Este trabalho apresenta um estudo psicanalítico sobre o mangá Sakura Card Captors e como ele aborda o processo de tornar-se mulher e a feminilidade. Primeiramente, discute-se a narrativa e seu papel na constituição do sujeito. Em seguida, analisa-se a noção de feminilidade no Japão e como as mulheres transformaram a literatura existente. Por fim, busca-se entender como a história de Sakura apresenta questões sobre a identidade feminina e o desejo da mulher que vão além de sua ficção.
Este trabalho apresenta um estudo psicanalítico sobre o mangá Sakura Card Captors e como ele aborda o processo de tornar-se mulher e a feminilidade. Primeiramente, discute-se a narrativa e seu papel na constituição do sujeito. Em seguida, analisa-se a noção de feminilidade no Japão e como as mulheres transformaram a literatura existente. Por fim, busca-se entender como a história de Sakura apresenta questões sobre a identidade feminina e o desejo da mulher que vão além de sua ficção.
Este trabalho apresenta um estudo psicanalítico sobre o mangá Sakura Card Captors e como ele aborda o processo de tornar-se mulher e a feminilidade. Primeiramente, discute-se a narrativa e seu papel na constituição do sujeito. Em seguida, analisa-se a noção de feminilidade no Japão e como as mulheres transformaram a literatura existente. Por fim, busca-se entender como a história de Sakura apresenta questões sobre a identidade feminina e o desejo da mulher que vão além de sua ficção.
Este trabalho apresenta um estudo psicanalítico sobre o mangá Sakura Card Captors e como ele aborda o processo de tornar-se mulher e a feminilidade. Primeiramente, discute-se a narrativa e seu papel na constituição do sujeito. Em seguida, analisa-se a noção de feminilidade no Japão e como as mulheres transformaram a literatura existente. Por fim, busca-se entender como a história de Sakura apresenta questões sobre a identidade feminina e o desejo da mulher que vão além de sua ficção.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
ANTONIO DRIO LOPES JNIOR
SAKURA E A NARRATIVA: um estudo psicanaltico acerca do tornar-se mulher e da feminilidade
FORTALEZA CEAR 2012
ANTONIO DRIO LOPES JNIOR
SAKURA E A NARRATIVA: um estudo psicanaltico acerca do tornar-se mulher e da feminilidade
Trabalho de concluso de curso apresentado ao Curso de Psicologia do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Psicologia.
Orientadora: Prof. Dra. Lia Carneiro Silveira
FORTALEZA - CEAR 2012
ANTONIO DRIO LOPES JNIOR
SAKURA E A NARRATIVA: um estudo psicanaltico acerca do tornar-se mulher e da feminilidade
Trabalho de concluso de curso apresentado ao Curso de Psicologia do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Psicologia.
Aprovada em: 06/12/2012
BANCA EXAMINADORA
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao Universidade Estadual do Cear Biblioteca Central Prof. Antnio Martins Filho Bibliotecria Responsvel Leila Stiro CRB-3 / 544
L864s Lopes Jnior, Antonio Drio. Sakura e a narrativa: um estudo psicanaltico acerca do torna-se mulher e da feminilidade / Antonio Drio Lopes Jnior. 2012. CD-ROM : il. (algumas color.) ; 4 pol.
CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadmico, acondicionado em caixa de DVD Slin (19 x 14 cm x 7 mm). Monografia (graduao) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Curso de Psicologia, Fortaleza, 2012. Orientao: Prof. Dr. Lia Carneiro Silveira.
No existem coincidncias nesse mundo". "S o inevitvel". CLAMP
O mito sentido e vivido antes de ser interligado e formulado. Mito a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no corao do homem, emotivo como uma criana, antes de fixar-se como narrativa. Leenhardt
A palavra mais bela aquela que fala de si mesma. Todorov
A pgina branca envenenada. O livro que no conta nenhuma narrativa mata. A ausncia de narrativa significa a morte. Todorov
A todos aqueles que como eu, guardam um carinho todo especial, para com os quadrinhos japoneses, espero que este trabalho possa contribuir e servir para que mais pessoas trilhem este maravilhoso caminho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, ou algum ente espiritual que tenha me protegido ao longo desta jornada.
