a sequncia das letras para encadear fragmentos entregar-se ao que faz a glria da linguagem (e que provoca o desespero de Saussure): uma ordem imotivada (fora de qualquer imitao), que no arbitrria (j que toda gente a conhece, a reconhece e se entende a seu respeito). O alfabeto eufrico: terminadas a angstia do plano, a nfase do desenvolvimento, as lgicas retorcidas, terminadas as dissertaes! Uma ideia por fragmento, um fragmento por ideia, e para a sequncia desses tomos, nada mais do que a ordem milenria e louca das letras francesas (que so elas prprias objetos insensatos privados de sentido).
Toda regra tem uma exceo
Sempre que tivermos uma regra que, digamos, conspire a favor - ela no s dever ser obedecida como continuada, mas, se porventura esta conspirao for rara, de bom tom abrir mo dela em prol de algo mais proveitoso; no difcil 164
imaginar Barthes pensando em livro feito totalmente de fragmentos felizes: a tabuada de nove com seu curioso resultado alcanado escrevendo os nmeros de nove a um (a contar do 9x1= 9) e depois do um ao oito ( frente e depois de 9X2= 1 8); seguido de um mtodo mnemnico eficiente para saber qual o certo: Entre mim e ela / Entre eu e ela e assim iria at que todas as boas ideias (efeitos de sentido) se esgotassem; seria a alegria dos alunos e o descanso dos professores, seria o exemplo que Barthes no deu. Ele no define uma palavra, ele nomeia um fragmento; ele faz exatamente o inverso do dicionrio: a palavra sai do enunciado, ao invs de o enunciado derivar da palavra. Do glossrio, apenas retenho o princpio mais formal: a ordem de suas unidades. Essa ordem, entretanto, pode ser maliciosa: ela produz, por vezes, efeitos de sentido; e se esses efeitos no forem desejados, preciso romper a ordem alfabtica em proveito de uma regra superior: a da ruptura (da heterologia): impedir que um sentido pegue. (p. 157-158)
Vai dar muito certo ou muito errado Valha-me Nossa Senhora, Me de Deus de Nazar! A vaca mansa d leite, a braba d quando quer. A mansa d sossegada, a braba levanta o p. J fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. J fui menino, fui homem, s me falta ser mulher. Encourado: V vendo a falta de respeito, viu? Joo Grilo: Falta de respeito nada, rapaz! Isso o versinho de Canrio Pardo que minha me cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito! J fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. J fui menino, fui homem, s me falta ser mulher. Valha-me. Nossa Senhora, Me de Deus de Nazar.
(SUASSUNA, 2005, ps. 144-145).
Valha-me Nosso Barthes, Pai de Textos de Prazer! O fragmento deleite, o burro no vai entender. A tese vai sossegada, a banca aceita se quiser. J fui aluno, fui mestre, mas hoje sou doutorando. De barthesiano, fui ariano, s me falta ser reprovando. Orientador: V vendo a falta de respeito, viu? Orientando: Falta de respeito nada, rapaz! Isso o versinho que Canrio Pardo nunca escreveu, se no eu vou dormir. Isso tem nada de falta de respeito! J fui aluno, fui mestre, mas hoje sou doutorando. De barthesiano, fui ariano, s me falta ser reprovando. Valha-me. Nosso Barthes. Me critiquem ensinando. LOPES, Andr O auto da Escrita Compadecida. Rio de Janeiro, 2010.
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E isto foi o que ns entendemos por determinados fragmentos paream seguir por afinidade e Corte! Retome a histria de outra maneira (BARTHES, 1977, p. 158).
A ordem de que no me lembro mais
Ele se lembra mais ou menos da ordem em que escreveu estes fragmentos; mas de onde vinha essa ordem? Segundo que classificao, que sequncia? Ele no se lembra mais. A ordem alfabtica apaga tudo, recalca toda origem. Talvez, em certos trechos, determinados fragmentos paream seguir -se por afinidade; mas o import ante que essas pequenas redes no sejam emendadas, que elas no deslizem para uma nica e grande rede que seria a estrutura do livro, seu sentido. para deter, desviar, dividir essa inclinao do discurso para um destino do sujeito, que em determinados momentos, o alfabeto nos chama ordem (da desordem) e nos diz: Corte! Retome a histria de outra maneira (mas tambm. Por vezes, pela mesma razo, preciso romper o alfabeto). (BARTHES, 1977, p. 158)
Por que algum sobe uma montanha?
interessante, quando uma criana usa a preposio por seguida do pronome interrogativo que temos uma pergunta, quando um adulto usa as mesmas ferramentas gramaticais temos um questionamento. Ao que parece, quando crescemos, o mero nome ou simples descrio dos fatos no nos satisfaz, sab-lo s o incio (rtulo?) de um infindvel questionamento; ultrapassada esta etapa (pergunta ou nome) corremos para seu aprofundamento, afinal no queremos ser enganados, nada acontece por acaso, s o malefcio gratuito, no somos mais crianas; o saber virou arma e escudo que usamos ao preo de perder a inocncia: no posso mais urinar no jardim, pois no sou mais criana, mas se eu voltar a urinar no jardim isso me transportar, ainda que por poucos segundos, minha infncia? Somente se eu urinar como uma criana, ou seja: sem pensar em criar nomes para aquilo e/ou fazer perguntas; fazer como aquele que sobe uma montanha pelo simples fato dela estar l.
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Que quer dizer isto?
Paixo constante (e ilusria) de apor a qualquer fato, mesmo o menor deles, no a pergunta da criana: por qu? Mas a pergunta do antigo grego, a questo do sentido, como se todas as coisas estremecessem de sentidos: que quer dizer isto? preciso, a qualquer preo, transformar o fato em ideia, em descrio, em interpretao, em suma, encontrar para ele um outro nome que no o seu. Essa mania no faz acepo de futilidade: por exemplo, se constato - e apresso-me a constat-lo que, estando no campo, gosto de urinar no jardim e no em outra parte, quer o imediatamente saber o que isso significa. Essa fria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito, como um vcio: no se deve desengatar a cadeia dos nomes, no se deve desencadear a linguagem: o excesso de nominao sempre ridicularizado (M. Jourdain, Bouvard e Pcuchet).(BARTHES, 1977, p. 161)
Obediente ou danante?
H no filme Beleza Americana (1999) um momento potico em que Ricky (Wes Bentley) 1 descreve seus sentimentos ao mostrar um vdeo que fez de um saco plstico voando ao vento: obediente como um fantoche ou danante como uma bailarina flamenca? O quarto dele est escuro, com uma msica de piano tocando bem suave ao fundo, verdade: isso cria um clima; mas se nos ativermos apenas cena do saco plstico voando, rapidamente perceberemos que no se trata de mera crtica poluio ou uma cmera esquecida ligada em um canto qualquer; trata-se de um momento eternizado, e no estamos falando de uma super-cena como a pica corrida de bigas do filme Ben-Hur (1959) 2 , quase como se fosse uma lembrana de tudo o que perdemos por olharmos e no vermos. Em Partir-se sem quebrar (psicanlise e budismo), Mark Epstein descreve os momentos que teve num inverno em Massachussetts: conforme relaxava, sua percepo a respeito das coisas que o rodeavam mudava quase que proporcionalmente. Nnum dado momento se perguntou Como que aconteciam essas coisas to incrveis no exato momento em que eu me
1 Beleza Americana (1999) dirigido por: Sam Mendes. Disponvel em <http://www.youtube.com/watch?v=xu8_8TJC9E8&feature=player_embedded#!>. Acesso em 18/08/2010. 2 Bem Hur (1959) dirigido por: William Wyler. Disponvel em <http://www.youtube.com/watch?v=_3V_whThy0E&feature=related>. Acesso em 18/08/2010. 167
detinha? e logo a seguir responde sua prpria pergunta Levou mais tempo do que estou preparado para admitir, para que eu percebesse que essas coisas sempre estavam acontecendo. Apenas eu estava enfim prestando ateno... (EPSTEIN, 2002, pp. 165-166). Como um Hai-Kai visual essa cena vem nos lembrar que um dos maiores espetculos da terra sempre vem nos visitar quando ainda estamos dormindo: o nascer do sol. (Aqui mesmo, exceto nas Anamnses, cujo preo exatamente este, no se suporta nada que deixe de significar; no se ousa deixar o fato num estado de in-significncia; o movimento da fbula que tira de qualquer fragmento real uma lio, um sentido. Um livro inverso poderia ser concebido: que contasse mil incidentes, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha sequer de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais.) (BARTHES, 1977, p. 161)
Fora da ordem de incidncia
Toda palavra que aparece no dicionrio tem seu sentido denotativo expresso por ordem de incidncia na lngua. Com Roland Barthes isso no acontece: em alguns casos, para se entender de exatamente aproximadamente o que ele quis dizer deve-se ir ao dicionrio, no importa se voc sabe como se escreve tal palavra ou saiba seu significado, com Barthes sempre h uma espcie de, no uma supersignificao onde todos os significados da palavra so requisitados, mas dentro de todos os seus significados uma das suas incidncias sempre mais representativa que as outras e no raro a que no conhecamos, mas ela (incidncia-surpresa) est l no dicionrio espera que algum a leia. Por exemplo: a palavra recesso a maioria das pessoas pensa logo em recesso dos polticos, mas vocs sabiam que este significado, que o primeiro que vm mente das pessoas, justamente o ltimo que aparece no dicionrio HOUAISS (2009), ser que o dicionrio falhou nesta dita ordem de incidncia? Provavelmente o que ocorreu foi o somatrio de uma lngua 168
que ainda esta viva e em constante transformao (vide acordo ortogrfico recente) com a esperana que um dia a palavra recesso no nos remeta mente: ter problemas resolvidos s depois do recesso dos funcionrios pblicos. Barthes, a nosso ver (nossa pesquisa), usou a incidncia de nmero 3 (trs) das 6 (seis) que existem no dicionrio: a parte mais ntima de um ser; mago, essncia, imo - Ex.: preciso que cada um conhea seus prprios r. (HOUAISS, 2009) neste fragmento que se seguir; sem ir ao dicionrio poderamos at entender que o sujeito est tirando frias de si mesmo, mas sendo assim o que o tirar frias de si mesmo teria a ver com riscos? Com a incidncia que destacamos, graas consulta do dicionrio, agora, tal palavra faz muito mais sentido. E, a quem possa interessar enfatuao vem de enfatuar que significa tornar cheio de vaidade, de presuno (HOUAISS, 2009, p. 756).
O recesso 3
Em tudo isto existem riscos de recesso: o sujeito fala de si (risco de psicologismo, risco de enfatuao), ele enuncia por fragmentos (risco de aforismo, risco de arrogncia). (BARTHES, 1977, p. 162)
3 recesso (pg. 1622): - substantivo masculino 1 local remoto e afastado; retiro, recanto, lugarejo Ex.: espalhar a educao por todos os r. do pas 2 Derivao: por extenso de sentido. local ntimo e resguardado Ex.: no r. de seu quarto, a menina sonhava 3 Derivao: sentido figurado. a parte mais ntima de um ser; mago, essncia, imo Ex.: preciso que cada um conhea seus prprios r. 4 Rubrica: anatomia geral. pequeno sulco 5 Rubrica: astronomia. afastamento de um astro Ex.: o r. do Sol 6 Rubrica: termo jurdico. perodo em que esto paralisadas as atividades de um rgo pblico 6.1 Rubrica: termo jurdico. interrupo regulamentar dos trabalhos legislativos e judicirios 169
A eterna troca do que se desgasta
J no fim do livro, Barthes comea a chegar mesma concluso de quem escreve uma tese: termina-se no por achar que ela est pronta, mas por se ter certeza que no aguenta mais. Certos livros (trabalhos, obras, teses, etc.) so como o co da raa husky siberiano: se voc escovar todo dia, sai um puldo (na escova), todo dia. Enquanto houver vida construtora a matria fsica ser renovada; enquanto houver vida leitora a matria abstrata ser renovada. como talo Calvino disse: 4. Toda releitura de um clssico uma leitura de descobert a como a primeira & 5. Toda primeira leitura de um clssico na realidade uma releitura (CALVINO,1994, p. 11). A prtica do Fragmento (letra maiscula, filosofia) s ter fim quando faltarem no mundo essas duas matrias. A siba e sua tinta
Escrevo isto dia aps dia; e vai pegando, vai pegando: a siba produz sua tinta: amarro meu imaginrio (para me defender e me oferecer, ao mesmo tempo). Como saberei que o livro est acabado? Em suma, como sempre, trata -se de elaborar uma lngua. Ora, em toda lngua os signos voltam, e, fora de voltar, acabaram por saturar o lxico a obra. Tendo debilitado a matria desses fragmentos durante meses, o que me acontece, desde ento, vem encaixar-se espontaneamente (sem forar) sob as enunciaes que j foram feitas: a estrutura se tece pouco a pouco, e, ao faz-lo, ela galvaniza cada vez mais: constri-se assim, sem nenhum plano de minha parte, um repertrio finito e perptuo, como o da lngua. Em dado momento, nenhuma transformao possvel, a no ser a que aconteceu ao navio Argo: eu poderia guardar o livro durante muito tempo, mudando pouco a pouco cada fragmento. (BARTHES, 1977, p. 174)
Como fazer para que uma gota dgua jamais seque
No filme Samsara (2001), logo no incio, possvel ler um koan 4 , que pergunta Como fazer para que uma gota dgua jamais seque? e o filme se
4 Koan: uma frase oferecida a cada discpulo, de acordo com sua natureza. Essa frase muitas vezes, muitas vezes, ilgica e at risvel [...] a prpria vida com seus paradoxos e situaes ilgicas. Ex.: "Batendo duas mos 170
desenrola mostrando os questionamentos de um monge, que achava estar no direito de conhecer a dor que tanto estudava nos livros, mas nunca havia experimentado por ter sido levado ao templo ainda to novo, fato que no era raro, na verdade, quase uma regra naquele lugar, uma soluo para os aldees que no tinham como sustentar seus filhos. No fim do filme, e somente no fim, revelada a resposta, o que nos trouxe uma grande surpresa, pois a informao que tnhamos sobre os koans que eles no tinham respostas, so enigmas feitos propositalmente para no terem, seu objetivo forar um esvaziamento da razo, uma limpeza do gabarito mental, criar um quadro todo branco para da se permitir toda uma gama de possibilidades, que em um gabarito mental j previamente preenchido no se permitiria ter. Resultados viciantes, fragmentos contaminados no interessam aos praticantes do zen-budismo. Mas este do filme tinha e era... Pensando bem... Leiam a resposta que Roland Barthes deu para ele mesmo e descubram 5 .
O texto sintomtico
Como devo fazer para que cada um destes fragmentos nunca seja mais do que um sintoma? fcil: deixe-se ir, regrida. (BARTHES, 1977, p.182)
Toda grande ideia comeou com um pequeno insight
Um incndio pode comear por uma simples ponta de cigarro, uma doena com um nico vrus que possui um bilionsimo do nosso tamanho; so incontveis as quantidades de coisas que comeam pequenas e depois se tornam grandes. Mas s desgraas? No, foi o que veio mente na hora de comear a escrever, agora nos vem lembrana que o prprio nascimento algo que comea pequeno como uma clula,
uma na outra temos um som; qual o som de uma mo?" (tradio oral, atribuda a Hakuin Ekaku, 1686-1769 in: SUZUKI, 2003, p. 37-38). 5 Para quem no conseguiu (ou sequer tentou): a resposta est em regrida, quando fazemos uma gota dgua regredir a fazemos voltar para a sua origem. Resposta do Koan: Levando-a para o mar. 171
que rapidamente se divide e cresce, por tanto, o ato de nascer, o sair do tero no o verdadeiro comeo, apenas um outro comeo, um mais visvel e compartilhado de forma menos egosta: me e filho. Talvez as ideias sejam assim tambm, basta um simples Insight para nunca mais vermos o mundo do mesmo jeito, de um fragmento de observao, como um incndio nos queima, como um vrus nos contamina, como um nascimento a ideia sai do tero mental e vai pro papel, agora, escrita passa a ser dividida com o mundo, no sendo mais obrigao nica do criador dar desenvolvimento: pensem no quanto foi escrito quando Isaac Newton corrigiu a afirmao: a gravidade no uma fora externa que puxa para baixo, mas uma fora interna que puxa para o centro, e desta simples e pequenina observao a Terra deixou de ser plana e os navios no mais cairiam no abismo: nome que se dava ao que se acreditava ser a orla da terra.
Mais tarde
Ele tem essa mania de dar introdues, esboos, elementos, remetendo para mais tarde o verdadeiro livro. Essa mania tem um nome retrico: a prolepse (bem estudada por Genette). Eis aqui alguns desse livros anunciados: uma Histria da escritura ( DZ, 22), uma Histria da retrica (1970, II), uma Histria da etimologia (1973), uma nova estilstica (S/Z, 107), uma Esttica do Prazer textual (PlT, 104), uma nova cincia lingustica (PlT, 104), uma Lingustica do valor (ST, 61), um inventrio dos discursos de amor (S/Z, 182), uma fico fundada sobre a ideia de um Robinson urbano (1971, I), uma suma sobre a pequena burguesia (1972, II), um livro sobre a Frana, intitulado maneira de Michelet Nossa Frana (1971, II), etc. Esses anncios, que visam, no mais das vezes, um livro-suma, desmesurado, pardico do grande monumento de saber, s podem ser simples ato de discurso (so exatamente prolepses); eles pertencem categoria do dilatrio. Mas o dilatrio, de negao do real (do realizvel), no entretanto menos vivo: esses projetos vivem, nunca so abandonados; suspensos, eles podem retomar vida a qualquer instante; ou pelo menos, como o rastro persistente de uma obsesso, eles se realizam, parcialmente, indiretamente, como gestos, atravs dos temas, dos fragmentos, dos artigos: a Histria da Escritura (postulada em 1953) engendra, vinte anos mais tarde, a ideia de um seminrio sobre uma histria do discurso francs; a Lingustica do Valor orienta, de longe, este livro aqui. A montanha d luz um ratinho? preciso revirar positivamente esse provrbio desdenhoso: a montanha no demais para fazer um ratinho. (BARTHES, 1977, p. 183-184)
172
Mentira!
Ns contamos o exato nmero de 50 (cinquenta) palavras fragmento escritas no livro em 21 pginas (51, 54, 62, 72, 77, 81, vinte e sete vezes da 101 103, 112, 113, duas vezes na 114, 153, 154, trs vezes na 157, duas vezes na 158, 161, 162, duas vezes na 174, 182, 184) e agora o livro nos diz que a encontramos em apenas trs? E dentro destas trs excluram a pgina 103 com sete vezes a palavra fragmento mais a descrio de dirio, e colocaram a 158 A ordem de que no me lembro mais com apenas duas inscries, quem nem sequer esto com letra maiscula como o que ocorre na 112 ( uma essncia reduzida do Fragmento): nica vez em que isso aconteceu no livro todo. No deu para entender. Pontos de referencia: Fragmento: 101, 102, 158 (BARTHES, 1977, p.198)
Ilustraes * 109 Roland Barthes, manuscrito de um fragmento. (BARTHES, 1977, p. 202)
Sumrio Fragmentos: 49 100 O crculo dos fragmentos: 101 O fragmento como iluso: 103 Do fragmento ao dirio: 103 [...] (BARTHES, 1977, p. 203)
E depois de pensarmos muito, chegamos bvia concluso que no poderamos terminar este captulo, seno do mesmo modo que Roland Barthes terminou o livro dele. Mas do nosso jeito, a gravura escolhida no mera parfrase icnica, ela um feliz achado que fizemos, pois no s conversa com o desenho de anatomia de Barthes como deixa bem claro que o sujeito e no apenas o autor, mas todos ns sujeitos somos assim: a soma dos pedaos de ns mesmos, perdendo alguns, ganhando outros, como a nave Argus. 173
Encyclopdie de Diderot: Anatomia Puzzle (Biffy Clyro) Os troncos da veia cava com seus Album de uma banda escocesa Ramais dissecadoos, num corpo adulto. desenhada pelo designer grfico (BARTHES, 1977, p. 202) THORGERSON, Storm (1944 - ). (O mesmo da banda Pink Floyd)
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5.2. Imprio dos Signos Dirio
O texto no comenta as imagens. As imagens no ilustram o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espcie de vacilao visual, anloga, talvez, quela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagens, em seus entrelaamentos, querem garantir a circulao, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos. Roland Barthes 1
E desta maneira que Barthes comea seu livro O imprio dos signos (1970). Fica bem claro, num simples folhear, que este no difere muito de Roland Barthes por Roland Barthes (1975). Mas qual seria, ento, a diferena bsi ca entre eles, alm das datas? De imediato daria para apontar a profundidade da escrita. No primeiro, (1970) seu aprofundamento mais sutil, mais informal, como o que encontramos em um dirio, mas no segundo (1975) o texto bem mais elaborado/rebuscado tornando as explicaes pouco claras e os exemplos pouco entendidos. Faamos uma rpida comparao: Ele apenas me fornece uma reserva de traos cuja manipulao, o jogo inventado, me permite afagar a ideia de um sistema simblico indito, inteiramente desligado do nosso. (BARTHES, 2007, p. 8)
E como exemplo: E tambm um vazio de fala que constitui a escritura; desse vazio que partem os traos com que o Zen, na iseno de todo sentido, escreve os jardins, os gestos, as casas, os buqus, os rostos, a violncia. (Idem, p.10) do original de 1970.
No somente o fragmento cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior do fragmento reina a parataxe. Isto se v bem quando se faz o ndice desses pedacinhos; para cada um, a reunio dos referentes heterclita;
E como exemplo: como um jogo de rimas prvias: Tomem-se as palavras fragmento, crculo. Gide, luta livre, assndeto, pintura, dissertao, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar." (BARTHES, 1977, p. 101) do original de 1975.
1 BARTHES, 2007, p. 5 175
Ao que parece, Barthes, estava se preparando para escrever apontamentos como: a gente tira ento o caderninho de apontamentos, no para anotar um pensamento, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso (BARTHES, 1977, p. 102). E foi o que ele fez, mas no podemos nos esquecer: a obra seguinte no Roland Barthes por Roland Barthes (1975), como j dissemos no captulo anterior, O prazer do texto (1973) e, segundo o prprio Barthes (o livro Roland Barthes por Roland Barthes, mesmo ainda sendo escrito, j figura em sua prpria tabela, dentro do livro, com o ttulo em francs: R.B. par lui-mme), no haveria diferena entre estes dois: ele os coloca juntos quanto ao Gnero, mas entre eles e o primeiro (1970) j haveria, Barthes os separa: que enquanto este dois (1973 e 1975) so da ordem da moralidade e descreve moral como 2. Moralidade deve ser entendida como o exato contrrio da moral ( o pensamento do corpo em estado de linguagem) (BARTHES, 1977, p. 156), o anterior (1970) textualidade que descrita 2 1. O intertexto no forosamente, um campo de influncias; antes uma msica de figuras, de metforas, de pensamentos-palavras; o significante como sereia (Idem, pg. 156), e no devemos entender aqui esta ltima palavra (sereia) apenas como um ser mitolgico feito de dois corpos (mulher e peixe), mas por no sabermos para qual lado ela pende mais, fica-se com ambos, cria-se um nome unitrio, sereia, que os une (isto porque existe um nome que consegue fazer isso) e quando no existe faz-se, nem que para isso tenha-se que usar uma palavra-valise
2 H uma tabela que aparece na pgina 156 de Roland Barthes por Roland Barthes (no Brasil:1977) seguida de Observaes, ambas no se comunicam por uma ordem especfica, como j foi dito anteriormente; na tabela construda por Barthes aparece a palavra textualidade que no dicionrio Houaiss (2009) figura apenas como: qualidade, condio ou carter do que textual (p. 1840), e textual como o que relativo a texto (p. 1840), e texto como: conjunto das palavras escritas, em livro, folheto, documento etc. (p. 1840) J a palavra intertexto que figura no na tabela, mas nas Observaes, no dicionrio Houaiss tal palavra figura como: texto literrio preexistente a outro texto e que aproveitado, por absoro e transformao, na elaborao deste, ou que o influencia. (p. 1100) Logo, entendemos que textualidade, por se tratar de descrio geral, mais abrangente que intertexto, por se tratar de descrio mais especfica, mas isso no o torna menos representante para o que escrevemos acima, apenas se quis ser menos obeso, ser mais simplistas; pois praticamente toda Observaes serviria para dizer o que textualidade, assim como tambm serviria para todo o resto da tabela. 176
de Lewis Carrol como Vitor Hugo fez com o personagem Darms que escrevia aristocracia por haristaukrassie: a fuso do demnio Haristum, que d permisso s pessoas de passarem pelo fogo sem se queimarem (Exu, no Brasil) a palavra aristocracia em francs aristocratie escrita sem h com a palavra francesa crassie que significa: imundice e como o prprio Hugo completa A palavra, escrita desta maneira, assaz terrvel... e Barthes, admirado comenta Hugo (Pierres) apreciava vivamente a extravagncia do significante (BARTHES, 2002, p. 76). esta chamada extravagncia do significante que ele no cansa de esticar; mas no o faz de forma apelativa, muito pelo contrrio, pela sutileza, do menor fragmento para o todo, do melhor/menor olhar para um fragmento, que um todo se torna mais do que , sempre visto e nunca enxergado. Em O imprio dos signos (1970) no achamos nada que remetesse a uma palavra-valise. Ento por que se falou nisso? Porque um bom exemplo de como se estica um significante, algo que Barthes fazia e procurava em outras obras, e no Japo ele encontrou muita matria prima para trabalhar, dissecava tudo o que via, e tudo o que via era sutil, rotineiro, e mais uma vez sutil; talvez como que por excesso (sutil), desconfiou, assim como ns com a palavra fragmento. E como algum que gosto de urinar no jardim e no em outra parte, quero imediatamente saber o que isso significa. Essa fria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito (BARTHES, 1977, p. 161), Barthes, pelas sutilezas (ou seu excesso) procura conhecer o sujeito japons. Os significantes escolhidos no eram inventados como o que ocorre com as palavras-valises, mas eram meticulosamente escolhidos algo de aqutico (mais do que aquoso) (BARTHES, 2007, p. 22). E assim como nos outros livros a palavra fragmento aparece aqui como mera parte integrante de uma descrio mais pormenorizada: um fragmento (minsculo) de Fragmento (Filosofia) e prova disso 177
o fato de: a primeira vez que a palavra fragmento aparece, no carrega consigo nada de mais, mas ainda assim tem sua importncia, pois como explicar o tremor do significante (BARTHES, 2007, p. 22) atravs de um paralelismo entre comida e lngua sem a palavra que estudamos, como seria possvel afagar a ideia de um sistema simblico indito, inteiramente desligado do nosso. (BARTHES, 2007, p.8) sem ser por ela (F/fragmento)? Nossa estratgia (o que chamamos de: como entrar no livro) ser trabalhar os comentrios mais produtivos de Barthes no tocante Fi losofia do Fragmento, inicialmente, existente na periferia da palavra fragmento (minscula) 3 , mas no s ou haveria perdas. A primeira palavra aparece no captulo intitulado A GUA E O FLOCO, neste Barthes faz uma comparao da comida, inicialmente sua apresentao: A bandeja de refeio parece um quadro dos mais delicados (BARTHES, 2007, p. 19) com a escrita japonesa. Assim, a comida japonesa se estabelece num sistema reduzido de matria (do claro ao divisvel), num tremor do significante: so estes os caracteres elementares da escritura, estabelecida sobre uma espcie de vacilao da linguagem, e assim se apresenta a comida japonesa: uma comida escrita, tributria dos gestos de diviso e de retirada que inscrevem o alimento, no sobre a bandeja da refeio (nada a ver com a comida fotografada, as composies coloridas das revistas femininas), mas num espao profundo que dispe, em patamares, homem, a mesa e o universo. (BARTHES, 2007, p. 22)
A palavra que estudamos s usada por Barthes para falar de uma espcie de paradoxo existente no arroz: ele , ao mesmo tempo, coesivo e destacvel; sua destinao substancial o fragmento, o leve conglomerado e termina sua observao com aquilo que chega mesa apertado, colado, desfaz-se ao golpe dos dois palitos sem contudo se espalhar (BARTHES, 2007, p. 21). E tais observaes so relevantes, pois vo ao encontro do que Barthes acredita ser uma forma eficiente
3 No h palavra fragmento escrita com letra maiscula no livro. 178
de se fazer escritura (oposto escrita) 4 , pois preciso mais que forma para se ser Fragmento, preciso ser Profundo: Pois a escritura precisamente aquele ato que une, no mesmo trabalho, o que no poderia ser captado no nico espao plano da representao. (BARTHES, 2007, p. 22) A segunda palavra encontrada no captulo PALITOS, e ser neste tambm onde encontraremos a palavra haicai 5 , palavra que seria estudada mais vezes e que, curiosamente, no aparece em O prazer do texto (o que aparece a palavra zen 6 duas vezes: BARTHES, 2002, p. 44 e 55; palavra de importante ligao siamesa com o Hai-Kai), mas aparece de forma razoavelmente abundante em Roland Barthes por Roland Barthes (1975): [...] , sem remisso, um continuum de imagens: a pelcula (bem denominada: uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatut ria do fragmento, do Hai-Kai. (Idem, 1977, p. 61- 62);
O fragmento (como o Hai-Kai) torin. (Idem, 1977, p. 102);
Tomem-se as palavras fragmento, crculo. Gide, luta livre, assndeto, pintura, dissertao, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar. (Idem, 1977, pg. 101) Lembrando que ele (Barthes) considerava o
4 Nesta Aula, ele prope o uso indiferenciado de literatura, escritura ou texto, para designar todo discurso em que as palavras no so usadas como instrumento, mas postas em evidncia (encenadas, teatralizadas) como significantes. Toda escritura , portanto, uma escrita; mas nem toda escrita uma escritura, no sentido barthesianos do termo. Extrado de AULA (BARTHES, 2002, p. 75). E fazendo um paralelismo com o que foi dito em Aula de Barthes: Todo ator um sujeito, mas nem todo sujeito um ator. 5 Em Roland Barthes por Roland Barthes a palavra Hai-Kai escrita com K e em O imprio dos signos com C. A melhor explicao para as diferentes formas de grafia da palavra Hai-Kai est em Millr Fernandez, obra de mesmo nome (Hai-Kais): HAI-KUS OU HOKKUS (pequena introduo para os no-iniciados) - O Haiku aparece em geral nos nossos dicionrios com a grafia de Hai-Cai por dois motivos bsicos: o primeiro, a guerra que os fillogos patrcios resolveram deflagrar linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germnico e s andar com passo de ganso. A batalha , evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na lngua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mtica, de JK, tambm banido da vida poltica brasileira. O segundo motivo do no-uso da grafia Haiku a homofonia da segunda slaba com outra palavra da lngua portuguesa, designativa de certa parte do corpo de mltipla importncia fisiolgica. Essa palavra os fillogos s usam a medo. Quando a colocam no dicionrio fazem sempre questo de acrescentar (chulo). Assim, entre parnteses. (FERNANDES, 1997, p. 3-6) 6 Ele prprio est fora da troca, mergulhado no no-lucro, o mushotoku zen, sem desejo de ganhar nada, exceto a fruio perversa das palavras (mas a fruio no nunca um ganho: nada a separa do satori, da perda). Paradoxo: esta gratuidade da escritura (que aproxima, pela fruio, a da morte) o escritor cala-a: ele se contrai, exercita os msculos, nega a deriva, recalca a fruio: so pouqussimos os que combatem ao mesmo tempo a represso ideolgica e a represso libidinal (aquela, naturalmente, que o intelectual faz pesar sobre si mesmo: sobre sua prpria linguagem). (BARTHES, 2002, p. 44). A. est a meu ver muito perto do texto, pois este no d os nomes ou suspende os que existem; no diz (ou com que inteno duvidosa?) o marxismo, o brechtismo, o capitalismo, o idealismo, o Zen, etc.; o Nome no vem aos lbios; fragmentado em prticas, em palavras que no so Nomes. (Idem, p. 55) 179
intermezzo como um Hai-Kai, assim como algumas peas de Webern: O homem que melhor compreendeu e praticou a esttica do fragmento (antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo. (Idem, 1977, p. 102);
[...] mas como o fragmento (o Hai-Kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) finalmente um gnero retrico, e como a retrica aquela camada da linguagem que melhor se oferece interpretao, acreditando dispersar-me, no fao mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginrio (Idem, 1977, p. 103);
Chamo de anamnese a ao mistura de gozo e de esforo que leva o sujeito a reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade da lembrana: o prprio Hai-Kai. (Idem, 1977, p. 118);
Assim, as proposies do Hai-Kai so sempre simples, correntes, aceitveis (EpS, 93)(Apud BARTHES, 1977, p. 126);
(Assim, por vezes, nos Hai-Kais do Japo, a linha das palavras escritas se abre bruscamente e o prprio desenho do monte Fuji ou de uma sardinha que vem gentilmente ocupar o lugar da palavra despedida.) (Idem, 1977, p. 145);
Incidentes (minitextos, recados, Hai-Kais, anotaes, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha), etc. (Idem, 1977, p. 160).
Por pura curiosidade, gostaramos de deixar registrado o espanto que tivemos em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), que mesmo depois de aparecer 7 (sete) vezes (sem contar com o intermezzo e Webern, que remetem a ela) a palavra Hai-Kai no aparece nos Pontos de referncia! Mas bem que merecia, no que quantidade seja qualidade, mas por esta palavra ter/ser qualidade. E para ns, como foi demonstrado/transcrito, a palavra Hai-Kai sempre foi recrutada/requisitada para melhor exemplificar a importncia do Fragmento e apesar de muitas vezes transcrita quase que ao lado e/ou referindo-se a ele, no o fragmento a que ela se refere, mas ao Fragmento, pois apesar da nica vez em que ela apareceu com letra maiscula (RB por RB, 112) no estar acompanhada da palavra Hai-Kai, acreditamos que do fragmento (pedao) que se chega ao Fragmento (Filosofia). E em O imprio dos signos (1970) isso acontece direto: o futuro do pepino no o amontoado ou o espessamento, mas a diviso, o tnue espalhamento, como dito neste haicai: Pepino cortado/ Seu suco escorre/ 180
desenhando patas de aranha (BARTHES, 2007, p. 24 e 25), aqui no encontramos a palavra fragmento, mas encontramos palavras, no mnimo, suspeitas/cmplices: diviso, espalhamento e cortado. Mas e a palavra fragmento? Esta acompanha o ttulo do captulo (Palitos), e acompanha duas vezes, na primeira: o palito sua forma o diz suficiente tem uma funo ditica: ele mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo prprio gesto da escolha, que o ndex (Idem, 2007, p. 25) e na segunda: Outra funo dos palitos, a de pinar o fragmento de comida (e no mais de espetar, como fazem nossos garfos) (Idem, 2007, p. 26). A todo o momento Barthes compara a/ maneira do ocidente a/ maneira do oriente, desde sua apresentao, que no captulo anterior ele comparou com a prpria lngua japonesa e suas possveis potencialidades de utilizao na do ocidente, e no fim dele (captulo) acabou por fazer a comparao mais esperada: a comida de l com a de c: Na Frana, uma sopa clara uma sopa rala e no Japo um elixir reconfortante pela pureza: algo de aqutico (mais do que aquoso) (Idem, 2007, p. 22). E como a apresentao do prato j havia sido feita, sobrou para este (PALITO, segunda palavra fragmento) o como comer, toda a delicadeza de uma comida serena sendo consumida quase que por magia, absoro de quem traga uma cigarrilha suave, sente o cheiro de um perfume, qui mama o leite materno; contra o mtodo quase espartano de atacar a comida ocidental com facas de corsrios e garfos de gladiadores. E, continuando com as diferenas, Barthes se mantm no caminho da comida. No captulo seguinte A COMIDA DESCENTRADA encontramos 2 (duas) vezes nossa palavra. A primeira fazendo uma repetio medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos, alguns fragmentos desse guisado recm-cozido, outros alimentos crus vm substitu -los. (Idem, 2007, p. 30). A segunda fazendo uma 181
retomada do captulo onde apareceu pela primeira vez nossa palavra, o que aborda a aparncia (a bandeja): [...] sobre a mesa, sobre a bandeja, a comida nunca mais do que uma coleo de fragmentos, dos quais nenhum privilegiado por uma ordem [...], mas colher, com um toque ligeiro dos palitos, ora uma cor, ora outra, ao sabor de uma espcie de inspirao que aparece, em sua lentido, ... (Idem, 2007, p. 32, grifo nosso)
No captulo O INTERSTCIO comea-se a falar do cozinheiro, mas rapidamente voltamos para a comida A enguia (ou o fragmento de legume, de crustceo), alimentos que se transformam por ao da fritura, que se enchem de buracos, de vazios; no difcil imaginar, para quem conhece a obra de Barthes, como ele deve ter ficado com vontade de mergulhar um texto na fritura da enguia, s para ver se ao retir-lo de l ele: [...], reduz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma coleo de buracos; o alimento chega, assim, ao sonho de um paradoxo: o de um objeto puramente intersticial, ainda mais provocante porque esse vazio fabric ado para que nos alimente dele (s vezes, o alimento construdo em bola, como uma bolha de ar). (Idem, 2007, p. 34)
Mais uma vez, para quem conhece a obra de Barthes, quase impossvel ler os comentrios que ele faz sobre a comida japonesa e no compar ar de imediato com o texto do ocidente, com o que ele chamaria em Roland Barthes por Roland Barthes de Assim se escreve dia a dia um texto ardente, um texto mgico, que nunca terminar, imagem brilhante do Livro liberto (BARTHES, 1977, p. 71), sendo este ltimo comparado/fruto de uma rede de amigos; Barthes est sempre comparando, sempre tentando mostrar o caminho a partir do que se conhece, ou se pensa conhecer, lugar comum (comum, mas nem tanto). Em O imprio dos signos os detalhes no so descritos como algum que quer ou vai escrever um livro de receitas, no assim que se escreve um livro de receitas, assim que se escreve um livro de provocaes; na 182
falta do cheiro os detalhes na fartura do texto; faltam ligaduras - mais uma para aprendermos. A tempura liberada do sentido que ligamos tradicionalmente fritura, e que o peso. A farinha reencontra nela sua essncia de flor espalhada, diluda to levemente que forma um leite, e no uma pasta; tomado pelo leo, esse leite dourado to frgil que recobre imperfeitamente o fragmento de comida, deixa aparecer um rosa de camaro, um verde de pimento, um marrom de berinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que feito nosso bolinho, e que a ganga, o invlucro, a compacidade. (BARTHES, 2007, p. 34-35, grifo nosso)
No filme A Time to Kill (1996) um advogado branco (Matthew McConaughey) aceita defender um pai negro (Samuel L. Jackson), que fez justia com as prprias mos quando sua filha negra de dez anos foi estuprada por dois homens brancos bbados e racistas; nas alegaes finais ele pede para os jurados (todos brancos) fecharem os olhos e imaginarem a menina sozinha, na estrada, sendo arrebatada, amarrada, surrada, violentada, e, por fim pediu para que os jurados imaginassem o seguinte: Agora imaginem que isso aconteceu com uma criana branca! e ganhou a causa. Tudo isto escrevemos para propor agora o seguinte: troquem a palavra comida, do fragmento acima, pela palavra texto, mas s ela; deixem todo o resto do jeito que est e depois respondam: isto ou no o que Barthes deseja para um bom texto? E se nos permitem a ousadia, quem sabe na primeira vez que ele escreveu este pargrafo no escreveu com a palavra texto e, depois, ao perceber o ato falho: corrigiu. E podem fazer o mesmo nest e que se segue, s que neste faam com a palavra alimento: O que importa que o alimento seja constitudo de pedaos, de fragmentos (estado fundamental da cozinha japonesa, na qual a cobertura de molho, de creme, de crosta desconhecida), no apenas pela preparao, mas tambm e sobretudo por sua imerso numa substncia fluida como a gua, coesiva como a gordura, de onde sai um pedao acabado, separado, nomeado e contudo crivado; mas o cerne to leve que se torna abstrato: o alimento no tem por invlucro seno o tempo (alis muito tnue) que o solidificou. (BARTHES, 2009, p. 36, grifo nosso) 183
De imediato (segunda linha), temos a palavra fragmento descrita como fundamental (mas s na cozinha japonesa?); seguida de palavras que remetem a ela: 2 (duas) vezes a palavra pedao(s) e um verbo formador de fragmento: separado; alm da repetio (ou do reencontro) da palavra sutileza por meio de outras palavras e/ou expresses: substncia fluida como a gua, leve, abstrato e (alis muito tnue): todos excelentes exemplos do que Barthes chamou de tremor do significante (BARTHES, 2007, p. 22). Agora nossa pesquisa dar um pulo de cinco captulos (Pachinko/ Centro da cidade, centro vazio/ Sem endereos/ A estao/ Os pacotes) e aterrissar no ca ptulo de nome AS TRS ESCRITAS, e ao lermos descobrimos que bem poderia se chamar OBunraku, ou ser que no? O captulo comea, no com a descrio do que o Bunraku, mas, como se as pessoas j soubessem, ou por induo sabero quando lerem, Barthes fal a direto do boneco-sol com todos os seus ajudantes-satlites ao redor; trata-se do teatro profissional de bonecos, mas do teatro em si pouco mais de trs linhas e uma foto grande de duas pginas; no fala o que o teatro, mas para que serve o teatro, sua descrio funcional. Com o boneco e seus ajudantes que lhe do vida: um rico texto, no economizou detalhes, mas apesar de toda sua importncia/preferncia ainda assim, inicialmente, muito tcnico e nenhuma foto, estas so iniciativa nossa:
Homem com dois assistentes 7 Desenho/esquema 8
7 BUNRAKU (cultura do Japo), autoria de Nihonline (2002). Disponvel em: <http://www.nihonline.com.br/cultura/maio/bunraku_020503.asp> . Acesso em 16/04/2010; 184
Somente na pgina seguinte encontramos O Bunraku pratica trs escritas, que d a ler simultaneamente em trs lugares do espetculo; a marionete, o manipulador, o vociferante: o gesto efetuado, o gesto efetivo, o vociferante (BARTHES, 2007, p. 66) e ento a tcnica, aos poucos, comea a se unir a algo maior: trs fragmentos realizando um Fragmento. Como a marionete j foi exaustivamente descrita, Barthes vai direto para a voz e em seguida para o gesto: so trs escritas separadas que funcionam juntas, mas qual o sentido disso? Atravs da separao cria-se um afastamento e tal afastamento enfatiza, ao separar, ao saber que est separado, que o personagem no o ator, o que nos resta? O gesto puro 9 : o que um boneco articulado pode fazer se no apenas mexer? Aquele que faz passar do inerte para o mvel 10 : ser que ele vai fazer isso to bem feito, que far as pessoas no repararem nele, mas apenas no seu produzir o gesto? A voz 11 que emprestada ao boneco mvel vem de um recitante imvel (em cena, os recitantes ocupam um estrado lateral) (BARTHES, 2007, p. 67), e, por isso a soma de tudo torna o boneco mais vivo que seus ajudantes, talvez o nico vivo a estar no palco, prova disso (as pessoas choram no momento do suicdio da boneca - amante) 12 (Idem, 2007, p. 67). Tudo isto para explicar o nico trecho (neste captulo) com a palavra que estudamos:
8 BUNRAKU, autoria de JNTO (Japan National Tourism Organization). Disponvel em: <http://www.jnto.go.jp/eng/indepth/history/experience/z.html>. Acesso em 16/04/2010; 9 Ningy Joruri, demostracin final, autoria de Irukina: Gesto puro, apenas o movimentar-se. Disponvel em : <http://www.youtube.com/watch?v=OPkeMk9mjoY&feature=related> . Acesso em 16/04/2010; 10 Autoria de ibucyan1: a atuao, no mais um boneco que apenas mexe, mas uma verdadeira representao. Disponvel em: < http://www.youtube.com/watch?v=eVOo4zjlIoU&feature=related> . Acesso em 16/04/2010; 11 Japanese Melody Collection. Yanotayu Takemoto, Gidayu Tune Collection, autoria de DSchannel : a voz acompanhada de instrumentos. Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=F1ZEmla6GLE . Acesso em 16/04/2010. 12 No YouTube existe um vdeo: que no mostra o exato momento da morte da amante, mas mostra o quanto ela sofreu. Disponvel em < http://www.youtube.com/watch?v=eVOo4zjlIoU&feature=related>. Acesso em 16/04/2010. 185
Como Brecht havia visto, aqui reina a citao, a pitada de escrita, o fragmento de cdigo, pois nenhum dos promotores da representao pode atribuir sua prpria pessoa aquilo que ele nunca escreve sozinho. (BARTHES, 2001, p. 71)
E mais uma vez, mesmo sendo curto, aparecem palavras que estremecem o significante: pitada de escrita reforando e/ou repetindo fragmento de cdigo e ele nunca escreve sozinho demonstrando que de 3 (trs) fragmentos (trs escritas) nasce o que podemos chamar de Fragmento. Agora, pulando dois captulos (Animado/Inanimado, Dentro/Fora, mesuras) chegamos a um que no possui a palavra fragmento, mas que para ns foi impossvel ignorar, pois se trata de um captulo inteiramente dedicado ao haicai, palavra que ser tantas vezes comparada ao Fragmento em obras futuras. S para se ter uma ideia da importncia deste captulo vejam este fragmento:
O haicai apetece: quantos leitores ocidentais no sonharam em passar pela vida com um caderninho na mo, anotando aqui e ali algumas impresses cuja brevidade garantiria a perfeio, cuja simplicidade atestaria a profundidade. (BARTHES, 2007, p. 90)
Como no perceber que este livro O imprio dos signos (original de 1970) foi embrionrio para um dos fragmentos mais significativos/lembrados de Roland Barthes por Roland Barthes (original de 1975), para quem estuda a obra barthesiana: O Zen pertence ao budismo torin, mtodo da abertura abrupta, separada, rompida (o kien , pelo contrrio, o mtodo de acesso gradual). O fragmento (como o Hai-Kai) torin; ele implica um gozo imediato: um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob a forma de pensamento- frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no caf, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira ento o caderninho de apontamentos no para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102) grifo nosso.