In Memorian ao meu pai, Antonio Drio Lopes, o qual sempre demonstrou um carinho muito grande para comigo.
A Minha me, Maria de Ftima Lopes que, mesmo aps o falecimento de meu pai, me permitiu e apostou em minha vinda a Fortaleza.
A meus Irmos, Raimundo (Toin) e Geipson, os quais sempre (ou nem sempre) cuidaram de mim, mas, embora s vezes briguemos, tenho certeza do enorme carinho que eles tm por mim.
s minhas cunhadas Alexandra Mateus (Lessandra) e Karine, de um modo especial primeira que , melhor dizendo, a irm que nunca tive, com quem muito brinquei e que durante muito tempo me defendeu.
Aos meus sobrinhos, Lara, Brbara, Geipson Filho (Geibim), Vitria, Kain e Ana Sofia, com quem aprendo um pouco mais a cada dia. V-los crescer mostra que eu estou mais velho, mas o carinho que eles demonstram a certeza de que, mesmo com a distncia, eu fiz uma coisa boa em minha vida. E tambm, mesmo eu no sendo o melhor tio do mundo, sou este o tio que eles tm.
A minha av, Maria Roselia, que aceitou que eu morasse com ela e me permitiu um lugar seguro e acolhedor em Fortaleza. Sem ela minha vivncia no teria sido possvel, e mesmo que possvel, poderia no ter tido tanta graa. v, sei que pareo criana, mas t acabando o curso falando dos bonequinhos.
Aos meus tios, em especial Lcia Maria, por ela ser a minha madrinha, que no caso, j dispensa comentrios. E Lucineide, podemos conversar pouco, mas nossas conversas so muito significativas.
Aos meus primos, em especial Jamerson Gabriel (Biel, Pacote ou o Pit da Larinha), que tem o dom de me incomodar a cada momento, mas sem ele Fortaleza no seria divertida e Ana Lara (Larinha), a qual, aps todo um trabalho, agora gosta do primo... E eu gosto muito dos meus pequenos.
s minhas quatro orientadoras, Alessandra Xavier, Betnia Moraes, Lia Silveira e Ruth de Paula (Ruthinha), que com suas posturas centradas e ticas me fizeram perceber coisas para alm da graduao. Muito da minha formao, no enquanto psiclogo, mas enquanto pessoa, eu devo a estas quatro orientadoras, que me mostraram o melhor da psicanlise e da psicologia histrico-cultural.
Ao grupo Clamp, pois sem elas eu no teria tido acesso Sakura Card Captors, a qual reflete um perodo significativo da minha vida.
A minha amiga Criseven Barbosa, que me mostrou o lao que o interesse pelos animes pode formar. Seu carinho e amizade foram presentes que consegui graas a Sakura, e que me fazem gostar ainda mais deste desenho.
s minhas amigas Karlla Nayanny, Shelda Darling e Kamilla Alexandre, que me acompanharam da pr-escola ao terceiro ano.
s minhas amigas Sskia Saraiva (Negah), Melyssa Braga (Mel), Zylmria Nogueira (Zyl) e Luana Rabelo (Luh), por serem figuras constantes na minha casa, e eu na casa delas. Muitas das lembranas mais doces do meu Ensino Mdio, devo a vocs. Em especial a Sskia, uma amiga difcil de conquistar, mas que, ao ser conquistada, esteve sempre ao meu lado, pela qual no preciso comentar sobre o enorme carinho que sinto, quem nos conhece sabe.