E ele prossegue: Assim o haicai parece dar ao Ocidente direitos que sua literatura lhe recusa, e comodidades que ela lhe regateia (BARTHES, 2007, p. 91). E depois de lido isto com o texto A morte do autor publicado em: O Rumor da 186
Lngua (BARTHES, 2004. p. 57-64.) fica a pergunta: ser que estamos falando de uma literatura que castra ou uma crtica que condena ao apontar/apreciar outros? Talvez pelo pblico estar saturado de obras apontadas perdeu-se ou se desconhece outras possibilidades de liberdade. O Hai-Kai vai aparecer muitas vezes na obra de Barthes e sempre de forma elogiosa, ainda que quase invejosa. Ele ( Hai-Kai) permite que o sujeito seja ftil, curto, comum (BARTHES, 2007, p. 91); com apenas (seus tr s versos de cinco, sete e cinco slabas) (Idem, 2007, p. 94) pode-se suspender a linguagem, no em provoc-la (Idem, 2007, p. 95); seria uma maneira eficiente de trapacear ( Aula), como um lutador de artes marciais: seria usar a fora existente na lngua, seu lado fascista pois o fascismo no impedir de dizer, obrigar a dizer (BARTHES, 2002, p. 14) contra ela mesma, no apenas a derrotando, mas mostrando onde ela errou. No livro MUSASHI, de Eiji Yoshikawa, um autor japons, h uma passagem bem interessante que mostra o dilogo de Musashi com um ancio (Nikkan, o monge superior do templo Ozoin); nesta passagem l-se:
- Louvo sua atitude. No entanto, meu jovem, voc muito forte, direi at forte demais. Tomando as palavras do ancio como um elogio, Musashi sentiu o rosto abrasar-se e disse com modstia: - Pelo contrrio, tenho certeza de que sou ainda imaturo, tendo muito a aprender. - Concordo; eis porque tenha talvez de aprender a conter um pouco a sua fora. Ter de aprender a ser um pouco mais fraco. (YOSHIKAWA, 1999, p. 248)
Isto porque para um praticante de artes marciais impossvel controlar a fora do outro sem antes aprender a controlar a sua prpria fora. O Hai-Kai no uma escrita fraca antes uma escritura controlada, um tirar a fora, seu excesso, sua opresso. E como fazer isso? Simples, do mesmo modo que se pratica as artes 187
marciais: com pratica, e isto dito vai ao encontrado do pensamento barthesiano: primeiro por falar tanto no Hai-Kai e segundo por escrever em Aula: Entendo por literatura no um corpo ou uma sequncia de obras, nem de comrcio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prtica: a prtica de escrever. (BARTHES, 2002, p. 16-17). Sem prtica jamais seremos bons, mas pratiquemos de forma correta, e comecemos por tirar a fora. E no captulo seguinte, A ISENO DO SENTIDO, vale a pena transcrever: A brevidade do haicai no formal; o haicai no um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breve que acha, de golpe, sua forma justa. (BARTHES, 2007, p. 99), pois no prximo: O INCIDENTE, ele no s continua a falar de Hai-Kai como aparece a nossa palavra estudada, mais uma vez, ligada a ela:
O nmero, a disperso dos haicais, por um lado, e a brevidade, o fechamento de cada um deles, por outro lado, parecem dividir, classificar o mundo at o infinito, construir um espao de puros fragmentos, uma poeira de acontecimentos que nada, por uma espcie de abandono da significao, pode ou deve coagular, construir, dirigir, terminar. que o tempo do haicai sem sujeito: a leitura no tem outro eu seno a totalidade dos haicais de que esse eu, por frao infinita nunca mais do que o lugar de leitura. (BARTHES, 2007, p. 103) Grifo nosso.
Barthes considera o Hai-Kai como uma espcie de espelho, isto porque no Ocidente o espelho um objeto essencialmente narcseo: o homem s pensa no espelho para se olhar (Idem ,2007, p. 103). Enquanto que no Oriente, ao que parece, o espelho vazio (Ibidem, p. 103) e quem ratifica bem este pensamento Paulo Leminski que no artigo Click: Zen e a arte da fotografia (Oku, viajando com Bash , original de 1995) escreveu:
O Hai-Kai valoriza o fragmentrio e o aparentemente banal e o casual, sempre tentando extrair o mximo do significado do mnimo de material, em ultrassegundos de hiperinformao. [...] O mundo que o Hai-Kai procura captar um mundo objetivo, o mundo exterior. Um mundo de coisas onde o eu est quase sempre ausente, sujeito oculto, elidido. Mas no um mundo morto, uma mera descrio. Por trs das objetividades do Hai-Kai, sempre pulsa (sem se anunciar) um Eu maior, aquele eu que 188
deixa as coisas ser, no as sufoca com seus medos e desejos, um eu que quase se confunde com elas. (LEMINSKI, op. cit., p. 475) Grifo nosso.
Como podemos perceber por estes dois fragmentos (Barthes e Leminski), Hai - Kai e sujeito jogam um com o outro, como a criana e o dedo descritos em A arte cavalheiresca do arqueiro zen (original de 1975): Como a criana que segura o dedo de algum. Ela o ret m com tanta firmeza que de admirar a fora contida naquele pequeno punho. Ao soltar o dedo, ela o faz sem a menor sacudidela. Porque a criana no pensa: agora vou soltar o dedo para pegar outra coisa. Sem refletir, sem inteno nenhuma, volta-se de um objeto para outro, e dir-se-ia que joga com eles, se no fosse igualmente correto que so os objetos que jogam com a criana. (HERRIGEL, 2003, p. 41)
E este foi o melhor exemplo que encontramos para unir um eu que quase se confunde com elas (BARTHES, 2007) com Um mundo de coisas onde o eu est quase sempre ausente, sujeito oculto, elidido (LEMINSKI, apud VEROSA, 1996). E no captulo seguinte, TAL, continua com este desenvolvimento e d exemplos tpicos de quem resolveu tirar ento o caderninho de apontamentos no para anotar um "pensamento", mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um "verso". (BARTHES, 1977, p. 102): o Hai-Kai. E alega no poder ser usado para o comentrio, isto porque, e agora teremos que falar um pouco de suas regras, que ele no fala, mas teremos ns que dizer, pois o Hai-Kai, dizem os mestres, no pode ser pessoal: e isso no significa que voc no possa expressar sua opinio, at pode, mas no poder ser julgador. Para evitar escrever um texto mais longo, e talvez confuso, vamos ao exemplo: uma vez andando numa rua prxima de casa percebemos que havia grades eltricas em todos os prdios do lado direito e do lado esquerdo da rua, num rpido insight, nos veio mente o nome Auschwitz (Campo de extermnio) com seus currais-eltricos e logo depois um Hai-Kai, quase que sem querer, nasceu: Mo-ro em Ausch-witz / gra-des e-l-tri-cas por / to-da Ge- na-ro (Av. Genaro de Carvalho, Recreio, RJ) e ainda por cima nasceu com a 189
contagem recomendada pelos haicastas: 5 (cinco se separarmos Ausch-witz), 7 (sete) e 5 (cinco) slabas. Mas isso (a contagem das slabas) no foi o mais importante , foi o fato de no julgarmos Auschwitz, no julgarmos o que as pessoas precisam fazer para diminurem o risco de assalto, apenas fizemos um Hai-Kai; a comparao, o julgamento, o comentrio de que Barthes fala: entra naquela suspenso do sentido que, para ns, a coisa mais estranha, pois torna impossvel o exerccio mais corrente de nossa fala, que o comentrio. (BARTHES, 2007, p. 110) e que nos pareceu um tanto pejorativo fica a cargo dos outros sujeitos, porque entendemos que o nosso - sujeito aqui - ficou de fora. E at hoje ficamos sem saber, sinceramente, se foi o Hai-Kai que jogou conosco ou fomos ns que jogamos com ele, tamanho foi o arrebatamento. Ainda neste captulo, TAL, usa a palavra traos (fragmento?) e ainda a coloca assim: em itlico apesar de no ser uma palavra estrangeira como insight: Tais traos (esta palavra convm ao haicai, espcie de leve cuti lada traada no tempo) instalam o que pde ser chamado de a viso sem comentrio (BARTHES, 2007, p. 110). Se pairava uma dvida sobre se traos poderia ter alguma semelhana com a palavra fragmento a palavra cutilada (golpe desferido com cutelo, espada ou outro instrumento cortante: HOUAISS, 2009, p. 591) no deixa mais margens para dvidas. E mais uma vez temos que falar de outra regra do Hai-Kai, a questo do tempo, e no estamos falando de tempo no sentido de estaes do ano da regra tradicional que diz: uma aluso estao do ano, presente em todo Hai -Kai. (LEMINSKI,1983, p. 44), mas do tempo no sentido fotogrfico, sentido de presente imediato: o verdadeiro Hai-Kai aquele que desponta de sbito, inteiro, ntegro, slido objeto do mundo, num momento decisivo que no depende da vontade, do 190
arbtrio do poeta. (LEMINSKI, apud VEROSA, 1996, p. 477). E logo a seguir Barthes questiona (e colocamos esta palavra entre aspas) a sua validade para a literatura: o haicai no serve a nenhum dos usos (eles mesmos, entretanto, gratuitos) concedidos literatura: insignificante (por uma tcnica de interrupo do sentido), como poderia ele instruir, exprimir, distrair? (BARTHES, 2007, p. 111). Mas se por um lado consideramos o dito dele sobre o comentrio como algo pejorativo, agora, consideramos o ltimo como provocador, pois vejam o que Roland Barthes diz sobre literatura em Crtica e verdade (original de 1966): Em literatura, como na comunicao privada, se quero ser menos falso, preciso que eu seja mais original, ou, se se preferir, mais indireto. (BARTHES, 1982, p. 19) Nunca h criadores, apenas combinadores, e a literatura semelhante barca de Argos: a barca no comportava em sua longa histria nenhuma criao, apenas combinaes; presa a uma funo renovada, sem que o conjunto deixasse de ser a barca Argos. (p. 21) O escritor concebe a literatura como fim, o mundo lha devolve como meio; e nessa decepo infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho, alis, j que a literatura o representa como uma pergunta, nunca, definitivamente, como uma resposta. (p. 33) E porque a literatura, em particular, uma adivinhao que ela ao mesmo tempo inteligvel e interrogante, falante e silenciosa, engajada no mundo pelo caminho do sentido que ele refaz, mas liberada dos sentidos contingentes que o mundo elabora: respostas quilo que a consome e, no entanto, sempre pergunta natureza, resposta que interroga e pergunta que responde. (p. 55)
Agora que foi lido, nos respondam: onde o Hai-Kai como ele o concebe e descreve no entra no que foi escrito acima, onde? Questionamos ns, agora. Por isso colocamos a palavra questionamento entre aspas, por isso consideramos a pergunta feita como uma provocao ou como uma pergunta que responde (op. cit., p. 55). E j que falamos tanto no Paulo Leminski, vamos mais uma vez, repetir o que j escrevemos no captulo de Roland Barthes por Roland Barthes (1977): A poesia uma daquelas coisas que no precisa de por qu (?) pra que por qu?. Logo a seguir Barthes fala de monges que se sentavam s para ficar sentado (BARTHES, 2007, p. 111) e o escrever, qual o problema de se escrever s para 191
escrever? (Ibidem, 2007, p. 111), isso no seria literatura? E o escrever para no ficar louco, s literatura porque Andr Gide? O Hai-Kai pode ser insignificante em formato, mas grande em contedo, e por ser/ter este paradoxo (grande e pequeno), que d linguagem a oportunidade de retirar sua fora, reduzir seu fascismo e ao fazer isto d literatura: instruo, expresso, distrao. Poderamos dizer mais sobre o Hai-Kai barthesiano, na verdade ficamos tentados a escrever um captulo sobre isso, pois experincia sobre o Hai-Kai no nos falta: nossa dissertao de mestrado foi DE RONINS E SAMURAIS, os Hai-Kais de Millr Fernandes cotejados com os de Paulo Leminski e como tal palavra estava sempre prxima da palavra que nos propusemos a estudar no seria uma tarefa difcil, mas seria um tanto repetitivo, justamente por j termos t rabalhado tanto com ela ao longo desta tese, ainda que de forma oportunista, espordica, sempre a reboque do fragmento; por isso resolvemos resistir tentao e continuamos sem fazer o tentador captulo proposto. Em O GABINETE DO SIGNO encontraremos a ltima palavra de nosso estudo, e aqui ela no aparece como fragmento, mas como fragmentao, se mantm um substantivo, verdade, mas no mais como seu anterior, este agora no nomeia o resultado da partio, diviso, mas nomeia sua ao de partir -se, dividir-se, para s depois se tornar fragmento. E quem faz essa ao? O sujeito. E por que o faz? Para ver o todo de modo diferente, um outro todo, um pequeno todo. Seu uso neste captulo participa apenas de uma descrio, quando Barthes diz que ao viajar (na rua, de trem ao longo dos subrbios, das montanhas) (BARTHES, 2007, p. 145) percebe uma organizao, fruto de unio e fragmentao percebo a a conjuno de um longnquo e de uma fragmentao, a justaposio dos campos (no sentido rural e visual) ao mesmo tempo descontnuos e abertos (Idem, 2007, pg. 192
145) e imediatamente tenta entender, talvez at integrar -se a esta paisagem, mas no consegue, seus vazios do liberdade demais, sente-se por demais livre/perdido para a interao: [...] nunca sou sitiado pelo horizonte (e seu relento de sonho): nenhuma vontade de inflar os pulmes, de estufar o peito para garantir meu eu, para me constituir em centro assimilador do infinito: levado evidncia de um limite vazio, fico ilimitado sem ideias de grandeza, sem referncia metafsica. (BARTHES, 2007, p. 145-146)
E por que ele quer essa interao com a natureza, representada aqui pela paisagem, no qualquer uma, mas uma com vazios, vazios que o incomodam? Vamos responder em duas partes: a primei ra resposta pode ser encontrada dentro no livro A origem da obra de arte de Martin Heidegger (2005), que afirma ser possvel fazer uma unio pelo que existe no bvio da separao. No fim, criatura e criador se fundem no existindo um sem o outro, mas vistos melhor um sem o outro:
A salvaguarda da obra no isola os homens nas suas vivncias, mas f -los antes entrar na presena verdade que acontece na obra, e funda assim o ser-com-e-para-os-outros (das Fr-und Miteinandersein), como exposio (Ausstehen) histrica do ser-a a partir da sua relao com a desocultao. [...] Assim, nunca perguntamos a partir de ns, que nesse perguntar no deixamos a obra ser uma obra, antes a representamos como um objecto que deve suscitar determinados <<estados de alma>> (HEIDEGGER: 2005, P. 54-55)
A segunda seria a resposta a essa espcie de inquietao com o vazio que o incomoda tanto, que ele encontra na paisagem, nas casas, em tudo, e ele sabe que isso significa alguma coisa, prova que em um dado momento diz: Imprio dos Signos? Sim, se entendermos que esses signos so vazios e que o ritual sem deus (BARTHES, 2007, p. 146). Barthes precisa de um referencial, um guia para tentar entender esse vazio que o cerca no Japo. Refugia-se em Mallarm Olhem o gabinete dos Signos (que era o habitat de Mallarm) (Idem, 2007, p. 146) ainda que de forma rpida, algo como quem diz: j tivemos algo parecido no Ocidente. Mas no era a mesma coisa, um comeo, uma desculpa, um consolo, mas no a mesma coisa. 193
Mallarm utilizava os smbolos para expressar a verdade atravs da sugesto, mais que da narrao; atravs desse por que Mallarm? que alcanamos a pista do que Barthes procura e no encontra, ao menos no nesse livro. J estamos no ltimo captulo e suas ltimas palavras so: ..., no h nada para ser agarrado (Idem, p. 148), e mais uma vez usa o itlico para uma palavra que no estrangeira. Ento o que poderamos dar como resposta para tal inquietao? Mallarm (?), perto, mas no o bastante, caso contrrio ele mesmo, mais conhecedor de Mallarm que ns, o teria dito. Acreditamos que um brasileiro, um curitibano, velho conhecido desta tese, tem a resposta; disse ele... Numa conversa de poetas, contou que um dia mostrou uns Hai -Kais seus a Caetano Veloso (n. 1944), e o baiano multimdia perguntou como se apreciava um Hai-Kai. Leminski, rpido no gatilho: "Haikai tem trs linhas e cinco buracos. os buracos so mais importantes que as linhas". (LEMINSKI, apud VEROSA, 1996, p. 486)
Resposta para o vazio? Depende, no foi Barthes quem disse: resposta que interroga e pergunta que responde (BARTHES, 1982, p. 55), quem sabe?
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5.3 Incidentes Dirio (Fragmento) coletivo de fragmentos
Como se escreve um captulo sobre a palavra fragmento em um livro onde ela s aparece duas vezes?
Mas sim a passagem escrita de encontros de incidentes que poderiam ter constitudo o tecido de um romance, subtraindo praticamente todos os tipos ou personalidades constitudos: restos de romance sem suportes pessoais; descontado igualmente qualquer entrosamento contnuo da narrao, que lhe imporia inevitavelmente uma <<mensagem>>: o <<romanesco>>, por essncia, fragmento. (BARTHES, 1987, p. 8, grifo nosso)
preciso muita ateno agora, e s iremos explicar o porqu no prximo pargrafo, o texto curto e bem fragmentado, contm textos de Barthes, mas recomendamos que se releia o incio, pois ele explicativo mais que enunciativo, e vamos ao segundo: uma nota de roda p.
O manuscrito est titulado, paginado e comporta mesmo, como veremos, indicaes para uma ltima reviso: o que assinala que estava destinado publicao um dia mais tarde 1 1 Que se trata aqui de um exerccio ou de um primeiro fragmento, atestado por uma nota que se segue ao texto: interrompidas aqui (22 Set. 79) as Vs Soires. 1) Para no perder tempo e liquidar o mais possvel a preparao dos Cursos. 2) Para verificar as notas e a partir de agora escrever tudo em fichas. (BARTHES, 1987, p. 8-9, o Itlico no nosso)
Agora o porqu de pedirmos ateno redobrada, reparem no detalhe: estas palavras fragmento no foram escritas por Barthes, mas por seu editor e amigo Franois Whal (Nota do Editor) que pediu algo sobre, no o dirio como pode se imaginar, mas sobre a homossexualidade. Barthes lhe deu escritos, anotaes feitas ao longo de dois anos em Marrocos e que seriam seminais para o que se revelaria, em virtude de sua morte precoce, seu projeto ltimo: o romance, que encontramos em A preparao do romance vol. I e II (1978-1979). E como tais palavras vo ao encontro do pensamento barthesiano, consideramos vlido sim que tais palavras (s duas e sem serem dele diretamente) apaream nesta tese. Lembramos que em Fragmentos de 195
um discurso amoroso (2000) as quatro palavras (fragmento) que aparecem tambm no so dele, exceto o ttulo, pertencem a: Nietzsche, Balzac, Rusbrock e Theodor Reik, sendo os dois ltimos no roda p, assim como um dos casos em Incidentes (1987). Quem quer realmente encontrar teoria sobre o Dirio ter que ir a outros livros, como o prprio editor recomenda: Roland Barthes por Roland Barthes (1977) Incidentes (minitextos, recados, Hai -Kais, anotaes, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha) (p. 160) mais o texto Que quer dizer isto? (pg. 161) onde encontramos o dirio comparado ao Hai-kai Um livro inverso pode ser concebido: que contasse mil incidentes, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais. (Ibidem) e O rumor da lngua (2004) No, a justificativa de um Dirio ntimo (como obra) no pode ser seno literria, no sentido absoluto, mesmo que nostlgico da palavra. Vejo aqui quatro motivos. (pp. 447-448); e deste ltimo que vm os fragmentos, que lemos em Incidentes (1985) e fazem o pequeno texto, recortado do editor, trocar o enunciativo pelo explicativo: 1) Potico: oferecer um texto colorido por uma indi vidualidade de escrita, por um, <<estilo>> (dir-se-ia outrora), por um idiolecto prprio do autor (BARTHES, 2004, pp. 447-448 ou 1987, p. 9) e tudo isto escrito, e enfileirado, pode ser encontrado em vrios fragmentos, mas o que ns escolhemos para exempl o por sua irreverncia (cor, estilo) foi: Trs jovens Chleus 1 , na falsia, exigem uma lio de francs. <<Como que se diz...?>> ao responder-lhes, reparo que o aparelho sexual cabe todo
1 Chleuh, palavra que tambm pode ser escrita chleu ou Schleu, tem origem no nome de uma tribo do Marrocos colonizada pelos franceses no incio do sculo XX. Quando um francs no entende ou sente dificuldade em entender a lngua de algum costuma chamar essa pessoa de Chleuh, quase sempre pejorativa, seria como chamar algum de gringo no Brasil. Origine des mots boche et chleuh, postado por Bastien. Disponvel em: <http://www.culture-generale.fr/histoire/622-origine-des-mots-boche-et-chleuh>. Acesso em: 20/05/2010. Detalhe: no Brasil existem japoneses (Bairro da Liberdade - SP) que chamam os brasileiros de Gaijin (): gringo, e Roland Barthes em pleno Marrocos fazia o mesmo. 196
num paradigma oclusivo: cu/ cona/ caralho. 2 Eles prprios, imediatamente fillogos, ficam admirados. (BARTHES, 1987, p. 47)
2) Histrico: dispersar em poeira, dia a dia, os vestgios de uma poca, com todas as dimenses misturadas (BARTHES, 2004, pp. 447-448 ou 1987, p. 9). Poderamos usar um exemplo (corpus) do livro Incidentes (1985), mas como o prprio fragmento usado pelo editor no veio deste livro, optamos pelo do original: (Releitura: esse trecho agradava-me, sem dvida, de tal modo fazia reviver as sensaes daquela noite; mas, coisa curiosa, ao rel-lo, aquilo que melhor revivia era o que no estava escrito, os interstcios da notao; por exemplo, o cinzento da rua de Rivoli enquanto esperava pelo autocarro; intil de resto tentar descrev-lo agora, seno vou perd-lo de novo em proveito de outra sensao no dita, e assim sucessivamente, como se a ressurreio se fizesse sempre ao lado da coisa dita: lugar do Fantasma, da Sombra.) (BARTHES, 2004, p. 457)
3) Utpico: constituir o autor em objeto de desejo: de um escritor que me interessa, posso gostar de conhecer a intimidade, a traduo quotidiana do seu tempo, dos seus gostos, dos seus humores, dos seus escrpulos; e agora nos valeremos do corpus de um livro, que o editor no recomendou, mas recomendamos ns, INDITOS Vol. 2 Crtica (2004): A obra de Gide constitui sua profundidade; admitamos que seu Dirio sua superfcie; ele se desenha e justape seus extremos; leituras, reflexes, narrativas mostram quo distantes so esses extremos, quo vasta a superfcie de Gide. (BARTHES, 2004, p. 4)
4) Amoroso: constituir, enquanto idlatra da Frase, uma oficina... no de belas frases, mas de frases certas; talvez o melhor exemplo para entender essas palavras seja do nosso livro estudado, agora, mais especificamente o fragmento do dia 28 de Agosto de 1979. ...; chamava-se Franois; mas o hotel estava cheio; dei -lhe dinheiro, jurou-me que dali por uma hora estava no encontro que marcmos, e naturalmente no estava. Perguntei -me se realmente teria fito mal (toda a gente se espantaria: dar dinheiro a um gigolo, antes!) e disse para comigo que, visto que no fundo tambm no tinha assim tanta vontade de dormir com ele (nem com mais ningum), o resultado era o mesmo: deitando-me
2 Este paradigma oclusivo existe tanto no portugus quanto no francs. 197
ou no, s oito da noite estaria no mesmo ponto da minha vida; e como o simples contacto dos olhos, da palavra, me erotiza, foi esse o gozo que eu paguei. (BARTHES, 1987, p. 71, texto em portugus de Portugal, grifo nosso)
Incidentes (1985) um livro de pratica como Barthes mesmo disse Sob o libi da dissertao destruda, chega-se prtica regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o dirio. (BARTHES, 1977, p. 103) um fragmento que o editor poderia ter usado, mas no usou, preferiu o fragmento que compara o dirio ao Hai-kai, e, como temos vrios textos curtos no captulo Em Marrocos, outrora..., fica a pergunta, so Hai-kais? Antes de respondermos preciso lembra que para haver uma comparao basta, no mnimo, dois elementos e uma semelhana; onde ela (semelhana) no precisa ser total, apenas relevante o suficiente para a tal comparao. Os Hai-kais (ou Hokkus) eram, em sua origem, a primeira parte (trs linhas: 5/ 7/ 5 slabas) de um poema maior: o Tanka (5/ 7/ 5/ 7/ 7 slabas) sendo este ltimo feito por duas pessoas: a primeira faria os trs primeiros (Hokku) e a outra os dois dsticos de sete (Wakiku), como a primeira parte era quem ditava o andamento do resto do poema, aos poucos ganhou autonomia. Com a autonomia popularizou-se e se dividiu em dois estilos: um voltado para a profundidade das coisas (o Zen) e o outro para a diverso se valendo at mesmo de termos vulgares. E explicado isto vamos procurar, neste livro Incidentes (1987), nos textos curtos de Barthes, semelhanas com algumas caractersticas do Hai-kai: Alguma profundidade religiosa: Abder quer uma t oalha limpa que, por medo religioso da sujidade, preciso pousar ali, de parte, para mais tarde se purificar do amor. (p. 22); Um momento presente que vai ao encontro da esttica fotogrfica: A criana que foi descoberta no corredor dormia dentro de um carto, e a cabea dela emergia como se tivesse sido cortada. (p. 23); Uma contemplao digna do Zen: <<Souk>> de Marrakech: rosas campestres no meio dos montes de menta (p. 44); Uma anedota, que muito engraada justamente por ser verdica: <<Senhor, lembra-te, nunca deves dar boleia a um Marroquino que no 198
conheas>>, diz-me este Marroquino a quem dou boleia e que no conheo. (p. 45) O KAKEKOTOBA no um trocadilho, antes uma brincadeira com as palavras, como se uma palavra deixa-se em outra seu perfume, sua saudade (LEMINSKI, 1983, p. 39); em Barthes temos: Azemmour: comprei uma terrina de lata; o vendedor, jovem e desdentado, prope -me um encontro na sua <<garonniere>>, talvez Barthes tenha achado curioso o nome da cidade do Marrocos, pois ela tem em seu nome a palavra amor em francs: amour com a palavra zen em seu interior, (que foi escrita com uma bilabial por anteceder outra bilabial); logo a seguir no lugar que tem dois m ele encontra um rapaz que lhe faz uma proposta em um lugar que tem dois n: goronnire (apartamento destinado a encontros amorosos).
E como podemos perceber fcil entender porque Barthes diz fragmento (como o hai-kai) torim e o fragmento (o hai-kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) finalmente um gnero retrico e do fragmento se desliza para o dirio (BARTHES, 1977, pp.102-103). O dirio que Barthes admira e tenta fazer o dirio que intercala fragmentos do objeto com o prprio texto fragmentrio, utilizando-os no para convencer algum, e talvez ilustrar no seja uma boa palavra, mas vamos us-la. Atravs de um afastamento que a fragmentao permite, este sujeito fragmentado (Barthes ou qualquer outro que o use) produz fragmentos de si, os melhores? Talvez no, talvez algo que vai do tosco ao sublime, sua estrada, seu andar. Quem faz o caminho de Santiago de Compostela sabe, parafraseando Fernando Pessoa, que parafraseou Pompeu (general romano, 106-48 AC: "Navigare necesse; vivere non est necesse") Navegar preciso, viver no preciso 3 , que no caso de quem faz o caminho seria: caminhar preciso, chegar l (Catedral de Santiago de Compostela) no preciso. Faz-se o caminho pelo caminho, pelas descobertas que sero feitas dentro do sujeito pelo prprio sujeito e no pela simples vi sita catedral. No caso de Barthes poderamos usar a outra parte do poema (Navegar preciso): Viver no necessrio; o que necessrio criar. E foi o que ele fez, nos dando seus fragmentos nos permite vislumbrar um Barthes que ele mesmo no desenharia:
3 PESSOA, 1974, p 15. 199
seu texto inacabado, eternamente inacabado, caso contrrio o romance termina quando finalmente a escrita se torna possvel (BARTHES, 2004, p.59).
S me restaro os <<gigolos>>. (Mas que farei ento durante as minhas sadas? Noto sempre os jovens, desejando imediatamente, neles, ficar apaixonado por eles. Qual ser para, mim o espetculo do mundo?). Toquei um pouco de piano para O., a seu pedido, sabendo j que eu tinha desistido dele; ele tinha olhos muito bonitos, e rosto suave, abrandado pelos longos cabelos: um ser delicado, mas inacessvel e enigmtico, ao mesmo tempo meigo e distante. Depois mandei -o embora, dizendo que eu tinha de trabalhar, sabendo que estava acabado, e que alm dele alguma coisa tinha acabado: o amor de um rapaz. (BARTHES, 1987, p. 98)
Mas este aqui no foi seu ltimo escrito, em Incidentes (1987) sim, mas seu verdadeiro e ltimo escrito foi encontrado em sua mquina de escrever, aps sua morte; no papel que l jazia Malogramos sempre ao falar do que amamos... (BARTHES, 2005, p. XVIII), era uma pgina de um trabalho comeado sobre Stendhal. O que mais podemos dizer se no: mais um fragmento para ser analisado, eternamente analisado; ele prprio comeou e por certo no o terminaria, ao menos no como gostariam os crticos. E aqui terminamos este captulo, tambm acabou o cigarro, j tomamos nosso ch de camomila e a ansiedade simplesmente no passa, vai ser mais uma noite da coruja; o sol j vai longe e fica aqui mais uma tentativa de homenagem a Barthes, um texto como ele gostaria de ler: o texto um tecido de citaes (BARTHES, 2004, p. 62), um texto que termina falando de cigarro, ch e outras tentativas no escritas de combater a ansiedade. Um texto cheio de fragmentos barthesianos e com um final barthesiano: com o fim do mao (incidente) 4 findou-se o captulo.
4 Incidente - acontecimento imprevisvel que modifica o desenrolar normal de uma ao (HOUAISS, 2009, p. 1063). H outras definies/denotaes no dito dicionrio, mas por Barthes, s esta j basta. 200
6. CONCLUSO
6.1- Quando a inquietante Filosofia...
A filosofia deve ser sempre uma atividade multitemporal 1 , permeando as camadas do tempo em um vaivm sem limites. E deve sempre comear por trs perguntas temporais: 1) O que isso?, Barthes f ez pergunta semelhante em Roland Barthes por Roland Barthes (1977, p. 161) e que foi repetida pelo seu amigo e editor em Incidentes (1987, p. 7), representando o presente; 2) Qual a causa disso?, referindo-se a um Hai-kai em O imprio dos signos (2007) indagou Que dizer disto (Op. cit., 2007, p. 110), representando o passado; 3) Qual a consequncia disso?, a respeito de Proust escreveu ao fazer do narrador, no aquele que viu ou sentiu, nem sequer aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance...) (BARTHES, 2004, p. 59), representando o futuro. Muitos tm medo de fazer tais perguntas, talvez porque tenham medo de no encontrar as respostas, ou, medo do que vo encontrar. Barthes teve a coragem de fazer as perguntas e teve, a sua maneira, a coragem de respond-las. Barthes como crtico literrio, no h dvidas, mas e como filsofo? Para responder a essa questo vamos nos valer do cotejamento do texto Definies da Filosofia de Emmanuel Carneiro Leo 2 com o captulo Quando a paixo filosofia... 3 do professor doutor Antnio Jardim. E gostaramos de comear esse cotejamento frisando bem a diferena existente entre paixo da filosofia e filosofia da paixo, proposta por este
1 Colocada entre aspas, pois o dicionrio Houaiss (2009) no a reconhece. 2 Emmanuel Carneiro Leo: Tempo brasileiro, Edies 128-131, 1997, pg. 145. 3 Manuel Antnio de Castro: A construo potica do real, 7 LETRAS, 2004, pg. 91 112. 201
ltimo professor, pois, numa rpida e despreocupada leitura de tais palavras, postas assim, podem at parecer um corolrio 4 , como o que achamos em Por que ler os clssicos 4. Toda releitura de um clssico uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clssico na realidade uma releitura. (CALVINO, 1993, p. 11), mas no o so. O dito professor comea seu texto com o comentrio Se, por um lado, no pretendemos fazer uma filosofia da paixo, por outro, no pretendemos apenas expor nossa paixo pela filosofia (CASTRO: 2004, p. 91). Ns, apesar de concordarmos com tal afirmao, achamos por bem explicar/narrar sim, um pouco do que entendemos sobre paixo pela filosofia e tentar explicar/exemplificar por que a filosofia da paixo no interessa a muitos. E inspirados pelas palavras de Emmanuel Carneiro Leo: Pensador aquele que aprende com a experincia de viver. (LEO: 1997, p. 145), comearemos de forma emprica, revelando uma experincia do passado: num grupo de estudos bblicos, em 2004, um participante (pesquisador) pedi u a todos que abrissem a Bblia em Joo 2, 15 E tendo feito um azorrague de cordis, lanou todos fora do templo, tambm os bois e ovelhas; e espalhou o dinheiro dos cambiadores, e derribou as mesas. Dizia que tal passagem era sempre retratada com Jesus fora de controle a expulsar os comerciantes do templo em todos os filmes que tinha visto sobre este, e sempre passados e reprisados na Semana Santa (Pscoa). Mas, como neto de um talabarteiro e algum que fora criado em fazenda, sabia muito bem como se f azia um azorrague e para que servia; tratava-se de um chicote cujo fabrico artesanal levava dias e mesmo que os apstolos ajudassem Jesus isso levaria horas e no
4 3 Derivao: por extenso de sentido. Verdade que decorre de outra, que sua consequncia necessria ou continuao natural. 202
instantes, e nunca era usado para machucar o animal, mas apenas para assustar estalando-o no ar, pois de outro modo ele poderia ficar furioso e atacar o atacante, e homens livres numa feira no fariam o mesmo? Sua tese era que tal chicote no estava sendo produzido para bater nas pessoas, at porque isso simplesmente no condizia com a filosofia pacifista de Jesus, mas se uma pessoa quisesse que um animal, que no o conhecesse, lhe obedecesse, realmente teria que usar um azorrague. Frisava a todo o momento que Jesus no tinha pegado um, mas feito um. O que ele queria provar, e conseguiu naquele grupo, foi que Jesus no fez o que fez sob forte comoo, o tempo que leva para fazer um azorrague era a prova, e nas escrit uras no havia relato de pessoas feridas ou de alguma briga por revide s agresses de Jesus. Percebi que naquele dia todos saram da sala como se tivessem encontrado um tesouro. A vontade de fazer novos descobrimentos, saber mais, descobrir mais, era latente em todos. Tamanha ansiedade, tamanha fome por mais informao s podia ser descrita por uma palavra: paixo, no pela pessoa da pesquisa, mas pela pesquisa em si. Ele teve um insight, algo pequeno como uma ponta de cigarro acesa, mas que incendiou a alma de todos. Tamanha experincia s pode ser explicada pela expresso paixo da filosofia. Agora, se pensarmos em filosofia da paixo a postura e os exemplos mudam radicalmente, pois se por um lado h muita coisa escrita, por outro, olhando de perto, no h nada. Tentativas existem, os poetas e autores musicais so seus maiores representantes, mas quando a paixo arde forte, mesmo eles ou principalmente com eles, a palavra certa no aparece e o autor obrigado a usar o que tem, o que j foi dito, o que desde sempre foi dito. Talvez por isso Carneiro Leo tenha dito ..., no se diz apenas a mesma palavra, se diz 203
sobretudo a mesma coisa (LEO: 1997, p. 145). E baseando-nos nestas, escolhemos como exemplo dois fragmentos de letras de msica: Love de John Lennon, Amarantine de Enya e um Hai-kai de Matsuo Bash em Matsushima:
Lennon - Love (Amor)
O amor real, realidade amor O amor sentir, sentindo amor Amar querer ser amado
Amar toque, tocar amor Amar alcanar, alcanando amor Amar pedir para ser amado
Amor voc Voc e eu Amor saber
Enya - Amarantine Voc percebe quando distribui o seu amor [...] Voc sabe que o amor est em tudo o que voc diz; [...] Voc o sente nas batidas do corao durante o dia. Voc sabe que o amor assim.
Matsuo Basho - Matsushima (ilha, shima, dos pinheiros, matsu) tida como um dos lugares mais bonitos do Japo.
Matsushima, ah, Ah, Matsushima, ah, Ah, Matsushima. (Traduo: Leminski) (Sendo os dois primeiros disponveis em Terra 5 e o Hai-Kai em VEROSA: 1996, p. 196).
Ao expor o que entendemos de um e de outro - o especulado corolrio se desfaz. Agora, podemos ter um mnimo de certeza que o leitor vai acompanhar nossos passos, entender porque no se trata de um mero predicado da outra (CASTRO: 2004, p. 94). bem verdade que a Paixo um possvel desencadeador da reflexo e, sendo assim, tem a ver com filosofia, uma vez que filosofia reflexo. (Idem: 2004), mas reflexo para (em direo a...) qu? Uma procura por palavras que nunca foram ditas? Como se diz: eu te amo sem dizer exatamente essas palavras? Os motivos de um (paixo da filosofia) podem, e so, diferentes do de outro (filosofia da paixo), mas ambos vo ter uma semelhana: todos vo usar o gabarito mental como lugar comum para a montagem e desmontagem de tudo o que conhecido para o no conhecido ou
5 Disponvel em http://letras.terra.com.br/john-lennon/22574/traducao.html e http://letras.terra.com.br/enya/314890/. 204
no ainda descoberto, autntica estrada para a evoluo, ou uma evoluo, j que a verdade pea que se movimenta ao bel prazer de quem a vende. No texto, temos uma proposta de partio/fragmentao, sobre como compreender a filosofia. Comea com Plato: A filosofia como ideia, filosofia esta que, para nosso entendimento, no passa de uma proposta de gabarito mental bem bsico. A filosofia das ideias, portanto, uma filosofia que paira soberana sobre qualquer contingncia, afastada o suficiente de qualquer contingncia, para no se deixar extinguir por qualquer percalo eventual que pudesse levar extino desta. (CASTRO: 2004, p. 97).
Em seguida, temos A filosofia como teoria, onde num primeiro sentido: considerar o aspecto sob o qual uma coisa presente; e no segundo: viso e guardi da verdade, do processo de des-velamento. E est dita a palavra rei de nosso entendimento: des-velamento. A paixo de ser mais que os outros, sair da mdia, deixar de ser medocre (de qualidade mdia) pelo saber mais; um estudo que torna tudo claro, evidente e distinto (Idem, p. 100), pois se diante de provas factveis: um azorrague no pode ser feito em instantes, como continuar a pensar o mesmo que os outros? A filosofia como mtodo, em Barthes o Fragmento, mtodo de montagem e desmontagem do que se tem e/ou conhece, para numa nova ordem por colocao e/ou ausncia, obter um resultado jamais pronto, pois sempre sujeito a novas mudanas, sempre flexvel, sempre um caminho, que importante por ele mesmo; pois o fragmento no ele em si importante, mas pela possibilidade de tornar tubo mvel/fragmentado, permite a possibilidade de peas menores, ter o jogo: peas, e por t-las a possibilidade de jogar. Assim como: 205
A filosofia no o caminho, ela est no entre caminho. A filosofia no e sim est a caminho e por estar a caminho que ela pode no s descrever o mundo mas pode cri-lo. Estar a caminho no ser o caminho. A filosofia est no caminho do ser e este caminho o lugar de sua morada. (CASTRO: 2004, p. 101)
Os mtodos no so importantes, em si, e mesmo o resultado tambm no o , pois o jogo s divertido enquanto se joga; ganhar ou perder so sensaes efmeras, mas jogar sempre um prazer. Em Barthes A palavra jogo e seus derivados percorrem a Aula, do comeo ao fim (BARTHES: 2002, p. 82) e por que no dizer em toda sua vasta obra? Com Barthes um jogo no comea quando ele o anuncia, como fazem outros, mas pelo escrito, e talvez mais ainda pelo no escrito, faz nascer nos seus estudiosos a paixo pela filosofia. Por exemplo: quantos, dos que leram S/Z de Balzac, perceberam o mesmo que Barthes, o escrito dele: SIM. Tabu sobre a palavra eunuco (BARTHES: 1992, p. 213 e 215) provocado por um no-escrito, pois, palavra nunca pronunciada na obra por Balzac. Mas ao nosso ver, Barthes passou muito rpido (no-escrito) por uma questo: enquanto, na juventude, o personagem Zambinella ditava beleza nos dois mundos e ao ponto de enganar um artista (Sarrasine), na velhice em nenhum dos dois mundos/gneros lhe restava refgio, como homem: velho feio; como mulher: bijuterias brincos de ouro que lha pendiam das orelhas, pelos anis cujas pedrarias brilhavam em seus dedos ossificados, e por uma corrente de relgio que cintil ava como engastes de um colar de diamantes num pescoo de mulher (Idem, p. 19) e nada mais. Na obra, o escrito teve como modelo uma esttua de mulher tema maciamente trabalhado Afirmar que o Adnis no homem , ao mesmo tempo, remeter a uma verdade ( um eunuco) e a um engodo ( uma mulher) (BARTHES, 1992, 206
p. 102). Mas tal empenho s foi possvel graas a esse fato: o personagem ter sido belo(a) nos dois mundos, nos dois gneros, graas a juventude. Barthes tratou a perda da juventude quase como um detalhe, um binmio de menor importncia: sintaticamente o vazio no deve contradizer o enrugado da velhice; paradigmaticamente, magro e vazio opem-se plenitude dura, vegetal, tensa, da jovem (Idem, p. 88). E por que dissemos isso tudo? Porque as questes no terminam aqui. Ao estudarmos a proposta de Barthes (escrito) em comparar o quadro da obra Adnis deitado sobre uma pele de leo (BARTHES: 1992, p. 12) a Endimio de Girodet 6 descobrimos que o personagem masculino da obra exibia uma genitlia masculina completa, ora, mas se estamos falando de eunuco, como isso possvel? Teria Barthes se impressionado tanto com os toques serenos do pastor (feminilidade?) e a pele de jaguar (por pele de leo), detalhes cuidadosamente pintados por Anne-Louis Girodet Trioson (Montargis 1767 - Paris, 1824) que se esquecera de um detalhe, detalhe este que as editoras 7 que publicam (com verbo no presente) seu livro no esqueceram: quando se tratar (re-tratar) de um eunuco, nunca mostrar genitlias.
6 Girodet, Endimio, 1791, leo sobre tela, 198 x 261 cm, Louvre, Paris. Disponvel em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/Lw72iuwdaJ1sp4GiuufSKQ. Acessado em dezembro de 2010. 7 BARTHES, Roland: S/Z , Editora: Edies 70, Coleo: Signos, Ano: 1999 / BARTHES, Roland: S/Z Editor: Seuil, ano de edio: 1970 / BARTHES, Roland: S/Z, Nova Fronteira, 1992.
207
Se o objetivo da comparao era apenas enaltecer a beleza ou apenas ratific-la, por que no se referir a Narciso, sempre retratado com as genitlias cobertas, mesmo em Caravaggio, pintor extravagante ao pintar homens. Ser que o entusiasmo, em ressaltar como tal personagem era belo nos dois mundos, o fez cair numa esparrela ou estamos diante de um caso onde uma simples licena literria ou quadro no fot o resolve o caso? Possvel resposta em Carneiro Leo: Assim se diz que algum filsofo quando encara com serenidade tudo que acontece, descobrindo os limites positivos e negativos de todas as coisas e causas, de todos os efeitos e fados (LEO: 1997, p. 147). E ao fazermos o dito de Carneiro Leo encara com serenidade... percebemos que Barthes nunca se equivocou, as editoras que se preocuparam demais, pois, reparem na dita genitlia:
(Girodet, O sono de Endimio, 1791, leo sobre tela, Louvre) 8
Coberta por uma sombra triangular, mais se assemelha a pelos pbicos em um Monte de Vnus a que uma genitlia masculina reprodutora de 50 filhas com a deusa grega da lua: Selene, reza o mito. Ento Barthes no errou, errou (?): s tm resposta s perguntas malfeitas, as perguntas bem-feitas nunca tm resposta. (LEO: 1997, p. 150).
8 Disponvel em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/jJ-i7KlrUj2Nm6zW1FAn2w. Acessado em 21/12/20010. 208
Tal insight, como o participante (pesquisador) fez, s foi possvel graas ao processo de des-velamento. Ainda que grosseiro e desnecessrio aos olhos de muitos, para ns, uma chance de ser surpreender como um dia fomos surpreendidos. A filosofia tambm descrita como amar o saber, algo que ficou bem divulgado por Jostein Gaarder em O mundo de Sofia (1995): A palavra filsofo empregada hoje em dia em dois sentidos levemente diferentes. Por filsofo entendemos, sobretudo, aquele que tenta encontrar suas prprias respostas para questes filosficas. Mas um filsofo tambm pode ser um especialista em histria da filosofia, sem necessariamente querer desenvolver sua prpria filosofia. (Op. cit, 1995, p. 346)
Acreditamos que Barthes se enquadra um pouco em cada um destes dois sentidos descritos por Gaarder. Na primeira descrio ele tenta sim encontrar respostas, no exatamente para questes filosficas no geral, mas no sentido especfico de Filosofia da Literatura 9 ; ainda dentro da obra de Gaarder podemos encontrar (escrito em Caps Lock):
E essa capacidade Barthes tinha Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cair das mos;... (BARTHES, 2002, p. 19), sua inquietao: por que era to raro isso acontecer. Na segunda seria muito precipitado falar que Barthes buscava uma filosofia prpria, mas tambm no ficava s no estudo e admirao. O filsofo
9 O que entendemos por Filosofia da Literatura nada mais que o questionar sobre (...), investigao que no difere da dos prprios crticos literrios. A nica diferena, se existe, que tal investigao mais privilegiada quando feita por pessoas, no raro, consideradas crticos, e, os crticos literrios podem ser considerados filsofos, na verdade, qualquer pessoa pode ser, basta para tal ter em mos um texto e uma inquietao. (GAARDER: 1995, Pg. 27) 209
pode e deve dar continuidade, no uma manipulao, antes uma colaborao; como disse Jos Carlos Michelazzo (1999, p. 22), sobre Martin Heidegger: O seu propsito no ir atrs daquilo que os primeiros pensadores pensaram, mas, ao contrrio, daquilo que eles no pensaram, mais at, daquilo que at hoje, ao longo de toda a histria da filosofia, ainda no foi pensado. Mas isto no , ou no deveria ser, apenas a inteno de um filsofo (Heidegger), mas a misso de todos os filsofos. No s ler o que deles, mas criar a partir deles. Mas em verdade, a palavra Sofia significa um pouco mais do que amar o saber: originalmente, na lngua grega, um pronome possessivo que d conta do que pertence a algum de maneira irreversvel, tal como o nosso joelho nos pertence. No diz ento de qualquer espcie de posse transitria. No se deve talvez nem falar, neste caso, de posse mas de pertena, daquilo que nos foi dado pela natureza e que ela mesma, s por si, no nos pode retirar. , de modo radical - um prprio. Um prprio tal como uma pronncia no separada do que pronuncia, seno na linguagem tornada mero meio, mero instrumento de comunicao. Assim, o que prprio e no pode deixar de s-lo. A palavra por sua vez, originariamente, dizia no de qualquer espcie de saber, mas de um saber especfico o saber do bardo, do aedo, do poet a, do cantor. Assim, o saber dito por , no era para ser compreendido como um saber genrico e que a tudo servisse. Era o sabor proporcionado por urna determinada atividade que se dele fosse extirpada o prprio sentido desse sabor se desvaneceria. (CASTRO: 2004, p. 103)
Barthes no estava explicando a origem da palavra filosofia quando escreveu (saber e sabor tm, em latim, a mesma etimologia) (Idem, p. 21) na obra Aula, mas encontramos praticamente as mesmas palavras, citadas de Curnonski dizia que, na culinria, preciso que as coisas tenham o gosto do que so (BARTHES: 2002, p. 21), ou seja, analogicamente, a escrita pode ser 210
considerada como o lugar comum de todos aqueles que sabem escrever, e, Filosofia do grego , literalmente, dentro deste contexto significa amor sabedoria; escritura a escrita daqueles que procuram sair do lugar comum, mesmo sabendo que no se diz apenas a mesma palavra, se diz sobretudo a mesma coisa (LEO: 1997, p. 145) este indivduo almeja ser diferente, nico, produz mais pela paixo que algum se empenha pela causa da filosofia (Idem, p. 145), que neste caso significa O saber que se diz tem a ver com uma determinada experincia e quando dela desligado no mai s saber, no mais sabor, no mais nada. (CASTRO: 2004, p. 103). A singularidade que Barthes realou a mesma que realada quanto ao saber/sabor em filosofia. E o captulo se encerra com O resgate potico: a paixo da filosofia. Trata-se de um resgate, da busca de um lugar comum, onde paixo da filosofia e filosofia da paixo completa-se harmoniosamente, pelas palavras - no apenas ditas -, mas pelas ditas que passaram por um crivo, uma escolha, uma sensibilidade; o que poderia ser um dito para o momento, se converte em um dito para todo o sempre. H muito tempo atrs, homens disseram que um pas pequeno e com poucos recursos teria problemas, a menos que algum fizesse algo para reverter a situao. E algum o fez, colocou homens em barcos e os mandou para o mar. Agora vejamos como fica esta mesma histria contada de outro jeito 10 : As armas e os bares assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda alm da Taprobana, Em perigos e guerras esforados, Mais do que prometia a fora humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;
10 CAMES, Lus de. Os lusadas. Org. de Antnio Jos Saraiva, Porto: Figueirinhas, 1978, p. 59. 211
Com Barthes e sua definio de CRITURE: ESCRITURA (BARTHES: 2002, p. 74) percebemos que a primeira narrao no passa de uma escrita ou palavras usadas como instrumento, e a segunda postas em evidncia (encenadas, teatralizadas) como significantes (IDEM, p. 75). O que prprio do canto do poeta o que digno de ser cantado, o que digno de permanecer e realizar memria, o que digno de ser memorvel e o que institui tal dignidade o que prprio do cantar potico. Isso era a . (CASTRO: 2004, p. 106)
No captulo que estudamos, lemos: O canto no exclui, integra no instante todas as possibilidades do real, e o real to mais real quanto mais ele cria e experincia do instante (CASTRO: 2004, p. 108); algo que encontra reflexo, quem sabe inspirado/parafraseado, em AUTOPSICOGRAFIA de Fernando Pessoa 11 : O poeta um fingidor. Finge to completamente Que chega a fingir que dor A dor que deveras sente. (SENA: 1961, p. 24)
Enquanto Manuel de barros afirma: Minhocas arejam a terra; poetas a linguagem (Apud, CASTRO:2004, p. 109), Barthes fala em Texto/Tecido: Texto quer dizer Tecido; mas enquanto at aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um vu todo acabado, por trs do qual se mantm, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), ns acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha atravs de um entrelaamento perptuo; perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secrees construtivas de sua teia. Se gostssemos dos neologismos, poderamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos o tecido e a teia da aranha). (BARTHES: 2002, p. 74 e 75)
11 SENA, Jorge de, O Poeta um fingidor, Lisboa, tica, 1961, p. 24. 212
Se pelo processo de escolha: um montar pelo fragmento; uso do gabarito mental: para produzir um mais que simplesmente dito, instrumental versus teatral, para ser um mais que os outros, ou, produzir para durar mais que os outros, percebemos que o sapo do Hai-kai de Bash no diferente do sapo nu de Manoel de Barros. Pois a linguagem linguagem para antes do que se pretende que ela seja (CASTRO: 2004, p. 110). E sendo assim: A filosofia quase nunca uma filosofia da paixo. A paixo quase nunca uma paixo da filosofia. Mas certo que ambas so. (Idem p. 111). E sem almejarem respostas, pois o dito que dizem no resposta, muito menos pergunta, mas talvez um desafio. As possibilidades so to infinitas quant o criatividade permitir, e sendo assim, uma estrada sem fim: E como convm como caminham juntas passo a passo, fazendo de cada passo o prprio do caminho e da caminhada (Idem, p. 111). Ou se preferirem, como diz a letra de Cantares de Joan Manuel Serrat: Cuando el jilguero no puede cantar. Cuando el poeta es un peregrino, cuando de nada nos sirve rezar. "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar..." 12
E o que nos diz tal letra? Que quando as palavras seo/secam s nos resta lembra que O caminho que se constitui como tempo e lugar construdo pelo exerccio da prpria caminhada ou pela caminhada do que sempre e inexoravelmente prprio. E dentro do que prprio em Roland Barthes, acreditamos que o termo Filosofia da Literatura muito mais pertinente para Barthes a que Cincia da Literatura, pois este sempre considerou o discurso da cincia no
12 Disponvel em: http://www.letras.com.br/joan-manuel-serrat/cantares, acessado em dezembro de 2010. E vdeo em: http://www.youtube.com/watch?v=Lj-W6D2LSlo. 213
necessariamente a cincia (BARTHES, 2004, p. XII), ou seja: descrio e prtica ocupam espaos diferentes. Alm disso, sempre acreditou que a Literatura era um territrio indomvel, incerto e sendo assim o termo Filosofia se torna mais pertinente, pois o lugar do que incerto do incio ao fim, diferente da Cincia que um lugar incerto, mas apenas no incio. Como prova: Leyla Perrone-Moiss no prefcio de O rumor da lngua: Cada vez que Barthes tomou um texto literrio com o objetivo de dom-lo por uma metalinguagem, foi o indomvel que o seduziu e que o provocou, em vez de uma simples grade de leitura do texto-objeto, a produo de um novo texto to complexo e fascinante quanto aquele que lhe servia de impossibilidade e um logro. Para ser cincia nos moldes clssicos, a cincia da literatura deveria dispor de uma metalinguagem rigorosa, como a da matemtica ou da lgica formal; ora, estas so insuficientes para prestar contas de todas as sutilezas da multiplicidade de funo do signo literrio. (p. XIII XIV).
Dentro do que poderamos chamar de Filosofia da Imagem, Barthes desenvolveu trabalhos sobre fotografia, teatro, cinema e artes visuais no geral como As pranchas da Enciclopdia em Novos ensaios crticos (1972), Arcimboldo, em O bvio e obtuso (1982); dentro do que poderamos chamar da Filosofia da Escritura Curta colheu fragmentos de discursos amorosos em vrias obras para produzir Fragmentos de um discurso amoroso (1977), fez pequenas crticas sobre literatura em O prazer do Texto (1973) e comentou sobre o cotidiano (francs) em Mitologias (1957), trabalhou com lexias em S/Z (1970), estudou citaes em Novos ensaios crticos seguidos de O grau zero da escritura (1972 e 1953 respectivamente) e estudou fragmentariamente o Hai -kai colocando-o em vrias de suas obras; dentro do que poderamos chamar de Filosofia do Dirio estudou tal fenmeno em vrios autores sendo os mais 214
aprofundados Andr Gide e Alain Girard (Inditos, Vol. 2), como entende o Dirio o melhor trabalho est em O rumor da lngua (1984) e quanto a sua prtica poderamos recomendar: O imprio dos signos (1970) Roland Barthes por Roland Barthes (1975) e a obra pstuma Incidentes (1987). No difcil considerar a filosofia como uma cincia para a cincia, uma antecmara do pensar. No sabemos se podemos cham-la de metapensamento, pois devido a sua multitemporalidade fica difcil v-la apenas como algo que passa/ultrapassa o pensamento, ela antes transpassa e transpassa e transpassa indefinidamente, no est preocupada com o desfecho, que alguns chamam de verdade, ela no tem pressa em chegar ao fim do problema, pois sabe que a soluo est no caminho e no no fim deste: no se chega ao fim de nada seno pelo caminho. Barthes percorreu o caminho: da Universidade de Alexandria (Egito) passando pela cole Pratique des Hautes tudes chegou ao ponto mais alto de sua carreira ao ser nomeado para o Collge de France, em 1976, para a Ctedra de Semiologia Literria. Em virtude do tempo de sua escrita, foram trinta anos de produo literria: em 1950, comeou sua carreira no estrangeiro como professor e foi a partir dessa data que comeou a escrever os ensaios que seriam usados em O grau zero da escrita (1953) e no parou de escrever at A cmara clara (1980, ano de sua morte 13 ), e sua polivalncia fica a pergunta, ou as perguntas, feitas por Leyla Perrone-Moiss (2010) em Roland Barthes - O prazer da palavra: Quem foi, afinal, Roland Barthes? Um terico da literatura? Um crtico literrio, teatral, cultural? Um semilogo, analista das imagens e da moda? Um terico da fotografia? Um filsofo? Um conselheiro sentimental? Em que corrente intelectual situ-lo? Foi um marxista? Um estruturalista? Um subjetivista? A que gnero pertencem seus escritos? Jornalstico, ensastico,
13 Roland Barthes nasceu em Cherbourg, 12 de Novembro de 1915 e faleceu em Paris, 26 de Maro de 1980, ao sair de uma aula (ministrava um curso sobre Marcel Proust e a fotografia) em 25/2/1980, foi atropelado por um carro de entregas de uma lavanderia, nas Rue des coles, em frente ao Collge de France. Em 6 de maro, nove dias depois, morreu em consequncia dos ferimentos e leses. 215
romanesco, didtico? A que perodo: clssico, moderno, ps-moderno? [...] A teoria barthesiana , portanto, uma teoria mutante, que evolui e se transforma ao longo dos anos. Por isso imprprio chamar Barthes de crtico marxista sociolgico ou de semilogo, porque essas denominaes corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira. Embora sempre em transformao, o terico Barthes conservou as lies das fases abandonadas.
Para ns esse comentrio de uma das mais respeitveis tradutoras e pesquisadoras de Roland Barthes confirma nossa suspeita de que nele existe o vaivm sem limites, que permeia as camadas do tempo: prova de sua multitemporalidade. Confiramos suas obras (publicao original / obra consultada): 1) Em O grau zero da escrita (1953 / 1974), primeiro livro publicado, temos uma obra que indaga at que ponto a Histria social ou dado momento histrico condicionam ou interferem na construo de uma obra literria e onde se situa o espao para a liberdade de criao "uma histria da linguagem literria que no nem a histria da lngua, nem a dos estilos, mas apenas a histria dos Signos da Literatura" (BARTHES, 1974, p. 117) e tal obra seguida de Novos ensaios crticos (1972 / 1974) onde ele nos d toda a sua medida de crtico ao reexaminar vrios ensaios repletos de sugestes instigantes sobre as obras de Jlio Verne, Flauber, Proust e Chateaubriand; sendo este uma reflexo livr e sobre a condio histrica da linguagem literria. 2) Assim como o seu segundo livro Michelet (1954 / 1991) um estudo sobre o ensasta e historiador francs Jules Michelet (1798-1874) autor de alguns dos maiores clssicos da historiografia; 3) Mitologias (1957 / 1972) rene pouco mais de cinquenta breves artigos inicialmente publicados na revista mensal Lettres Nouvelles a partir de 1952, um livro que alerta sobre o que se consome de forma despretensiosa: os mitos; onde passa a analis-los como sistema semiolgico. 216
4) Em Sobre Racine (1963 / 2008) sugere que este estaria numa espcie de equilbrio tenso entre sentido posto e sentido retirado, vazio e preenchimento; falando a respeito da ttica do signo raciniana, Barthes esclarece muito sobre sua prpria escrita: tambm nela se encontra uma economia que nunca perde de vista a relao tensa entre sentido posto/sentido retirado. 5) Com Elemento de Semiologia (1965 / 1993) temos o resultado de cursos ministrados por ele, de maneira sistemtica e bem dosada com que apresenta a matria, de natureza bem didtica. Dividido em quatro grandes partes (I. LNGUA E FALA, II. SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE, III. SINTAGMA E SISTEMA e IV. DENOTAO E CONOTAO), correspondentes a rubricas oriundas da Lingustica Estrutural, retoma os conceitos de signo tal como foram postulados pelos primeiros autores que escreveram sobre o tema: Peirce e Saussure. Com este livro-curso Barthes d ao leitor uma instigante viso geral do campo de estudo da Semiologia e dos instrumentos tericos, por via dos quais se podem realizar a pesquisa semiolgica. 6) Crtica e Verdade (1966 / 1982) uma coletnea dos ensaios crticos, alguns como Escritores e Escreventes, Literatura e Metalinguagem, O que crtica, Literatura e Significao, etc., criou um certo desconforto na intelectualidade francesa acadmica e conservadora, pois segundo o prprio autor, a crtica no uma traduo: O crtico no tem de reconstruir a mensagem da obra, mas somente seu sistema, assim como o linguista no tem de decifrar o sentido de uma frase, mas de estabelecer a estrutura formal que 217
permite a esse sentido ser transmitido. (BARTHES, 1980, p. 162). Este livro j foi traduzido para numerosas lnguas, o que comprova sua importncia. 7) Em o Sistema da moda (1967 / 1979) preciso que se esclarea: no de moda que se trata tal obra, como de incio parece, mas de seu discurso. Barthes j dizia que o encanto da Moda era produzido muito mais pelas palavras do que pelas roupas em si. Ele, to certo disso, entrou numa jornada em busca do sistema da Moda, e, para construir seu campo semntico, seu vocabulrio bsico, pesquisou em inmeras revistas especializadas. Seu ponto de partida a constatao de que existem trs tipos de vesturio: o real, o imagtico e o escrito. Embora saiba que a fotografia de moda reveste-se de um interesse especial, ocupa-se apenas do vesturio-escrito O vesturio descrito um vesturio fragmentrio. Em relao fotografia, ele resultado duma srie de escolhas, de amputaes. (BARTHES, 1979, p. 14). Foi atravs desses pequenos enunciados que conseguiu provar que as palavrinhas mgicas das revistas e jornais que eram as verdadeiras responsveis pelo fascnio da Moda. 8) S/Z (1970 / 1992) no exatamente um livro de fragmentos como em Mitologias (1957), mais um livro fragmentado, ou melhor, uma novela fragmentada: "Sarrasine" de Honor de Balzac, cuja a fragmentao foi feita luz de uma anlise estruturalista sim, mas no s, por trs de cada anlise (foram XCIII subtemas ao todo) de comprometimento semiolgico vinha uma opinio de comprometimento social (foram 561 opinies sobre...), homem sabedor de ser pertencente a uma cultura julgadora (510) Ah! s uma mulher exclamou o artista em delrio , pois at um... No terminou a frase. No continuou , nem ele seria capaz de tanta baixeza. [...] SIM. Tabu sobre a palavra eunuco. (p. 231) e o que estava realmente sendo analisado era: o que 218
isto (cada fragmento) quer dizer e/ou quer esconder e como faz isso A significao tampouco pode ser confundida com o valor do signo embora, como reconhece Saussure, seja difcil saber como este se distingue daquele [...] o valor de um signo pode ser determinado por aquilo que est volta do signo, em seu entorno (NETTO, 2003, p.23). Seminrio que durou dois anos graas dedicao de estudantes, amigos e ouvintes que participaram deste seminrio que se foi escrevendo enquanto me ouviam (BARTHES, 1992, prefcio). considerado por alguns como o livro que separa, e/ou evolui, Barthes de Estruturalista para Ps-estruturalista, mas discordamos por completo: Barthes sendo multitemporal no pode e no possui, a nosso ver, um livro que seja considerado divisor de guas, pois se examinarmos de perto cada um com o propsito de classificar, separar dizendo Este aqui estruturalista, este aqui no estruturalista cairemos na mesma armadilha que existe na gramtica descritiva com relao ao gerndio: em Fumar prejudicial sade o verbo fumar pode ser sujeito, pois est na forma nominal, forma de nome (o fumo, o cigarro); em Homem amado e mulher amada temos o particpio fazendo o papel de adjetivo: concorda com gnero e nmero, mas e o gerndio? O que o gerndio? Em A gua fervendo para o caf temos o gerndio explicando porque a gua est fervendo e/ou restringindo de qual gua estamos falando, funes de adjetivo, mas ao mesmo tempo que obedece a uma regra gramatical ao mesmo tempo desobedece, pois no se fala A gua fervend(a) para o caf. Em Mitologias (1957) Barthes faz sim anlises semiolgicas, mas sobre mitos, mais especificamente o cotidiano francs. Ora, mas isso cultura! (como em Mitologias, onde a leitura do signo feita sempre sobre o fundo poltico) (NETTO, 2003, p. 49). E se existe uma nica palavra que pode 219
diferenciar o Estruturalismo do Ps-estruturalismo a palavra cultura; esta s ser vista e trabalhada no Ps-estruturalismo, ento o que tal preocupao faz em pleno olho do furaco (dcada de 50) estruturalista? Por isso acreditamos que at se pode achar uma tendncia em tal ou tal obra, mas uma totalidade (?), talvez s em Elementos de Semiologia (1965): aula sobre semiologia, estruturalismo puro. 9) O imprio dos signos (1970 / 2007) um dirio com alguma tendncia tradicional: relatar as impresses de uma viagem, no caso de uma viagem ao Japo, mas ao mesmo tempo um laboratrio para dirios mais criativos, irnicos, como Roland Barthes por Roland Barthes (1975), Incidentes (1987), e textos mais desafiantes como O prazer do texto (1973). A princpio (de incio) Barthes parece se encantar com a comida japonesa, mas em princpio (em tese) o que realmente lhe chamou a ateno foi a possvel colaborao da maneira de fazer/tratar a comida com o fazer/tratar o Texto, palavra que ser escrita com letra maiscula no prximo livro. 10) Sade, Fourier, Loyola (1971 / 2005) onde encontramos no s os trs autores que mais admirava: Donatien-Alphonso Sade (1740-1813), Charles Fourier (1772-1837) e Incio de Loyola (1491-1556), mas tambm o desejo de fazer um livro cujo nome seria conhecido no futuro como O prazer do texto (1973). Graas aos mestres conheceu: Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual [...]. O Texto um objeto de prazer. O gozo do Texto muitas vezes apenas estilstico: h felicidades de expresso, e elas no faltam nem em Sade nem em Fourieu. (BARTHES, 2005, p. XIV) e graas a eles aprendeu tambm: Por vezes, entretanto, o prazer do Texto se realiza de maneira mais profunda [...]: quando o texto literrio (o livro) transmigra para 220
dentro de nossa vida, quando outra escritura (a escritura do Ouro) chega a escrever fragmentos de nossa prpria cotidianidade, enfim, quando se produz uma coexistncia. (Idem, p. XIV e XV, grifo nosso). 11) O prazer do texto (1973 / 2002) a busca do entender o texto atravs de uma leitura dos desejos, funes e possibilidades que este oferece. Mais um livro difcil de classificar quanto a ser ou no estruturalista: ao mesmo tempo que faz uma anlise semiolgica, por exemplo O esteritipo: a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razes diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitao (BARTHES, 2002, p. 52), faz uma anlise cultural, pois traz o conceito sociolgico (cultural) para a discusso literria, por exemplo A ideologia: Pois a ideologia o qu? precisamente a ideia enquanto ela domina: a ideologia s pode ser dominante. Tanto justo falar de ideologia da classe dominante porque existe efetivamente uma classe dominada, quanto inconsequente falar de ideologia dominante, porque no h ideologia dominada: do lado dos dominados no h nada, nenhuma ideologia, seno preci samente e o ltimo grau da alienao a ideologia que eles so obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de emprstimo classe que os domina. (Idem, p. 41). Separa o texto em: prazer e fruio, privilegiando o primeiro, algo que aprendeu com os seus professores do livro anterior (Sade, Fourier e Loyola), em detrimento do segundo, marcado pelo signo da perda (falta de prazer pela falta de desafios), que coloca em crise a relao leitor linguagem; assunto que retomaria, mas s sendo publicado postumamente em O rumor da Lngua (1984): A morte do autor (2004, p. 57-64). 221
12) ROLAND BARTHES por Roland Barthes (1975 / 1977) um livro que tenta mostrar um homem por seus fragmentos de pensamento, fragmentos (captulos) que se desprende de um todo (autor), e do alto de cada um tem-se a viso do todo sem ele, e de si para si: a viso deste sem a interveno do todo, das outras partes. Sujeito que sabe no ser possvel se encontrar sem antes se perder. Anlises quase semiolgicas para analisar o qu? Sem termos preciso em um corpus, como sermos precisos anlise? Semiologia pura, onde? Reflexo sobre a cultura pura, onde se pessoal? O que ele achou ser impossvel, na teoria, em O grau zero (1953), pois a Literatura tem o poder de se apoderar do estilo: Cada escritor que nasce abre em si o processo da literatura; mas se a condena, concede-lhe sempre um prazo, que a Literatura vai usar para reconquist-lo (BARTHES, 1974, p. 166-167). Barthes, a nosso ver, conseguiu na prtica aqui (RB por RB); atravs de um dirio que no bem um dirio, tenta beirar a Literatura, mas mesmo no conseguindo, pois como vai dizer mais tarde em O rumor da lngua (1984): ser possvel sim fazer uma publicao de cunho literrio No, a justificativa de um Dirio ntimo (como obra) no pode ser seno literria, no sentido absoluto, mesmo que nostlgico, da palavra. (BARTHES, 2004, p. 447), seu melhor trabalho quanto trapaa salutar (BARTHES, 2002, p. 16) que pregou em Aula (1978-9). 13) Fragmentos de um discurso amoroso (1977 / 2000), se um ttulo pode ser considerado como o menor resumo possvel sobre uma obra ou simplesmente sua apresentao, neste ttulo temos ambos: resumo e apresentao. Obra feita de fragmentos retirados de outras obras: um inteiro feito totalmente de fragmentos diversos, e assim como no personagem Frankenstein perfeitamente possvel ver que sua composio variada, mas 222
no aleatria; Victor quis um homem com partes de outros homens e Barthes quis fazer um discurso amoroso com part es de outros discursos amorosos; neste livro vemos o que Oscar Niemeyer respondeu a uma reprter, na inaugurao de Braslia, quando ela perguntou por que as parbolas dos pilares (pilastras) eram to parecidas de um prdio para outro, Por que no acentuou a diferena entre elas ou simplesmente as fez diferente? e ele disse Voc me pergunta isso porque no arquiteta, um arquiteto sabe o que Unidade 14 . Niemeyer escolheu o Cruzeiro do Sul como modelo/matriz para compor as pilastras, s variando o grau de curvatura para baixo ou para cima, mais para a esquerda ou mais para a direita. Barthes variou quanto aos captulos do livro, mas com certeza, mesmo sem ser arquiteto e saber o que era Unidade, fez uma Unidade com o discurso amoroso. 14) Aula (pronunciada dia 7 de janeiro de 1977 e publicada em 1978 / 2002) livro que inaugura a Ctedra de Semiologia do Colgio de Frana, nesta Aula Barthes questiona os motivos de tal instituio contratar seus servios (primeira linha), pois se declara sujeito incerto (p. 7) como algum que s produziu to-somente ensaios, gnero incerto onde a escritura rivaliza com a anlise (p. 7), como um pesquisador de semiologia que to propenso a deslocar sua definio (p. 7) pode ser outra coisa que no sujeito impuro (p. 8)? Mas se por um lado a honra pode ser imerecida, a alegria nunca o (p. 8) e ao saber que faria parte do lugar-comum de seus mestres, se alegra. E tambm se alegra por lhe ser permitido fazer um discurso de um lugar que est fora do
14 Entrevista apresentada pelo programa da TVE, Recorte Cultural: Oscar Niemeyer recebe Michel Melamed em seu apartamento-escritrio no Rio de Janeiro. Durante o bate-papo, o arquiteto fala de seus projetos - como a construo de Braslia -, e de sua relao com a poltica, j que um comunista convicto. Uma parte da entrevista (a partir do segundo minuto, fragmentada, pois a proposta do programa Re[corte] Cultural e infelizmente sem a parte que queramos mostrar) est disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=auWtmAbzbt0&feature=related, Recorte 5C, acessado em 06 jul. 2010. 223
poder (p. 9), mas esta ltima alegria no inocente: como algum que j havia escrito sobre o grau zero (1953) e sobre ideologia (O prazer do texto, 1973) poderia acreditar ser possvel escrever algo to inocente quanto um discurso que no estivesse impregnado por algum desejo de convencer o outro o poder (a libido dominandi) a est, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder (p. 10), mas sua luta no contra o poder, mas contras os poderes (p. 12), artigo no plural que s compreendido quando recordamos a ressalva que Barthes faz a Saussure a Semiologia que uma parte da Lingustica; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso (BARTHES, 1993, p. 13), um discurso que no pode ser destrudo ele vai imediatamente reviver, regerminar no novo estado de coisas (p. 12); sua causa a linguagem e seu efeito (sua manifestao) a lngua. Por seu uso rotineiro esquece-se que ela nos obriga a usar seu cdigo, cdigo padronizado/convencionado esquecemos que toda lngua uma classificao, e que toda classificao opressiva (p. 12), isso a torna fascista; pois o fascismo no impedir de dizer, obrigar a dizer (p. 14) mas nem tudo est perdido, por meio de uma trapaa salutar (p. 16) pode-se ouvir a lngua fora de seu poder eu a chamo, quanto a mim: literatura. (p. 16); algo que s pode ser alcanado por treino/prtica Entendo por literatura no um corpo ou uma sequncia de obras, nem mesmo um setor de comrcio ou de ensaio, mas o grafo complexo das pegadas de uma prtica: a prtica de escrever (p. 16 e 17). Afirma que todas as cincias esto no mundo literrio (p. 18), mas as cincias so grosseiras e a vida sutil e para corrigir essa distncia que a literatura nos importa (p. 19) e revela como ela faz isso, revelando/separando sua fora em trs: 1) Na ordem do saber, para 224
que as coisas se tornem o que so, o que foram, necessrio esse ingrediente, o sal das palavras (p. 21), 2) a sua representao Que o real no seja representvel mas somente demonstrvel (p. 22), 3) e finalmente Pode-se dizer que a terceira fora da literatura, sua fora propriamente dita, consiste em jogar com os signos em vez de destru-los (p. 28). E agora sim Eis-nos diante da semiologia (p. 29). Presta tributo a Saussure, que sem seu Lngua/Fala no haveria comeo (p. 31), que graas semiologia podia reduzir o discurso (p. 31) e logo depois, ao narrar s possibilidades que isso gera, descreve praticamente e contiguamente as possibilidades existentes em um Hai -kai: No so somente os fonemas, as palavras e as articulaes sintticas que esto submetidas a um regime de liberdade condicional, j que no podemos combin-los de qualquer jeito; todo o lenol do discurso que fixado por uma rede de regras (p. 31), e tal palavra no aparece em seu discurso inaugural, mas em suas obras e no comentrio final de Leyla Perrone-Moiss aparecer triunfante, pois se existe uma prova material de que existe uma maneira de driblar o discurso do poder, ele: O haicai consegue a faanha de dizer a pura constatao, sem nenhuma vibrao de arrogncia, de sentido, de ideologia. (p. 86). E o livro termina com o revelar de impresses menores (clima), aparentemente sem importncia, mas que justamente, por serem assim, mostram/provam que aprendeu a fazer um discurso usando a lngua com toda sua organizao, regras e convenes sem ser julgadora e/ou dominadora. E para terminar nossa impresso: s consideramos de muita malcia terem terminado o texto (e o livro) com um Hai -kai assumido se j tinham feito um, na ltima frase, no-assumido:
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Esttua de Montaigne Continua sorrindo, este ano sob uma Maquiagem punk. (p. 89, montagem em trs linhas nossa).
15) A cmara clara (1980 / 1984), ltimo livro publicado em vida 15 , depois deste todos os outros seriam pstumos. antes um livro de colaborao O que Marey e Muybridge fizeram, como operator; quero fazer como spectator: decompondo, amplio e, se podemos diz-lo: ralento, para ter tempo de enfim saber (BARTHES, 1984, p. 148), ou poderamos dizer inquietao eu gostaria de saber o que, nessa foto, me d o estalo (p. 36). Suas impresses foram escritas do ponto de vista de quem no fotgrafo no sou fotgrafo, sequer amador (p. 20), criou nomes para, separadamente, analisar melhor esta viso que na verdade mltipla: o Spectador que somos todos ns (p. 20) seria fotografado pelo Operator que fotgrafo (p. 20) que produziria um studium que o ato simples de Posso apenas varr-la com o olhar (p. 156), e que quando melhor observado poderia nos ferir, dar uma pontada: em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada [...] A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei de punctum (p. 46), e como o punctum por vezes pode ser proposital Certos detalhes poderiam me ferir. Se no o fazem sem dvida porque foram colocados l intencionalmente pelo fotgrafo (p. 75), ficou a pergunta: ser que o punctum tem a capacidade de ferir o prprio fotgrafo? E foi tentando descobrir esta resposta no livro que nos veio o insight: Assim o detalhe que me interessa no , ou pelo menos no rigorosamente, intencional, e
15 La Chambre claire: Notes sur la photographie, Editeur: Gallimard, Publication: 21/2/1980 (quinta-feira). Barthes foi atropelado 4 dias depois: 25/2/1980 (segunda-feira) e faleceu duas semanas depois da publicao, em 6/3/1980 (na outra quinta-feira, em 1980 o ms de fevereiro teve 29 dias). 226
provavelmente no preciso que o seja; ele se encontra no campo da coisa fotografada como um suplemento [...]; ele no atesta obrigatoriamente a arte do fotgrafo; ele diz apenas ou que o fotgrafo se encontrava l, ou [...] que ele no podia fotografar o objeto parcial ao mesmo tempo que o objeto total (p. 76), por tanto o detalhe, o suplemento, em resumo: o punctum no privilgio apenas de quem manobra a mquina a semiologia da Fotografia est, portanto, limitada aos desempenhos admirveis de alguns retratistas (p. 62), mas tal punctum (o que me punge) (p. 68) est l, e sempre esteve, mesmo para o fotgrafo suplemento: o que acrescento foto e que todavia j est nela (p. 85). E com base em tal inquietao resolvemos dar, tambm, nossa colaborao com: Primoris Visum (Primeira Vista) uma smile com o Studium barthesiano cuja a diferena reside no fato de no primeiro varremos o cenrio com o olhar e no segundo a foto, Attentus Visum (Vista Atenta) e a Animus Simulandi (Inteno de Simular) so propostas de diviso do Punctum barthesiano, mas sendo ambas intencionais e na medida do primeiro ser de ao natural, ou seja aproveitando o que est circunscrito ao redor do Spectrum (fotografado) e o segundo montado, fabricado. Ao analisarmos este livro, defendemos tambm a tese de que a fotografia algo que pendula do funcional ao artstico que a Fotografia uma arte pouco segura (p. 32), que por seu carter polivalente A Fotografia inclassificvel porque no h qualquer razo para marcar tal ou tal de suas ocorrncias (p. 16), da a razo de Barthes, e ns, concordarmos que a nica comparao possvel, sem que haja controvrsias, compar-la ao Hai-kai Pois a notao de um haiku tambm indesenvolvvel (p. 78). Palavra to inquietante e quase sempre prxima de fragmento. 16) O bvio e o obtuso (1982 / 1984): ttulo escolhido no por Barthes, mas por seu amigo e editor Franois Wahl temos , pois, que assumir a responsabilidade, tal 227
como a do ttulo (BARTHES, 1984, p. 9) tomando como base um dos estudos de Barthes sobre Eisenstein, includo nesta obra. uma coletnea de ensaios crticos dispersos (vinte e um textos anteriormente publicados em revistas e catlogos e mais dois ainda inditos 16 ), constituindo na prtica um novo volume de ensaios crticos. Diferente de A cmara clara pelo seu aprofundamento, agora vai alm e adentra no que poderamos chamar de esttica do visvel (1. A escrita do visvel); continua com os estudos sobre fotografia, mas agora inclui o cinema, o teatro e a pintura. A msica tambm ser trabalhada (2. O corpo da msica), ainda que s no final no livro. Barthes parte de um questionamento sobre o contedo da mensagem fotogrfica e discorre com originalidade sobre o que ela apresenta em termos de conotao e denotao e chega aos conceitos de bvio e obtuso, a partir da anlise de fotogramas de filmes de Serguei Eisenstein (1898- 1958), como j dissemos: O terceiro sentido, notas de pesquisa sobre alguns fotogramas de S. M. Eisenstein (p. 43 59). Nesta obra a palavra metamorfose ter um papel, quem sabe at mais importante, que a palavra fragmento [...] a campainhas de flores, a pequena ervilha na vagem; estes objetos diferentes tm formas em comum: so parcelas de matria, cortadas, iguais e agrupadas arrumadas numa mesma linha (p. 119). Da letra do livro de Massini metamorfose figurativa (p. 89), passando pelo penteado que junto com o corpo forma uma letra metamorfoseada (Ert, p. 93 - 111), chegamos ao captulo que serviu de capa para o livro publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira 17 : Vertumnus, Retrato de Rudolph II, um dos trabalhos de Arcimbaldo, que segundo Barthes tal artista transforma a pintura numa verdadeira lngua A
16 Os dois inditos so: A msica, a voz, a lngua (Roma, 20 de Maio de 1977) e De olhos nos olhos (Inditos, Escrito em 1977, para uma obra coletiva em preparao Le Regar). 17 Na maioria das vezes a prpria foto de Barthes: Edies 70 no Brasil e Editions du Seuil na Frana, ou uma figura disforme. 228
cabea composta por unidades lexicogrficas que vm de um dicionrio, mas este dicionrio de imagens (p. 118): nela tudo significa, tudo metfora: Reino triunfante da metfora: tudo metfora em Arcimboldo. Nunca nada denotado (p. 119). Na Segunda parte (2. O Corpo da Msica), Barthes comenta a diferena entre ouvir e escutar e seu comentrio sobre o intermezzo de Schumann em RB por RB (p. 102) resgatado e ampliado; conclui que assim como a leitura do texto moderno precisa ser operada, atrada para uma prxis desconhecida (uma espcie de perder para ganhar), a msica opera bem como metfora: Talvez uma coisa no valha seno pela sua fora metafrica; t alvez seja esta o valor da msica: o de ser uma boa metfora (p. 230). 17) O rumor da lngua (1984 / 2004) nele encontramos mais estudos sobre: a linguagem, a escrita e os signos por ela utilizados. Com ele, nos acostumamos a ouvir o rumor da linguagem em suas sutilezas. Dividido em sete temas, consideramos como os mais importantes A morte do autor e Deliberaes: o primeiro afirma que a ideia de autor uma criao moderna, e a sua morte seria o necessrio desligamento dele com a obra, esta perda da voz original nos libertaria da verdade dele e nos permitiria ter a nossa, a funo de se publicar um texto no tomar posse do real, mas poder nos dar matria (imaginativa) e/ou mostrar o caminho para criar um outro real, sendo assim o real dele no seria mais que um exerccio simblico para nos ensinar/incentivar a usar o gabarito mental de que defendemos; o segundo mostra a opinio de Barthes sobre o assunto Dirio, neste ensaio onde encontramos que sim a justificao de um Dirio intimo (como obra) no pode ser seno literria (p. 447) seguido dos quatro motivos: potico, histrico, utpico e amoroso; logo aps isso dito, Barthes se revela ao escrever 229
fragmentos de sua escolha, de seu dirio: um Barthes que nunca vimos Ora, por instinto, deixo-me cair excessivamente, as duas pernas no ar, na postura mais ridcula que possvel. E compreendo ento que esse ridculo que me salva (de um mal maior): acompanhei minha queda, e ofereci -me assim em espetculo, tornei-me ridculo; mas por isso mesmo, atenuei-lhe o efeito (p. 455). 18) A aventura semiolgica (1975 / 2001) um livro feito para debater. Recolhe corpus especficos para provocar, em estudiosos do assunto (semiologia), um debate, no uma verdade do tipo: quem est certo ou quem est errado, mas antes uma oportunidade de usar a teoria em algo que poderia enriquecer, no s mais ainda a semiologia, mas a Literatura como um todo: Para retomar a classe das Funes, nem todas as unidades tm a mesma importncia; algumas constituem verdadeiros gonzos da narrativa (ou de um fragmento da narrativa) [...]: o espao que separa o telefone tocou de Bond atendeu pode estar saturado por uma multido de pequenos incidentes ou pequenas descries: Bond dirigiu-se para a mesa, pegou um receptor, colocou o cigarro no cinzeiro, etc. (p. 119). 19) Incidentes (1987 / 1987) um livro que usou filosofia e esttica tpicas da prtica do Hai-kai para ser produzido. No que haja Hai -kais no livro, h controvrsias a esse respeito, o que Barthes realmente fez foi travestir seu trabalho (dirio sim, mas no comum) com algumas caractersticas que encontramos no Hai-kai como a exatido do momento, o pequeno gesto que no percebido pelas outras pessoas, economia na descrio, o pitoresco ao lado do srio, e outros. Tudo isso recobre seu trabalho como uma roupa recobre uma pessoa; como j dissemos no incio da tese: h palavras, em Barthes, que 230
merecem especial ateno, poderamos agora acrescentar travesti lista, palavra que apareceu sorrateiramente em algumas de suas obras: Os travestis so caadores de verdade: o que lhes causa maior horror precisamente o fato de se disfararem (BARTHES, 1974, p.108) e O travesti oriental no copia a Mulher, ele a significa (BARTHES, 2007, p. 69). Talvez tenha sido essa a inteno de Barthes: atravs de um deslocamento, sem precisar criar um personagem, ou ainda como Gide: criar um personagem que criou um personagem, e sem precisar usar de falso testemunho ou produzir eufemismos (como isso verdade), para atender ao pedido de seu amigo e editor Franois Wahl (F. W.), falou sim de homossexualidade, mas pela fragmentao, escolha do que dizer, e economia conseguiu ser: desinibido sem ser vulgar (a arte no precisa pedir desculpas) Trs jovens Chleus, na falsia, exigem uma lio de francs... (p. 47), inocente sem ser burro <<Senhor, lembra-te, nunca deves dar boleia a um Marroquino que no conhea>>, diz-me este Marroquino a quem dou boleia e que no conheo (p. 45), fotgrafo sem ter cmera (esttica fotogrfica) Dois adolescentes nus atravessaram lentamente o <<oued>>, com a roupa numa trouxa cabea (p. 50) e quem sabe at um haicasta acidental, pois melhor Hai-kai que existe: aquele que no se faz, apenas deixa vir, e ao narrar os possveis pensamentos de Um mido, sentado num muro, beira da estrada para onde no olha sentado como que eternamente, sentado para estar sentado, sem tergiversar:
<< Sentado tranquilamente, sem fazer nada. Chega a primavera e a erva cresce por si. >>
Nasce este que poderia ser considerado como seu primeiro Hai -kai, apesar de s ter duas linhas, mas que na verdade no o , trata-se de um poema 231
Zen annimo que Barthes colheu para fazer das palavras de algum, as suas. E mais uma vez s nos resta a inquietao de saber: ele escreveu ou no Hai-kais neste livro? Pergunta que nunca ter resposta justamente por ter muitas possibilidades de resposta: como a fotografia inclassificvel porque no h qualquer razo para marcar tal ou tal de suas ocorrncias (BARTHES, 1984, p. 16) e como o Haiku ...tambm indesenvolvvel (Idem, p. 78), j est revelado a roupagem com que travestiu sua obra: dirio vestido de esttica fotogrfica com estilo econmico japons para narrar aventuras em Marrocos. 20) A preparao do romance, vol. I (curso de 1978 1979 / 2005 ) nele onde encontraremos um curso completo sobre Hai -kai. Como este livro nos chegou s mos muito tardiamente, e, por no possuir nada que j no tivssemos dito, achamos por bem no alongar mais a data de defesa s por causa de alguns acrscimos oportunos, como em: ..., lugar geomtrico de pensamentos, problemas e gostos = simulacro (p. 48) para corroborar o gabarito mental de que falamos; em a quebra branca do fim do verso atrai, repousa, distrai (p. 54) para o fragmento que consideramos provocador em O imprio dos signos como poderia ele instruir, exprimir, distrair? (p. 111); com e ocasionalmente, fazer pensar no haicai, no seria um poema, por mais curto que fosse, seria por vezes um nico verso que pode soar como um haicai (p. 56) reforaramos o exemplo que demos quando sugerimos o exemplo explicativo Eu vi um anjo no mrmore e esculpi at o libertar escrito em uma nica linha e separvel mentalmente pelos falantes da lngua; tambm encontramos subsiste um desejo de haicai, uma fantasia linguageira de haicai. Mesmo sem mtrica, apenas fatiando a notao, brincamos de haicai (p. 67) que vai ao encontro do que defendemos sobre a obra Incidentes estar travestida, 232
e, se ainda for preciso mais tambm encontramos Sentimos que, aqui, somos retidos beira do efeito [...]. Considero que o haicai uma espcie de Incidente (p. 140 e 141); h nossa palavra estudada grafada com letra maiscula Resta relembrar o quanto essa preocupao moderna, responde a uma preocupao atual: os Fragmentos (p. 68) para mostrar que no foi s em RB por RB (p. 112) que tal palavra aparece grafada dessa forma, e mais uma vez no acompanhada da palavra Hai-kai, mas dentro de um curso especfico de Hai-kai; sobre o ponto de vista nostlgico de Barthes qualquer um que tenha perdido um ente querido se lembra terrivelmente da estao; a luz as flores, os odores, a concordncia ou o contraste do luto com a estao: quanto se pode sofrer ao sol! (p. 84) em A cmara clara O nome do noema da Fotografia ser ento: Isso-foi, [...] ela sugere que ele j est morto (p. 115 118); a palavra sutileza que sempre dissemos ser de vital importncia para a tese A Nuance = uma aprendizagem da sutileza (p. 94) e que sempre encontramos no contexto barthesiano. E como podemos constatar pelo que foi observado: muitos fragmentos teis, mas nada que merecesse uma reviso completa de nosso trabalho. Ficamos felizes ao descobrir que Barthes tinha feito um curso sim, mas como j explicamos nesta tese, o nome de nosso trabalho no O Hai-kai barthesiano e sim O fragmento barthesiano. E por tal palavra estar sempre prxima e de forma cmplice entendemos que j foi bem trabalhada. Resumindo: ou se estuda tal palavra dispersada, verdadeiro xodo japons em plena bibliografia barthesiana, como um franco-atirador que procura somente patentes altas (Hai-kai) para vitimar, ou se adquire tal livro para quando se ler os outros, e se deparar com tal palavra (Hai -kai), a entender melhor do que aqueles que no leram o curso de Barthes e s a esto vendo fragmentada em 233
sua bibliografia. Vantagem que no tivemos, mas que aproveitamos agora no final. Por tanto, at possvel classificar algumas obras de Barthes como estruturalistas e ps-estruturalistas tomando como base as incidncias (tendncias) que encontramos em seu interior, o que no podemos fazer colocar Barthes em uma tabela cronolgica da literatura, como a que encontramos nos livros de segundo grau: do Trovadorismo ao Ps-modernismo, e traar uma linha em uma determinada obra, por exemplo: (S/Z) e numa determinada data, por exemplo: A Revoluo Estudantil de 1968 considerada por muitos como a data que marca o incio de um neo-estruturalismo (incio do Ps). Pois se assim o fizermos como explicar certas inquietaes que assolavam Barthes e sobre as quais escreveu em clara contrassintonia com os demais. Para ns, inquietaes fora de pocas, fuga de modismos e criar a partir de (...) so provas de que Barthes sim filsofo, mas de qual filosofia? Isso no tem a menor importncia, pois procurar uma locuo adjetiva para Barthes (... da Semiologia, ... da Literatura, ... da esttica visual etc.) seria o mesmo que tentar classific-lo, rotul-lo, quem sabe (?) dom-lo. Barthes no o tipo de filsofo que usa locuo adjetiva, ele a locuo adjetiva: Fragmento barthesiano.
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6.2- ... procura uma nova linguagem dentro da dbia poesia.