Aos amigos, Leandro Teixeira, Murilo Viana, Lvia Xavier (Livitah), Helyne Cristina (Laninha), Joelly Dias (Albina), Maria Eliza, Paula Maria (Polette), simplesmente por serem meus amigos e estarem presentes em todos os momentos, cada
um deles, de uma forma especial, fizeram com que o Ensino Mdio do CACD tivesse um sentido para alm do acadmico, e a certeza deste lao carrego at hoje.
Aos amigos Pedro Newton e Kamila Barros, por sempre me acompanharem e serem pessoas to especiais.
Aos remanescentes da primeira turma de psicologia da UECE, uma vez que eles fazem parte desta minha histria, e sempre esto por perto.
Aos meus maiores tesouros lapidados pela graduao: Emilie Boesmans (Emilieeee, Milieee ou minha personal Carona), Estfanni Alves e Mayara Luiza. De forma especial Emilie, com a qual me desestabilizo, mas tambm encontro meu apoio. Sem ela eu no teria conseguido chegar at aqui da forma como cheguei.
Aos meus amigos dos outros semestres, Caio Gustavo e Darliane Soares, me divirto muito com vocs. Em especial, a Darliane, no esqueo a forma como voc se tremeu por conta do mang de Sakura. Isto mostra o aspecto clssico de uma boa produo.
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SAKURA E A NARRATIVA: um estudo psicanaltico acerca do tornar-se mulher e da feminilidade
Por meio deste estudo, buscou-se evidenciar as caractersticas da narrativa enquanto funo e o modo atravs do qual a cultura de massa consegue apropriar-se desta. Tratou-se de um estudo de natureza terica realizado mediante rigorosa pesquisa bibliogrfica. O estudo dividiu-se em dois eixos principais. O primeiro faz uma conceituao acerca da narrativa enquanto prtica social, e da forma como as modificaes sociais acarretam transformaes nesta experincia, bem como uma apropriao que alguns representantes da cultura de massa fazem desta narrativa. No segundo momento, empreendemos uma discusso acerca da feminilidade enquanto conceito e, posteriormente, uma abordagem histrica sobre como se constitui esta noo no Japo. Dessa maneira, buscamos entender a forma como as mulheres se apropriam e transformam a literatura ento existente, tanto a literatura culta, como as destinadas cultura de massa, no caso, o Shoujo mang. Em um terceiro momento, tentaremos efetuar uma sntese destes dois eixos principais, percebendo em que medida o enredo de Card Captors Sakura apresenta questes para alm de sua realidade ficcional, suscitando elementos que perfazem as caractersticas da mulher e o enigma de seu desejo.
LISTA DE FIGURAS ................................................................................................... 5 1 INTRODUO ......................................................................................................... 6 2 A narrativa e a constituio do sujeito. ..................................................................... 13 2.1 A adolescncia e suas relaes com a narrativa .............................................................................................................................. 21
2.2 O Mang como gnero narrativo ...................................................................................................................................................... 29
2.3 Caractersticas dos mangs ............................................................................................................................................................... 40
3 A mulher no Japo e sua relao com a narrativa. ..................................................... 47 3.1 Breve histria da mulher no Japo ................................................................................................................................................... 49
3.2 O Shoujo: Histria e Esttica. ........................................................................................................................................................... 55