Quando nos veio mente o subttulo de nossa tese (grifado acima), ficamos um pouco apreensivos, por duas razes, primeira: no queramos trabalhar com a palavra linguagem como se ela fosse mera smile de pensamento, pois sabemos que ela anterior ao pensamento; ns que demos o nome de linguagem a tudo aquilo que no gratuito e se revela funcionalmente em eficincia e fracasso, no importa, mas se revela. Uma montanha cresce em altura por deslocamento de placas tectnicas e nesta nova altura aparecem plantas adequadas a tal altura, e, depois, mais uma vez a terra mexe e a altura da montanha j no a mesma, nova vegetao adequada aparece, mas a anterior fossilizada mostra ao homem que aquela montanha j teve outras alturas; uma rvore que cresce para cima e se expande no o faz para que o homem chame o seu movimento de arbreo, assim como um grande felino no coloca sua caa entre um troco e um galho para o homem chamar tal movimento de enganchar. A linguagem, como ns a entendemos, similar a descrio que Heidegger faz em sua obra A caminho da linguagem. Ns tambm a consideramos tripartida; no mostraremos isso com o poema que ele escolheu (Uma tarde de inverno de Georg Trakl), mas para juntar o pensamento dele ao nosso usaremos uma gravura:
Puddle por M. C. Escher (1952) 235
Comearemos pelo nome: Puddle (do francs poa), mas no o mero nome, trabalharemos este como: Nomear no distribuir ttulos, no atribuir palavras. Nomear evocar para a palavra. Nomear evoca. Nomear aproxima o que se evoca. (HEIDEGGER: 2003, p.15). Quando olhamos o quadro e lemos seu ttulo, percebemos claramente que seu nome pertinente, mas at que ponto? Por que fazer uma gravura de algo to simples, e sujo? Tal razo ocorre porque Evocar sempre provocar e invocar, provocar a vigncia e invocar a ausncia (Idem: 2003, p. 16). Num segundo momento, percebemos que Escher joga com trs elementos: gua (ao centro), terra (base) e cu (refletido). Mas no s isso, como sabemos que estamos numa floresta? Graas s rvores. Mas onde esto as rvores? Se olharmos bem, percebemos que elas no esto presentes, pelo reflexo, pela gua, que as vemos, e no s: seus topos e o cu, elementos que para vermos temos que virar nossa cabea para cima, se torna visvel porque viramos a cabea para baixo. E as inverses no param por a, as pessoas (pegadas), os carros (pneus diferentes) e as bicicletas (tambm no cho) s so vistas por suas marcas; ausncias acusando presenas Mundo e coisa no substituem um ao lado do outro coisas justapostas. Eles se interpenetram. Assim os dois dimensionam um meio. Nesse meio, esto unidos (Idem: 2003, p. 19). E no terceiro momento temos o porqu de tudo isso: linguagem a pergunta, ou perguntas, que no podem ter respostas, pois no mistrio do prprio perguntar, no limite do perguntar, no confrontar-se no que no tem nome, do que no precisa ter nome para existir, uma presena ausente e uma ausncia que presena, unio possvel graas linguagem como algo mais que o pensar, visto que existe e se manifesta independente do homem. As obras de arte, poemas, nos lembram disso. 236
Para os mortais, falar evocar pelo nome, chamar para vir. Na fala dos mortais, o dito do poema puro chamado. Poesia propriamente apenas um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrrio. a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase no mais ressoa. (HEIDEGGER: 2003, p. 24)
Segunda Razo: Barthes no era do tipo que pesquisava poemas (Hai -kai: nica exceo) e/ou escrevia, mas quando pesquisamos melhor sobre a palavra poesia nos demos conta de que ela era, proporcionalmente, muito mais utilizada para se referir a poemas: arte de compor ou escrever versos, a que outros trabalhos; na verdade das seis incidncias que aparecem no dicionrio Houaiss somente as duas ltimas se referem a ela como poder criativo e o que desperta emoo (Op. Cit., 2009 p. 1514). So nestes dois ltimos a que nos referimos: um estado de sentimento, mais especificamente quando uma obra nos remete a um estado sublime de sentimento. Ora, ento escolhemos bem, pois o que Barthes estudou foi exatamente isso s que em reas diversas, procurou e achou em citaes, fotografias, dirios, e at mesmo na msica. E resolvido tal incmodo prosseguimos com nossa pesquisa, e ao adentrarmos mais ainda na questo do fragmento, outro desconforto surgiu: Barthes nunca se preocupou com o fragmento em si, grande prova disso so trs pginas (ps. 101, 102 e 103) de RB por RB (1977) falando especificamente dele (fragmento) e mesmo assim fica claro que no ele (presena) o que importa, mas o que acontece quando ele acontece. Uma espcie de causa e efeito em plena conspirao pelo formato corolrio: o perceber de seus fragmentos (efeito) criados propositalmente por fragmentos (causa), para produzir nos outros inquietaes que os incentivariam a perceber fragmentos futuros (efeito), e quem sabe, por contaminao serem os prximos a fazer o mesmo (causa). O fragmento seria a inquietao primeira que produziria um movimento cclico: 237
efeitos (descobertas) produziriam admirao, espanto, todos contagiantes e que por serem assim, tornam o efeito de antes em causa do depois, um ciclo que se autoalimentaria, mas com o comprometimento de nunca parar de produzir o espanto, a admirao, sob pena, de a sim, cessar/morrer. Mas tal descoberta tambm nos trouxe alvio, pois desde o incio j achvamos a proposta de s estudar ele, o fragmento: maisculo e minsculo (paradigma) acrescido do seu relacionamento com as palavras vizinhas (sintagma) uma proposta interessante, mas ao mesmo tempo pobre. Para resolver tal impasse resolvemos manter a primeira e ampliar a segunda. Nosso alvio: desde o incio foi assim, mantivemos e ampliamos. Mostraremos agora alguns exemplos de seu alto grau de contaminao, no uma contaminao barthesiana em si, mas exemplos semelhantes aos que inquietaram Barthes, que os encontrou no s na Histria e na Literatura, mas tambm nos jornais, revistas, propaganda, cinema, teatro, pintura e em outras mdias, do visual musical. Como j demos alguns exemplos com pintura, com fotografia e at mesmo com a unio de ambos (Crystal Falls do pintor Thomas Moran e o fotgrafo William H. Jackson); para dar prosseguimento a esta simbiose ltima, escolhemos a letra de Monte castelo (1989) da banda brasileira Legio Urbana, adaptada de fragmentos da Primeira Epstola de So Paulo aos Corntios Captulo 13 e mesclada a fragmentos do Soneto 11 de Lus Vaz de Cames; para mostrar como o gabarito mental de que falamos mais comum do que muita gente pensa, todos falando a mesma coisa por caminhos ligeiramente diferentes e ainda assim o mesmo. Para facilitar a comparao, usamos Itlico para o Soneto e sublinhado para Corntios:
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Monte Castelo 18 (letra de msica)
Ainda que eu falasse A lngua dos homens E falasse a lngua dos anjos Sem amor, eu nada seria... s o amor, s o amor Que conhece o que verdade O amor bom, no quer o mal No sente inveja Ou se envaidece...
O amor o fogo Que arde sem se ver ferida que di E no se sente um contentamento Descontente dor que desatina sem doer...
Ainda que eu falasse A lngua dos homens E falasse a lngua dos anjos Sem amor, eu nada seria...
um no querer Mais que bem querer solitrio andar Por entre a gente um no contentar-se De contente cuidar que se ganha Em se perder...
um estar-se preso Por vontade servir a quem vence O vencedor um ter com quem nos mata A lealdade To contrrio a si o mesmo amor...
Estou acordado E todos dormem, todos dormem Todos dormem Agora vejo em parte Mas ento veremos face a face s o amor, s o amor Que conhece o que verdade...
Ainda que eu falasse A lngua dos homens E falasse a lngua dos anjos Sem amor, eu nada seria...
18 Legio Urbana (2010).
Soneto V 19 (texto potico)
Amor um fogo Que arde sem se ver, ferida que di E no se sente, um contentamento Descontente, dor que desatina sem doer.
um no querer Mais que bem querer, um andar solitrio Entre a gente, nunca contentar-se De contente, um cuidar que ganha Em se perder.
querer estar preso Por vontade, servir, a quem vence, O vencedor, ter com quem nos mata Lealdade. Mas como causar pode seu favor, Nos coraes humanos amizade, Se to contrrio a si o mesmo Amor?
19 Luiz de Cames (2010)
1 Corntios 13 20 (texto bblico)
1 Ainda que eu falasse as lnguas dos homens e dos anjos, e no tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. 2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistrios e toda a cincia, e ainda que tivesse toda a f, de maneira tal que transportasse os montes, e no tivesse amor, nada seria. 3 E ainda que distribusse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e no tivesse amor, nada disso me aproveitaria. 4 O amor sofredor, benigno; o amor no invejoso; o amor no trata com leviandade, no se ensoberbece. 5 No se porta com indecncia, no busca os seus interesses, no se irrita, no suspeita mal; 6 No folga com a injustia, mas folga com a verdade; 7 Tudo sofre, tudo cr, tudo espera, tudo suporta. 8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, sero aniquiladas; havendo lnguas, cessaro; havendo cincia, desaparecer; 9 Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; 10 Mas, quando vier o que perfeito, ento o que o em parte ser aniquilado. 11 Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. 12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas ento veremos face a face; agora conheo em parte, mas ento conhecerei como tambm sou conhecido. 13 Agora, pois, permanecem a f, a esperana e o amor, estes trs, mas o maior destes o amor.
20 Carta de So Paulo aos Corntios (2010). 239
Esta montagem aqui descrita na verdade um jogo, que encontramos em Aula (JEU, JOUER JOGO) e que nasce graas ao estalo (BARTHES, 1984, p.36), que o momento exato em que percebemos o punctum, lembrando que os propositais surtem pouco efeito: Certos detalhes poderiam me ferir. Se no o fazem sem dvida porque foram colocados l intencionalmente (Idem, p. 75.) e no entanto, no caso descrito por ns, encontramos um punctum proposital, j que as fontes so bem conhecidas, mas como ainda no tinham sido esgotadas: eis o estalo do artista. E por acreditar ser ainda possvel continuar a variao iniciada por Cames, num vai e vem, costurou uma terceira variante por soma das duas primeiras. A questo agora no o fato de ser visvel e ou conhecida as fontes, mas o desafio de continuar construindo usando as peas das obras originais. Peas que limitam a atuao gabarito mental, sendo esse mesmo o desafio: quantas variaes so possveis dentro desta proposta. No temos tal resposta, mas sabemos do seguinte: ainda no esgotou.
Monte Castelo (nossa montagem)
Ainda que eu falasse igual a So Paulo aos Corntios. E falasse Cames nos Lusadas Sem professor eu nada diria.
s nos livros, s nos livros. Que se conhece o que verdade. O livro bom, no ensina o mal. Quando queimados, o mal se envaidece.
O Adamastor mostro que se mostra sem se ver. ferido que d d e no se recente. um fingidor pessoano e um contente. Pois a dor desatina e no a sente.
Ainda que eu falasse igual a So Paulo aos Corntios. E falasse Cames nos Lusadas Sem professor eu nada faria.
Elias no viu o Senhor, no trovo. Elias no viu o Senhor, na tempestade. Elias no viu o Senhor, no tufo. A brisa trouxe Deus na carruagem.
um estar-se Kafka por vontade. servir a quem paga, um perdedor. acreditar que vai virar - de verdade. Ainda que tudo aponte: oposto de vencedor.
J estou sonhando e todos dormem, todos dormem, dormem sem sonhos. Agora vejo empate, onde diziam Vai perder! na mina face.
o professor, o Adamastor. Que nos leva no barco: Verdade, No oceano chamado: Pergunta.
Ainda que eu falasse igual a So Paulo aos Corntios. E falasse Cames nos Lusadas, Sem professor eu nada seriaaah!
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O objetivo no apenas montar, como somente parece, mas dentro deste montar possvel ver que tal proposta: continuar produzindo por soma das obras originais (1 Epstola, 2 Soneto, 3Letra), no deixa a nova variante sem o seu compromisso de fazer pensar, pois no estamos falando aqui apenas de jogar com as palavras mas faz-las fazer pensar. Realmente redundante esta ltima afirmao: escrita com o verbo fazer duas vezes, mas se olharmos novamente, se ignorarmos quase a cacofonia que a repetio provoca, repararemos que a tarefa de fazer est dividida em duas partes: algum a faz, para depois ela obrigar a fazer. A contaminao que gera plena conspirao pelo formato corolrio de que falamos (fim da primeira pgina do captulo 9.2) acontecendo bem aqui nesta tese. Sem esse comprometimento, essa criatividade, essa sutileza, que faz do gabarito mental no s o espao de um encaixe possvel, mas de um encaixe pertinente/perfeito, o fragmento consegue se manter vivo e desafiante: o ciclo autossustentado. Muitos foram os autores que usaram o gabarito mental para criar a partir de (...), s sobre a Antologia da R, Hai-kai de Bash (2010), h mais de cinquenta poemas (dentro e fora do formato Hai-kai) escritos e catalogados pelo grupo Kakinet.com. Tal gabarito tambm insistentemente/intensamente usado por tradutores j que as palavras no tm s traduo, mas tambm valor (pases diferentes, culturas diferentes), e h aqueles que conseguem ir alm da mera adaptao e criar realmente uma outra obra; como acrscimo disto: Leyla Perrone-Moises anotou em Aula a maneira como cada artista se serve dos recursos tcnicos do instrumento (BARTHES, 2002, p. 84).
241
E como exemplo, Paulo Leminski e nossa colaborao:
YAMABKI Y H NI HAN NI H NI HAN NI H NI Tan Taigi (17091771)
A montanha sopra Folha em flor em flora em Flor em folha em (traduo: Leminski)
(Com efeito, em japons, flor diz-se han e nariz hana. O que cheira e o cheirado esto em relao trocadilhesca. LEMINSKI, 1983, p. 35)
...
NEN NEN NI KKU NI OMOWN OMOWARN Masaoka Shiki (1867- 1902)
todo ano pensando nos crisntemos sendo pensados pelos mesmos
Ou, melhor, a partir dessa traduo literal
NEM VEM QUE NO TEM EU PENSO CRISNTEMO CRISNTEMO EM MIM TAMBM (LEMINSKI, 1983, p. 35)
UME NO HAN AKAI WA AKAI W AKAI HAN Hirose Izen (?-1711)
Cereja em flor Vermelha vermelha vermelha Vermelha flor (traduo: Leminski)
(Nem precisa lembrar a pedra de Drummond, tantas vezes repetidas, no meio do caminho. LEMINSKI, 1983, p. 37)
...
TOMBO TBU TOMBO NO EU M TOMBO TBU SOR Idem em Horyu-ji (Templo budista)
Voam liblulas Tambm sobre as liblulas Um cu onde voam liblulas (traduo: Leminski, 1983, p. 38)
(o haikai construdo sobre o trocadilho entre liblula tombo e voar tbu, algo como varejam varejeiras,... (LEMINSKI, 1983, p. 38)
Ou, melhor, a partir dessa explicao
LINDABLULA VOA RASANTE SOBRE GUA LAVELOZDEIRA Andr Lopes (1971)
E por que autores (e tradutores) gostam de fazer isso? Melhor resposta que: Assim como um poeta homenageia um outro poeta, produzindo poesia e nunca a reproduzindo simplesmente (VEROSA, 1996, p. 19) ainda no encontramos. 242
As poesias experimentalistas e inquietantes dos anos trinta, quarenta e cinquenta esto cheias de exemplos sobre o gabarito mental em pleno funcionamento, e poderamos prosseguir por estas dcadas fantsticas com o gauche de Drummond e as experincias concretistas dos irmos Campos, Dcio Pignatari, Pedro Xisto, Arnaldo Antunes, se no fosse por uma ressalva feita por Barthes sobre Apolinaire cujo material quase um material de haicai: A anmona e a anclia Cresceram no jardim Onde dorme a melancolia 1
Talvez uma enunciao? Mas ela no franca. (BARTHES, 2004, p. 136)
Este comentrio do ltimo livro analisado por ns (A preparao do romance vol. I), nos fez perceber que assim como o que aconteceu com o fragmento, o gabarito mental que estudamos no ele em si importante. O que Barthes realmente quer, est procurando, no beleza e tampouco variao criativa, o que ele realmente procura o seu querido Grau zero: Sentimos que, aqui, somos retirados beira do efeito; precisamente o que Blanchot (Entretien) chama de Neutro: Lembremo-nos de que o neutro seria dado numa posio de quase-ausncia, de efeito de no-efeito; estamos aqui no quase: pela escritura, algo opera, mas no um efeito.(BARTHES, 2004, p. 140)
O fragmento um dos mtodos, o Hai-kai um dos usos do mtodo (fragmento) e o gabarito mental o lugar geogrfico onde tudo montado para depois virar um texto de escritura branda (Barthes chamar de branca), fora de toda ideologia. Hai-kai como uma fuga sem ser fuga, uma fuga sutil um no estou aqui... finjam que no estou aqui, tudo isso para criar uma escritura branca, liberta de qualquer servido a uma ordem fixada da linguagem
1 Lanmone et lancolie / Ont pouss dans jardim / O DORT mlancolie. Apolinaire, Clotilde, Alcools, Paris, Gallimard, 1929, col. Posie, 1977, p. 47. Apud Barthes, 2004, p. 136. 243
(BARTHES, 1974, p. 160). A poesia permite essa fuga, esse driblar a lngua pelo uso da linguagem. O fragmento divide a palavra, a letra, permite um deslocamento de sentido por sua separao, afastamento; o Hai -kai o estilo j existente, j praticado, que no causa estranheza, permite o deslocamento, a justificativa/permisso para cortar, fragmentar; o gabarito mental a tigela, o espao onde se vai misturar, montar, casa do binmio: tentativa-e-erro, buscando a fuga do sentido, por uma permisso literria: Literatura. Barthes quer fugir, mas no pode, no consegue, mas no desiste; no uma pirraa de criana a inquietao de Heidegger: ir aonde nem mesmo Saussure foi para entender a lngua. Por isso s o que realmente importa a fuga dos sentidos, mas no a forada, como ele mesmo j disse em A cmara clara: o punctum que est l de propsito no interessa. Talvez por isso no tenha se interessado por poesia concreta: o tempo todo no era o fragmento, no era o gabarito mental, era apenas a busca de algo neutro fora de qualquer ideologia, poder. Escrever pelo prazer de escrever sim, mas sempre tentando algo novo, descompromissado, algo mais livre ainda, para nos contagiar de forma acessvel, para se autoalimentar pelo espanto que uma liberdade fornece e no mera criatividade; na verdade, ou melhor: na prtica, muita criatividade pode at assust ar. Melhor, ento, ficar com sua inquietao, o que tentou ensinar no Colgio de Frana: fora do poder, Sem dvida ensinar, falar simplesmente, fora de toda sano institucional (BARTHES, 2002, p. 10). Como o melhor Hai-kai que existe o que no se faz, apenas se deixa que venha, Barthes em A preparao do romance vol. I desenvolveu um curso sobre esta forma de fazer poema que das mais simples, tanto por sua quantidade (trs linhas), quanto por sua facilidade (sem rimas e sem ttulo). Tudo o que ele 244
buscava se encontrava, se justificava no Hai -kai. Tudo o que no era espontneo tinha l sua utilidade, mas no era o que buscava, o que queria divulgar, o que queria propagar: a prtica de que falava em Aula para libertar aquele que escreve, ou aquele que ir escrever. E agora que temos um novo e verdadeiro fio condutor e no apenas seus mtodos, lugares de montagem e estilos; ficou o que realmente importa: a espontaneidade. Por isso as fotos que lhe interessavam eram as naturais, as que no tinham pose. Sua me, por mais que claramente tenha recebido ordens Um pouco para frente, para que a gente possa te ver (BARTHES, 1984, p. 102), por ser ainda criana obedeceu sem que tal obedincia tenha comprometido sua espontaneidade. Por isso esta Foto do Jardim de Inverno (p. 110) ele no quis mostrar Ela existe apenas para mim (Op. cit. 1984, p. 110). Imaginem, algum que obedeceu a um sistema de poder e ainda assim conseguiu dele fugir, por sua inocncia: obedecer sem deixar de ser quem realmente quando muito interessaria ao studium de vocs: poca, roupas, fotogenia; mas nela, para vocs, no h nenhuma ferida. (Idem, p. 110). O que ele aprendeu com os japoneses, foi possvel ver na foto de sua me criana: a espontaneidade criando histria. Barthes acredita que conseguir expandir o significante preconizado por Saussure e o pensar o que ainda no foi pensado de Heidegger pelo acidental (Incidente), incidente que s o espontneo pode oferecer. Nas Escrituras Curtas faltou falar de algo que prometemos falar no fim do captulo introdutrio: a literatura alternativa de Alcolicos Annimos e da Igreja Messinica. Mas por que falar disso agora? Porque estas duas literaturas pesquisadas utilizam sim a literatura de fragmentos, textos cortados, montados, 245
somente o suficiente Quando se colocam fragmentos em sequncia, nenhuma organizao possvel? Sim [...]: cada pea se basta, e no entanto ela nunca mais do que o interstcio de suas vizinhas: a obra feita somente de pginas avulsas (BARTHES, 1977, p. 102); mais ainda agora que descobrimos o verdadeiro fio condutor de Barthes: a espontaneidade. E mais uma vez lembramos que estamos falando de inquietaes geradoras de pesquisas outras, e no somente das de Barthes. E se para ele escritura curta e espontaneidade so importantes, nada mais justo que mostrar como o que ele estudou tem reflexos at os dias de hoje. Barthes no estudou sobre o que vamos falar agora (Salas de Ajuda A.A. e Igreja Messinica), mas estudou sua frmula, estudou o fragmento e dentro deste valorizou no somente a forma mas sua razo de existir, razo espontnea. Os objetos de pesquisa que estamos estudando agora s funcionam com o livre arbtrio (espontaneidade?). Mesmo diante de necessidades: seja por parte de adico, ou por perturbaes de outra ordem, ambas fogem do poder pela sugesto, nada proibido, mesmo para quem sofre de dependncia, tudo sugerido, palavra que carrega consigo uma trapaa salutar. E sendo assim como no coloc-las aqui? Encontramos na Igreja Messinica e Salas de Ajuda do A.A. (Alcolicos Annimos: origem de todas as outras) textos propositalmente reduzidos, feitos para serem lidos em momentos difceis, de abstinncia, desespero ou abandono; a igreja que apontamos rica e diversificada em tal tipo de escrit a: Reminiscncias, Gotas de luz e outros. Nos Alcolicos Annimos temos diversas cartilhas que se propagaram por outras salas, mas com suas devidas adaptaes feitas: enquanto no S por Hoje (para adictos) lemos Evite a 246
primeira dose, na edio para a famlia do adicto lemos Evite a primeira briga. Uma clara contaminao produzida por sua eficincia, trocando-se o necessrio, e somente o necessrio, se obtm o resultado pretendido: gabarito mental que substituiu fragmentos pertinentes por outros mais pertinentes, ao ponto de aceitar uma espcie de inverso para o que funciona em um dos lados (adicto), tambm funcione no lado oposto (famlia). E ainda dentro desta literatura econmica, e quem sabe at peculiar, mas sem dvida eficiente e propagadora; encontramos tambm a parte ativa, a parte em que a pessoa ... tira ento o caderninho de apontamentos, no para anotar um pensamento, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso (BARTHES, 1977, p. 102). Em tal igreja e tal sala de ajuda (AA. por ser a que originou todas as outras, s nos referiremos a ela) temos o chamado Inventrio da F e Viver o programa sendo este ltimo dividido em trs partes (Pensamentos, F em algum e Programa): Questionrio da Messinica, uso interno: 1. Como est o tamanho do meu G 2 e do meu apego? Consegui elimin-lo? 2. Ser que estou conseguindo pensar sempre de forma positiva? 3. O meu snen 3 grande ou pequeno? Ser que no preciso faz-lo ficar maior? (Formulrio de uso interno, nica pgina, sem autor e sem data).
Questionrio do A.A., uso interno: Primeiras perguntas da primeira parte (Pensamentos): 1. Estou sbrio (limpo) hoje? 2. De que maneira agi diferente? 3. A minha doena dominou minha vida hoje? Primeiras perguntas da segunda parte (F em algum): 1. Falei com meu padrinho (madrinha) hoje? 2. Fui a uma reunio? 3. Partilhei minha experincia, fora e esperana?
2 Uma smile do Ego freudiano; 3 Uma smile da Lei da Atrao explicada no documentrio: O Segredo (2006) do diretor Drew Heriot. 247
Primeiras perguntas da terceira parte (Programa) 1. Dei hoje algo de mim sem esperar nada em troca? 2. Senti medo? 3. Senti alegria ou dor intensa? (Dobrvel de uso interno, sem autor e sem data).
Sentimos uma enorme indeciso quanto a utilizar ou no fragmentos oriundos de fontes sem pginas (folha nica), datao e nome de autor. Mas por outro lado no so to difceis assim de se obter, qualquer pessoa que queira fazer uso deste material em sua vida pode consegui -los sem muito esforo: na messinica precisar fazer, no mnimo, curso de frequentadores (gratuito), para saber o que significa os termos usados em itlico (G, Snen, e outros); para ter acesso ao dobrvel, basta procurar a sala de ajuda mais prxima de sua residncia pelo telefone da Central de Atendimento 4 . Tambm existem exemplos de dirio em ambas as instituies exemplificadas e escolhidas aqui por ns. Na Messinica existem as Reminiscncias sobre Meishu-Sama (1882 1935), lder espiritual e fundador de tal igreja, so cinco volumes contando partes da vida de Mokiti-Okada 5 como quem l um dirio, s que diferente de Barthes, este dirio no foi escrito por ele, na verdade uma colet nea de lembranas das pessoas de convvio direto com ele, e igual a Barthes, Mokiti -Okada compartilhava o gosto por fotografias: Meishu-Sama comprou uma cmera de fcil manuseio, que, a princpio, seria para ns brincarmos. Na verdade, mais do que as crianas, foi ele quem ficou mais empolgado e acabou tirando muitas fotografias (Fundao Mokiti Okada Vol. 1, 2004, p. 98).
4 Alcolicos Annimos 2253-4813 ou 2253-9283. Fonte: Listas-telefnicas, telefones teis e de emergncia. Importante: sempre que se entra em uma Sala de Ajuda deve-se se apresentar ao secretrio da sala e dizer o motivo de sua visita, nunca tente passar despercebido, pois todos se conhecem e so atentos s visitas. 5 Meishu-Sama seu ttulo religioso, que traduzido para o portugus significa: Senhor da Luz. 248
Nos Alcolicos Annimos temos a biografia em filme de Bill W. (My Name Is Bill W) 6 e a biografia do Dr. Robert no livro Dr. Bob e os bons veteranos 7 , mas este filme e livro no so os mais vistos e lidos, na verdade nem recomendados so; para quem chega o programa bem simples: Doze Passos para atender o individual e Doze Tradies para atender o coletivo. Se quem entrar fizer s o primeiro passo Admitimos que ramos impotentes perante o lcool/ adico, que tnhamos perdido o domnio sobre nossas vidas e respeitar a primeira tradio Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar (no faa na sala o que voc no quer assist ir: brigar, xingar, falar alto) j ser o suficiente. o fragmento vencendo a doena pela sutileza. L, ensina-se que o programa de apenas vinte e quatro horas, o que significa que quem acordou mais cedo est lutando contra a doena h mais tempo. Ostentar que tem muitos anos de sobriedade coisa de quem no entendeu isso. Passada esta fase difcil (abstinncia), aos poucos o fragmento se desliza para o dirio, as experincias so trocadas como quem l as melhores partes de um dirio, ou as piores, h de tudo numa sala de ajuda. Mas o que isso tem a ver diretamente com Roland Barthes e a poesia? Diretamente com Roland Barthes h muito pouco, pois como j dissemos nunca escreveu nada sobre religio e autoajuda: Meishu Sama com Luz do Oriente e Reminiscncias que se assemelham a Roland Barthes por Roland Barthes e incidentes. Considerados como exemplo de filosofia prtica para a vida; Os Doze Passos e as Doze Tradies do A. A. Literatura fulcral da grande maioria dos grupos de autoajuda para o tratament o de dependncias qumicas ou compulses, sendo tambm usado pelo Al-Anon (de forma adaptada) cujo nico propsito ajudar os familiares e amigos de adictos, ou seja, tambm usado por quem no sofre de adico;
6 My Name Is Bill W., dirigido por Daniel Petrie, 1989. 7 Direitos autorais de Alcoholics Anonymous World Services, Inc.; publicado com permisso Alcolicos Annimos. A primeira edio data de 1967 e a primeira edio brasileira foi em 1988. 249
E com poesia menos ainda, j que estamos falando de algo que se desloca da beleza para o funcional, mas como o faz salvando vidas, acreditamos que fugimos sim, um pouco do assunto, mas no por ficarmos aqum, por ficarmos alm. Realmente Barthes no era psiclogo nem analista, mas tambm no er a jornalista nem publicitrio e, no entanto, escreveu sobre a simbiose existente entre palavra e imagem (Ancoragem e Etapa) em O bvio e o obtuso (BARTHES, 1984, p.32-33): quando entre palavra e imagem h uma relao complementar, que se resolve na tot alidade da mensagem, como nos dilogos das histrias em quadrinhos, o verbal cumpre sua funo de ETAPA. Quando as palavras explicam o que se passa nas imagens, como nas legendas das fotos jornalsticas, o verbal cumpre a funo de ANCORAGEM. Um estudo sobre linguagem, no verdade? Sim, mas o que estamos fazendo tambm um estudo sobre linguagem (diferente de lngua), mas em outras reas e descobrindo semelhanas com a frmula estudada por Barthes. Este sempre admirou e pesquisou o Hai-kai e com um carinho todo especial a Bash: O imprio dos signos (2007, ps. 56, 94 e 95), Fragmentos de um discurso amoroso (BARTHES, 2000, p. 140) e o campeo de exemplos A preparao do romance vol I: 2005, ps.: 8 (5) p. 73 / (29) p.123 / (30) p. 130 / (32 e 33) p. 133 / (38 e 39) p. 137 / (40) p. 138 / (41) p. 139 / (42) p. 140 / (43) p. 148 / (52) p. 162 / (54) p. 163 / (55) p. 164 / (63) p. 173 / (66) p. 177. E se ele conhecia Matsuo Bash (1644-1694), tambm conhecia seu Dirio de viagem Oku no hosomichi, gnero muito antigo e popular na literatura japonesa.
8 No livro h a seguinte observao: No fascculo distribudo por Roland Barthes, cada haicai est numerado. Repetimos essa numerao ao lado de cada poema, entre parnteses. Essa numerao permite, por vezes, a Barthes, mencionar apenas o nmero do haicai que ele est comentando. (BARTHES, 2005, p. 62) 250
(VEROSA, 1996, p. 50). E se por um lado no escreveu sobre tal dirio, por certo concordava que assim como Gide, o dirio em si no importava, importante foi a vida que teve ( a vida de Gide que uma obra, no o seu Dirio) (BARTHES, 2004, p.459). Mas por que as pessoas escrevem dirios? O estudioso da literatura japonesa, Donald Keene diz que "para os historiadores significa resgatar do esquecimento os insignificantes dias" 9 . Barthes diz algo parecido quando, dentro de mais um insignificante dia, relembra melhor o que no est escrito, mas que por intermdio do escrito vem tona toda uma maga de lembranas que no foram escritas: mas, coisa curiosa, ao rel-lo, aquilo que melhor revivia era o que no estava escrito (BARTHES, 2004, p. 457). E vai dizer tambm em um fragmento que quando um dirio era escrito sem repugnncia, chamavam-no um diaire :diarrhe e glaire (diarreia e ranho) (BARTHES, 1977, p.103). Mas como julgar? Quem ter mais ranho o dirio de um alcolatra que escreve como est vencendo a doena ou o dirio de um mdico que estuda de fora a doena que atormentou os que a conhecem por dentro? Nas salas de ajuda h toda uma troca de experincias feita de forma oral. Mas tambm h literaturas que reproduzem certas experincias, como se algumas pginas de dirio se tornassem pblicas para ajudar aqueles que esto passando por dificuldades, literatura funcional sim, mas tambm espontnea, fragmentada e muito interessante, verdadeiras novelas da vida real. Nas experincias lidas e ouvidas percebe-se que, grosso modo, a salvao uma escada de trs degraus, onde se recomenda o movimento de cima para baixo: primeiro o espiritual (Poder Superior), segundo o emocional (onde entra a
9 Tai Suzuki, professor da Universidade de Tokyo. Fonte: So Paulo Shimbun 07/02/2002. Disponvel em: http://www.fjsp.org.br/aquarela/ling_35a.htm. Acessado em 22/07/2010. 251
simbiose da sala com a troca de experincias com a sala do psicoterapeuta) e terceiro o fsico (onde entra o profissional da medicina com seu conhecimento qumico para aplacar/acalmar a fissura) 10 . Ento tal ranho e diarreia s existiriam quando quiserem classificar em bom ou mal determinado texto (ou fragmento de texto), ou usar na hora errada 11 . Preocupao tipicamente barthesianas: Mundo onde o Sintagma negado: nenhuma ligao possvel emergncia do imediato absoluto: o haicai = desejo imediato (sem mediao), portanto, a funo legal da Classificao (= sempre uma lei) perturbada Resta lembrar o quanto essa perturbao moderna, responde a uma preocupao atual: os Fragmentos, claro, mas tambm as artes do aleatrio (perigo: que o aleatrio no se torne seu prprio signo). (BARTHES, 2005, p. 68).
Talvez por isso os cofundadores de Alcolicos (Bill W. e Dr. Bob) nunca requereram para si qualquer tipo de honraria. Eles no queriam se tornar um signo que, em si, seria intil, nada deveria ser mai s sagrado que o simples desejo de parar a doena (adico): no ir primeira doze, s por hoje (programa eterno de 24Hs).
10 Os Doze Passos intercalam num vaivm, que estudamos, todos estes trs degraus: o espiritual (2 Viemos a acreditar que um Poder Superior a ns mesmos poderia devolver-nos sanidade, 3 Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebamos, 6 Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de carter, 7 Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeies, 11 Procuramos, atravs da prece e da meditao, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relao a ns, e foras para realizar), emocional (1 Admitimos que ramos impotentes perante o lcool que tnhamos perdido o domnio sobre nossas vidas, 8 uni o emocional ao fsico: Fizemos uma relao de todas as pessoas que tnhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados, 10 Continuamos fazendo o inventrio pessoal e, quando estvamos errados, ns admitamos prontamente) e o fsico (sem medicao, s ao: 9 Fizemos reparaes diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possvel, salvo quando faz-lo signifique prejudic-las ou a outrem, 12 Tendo experimentado um despertar espiritual, graas a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcolicos e praticar estes princpios em todas as nossas atividades). O 5 passo uma simbiose entre espiritual, emocional e fsico: Admitimos perante Deus (espiritual), perante ns mesmos (emocional) e perante outro ser humano (fsico), a natureza exata de nossas falhas. 11 A ordem (sentido) sugerida : de cima para baixo, ou seja, do espiritual para o fsico passando pelo emocional, mas dependendo do grau de sofrimento se faz necessrio uma interveno de urgncia no plano fsico (medicao) seguida de emocional (internao psiquitrica) e s depois que se passar a urgncia, o espiritual: agradecer a Deus. E como podemos observar o caminho inverso o caminho mais dramtico. 252
Esperamos ter mostrado por estas linhas de pesquisa que tanto a Escritura Curta quanto o Dirio ainda esto vivos e evoluindo. Proposta de se autoalimentar ainda existente, prova que ainda surpreendem. O que descobrimos nesta tese sobre o Fragmento Barthesiano foi que h outras palavras que merecem realmente especial ateno alm da nossa: Fragmento - mtodo; Gabarito Mental - lugar onde ocorre; Sutileza - estilo que a literatura absorve; Espontaneidade - sem ela, Barthes acredita que o texto perde; Hai-kai - prova fsica de que pode existir tudo isso junto. Palavras novas, nossa lista, descobrimos mas as pesquisamos pouco, pois o que nos interessava no momento era a primeira. E por isso acreditamos que ainda h muito o qu estudar dentro destas novas, e esperamos que elas criem inquietaes nos coraes dos futuros pesquisadores, assim como a fragmento inquietou a ns. E para concluir, maneira barthesiana, um fragmento de histria: reza a lenda que Galileu Galilei (1564-1642) aps sua sentena (que no o condenou morte, mas censurou todos os seus livros) ao sair do tribunal, que o obrigou a desmentir tudo em que acreditava, viu seus discpulos porta e ao perceber que estavam chorando disse a clebre frase:
" Eppur si muove!" Frammento Barthesiano Hai-kai si muove. 12
12 Contudo (ela) se move / Fragmento barthesiano / Hai-kai se move, traduzido do italiano. 253
7. Referncia bibliogrfica BARTHES, Roland. A preparao do romance Vol. I; texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Lger; traduo Leyla Perrone-Moiss. So Paulo, Martins Fontes, 2005. BARTHES, Roland. Aula, 10 Edio, Traduo e posfcio de Leyla Perrone- Moiss, So Paulo: Cultrix, 2002. BARTHES, Roland. Cmara clara: Nota sobre a fotografia. Trad. de Jlio Castaon Guimares, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. 10 ed., Trad. Izidoro Blikstein, So Paulo: Cultrix, 1993. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortncia dos Santos, 15 ed. So Paulo: Francisco Alves, 2000. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. So Paulo: Difuso Europeia do Livro, 1972. BARTHES, Roland. Novos ensaios crticos seguidos de o grau zero da escrita, So Paulo: Cultrix, 1974. BARTHES, Roland. O imprio dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. BARTHES, Roland. O bvio e o obtuso. Trad. Isabel Pascoal. Lisboa: Ed. 70, 1984. (Coleo signos, 42). BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3 ed., Trad. J. Guinsburg, So Paulo: Perspectiva, 2002. BARTHES, Roland - O rumor da lngua. Trad. Mario Laranjeira; reviso de traduo Andra Stahel M. da Silva. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleo Roland Barthes). BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone- Moiss, So Paulo: Cultrix, 1977-8. BARTHES, Roland. Crtica e verdade. Trad. Geraldo Gerson de Souza. So Paulo: Perspectiva, 1982. BUDISMO, Qualidade de vida especial N 17 (ISSN 16766253) uma publicao do Selo Qualidade de Vida. Distribuidor exclusivo para todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S.A (sem ano). 254
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8 BIBLIOGRAFIA DE ROLAND BARTHES (em ordem cronolgica) E FRAGMENTOS CONTENDO FRAGMENTO 264 vezes em 20 livros de Roland Barthes Incluindo suas derivaes: fragmenta, fragmentar, fragmentao, fragmentado, fragmentrio, fragmentariamente, fragment (Fr)
Le Der zro de lcriture, 1
Paris, d. Du seuil, Pierres vives, 1953
Essais critiques, 1
Paris, d. Du seuil, Tel Quel, 1964
Nouveaux essais critique, 1
Em livro de bolso com Le Der zro de lcriture Paris, d. Du seuil, Points, 1972
OBRA NMERO 1 UTILIZADA NA TESE
NOVOS ENSAIOS CRTICOS Seguidos de O GRAU ZERO DA ESCRITURA ditions du Seuil, 1953 e 1972 No Brasil EDITORA CULTRIX MCMLXXIV (1974).
1 A primeira obra respeita a ordem cronolgica, mas as duas seguintes no, por motivo de fuso em uma nica. Estas sero repetidas para efeito de localizao na ordem cronolgica proposta.
263
LA ROCHEFOUCULD: REFLEXES OU SENTENAS E MXIMAS
Essas duas leituras so contraditrias, pois na coletnea de mximas, o discurso fracionado permanece um discurso fechado; materialmente, por certo, preciso optar pela leitura por mximas ou pela leitura de enfiada e o efeito ser oposto, retumbante num caso, sufocante no outro; mas o futuro mesmo do descontnuo e da desordem da obra a mxima transformada, de certa forma, em arqutipo de todas as mximas; existe uma estrutura ao mesmo tempo nica e variada; em outras palavras, parece acertado colocar em lugar da crtica de desenvolvimento, da composio, da evoluo, eu chegaria quase a dizer do contnuo, uma crtica da unidade sentencial, de seu traado, numa palavra: de sua forma; sempre mxima, e no s mximas, quer se deve voltar. (p. 9) [...] As reflexes so fragmentos de discurso, textos desprovidos de estrutura e de espetculo; atravs delas, uma linguagem fluida, contnua, isto , exatamente o oposto desta ordem verbal, bastante arcaica, que rege o traado da mxima. (p. 10) J a mxima vai alm: agrada-lhe repetir um termo, sobretudo quando esta repetio pode marcar uma anttese: Chora-se para evitar a vergonha de no chorar; esta repetio pode ser fragmentria, permitindo que se repita uma parte da palavra sem repetir a palavra em si mesma: O interesse fala todas as lnguas e desempenha todos os papis, at mesmo o do desinteressado; voltando explicao dos lingistas, diremos que a oposio do sentido ainda mais flagrante por vir sustentada por um acidente verbal perfeitamente limitado: a oposio entre interesse e desinteressado vem apenas de um prefixo. O conceito est sem dvida em jogo; mas este jogo est a servio de uma tcnica muito antiga, a do sentido; de modo que escrever bem consiste em saber jogar com as palavras, o que leva fatalmente para mais perto do traado oposicional que rege fundamentalmente o nascimento de uma significao. (p. 18)
AS PRANCHAS DA ENCICLOPDIA
[...] Formalmente (o que muito perceptvel nas pranchas) a propriedade depende essencialmente de um certo fracionamento das coisas: apropriar-se fragmentar o mundo, dividi-lo em objetos, sujeitos ao homem na proporo mesma de seu descontnuo; pois no se pode separar sem terminar designando e classificando, e da nasce a propriedade. (p. 30) 264
[...] A Enciclopdia procede incessantemente a uma mpia fragmentao do mundo: entretanto, o que chega a encontrar ao trmino de todo este quebrar no o estado fundamental das causas puras; as mais das vezes, a imagem a obrigar a recompor um objeto que na verdade um contra-senso; uma vez dissolvida a primeira natureza, surge uma outra, to constituda quanto a primeira. Numa palavra: a fratura do mundo impossvel: basta um olhar o nosso para que o mundo se torne eternamente pleno ( 1 ). 1. Image, raison et draison, em: Lunivers de lEncyclopdie, 130 pranchas da Enciclopdia de Diderot e dAlembert, Libraires associes, 1964. (p. 41)
CHATEAUBRIAND: VIE DE RANCE
Nada mais sou, a no ser o tempo. Vie de Ranc.
Parece ser esta a experincia inicial da Vie de Ranc: uma paixo infeliz, no a de envelhecer, e sim a de ser velho, inteiramente transferido para o lado do tempo puro, para esta regio do profundo silncio (escrever no falar), de onde o verdadeiro eu aparece distante, anterior (Chateaubriand avalia a sua dor de ser pelo fato de poder agora citar-se). Compreende-se que, com um ponto de partida como este, Chateaubriand tenha sido compelido a imiscuir -se constantemente na vida do Reformador, de quem, entretanto, ele s pretendera ser um piedoso bigrafo. Estes entrelaamentos so banais: como possvel narrar algum sem se projetar nesse algum? Mas justamente: a interveno de Chateaubriand no , a bem dizer, de modo algum projetiva (ou pelo menos seu projeto muito particular); existem por certo algumas semelhanas entre Ranc e Chateanbriand; sem falar numa "estatura" comum, o afastamento mundano de Ranc (sua converso) sobrepe-se separao do mundo imposta (miticamente) a Chateaubriand pela velhice: ambos possuem um aps-vida; o de Ranc, porm, voluntariamente mudo, nele a recordao (de sua juventude brilhante, letrada, amorosa) s pode falar justamente pela voz de Chateaubriand que deve recordar pelos dois; da vm os entrelaamentos, que no so de sentimentos (Chateaubriand, na verdade, sente pouca simpatia por Ranc) mas sim de recordaes. A imiso de Chateaubriand na vida de Ranc, portanto, no de modo algum difusa, sublime ou imaginativa, "romntica" numa palavra (Chateaubriand no deforma, por exemplo, Ranc para nele se encaixar), sendo pelo contrrio fracionria e abrupta. Chateaubriand no se projeta, ele superimprime-se, mas como o discurso aparentemente linear, sendo-lhe 265
"difcil toda operao de simultaneidade, o autor s pode forar sua entrada, fragmentariamente, numa vida que no a sua; a Vie de Rance no uma obra bem vazada: uma obra partida (agrada-nos esta "queda" incessante); de maneira contnua, porm sempre breve, o fio do Reformador interrompido em benefcio de alguma sbita recordao do narrador: Ranc chega a Comminges depois de um tremor de terra: foi assim que Chateaubriand chegou a Granada; Ranc traduz Doroteu: Chateaubriand contemplou entre Jafa e Gaza o deserto onde viveu o santo; Bossuet e Ranc passeavam pela Trapa depois das Vsperas. "Ousei profanar com os passos que me ajudaram a sonhar Ren, o molhe onde Bossuet e Ranc conversavam sobre coisas divinas"; para afogar em suor os seus pensamentos, So Jernimo transportava sacos de areia s margens do Mar Morto. "Percorri eu prprio aquelas estepes, vergado ao peso do meu espr ito". Existe neste esmiuamento fracionado, que justamente o oposto de uma assimilao, e por conseguinte de uma "criao", de acordo com o sentido corrente, algo de no aplacado, como uma estranha ressaca: o eu inesquecvel: sem jamais absorv-lo, Ranc deixa periodicamente transparecer Chateaubriand: nenhum outro autor jamais se anulou to pouco;_ h algo de duro nesta Vie, toda feita de estilhaos, de fragmentos combinados mas no fundidos; Chateaubriand no se sobrepe a Ranc: ele o interrompe, prefigurando desta maneira a literatura do fragmento, na qual as conscincias inexoravelmente separadas (do autor e do personagem) j no adotam hipocritamente uma mesma voz compsita. Com Chateaubriand, o autor enceta a sua solido: o autor no o personagem: institui-se uma distncia que Chateaubriand assume sem a ela resignar-se; da todos aqueles retornos que conferem Vie de Ranc uma vertigem peculiar. (p.45-46)
A CABEA CORTADA A Vie de Ranc, com efeito, composta de maneira irregular; por certo, as quatro partes principais seguem, de um modo geral, a cronologia: juventude mundana de Ranc, sua converso, sua existncia na Trapa, sua morte; se descermos porm ao nvel dessas unidades misteriosas do discurso, ainda mal definidas pela estilstica e que so intermedirias entre a palavra e o captulo (por vezes uma frase, por vezes um pargrafo), teremos um permanente fracionamento do sentido, como se Chateaubriand no conseguisse nunca eximir-se - de voltar-se subitamente para "outra coisa" (ser ento o autor um desatento?); esta desordem se torna sensvel na apresentao dos retratos (muito numerosos na Vie de Ranc); nunca se sabe em que momento Chateaubriand vai falar de algum; a digresso imprevisvel, sua conexo com o fio da narrativa sempre tnue e repentina; assim, ofereceu-se a Chateaubriand diversas vezes a 266
oportunidade de falar sobre o cardeal de Retz por ocasio da juventude desafiadora de Ranc; no entanto, o retrato de Retz s aparece muito depois da Fronda, no momento de uma viagem de Ranc a Roma. A propsito daquele sculo XVII que ele tanto admirava, refere-se Chateaubriand queles "tempos em que nada tinha sido ainda classificado", sugerindo assim o barroco profundo do classicismo. A Vie de Ranc participa tambm de um certo barroco (tomada aqui esta expresso sem rigorismo histrico) na medida em que o autor concorda em combinar sem estruturar de acordo com os cnones clssicos; h em Chateaubriand uma exaltao da ruptura e da ramificao. Embora este fenmeno no seja pro riam ente estilstico, j que lhe possvel exceder os limites e uma simples frase, podemos atribuir-lhe um modelo retrico: o anacoluto, que ao mesmo tempo quebra da construo e o surgimento de um novo sentido. Como se sabe, no discurso ordinrio, o relacionamento das palavras est sujeito a uma certa probabilidade. Esta probabilidade corrente rarefeita por Chateaubriand; que probabilidade pode haver de aparecer a palavra alga na vida de Marcelle de Castellane? No entanto, Chateaubriand lana-nos de repente, a propsito da morte dessa jovem senhora: "As moas da Bretanha deixam-se afogar nas praias, depois de se atarem s algas de um rochedo". O jovem Ranc um prodgio em grego: que relao ter isto com a palavra luva? Contudo, em duas palavras, estabelece-se a relao (o jesuta Caussin pe prova o menino escondendo o seu texto com as luvas). Por intermdio este desvio ilustrado, o que irrompe no discurso sempre uma substncia surpreendente ( alga, luva). A palavra literria (visto ser dela que se trat a) aparece assim como um destroo imenso e suntuoso, como um resqucio fragmentrio de uma Atlntida onde as palavras, saturadas de cor, de sabor e de forma de qualidades em suma e no de idias, brilhariam como estilhaos de um mundo direto, impensado, que nenhuma lgica viria embaar, ou encher de tdio: no fundo, o sonho do escritor ver as palavras pendente como belos frutos da rvore indiferente da narrativa; poder-se-ia dar-lhe como smbolo o anacoluto surpreendente que leva Chateaubriand a falar em laranjeiras a propsito do cardeal de Retz ("ele viu em Saragoa um padre a caminhar sozinho por ter sepultado o seu paroquiano empestado. Em Valena, as laranjeiras compunham as paliadas dos caminhos, Retz respirava o ar que respirara Vannozia"). Uma mesma frase dirige vrios mundos (Retz e Espanha) sem se dar ao trabalho de interligIos. Graas com efeito a esses anacolutos preeminentes, o discurso se estabelece em profundidade: a lngua humana parece recordar, invocar, receber uma outra lngua (a dos deuses, como se diz no Crtilo). O anacoluto constitui por si s, com efeito, uma ordem, uma ratio, um princpio; o de Chateaubriand talvez 267
inaugure uma nova lgica, muito moderna, operada apenas pela extrema rapidez do verbo, sem a qual o sonho no teria podido investir nossa literatura. Esta parataxe desvairada, este silncio das articulaes acarreta, evidentemente, conseqncias muito srias para a economia geral do sentido: o anacoluto obriga a procurar o sentido, fazendo-o "estremecer" sem o deter; o sentido vagueia de Retz para as laranjeiras de Valena, sem chegar a fixar -se; uma nova rutura, um novo impulso leva-nos para Majorca onde Retz "ouviu mulheres piedosas junto grade do convento: estavam cantando"; qual a relao? Em literatura, tudo assim dado a entender, no entanto, tal como em nossa prpria vida no final no h nada que entender. (p. 47-48)
PIERRE LOTI: AZIYAD
[...] Contudo, de outra regio da literatura, ergue-se algum para nos dizer que sempre preciso reverter o desengano do nome prprio e transformar este retorno em trajeto de uma aprendizagem: o narrador proustiano, partindo da glria fontica dos Guermantes, encontra no universo da duquesa algo muito diverso daquilo que o esplendor alaranjado do Nome dava a entender, e foi ao inverter a decepo de seu narrador que Proust chegou a escrever a sua obra. Talvez possamos aprender a desiludir o nome de Aziyad de maneiraproveitosa, e depois de deslizar do nome precioso para a imagem triste de um romance fora de moda, remontar em direo idia de um texto: fragmento da linguagem infinita que nada relata mas pelo qual perpassa algo de indito e de tenebroso. (p. 100)
O GRAU ZERO DA ESCRITURA
O QUE A ESCRITURA?