4 Sakura e a constituio da adolescncia .................................................................... 64 4.1 Sakura: enredo ................................................................................................................................................................................... 65
4.2 Sakura: consideraes acerca da feminilidade ................................................................................................................................ 70
5 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................... 81 6 GLOSSRIO ........................................................................................................... 84 7 REFERNCIAS....................................................................................................... 86 8 REFERNCIAS DAS IMAGENS ........................................................................... 93
A narrativa pode ser abordada seguindo vrias perspectivas, considerada tanto como um gnero literrio quanto como uma prtica social (a arte de narrar). O dicionrio Aurlio conceitua Narrativa como: 1. Maneira de narrar; 2. Narrao; 3. Conto, Histria. O narrador caracterizado como aquele que narra ou, simplesmente, como o locutor da histria. Entretanto, como tais figuras surgiram? Como os homens interagem com a narrativa e a figura do narrador? Onde podemos situar o mang nesta relao? Elucidar tais indagaes um dos objetivos desta primeira parte da pesquisa. Optamos por comear a discusso a partir do dicionrio por este ser de mais fcil acesso. Ele traz o significado da palavra em si, sua funo, mas pouco revela sobre as caractersticas reais da narrativa e como esta influencia sobremaneira no feitio atravs do qual os homens se relacionam. A narrativa pode ser considerada o ato primordial, assinalada como a nica ao que pode comprovar que, de fato, existimos. ela que nos funda enquanto sujeitos, ao mesmo tempo em que transmite a cada um sua fatalidade, o orculo que preexiste ao seu nascimento que, por vezes, no fruto da responsabilidade do ser nascente, mas de outrem. Ao explicitar acerca da importncia desta arte narrativa, deixaremos que a mitologia, entendida como a narrativa primordial, certifique-se desta tarefa: Aquiles, ao ser questionado por Ttis sobre se preferiria uma vida longa com mulher e filhos e, posteriormente, ser esquecido, ou morrer jovem e ser lembrado eternamente, escolhe a morte heroica em combate (BRANDO, 2009). Se, na realidade, existiu algum Aquiles que participou da Guerra de Tria, isso no se pode confirmar. Mas, figurativamente, a escolha deste heri grego o eternizou nas narrativas e, para alm destas, de certa maneira, na vivncia de cada sujeito, com o seu ponto fraco, ou, como muitos chamam, o seu calcanhar de Aquiles. Inseridos neste universo narrativo que perpassa histrias e estrias: de povos, causos, mitos, ritos, vidas, mortes, livros, esto os quadrinhos. Dentre uma infinidade de atos eminentemente humanos que podem ser circunscritos sob a alcunha de cultura, sendo que esta, em uma sociedade pautada pelo consumo, constitui-se de um processo 7
de montagem multinacional, uma articulao flexvel de partes, uma colagem de traos que qualquer cidado de qualquer pas, religio e ideologia pode ler e utilizar (CANCLINI, 1995, p. 32). Objetivamos tratar dos quadrinhos, em especial o mang, ou quadrinho japons. O objetivo aqui evidenciar algumas das caractersticas que nos permitam situ-lo como um produto que contenha no apenas uma narrativa vazia, como um artigo destinado ao prazer momentneo e ao posterior esquecimento, mas como algo que est a servio da experincia narrativa. Esta compreendida como a transmisso de um pensamento, uma concepo, ou uma moral, que podero ser apropriadas por aqueles que a consomem. Ainda hoje, em nosso pas, os quadrinhos so vtimas de uma srie de preconceitos assim como, consequentemente, as pessoas que os tomam