[...] Por isso, o estilo sempre um segredo; mas a vertente sil enciosa de sua referncia no provm da natureza mvel e constantemente condicional da linguagem; seu segredo uma lembrana encerrada no corpo do escritor; a virtude alusiva do estilo no um fenmeno de velocidade, como na fala, onde o que no se diz permanece, mesmo assim, um nterim, mas um fenmeno de densidade, pois aquilo que se mantm erguido e profundo sob o estilo, congregado dura ou ternamente nas suas figurar, so os fragmentos de uma realidade completamente estranha linguagem. (P. 123) 268
ESCRITURAS POLTICAS
Como se v, trata-se de uma verdadeira tautologia, processo constante na escritura estalinista. Esta, com efeito, no visa a fundamentar uma explicao marxista dos fatos ou uma racionalidade revolucionria dos atos, mas a dar o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenaes: o contedo objetivo da palavra desviacionista de ordem penal. Se dois desviacionistas se renem, tornam-se fraccionistas, o que no corresponde a um delito objetivamente diferente, mas a uma agravao da penalidade. Pode-se distinguir uma escritura propriamente marxista (a de Marx e Lenine) e uma escritura do estalinismo triunfante (a das democracias populares); existe tambm certamente , uma escritura trotskista e uma escritura ttica, que , por exemplo, a do consumismo francs (substituio de classe operria por povo, e depois por gente honeta, ambigidade voluntria dos termos democracia, liberdade, paz, etc.). (p. 130)
A ESCRITURA E O SILNCIO
[...] Essa arte tem a estrutura mesma do suicdio: nela, o silncio um tempo potico homogneo, que aperta a palavra entre duas camadas e a faz explodir no como fragmento de um criptograma, mas sim como uma luz, um vazio, uma assassnio, uma liberdade. (sabe-se o quanto tal hiptese de um Mallarm assassino da linguagem deve a Maurice Blanchot.) essa linguagem mallarmeana Orfeu que s pode salvar o que ama renunciando a ele, mas que assim mesmo olha um pouco para trs; a Literatura s portas da Terra prometida, ou seja, s portas de um mundo sem Literatura, mas do qual caberia aos escritores dar testemunho. (p. 160)
269
Michelet par lui-mme Paris : d. du Seuil, 1954 crivains de toujours, 1954
OBRA NMERO 2 UTILIZADA NA TESE
MICHELET Miochelet / Roland Barthes.: traduo Paulo Neves, So Paulo: Companhia das Letras, 1991
[...] Nesse exrcito de reis , de prncipes, havia entre outros soberanos, o duque de Weirmar, e junto com ele, seu amigo, o prncipe do pensamento alemo, o clebre Goethe. Ele tinha vindo ver a guerra, e pelo caminho, no fundo de um furgo, escrevia os primeiros fragmentos do Fausto, que publicou ao retornar. (p. 161).
O DIRIO
Alguns fragmentos do Journal de Michelet foram publicados por Gabriel Monod em duas obras que dedicou a Michelet; mas o Journal intime, em sua integralidade, legado ao Institut pela viva de Michelet, no pde ser liberado antes de 1950. Essa publicao comeou em 1959, nas edies Gallimard, aos cuidados de Paul Viallaneix: crts de jeunesse (Dirio de 1820-3, Memorial, Dirio das idis); Journal, t. I(1828-48); e Journal,t. II (1849-60). (p. 196).
270
Mythologies, Paris, d. Du seuil, Pierres vives, 1957
OBRA NMERO 3 UTILIZADA NA TESE
MITOLOGIAS Traduo de Rita Buongermino e Pedro de Souza DIFUSO EUROPIA DO LIVRO 1972
O MITO COMO SISTEMA SEMIOLGICO
Efetivamente, como estudo de uma fala, a mitologia apenas um fragmento dessa vasta cincia dos signos que Saussure postulou h cerca de quarenta anos sob o nome de semiologia. A semiologia ainda no se constituiu. No entanto, desde o prprio Saussure, e por vezes independente do seu trabalho, todo um setor da pesquisa contempornea retoma incessantemente o problema da significao: a psicanlise, o estruturalismo, a psicologia eidtica, certas novas tentativas de crtica que Bachelard inaugurou, pretendem estudar o fato apenas na medida em que ele significa. Ora, postular uma significao, recorrer semiologia. No quero dizer com isto que a semiologia cubra integralmente todas as pesquisas; elas t m contedos diferentes. Mas tm um estatuto comum, so todas elas cincias dos valores; no se contentam em circunscrever o fato: definem-se e exploram-se como um valor da equilavncia. (p. 133)
A SIGNIFICAO
Falta examinar um ltimo elemento da signi ficao: a sua motivao. Sabe-se que, na lngua, o signo arbitrrio: nada obriga naturalmente a imagem acstica rvore a significar o conceito rvore: o signo, neste caso, imotivado. No entanto, este arbitrrio tem limites, que derivam das relaes associativas da palavra: a lngua pode produzir um fragmento do signo por analogia com outros signos (por exemplo diz-se aimable e no amable, por analogia com aime). Quanto significao mtica, no nunca completamente 271
arbitrria, sempre em parte motivada, contm fatalmente uma parte de analogia. Para que a exemplaridade latina coincida com a denominao do leo, uma analogia necessria: a concordncia do atributo: para que a imperialidade francesa se apodere do negro que faz a saudao militar do negro e a saudao militar do soldado francs. A motivao necessria prpria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: no existe mito sem forma motivada 7 ( 7 ) Do ponto de vista tico, o que incmodo no mito precisamente o fato da sua forma ser motivada. Pois, se existe uma sade da linguagem, o arbitrrio do signo que a fundamenta. O que repulsivo, no mito, o recorrer a uma falsa natureza, o luxo das formas significativas como esses objetos que decoram a sua utilidade com uma aparncia natural. Esse desejo de oferecer significao o peso, a cauo de toda a natureza, provoca uma espcie de nusea; o mito demasiado rico, e o que ele tem a mais , precisamente, a sua motivao. Esta nusea a mesma que sinto perante as artes que no decidem escolher entre a physis e a anti-physis, utilizando a primeira como ideal, e a segunda como economia. Eticamente, uma baixeza jogar simultaneamente nos dois campos. (p. 147)
A motivao fatal. No entanto, no deixa de ser muito fragmentria. Para comear no natural: a histria que fornece forma as suas analogias. Por outro lado, a analogia entre o sentido e o conceito sempre apenas parcial: a forma renuncia a muitos anlogos, conservando apenas alguns: conserva o telhado inclinado, as vigas aparentes do chal basco, abandona a escada, a granja, a ptina etc. devemos mesmo ir mais longe: uma imagem total excluiria o mito, ou pelo menos, obriga-lo-ia a consider-la apenas na sua totalidade: este ltimo caso o da m pintura, toda ela baseada no mito do cheio e do acabado ( o caso inverso, mas simtrico do mito do obsurdo, onde a forma mitifica uma ausncia; no caso da pintura mitifica um excesso de presena). Mas em geral, o mito prefere trabalhar com imagens pobres, incompletas, onde o sentido est j diminudo, disponvel para uma significao: caricaturas, pastiches, smbolos etc. (p. 148)
A BURGUESIA COMO SOCIEDADE ANNIMA
Este fenmeno de subtrao da denominao importante e preciso examin-lo um pouco mais detalhadamente. Politicamente, a hemorragia do nome burgus produz-se atravs da idia de nao. Foi uma idia progressiva, 272
em tempos, que serviu para excluir aristocracia: hoje, burguesia diluiu-se na nao, mesmo que, para isso, sej a necessrio rejeitar os elementos que ela considera algenos (os comunistas). Este sincretismo dirigido permite que a burguesia recolha a cauo numrica dos seus aliados temporrios: todas as classes intermedirias, logo informes. Um uso prolongado no conseguiu despolitizar profundamente a palavra nao; o substrato poltico permanece, bem prximo, prestes a manifestar-se subitamente: existem, na Cmara, partidos nacionais, e o sincretismo nominal ostenta assim o que pretendia esconder: uma disparidade essencial. Assim, o vocabulrio poltico da burguesia j que existe um universal: nela, a poltica j uma representao, um fragmento de ideologia. (p. 159)
Existem, sem dvida, certas revoltas contra a ideologia burguesa. Constituem aquilo a que se chama, de um modo geral, a vanguarda. Mas tais revoltas so socialmente limitadas, permanecem recuperveis. Para comear, porque provm de um fragmento da prpria burguesia, de um grupo minoritrio de artistas e de intelectuais, sem outro pblico que a prpria classe que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para se poderem exprimir. E, demais, estas revoltas inspiram-se sempre numa distino muito ntida entre o burgus tico e o burgus poltico: o que a vanguarda contesta o burguesismo da arte e da moral; , como nos belos tempos do romantismo, o merceeiro, o filistino; mas contestao poltica, nenhuma 18 . (18) Vale a pena assinalar que os adversrios ticos (ou estticos) da burguesia se mantm, na maioria, indiferentes, seno mesmo ligados s suas determinaes polticas. Inversamente os adversrios polticos da burguesia omitem a condenao profunda das suas representaes: chegam mesmo, freqentemente, a colaborar nelas. Esta ruptura entre os ataques proveitosa para a burguesia, permite-lhe confundir o seu nome. Ora, a burguesia s deveria ser compreendida como sntese das suas determinaes e das suas representaes. (p. 160).
273
Sur Racine, Paris, d. Du seuil, Pierres vives, 1963
OBRA NMERO 4 UTILIZADA NA TESE
SOBRE RACINE Sobre Racine / Roland Barthes: traduo Ivone Castilho Benedetti: reviso da traduo Mrcia Valria Martinez de Aguiar. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes 2008
[...] Esta a terceira funo do espao exterior: manter o ato numa espcie de quarentena, em que s pode penetrar uma populao neutra, encarregada de fazer a triagem dos acontecimentos, de extrair de cada um deles a essncia trgica e de s trazer cena fragmentos de exterior purificados sob o nome de notcias, enobrecidos sob o nome de relatos (batalha, suicdios, retornos, assassinatos, festins, prodgios). (p. 8-9).
[...] A relao de autoridade, ao contrrio, constante e explcita; no afeta apenas um mesmo par ao longo de uma tragdia; pode revelar -se fragmentariamente aqui e ali; encontrada em formas variadas, ampliadas, s vezes quebradas, mas nem sempre reconhecveis: por exemplo, em Bajazet, a relao de autoridade se desdobra: Amurat tem todo o poder sobre Roxana, que tem todo o poder sobre Bajazet. (p. 31).
[...] Agrada-lhe porque apresenta um sentido descontnuo, bem de acordo com aquela vontade de antologia de que acabo de falar; e incomoda-o porque esse sentido fragmentrio, antolgico, por ela recitado, ou seja, sustentado por uma respirao artificial. (p. 172).
Essa arte pontilhista baseia-se numa iluso geral: no s o ator acredita que seu papel correlacionar uma psicologia e uma lingstica, em conformidade com o preceito inextirpvel de que as palavras traduzem o 274
pensamento, como tambm imagina essa psicologia e essa lingstica fragmentada por natureza, composta de elementos descontnuos que se correspondem de uma ordem outra de se corresponder entre si: para ele, cada palavra se torna uma tarefa (e que trabalho ele tem), quer a todo custo manifestar uma analogia entre substncia musical e o conceito psicolgico. (p. 173).
Essa fragmentao das significaes tem o objetivo de mastigar, de algum modo, o trabalho intelectual do ouvinte: o ator se acredita encarregado de pensar por ele. (p. 173).
Esse sucesso decorre de duas desmistificaes: Cuny no fragmenta o sentido, no canta o alexandrino; sua dico definida por um estar-ali puro e simples da fala. (p. 179).
[...] Fora dos sistemas, mil abordagens de um saber e de uma engenhosidade admirveis, mas, ao que parece, como derradeiro pudor, sempre fragmentrias, pois o historiador da literatura encerra o assunto assim que se aproxima da histria verdadeira: de um continente ao outro, trocam-se alguns sinais, ressaltam-se algumas conivncias. (p. 186-187).
[...] Em A terra bebe o sangue de Erecteu haver um colorido mitolgico, um rasgo preciosista ou um fragmento de fantasia propriamente raciniana? (p. 202)
275
lements de smiologie, Em livro de bolso com Le Der zro de lcriture, Paris, Gonthier, 1965
OBRA NMERO 5 UTILIZADA NA TESE
ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA 10 EDIO Traduo de: Izidoro Blikstein EDITORA CULTRIX, So Paulo, 1993
INTRODUO
Assim, apesar de trabalhar, de incio, com substncias no-lingsticas, o semilogo levado a encontrar, mais cedo ou mais tarde, a linguagem (a verdadeira) em seu caminho, no s a ttulo de modelo mas tambm a ttulo de componentes, de mediao ou de significado. Essa linguagem, entretanto, no exatamente a dos lingistas: uma segunda linguagem, cujas unidades no so mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso: estes remetem a objetos ou episdios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela. (p. 12)
II.2 O Significado
[...] Voltamos assim justamente a uma definio puramente funcional: o significado um dos dois relata do signo; a nica diferena que o ope ao significante que este um mediador. No essencial, a situao no poderia ser diferente em semiologia, em que objetos, imagens, gestos etc., tanto quanto sejam significantes, remetem a algo que s dizvel por meio deles, salvo esta circunstancia segundo a qual os signos da lngua podem encarregar -se do significado semiolgico; diremos, por exemplo, que tal suter significa os longos passeios de outono nos bosques; neste caso, o significado no somente mediatizado por seu significante indumentrio ( o suter), mas tambm por um fragmento de palavra ( o que uma grande vantagem para manej-lo); poderamos dar o nome de isologia ao fenmeno pelo qual a lngua cola, de 276
modo indiscernvel e indissocivel, seus significantes e significados, de maneira a reservarmos o caso dos sistemas no-islogos (sistemas fatalmente complexos), em que o significado pode simplesmente ser justaposta a seu significante. (p. 46-47)
III.2.3.
[...] A prova de comutao consiste em introduzir artificialmente uma mudana no plano de expresso (significante) e em observar se essa mudana acarreta uma modificao correlativa do contedo (significados); trata-se, em suma, de criar uma homologia arbitrria, isto , um duplo paradigma, num ponto do texto sem fim para verificar se a substituio recproca de dois significantes leva ipso facto substituio recproca de dois significados; se a comutao dos dois significantes produzir uma comutao dos significados, estaremos certos de possuir, no fragmento de sintagma submetido prova, uma unidade sintagmtica: o primeiro signo foi recortado. (p. 69-70)
III.2.4.
A prova de comutao, em princpio 69 , unidades significativas, isto , fragmentos de sintagma dotados de um sentido necessrio; so ainda, por ora, unidades sintagmticas, j que no as classificamos ainda: mas certo que j so tambm unidades sistemticas, pois cada uma delas faz parte de um paradigma virtual:
Sintagma a b c etc.
a b c
a b c Sistema
(69) Em princpio, pois preciso reservar o caso das unidades distintivas da segunda articulao; cf. infra, mesmo pargrafo. (p.71)
277
[...] No possvel, enfim, que encontremos sistemas de certo modo errticos, nos quais espaos inertes de matria suportassem aqui e acol no somente descontnuos mas ainda separados: os sinais do cdigo de transito em ato so separados por longos espaos insignificantes (fragmentos de estradas ou ruas); poderamos falar ento de sintagmas (provisoriamente) mortos 73 .
(73) talvez o caso geral dos signos de conotao (infra, cap. IV). (p. 73)
III.3.7.
[...] Outra importante direo a ser explorada: a rima; a rima forma uma esfera associativa no nvel do som, isto , dos significantes: h paradigmas de rimas; em relao a esses paradigmas, o discurso rimado evidentemente constitudo por um fragmento de sistema estendido em sintagma; a rima coincidiria, em suma, com uma transgresso da lei de distancia do sintagma-sistema (lei de Trnka); ela corresponderia a uma tenso voluntria entre o afim e o dessemelhante, a uma espcie de escndalo estrutural. (p. 90-91)
IV DENOTAO E CONOTAO
IV.2
[...] A conotao, por ser ela prpria um sistema, compreende significantes, significados e o processo que une uns aos outros (significao), e o inventrio destes trs elementos que se deveria primeiro empreender para cada sistema. Os significantes de conotao, que chamaremos conotadores, so constitudos por signos (significantes e significados reunidos) do sistema denotado; naturalmente, vrios signos denotados podem reunir -se para formar um s conotador se for provido de um s significado de conotao; ou melhor, as unidades do sistema conotao no tm forosamente o mesmo tamanho que as unidades do sistema denotado; grandes fragmentos de discurso denotado podem constituir uma nica unidade do sistema conotado ( o caso, por exemplo, do tom de um texto, feito de mltiplas palavras, mas que remete, todavia, a um 278
s significado). Seja qual for o modo pelo qual a conotao vista a mensagem denotada, ela no a esgota: sempre sobra denotado (sem o qu o discurso no seria possvel) e os conotadores afinal so sempre signos descontnuos, errticos, naturalizados pela mensagem denotada que os veicula. Quanto ao significado de conotao, tem um carter ao mesmo tempo geral, global e difuso: , se se quiser, um fragmento de ideologia: o conjunto das mensagens em portugus remete por exemplo, ao significado Portugus; uma obra pode remeter ao significado Literatura; estes significados comunicam-se estreitamente com a cultura, o saber, a Histria; por eles que, por assim dizer, o mundo penetra o sistema; a ideologia seria, em suma (no sentido hjelmsleviano) dos significados de conotao, enquanto a retrica seria a forma dos conotadores. (p. 96-97).
279
Critique et vrit, Paris, d. Du seuil, Tel Quel, 1966
OBRA NMERO 6 UTILIZADA NA TESE
CRTICA E VERDADE Equipe de realizao: Leyla Perrone-Moises, traduo; Geraldo Gerson de Souza, reviso; Moyss Baumstein, capa e trabalhos tcnicos. EDITORA PERSPECTIVA 1982
PREFCIO
[...] O tempo, talvez: reunir textos antigos num livro novo querer interrogar o tempo, pedir-lhe que d sua resposta aos fragmentos que vm do passado;mas o tempo duplo, tempo da escritura e tempo da memria, e essa duplicidade chama por sua vez um sentido seguinte: o prprio tempo uma forma.(p. 16)
[...] ; a ironia, que a forma que o autor d a seu prprio distanciamento; o fragmento, ou se se preferir, a reticncias, que permite reter o sentido para melhor deix-lo escapar em direes abertas. (p. 23)
[...] Ora, geralmente a essa dupla necessidade que corresponde a fundao de um cdigo: o escritor no tenta nunca mais do que transformar seu Eu em fragmento de cdigo. preciso aqui, uma vez mais, entrar na tcnica do sentido, e a lingstica, uma vez mais, nos ajudar. (p. 23)
A ATIVIDADE ESTRUTURALISTA
A atividade estruturalista comporta duas operaes tpicas: desmontagem e arranjo. Desmontar o primeiro objeto, o que dado atividade de simulacro, encontrar nele fragmentos mveis cuja situao diferencial gera certo sentido; o fragmento no tem sentido em si, mas , entretanto, tal que a menor variao 280
trazida a sua configurao produz uma mudana do conjunto: um quadrado de Mondrian, uma srie de Pousseur, um versculo do Mbile de Butor, o mitema em Levi-strauss, o fonema para os fonlogos, o tema em tal, crtico literrio, todas essas unidades (quaisquer que sejam sua estrutura ntima e sua extenso, bem diferentes segundo o caso) s tm existncia significativa por suas fronteiras: as que separam das outras unidades atuais do discurso (mas este um problema de arranjo), e tambm as que as distinguem de outras unidades virtuais, com as quais elas formam uma certa classe (que os lingistas chamam de paradigma);[...] (. 52-53)
ESTRUTURA DA NOTCIA 1
(1) Em francs, Structure du fait divers.A expresso fait divers no tem correspondente em portugus. Designa a rubrica sob a qual os jornais publicam os acidentes, os pequenos escndalos etc. (Petit Larousse). ( N. da T.)
[...]; em suma, o assassinato escapa notcia comum cada vez que ele exgeno, vindo de um mundo j conhecido; pode-se dizer ento que ele no tem estrutura prpria, suficiente, pois ele nunca mais do que o termo manifesto de uma estrutura implcita que a ele preexiste: no h informao poltica sem durao, pois a poltica uma categoria transtemporal; o mesmo acontece, alis, com todas as notcias vindas de um horizonte nomeado, de um tempo anterior: elas nunca podem construir um fait divers 2 ; literariamente so fragmentos de romances 3 , na medida em que todo romance ele prprio um longo saber do qual o acontecimento que se produz nunca mais que uma simples variante. (2) Os fatos que pertencem ao que se poderia chamar de gestos de estrelas ou de personalidades nunca so faits divers, porque implicam, precisamente, uma estrutura de episdios. (3) Em certos sentidos, justo dizer que a poltica um romance, isto , uma narrativa que dura, contanto que se personalizem os atores.(p. 58)
LITERATURA LITERAL
[...] Se nos lembrarmos de que o desgnio profundo de Robbe-Grillet prestar conta de toda a extenso objetiva, como se a mo do romancista seguisse estreitamente seu olhar numa apreenso exaustiva das linhas e das superfcies, compreenderemos que a volta de certos objetos, de certos fragmentos do espao, privilegiados por sua prpria repetio, constitui por si mesma uma falha, o que 281
se poderia chamar de um primeiro ponto de apodrecimento no sistema ptico do romancista, fundado essencialmente sobre a contigidade, a extenso e o alongamento. (p. 96)
UMA CONCLUSO SOBRE ROBBE-GRILLET?
Entretanto essas formas vazias atraem irresistivelmente um contedo, e vem-se pouco a pouco, na crtica, na prpria obra do autor, tentaes de sentimentos, voltas arqutipas, fragmentos de smbolos, em suma, tudo o que pertence ao reino do adjetivo, insinuar-se no soberbo estar-ali das coisas. (p. 108)
LITERATURA E DESCONTNUO
[...] A parfrase pois a operao razovel de um crtico que exige do livro, antes de tudo, que ele seja contnuo: acaricia-se o livro, assim como se pede ao livro que acaricie com sua fala contnua a vida, a alma, o mal etc. Isto explica que o livro descontnuo no tolerado a no ser em empregos bem reservados: ou como recolha de fragmentos (Herclito, Pascal), o carter inacabado da obra (mas trata-se no fundo de obras inacabadas?) corroborando em suma a contrrio a excelncia do contnuo, fora do qual h por vezes esboo, mas nunca perfeio; ou como coletnea de aforismos, pois o aforismo um pequeno contnuo pleno, a afirmao teatral de que o vazio horrvel. (p. 114-115)
A ordem fragmentria de Mbile tem um outro alcance. Destruindo no discurso a noo de parte, ele remete a uma mobilidade infinitamente sensvel de elementos fechados. Quais so esses elementos? Eles no tm forma em si; no so idias ou imagens, ou sensaes ou sensaes, ou mesmo notaes, pois no saem de um projeto de restituio do vivido; trata-se aqui de uma enumerao de objetos sinalticos, ali de um recorte de imprensa, mais adiante de um pargrafo de livro, de uma citao de folheto, alm, afinal, menos do que tudo isso, o nome de um sorvete, a cor de um automvel ou de uma camisa, ou mesmo um simples nome prprio. Dir-se-ia que o escritor procede a tomadas, a levantamentos variados, sem nenhuma ateno para com sua origem material. Entretanto essas tomadas sem forma estvel, por mais anrquicas que paream no nvel do detalhe (j que, sem transcendncia retrica, elas no passam 282
precisamente de detalhes), reencontram paradoxalmente uma unidade de objeto no nvel mais largo que existe, o mais intelectual, poderamos dizer, que o da histria. (p. 118-119)
[...] Mbile no faz mais, em suma, do que retomar essa instituio americana para os americanos e represent-la; o livro tem como subttulo: estudo para uma representao dos Estados Unidos, e tem realmente uma finalidade plstica: visa a igualar um grade quadro histrico (mais exatamente: trans-histrico), no qual os objetos, em sua prpria descontinuidade, so ao mesmo tempo fragmentos do tempo e primeiros pensamentos. (p. 120)
[...] O contnuo de Mbile repete, mas combina diferentemente o que repete. Disso decorre que o primeiro nunca volta ao que exps, enquanto o segundo volta, lembra: o novo sempre acompanhado do antigo; , se se quiser, um contnuo fugado, no qual os fragmentos identificveis entram sempre de novo na corrida. (p. 122)
[...] Michel Butor concebeu seus romances como uma nica e mesma pesquisa estrutural cujo princpio poderia ser o seguinte: experimentando entre eles fragmentos de acontecimentos que o sentido nasce, transformado incansavelmente esses acontecimentos em funes que a estrutura se edifica: como o bricoleur, o escritor (poeta, romancista ou cronista) s v o sentido das unidades inertes que tem diante de si relacionando-as: a obra tem pois aquele carter ao mesmo tempo ldico e srio que marca toda grande questo: um quebra-cabeas magistral, o quebra-cabeas do melhorpossvel. (p. 123-124)
DE UM LADO E DE OUTRO
[...] IMAGINA-SE QUE Lucien Febvre teria gostado deste livro audacioso, j que ele devolve histria um fragmento de natureza e transforma em fato de civilizao o que at ento considervamos como um fato mdico: a loucura. (p. 140)
LITERATURA E SIGNIFICAO 1
(1) Respostas a um questionrio elaborado pela revista Tel Quel, em 1963. 283
[...] Uma pergunta vaga (do gnero daquelas que uma filosofia do absurdo podia fazer ao mundo) tem muito menos fora (agita menos) do que uma pergunta cuja resposta est bem prxima mas no entanto parada (como a de Brecht): em literatura, que uma ordem da conotao, no h pergunta pura: uma pergunta nunca mais do que sua prpria resposta esparsa, dispersa em fragmentos entre os quais o sentido se difunde e foge ao mesmo tempo. (p. 168)
284
Systme de la mode, Paris, d. Du seuil, 1967
OBRA NMERO 7 UTILIZADA NA TESE
SISTEMA DA MODA; Traduo Lineide do Lago Salvador Mosca; Reviso e superviso Isaac Nicolau Salum. Ed. Nacional: Ed. Da Universidade de So Paulo, 1979
1.7 O corpus
Uma vez escolhida a estrutura oral, sob e que corpus se deve trabalhar? At aqui s se falou dos jornais de Moda; de um lado, porque as descries sadas da literatura propriamente dita, embora muito importantes em muitos dos grandes escritores (Balzac, Michelet, Proust), so fragmentrias demais, de poca histrica varivel, para que se possa ater a elas, e, de outro lado, as descries fornecidas pelo catlogo de grandes lojas podem ser facilmente assimiladas s descries da Moda. (p. 10)
1. 12. Funo de nfase
[...] O vesturio descrito um vesturio fragmentrio. (p. 14) [...] Aplica-se ao vesturio, a ordem da lngua separada o essencial do acessrio, mas uma ordem severa: envia o acessrio ao nada do inominado. (p. 15)
1. 13. Finalidade da descrio
[...] A imagem suscita uma fascinao, a palavra, uma apropriao; a imagem plena, um sistema saturado; a palavra fragmentria, um sistema disponvel. Resumidas, a segunda serve para desapontar a primeira. (p. 17)
285
2. ARELAO DE SENTIDO
2.1. A prova da comutao
[...] Assim, por aproximaes sucessivas, pode-se, por um lado, esperar apanhar os menores fragmentos de substancia responsveis por uma mudana de leitura ou uso, e, conseqentemente, definir esses fragmentos como unidades estruturais, e, por outro lado, observando o que varia conjuntamente, estar em condies de estabelecer um inventrio geral das variaes concomitantes, e, conseqentemente, de determinar, no conjunto da estrutura dada, um certo nmero de classes comutativas. (p.19)
3.13. Caso dos conjuntos A
[...] Se, por exemplo, o jornal fragmenta o significante, se ele apresenta um significado mundano no meio dos seus significantes vestimentrios, deve-se- restabelecer a separao dos domnios ao ler; um chapu jovem deixa ver a testa, reduzir-se-, sem risco de alterar o sentido vestimentrio: chapu deixando ver a testa = jovem. (p. 52)
3. 14. Caso dos conjuntos B
[...] Mas, assim como na lngua significantes distintos podem remeter ao mesmo significado (sinnimos), no vesturio escrito do tipo B lcito prever que a massa significante se fragmente em unidades de significao que o jornal no atualiza ao mesmo tempo (a no ser dispensando-as de uma pgina outra), e que constituem, por conseguinte, unidades distintas. (p. 53)
I. BUSCA DA UNIDADE SIGNIFICANTE
5.1. Inventrio e classificao
Vimos que se estava no direito de tratar como significante do cdigo vestimentrio todo enunciado que o jornal consagra ao vesturio, contanto que ele seja compreendido numa s unidade de significao. Do simples tailleur cala cinturada por um leno e encurtada at acima do joelho, a colheita promete 286
ser imensa e aparentemente anrquica; talvez s se colher uma palavra (a Moda est no azul), talvez um conjunto muito complicado de notaes (uma cala cinturada, etc,). Ora, nesses enunciados de comprimento e de sintaxe variados, preciso descobrir uma forma constante; do contrrio, no se saber nunca como o sentido vestimentrio produzido. E essa ordem deve satisfazer a duas exigncias metdicas: deve-se, primeiramente., poder dividir o enunciado do significante em espaos to reduzidos quanto possvel, como se todo enunciado de Moda fosse uma cadeia na qual importa localizar os elos; deve-se, em seguida, comparar entre si esses fragmentos, de espao (sem mais se preocupar com o enunciado de que eles fazem parte), de maneira a determinar segundo que oposies eles produzem sentidos diferentes. Para falar no vocabulrio da Lingustica, necessrio fixar, num primeiro momento, quais so as unidades sintagmticas (ou espaciais) do vesturio escrito e, num segundo momento, quais so as oposies sistemticas (ou virtuais). A tarefa , portanto, dupla: de inventrio e de classificao 1 . 1. pelo menos a ordem lgica da pesquisa. Mas K. Togeby, Structure immanente, p. 8, j observou que, praticamente, necessrio muitas vezes referir-se ao sistema para estabelecer o sintagma. o que, em parte, seremos obrigados a fazer. (p. 57)
IV. RELAES DOS ELEMENTOS DA MATRIZ
5.9. Sintagma e sistema
J ficou indicado que o objeto e o suporte so sempre objetos materiais (vestido, traje, gola, jab, etc.), ao passo que a variante um valor imaterial. Essa disparidade corresponde a uma diferena estrutural: o objeto e o suporte so fragmentos de espao vestimentrio,so pores naturais, por assim dizer, de sintagmas; a variante, ao contrrio, uma reserva de virtudes, das quais somente um termo atualizado no nvel do suporte que ela afeta. (p. 64-65)
4. 10. Solidariedade dos elementos da matriz
Ao contrrio, de ponto de vista da lngua, entre o suporte e a variante que a ligao mais estreita, exprimindo-se, mais freqentemente, pelo que A, Martinet chama sintagma autnomo. mais fcil, com efeito, amputar 287
terminologicamente a matriz de seu objeto do que de sua variante: em um chapu de abas erguidas, o fragmento abas erguidas tem um sentido (lingstico) suficiente, ao passo que o fragmento um chapu de abas... apresenta um sentido suspenso, e, como, alm disso, c manejo operatrio do suporte e da variante muito freqente, chamar-se- trao essa parte da matriz que se compe do suporte e da variante. (p. 66)
9. 24. Variante de fixao (XIX)
O nmero de termos plenos que entram em oposio significante necessariamente livre, uma vez que se pode sempre inventar ou retomar um processo de fixao que no foi ainda notado. Essa variante , pois, uma das menos estruturadas que existem (no pode reduzir-se a uma alternativa, mesmo complexa) e v-se muito bem porqu: que, na realidade, ela atinge variao de espcie; o amarrado esta muito prximo do n. A prpria lngua participa dessa ambigidade, j que ela emprega um nico termo para designar o ato de ligar e o objeto que serve de agente para esse ato (a palavra attache, "ligao", "ligadura"). Trata-se bem, entretanto, de uma verdadeira variante, na medida em que, precisamente, no se pode confundir um ato com um objeto. A assero de espcie, como j se viu, ope fragmentos de matria (n, boto, laos). A variante de fixao ope modos imateriais, estados desprendidos de seu suporte: a diferena que h entre passadeira e com passadeira; alm disso, como gnero-suporte, a ligao pode muito bem no ter funo alguma de fixao; um n, botes podem ser postios. Um vestido com botes no forosamente um vestido abotoado. (p. 135)
10. VARIANTES DE POSIO
I. VARIANTES DE POSIO 10.1 Variantes de posio horizontal (XXI), vertical (XXII), transversal (XXIII) e de orientao (XXIV)
[...] Convm conservardes sempre o valor adverbial: de lado, e mesmo dos lados, na frente (e, eventualmente, nas costas) so localizaes imateriais que no se devem confundir com os gneros correspondentes. Estes que so fragmentos de matria vestimentria (lado, frente, costa). Podem-se agrupar, no seguinte quadro, as quatro variantes de posio:
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XXI. Posio horizontal XXII. Posio transversal mediano meia altura justo em comprimento ao longo em altura ------------ XXIV. Orientao horizontal vertical oblquo XXIT. Posio vertical no alto alto (adv) pousado embaixo baixo (adv) afundado na frente frente pela frente detrs atrs por trs de lado dos lados no lado circular ao redor em guirlanda 1 2 NEUTRO COMPLEXO direita reto esquerda esquerda (mediano) no meio em largura dos dois lados
(p. 170)
2. Estrutura do significado
13. AS ESTRUTURAS SEMNTICAS 13.4. Unidades usuais e unidades originais
Entretanto, as unidades mveis (isto , repetidas) no esgotam a totalidade dos enunciados do significado; certos enunciados ou certos fragmentos de enunciados so constitudos por notaes nicas, pelo menos na escala do corpus; so, por assim dizer, hapax. legomena*; esses hapax so, tambm eles, unidades semnticas, pois esto ligados a um significante global e participam do sentido. Ter-se-o, pois, duas espcies de unidades semnticas, umas mveis e repetidas (cham-las-emos unidades usuais), outras constitudas por enunciados ou resduos de enunciados que no do margem repetio (cham-las-emos unidades originais'). * Expresso grega usada na crtica textual ou na exegtica para designar um fato lingstico. Palavra ou expresso que ocorre uma s vez no autor ou na documentao da lngua. Significa "dito ou escrito" uma nica vez. Seu uso no plural hapax legomena s se d quando se caracteriza o fenmeno. (N. T.) (P. 184)
289
13.8. A relao AUT
Admitidas essas unidades, podemos contudo tentar constitu-las em listas de oposies pertinentes. Valer-nos-emos, uma vez mais, dos paradigmas que o prprio jornal fornece, cada vez que ele enuncia o que j foi chamado, a respeito do significante (pois trata-se, evidentemente, dos mesmos exemplos), de uma dupla variao concomitante. Em flanela listrada ou. "twill" de bolas para a manh ou para a noite, fica atestado, pela prpria variao do significante, que entre "noite" e "manh" h uma oposio pertinente e que esses dois termos fazem parte do mesmo paradigma semntico; constituem, por assim dizer, um fragmento de sistema estendido sobre o plano sintagmtico. Neste plano, a relao que os une a da disjuno exclusiva: a essa relao particularssima, pois que rene sintagmaticamente os termos de um mesmo sistema, chamaremos relao AUT 13 . 13. Por oposio relao VEL (cf. cap. seguinte); somos obrigados a recorrer a vocbulos latinos, pois em francs OU , ao mesmo tempo, inclusivo e exclusivo.
14.8. Por que a neutralizao?
Do sintagma ao sistema, os significados de Moda parecem, assim, o objeto de um passe mgico, cujo truque se deve ver agora. Em toda estrutura significante, o sistema uma reserva ordenada de signos e implica, por isso mesmo, a mobilizao de um certo tempo: o sistema uma memria. Passar do sintagma ao sistema destinar fragmentos de substncia a uma permanncia, a uma durao; inversamente, passar do sistema ao sintagma , se assim podemos dizer, atualizar uma lembrana. (p. 198)
15. O SIGNO VESTIMENTRIO I. DEFINIO 15.1 Carter sinttico do signo vestimentrio O signo a unio do significante e do significado. Essa unio, como clssico em Lingstica, deve ser examinada do ponto de vista de sua arbitrariedade e de sua motivao, isto , de seu duplo fundamento, social e natural. Mas, antes de mais nada, importa lembrar que a unidade do signo vestimentrio (isto , do signo do cdigo vestimentrio, despojado de seu aparato retrico) definida pela singularidade da relao significante, no pela 290
singularidade do significante ou pela do significado 1 . Em outros termos, o signo vestimentrio, embora reduzido unidade, pode compreender vrios fragmentos, de significantes (combinaes de matrizes e elementos da prpria matriz) e vrios fragmentos de significados (combinaes de unidades semnticas). Importa, "pois, no procurar fazer corresponder esta parcela do significante quela do significado. Pode-se, certamente, presumir que em cardig de gola aberta = esporte a abertura (da gola) que tem alguma afinidade com o esporte 2 . 1. Cf,, supra, 4, V. 2. Isto formalmente provado pela dupla variao concomitante: cardig de gola aberta ou fechada = esporte ou social.