como referncia. Embora a prtica de ler quadrinhos, especialmente os japoneses, esteja aumentando quantitativa e qualitativamente, a maior parte da populao ainda acredita que tais prticas deveriam ser destinadas ao pblico infanto-juvenil. O pblico adulto deveria identificar-se com ao que seria destinado a este. Outra questo o carter tcnico ou especializado com o qual nos deparamos ao tentar conversar acerca desta temtica. Percebemos que ao contrrio da literatura, do cinema e at mesmo da msica pop ou do futebol, parece que, quando o assunto quadrinho japons, qualquer um pode ter suas opinies levadas a srio, independente de seu conhecimento do assunto (GRAVETT, 2006, p.13). No defendemos aqui um aspecto militante acerca dos quadrinhos, mas propomos ao leitor uma espcie de dilogo no qual apresentaremos de uma forma sucinta as concepes acerca da narrativa e do desenvolvimento dos mangs, e tentaremos compreender at que ponto eles podem gerar concepes dspares, ou no. Nosso objeto de anlise por excelncia ser Sakura Card Captors, no que esta seja a principal obra produzida acerca do mang. Mas, devido a tal artigo possuir um roteiro seccionado em duas camadas, por assim dizer, que no se misturam. Uma, superficial, para as crianas, que curtem as lutas e brincadeiras, e a outra, mais profunda, onde residem os dramas e traumas dos adultos (ANIMEEX, s.a), a qual ainda capaz de surpreender mesmo o leitor mais experiente. Nesse sentido, refletimos acerca do que considerado um produto destinado ao consumo. Seguindo as conceituaes propostas por Canclini (1995), o consumo no 8
caracterizado como o simples cenrio de gastos irracionais, mas tambm pode ser tido como um lugar para se pensar, como um espao de organizao de certa racionalidade, poltica e econmica. Em nossa frente de anlise, usamos a ferramenta da qual dispomos a psicanlise com as ressalvas expostas por Corso; Corso:
Uma anlise puramente psicanaltica certamente reducionista, tentaremos sempre que possvel abrir o leque. Seria uma deslealdade tratar qualquer fantasia de modo simplista, necessria uma relao de respeito com o carter surpreendente de cada histria, assim como uma assumida humildade do quanto sua riqueza transcende nossa capacidade de anlise. (2006, p.22) (Grifo nosso).
Esquematizar a relao do homem com os elementos que perfazem a narrativa enquanto arte e fantasia de uma maneira pretensamente cientfica uma tarefa complicada, pois tentamos circunscrever de uma maneira racional aquilo que transcende a racionalidade e que, por muitas vezes, atravessa nossas defesas e nos toca em nosso mago. No entanto, Freud, em seu estudo acerca da psicologia do amor (1910), adverte que se torna necessrio que a cincia tambm deva se ocupar das matrias que desde tempos imemoriais j so de ocupao dos artistas, embora o fato abordado pelo vis cientfico seja mais tosco e proporcione menos prazer (p. 171). Enquanto tentamos de todas as maneiras oferecer uma baliza cientfica sobre a forma como os homens interagem com a narrativa, bem como com as fantasias por ela evidenciadas, nosso poder de explanao e sntese tomado de assalto ao nos depararmos com a forma como a arte pode falar de si de uma maneira que transcende nosso poder de argumentao. Desta forma, deixaremos a arte narrativa falar acerca de si mesma, da relao que os homens desenvolvem para com a narrativa literria:
[...] quando os filhos dos homens vm at nosso mundo, tomam o caminho certo. Todos os que nos vm visitar aprendem coisas que s aqui podem aprender e regressam modificados ao seu mundo. Seus olhos se abrem, pois eles se veem em seu verdadeiro aspecto. Por isso, tambm podem olhar com novos olhos seu prprio mundo e os homens. (ENDE, 2010, p. 158)
Ao tratar acerca das narrativas, mesmo as pertencentes cultura de massa, representadas pelas histrias em quadrinhos objetivamos abordar aquilo em que esta expresso pode tocar e se comunicar com aquilo que universal. 9
No momento em que nos propomos a desenvolver uma narrativa, o pretenso estudante, agora se v convertido em um autor, objetivando seguir a rigidez da prtica cientfica, mas, sempre que possvel, resgatando algo do estilo que perfaz a tradio narrativa enquanto gnero literrio. Neste contexto, o estilo seria aquele responsvel por conferir forma a este estudo, uma vez que conjuga os aspectos referentes ao tempo, palavra e ao ponto de vista (SAMPAIO, 2002). Em virtude da maior parte da academia no estar familiarizada com as questes pertinentes aos quadrinhos japoneses, nossa metodologia se dividiu em duas frentes: na primeira, buscamos oferecer uma familiarizao com esta temtica por meio de uma rigorosa reviso de literatura na qual pudssemos situar o mang nas questes que se tornaram o foco deste trabalho. Em um segundo momento, tentando conceber Sakura Card Captors como uma obra narrativa, desenvolvemos uma anlise das categorias tericas apresentadas pelo quadrinho. Utilizaremo-nos das assertivas apresentadas pela psicanlise, de maneira especial por Freud (1996) e seus sucessores por compreendermos que tais autores nos proporcionam uma forma de entender em que medida esta produo consegue elencar as questes que no envolvem apenas Sakura Kinomoto, mas tambm elementos pertinentes prpria condio feminina. Neste contexto, situar este produto cultural como algo que est a servio da narrativa. Feitas as devidas apresentaes, objetivaremos agora elencar as questes que sero trabalhadas em cada captulo de acordo com seu foco: No primeiro captulo, tentaremos esclarecer as caractersticas da narrativa, tal como conceituada por Benjamin (1994). Esta adquire sentido polissmico, considerada como representante de um gnero literrio, mas tambm como uma prtica social, incumbindo o sujeito de uma funo: o narrador. Neste sentido, convm salientar que a narrativa, enquanto prtica social, anterior narrativa enquanto gnero literrio, sendo a prpria escrita literria derivada dos contos que perfaziam a tradio oral. Assim, objetivamos discutir acerca das narrativas pertencentes oralidade, tais como os mitos e lendas, passando pelo advento dos romances e chegando at as produes da cultura de massa, como os quadrinhos, em especial os mangs (quadrinhos japoneses). Antes de tudo, abordaremos o que seria a narrativa. Outro conceito considerado de suma importncia neste estudo o de narrador, tal como discutido por Benjamin (1994), defendido como o conselheiro primordial, aquele 10
que detm alguma experincia que dever ser transmitida aos demais. Tal transmisso ser, em ltima instncia, ativa, pois o conselho nasce da experincia compartilhada entre narrador e ouvinte. Perceberemos que, dentro da perspectiva levantada pelo autor alemo, o romance, a narrativa escrita, estaria auxiliando o fim da arte da narrativa, pois esta no nasceria das relaes com o outro, mas de concepes cristalizadas nas pginas do livro. Parafraseando Brando (2009), diramos que o romance, por vezes, desfigura algumas caractersticas da narrativa, que so as suas variantes, constitudas no momento da interao. A obra escrita enrijece a narrativa, fixando-a em uma forma tida como definitiva, oficial. Entretanto, dos questionamentos propostos pelo autor frankfurtiano, nos centraremos na dimenso do narrador, enquanto detentor de um saber. Percebemos que, na contemporaneidade, parte da dimenso narrativa da vida comea a se esvair em decorrncia dos avanos tecnolgicos e da efemeridade das relaes impostas pelo perodo ps-moderno, no qual o conhecimento do processo histrico passa a dar lugar a um eterno devir, este processo condiz com a produo de um conscincia feliz que se explica como plana aceitao das mistificaes da realidade (SEVERIANO, 2002, p. 34). Dada a crescente ausncia do narrador enquanto pessoa, acreditamos que a dimenso narrativa passa a figurar em outros espaos, como no romance, to criticado