20.6. Real utpico e utopia real
[...] Observar-se- aqui, entretanto, uma reviravolta i: na medida em que a retrica de Moda fabula que ela reencontra um certo real do mundo contra seu sistema terminolgico, o qual, por sua vez, fica improvvel. Produz-se aqui uma curiosa ina entre o real e o imaginrio, o possvel e o utpico. As unidades semnticas (fim de semana, noite, compra) so ainda no nvel terminolgico fragmentos do mundo real, mas esses fragmentos so j transitrios e ilusrios, pois o mundo no d nenhuma sano mundana relao de este suter e do fim de semana: ele no o realiza no seio de um sistema real. Assim, no seu nvel literal, o real da Moda puramente assertivo ( o que se compreende por improvvel). (p. 267)
IV. O DUPLO SISTEMA DA MODA
20.11. Ambiguidade tica da Moda
[...] Para se abrir ao mundo, importa alienar-se; para compreend-lo, importa dele se aiastar. Uma antinomia profunda separa o modelo das condutas produtoras e o das condutas reflexivas, os sistemas de aes e os sistemas de sentidos. Pela divergncia de seus conjuntos A e B, a Moda vive essa dupla postulao: ora ela enche seu significado com fragmentos mundo e o transforma em sonho de usos, de funes, de razes, ora ela o esvazia e se reduz ordem de uma estrutura desembaraada de toda substncia ideolgica. Sistema "naturalista" (nos conjuntos A) ou sistema "lgico" (nos conjuntos B), a Moda viaja assim de um sonho a outro, conforme o jornal multiplica ou, ao contrrio, 291
decepciona os significados mundanos. Parece que a imprensa de forte pblico popular pratica uma Moda naturalizada, rica em. funes-signos, e que a imprensa mais "aristocrtica" que pratica, de preferncia, a Moda pura. (p. 273)
292
S/Z, Paris, d. Du seuil, Tel Quel, 1970
OBRA NMERO 8 UTILIZADA NA TESE
S/Z Traduo La Novaes, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992
VI. Passo a passo [...] O comentrio de um nico texto no uma atividade contingente, posta sob o libi tranquilizador do "concreto": o texto nico vale por todos os textos da literatura, no porque os representa (os abstrai e os i guala), mas porque a prpria literatura sempre um nico texto: o texto nico no acesso (indutivo) a um Modelo, entrada de uma rede de mil entradas; penetrar por esta entrada visar, ao longe, no uma estrutura legal de normas e desvios, uma Lei narrativa ou potica, mas uma perspectiva (de fragmentos, de vozes vindas de outros textos, de outros cdigos), cujo ponto de fuga sempre transladado, misteriosa me n te aberto: cada texto (nico) a prpria teoria (e o simples exemplo) dessa fuga, dessa diferena que, sem conformar, volta indefinidamente. (p. 45-46)
VII. O texto estrelado Vamos pois estrelar o texto, separando, como faria um pequeno sismo, os blocos de significao cuja leitura capta apenas a superfcie lisa, imperceptivelmente soldada pelo fluxo das frases, o discurso fluente da narrao, a grande naturalidade da linguagem corrente. O significante de apoio ser recortado em uma seqncia de curtos fragmentos contguos, que aqui chamaremos lexias, j que so unidades de leitura. Esse corte necessrio diz-lo ser inteiramente arbitrrio; no implicar nenhuma responsabilidade metodolgica, pois incidir sobre o significante, enquanto a anlise posposta incide unicamente sobre o significado. (p. 47)
293
XII. A tessitura das vozes Os cinco cdigos formam uma espcie de rede, de tpico atravs do qual passa todo o texto (ou melhor; faz-se texto ao passar). Portanto, se no buscamos estruturar cada cdigo nem os cinco cdigos entre si, ns o fazemos intenconalmente, para assumir a multivalncia do texto, sua parcial. Na verdade, trata-se, no de manifestar uma estrutura, mas, tanto quanto possvel, produzir uma estruturao. As lacunas e as imprecises da anlise sero como que assinalam a fuga do texto; pois, se o texto submetido a uma forma, esta forma no unitria, arquitetada, acabada: o trecho, o fragmento, a rede cortada ou apagada, so todos os movimentos, todas as inflexes de um imenso fading, responsvel, simultaneamente, pelo encavalgamento e pelas perdas das mensagens. (p. 53-54)
XIII. Citar [...] Esta citao fugidia, esta maneira sub-reptcia descontnua de tematizar, esta alternncia do fluxo e fragmento, definem perfeitamente a maneira da conotao; os semas parecem flutuar livremente, formar uma galxia d3 minsculas informaes onde no se pode ler nenhuma ordem priveligiada: a tcnica narrativa impressionista: divide o significante em partculas de matria verbal cuja cone faz o sentido: joga com a distribuio de um descontnuo (e assim constri o "carter" de um personagem); quanto a distncia sintagmtica de duas informaes convergentes, mais hbil a narrativa; a habilidade consiste em jogar' um certo grau de impresso: necessrio que o leve, como que fcil de esquecer, mas que, ao aparecer adiante, sob outra forma, constitua j uma lembrana; o legvel um efeito baseado em operaes de solidariedade (o legvel "cola"); mas, quanto mais area esta solidariedade, mais o inteligvel parece inteligente. (p. 56)
XV. A partitura O que canta, o que se desenrola, o que se move at ravs de acidentes, arabescos e pausas dirigidas, ao longo de um devenir inteligvel (como a melodia freqentemente confiada s madeiras), a seqncia de enigmas, sua soluo em si sua resoluo retardada: o desenvolvimento de um enigma o mesmo desenvolvimento de uma fuga: um e outro temi tema, submetido a uma exposio, um divertimento (atravs das pausas, ambigidades e engodos que permitem ao discurso prolongar seu mistrio), uma strtte (parte compacta em que os fragmentos de resposta se precipitam) e uma concluso. Enfim, o que sustenta, o que encadeia regularmente, que harmoniza o conjunto, como fazem 294
as cordas, so as seqncia proairticas, a marcha dos comportamentos, a cadncia dos gestos conhecidos. (p. 62)
XVIII. Posteridade do eunuco (23) A beleza, afortuna, o esprito, os encantos dessas duas crianas vinham-lhes unicamente de sua me. De onde vem a fortuna dos Lanty? Este enigma 2 tem sua resposta: da condessa, da mulher. H, pois, segundo o cdigo hermenutico, decifrao (pelo menos parcial) fragmento de resposta. No entanto, a verdade est imersa em uma enumerao que o paradoxo domina, dissimula, r etm e, afinal, no libera: h, pois, tambm, opondo-se decifrao, dissimulao, engodo, obstculo (ou pausa). Chamamos a esse misto de verdade e de mentira, essa decifrao ineficaz, essa resposta obscura um equvoco (HKR. Enigma 2: equvoco). (SM. Rplica dos corpos) (o corpo dos filhos copia o corpo da me). (p. 70)
295
LEmpire ds signes, Genve, Skira, Sentiers de la cration, 1970
OBRA NMERO 9 UTILIZADA NA TESE
O IMPRIO DOS SIGNOS TRADUO Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: WMF Martins Fontes 2007
A GUA E O FLOCO
[...] O arroz cozido (cuja identidade absolutamente especial atestada por um nome particular, que no arroz cru) s pode ser definido por uma contradio da matria; ele , ao mesmo tempo, coesivo e destacvel; sua destinao substncial o fragmento, o leve conglomerado; o nico elemento de ponderao da comida japonesa (antinmica comida chinesa); aquilo que cai, por oposio quilo que flutua; ele dispe, no quadro, uma brancura compacta, granulosa (ao contrrio da do po) e, no entanto, frivel: aquilo que chega mesa apertado, colocado, desfaz-se ao golpe dos palitos sem contudo se espalhar, como se a diviso se operasse para produzir ainda uma coeso irredutvel; essa defeco comedida (incompleta) que, para alm (ou aqum) da comida, dada a consumir. (p. 21)
PALITOS
[...] Primeiramente o palito sua forma o diz suficiente tem uma funo ditica: ele mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo prprio gesto da escolha, que o ndex; mas assim fazendo, em vez de a ingesto seguir uma espcie de seqncia maquinal, pela qual nos limitaramos a engolir pouco a pouco as partes de um mesmo prato, os palitos, designando o que escolheram (e portanto escolhendo na hora isto e no aquilo), introduzem no uso da alimentao no uma ordem mas uma fantasia e como que uma preguia: em todo caso, uma operao inteligente e no mais mecnica. Outra funo dos palitos, a de pinar o fragmento de comida (e no mais de espetar, como fazem 296
nossos garfos); pinar * alis uma palavra demasiadamente forte, agressiva (beliscar o que fazem as meninas sonsas, pinar o que fazem os cirurgies, as costureiras, os temperamentos suscetveis); (p. 25-26)
A COMIDA DESCENTRADA
[...]; medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos alguns fragmentos desse guisado recm-cozido, outros alimentos crus vm substitu-los. (p. 30) [...] ; tudo ali o ornamento de outro ornamento: primeiro porque sobre a mesa, sobre a bandeja, a comida nunca mais do que uma coleo de fragmentos, dos quais nenhum privilegiado por uma ordem de ingesto: comer no respeitar um cardpio (um itinerrio de pratos), mas colher, com um toque ligeiro dos palitos, ora uma cor, ora outra, ao sabor de uma espcie de inspirao que aparece, em sua lentido, como o acompanhamento desligado, indireto, da conversa (que pode ser, ela mesma, muito silenciosa)... (p. 32-33)
O INTERSTCIO
[...] A enguia (ou o fragmento de legume, de crustceo), cristalizado na fritura, como o ramo de Salzburgo, reduz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma coleo de buracos; o alimento chega, assim, ao sonho de um paradoxo porque esse vazio fabricado para que nos alimentos dele (s vezes, o alimento construdo em bola, como uma bolha de ar). A tempura liberada do sentido que ligamos tradicionalmente fritura, e que o peso. A farinha reencontra nela sua essncia de flor espalhada, diluda to levemente que forma um leite, e no uma pasta; tomado pelo leo, esse leite dourado to frgil que recobre imperfeitamente o fragmento de comida, deixa aparecer um rosa de camaro, um verde de pimento, um marrom de berinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que feito nosso bolinho, e que a ganga, o invlucro, a compacidade. (p. 34-35)
[...] O que importa que o alimento seja constitudo de pedaos, de fragmentos (estado fundamental da cozinha japonesa, na qual a cobertura de molho, de creme, de crosta desconhecida), no apenas pela preparao, mas tambm e sobretudo por sua imerso numa substncia fluida como gua, coesiva como gordura, de onde sai um pedao acabado, separado, nomeado e contudo 297
crivado; mas o cerne to leva que se torna abstrato: o alimento no tem mais por invlucro seno o tempo (alis muito tnue) que o solidificou. (p. 36)
AS TRS ESCRITAS
Espetculo total mas dividido, o Bunraku exclui, claro, a improvisao: voltar espontaneidade seria voltar aos esteretipos que constituem nossa profundidade Como Brecht havia visto, aqui reina a criao, a pitada de escrita, o fragmento de cdigo, pois nenhum dos promotores de representao pode atribuir sua prpria pessoa aquilo que ele nunca escreve sozinho. (p. 71)
ANIMADA/INANIMADO
Pode ser que a marionete japonesa conserve algo dessa origem fantasmtica; mas a arte do Bunraku imprime-lhe um sentido diverso; o bunraku no visa a animar um objeto inanimado, de modo a tornar vivo um pedao do corpo, uma lasca de homem, conservando sua vocao de parte; no a simulao sensvel do corpo que ele busca, , Poe assim dizer, sua abstrao sensvel. (p. 78)
O INCIDENTE
O nmero, a disperso dos haicais, por um lado, e a brevidade, o fechamento de cada um deles, por outro lado, parecem dividir, classificar o mundo at o infinito, constituir um espao de poucos fragmentos, uma poeira de acontecimentos que nada, por uma espcie de abandono da significao, pode ou deve coagular, construir, dirigir, terminar. (p. 103)
O GABINETE DOS SIGNOS
Em qualquer lugar desse pas, produz-se uma organizao especial do espao; viajando (na rua, de trem ao longo dos subrbios, da montanhas), percebo a a conjuno de um longnquo e de uma fragmentao, a justaposio de campos (no sentido rural e visual) ao mesmo tempo descontnuos e abertos (parcelas de plantaes de ch, pinhei ros, flores malvas, uma composio de 298
tetos negros, um quadriculado de ruelas, um arranjo assimtrico de casas baixas): nenhum fechamento (exceto muito baixo), e no entanto nunca sou sitiado pelo horizonte (e seu relento do sonho): nenhuma vontade de inflar os pulmes, de estufar o peito para garantir meu eu, para me constituir em centro assimilador do infinito: levado evidencia de um limite vazio, fico ilimitado sem idia de grandeza, sem referncia metafsica. (p. 145-146)
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Sade, Fourier, Loyola, Paris, d. Du seuil, Tel Quel, 1971
OBRA NMERO 10 UTILIZADA NA TESE
SADE, FOURIER, LOIOLA Traduo de Mro Laranjeira; Reviso de traduo Andra Stahel M. da Silva So Paulo: Martins Fontes, (Coleo Roland Barthes) 2005
Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexo, de anlise, de comparao, de reflexo etc.). O Texto um objeto de prazer. O gozo do Texto muitas vezes apenas estilstico: h felicidades de expresso, e elas no faltam nem em Sade nem em Fourier. Por vezes, entretanto, o prazer do Texto se realiza de maneira mais profunda (e ento que se pode realmente dizer que h Texto): quando o texto "literrio" (o Livro) transmigra para dentro de nossa vida, quando outra escritura (a escritura do Outro) chega a escrever fragmentos da nossa prpria cotidianidade, enfim, quando se produz uma co-existncia. O indcio do prazer do Texto ento podermos viver com Fourier, com Sade. Viver com um autor no significa necessariamente cumprir em nossa vida o programa traado nos livros desse autor (essa conjuno no seria, no entanto, insignificant e, pois que constitui o argumento de Dom Quixote; verdade que Dom Quixote ainda uma criatura de livro); no se trata de operar o que foi representado, no se trata de tornar-se sdico ou orgaco com Sade, falansteriano com Fourier, orante com Loyola; trata-se de fazer passar para nossa cotidianidade fragmentos de inteligvel ("frmulas") provindos do texto admirado (admirado justamente porque se difunde bem); trata-se de falar esse texto, no de o agir, deixando-lhe a distncia de uma citao, a fora de irrupo de uma palavra bem cunhada, de uma verdade de linguagem; nossa prpria vida cotidiana passa a ser ento um teatro que tem por cenrio o nosso prprio habitat social; viver com Sade , em dados momentos, falar sadiano; viver com Fourier falar fourierista (viver com Loyola? - Por que no? Mais uma vez, no se trata de transportar para o nosso interior contedos, convices, uma f, uma Causa, nem sequer imagens; 300
trata-se de receber do texto uma espcie de ordem fantasstica: saborear com Loyola a volpia de organizar um retiro, de forrar-lhe o tempo interior, distribuir os seus momentos de linguagem; a seriedade das representaes inacianas mal conseguem abafar o gozo da escritura). (p. XIV XV) [...] Na verdade, no h hoje nenhum lugar de linguagem exterior ideologia burguesa: nossa linguagem vem dela, a ela retorna, nela fica fechada. A nica resposta possvel no nem o enfrentamento nem a destruio, mas somente o roubo: fragmentar o texto antigo da cultura, da cincia, da literatura e disseminar-lhe os traos segundo frmulas irreconhecveis, da mesma maneira que se disfara uma mercadoria roubada. (p. XVII) [...] No , pois, nem a feira nem a beleza, mas a prpria instncia do discurso, dividida em retratos-figuras e retratos-signos, que determina a diviso da humanidade sadiana 9 .
Essa repartio no coincide com a diviso social, embora esta no seja ignorada por Sade. 9. Mesma oposio no que concerne aos nomes prprios. Os libertinos e seus auxiliares tm nomes "realistas", cuja "verdade" no poderia ser recusada por Balzac, Zola etc. As vtimas tm nomes de teatro. (p. 13)
pois, em ltima anlise, a escritura de Sade que suporta todo Sade. Sua tarefa, de que ela triunfa com brilho constante, contaminar reciprocamente a ertica e a retrica, a palavra e o crime, introduzir de repente nas convenes da linguagem social as subverses da cena ertica, ao mesmo tempo que o "preo" dessa cena extrado do tesouro da lngua. Isto se v em relao ao que tradicionalmente se chama de estilo. Sabe-se que, em Justine, o cdigo de amor metafrico: a se fala das mirtas de Citera e das rosas de Sodoma. Emjuliette, ao contrrio, a nomenclatura ertica nua. O interesse dessa passagem no evidentemente a crueza, a obscenidade da linguagem, mas a efetivao de uma outra retrica. Sade pratica correntemente aquilo a que se poderia chamar violncia metonmica: justape num mesmo sintagma fragmentos heterogneos, pertencentes a esferas de linguagem geralmente separadas pelo tabu sociomoral. Assim se juntam a Igreja, o estilo rebuscado e a pornografia: "Sim, sim, monsenhor", diz Lacroix ao velho arcebispo de Lyon, o homem do chocolat e reconfortante, "e Vossa Eminncia bem v que, expondo-lhe apenas parte que deseja, ofereo sua libertina homenagem o mais belo eu virgem que se possa abraar." 21
21. Inmeros exemplos desse procedimento: a paixes papai s, as ndegas ministeriais, trabalhar com fora o eu pontifical, sodomizar a professora etc. 301
(procedimento retomado por Klossovski: a calcinha da inspetora). A regra de correlao dos tempos pode juntar-se ao procedimento, ainda que o efeito s seja cmico para ns: "Quisera eu que beijsseis o eu do meu Lubin," Seria preciso lembrar que, se parecemos responsabilizar Sade por efeitos que historicamente no previu, porque para ns Sade no o nome de um Indivduo, mas de um "autor", ou melhor, de um "narrador" mtico, depositrio, atravs do tempo, de todos os sentidos que acolhe em teu discurso.
Para se assegurar disso, basta um simples lance de olhos sobre a estrutura geral dos Exerccios. Essa estrutura foi estranhamente discutida: no se compreendia como as quatro Semanas de Incio podiam coincidir (pois que deviam, pensava-se) com as trs vias (purgativa, iluminati va, unitiva) da teologia clssica. Como 3 podem igualar 4? Saa-se do embarao fracionando a segunda via em duas partes, correspondendo s duas semanas medianas. O fulcro desse debate taxinmico no de modo algum formal. (p. 44)
[...] O que deve ser transportado atravs da rede variada de distingue uma matria nica: a imagem. A imagem exatamente uma unidade de imitao: divide-se a matria imitvel (que principalmente a vida de Cristo) em fragmentos tais que possam caber num quadro e ocup-lo inteiramente; os corpos incandescentes do inferno, os gritos dos condenados, o gosto amargo das lgrimas, as personagens da Natividade, as da Ceia, a saudao do anjo Gabriel Virgem etc., outras tantas unidades de imagem (ou "pontos"). Essa unidade no imediatamente factual; por si s no constitui forosamente uma cena completa, mobilizando, como no teatro, vrios sentidos ao mesmo tempo: a imagem (a imitao) pde ser puramente visual, ou puramente auditiva, ou puramente ttil etc. (p. 54)
[...] A repetio inaciana no mecnica, tem uma funo de fecho ou, mais exatamente, de uma passagem em ziguezague: os fragmentos repetidos so como as paredes ou entalhes de um redente. (p. 62)
[...] Os Exerccios so o livro da pergunta, no da resposta. Para se ter alguma idia das formas que pode assumir a marca impressa por Deus na balana, necessrio recorrer ao Dirio espiritual encontrar-se- nele o esboo do cdigo divino, cujos elementos Incio anota por meio de todo um repertrio de signos grficos, que alis no foi possvel decifrar completamente (iniciais, pontos, o sinal // etc.). Essas manifestaes divinas, como se pode esperar de um campo em que domina a fantasia, estabelecem-se principalmente no nvel do 302
corpo, desse corpo despedaado, cuja fragmentao exatamente a via da fantasia. (p. 80) [...] A inveno fourierista um fato de escritura, um desdobramento do significante. Essas palavras devem ser compreendidas no sentido moderno: Fourier repudia o escritor, quer dizer, o gestor titulado do bem-escrever, da literatura, aquele que avaliza a unio decorativa, e portanto a separao fundamental, entre o fundo e a forma; ao afirmar-se inventor ("No sou escritor, mas inventor"), ele se transporta ao limite do sentido, o que hoje chamamos Texto. Talvez, segundo Fourier, precisssemos doravante chamar inventor (e no escritor ou filsofo) quele que traz luz novas frmulas e investe assim, a golpes de fragmentos, imensamente e no pormenor o espao do significante. 9p. 99)
Isso no deixa de lembrar o modo de leitura da Idade Mdia, baseado na descontinuidade legal da obra: no s o texto antigo (objeto da leitura medieval) era quebrado e seus fragmentos eram em seguida diversamente combinveis, mas tambm era normal apresentar sobre um tema dois discursos independentes e concorrentes, colocados despudoradamente numa relao de redundncia: ars minor (reduzida) e ars major (desenvolvida) de Donato, modi minores e mod majores dos Modistas; a oposio fourierista entre a observao-reduo e a dissertao. (p. 101)
[...] Quanto violncia, segue um cdigo desgastado por milnios de histria humana: e revirar a violncia ainda falar o mesmo cdigo. O princpio de delicadeza postulado por Sade pode, s ele, constituir, quando tiverem mudado os fundamentos da Histria, uma lngua absolutamente nova, a mutao inaudita, chamada a subverter (no inverter, mas antes fragmentar, pluralizar, pulverizar) o sentido mesmo do gozo. (p. 206)
303
Le plaisir du Texte, Paris, d. Du seuil, Tel Quel, 1973
OBRA NMERO 11 UTILIZADA NA TESE
O PRAZER DO TEXTO 3 EDIO Traduo: J. Guinsburg, Reviso: Alice Kyoko Miyashiro EDITORA PERSPECTIVA, 2002
Da dois regimes de leitura: uma vai direto s articulaes da anedota, considerada a extenso do texto, ignora os jogos de linguagem (se eu leio Jlio Verne, avano depressa: perco algo do discurso, e no entanto minha leitura no fascinada por nenhuma perda verbal no sentido que esta palavra pode ter em espeleologia); a outra leitura no deixa passar nada; ela pesa, cola-se ao texto, l, se se pode assim dizer, com aplicao e arrebatamento, apreende em cada ponto do texto o assndeto que corta as linguagens e no a anedota: no a extenso (lgica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significao; como no jogo da mo quente, a excitao, provm, no de uma pressa processiva, mas de uma espcie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de sua destruio); no momento em que cada mo (diferente) salta por cima da outra (e no uma depois da outra), que o buraco se produz e arrasta o sujeito do jogo o sujeito do texto. Ora, paradoxalmente (a tal ponto a opinio cr que basta ir depressa para no nos aborrecermos), esta segunda leitura, aplicada (no sentido prprio), a que convm ao texto moderno, ao texto-limite. Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cair das mos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: vocs querem que ocorra alguma coisa, e no ocorre nada; pois o que ocorre linguagem no ocorre ao discurso: o que acorre * , o que se vai, a fenda das duas margens, o interstcio da fruio, produz-se no volume das linguagens, na enunciao, no na seqncia dos enunciados: no devorar, no engolir, mas pastar, aparar com mincia, 304
redescobrir, para ler esses autores de hoje, o lazer das antigas leituras: sermos leitores aristocrticos. (p. 19) * No original arrive. (N. do T.). [...] Mas se creio, ao contrrio, que o prazer e a fruio so foras paralelas, que elas no se podem encontrar e que entre elas h mais do que um combate: uma incomunicao, ento me cumpre na verdade pensar que a histria, nossa histria, no pacfica, nem mesmo pode ser inteligente, que o texto de fruio surge sempre a maneira de um escndalo ( de uma claudicao), que ele sempre o trao de um corte de uma afirmao (e no de um florescimento) e que o sujeito dessa histria (esse sujeito histrico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gosto pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialtico de sntese, nunca mais do que uma contradio viva; um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, atravs do texto, da conscincia de seu ego e de sua queda. (p. 28).
[...] Cada povo tem acima de si um tal cu de conceitos matematicamente repartidos, e , sob a exigncia da verdade, entende doravante que todo deus conceitual no seja buscado em outra parte a no ser em sua esfera (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pea formidvel rivalidade que regula sua vizinhana. Pois cada falar (cada fico) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estender-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, tornar-se doxa, natureza: o falar pretensamente apoltico dos homens polticos, dos agentes do estado, o da imprensa, do rdio, da televiso; o da conversao; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tpica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, topos guerreiro. (p. 36)
Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura ou dos leitores de prazer; no seria sociolgica, pois o prazer no um atributo nem do produto nem da produo; s poderia se psicanaltica, empenhando a relao da neurose leitora na forma alucinada do texto. O fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentao das citaes, das frmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metali nguagens (essa classe reunia todos os logfilos, lingistas, semiticos, fillogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). O paranico consumista ou produziria textos retorcidos, histrias desenvolvidas como raciocnios, construes colocadas como jogos, coeres secretas. Quanto ao histrico 9to contrrio ao obsessional), seria 305
aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na comdia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que j no o sujeito de nenhum olhar crtico e se joga atravs do texto (o que muito diferente do se projetar nele). (p. 74)
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ROLAND BARTHES, par lui mme ditions du Seuil, 1975
OBRA NMERO 12 UTILIZADA NA TESE
ROLAND BARTHES por Roland Barthes, Traduo de Leyla Perrone-Moiss EDITORA CULTRIX MCMLXXVII (1977)
No quadro negro O Sr. B., professor do terceiro Ano do liceu Louis-le-Grand, era um velhinho socialista e nacionalista. No comeo do ano, ele recenseava solenemente, no quadro negro, os parentes dos alunos que tinham tombado no campo de honra; os primos abundavam, mas fui o nico a poder anunciar um pai; fiquei constrangido, como por distino excessiva. Entretanto, apagado o quadro, nada restava daquele luto proclamado a no ser, na vida real, que sempre silenciosa, a figura de um lar sem ancoragem social: nenhum pai para matar, nenhuma famlia para odiar, nenhum meio para reprovar: grande frustrao edipiana! (Esse mesmo Sr. B., no sbado tarde de distrao, pedia a um aluno que lhe sugerisse um assunto qualquer para reflexo, e por mais extravagante que este fosse, ele nunca renunciava a convert-lo num pequeno ditado, que improvisava passeando pela sala de aula, atestando assim sua mestria e sua facilidade de redao.) Afinidade carnavalesca do fragmento e do ditado: o ditado voltar aqui algumas vezes, como figura obrigatria da escritura social, farrapo da redao escolar. (p. 51)
O gesto do arspice Em S/Z (p. 20), a lexia (o fragmento de leitura) comparada quele trecho de cu recortado pelo basto do arspi ce. Essa imagem lhe agradou: devia ser lindo, outrora, aquele basto apontado para o cu, isto , para o inapontvel; e, alm disso, esse gesto louco: traar solenemente um limite do qual no sobra imediatamente nada, a no ser a remanncia intelectual de um 307
recorte, consagrar-se reparao totalmente ritual e totalmente arbitrria de um sentido. (p. 54)
O pleno do cinema Resistncia ao cinema: o prprio significante nele sempre, por natureza, liso, qualquer que seja a retrica dos planos; , sem remisso, um continuum de imagens: a pelcula (bem denominada: uma pele sem brecha) segue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutria do fragmento, do hai-kai. Certos constrangimentos de representao (anlogos s rubricas obrigatrias da lngua) obrigam a receber tudo: de um homem que caminha sobre a neve, antes mesmo de ele significar, tudo me dado; na escritura, pelo contrrio, no sou obrigado a ver como so as unhas do heri mas, se lhe der vontade, o Texto me diz, e com que fora, as unhas demasiadamente compridas de Hlderlin. (Mal acabo de escrever isto e j me parece confisso imaginria; eu devia t-lo enunciado como uma fala sonhadora, que procurasse saber por que resisto ou desejo; infelizmente, estou condenado assero: falta, em f rancs (e talvez em qualquer lngua), um modo gramatical que dissesse levemente (nosso condicional pesado demais), no a dvida intelectual, mas o valor que procura converter-se em teoria.) (p. 61-62)
Os amigos Por vezes, na velha literatura, encontra-se essa expresso aparentemente estpida: a religio da amizade (fidelidade, herosmo, ausncia de sexualidade). Mas j que, da religio, subsiste apenas o fascnio do rito, ele gostava de conservar os pequenos ritos da amizade: festejar com um amigo a libertao de uma tarefa, o afastamento de uma preocupao: a celebrao acentua o acontecimento, acrescenta-lhe um suplemento intil, um gozo perverso. Assim, por magia, este fragmento foi escrito por ltimo, depois de todos os outros, como uma espcie de dedicatria (3 de setembro de 1974). (p. 72)
O gosto pela diviso Gosto pela diviso: as parcelas, as miniaturas, os contornos, as precises brilhantes (tal o efeito produzido pelo haschsich, segundo Baudelaire), a vista dos campos, as janelas, o hai-kai, o trao, a escritura, o fragmento, a fotografia, o palco italiana, em suma, o que se quer, todo o articulado do semanticista ou todo o material do fetichista. Esse gosto decretado progressista: a arte das 308
classes ascendentes procede por emolduramento: (Brecht, Diderot, Eisenstein). (p. 77)
De vis Poe um lado, o que ele diz dos grandes objetos do saber (o cinema, a linguagem, a sociedade) nunca memorvel: a dissertao (o artigo sobre alguma coisa) como um imenso dejeto. A pertinncia, mida (quando ela existe), vem apenas nas margens, nas incisas, nos parntese, de vis: a voz off do sujeito. Por outro lado, ele nunca explicita (nunca define) certas noes que parecem ser para ele as mais necessrias, e que ele usa sempre (sempre substantivos sob uma palavra). A Doxa constantemente alegada, mas no definida: nenhum fragmento sobre a Doxa. O Texto sempre apresentado metaforicamente: o campo do arspice, um assento, um cubo facetado, um excipiente, um picadinho japons, uma confuso de cenrios, uma trana, uma renda valenciana, um oued marroquino, um vdeo de televiso em pane, uma massa folheada, uma cebola, etc> E quando ele faz uma dissertao sobre o Texto (para uma enciclopdia), sem a renegar (nunca renegar nada: em nome de que presente?) trata-se de uma tarefa de saber e no de escritura. (p. 81)
O crculo dos fragmentos Escrever por fragmentos: os fragmentos so ento pedras sobre o contorno do crculo: espalho-me roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o qu?
Seu primeiro texto ou quase (1942) feito de fragmentos; essa escolha justificava-se ento maneira de Gide porque a inocncia prefervel ordem que deforma. Desde ento, de fato, ele no cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de LEmpire des signes, artigos e prefcios dos Essais critiques, lexias de S/Z, pargrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du Texte.
Ele j via a luta livre como uma seqncia de fragmentos, uma soma de espetculos, pois na luta livre o que inteligvel cada momento, e no a durao (My, 14); ele olhava com espanto e predileo esse artifcio esportivo, submetido em sua prpria estrutura ao assndeto e ao anacoluto, figuras da interrupo e do curto-circuito.
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No somente o fragmento cortado de seus vizinhos, mas ainda no interior de cada fragmento reina a parataxe. Isto se v bem quando se faz o ndice desses pedacinhos; para cada um, a reunio dos referentes heterclita; como um jogo de rimas prvias: Tomem-se as palavras fragmento, crculo, Gide, luta livre, assndeto, pintura, dissertao, Zen, intermezzo; imagine-se um discurso que as possa ligar. Pois bem, ser simplesmente este fragmento. O ndice de um texto no somente um instrumento de referencia; ele prprio um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que h de delirante (de interrompido) na razo das frases.
No tendo praticado, me pintura, mais do que borres tachistas, decidi comear uma aprendizagem regular e paciente do desenho; tento copiar uma composio persa do sculo XVII (Senhor caando); irresistivelmente, ao invs de procurar representar as propores, a organizao, a estrutura, copio e encadeio ingenuamente pormenor por pormenor; de onde certas chegadas inesperadas: a perna do cavaleiro acaba encarapitada l no alto do peito do cavalo, etc. Em suma, procedo por adio, no por esboo; tenho o gosto prvio (primeiro) do pormenor, do fragmento, do rush, e a inabilidade para o levar a uma composio: no sei reproduzir as massas.
Gostando de encontrar, de escrever comeos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos comeos, tantos prazeres (mas ele no gosta dos fins: o risco de cl ausula retrica grande demais: receio de no saber resistir ltima palavra, ltima rplica).
O zen pertence ao budismo torin, mtodo da abertura abrupta, separada, rompida (o kien , pelo contrrio, o mtodo de aceso gradual). O fragmento 9como o hai-kai) torin; ele implica um gozo imediato: um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. Sob forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em qualquer lugar: no caf, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente daquilo que ele diz ou daquilo que digo); a gente tira ento o caderninho de apontamentos, no para anotar um pensamento, mas algo como um cunho, o que se chamaria outrora um verso.
Como? Quando se colocam fragmentos em seqncia, nenhuma organizao possvel? Sim: o fragmento como a idia musical de um ciclo (Bonne Chanson, Dichterliebe): cada pea se basta, e no entanto ela nunca mais do que o interstcio de suas vizinhas: a obra feita somente de pginas avulsas. O homem que melhor compreendeu e praticou a estti ca do fragmento 310
(antes de Webern) foi talvez Schumann; ele chamava o fragmento de intermezzo; ele multiplicou em suas obras os intermezzi; tudo o que produzia era finalmente intercalado: mas entre que e qu? Que quer dizer uma pura seqncia de interrupes?
O fragmento seu ideal: uma alta condensao, no de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como da Mxima), mas de msica: ao desenvolvimento, opor-se-ia o tom, algo de articulado e de cantado, uma dico: ali deveria reinar o timbre. Peas breves de Webern: nenhuma cadencia: que soberania ele pe em no ir longe!
O fragmento como iluso Tenho a iluso de acreditar que, ao quebrar meu discurso, cesso de discorrer imaginariamente sobre mim mesmo, atenuo o risco de transcendncia; mas como o fragmento (o hai-kai, a mxima, o pensamento, o pedao de dirio) finalmente um gnero retrico, e como a retrica aquela camada da linguagem que melhor se oferece interpretao, acreditando dispersar -me, no fao mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginrio.
Do fragmento ao dirio Sob o libi da dissertao destruda, chaga-se prtica regular do fragmento; depois, do fragmento se desliza para o dirio. Assim sendo, o objetivo disso tudo no se dar o direito de escrever um dirio/ No tenho fundamentos para considerar tudo o que escrevi como um esforo clandestino e obstinado para fazer reaparecer um dia, livremente, o tema do dirio de Gide? No horizonte terminal, talvez esteja simplesmente o texto inicial (seu primeiro texto teve por objeto o Dirio de Gide).
O dirio (autobiogrfico) est entretanto, hoje em dia, desacreditado. Cruzamentos: no sculo XVI, quando se comeava a escrev-lo sem repugnncia, chamavam-no de diaire: diarrhe e glaire (diarria e ranho).
Produo de meus fragmentos. Contemplao de meus fragmentos (correo, polimento, etc). Contemplao de meus dejetos (narcisismo). (p. 101-103)
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A frase A frase denuncia como objeto ideolgico e produzida como gozo ( uma essncia reduzida do Fragmento). Pode-se, ento, ou acusar o sujeito de contrao, ou induzir dessa contradio um espanto, qui uma volta crtica: e se houvesse, a ttulo de perverso segunda, um gozo da ideologia? (p. 112)
O imaginrio O esforo vital deste livro visa a encenao de um imaginrio. Encenar quer dizer: escalonar suportes, dispersar papeis, estabelecer nveis e, no fim de contas: fazer da ribalta uma barra incerta. Importa pois que o imaginrio seja tratado segundo seus graus (o imaginrio uma questo de graus), e existem, ao longo desses fragmentos, vrios graus de imaginrio. A dificuldade, entretanto, reside no fato de no se poder numerar esses graus, como os graus de uma bebida alcolica ou de uma tortura. Antigos eruditos acrescentavam por vezes, sabiamente, aps uma proposio, o corretivo incertum. Se o imaginrio constitusse um trecho bem delimitado, cujo embarco fosse sempre seguro, bastaria anunciar cada vez esse trecho por algum operador metalingstico, para se eximir de o haver escrito. Foi o que se pde fazer aqui para alguns fragmentos (aspas, parntese, ditado, cena, redente, etc.): o sujeito, desdobrado (ou imaginando-se tal), consegue por vezes assinar seu imaginrio. Mas esta no uma prtica segura; primeiramente, porque h um imaginrio da lucidez e porque, separando os nveis do que digo, o que fao no , apesar de tudo, mais do que remeter a imagem para mais longe, produzir uma segunda careta; em seguida, e sobretudo, porque, freqentemente, o imaginrio vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretrito perfeito, um pronome, uma lembrana, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a prpria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu. O sonho seria pois: nem um texto de variedade, nem um texto de lucidez, mas um texto de aspas incertas, de parnteses flutuantes (nunca fechar parnteses exatamente: derivar). Isso depende tambm do leitor, que produz o escalonamento das leituras. (Em seu grau, o Imaginrio se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraoso escrever. Ou ainda: o que s pode ser escrito com a complacncia do leitor. Ora, cada leitor tem sua complacncia; assim, por pouco que se possa classificar essas complacncias, torna-se possvel classificar os prprios fragmentos: cada um recebe sua marca de imaginrio daquele mesmo horizonte onde ele se acredita 312
amado, impune, subtrado ao embarao de ser lido por um sujeito sem complacncia, ou simplesmente: que olhasse.) (p. 113-114)
A pessoa dividida? Para a metafsica clssica, no havia nenhum inconveniente em dividir a pessoa (Racine: Trago dois homens em mim); muito pelo contrrio, provida de dois termos opostos, a pessoa funcionava como um bom paradigma (alto/baixo, carne/esprito, cu/terra); as partes em luta se reconciliavam na fundao de um sentido: o sentido do homem. Eis por que, quando falamos hoje de um sujeito dividido, no de modo algum para reconhecer suas contradies simples, suas duplas postulaes, etc.; uma difrao que se visa, uma fragmentao em cujo jogo no resta mais nem ncleo princi pal, nem estrutura de sentido: no sou contraditrio, sou disperso. (p. 153)
Fases
Observaes: 1. o intertexto no , forosamente, um campo de influncias; antes uma msica de fi guras, de metforas, de pensamentos-palavras; o significante como sereia; 2. moralidade deve ser entendida como o exato contrrio da moral ( o pensamento do corpo em estado Intertexto Gnero Obras
(Gide) (desejo de escrever)
Sartre L degr zro Marx mitologia social Escritos obre o teatro Brecht Mythologies
Saussure semiologia Elments de smiologie Systme de la mode
Sollers S/Z Julia Kristeva textualidade Sade, Fourier,Loyola Derrida Lacan LEmpire des signes
(Nietzsche) moralidade L plaisir du Texte R.B. par lui-mme 313
de linguagem); 3. primeiramente intervenes (mitolgicas), depois fices (semiolgicas), em seguida estilhaos, fragmentos, frases; 4. entre os perodos, evidentemente, h encavalamentos, voltas, afinidades, sobrevivncias; so em geral os artigos (de revista) que assumem esse papel conjuntivo; 5. cada fase reativa: o autor reage quer ao discurso que o cerca, quer a seu prprio discurso, se um e outro comea a tomar demasiada consistncia; 6. assim como um prego empurra o outro, segundo se diz, uma perverso expulsa uma neurose: obsesso poltica e moral, sucede um pequeno delrio cientfico, desfeito por sua vez pelo gozo perverso (com um fundo de fetichismo); 7. o recorte de um tempo, de uma obra, em fase de evoluo embora se trate de uma operao imaginria permite entrar no jogo da comunicao intelectual: a gente se torna inteligvel. (p. 156)
O alfabeto Tentao do alfabeto: adotar a sequencia das letras para encadear fragmentos entregar-se ao que faz a glria da linguagem (e que provoca o desespero de Saussure): uma ordem imotivada (fora de qualquer imitao), que no arbitrria (j que toda gente a conhece, a reconhece e se entende a seu respeito). O alfabeto eufrico: terminadas a angustia do plano, a nfase do desenvolvimento, as lgicas retorcidas, terminadas as dissertaes! Uma idia por fragmento, um fragmento por idia, e para a sequencia desses tomos, nada mais do que a ordem milenria e louca das letras francesas (que so elas prprias objetos insensatos privados de sentido). Ele no define uma palavra, ele nomeia um fragmento; ele faz exatamente o inverso do dicionrio: a palavra sai do enunciado, ao invs de o enunciado derivar da palavra. Do glossrio, apenas retenho o princpio mais formal: a ordem de suas unidades. Essa ordem, entretanto, pode ser maliciosa: ela produz, por vezes, efeitos de sentido; e se esses efeitos no forem desejados, preciso romper a ordem alfabtica em proveito de uma regra superior: a da ruptura (da heterologia): impedir que um sentido pegue. (p. 157-158)
A ordem de que no me lembro mais Ele se lembra mais ou menos da ordem em que escreveu estes fragmentos; mas de onde vinha essa ordem? Segundo que classificao, que seqncia? Ele no se lembra mais. A ordem alfabtica apaga tudo, recalca toda origem. Talvez, em certos trechos, determinados fragmentos paream seguir-se por afinidade; mas o importante que essas pequenas redes no sejam 314
emendadas, que elas no deslizem para uma nica e grande rede que seria a estrutura do livro, seu sentido. para deter, desviar, dividir essa inclinao do discurso para um destino do sujeito, que em determinados momentos, o alfabeto nos chama ordem (da desordem0 e nos diz: Crte! Retome a histria de outra maneira (mas tambm. Por vezes, pela mesma razo, preciso romper o alfabeto). (p. 158)
Que quer dizer isto? Paixo constante (e ilusria) de apor a qualquer fato, mesmo o menor deles, no a pergunta da criana: por qu? Mas a pergunta do antigo grego, a questo do sentido, como se todas as coisas estremecessem de sentidos: que quer dizer isto? preciso, a qualquer preo, transformar o fato em idia, em descrio, em interpretao, em suma, encontrar para ele um outro nome que no o seu. Essa mania no faz acepo de futilidade: por exemplo, se constato - e apresso-me a constat-lo que, estando no campo, gosto de urinar no jardim e no em outra parte, quero imediatamente saber o que isso significa. Essa fria de tornar significantes os fatos mais simples marca socialmente o sujeito, como um vcio: no se deve desengatar a cadeia dos nomes, no se deve desencadear a linguagem: o excesso de nominao sempre ridicularizado (M. Jourdain, Bouvard e Pcuchet). (Aqui mesmo, exceto nas Anamnses, cujo preo exatamente este, no se suporta nada que deixe de significar; no se ousa deixar o fato num estado de in-significncia; o movimento da fbula que tira de qualquer fragmento real uma lio, um sentido. Um livro inverso poderia ser concebido: que contasse mil incidentes, proibindo-se de jamais arrancar-lhes uma linha sequer de sentido; seria precisamente um livro de hai-kais.) (p. 161)
O recesso Em tudo isto existem riscos de recesso: o sujeito fala de si (risco de psicologismo, risco de enfatuao), ele enuncia por fragmentos (risco de aforismo, risco de arrogncia). (p. 162)
A siba e sua tinta Escrevo isto dia aps dia; e vai pegando, vai pegando: a siba produz sua tinta: amarro meu imaginrio (para me defender e me oferecer, ao mesmo tempo). 315
Como saberei que o livro est acabado? Em suma, como sempre, trata-se de elaborar uma lngua. Ora, em toda lngua os signos voltam, e, fora de voltar, acabaram por saturar o lxico a obra. Tendo debilitado a matria desses fragmentos durante meses, o que me acontece, desd ento, vem encaixar -se espontaneamente (sem forar) sob as enunciaoe que j foram feitas: a estrutura se tece pouco a pouco, e, ao faz-lo, ela galvaniza cada vez mais: constri-se assim, sem nenhum plano de minha parte, um reperttio finito e perttuo, como o da lngua. Em dado momento, nenhuma transformao possvel, a no ser a que aconteceu ao navio Argo: eu poderia guardar o livro durante muito tempo, mudando pouco a pouco cada fragmento. (p. 174)
O texto sintomtico Como devo fazer para que cada um destes fragmentos nunca seja mais do que um sintoma? fcil: deixe-se ir, regrida.(p. 182)
Mais tarde Ele tem essa mania de dar introdues, esboos, elementos, remetendo para mais tarde o verdadeiro livro. Essa mania tem um nome retrico: a prolepse (bem estudada por Genette). Eis aqui alguns desse livros anunciados: uma Histria da escritur a (DZ, 22), uma Histria da retrica (1970, II), uma Histria da etimologia (1973), uma nova estilstica (S/Z, 107), uma Esttica do Prazer textual (PlT, 104), uma nova cincia lingstica (PlT, 104), uma Lingstica do valor (ST, 61), um inventrio dos discursos de amor (S/Z, 182), uma fico fundada sobre a idia de um Robinson urbano (1971, I), uma suma sobre a pequena burguesia (1972, II), um livro sobre a Frana, intitulado maneira de Michelet Nossa Frana (1971, II), etc. Esses anncios, que visam, no mais das vezes, um livro-suma, desmesurado, pardico do grande monumento de saber, s podem ser simples ato de discurso (so exatamente prolepses); eles pertencem categoria do dilatrio. Mas o dilatrio, de negao do real (do realizvel), no entretanto menos vivo: esses projetos vivem, nunca so abandonados; suspensos, eles podem retomar vida a qualquer instante; ou pelo menos, como o rastro persistente de uma obsesso, eles se realizam, parcialmente, indiretamente, como gestos, atravs dos temas, dos fragmentos, dos artigos: a Histria da Escritura (postulada em 1953) engendra, vinte anos mais tarde, a idia de um seminrio sobre uma histria do discurso francs; a Lingstica do Valor orienta, 316
de longe, este livro aqui. A montanha d luz um ratinho? preciso revirar positivamente esse provrbio desdenhoso: a montanha no demais para fazer um ratinho. (p. 183-184)
Pontos de referencia: Fragmento: 101, 102, 158 I lustraes * 109 Roland Barthes, manuscrito de um fragmento.
Sumrio Fragmentos: 49
100 O crculo dos fragmentos: 101 O fragmento como iluso: 103 Do fragmento ao dirio: 103 [...]
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FRAGMENTS D'UN DISCOURS AMOUREUX, A Lover's Discourse: Fragments 1977
OBRA NMERO 13 UTILIZADA NA TESE
FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO Traduo HORTNCIA DOS SANTOS 15 Edio LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S. A. 2000
WINNICOTT, Fragmento de uma anlise (comentado por J. - L.B.). Nota de rodap, (p. 112)
NIETZSCHE: todo esse fragmento, evidentemente, segundo Nietzsche-Deleuze, principalmente 60,75. Nota de rodap, (p. 158)
BALZAC: Ela era experiente e sabia que o carter amoroso assinalado de alguma forma nas pequenas coisas. Uma mulher instruda pode ler seu futuro num simples gesto, assim como Cuvier sabia dizer ao ver o fragmento de uma pata: isso pertence a um animal de tal dimenso etc. (Os segredos da Princesa de Cadignan). Nota de rodap, (p. 262)
Rusbrock Pequeno grupo dos Mortos de Fome, dos Suicidas de amor (quantas vezes um mesmo enamorado no se suicida?), aos quais nenhuma grande linguagem (a no ser, fragmentariamente, a do Romance Passado) emprestou sua voz. Suicdio - IDIAS DE SUICDIO, (p.271)
Tabula gratulatria THEODOR REIK, Fragment dune grand confession (Denol). (p. 296) Este fragmento encontrado na pg. 83 como nome de REIK; provrbio citado por Reik, 184. E citamos: O lugar mais sombrio, diz um provrbio chins, sempre embaixo da lmpada.
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LEON INAUGURALE AU COLLGE DE FRANCE, ditions du Seuil, 1977-8
OBRA NMERO 14 UTILIZADA NA TESE
AULA 10 Edio AULA INAUGURAL DA CADEIA DE SEMIOLOGIA LITERRIA DO COLGIO DE FRANA Pronunciada dia 7 de janeiro de 1977 Traduo e posfcio de Leyla Perrone-Moiss EDITORA CULTRIX So Paulo 2002
[...] O que eu gostaria de renovar, cada um dos anos em que me ser dado aqui ensinar, a maneira de apresentar a aula ou o seminrio, em suma, de manter um discurso sem impor: este ser a aposta metdica, a questio, o ponto a ser debatido. Pois o que pode ser opressivo num ensino no finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, so as formas discursivas atravs das quais ele proposto. J que este ensino tem por objeto, como tentei sugerir, o discurso preso fatalidade de seu poder, o mtodo no pode realmente ter por objeto seno os meios prprios para baldar, desprender, ou pelo menos aligeirar esse poder. E eu me persuado cada vez mais, quer ao escrever, quer ao ensinar, que a operao fundamental desse mtodo de desprendimento , ao escrever, a fragmentao, e ao expor, a digresso ou, para diz-lo por uma palavra preciosamente ambgua: a excurso. Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se tranaro fossem semelhantes s idas e vindas de uma criana que brinca em torno da me, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de l, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma rea de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a l importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz. (p. 43-44)
LIO DE CASA
Leyla Perrone-Moiss 319
Falei de ironia. A ironia uma forma clssica de distanciamento (ele prprio o disse, mais de uma vez); ela supe uma hierarquia, um olhar lanado de cima. Da a pergunta: a ironia no uma forma discursiva de poder? Por outras palavras: o discurso de um mestre da linguagem pode ser, alguma vez, desprotegido e inocente, como o do apaixonado de que ele fala nos Fragmentos de um discurso Amoroso? Como se jogam os afetos e as defesas numa Aula Inaugural? (p. 57) A sintaxe barthesiana no coloca problemas particulares para o tradutor portugus ou brasileiro, contanto que este utilize corretamente os recursos de preciso e de elegncia oferecidos por nossa lngua. Para o crtico, essa no-resistncia da sintaxe se presta reflexo: a sintaxe clssica , para Barthes, um meio ou uma camuflagem. Mas preciso que o tradutor esteja atento pontuao, que marca a distribuio da frase; porque Barthes tira seus efeitos de enunciao do modo como fragmenta a frase e joga com seus fragmentos. Em Barthes, a pontuao que sacode a tirania da frase. (p. 68)
Qualquer fragmento de O Prazer do Texto ou de Roland Barthes por Roland Barthes (a Aula um pouco diferente, devido ao jogo retrico a que j aludi) poderia servir de exemplo: virgulas, pontos-e-virgulas, dois-pontos, pontos de interrogao se sucedem, evitando ou adiando o ponto final; travesses e parnteses marcam numerosos encaixes; e, como as aspas no so suficientes para indicar as diferentes razes ou maneiras de isolar certas palavras, estas so freqentemente grifadas. S falta o ponto de ironia, que um certo Alcanter de Brahm inventou, sem grande xito, no sculo passado. (p. 69)
320
LA CHAMBRE CLAIRE, Cahiers du Cineme/Gallimard/Seuil 1980
OBRA NMERO 15 UTILIZADA NA TESE
A CMARA CLARA Nota sobre a fotografia Traduo de Jlio Castaon Guimares EDITORA NOVA FRONTEIRA, 1984
A palavra fragmento no foi encontrada neste livro!