por Benjamin, o qual apresenta como elemento central o homem real e o desenvolvimento do mesmo (OUTEIRAL, 2008). Aps desenvolvermos as discusses acerca da narrativa e deste narrador, seu papel e funo, discorreremos acerca da constituio social da adolescncia, e de como esta se relaciona com a narrativa. Ancorados nos estudos desenvolvidos por Maria Rita Kehl, percebemos que a elevao da adolescncia, enquanto um ideal social, cobra um preo alto a sociedade: o lugar do adulto. Percebemos a ausncia de algum que se identifique com a narrativa de sua prpria existncia e a transmita a outrem e, desta forma, tentamos perceber em que medida a literatura, em especial o mang, comea a figurar na constituio destes sujeitos, transmitindo-os valores que, em outro perodo, advinham da vida social. Tomando por base a possibilidade de se encarar o mang como uma obra a servio da narrativa, discorreremos acerca do desenvolvimento do mesmo enquanto 11
aspecto literrio. Alm disto, indicaremos como este no uma construo recente, perfazendo grande parte da histria do Japo. Compreender a histria destes quadrinhos faz-se necessrio para podermos diferenci-los dos comics estadunidenses, para entendermos o lugar que os mangs ocupam na histria nipnica. Alm disso, podemos observar a influncia sofrida pelos quadrinhos ingleses e estadunidenses, do militarismo presente no perodo da guerra Sino-japonesa e da II Guerra Mundial, perodos nos quais os mangs e animaes serviam como armas de divulgao ideolgica japonesa, ao perodo de censura decorrente das foras de ocupao at a constituio do mang como o conhecemos, devido s contribuies de Tezuka e das Magnficas de 24. As discusses apresentadas no segundo captulo so gestadas pelas particularidades do tema em questo, ou seja, o mang Sakura Card Captors, desenvolvido pelo grupo Clamp 1 , tentando perceber o feitio com que se constituiu a mulher no Japo, como as concepes acerca desta vo sendo modificadas, bem como as relaes destas para com a literatura. Nesse contexto, o segundo captulo ser desenvolvido em duas frentes. Na primeira, mais geral, objetivamos perceber as transformaes pelas quais passaram as mulheres no Japo, e como algumas delas, embora no pudessem ter acesso educao formal, conseguiram se converter em exmias escritoras. Dentre elas destacamos: Sei Shnagon e Murasaki Shikibu que, como representantes da literatura cortes, desenvolveram romances que abordaram o aspecto psicolgico das personagens. So tambm elas as principais responsveis pela difuso dos ideogramas do alfabeto japons, diferenciando-o dos caracteres chineses. Desta forma, discorreremos tambm acerca do nascedouro do Shoujo mang e sobre como este era inicialmente desenvolvido por homens, resguardando o que eles consideravam como sendo importante para as mulheres e, posteriormente, sobre a apropriao das mulheres desta seara, das produes destinas a elas e sua coragem no aprofundamento das questes psicolgicas que aos homens era vedado.
1 Grupo de formao exclusivamente feminina. No incio era formado por 11 pessoas, mas quando se profissionalizaram tal nmero foi reduzido para sete e, finalmente, sua formao ficou em quatro membros: Mokona Apapa; Satsuki Igarashi; Mick Nekoi e Nanase Ohkawa. 12
O terceiro momento do trabalho configura-se como uma espcie de sntese na qual, ancorados nestas concepes de narrador e nas questes que perfazem o ser mulher, tentamos visualizar como tais questes se tornam patentes para uma garota muito especial, Sakura Kinomoto. As questes que abordaremos no dizem respeito somente a ela, mas fazem parte das vivncias femininas de uma maneira geral. Visualizamos o mang enquanto uma produo que chega ao Brasil repleta de aspectos em seu enredo que nos permitem perceber a ligao existente entre Sakura e a constituio da feminilidade na mulher. Por fim, empreendemos a tentativa de uma discusso terica acerca destas questes levantadas pelo enredo.