321
L'OBVIE ET L'OBTUS The Responsibility of Forms, ditions du Seuil, 1982
OBRA NMERO 16 UTILIZADA NA TESE
O BVIO E O OBTUSO, Traduo de Isabel Pascoal, Lisboa: Edies 70, Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES COLEO SIGNOS 42 1984
Nota do editor francs E por ltimo, no esqueamos: R. B., que dedicava a mxima ateno ao mais infinito pormenor que se ligasse atividades do escritor, foi sempre quem redigiu o essencial do << favor inserir>> dos seus livros, assim como quis ser o autor do Roland Barthes dos crivains de toujours: isto basta para dizer at que ponto o editor, ao intervir agora, se sente inoportuno ao assumir a inteira responsabilidade do discurso 1
1 Num caso, a regra barthesiana de no confundir o escrito com o oral foi transgredida: na conferencia sobre Charles Panzra proferida em Roma em 1977; e isso porque dispnhamos de um texto inteiramente redigido que nos pareceu ser importante, no s porque completa os escritos sobre a msica mas tambm pelo seu alcance biogrfico.
No campo da pintura, todos os ensaios escritos por R. B. e todos escritos relativamente tarde podem ter sido reunidos agora devido ao acordo muito facilmente obtido entre os diferentes editores, se no tivssemos de considerar parte, embora o lamentemos, o caso de um escritor a Steinberg, encomendado h vrios anos e redigido na ltima fase de Barthes a dos fragmentos. A publicao original deste livro, apesar do texto de R. B. Estar pronto desde 1977, s agora se tornou vivel. (p. 10)
322
A mensagem fotogrfica
Os processos de conotao
6. Sintaxe
J falamos aqui de uma leitura de objectos-signos no interior de uma mesma fotografia; naturalmente, vrias fotografias podem constituir -se em seqncia ( o caso corrente nas revistas ilustradas); o significante de conotao j no se encontra ento ao nvel de nenhum fragmento da seqncia, mas no nvel (supra-segmental, diriam os lingistas) do encadeamento. Vejamos quatro instantneos de uma caada presidencial em Rambouillet; em cada tiro o ilustre caador (Vicente Auriol) aponta a espingarda para uma direo imprevista, com grande perigo para os guardas que fogem ou se lanam por terra: a seqncia (e s a seqncia) d a ler um cmico, que surge, segundo um processo bem conhecido, da repetio e da variao das atitudes. A propsito disto, preciso notar que a fotografia solitria muito raramente (isto , muito dificilmente) cmica, contrariamente ao desenho; o cmico tem necessidade de movimento, isto , de repetio, (o que fcil no cinema), ou de tipificao (o que possvel no desenho), estando estas duas <<conotaes>> interdi tadas fotografia. (p. 20)
Retrica da imagem
A mensagem lingstica
A ancoragem a funo mais freqente da mensagem lingstica; encontramo-la vulgarmente na fotografia de imprensa e na publicidade. A funo de etapa mais rara (pelo menos no que diz respeito imagem fixa); encontramo-la sobretudo nos desenhos humorsticos e nas bandas desenhadas. Aqui, a palavra (a maior parte das vezes um fragmento de dilogo) e a imagem esto numa relao complementar; as palavras so ento fragmentos de um sintagma mais geral, tal como as imagens, e a unidade da mensagem faz-se a um nvel superior: o da histria, da anedota, da diegese (o que confirma bem que a diegese deve ser tratada como um sistema autnomo 2 ). Rara na imagem fixa, esta palavra-etapa torna-se muito importante no cinema, onde o dilogo no tem uma funo simples de elucidao, mas onde ela faz verdadeiramente avanar a 323
ao ao colocar na seqncia das mensagens, sentidos que no se encontram na imagem. (p. 33) 2 Cf. Claude Bremond, <<l message narratif>>, in Communications, 4, 1964.
O terceiro sentido
O sentido obtuso
[...] Toda a gente julgo, pode convir que a etnografia proletria de S. M. E., fragmentada ao longo das exquias de Vakoulintchouk, tem constantemente algo de enamorado (utilizando esta palavra aqui sem especificao de idade ou de sexo): material, cordial e viril, <<simptico>> sem nenhum recurso aos esteretipos, o povo eisensteiniano essencialmente amvel: saboreamos, amamos os dois crculos de bon da imagem X. entramos em cumplicidade, em inteligncia com eles. (p. 50)
O fotograma
O fotograma d-nos o dentro do fragmento: seria preciso retomar aqui, deslocando-as, as formulaes do prprio S. M. E., quando ele enuncia as novas possibilidades da montagem audiovisual (n. 218): <<... o centro de gravidade fundamental... transfere-se pra dentro do fragmento, nos elementos includos na prpria imagem. E o centro de gravidade j no o elemento <<entre os planos>> - o choque, mas o elemento <<no plano>> - a acentuao no interior do fragmento>>... sem dvida, no h nenhuma montagem audiovisual no fotograma; mas a frmula de S. M. E. geral, na medida em que ela estabelece um direito disjuno sintagmtica das imagens, e pede uma leitura vertical (ainda um termo de S. M. E.) da articulao. Alm disso, o fotograma no uma amostra (noo que suporia uma espcie de natureza estilstica, homognea, dos elementos do filme), mas uma citao (sabemos quando este conceito ganha atualmente importncia na teoria do texto): , ao mesmo tempo, pardico e disseminador; no uma pitada retirada quimicamente da substncia do filme, mas antes o rasto de uma distribuio superior dos traos de que o filme vivido, passado, animado, no seria em suma, seno um texto, entre outros. O fot ograma ento fragmento de um segundo texto cujo ser no excede nunca o fragmento; filme e fotograma encontram-se numa relao de palimpsesto, sem que se possa dizer que um o acima do outro ou que um extrado do outro. Enfim, o 324
fotograma levanta a restrio do tempo flmico; esta restrio forte, ainda obstculo daquilo a que se poderia chamar o nascimento adulto do filme (nascido tecnicamente, por vezes mesmo esteticamente, o filme tem ainda de nascer teoricamente). (p. 58)
O teatro grego
As obras
[...] A diferena (capital), era que o ditirambo se representava sem atores (mesmo se havia solos), e sobretudo sem mscaras e sem trajos. O coro era numeroso: cinqenta executantes, crianas (de menos de dezoito anos) ou homens. Era um coro cclico, quer dizer que as danas do coro se faziam na orquestra volta da tmele,e no de frente, em face do pblico, como na tragdia. A msica utilizava sobretudo modos orientais, era de significao tumultuosa (por oposio ao pan apolneo); esta msica tornou-se cada vez mais importante do que o texto aproxima tambm o ditirambo da nossa pera. No nos resta nenhum destes ditirambos, salvo alguns fragmentos mutilados de Pndaro. Ignorncia quase igual do drama satrico, tanto mais incomodava quanto ele seguia obrigatoriamente toda a trilogia trgica. Deste gnero, s temos os <<Limiers>> de Sfocles, o Ciclope de Eurspedes e alguns fragmentos de squilo que acabaram de ser encontrados. (p. 63)
R. T.
Saussure conhecido pelo seu Curso de Lingstica Geral 1 , donde saiu uma boa parte da lingstica moderna. Contudo, comeamos a adivinhar, atravs de certas publicaes fragmentarias, que o grande desgnio do sbio de Genebra no era de modo nenhum fundar uma lingstica nova (diz-se que ele considerava pouco o seu Curso), mas desenvolver e impor aos outros sbios (bastante cpticos) uma descoberta que ele tinha feito e que lhe obcecou a vida (muito mais do que a lingstica estrutural): a saber, que existe, entranado no verso das poesias antigas (vdica, grega, latina) um nome (de deus, de heri) a colocado pelo poeta de uma maneira um pouco esotrica e, contudo, regular, entendendo-se este nome por seleo sucessiva de algumas letras privilegiadas. (p. 102) 325
Arcimboldo ou Retrico e Mgico
Lembremo-nos, uma vez mais, da estrutura da linguagem humana: articulada duas vezes: a seqncia do discurso pode ser segmentada em palavras, e as palavras podem ser segmentadas por sua vez em sons (ou em letras). H contudo uma grande diferena entre duas articulaes: a primeira produz unidades cada uma j com um sentido (so as palavras); a segunda produz unidades insignificantes (so os fonemas: um fonema, em si, no significa nada). Esta estrutura, sabemo-lo, no vale para as artes visuais; bem possvel decompor o <<discurso>> do quadro em formas (linha e pontos), mas estas formas no significam nada antes de serem reunidas; a pintura no reconhece seno uma articulao. Por isso, podemos compreender sem dificuldade o paradoxo estrutural das composies arcimboldescas. (p. 116-117)
Entendemos por isto que entre os dois termos da transposio subsiste um trao, uma <<ponte>>, uma certa analogia: os dentes assemelham-se <<espontaneamente>>, ou <<vulgarmente>> (visto que outros que no Arcimboldo teriam podido diz-lo) a campainhas de flores, a pequenas ervilhas na vagem; estes objetos diferentes tm formas em comum: so parcelas de matria, cortadas iguais e agrupadas arrumadas numa mesma linha; o nariz assemelha-se a uma espiga, pela sua forma oblonga e arqueada; a boca, carnuda, assemelha-se a um figo entreaberto, cujo interior esbranquiado ilumina a abertura vermelha da polpa. (p. 119)
Cy Twombly ou nom multa sed multon
Escrita
Algum aproximou TW de Mallarm. Mas o que serviu para a aproximao, a saber uma espcie de esteticismo superior que os uniria aos dois, no existe nem num nem noutro. Confrontar-se com a linguagem, como o fez Mallarm, implica uma mira muito mais sria muito mais perigosa do que a esttica. Mallarm quis desmontar a frase, veculo secular, para a Frana, da ideologia. De passagem, por arrastamento, TW desmonta a escrita. Desmontar 326
no quer forosamente dizer tornar irreconhecvel; nos textos de Mallarm, a lngua francesa reconhecida, funciona aos pedaos, l isso verdade. Nos grafismos de TW a escrita , tambm, reconhecida; ela aparece, apresenta-se como escrita. Contudo, as letras formadas j no fazem parte de nenhum cdigo grfico, como os grandes sintagmas de Mallarm j no fazem parte de nenhum cdigo retrico nem mesmo do da destruio. (p. 140)
327
LE BRUISSEMENT DE LA LANGUE, The Rustle of Language, Seuil, Paris, 1984
OBRA NMERO 17 UTILIZADA NA TESE
O RUMOR DA LNGUA Prefcio Leyla Perrone-Moiss; Traduo Mario Laranjeira; reviso de traduo Andra Stahel M. da Silva. 2 ed. So Paulo; Martins Fontes, 2004
Nota do editor francs
Entre esses dois tipos de textualidade, os Ensaios crticos. Quase tudo trata, nesta ltima coletnea que estamos a apresentar, da linguagem e da escritura literria ou, melhor dizendo, do prazer que devemos ao texto. Reconhecer-se- facilmente, ao correr das pginas, o deslocamento dos conceitos e dos procedimentos de escritura que, ao longo de quinze anos, conduz ao termo texto, e talvez o ultrapasse, por sua vez, pelo acesso ao mtodo do fragmento e a um lugar de enunciao sempre mais assumida, no projeto de ligar a escritura ao corpo; fica claro que, para R.B., o devir ia no sentido de uma proximidade de si cada vez maior. (p.XXII)
Proust deu escritura moderna a sua epopia: mediante uma inverso radical, em lugar de colocar a sua vida no seu romance, como t o freqentemente se diz, ele fez da sua prpria vida uma obra de que o livro foi como o modelo, de maneira que nos ficasse bem evidente que no Charlus quem imita Montesquieu, mas que Montesquieu, na sua realidade anedtica, histrica, no mais que um fragmento secundrio, derivado, de Charlus. (p. 60)
328
A MITOLOGIA HOJE
Assim se mostrava, assim pelo menos se me mostrava, o mito hoje. Mudou alguma coisa? No foi a sociedade francesa, pelo menos nesse nvel, pois a histria mtica tem uma amplido que no a da histria poltica; tambm no foram os mitos, tampouco a anlise; continua havendo, abundante, o mtico em nossa sociedade: igualmente annimo, esquivo, fragmentado, loquaz, exposto de uma s vez a uma crtica ideolgica e a uma desmontagem semiolgica. No, o que mudou nesses quinze anos foi a cincia da leitura, sob cujo olhar o mito, como um animal, h muito tempo capturado e observado, torna-se, entretanto, um outro objeto. (p. 77)
JOVENS PESQUISADORE [...] Ao publicar fragmentos de primeiras pesquisas, esperamos combater esse recalque; gostaramos, assim, de libertar no apenas o autor do artigo, mas o seu leitor, pois o leitor (principalmente o leitor de revista) tambm levado pela diviso das linguagens especializadas. (p. 101)
[...] Os trabalhos (quisramos poder dizer: os testemunhos) que aqui esto reunidos correspondem a esse momento em que a teoria deve se fragmentar ao sabor de pesquisas particulares. (p. 103)
A PAZ CULTURAL
[...] O resultado que essa secesso no separa apenas os homens entre si, mas cada homem, cada indivduo est lacerado em si mesmo; em mim, a cada dia, acumulam-se, sem se comunicar, vrias linguagens isoladas: estou fracionado, cindido, pulverizado (o que, alhures, seria considerado a prpria definio da "loucura"). E, ainda que eu conseguisse falar a mesma linguagem o dia todo, quantas linguagens diferentes sou obrigado a receber! (p. 111)
O ESTILO E SUA MENSAGEM
O sistema estilstico, que um sistema como outros, entre outros, tem uma funo de naturalizao, ou de familiarizao, ou de domesticao: as unidades dos cdigos de contedo so, de fato, submetidas a uma 329
descontinuidade grosseira (as aes so separadas, as notaes caracteriais e simblicas so disseminadas, a marcha da verdade fragmentada, retardada); a linguagem, sob as espcies elementares da frase, do perodo, do pargrafo, superpe a essa descontinuidade semntica, que se fundamenta na escala do discurso, a aparncia de uma continuidade; porque, embora a linguagem seja ela prpria descontnua, a sua estrutura to antiga na experincia de cada homem que ele a vive como verdadeira natureza: no se fala do "fluxo da palavra"? Que h de mais familiar, de mais evidente, de mais natural, do que uma frase lida?. O estilo "forra" as articulaes semnticas do contedo; por via metonmica, ele naturaliza a histria contada, inocenta-a. (P. 152)
[...] No tudo. A escrita literria no deve ser situada apenas em relao s suas vizinhas mais prximas, mas tambm aos seus modelos. Entendo por modelos no fontes, no sentido filolgico do termo (notemos de passagem que o problema das fontes tem sido colocado quase exclusivamente no plano do contedo), mas patterns sintagmticos, fragmentos tpicos de frases, frmulas, se quiserem, cuja origem inidentificvel, mas que fazem parte de uma memria coletiva da literatura. Escrever , ento, deixar vir a si esses modelos e transform-los (no sentido que essa palavra tomou em lingstica). (p. 156)
O DISCURSO DA HISTRIA
[...] A segunda classe de unidades constituda plos fragmentos do discurso de natureza arrazoadora, silogstica, ou, mais exatamente, entimemtica, pois que se trata quase sempre de silogismos imperfeitos, aproximativos 9 . 9. Eis o esquema silogstico de uma passagem de Michelet (Histoire du Moyen Age, t. III, liv. VI, cap. II): 1) Para desviar o povo da revolta, preciso ocup-lo. 2) Ora, o melhor meio lanar-lhe um homem. 3) Portanto, os prncipes escolheram o velho Aubriot, etc.
A ESCRITA DO ACONTECIMENTO
[...] Vale dizer, por um Aldo, que a escritura (no sentido que se lhe d aqui, que nada tem a ver com o belo estilo ou mesmo com o estilo literrio) no de modo algum um fato burgus (o que essa classe elaborou antes palavra impressa), e, por outro lado, que o acontecimento atual no pode f ornecer mais do que alguns fragmentos marginais de escritura, que vimos no serem 330
necessariamente impressos; ter-se-o por suspeitas qualquer evico da escritura, qualquer primazia sistemtica da palavra, porque, qualquer que seja o libi revolucionrio, urna e outra tendem a conservar o antigo sistema simblico e recusam ligar a sua revoluo da sociedade. (p. 197-198)
A ESTRANGEIRA
Embora recente, a semiologia j tem histria. Derivada de uma formulao olmpica de Saussure ("Pode-se conceber uma cincia que estude a vida dos signos no seio da vida social"), ela no cessa de colocar -se prova, de fracionar-se, de dessituar-se, de entrar nesse grande carnaval das linguagens descrito por Julia Kristeva. O seu papel histrico hoje ser a intrusa, a terceira, aquela que perturba esses bons casais exemplares, sempre a ns impingidos, que so, ao que parece, a Histria e a Revoluo, o Estruturalismo e a Reao, o determinismo e a cincia, o progressismo e a crtica dos contedos. Dessa "perturbao de convivncia", pois que convivncias h, o trabalho de Julia Kristeva hoje a orquestrao final: ativa-lhe a fora e d-lhe a teoria. (p. 214)
A RASURA
[...] E porque basicamente toda crispao de frio do habitat cayroliano a do esquecimento; em Cayrol, nada de runas nobres, restos de p, fragmentos slidos e bem plantados de antigos edifcios suntuosos; nem mesmo - ou poucas - manses arruinadas, desfeitas; tudo est, pelo contrrio, no lugar, mas com um toque de esquecimento aberto que d arrepios (no esse um dos temas de Muriel?); nada est estragado nesse mundo cayroliano, os objetos funcionam, mas tudo est deserdado, como aquele quarto de Corps trangers, que o narrador um dia descobre em sua prpria casa, por baixo do papel colado na parede, e onde objetos do passado (talvez at um cadver?) esto ali imveis, encantados sem encantamento, vibrando ao vento agudo da chamin. (p. 235-236)
[...]Esse esquecimento em que as personagens se debatem sem terem muita conscincia disso, esse esquecimento no uma censura; o universo cayroliano no est carregado com uma culpa escondida, nunca nomeada; diante desse mundo, nada h para decifrar; o que nele falta no so fragmentos de tempo culpado, mas to-somente fragmentos de puro tempo, o que para o 331
romancista necessrio no dizer para separar um pouco o homem da sua prpria vida e da vida dos outros, para t orn-lo ao mesmo tempo mais familiar e mais despegado. (p. 238)
MODERNIDADE DE MICHELET
Ento, que fazer? Nada. Que cada um se arranje com o texto de Michelet segundo o seu bel-prazer. Visivelmente, no estamos ainda maduros para uma leitura discriminatria, que aceitasse fragmentar, distribuir, pluralizar, despegar, dissociar o texto de um autor conforme a lei do Prazer. Ainda somos telogos, no dialticos. Preferimos jogar a criana com a gua da banheira a nos sujar. Ainda no estamos bastante educados para ler Michelet. (p. 268)
BRECHT E O DISCURSO: CONTRIBUIO PARA O ESTUDO DA DISCURSIVIDADE
O encadeamento
A crtica do continuum (aqui aplicada ao discurso) constante em Brecht. Uma de suas primeiras peas, Na selva das cidades, parece ainda enigmtica a muitos comentaristas porque dois parceiros se entregam a um jogo incompreensvel, no no nvel de cada uma das suas peripcias, mas no nvel do conjunto, isto , segundo uma leitura contnua; o teatro de Brecht , desde ento, uma seqncia (no uma conseqncia) de fragmentos cortados, privados daquilo que em msica se chama de efeito Zeigarnik (tal efeito provm de a resoluo final de uma seqncia musical lhe conferir retroativamente o sentido). O descontnuo do discurso impede o sentido fi nal de "retomar-se": a produo crtica no espera; quer-se instantnea e repetida: a prpria definio do teatro pico segundo Brecht. O pico aquilo que corta (repica) o vu, desagrega a pez da mistificao (ver o prefcio de Mahagonny).
A mxima O elogio do fragmento (da cena que vem "por si mesma") no o da mxima. A mxima no um fragmento; primeiro, porque a mxima , em geral, o ponto de partida de um raciocnio 'implcito, o princpio de um contnuo que se desenvolve sub-repticiamente num intertexto de sabedoria que habita o leitor; em seguida, porque o fragmento brechtiano nunca generalizante, no 332
"conciso", no "condensa"; ele pode ser bastante frouxo, dist endido, nutrido de contingncias, de especificaes, de dados dialticos; j a mxima um enunciado de que se subtrai a Histria: resta o blefe da "Natureza". (p. 275)
Leituras II F.B. 1
1. Estilhaos de linguagem
Os textos de RB. bem podem ser os sinais precursores de uma grande obra ligada, o autor no obriga em nada o seu leitor, e o que cada um desses textos nos diz a sua realizao. O que realizado, aqui, a escritura. De todas as matrias da obra, s a escritura, com efeito, pode dividir-se sem deixar de ser total: um fragmento de escritura sempre uma essncia de escritura. Eis por que, quer se queira quer no, todo fragmento acabado, a partir do momento em que escrito; eis tambm por que no se pode comparar uma obra partida a uma obra seguida; eis, enfim, por que ningum consegue negar a grandeza das obras fragmentrias: no grandeza da runa ou da promessa, mas grandeza do silncio que acompanha todo acabamento (s a erudio, que o contrrio da leitura, pode ver nos Pensamentos, de Pascal, uma obra inacabada). Porque so escritos, os textos de RB. no so nem esboos, nem anotaes, nem materiais, nem exerccios; no levam a pensar nem na caderneta nem no dirio: so estilhaos de linguagem. 1 . Indito, esse texto foi escrito margem de fragmentos de um jovem escritor que parece no ter prosseguido nesta via, na da literatura em seguida, e nada publicou. Texto, pois, escrito margem e em inteno daquele cujo procedimento invoca como testemunho. A isso ele deve o tom e a destreza claramente ldicos. Isso no o impede pelo contrrio de constituir um sistema de proposies agudas sobre um novo tipo de romanesco no dissemos: de romance - em que no se pode deixar de reconhecer in ncleo, desde 1964, certas caractersticas da prtica ltima as derradeiras e mais novas realizaes de Barthes escritor. (N. do E. Fr.) (p. 282-283)
AS SADAS DO TEXTO
Eis um texto de Bataille: L gros orteil 1 (O dedo do p). 333
Esse texto, no vou explic-lo. Vou apenas enunciar alguns fragmentos que sero como sadas do texto. Esses fragmentos estaro em estado de ruptura mais ou menos acentuada uns com relao aos outros: no tentarei ligar, organizar essas sadas; e para estar mais seguro de frustrar qualquer ligao (qualquer planejamento do comentrio), para evitar toda retrica do "desenvolvimento", do assunto desenvolvido, dei um nome a cada um desses fragmentos e dispus esses nomes (esses fragmentos) em ordem alfabtica* - que , como se sabe, ao mesmo tempo uma ordem e uma desordem, uma ordem privada de sentido, o grau zero da ordem. Ser uma espcie de dicionrio (Batae coloca um no fim de Documents} que tomar de vis o texto tutor. 1. Georges Bataille, Documents, Paris, Mercure de France, 1968, pp. 75-82. (Retomado no t. l das Qeuvm completes. Paris, Gallmard, 1970.) * Traduzidos para portugus, esses "fragmentos" no mantm a ordem alfabtica. (N- do T.) (p. 300)
DURANTE MUITO TEMPO FUI DORMIR CEDO
[...] A indeciso de Proust profunda, na medida em que Proust no um novio (em 1909, tem trinta e oito anos); j escreveu, e o que escreveu (principalmente em nvel de certos fragmentos) pertence muitas vezes a uma forma mista, incerta, hesitante, ao mesmo tempo romanesca e intelectual; por exemplo, para expor as suas idias sobre Sainte-Beuve (domnio do Ensaio, da Metfora), Proust escreve um dilogo fictcio entre a me e ele (domnio da Narrativa, da Metonmia). No s essa indeciso profunda, mas talvez seja tambm querida: Proust admirou e gostou de escritores que verificou terem praticado, tambm eles, cerra indeciso de gneros: Nerval e Baudelaire. (P. 351) [...] O interesse , no entanto, capital: est em abrir as comportas do Tempo: abalada a cronologia, fragmentos, intelectuais ou narrativos, vo formar uma seqncia que se subtrai lei ancestral da Narrativa ou do Raciocnio, e essa seqncia produzir, sem forar, a terceira forma, nem Ensaio, nem Romance. (P. 353)
A fala pacfica Esse despojamento no pode dar-se sem resistncias. A primeira de ordem cultural: a recusa da violncia passa por uma mentira humanista, a cortesia (modo menor dessa recusa) por um valor de classe, e a receptividade 334
por uma mistificao aparentada ao dilogo liberal. A segunda resistncia de ordem imaginria: muitos desejam uma fala conflituosa por desrecalque, tendo a retirada do confronto, dizem, alguma coisa de frustrante. A terceira resistncia de ordem poltica: a polmica uma arma essencial da luta; todo espao de fala deve ser fracionado para que se manifestem as suas contradies, deve ser submetido a uma vigilncia. (p. 410)
Moralidade
Decidamos falar de erotismo em todo lugar onde o desejo tiver um objeto. Aqui, os objetos so mltiplos, mveis, ou, ainda melhor, passantes, tomados num movimento de aparecimento/desaparecimento: so fragmentos de saber, sonhos de mtodo, pedaos de frases; a inflexo de uma voz, o jeito de uma roupa, em resumo, tudo aquilo que constitu o enfeite de uma comunidade. Isso difunde, circula. To prximo, talvez, do simples perfume da droga, esse leve eretismo descongela, desprende o saber, alivia-o de seu peso de enunciados; dele faz precisamente unia enunciao e funciona como a garantia textual do trabalho. (p. 216)
AO SAIR DO CINEMA
Eis como eu me torno uma imagem (uma batata frita) sob a ofensiva de um sistema de linguagem totalmente menor: o parisianismo dndi e "impertinente" com relao aos Fragmentos de um discurso amoroso: "Delicioso ensasta, favorito dos adolescentes inteligentes, colecionador de vanguardas, Roland Barthes desfia lembranas que no o so, no tom da mais brilhante conversao de salo, mas com um pouco de pedantismo estreito a respeito do 'arrebatamento'. A se encontraro Nietzsche, Freud, Flaubert e os outros." 2 Nada a fazer, tenho de passar pela Imagem; a imagem uma espcie de servio militar social: no posso ficar isento; no posso ser reformado, desertar, etc. Vejo o homem doente de Imagens, doente de sua Imagem. Conhecer a prpria Imagem torna-se uma busca apaixonada, esfalfante (nunca se consegue), anloga teimosia de algum que quer saber se tem razo de ter cimes ("Misria da minha vida", diz Golaud a interrogar em vo Melisanda moribunda). 1. Lgoste, n 2, maio de 1977.
335
DELIBERAO
Por mais que releia esses dois fragmentos, nada me diz que sejam publicveis; nada me diz tampouco que no o sejam. Ei s-me aqui em face de um problema que me ultrapassa: o da "publicabilidade"; no: " bom, ruim?" (forma que todo autor d pergunta), mas: " publicvel ou no?" No apenas uma questo de editor. A dvida deslocada, desliza da qualidade do texto para a sua imagem. (p. 458)
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L'AVENTURE SMIOLOGIQUE, The Semiotic Challenge, 1985
OBRA NMERO 18 UTILIZADA NA TESE
A AVENTURA SEMIOLGICA, Traduo Mrio Laranjeira Martins Fontes, 2001
A.5.2. A declamatio, a ekphrasis
No plano sintagmtico, um exerccio preponderante: a declamatio (melete); uma improvisao regulamentada sobre um tema; por exemplo: Xenofonte recusa sobreviver a Scrates, os cretenses afirmam que possuem o tmulo de Zeus, o homem apaixonado por uma esttua, etc.; a improvisao relega para um segundo plano a ordem das partes (dispositio); o discurso, por no ter finalidade persuasiva mas puramente ostentatria, desestrutura-se, atomiza-se em uma seqncia frouxa de trechos brilhantes, justapostos segundo um modelo rapsdico. O principal desses trechos (gozava de uma altssima cotao era a descriptio ou ekphrasis. A ekphrasis um fragmento antolgico, transfervel de um discurso para outro: um descrio regulamentada de lugares, de personagens (origem dos topoi da Idade Mdia). Assim aparece uma nova unidade sintagmtica, o trecho: menos extenso do que as partes tradicionais do discurso, maior do que o perodo; essa unidade (paisagem, retrato) deixa o discurso oratria (jurdico, poltico) e se integra facilmente na narrao, no contnuo romanesco: uma vez mais, a retrica "avana" sobre a literatura. (p. 24)
B.IA. Provas fora-da-techn
Que ao tem o orador sobre as provas atechnoi? No pode conduzi-Ias (induzir ou deduzir); pode apenas, porque elas so "inertes" em si, arranj-las, valoriz-las por uma disposio metdica. Quais so elas? So fragmentos e real que entram diretamente na dispositio, mediante um simples fazer-valer, no por uma transformao; ou ainda: so elementos do "dossi" que se podem 337
inventar (deduzir) e que so fornecidos pela prpria causa, pelo cliente (estamos por enquanto no puro judicial). Essas pisteis atechnoi so classificadas da seguinte forma; h: 1. os praejudicia, sentenas anteriores, a jurisprudncia (o problema est em destru-los sem atac-los de frente); 2. os rumores, o testemunho pblico, o consensus de toda uma cidade; 3. as confisses sob tortura (tormenta, quaesita): nenhum sentimento moral, mas um sentimento social com relao tortura: a Antiguidade reconhecia o direito de torturar os escravos, no os homens livres; 4. as peas (tabulae): contratos, acordos, transaes entre particulares, at s relaes foradas (roubo, assassnio, assalto, afronta); 5. o juramento (jusjurandum): o elemento de todo um jogo combinatrio, de uma ttica, de uma linguagem: pode-se aceitar jurar ou recusar, aceita-se ou recusa-se o juramento do outro, etc.; 6. os testemunhos (testimonia): so essencialmente - pelo menos para Aristteles- testemunhos nobres, oriundos quer de poetas antigos (Slon citando Homero para apoiar as pretenses de Atenas sobre Salamina), quer de provrbios, quer de contemporneos notveis; so pois preferencialmente "citaes". (p. 53)
B.l.5. Sentido das atechnoi
As provas "extrnsecas" so prprias ao judicirio (os rumores e os testimonia podem servir ao deliberativo e epidctica); mas pode-se imaginar que elas servem no particular, para julgar uma ao, saber se se deve louvar, etc. o que fez Lamy. Da essas provas extrnsecas poderem alimentar representaes fictcias (romance, teatro); preciso no entanto cuidar que no so ndices, que fazem parte, estes, de um arrazoado; so simplesmente os elementos de um dossi que vem do exterior, de um real j institucionalizado; em literatura, essas provas serviriam para compor romances-dossis (encontraram-se alguns), que renunciariam a qualquer escrita amarrada, a qualquer representao seguida e dariam apenas fragmentos o real j constitudos em linguagem pela sociedade. bem o sentido das atechnoi: so elementos constitudos da linguagem social, que entram diretamente no discurso, sem serem transformados por nenhuma operao tcnica do orador, do autor.
B.l.6. Provas dentro-da-techn
A esses fragmentos da linguagem social dados diretamente, no estado bruto (ressalvada a valorizao de um arranjo), opem-se os arrazoados que dependem, estes sim, inteiramente do poder do orador (pisteis entechnoi). 338
Entechnos quer dizer aqui: que pertence a uma prtica do orador, pois o material transformado em fora persuasiva por uma operao lgica. Essa operao, rigorosamente, dupla: induo e deduo. As pisteis entechnoi se dividem ento em dois tipos: 1. o exemplum (induo); 2. o entimema (deduo);trata-se, evidentemente, de uma induo e de uma deduo no cientficas, mas simplesmente "pblicas" (para o pblico). Essas duas vias so impositivas: todos os oradores, para produzir a persuaso, demonstram mediante exemplos ou mediante entimemas; no h outros meios afora esses (Aristteles). Entretanto uma espcie de diferena quase esttica, uma diferena de estilo, introduziu-se entre o exemplo e o entimema: o exemplum produz uma persuaso mais suave, mais bem aceita pelo vulgo; uma fora luminosa, incentivando o prazer que inerente a toda comparao; o entimema, mais poderoso, mais vigoroso, produz uma fora violenta, perturbadora, beneficia-se da energia do silogismo; opera um verdadeiro rapto, a prova, com toda a fora da sua pureza, de sua essncia. (p.54-55)
B.I.II. Metamorfoses do entimema
Eis algumas variedades de silogismos retricos: 1. o prossilogismo, encadeamento de silogismos em que a concluso de um passa a ser a premissa do seguinte; 2. o sorite (soros, o monte), acumulao de premissas ou seqncia de silogismos truncados; 3. o epiquirema (conforme foi comentado na Antiguidade), ou silogismo desenvolvido, em que cada premissa vem acompanhada de sua prova; a estrutura epiquiremtica pode estender -se a todo um discurso em cinco partes: proposio, razo da maior, assumpo ou menor, prova da menor, complexo ou concluso: A. .. pois ... Ora, B. .. pois ... Logo C 23 ; 4. o entimema aparente, ou arrazoado baseado numa espcie de passe de mgica, um jogo de palavras; 5. a mxima (gnom, sententia): forma muito elptica, mondica, um fragmento de entimema cujo restante fica virtual: "Nunca se deve dar aos filhos um excesso de saber (pois eles colheriam a inveja de seus concidados) 24 . Evoluo significativa, a sententia emigra da inventio (do arrazoado, da retrica sintagmtica) para a elocutio, para o estilo (figuras de ampliao e de reduo); na Idade Mdia, ela desabrocha, contribuindo para formar um tesouro de citaes sobre todos os temas de sabedoria: frases, versos gnmicos decorados, colecionados, classificados por ordem alfabtica. 23. Um epiquirema expandido: todo o Pro Milone de Ccero: l. permitido matar aqueles que nos armam ciladas; 2. provas tiradas da lei natural, do direito dos povos, de exempla; 3. ora, Clodius armou ciladas para Milon; 4. 339
provas tiradas dos fatos; 5. Logo, era permitido a Milon matar Clodius. (p.59-60)
B.1.20. A Tpica: uma grade
O segundo sentido o de uma grade de formas, de um percurso quase ciberntico ao qual submetida a matria que se quer transformar em discurso persuasivo. Deve-se imaginar as coisas assim: d-se um tema (quaestio) ao orador; para encontrar argumentos, o orador "desloca" o tema ao longo de uma grade de formas vazias: do contato do tema com cada casa (cada "lugar") da grade (da Tpica) surge uma idia possvel, uma premissa de entimema. Na Antiguidade, existiu uma verso pedaggica desse procedimento: a chrie (chreia), ou exerccio "til", era uma prova de virtuosismo, imposta aos alunos, que consistia em fazer passar um tema por uma srie de lugares: quis? quid? ubi? quibus auxiliis? cur? quomodo? quando? Inspirando-se em tpicas antigas, Lamy, no sculo XVII, prope a grade seguinte: o gnero, a diferena, a definio, a enumerao das partes, a etimologia, os conexos (campo associativo do radical), a comparao, a repugnncia, os efeitos, as causas, et c. Suponhamos que tenhamos de fazer um discurso sobre a literatura: a gente "seca" (motivo no falta), mas, felizmente, dispomos de tpica de Lamy: podemos ento, pelo menos, fazer-nos perguntas e tentar responder a elas: a que "gnero" vinculamos a literatura? arte? discurso? produo cultural? Se uma "arte", qual a diferena em relao s outras artes? Quantas partes atribuir -lhe e quais? Que nos inspira a etimologia da palavra? Qual sua relao com os vizinhos morfolgicos (literrio, literal, letras, letrado, etc.)? Com que a literatura est numa relao de repugnncia? o Dinheiro? a Verdade?, etc. 27 A conjuno da grade com a quaestio semelhante do tema com os predicados, do sujeito com os atributos: a "tpica atributiva" conhece o apogeu nas tabelas dos Lullistas (ars brevis): os atributos gerais so espcies de lugares. - V-se o alcance da grade tpica: as metforas que dizem respeito ao lugar (topos) so bastante indicativas para ns: os argumentos escondem-se, esto encolhidos em regies, profundezas, bases de onde preciso cham-los, despert-los: a Tpica d luz o latente; uma forma que articula contedos e produz assim fragmentos de sentido, unidades inteligveis. 27 . Essas grades tpicas so estpidas; no tm nenhuma relao com a "vida", a"verdade"; teve-se razo de bani-Ias do ensino moderno etc.: certamente: mas ainda seria preciso que os "temas" de trabalhos (de lies de casa, de dissertao) sigam esse belo movimento. No momento em que estou 340
escrevendo isto, ouo que um dos "t emas" do ltimo baccalaurat (no sistema escolar francs, exame a que podem submeter-se os alunos que terminam o curso secundrio; ttulo que se obtm com a aprovao nesse exame [N. do T.]) era algo como: Ainda necessrio respeitar os idosos? Para esse tema estpido, tpica indispensvel. (p. 69)
B.2.5. o exrdio
O exrdio compreende canonicamente dois momentos. 1. A captatio benevolentiae, ou iniciativa de seduo com relao aos ouvintes, de quem se trata de conciliar imediatamente as boas graas mediante uma prova de cumplicidade. A capta tio foi um dos elementos mais estveis do sistema retrico (floresce ainda na Idade Mdia e at em nossos dias); segue um modelo muito elaborado, codificado segundo a classificao das causas: a via de seduo varia conforme a relao entre a causa e a doxa, a opinio corrente, normal: a. se a causa se identificar com a doxa, se se tratar de uma causa "normal", de bom tom, no ser til submeter o juiz a nenhuma seduo, a nenhuma presso; o gnero endoxon, honestum; b. se a causa for de algum modo neutra com relao doxa, ser necessria uma ao positiva para quebrar a inrcia do juiz, despertar a sua curiosidade, faz-lo ficar atento (attentum); o gnero adoxon, humile; c. se a causa for ambgua, se, por exemplo, duas doxai entram em conflito, ser necessrio obter o favor do juiz, torn-lo benevolum, fazer com que se incline para um lado; o gnero amphidoxon, dubium; d. se a causa for emaranhada, obscura, ser preciso levar o juiz a segui -lo como guia, como iluminador, torn-lo docilem, receptivo, malevel; o gnero dysparakoloutheton, obscurum; e. finalmente, se a causa for extraordinria, suscitar o espanto situando-se muito longe da doxa (por exemplo, sustentar uma causa contra um pai, um ancio, uma criana, um cego, ir contra a human touch*),j no ser suficiente uma ao difusa junto ao juiz (uma conotao), far-se- necessrio um verdadeiro remdio, mas que esse remdio seja entretanto indireto, pois no se deve enfrentar, chocar abertamente o juiz: a insinuatio, fragmento autnomo (e no mais o simples tom) que se coloca depois do incio: por exemplo, fingir estar impressionado pelo adversrio. Tais so os modos da captatio benevolentiae. 2. A partitio, segundo momento do exrdio, anuncia as divises que sero adotadas, o plano que ser seguido (pode-se multiplicar as partitiones, colocar uma no incio, outra no fim de cada parte); a vantagem, diz Quintiliano, que nunca se acha longo aquilo de que se anuncia o termo. (p. 84) * Em ingls no texto. (N. do T.) 341
B.2.10. A confirmatio
A codificao fortssima da Dispositio (cuja marca profunda permanece na pedagogia do plano) bem atesta que o humanismo, em sua forma de pensar a linguagem, preocupou-se fortemente com o problema das unidades sintagmticas. A Dispositio um recorte entre outros. Eis alguns desses recortes, partindo das unidades maiores: 1. O discurso em sua totalidade pode formar uma unidade, se for contraposto a outros discursos; o caso das classificaes por gneros e por estilos; tambm o caso das figuras temticas, quarto tipo de figuras, depois dos tropos, das figuras de palavras e das figuras de pensamento: a figura temtica abrange toda a oratio: Dionsio de Halicarnasso distingue trs delas: a. a direta (dizer o que se quer dizer); b. a oblqua (discurso desviado: Bossuet advertindo os reis, sob colorao de religio); c. a contrria (antfrase, ironia); 2. ,s artes da Dispositio (j as conhecemos); 3. o trecho, fragmento, a ekphrasis ou descriptio (tambm as conhecemos); 4. na Idade Mdia, o articulus uma unidade de desenvolvimento: numa obra de conjunto, coletnea de Disputationes ou Summa, d-se um resumo da questo disputada (introduzido por utrum); 5. o perodo uma frase estruturada segundo um modelo orgnico (com comeo e fim); tem pelo menos dois membros (elevao e descenso, tasis e apotasis) e no mximo quatro. Abaixo (e na verdade a partir do perodo), comea a frase (orao), objeto da compositio, operao tcnica que faz parte da Elocutio. (p. 87-88)
2. Classes de unidades
Essas duas grandes classes de unidades, Funes e ndices, j deveriam permitir certa classificao das narrativas. Algumas narrativas so fortemente funcionais (tais como os contos populares) e, no extremo oposto, algumas outras so fortemente indiciais (tais como os romances "psicolgicos"); entre esses dois plos, toda uma srie de formas intermedirias, tributrias da histria, da sociedade, do gnero. Mas no s isso: no interior de cada uma dessas duas grandes classes, pode-se de imediato determinar duas subclasses de unidades narrativas. Para retomar a classe das Funes, nem todas as suas unidades tm a mesma "importncia"; algumas constituem verdadeiros gonzos da narrativa (ou de um fragmento da narrativa); outras no fazem mais que "preencher" o espao narrativo que separa as funes-gonzos: chamemos as primeiras de funes cardinais (ou ncleos) e as segundas, em vista de sua natureza completiva, de catlises. Para que uma funo seja cardinal, basta que a ao a que ela se refere 342
abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa conseqente para a conti nuao da histria, enfim, que inaugure ou conclua uma incerteza; se, num fragmento da narrativa, o telefone toca, igualmente possvel se atenda ou que no se atenda, o que no deixar de levar a histria por duas vias diferentes. Em contrapartida, entre duas funes cardinais, sempre possvel dispor noes subsidirias, que se aglomeram em torno de um ncleo ou de outro, sem modificar -lhes a natureza alternativa: o espao que separa "o telefone tocou" de "Bond atendeu" pode estar saturado por uma multido de pequenos incidentes ou pequenas descries: "Bond dirigiu-se para a mesa, pegou um receptor, colocou o cigarro no cinzeiro", etc. Essas catlises permanecem funcionais na medida em que entram em correlao com o ncleo, mas sua funcionalidade atenuada, unilateral, parasita: que se trata no caso de uma funcionalidade puramente cronolgica (descreve-se o que separa dois momentos da histria), ao passo que, no lao que une duas funes cardinais, investe-se uma funcionalidade dupla, ao mesmo tempo cronolgica e lgica: as catlises no passam de unidades consecutivas, as funes cardinais so ao mesmo tempo consecutivas e conseqentes. (p. 118-119)
SEMNTICA DO OBJETO
Outro caso de relao simples - continuamos na relao simblica entre o objeto e um significado -, o caso de todas as relaes destacadas: entendo com isso que um objeto captado em sua totalidade, ou, se se tratar de publicidade, dado em sua totalidade, s significa, entretanto, por um de seus atributos. Tenho muitos exemplos: uma laranja, embora representada inteira, s significar a qualidade do suculento e que mata a sede: o suculento que significado pela representao do objeto, no todo o objeto: exi ste pois um deslocamento do signo. Quando se representa uma cerveja, no essencialmente a cerveja que constitui a mensagem, o fato de ela estar gelada: h tambm neste caso deslocamento. o que se poderia chamar de deslocamento no mais metafrico, mas por metonmia, isto , por deslizamento de sentido. Esses tipos de significaes metonmicas so extremamente freqentes no mundo dos objetos; um mecanismo importantssimo por certo, pois o elemento significante ento ao mesmo tempo perceptvel- recebemo-lo de modo perfeitamente claro - e, no entanto, de algum modo mergulhado naturalizado naquilo que se poderia chamar de o ser-a do objeto. Chega-se assim a uma espcie de definio paradoxal do objeto: uma laranja , nesse modo enftico da publicidade, o suculento mais a 343
laranja; a laranja est sempre presente como objeto natural para sustentar uma de suas qualidades que se torna o seu signo. Depois da relao puramente simblica, h que se examinar todas as significaes que esto ligadas a colees de objetos, pluralidades organizadas de objetos; so os casos em que o sentido no nasce de um objeto, mas de um agrupamento inteligvel de objetos: o sentido fica de algum modo estendido. preciso tomar cuidado, aqui, para no comparar o objeto com a palavra em lingstica, e a coleo de objetos com a frase; seria uma comparao inexata, porque o objeto isolado j uma frase; uma questo que est agora bem elucidada pelos lingistas: a questo das palavras-frases; quando voc v, no cinema, um revlver, o revlver no o equivalente da palavra com relao a um conjunto mais amplo; o revlver por si uma frase, uma frase muito simples evidentemente, cujo equivalente lingstico seria: eis aqui um revlver. Noutras palavras, o objeto nunca est - no mundo em que vivemos - no estado de elemento de uma nomenclatura. As colees significantes de objetos so numerosas, principalmente na publicidade. Mostrei o homem que est lendo noite: existem nessa imagem quatro ou cinco objetos significantes, que concorrem para fazer passar um sentido global nico, o de distenso, de repouso: h o abajur, h o conforto do suter de l grossa, h a poltrona de couro, h o jornal; jornal no livro, no to srio, distrao: tudo isso quer dizer que se pode tomar tranqilamente um caf, noite, sem se enervar. Esses agrupamentos de objetos so sintagmas, quer dizer, fragmentos estendidos de signos. A sintaxe dos objetos , evidentemente, uma sintaxe extremamente elementar. Quando se colocam objetos juntos, no se l hes pode atribuir coordenaes to complicadas quanto na linguagem humana. Na realidade, os objetos - sejam os objetos de figuras, ou objetos reais de um ambiente, ou de uma rua - s esto ligados por uma nica forma de conexo, que a parataxe, isto , a justaposio pura e simples de elementos. Essa espcie de parataxe dos objetos extremamente freqente na vida: o regime a que esto submetidos, por exemplo, todos os mveis de um ambiente. O mobilirio de um ambiente concorre para um sentido final (para um "estilo") unicamente por justaposio de elementos. Veja-se um exemplo: trata-se de uma propaganda para uma marca de ch; preciso significar no a Inglaterra, pois as coisas so mais sutis, mas a anglicidade ou a britanicidade, se assim posso dizer, isto , uma espcie de identidade enftica do ingls: tem-se pois, neste caso, mediante um sintagma minuciosamente composto, a persiana das casas coloniais, a roupa do homem, o bigode, o gosto tpico dos ingleses pela marinha e pelo hipismo, que est ali , naqueles navios-bibels, naqueles cavalos de bronze e, finalmente, lemos espontaneamente nessa imagem, unicamente pela justaposio de certo nmero 344
de objetos, um significado extremamente forte, que justamente essa anglicidade de que eu falava. (p. 214-215)
SEMIOLOGIA E URBANISMO
A segunda observao que o simbolismo deve ser definido essencialmente como o mundo dos significantes, das correlaes e principalmente das correlaes que nunca e pode fechar numa significao plena, numa significao ltima. Doravante, do ponto de vista da tcnica descritiva, a distribuio dos elementos, isto , dos significantes, esgota de certo modo a descoberta semntica. Isso verdade para a semntica chomskiana de Katz e de Fodor, e at mesmo para as anlises de Lvi-Strauss que se fundamentam na clarificao de uma relao que j no analgica, mas homolgica ( uma demonstrao feita em seu livro sobre o totemismo, que raramente citado). Assim, descobre-se que, quando se quiser fazer a semiologia da cidade, ser preciso provavelmente levar mais adiante, e com maior mincia, a diviso significante. Para isso, fao apelo a minha experincia de amador. Sabemos que, em certas cidades, existem espaos que oferecem uma especializao acurada de funes: o caso, por exemplo, do suk oriental onde uma rua fica reservada somente para os curtidores de couro e outra para os ourives; em Tquio, certas partes de um mesmo bairro so muito homogneas sob o ponto de vista funcional: praticamente, encontram-se ali unicamente bares e lanchonetes, ou lugares de diverso. Pois bem, ser preciso ir alm desse primeiro aspecto e no limitar a descrio semntica da cidade a essa unidade; ser necessrio tentar dissociar microestruturas da mesma maneira que se pode; isolar pequenos fragmentos de frase num longo perodo; pois necessrio adquirir o hbito de fazer uma anlise bem minuciosa, que conduzir a essas microestruturas e, inversamente, ser preciso habituar-se a uma anlise mais ampla, que chegar realmente s macroestruturas. Todos sabemos que Tquio uma cidade polinucleada; possui vrios ncleos em torno de cinco a seis centros; h que se aprender a diferenciar semanticamente esses centros, que por sinal esto marcados por estaes ferrovirias. Noutros termos, mesmo nesse setor, o melhor modelo para o estudo semntico da cidade ser fornecido, acredito eu, pelo menos no incio, pela frase do discurso. E reencontraremos aqui a velha intuio de Victor Hugo: a cidade uma escrita; quem se desloca na cidade, isto , o usurio da cidade (o que todos ns somos), uma espcie de leitor que, se suas obrigaes e os seus deslocamentos, recolhe fragmentos o enunciado para atualiz-los em segredo. Quando deslocamos numa cidade, 345
estamos todos na situao do leitor dos 100.000 millions de pomes de Queneau, em que se pode achar um poema diferente mudando um nico verso; nossa revelia, somos um pouco esse leitor de vanguarda quando estamos numa cidade. (p. 227-228)
A ANLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA A respeito de Atos 10-11
4. Disposies operacionais Prefiro esta expresso quela, mais intimidante, de mlodo, pois no estou seguro de que possuamos um mtodo; mas h certo nmero de disposies operacionais na pesquisa, de que necessrio falar. Parece-me (esta uma posio pessoal que pode mudar) que, se se trabalhar sobre um s texto (anteriormente ao trabalho comparativo de que falei e que a prpria finalidade da Anlise estrutural clssica), dever-se- prever trs operaes. 1. Recorte do texto, isto , do significante material. Esse recorte pode ser, a meu ver, inteiramente arbitrrio; em certo estgio da pesquisa, no h nenhum inconveniente nessa arbitrariedade. uma espcie de quadriculado do texto, que d fragmentos do enunciado sobre os quais se vai trabalhar. Ora, precisamente, para o Evangelho, e mesmo para toda a Bblia, esse trabalho est feito, pois que a Bblia est recortada em versculos(para o Alcoro, em suratas). O versculo uma excelente unidade de trabalho do sentido; visto que se trata de decantar os sentidos, as correlaes, a peneira do versculo de excelente medida. Alis, muito me interessaria saber de onde vem o recorte em versculos, se est ligado natureza citacional da Palavra, quais so as ligaes exatas, as ligaes estruturais, entre a natureza citacional da palavra bblica e o versculo. Para outros textos, propus chamar de "lexias", de unidades de leitura, esses fragmentos de enunciados sobre os quais se trabalha. Um versculo, para ns, uma lexia. 2. Inventrio dos cdigos que so citados no texto: inventrio, coleta, localizao, ou, como acabei de dizer, decantao. Lexia aps lexia, versculo aps versculo, tenta-se inventariar os sentidos na acepo que j disse, as correlaes ou as partidas de cdigos presentes nesse fragmento de enunciado. Vou voltar a isso pois que vou fazer este trabalho sobre alguns versculos.(p. 264-265)
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2. O cdigo das aes As seqncias de aes, constitudas segundo uma estrutura lgico-temporal, apresentam-se ao fio da narrativa segundo uma ordem complicada: dois termos de uma mesma seqncia podem estar separados pela apario de termos pertencentes a outras seqncias; esse entrelaamento de seqncias forma a trana da narrativa (no esqueamos que etimologicamente texto quer dizer tecido). Aqui, o entrelaamento relativamente simples: existe certo simplismo da narrativa e esse simplismo se deve justaposio pura e simples das seqncias (no so intrincadas). Ademais, um termo de uma seqncia pode representar por si s uma subseqncia (o que os cibemeticistas chamam de "brique" [tijolo]); a seqncia do anjo compreende quatro termos: entrar / ser visto / comunicar / sair; um desses quatro termos, a comunicao, constitui uma ordem (um comando) que se subdivide, ela prpria, em termos secundrios (interpelar / pedir / razo da escolha / contedo da interpelao / execuo); existe de algum modo procurao de uma seqncia de aes para um termo encarregado de represent-la numa outra seqncia de aes: saudar / responder; este fragmento de seqncia representa certo sentido ("eu tambm sou um homem"). (p. 275-276)
ANLISE TEXTUAL DE UM CONTO DE EDGAR POE
Para proceder anlise textual de uma narrativa, vamos seguir certo nmero de disposies operacionais (falemos de regras elementares de manipulao, de preferncia a princpios metodolgicos: a palavra seria por demais ambiciosa e principalmente ideologicamente discutvel, na medida em que o "mtodo" postula demasiadas vezes um resultado positivista). Reduziremos essas disposies a quatro medidas expostas sumariamente, preferindo deixar a teoria correr na anlise do prprio texto. Diremos, por enquanto, apenas que necessrio para comear o mais depressa possvel a anlise do conto que escolhemos. 1. Vamos recortar o texto que proponho para o nosso estudo em segmentos contguos e em geral bem curtos (uma frase, uma poro de frase, no mximo grupo de trs ou quatro frases); numeraremos esses fragmentos partir de 1 (para cerca de dez pginas, h 150 segmentos) . Esses segmentos so unidades de leitura, razo por que propus cham-las de lexias 13 . Uma 1exia evidentemente um significante textual; mas como o nosso objetivo no aqui observar significantes (o nosso trabalho no estilstico), mas sentidos, o recorte no precisa ser fundamentado teoricamente (estando no discurso, e no 347
na lngua, no devemos esperar que haja uma homologia fcil de perceber entre o significante e o significado; no sabemos como um corresponde ao outro e, por conseguinte, no devemos aceitar cortar o significante sem ser guiado pelo recorte subjacente do significado). Em suma, o parcelamento do texto narrativo em lexias puramente emprico, ditado por uma preocupao de comodidade: a lexia um produto arbitrrio, simplesmente um segmento no interior do qual se observa a repartio dos sentidos; o que os cirurgies chamariam de campo operatrio: a lexia til aquela em que no passa seno um, dois ou trs sentidos (superpostos no volume do trecho do texto). (p. 305 e 306)
3. Nossa anlise ser progressiva: percorreremos passo a passo o comprimento do texto, pelo menos postulativamente, pois, por razes de espao, no poderemos dar aqui seno dois fragmentos de anlise. Isso quer dizer que no visaremos a estacar as grandes massas (retricas) do texto; no construiremos um plano do texto e no procuraremos a sua temtica; numa palavra, no faremos uma explicao do texto, a menos que se d palavra "explicao" o seu sentido etimolgico, na medida em que desdobraremos o texto, o folheado do texto. Deixaremos para a nossa anlise o andamento mesmo da leitura; simplesmente, essa leitura ser, de algum modo, filmada em cmara lenta. Essa maneira de proceder teoricamente importante: ela significa que no visamos a reconstituir a estrutura do texto, mas a acompanhar a sua estruturao, e que consideramos a estruturao da leitura mais importante do que a da composio (noo retrica e clssica). (P. 305-307)
ANALISE ACIONAL DAS LEXIAS 18 A 102
Entre todas as conotaes que encontramos, ou pelo menos localizamos, neste incio do conto de Poe, algumas puderam ser definidas como termos progressivos de seqncias se aes narrativas; voltaremos, para terminar, aos diferentes cdigos que foram mostrados pela anlise, dentre os quais, precisamente, o cdigo acional. Na espera desse esclarecimento terico, podemos isolar essas seqncias de aes e us-las para dar conta, s menores expensas (conservando entretanto para a nossa proposta um alcance estrutural) da continuao da histria. De fato, isso se compreender, no possvel analisar minuciosamente (menos ainda exaustivamente: a anlise textual nunca e nunca quer ser exaustiva) todo o conto de Poe: seria longo demais; pretendemos entretanto retomar a anlise textual de algumas lexias do ponto 348
culminante da obra (lexias 103-110). Para juntar o fragmento que j analisamos ao que vamos analisar, no plano da inteligibilidade, bastar que indiquemos as principais seqncias acionais que iniciam e se desenvolvem (mas no terminam forosamente) entre a lexia 18 e a 102. Infelizmente no podemos, por falta de espao, dar o texto de Poe que separa os nossos dois fragmentos, nem tampouco a numerao das lexias intermedirias; damos apenas as seqncias acionais (sem sequer, alis, poder revelar-lhes os pormenores termo a termo), em detrimento de outros cdigos, mais numerosos e por certo mais interessantes, essencialmente porque essas seqncias constituem, por definio, o arcabouo anedtico da histria (farei uma ligeira exceo para o cdigo cronolgico, indicando, por uma notao inicial ou final, o momento da narrativa em que se situa o incio de cada seqncia). 1. Programa: a seqncia comeou e se desenvolveu amplamente no fragmento alisado. Os problemas levantados pela experincia projetada so conhecidos. A seqncia prossegue e se encerra pela escolha do sujeito (do paciente) necessria experincia: ser o sr. Valdemar (o programa colocado nove meses antes do momento da narrao). (p. 321-322)
CONCLUSES METODOLGICAS
As observaes que serviro de concluso a estes fragmentos de anlise no sero forosamente "tericas"; a teoria abstrata, especulativa: a prpria anlise, embora tendo como objeto um texto contingente, j era terica, no sentido de que observava (esse era o seu objetivo) uma linguagem em vias de se fazer. Vale dizer - ou lembrar - que no procedemos a uma explicao do texto: simplesmente tentamos surpreender a narrativa medida que se constitua (o que implica ao mesmo tempo estrutura e movimento, sistema e infinito). Nossa estruturao no vai alm daquela que a leitura realiza espontaneamente. No se trata ento, para concluir, de entregar a "estrutura" do conto de Poe, ainda menos a de toda e qualquer narrativa, mas somente de voltar, de maneira mais livre, menos presa ao desenrolar-se progressivo do texto, aos principais cdigos que localizamos. (p. 333)
Tais so os cdigos que perpassaram os fragmentos que analisamos. de propsito que no os estruturamos mais, que no tentamos distribuir os termos, no interior de cada cdigo, segundo um esquema lgico ou semiolgico; que, para ns, os cdigos so apenas pontos de partida de j-lido, indcios de intertextualidade: o carter desfiado dos cdigos no o que contradiz a 349
estrutura (como, acredita-se, a vida, a imaginao, a intuio, a desordem contradizem o sistema, a racionalidade), mas ao contrrio ( a afirmao fundamental da anlise textual) parte integrante da estruturao. esse "desfiamento" do texto que distingue a estrutura objeto da anlise estrutural propriamente dita da estruturao objeto da anlise textual que se tentou praticar aqui. (p. 337-338)
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INCIDENTS Paris: ditions Du Seuil, 1987.
OBRA NMERO 19 UTILIZADA NA TESE
INCIDENTES, traduo de Tereza Coelho e Alexandre Melo Quetzal Editores Lisboa 1987
Nota do Editor O que legitima a aproximao dos textos apresentados o esforo feito pela escrita para captar o imediato. No so por- tanto nem a pesquisa terica nem o questionamento crtico (O que que isto quer dizer) que aqui so postos em aco. No que Roland Barthes, sabemo-lo bem, alguma vez tenha acreditado na possibilidade de uma inocncia metodolgica, terica ou ideolgica. Mas aqui, por um momento, mudando de mtodo, convida o leitor a identificar-se - para retomar os termos de Longtemps je me suis couch de bonne heure 1 com o autor (ele prprio); e, mais exactamente, com o seu desejo de escrever.Ponho-me com efeito na posio daquele que faz qual - quer coisa, e j no na daquele que fala sobre qualquer coisa: no estudo um produto, endosso uma produo; anulo o discurso sobre o discurso; o mundo j no vem a mim sob a forma de um objecto, mas sob a de uma escrita, quer dizer, de uma prtica: passo a um outro tipo de saber (o do Amador) ... 2. Dois textos inditos necessitam de algumas palavras de apresentao. Incidentes a notao, a recolha, de coisas vistas e ouvidas em Marrocos, no essencial em Tanger e Rabat, e depois no Sul, em 1968 e 1969. O texto estava pronto para imprimir e Roland Barthes pensava public-lo na Tel Quel. Trata-se de uma espcie de jogo, cujo objecto no de modo algum Marrocos em si, mas o romanesco - uma categoria cara a Roland Barthes 1 - tal como um certo tipo de vida em Marrocos permitia pr-lhes prova a definio. No se encontrar, portanto, aqui ( um mal-entendido que convm desde j afastar) nada de interpretativo: nada do que poderia ter sido a reflexo de Roland Barthes sobre Marrocos, o seu povo, a sua cultura ou os seus problemas sociais. Mas sim a passagem escrita de encontros - de incidentes - que poderiam ter constitudo o tecido de um romance, subtraindo praticamente todos os tipos ou personalidades 351
constitudos: restos de romance sem suportes pessoais; descontado igualmente qualquer entrosamento contnuo da narrao, que lhe imporia inevitavelmente uma mensagem: o romanesco, por essncia, fragmento Observao vlida tambm como guia para a leitura, que Roland Barthes aqui desejava descontnua, mvel como o prazer do momento. Vemo-lo bem quando Roland Barthes por Roland Barthes faz, por duas vezes, aluso a este texto. Sob o ttulo Projectos de livros: Incidentes (mini -textos, bilhetes, haikus, anotaes, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma folha) 2; e sob o ttulo Que que isto quer dizer?: Um livro inverso pode ser concebido: que contaria mil incidentes, proibindo-se de alguma vez deles extrair uma linha de sentido; seria muito exactamente um livro de haikus 3. Constatamos que aqui, de facto, o gnero constantemente especificado por uma ateno particular surpresa, ruptura de coerncia, incongruncia. Est a o incidente: o que cai obliquamente sobre os cdigos. Soires de Paris foi escrito durante cerca de vinte dias, entre 24 de Agosto e 17 de Setembro de 1979 imediatamente depois de ter sido entregue Tel Quel o texto - Delibration - em que Roland Barthes se interrogava a respeito da sua incerteza quanto prtica de manter um Dirio. O manuscrito est titulado, paginado e comporta mesmo, como veremos, indicaes para uma ltima reviso: o que assinala que estava destinado publicao - um dia mais tarde 4 No se trata exactamente de um Dirio, mas sim - como o ttulo indica - da descrio do que, no quotidiano de Roland Barthes, constitua de facto uma espcie de seco parte: a noite, sempre passada fora de casa, com extenses no fim-de-semana. Estas pginas no devem, porm, deixar de ser lidas luz de Delibration: A justificao de um Dirio ntimo (como obra) no pode ser seno literria, o sentido absoluto, mesmo que nostlgico, da palavra. 5 E Roland Barthes adianta quatro motivos; potico: oferecer um texto colorido por uma individualidade de escrita, por um estilo (dir-se-ia outrora), por um idiolecto prprio do autor; histrico: dispersar em poeira, dia a dia, os vestgios de uma poca, com todas as dimenses misturadas; utpico: constituir o autor em objecto de desejo: de um escritor que me interessa, posso gostar de conhecer a intimidade, a traduo quotidiana do seu tempo, dos seus gostos, dos seus humores, dos seus escrpulos; amoroso: constituir, enquanto idlatra da Frase, oficina... no de belas frases, mas de frases certas; apurar incessantemente a justeza da enunciao ... segundo um arreamento... que se assemelha muito paixo. Dever-se-ia, depois disto, fingir ignorar o que j por de mais sabemos - alta de generosidade, em todos os sentidos da palavra, com alguns se ho-de apoderar do que aqui se diz, designada- te, em termos de dvida quanto s formas da modernidade em termos de desespero no desejo? 352
Roland Barthes no era que recuam diante do risco de uma enunciao desde que correspondente escrita lhe parecesse fundada, desde que lhe parecesse fundada enquanto escrita: nisto que estas pginas tambm eticamente exemplares.
F. W. (Editions du Seuil)
1 R. Barthes, O Rumor da Lngua, p. 249 (da ed. port.). 2 Roland Barthes por Roland Barthes ....... 3 ibid. 4 Que se trata aqui de um exerccio ou de um primeiro fragmento, atestado por uma nota que se segue ao texto: 'interrompidas aqui (22 Set. 79) as Vs Soires. 1) Para no perder tempo e liquidar o mais depressa possvel a preparao dos Cursos. 2) Para verificar as minhas notas - e a partir de agora escrever tudo em fichas'. 5 O Rumor da Lngua, p. 304. (p. 7-9)
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LA PRPARATION DU ROMAN I, Paris: ditions Du Seuil, curso, 2003
OBRA NMERO 20 UTILIZADA NA TESE
A PREPARAO DO ROMANCE Vol. I: da vida obra Roland Barthes; texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Lger; traduo Leyla Perrone-Moiss. So Paulo Martins Fontes, 2005
O princpio organizador de cada volume a aula, pois esse o verdadeiro ritmo da leitura: ritmo que Barthes imprimia a posteriori em seu manuscrito, assinalando, pela data e a hora, o lugar em que ele se deteve naquele dia, e de onde ele deveria re-tomar na semana seguinte. Contrariamente aos cursos precedentes, em que os fragmentos ou "traos" organizavam as sesses, este constitudo por um discurso unificado que se desenrola continuamente: entretanto, esse discurso pontuado por subttulos, pausas e paradas que arejam e esclarecem a fala. (p. IX X)
[...] No fim do ms de novembro, Roland Barthes props uma variante desta, na New York University. Na semana seguinte sesso de abertura de 2 de dezembro de 1978, aparece a primeira "Chronque" de Roland Barthes no Nouvel Observateur, esses pequenos textos, publicados de 18 de dezembro de 1978 a 26 de maro de 1979, acompanharo todo o primeiro curso e, como a revista publicada aos sbados, alguns ouvintes ainda se lembram que muitos deles iam ao Collge de France com a ltima edio da "Chronique" debaixo do brao. Esses textos no so apenas as pequenas mitologias em nova maneira, to esperadas pelo pblico, mas so antes de tudo, para Barthes, uma "experincia de escritura", a "busca de uma forma", pedaos de ensaios para um romance, como ele dir na crnica de 26 de maro de 1979, que marca o fim dessa experincia jornalstica. Em janeiro de 1979, ele escreve "a prend" [Isso pega] para o Magazine littraire, texto consagrado escritura de Proust, que retoma e antecipa algumas passagens essenciais do curso. (p. XVII)
- Por outro lado, como passar da anotao, da Nota, ao Romance, do descontnuo ao fluxo (ao estendido)? Problema para mim psico-estrutural, j que isso quer dizer passar do fragmento ao no-fragmento, isto , mudar minha relao com 354
a escritura, isto , com a enunciao, e ainda com o sujeito que sou: sujeito fragmentado (= certa relao com a castrao) ou sujeito efusivo (outra relao)? Ou ainda o combate da forma breve com a forma longa. (p. 38)
b) A passagem do Fragmento ao Romance (ao texto longo): aqui usarei (pelo menos pretendo) Proust, e, mais precisamente, interrogarei o episdio biogrfico no decorrer do qual Proust pde enfim (depois de agitaes, hesitaes, indecises) lanar o grande rio de Em busca do tempo perdido. Alis, a vida de Proust me parece cada vez mais "interessante", isto , merecedora de ser interrogada do ponto de vista, da escritura: ser preciso, cada vez mais, conceber uma espcie de "cincia" (por assim dizer) da vida de Proust (histria do filme com A. T. 6 ). 6. Aluso ao projeto de filme sobre Marcel Proust, que ele pretendia escrever em colaborao com o diretor Andr Tchin. (p. 39-40)
O HAICAI "MEU" HAICAI 1
Meu problema: passar da Anotao (do Presente) ao Romance, de uma forma breve, fragmentada (as "notas") a uma forma longa, contnua > portanto a deciso de me ocupar um pouco com o haicai, para ocupar-me em seguida com o romance, menos paradoxal do que parece. Haicai = forma exemplar da Anotao do Presente = ato mnimo de enunciao, forma iiltrabreye, tomo de frase que anota (marca, cinge, glorifica: dota de uma fama 2 ) um elemento tnye de vida real, presente, concomitante. I. Para os primeiros desenvolvimentos da reflexo de Roland Barthes sobre o haicai e o zen, ver L'Empire ds signes (OC3, pp. 403 e 407). 2. Em latim no texto, significa, como em portugus, renome, reputao. (N. da T.) (p. 47-48)
Coyaud a rejeita, ele se engana, pois nenhuma outra pode substitu-la: o haicai o Inclassificvel, radicalmente -4 isto , o livro que pode ser aberto ao acaso, em qualquer sentido, sem que uma parcela de significado seja perdida. Mundo onde o Sintagma negado: nenhuma ligao possvel > emergncia do imediato absoluto: o haicai = desejo imediato (sem mediao), portanto, a funo legal da Classificao (= sempre uma lei) perturbada > Resta lembrar o quanto essa perturbao moderna, responde a uma preocupao atual: os Fragmentos, claro, mas tambm todas as artes do aleatrio (perigo: que o aleatrio no se torne seu prprio signo). (p. 68)
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No quero acrescentar nada, a no ser isto: qualquer um que tenha perdido um ente querido se lembra terrivelmente da estao; a luz, as f lores, os odores, a concordncia ou o contraste do luto com a estao: quanto se pode sofrer ao sol! No esquecer isso, diante dos prospectos de turismo! 2) E eis que alguns dias (da semana) tm tambm sua cor (a cor ao dia: material para haicai): eu havia anotado, no campo (domingo, 17 de julho de 1977): "Dir-se-ia que a manh de domingo refora o bom tempo." 11
11. Roland Barthes faz aqui referncia ao "Journal d'Urt" ["Dirio de Urt"], do qual ele publicar alguns fragmentos em Dlibration (OC5, pp. 668-81). ["Deliberao", in O rumor da lngua, op. c., p. 445.] (p. 84)
O hacai assentimento quilo que . Seria necessrio distinguir aqui (talvez! "sutileza"? No, "realidade": ver citao de Proust 11 ) entre assentimento e aprovao, adeso, consentimento (cf. pea de Vinaver, Aujourd'hui ou ls Corens [Hoje ou os coreanos] 12 , isto , via da realidade (haicai) via da verdade (discurso, ideologia) > Haicai = a arte (uma arte) de "desnatar" a realidade de sua vibrao ideolgica, isto , de seu comentrio, mesmo virtual. Talvez os mais belos haicais = aqueles que conservam um rastro, uma fragrncia dessa luta contra o sentido. Por exemplo, este: (42) As flores caem Ele fecha a grande porta do templo E vai embora (Bash) 11. Em caita citada no incio desta mesma aula: "Voc pensa que se trata de sutilezas. Oh! no, eu lhe garanto, mas de realidades, pelo contrrio." 12. Aujovrd'hui ou ls Corens, de Michel Vinaver (1956) conta a histria de um soldado francs ferido durante uma patrulha na Coreia do Norte e que, recolhido por campo-neses coreanos, fica com eles. Entusiasmado com a escrita de Vinaver, Roland Bardies redigiu vrios textos sobre essa pea, quando ela foi encenada por Roger Planchon, e principalmente na revista Thtre populaire: "Aujaurd'hui coloca um problema ideolgico novo: o de um assentimento ao mundo, postulado fora dos libis e mistificaes humanistas" (abri l de 1956); ver Roand Barthes Notes sur Aujourd'but e "Aujour-d'huiou ls Corens" (OC1, pp. 646-9 e 666-7).
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CONCLUSO
PASSAGENS
Voltar agora, pouco a pouco, nossa tarefa inicial: como passar de uma Anotao fragmentada do presente (cuja forma exemplar seria o haicai) para um projeto romanesco? Isto : o qu, do haicai, pode passar nossa reflexo ocidental, nossa prtica de escrita? > Vou indicar algumas dessas passagens. (p. 184)
1) Um levantamento das formas breves. Na literatura: mximas, epigramas, pequenos poemas, fragmentos, notas de dirio ntimo - e talvez sobretudo na msica: Variaes, Bagatelles (Beethoven, no fim de sua vida, peas recusadas plos editores), Intermezzi, Novelettes, Fantasiestcke (Schumann, principalmente, 1849, opus 73, clarineta/piano e depois violoncelo/piano), tudo isso tem relao com a captura da individuao (como o haicai). - Mas, evidentemente, o msico da Forma breve = Webern: suas peas ultrabreves + sua dedicatria a Berg: Non multa, sed multum sua arte radical do silncio, do tampo de silncio (= o Ma, o intervalo): "Um romance inteiro num simples suspiro", e um crtico, Metzger, falou da "tosse irreprimvel de que atacado o pblico cada vez que ele ouve um silncio na obra de Webern" 9 . 9. Anton von Webern (1883-1945) foi, com seu condiscpulo Alban Berg (IS85-1935), aluno de Arnold Schonberg desde 1904. Figura emblemtica da modernidade, Webern radicalizou as propostas da Escola de Viena por um profundo trabalho de depurao da estrutura musical. A brevidade (a mais longa de suas obras, Cantate opus 31, dura 11 minutos), o alongamento dos intervalos, a utilizao do silncio como material musical, so as principais caractersticas de sua esttica. "Non multa, sed multum [pouco em quantidade, muito em qualidade], como eu gostaria que isso pudesse ser aplicado ao que aqui lhe ofereo", diz a dedicatria de Cinco peas opus 10, oferecida em 1913 a Alban Berg. Sob essa mesma divisa, Roland Banhes associou Webern pintura de Cy Twombly. Ver "Cy Towmbly ou Non multa, sed multum", texto para o catlogo das obras de Twombly, Milo, 1979 (OC5, PP. 703-20). A referencia ao critico musical alemo Heiz-Klaus Metzger foi tirada de John Cage, Pour ls oiseaux, op. cit. (p. 199-200)
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d) O que aconteceu com essas Epifanias? Existe uma coletnea, ed. A. O. Silverman, Universidade de Buffalo, 1956; mas no se sabe se essa coletnea foi arranjada pelo prprio Joyce - pois o pensamento explcito de Joyce sobre essas Epifanias: em 1904, ele renuncia a utilizar esses fragmentos como tal, e decide inclu-los num romance, Stephen Hero; trata-se de "arranjar esses espasmos isolados de psiclogo < espasmo: a palavra faz tilt: Haicai, Satori, Incidente > numa cadeia organizada de momentos'', "em que a alma nasce"... "e, em vez de ser o autor de obras curtas, ele < ele Joyce, falando com Davin > devia vert-las, sem nada perder das mesmas, em obras de longo flego" 23 . Aqui: formulao exata do problema colocado ao longo deste curso - e do seguinte. 23. Citado por Richard Ellmann, ibi., p. 158. (p. 209)
Essa experincia joyciana das Epifanias me im-porta muito, ela perfeitamente adequada minha busca pessoal de uma forma anloga, que chamo de Incidente, forma experimentada aos bocados em O prazer ao texto, em Roland Banhes for Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, num texto indito (Au Maroc) e nas crnicas da revista Nouvel Observateur 24 , quer dizer que eu giro em torno disso por intermitncias, mas com insistncia e, portanto, que experimento suas dificuldades e seus atrativos. Afinidade com o haicai - mesmo se, evidentemente, no a mesma "filosofia", ou melhor, a mesma "religio" (aqui pag, l teolgica) > evidente que eu s me ocupei to longamente com o haicai por causa da relao com o Incidente (aparecer, cair sobre). Mesma problemtica do sentido no haicai, na Epifania e no Incidente, tal como eu o projetava: acontecimento imediatamente significante (c Nietzsche, Vontade de potncia: No h estado de fato 'em si', preciso, ao contrrio, introduzir primeiro um sentido antes que possa haver estado de fato 25 ) e, ao mesmo tempo, nenhuma pretenso a um sentido geral, sistemtico, doutrinal > razo, sem dvida, da recusa do discurso, do recolhimento na "dobra" (incidente), do fragmento descontnuo cf. o que o bigrafo de Joyce, Ellmann, diz das Epifanias, e de sua homogeneidade com relao ao romance moderno: tcnica "arrogante e humilde, ao mesmo tempo: ela tem pretenses de importncia, mesmo no pretendendo nada" 26 . 24. Para o conjunto desses textos redigidos entre 1973 e 1979, ver OC4 e 5. 358
25. Ver Vie et vrit, antologia de textos de Nietzsche, op. cit., p. 81; a citao foi extrada de La Volante de puissance, trad. fr. por Genevive Bianquis, Paris, Gallimard, c. I, 1947, p. 100. 26. Ver Ellmann, op. cit., p. 108. (p. 210-211)
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TEXTOS DE BARTHES
LINGSTICA E LITERATURA Coleo signos 9 Edies 70 (cole Pratique ds Hautes tudes) Ttulo original: Linguistique et Littrature (Revista Langages, n 12) 1968
A palavra fragmento no foi encontrada!
ANLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA Pesquisas semiolgicas
I ntroduo Anlise Estrutural Da Narrativa
Ttulo do original francs: LAnalyse Structural du Rcit Communications Editions du Sevil n 8/1966 Editra Vozes Ltda Petrpolis, RJ Brasil 1971
Estas duas grandes classes de unidades, Funes e ndices, deveriam j permitir uma certa classificao das narrativas. Certas narrativas so fortemente funcionais (assim os contos populares), e em oposio certos outras so fortemente indiciais (assim os romances "psicolgicos"); entre estes dois plos, toda uma srie de formas intermedirias, tributrias da histria, da sociedade, do gnero. Mas no tudo: no interior de cada uma destas grandes classes, imediatamente possvel determinar duas subclasses de unidades narrativas. Para retomar a classe das Funes, suas unidades no tm todas a mesma 360
"importncia"; algumas constituem verdadeiras articulaes da narrativa (ou de um fragmento da narrativa); outras no fazem mais do que "preencher" o espao narrativo que separa as funes-ar-ticulaes: chamemos as primeiras de funes cardinais (ou ncleos) e as segundas, em considerao sua natureza completiva, catlises. Para que uma funo seja cardinal, suficiente que a ao qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa conseqente para o seguimento da histria, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza; se, em um fragmento da narrativa, o telefone toca, igualmente possvel que seja respondido ou que no o seja, o que no impedir de levar a histria para dois caminhos diferentes. Em oposio entre duas funes cardinais, sempre possvel dispor de notaes subsidirias, que Se aglomeram em torno de um ncleo, ou de outro sem modificar-lhe a natureza alternativa: o espao que separa "o telefone tocou" e "Bond atendeu" pode ser saturado por uma multido de incidentes pequenos e de descries pequenas: "Bond se dirigiu sua mesa, levantou um receptor, posou seu cigarro", etc. Estas catlises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlao com um ncleo, mas sua funcionalidade atenuada, unilateral, parasita: trata-se aqui de uma funcionalidade puramente cronolgica (descreve-se o que separa dois momentos da histria), enquanto que no liame que une duas funes cardinais, se investe uma funcionalidade dupla, ao mesmo tempo consecutivas e conseqentes. -Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade a prpria confuso da consecuo e da conseqncia, <;> que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicao sistemtica do erro lgico denunciado pela escolstca sob a frmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa no em suma mais que a "lngua" (Zangue); e ste "esmagamento" da lgica e da temporalidade a armadura das funes cardinais que o realiza. Estas funes podem ser primeira vista muito insignificantes; o que as constitui no o espetculo (a importncia, o volume, a raridade ou a fora da ao enunciada), , se pode ser dito, o risco: as funes cardinais so os momentos de risco da narrativa; entre estes pontos da alternativa, entre estes "dispatchers", as catlises dispem de zonas de segurana, de repousos, de luxos; estes "luxos" no so entretanto inteis: do ponto de vista' da histria, necessrio repeti -lo, a catlise pode ter uma funcionalidade fraca mas no absolutamente nula: seria ela puramente redundante (em relao ti seu ncleo), no participaria menos da economia. da mensagem; mas no o caso: uma notao, na aparncia expletiva, tem sempre uma funo discursiva: ela acelera, retarda, avana o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta 29 : o notado aparecendo sempre como o notvel, a catlise desperta sem cessar a tenso semntica do discurso, diz 361
ininterruptamente: houve, vai haver si gnificao; a funo constante da catlise pois, em todo estado de causa, uma funo ftica (para retomar a palavra de Jakobson): mantm o contato entre o narrador e o narratrio (narrataire). Digamos que no se pode suprimir um ncleo sem alterar a hist ria, mas que no se pode suprimir uma catlise sem alterar o discurso. Quanto segunda grande classe de unidades narrativas (os ndices), classe integrativa, as unidades que a se encontram tm em comum .o fato de no poderem ser saturadas (completadas) a no ser ao nvel dos personagens ou da narrao; elas fazem portanto parte de uma relao paramtrica 30 , cujo segundo termo, implcito, contnuo, extensivo a um episdio, um personagem ou uma obra inteira; pode-se entretanto distinguir a ndices propriamente ditos, remetendo a um carter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e informaes, que servem para identificar, para situar no tempo e no espao. Dizer que Bond est de guarda em um escritrio cuja janela aberta deixa ver a Lua entre grossas nuvens que passam, indexar uma noite de vero tempestuosa, e esta deduo mesma forma um ndice atmosferial que remete ao clima pesado, angustiante de uma ao que no se conhece ainda. Os ndices tm pois sempre significados implcitos; os informantes, ao contrrio, no o tm, pelo menos ao nvel da histria: so dados puros imediatamente significantes. Os ndices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um carter, uma atmosfera; os informantes trazem um conhecimento todo feito; sua funcionalidade, como a das catlises, pois fraca, mas no nula: qualquer que seja sua "palidez" em relao ao resto da histria, o informante (por exemplo a idade precisa de uma personagem) serve para dar autenticidade realidade do referente, para enraizar a fico no real: um operador realista, e neste ttulo, possui uma funcionalidade incontestvel, no ao nvel da histria, mas ao nvel do discurso. 31
29. VALRY falava de "signos dilatrios". O romance policial faz grande uso destas unidades "desorientadoras". 30. N. RUWET chama elemento paramtrico um elemento que constante durante tda a durao de uma pea de msica (por exemplo o tempo de um allegro de Bach, o carter mondico de um solo). 31. Aqui mesmo, G. GENETTE distingue dois tipos de descries: ornamental e significativa. A descrio significativa deve evidentemente ser relacionada com o nvel da histria e a descrio ornamental com o nvel do discurso, O que explica que ela tenha constitudo durante muito, tempo um "fragmento" retrico perfeitamente codificado: a doscriptio ou ekphrasis, exerccio muito valorizado pela neoretrica. (p. 30-33) 362
necessrio pois vir a tratar do "realismo" da narrativa. Recebendo um telefonema no escritrio onde est de guarda, Bond "sonha", diz-nos o autor: "As comunicaes com Hong-Kong so sempre to ruins e to difceis de obter." Ora, nem o "sonho" de Bond nem a m qualidade da comunicao telefnica so a verdadeira informao; esta contingncia parece talvez "viva", mas a informao verdadeira, a que germinar mais tarde, a localizao do telefonema, a saber Hong-Kong, Assim, em toda narrativa, a imitao permanece contingente; 74 a funo da narrativa no de "representar", de constituir um espetculo que permanece ainda para ns muito enigmtico, mas que no saberia ser de ordem mimtica; a "realidade" de uma seqncia no est na continuao "natural" das aes que a compem, mas na lgica que se a expe, que a se arrisca e que a se satisfaz; poder-se-ia dizer de uma outra maneira que a origem de uma seqncia no a observao da realidade, mas a necessidade de variar e de ultrapassar a primeira forma que se ofereceu ao homem, a saber a repetio; uma seqncia essencialmente um todo no seio do qual nada se repete; a lgica tem aqui um valor emancipador e toda a narrativa com ela; possvel que os homens reinjetem sem cessar na narrativa o que conheceram, o que viveram; ao menos isto est em uma forma que, ela, triunfou da repetio e instituiu o modelo de um vir a ser. A narrativa no faz ver, no imita; a paixo que nos pode inflamar leitura de um romance no a de uma "viso" (de fato, no "vemos" nada), a da significao, isto , de uma ordem superior da relao, que possui, ela tambm, suas emoes, suas esperanas, suas ameaas, seus triunfos: "o que se passa" na narrativa no do ponto de vista referencial (real), ao p da letra: nada; 75 "o que acontece" a linguagem to-somente, a aventura da linguagem, cuja vinda no deixa nunca de ser festejada. Embora pouco se saiba: sobre a origem da narrativa e sobre a da linguagem, pode-se razoavelmente adiantar que a narrativa contempornea do monlogo, criao, parece, posterior do dilogo; em todo caso, sem querer forar a hiptese filogentica, pode ser significativo que isto ocorra no mesmo momento (em torno dos trs anos) em que o filho do homem "inventa" ao mesmo tempo. a frase, a narrativa e o dipo.
ROLAND BARTHES Ecole Pratique des Hdutes Etudes, Paris. (p. 57-59) 73. La double assassinat de la rue Morgue, trad. BAUDELAIRE. 74. G. GENETIE tem razo em reduzir a mimesis aos fragmentos de dilogo narrados (cf , infra); ainda o dilogo apresenta sempre uma funo inteliglvel e no mimtica. 363
75. MALLARM (Crayonn au thtre, Pliade,. pg. 296): " ... Uma obra dramtica mostra a sucesso dos exteriores do ato sem que em nenhum momento guarde realidade e sem que se passe afinal de contas nada".
LITERATURA E SEMIOLOGIA Pesquisas semilgicas Editora Vozes Ltda Petrpolis O Efeito de Real 1972
A palavra fragmento no foi encontrada!
A CONTROVERSIA ESTRUTURALISTA As Linguagens da Crtica E as Cincias do Homem Traduo de Carlos Alberto Vogt e Clarice Sabia Madureira (Professores-Assistentes do Departamento de Lingstica da Universidade Estadual de Campinas) ESCREVER: VERBO INTRANSITIVO? DISCUSSO BARTHES-TODOROV EDITORA CULTRIX So Paulo 1976
Muitas enunciaes em romances escritas em ele (terceira pessoa) so, ainda assim, discursos da pessoa, sempre que o contedo da elocuo depende de seu sujeito. Se lemos num romance que "o tilintar do gelo no copo parecia ter dado a Bond uma sbita inspirao", certamente o sujeito do enunciado no pode ser o prprio Bond - no porque a sentena est escrita na terceira pessoa, pois Bond poderia muito bem se expressar atravs de um ele, mas devido ao verbo parecer, que se torna marco da ausncia de pessoa. Entretanto, apesar da diversidade e s vezes mesmo artificiosidade dos sinais narrativos da pessoa, no h seno uma nica e grande oposio no discurso: a da pessoa e a da 364
no-pessoa; toda narrativa ou fragmento de narrativa tem que cair em um ou outro desses extremos. Como podemos determinar essa diviso? "Re-escrevendo" o discurso. Se pudermos trocar o ele por eu sem fazer qualquer outra alterao na enunciao, ento o discurso , na verdade, pessoal. Na sentena citada, esta transformao impossvel; no podemos dizer que "o tilintar do gelo parecia ter-me dado uma sbita inspirao". A sentena impessoal. Partindo da, podemos ter uma idia de como se faz o discurso do romance tradicional; por um lado, ele alterna o pessoal e o impessoal muito rapidamente, s vezes numa mesma sentena, de modo a produzir, se pudermos dizer assim, uma conscincia proprietria, que mantm o controle daquilo que diz sem dele participar; e, por outro lado, neste tipo de romance - ou melhor, de acordo com nossa perspectiva, nesse tipo de discurso, quando o narrador explicitamente um eu (o que acontece muitas vezes), confundem-se o sujeito do discurso e o sujeito da ao relatada, como se - e esta uma crena generalizada - aquele que hoje 'fala fosse o mesmo que agia ontem. E como se houvesse uma continuidade entre o referente e a enunciao atravs da pessoa; como se o narrador fosse apenas um dcil servidor do referente. (p. 153-154)
No se pode conceber a decifrao (mltipla) que funda a novela de Balzac como uma operao unilateral: o texto no de modo algum cifrado pelo autor, depois decifrado pelo leitor. Os signos que se oferecem para decifrao so ao mesmo tempo os signos da cifrao: o l eitor cifra e decifra ao mesmo tempo: aprecia a notao como cifra obscura e como cifra clara. Esta ambigidade auxiliada pelo fato de que, em Sarrasine, o leitor no jamais diretamente o decifrador: a novela comporta suas decifraes internas. H duas nela: uma tem por cenrio o prlogo, por objeto o ancio enigmtico, por sujeito 365
(conduzido pela fala do narrador) Mme de Rochefide; a outra tem por cenrio a anedota contada, por objeto a Zambinella, por sujeito o escultor Sarrasine. A unidade das duas decifraes se realiza somente ao nvel de seu objeto: substncialmente porque nos dois casos um corpo que decifrado como entidade civil, porque se trata da mesma pessoa, estruturalmente porque as duas cifras, antes separadas, convergem no eplogo, onde seus objetos coincidem ("Mas este ou esta Zambinella? - No seria, Madame, seno o tio-av de Marianina?") Ainda este objeto comum no se oferece da mesma maneira leitura: no caso do ancio, o problema proposto ao decifrador de reunir uma identidade fragmentada, de suscitar um nome unitrio que ainda no existe; pois, no ancio estranho, nem a pessoa nem o corpo podem ser nomeados. Zambinella, ao contrrio, provida de uma identidade clara, reunida, nomeada ( uma cantora); ao inverso do primeiro, o problema aqui abalar esta identidade, desmascarar um corpo, substituir um nome (o castrado) por outro (a mulher), uma substncia (o nada), por outra (a feminilidade plena, perfeita). (p. 7)
A arte, que tambm o assunto de Sarrasine (esta novela comport a vrias entradas), produz a duas alegorias: a do quadro de Adnis (no prlogo), a da esttua (na histria). Formalmente, a arte consiste numa operao de reunio; em face de sua arte, o mundo real de Sarrasine dividido, participa de uma culpabilidade maior, a que ligada ao compsito; o prprio Sarrasine compsito, "ora agitado, ora passivo" ( isso que o romantismo, pelo menos o de Balzac e de Michelet, chama de "bizarro"); em Filippo, o sobrinho-neto do castrado, a despeito de sua grande beleza, descobre-se a mistura _de elementos contrrios (o grcil, o delicado da silhueta e as sobrancelhas vigorosas, a paixo mscula): sua me e sua irm, uma vistosa, a outra doce, devem ser duas para realizar uma imagem da mulher total; e antes de, conhecer Zambinella, quando Sarrasine procurava um modelo para suas esculturas, ele s encontrava detalhes perfeitos em corpos diversos: aqui, as curvas de uma perna perfeita, ali os contornos do seio, o colo de uma menina, as mos desta mulher, os joelhos lisos dessa criana. Diante desta disperso, a arte o poder que realiza ajuno inconcebvel (como diz Maquiavel ao fazer o retrato de Loureno de Mdici): a arte s pode reunir o corpo fragmentado pelo fantasma (e neste sentido, a arte, um contrafantasma). 4 A Zambinella para Sarrasine um objeto de arte - o objeto mesmo da arte - porque seu corpo rene perfeies que certamente existem aqui e ali no real, mas divorciadas; sua feminilidade tende sua perfeio, mas sua perfeio tende sua unidade. O que Zambinella imprime em 366
Sarrasine, a primeira vez que ele a v, a verdade da unidade: o artista dividido, emperrado (como nos informa sua biografia), se encontra de sbito - palavra surpreendente - azeitado. 5
4 Sobre o corpo fragmentado em Sarrasine, ver o excelente estudo de Jean Reboul, Sarrasine ou la castration personnifie, Cuhiers pour l'Analyse, 7:91-96. mar.- abr, 1967. 5 Ao contrrio da pintura, e ainda mais da escultura (no com certeza gratuitamente que Snrrasine um escultor), a escrita no pode nunca reunir o corpo: est condenada ao detalhe sucessivo: a linguagem pode dar apenas a dimenso da beleza, no a beleza. (p. 12)
SEMITICA NARRATIVA E TEXTUAL EDITORA CULTRIX So Paulo Editora da Universidade de So Paulo ANLISE TEXTUAL DE UM CONTO DE EDGAR POE 1977
J foi feito em
L'AVENTURE SMIOLOGIQUE, The Semiotic Challenge, 1985
OBRA NMERO 18 UTILIZADA NA TESE
A AVENTURA SEMIOLGICA, Traduo de Maria de St. Cruz Lisboa : Edies 70, 1987
Um Mapeamento Dos Fanzines Impressos Sobre Música No Brasil de 1989 A 2009 - Monografia de Conclusão de Curso de Graduacao Rodrigo Lariu (Prod. Editorial)