13
2 A narrativa e a constituio do sujeito
Ao tomar por foco inicial a questo da narrativa estamos, inevitavelmente, falando sobre a histria, uma histria que narrada. Sendo que tal intento no novo em cincias humanas. Vrios autores buscaram entender como esta se estruturou e se reinventou de acordo com os diversos momentos histricos. Dentre eles, destacamos Todorov (2006), que pondera ser uma tarefa infrutfera procurar a origem desta arte no tempo, sendo que o prprio tempo originado das narrativas. Na perspectiva do autor, a personagem uma histria virtual que a histria de sua vida (p.123). Podemos afirmar que, de maneira semelhante ao que apresenta o autor hngaro, o que garante o nosso estado de vida no a vida enquanto fator biolgico, mas aquilo que narrado acerca desta. O autor hngaro ainda pondera que toda a narrativa proferida para servir a um objetivo preciso, que no apenas o prazer dos ouvintes (TODOROV, 2006, p. 112) e concordamos com esta alegao. O homem sempre teve a necessidade de narrar, de apresentar algo a algum, quer na forma de um ensinamento tcnico, ou como uma norma de vida, sempre narramos. Quer fatos que aconteceram conosco, aes que outros fizeram, ou causos cristalizados em nossa cultura, tudo o que perpassa a vivncia humana converte-se em narrativa. Ns, que optamos pela psicologia e utilizamos como referencial a psicanlise, temos uma ateno especial para com ela, pois nela que se encontra a materialidade de nosso trabalho: o sujeito, ao procurar a figura do analista, narra para ele sua vida, suas relaes, seus problemas, e o conhecimento que temos sobre ele pautado no feitio em que este nos aponta sua fico. Compreendemos que a narrativa est presente em todas as civilizaes, de todos os tempos, sendo uma das mais antigas prticas do homem (MEREGE, 2010). Enquanto prtica social, ela anterior narrativa enquanto gnero literrio. A raiz daquela remonta ao desenvolvimento da linguagem humana, com o processo de transmisso de um conhecimento que ia se elaborando na medida em que o pensamento humano fosse crescendo em complexidade (MEREGE, 2010, p. 16-17). 14
Trata-se do vnculo do sujeito com a histria de seu povo e, consequentemente, sua prpria histria. Sendo as primeiras narrativas escritas caracterizadas por compilaes de histrias que j permeavam a tradio oral, tendo sido cristalizadas por meio da escrita. Como apresentado, a narrativa no restrita ao seu aspecto literrio, mas encontra-se presente em toda forma de relao (MEREGE, 2010; TODOROV, 2006), sendo que as relaes cristalizadas pela narrativa escrita por vezes apresentam um reflexo da realidade social, ou antecedem a expresso desta realidade. Algumas das concepes sociais aparecem primeiramente em obras literrias e, posteriormente, passam a arraigar prticas ou concepes sociais (ARIS, 1973; KEHL, 2008). No referido contexto, Outeiral (2008) aponta algumas modificaes da narrativa, tomando como pressuposto o romance. Este no entendido apenas como
A consolidao de um modelo narrativo literrio, mas a racional narrativa que pressupe um comeo, um meio e um fim: a descrio do ambiente e a construo dos personagens, a trama e seu desenvolvimento e, finalmente, a esperada terminao da histria que cativa e leva o leitor at este momento de clmax. (p. 123)
Entretanto, as experincias pautadas na racional narrativa apresentada por Jos Outeiral, concebidas enquanto uma prtica social, sofrem diversas modificaes de acordo com as mudanas engendradas na idade contempornea, mas isto ser apresentado em seu devido tempo dentro do contexto narrativo que aqui apresentamos. Podemos relacionar os primrdios da narrativa a um mbito religioso, principalmente no que se refere o mito. A primeira narrativa com que temos contato a narrativa proveniente deste, entendido em sentido extenso, no como uma histria antiga, mas, antes de tudo, como uma narrativa de criao (ELIADE, 2007). Compreendemos que o mito apresenta as histrias primordiais, que demonstram como o sujeito veio a se constituir como tal no mundo, como a vida surgiu da mesma maneira que aponta a causa da morte. Neste contexto, Eliade (2007) apresenta o mito como uma histria verdadeira, uma vez que a comprovao do mito tida pelo acontecimento em si. Por exemplo, os mitos primordiais sobre a morte so verdadeiros, pois a existncia da morte o fator que comprova sua veracidade. Ainda hoje, mesmo vivendo sob a gide do cientificismo, na qual somos atrelados a um saber que suplanta o 15
aspecto religioso, percebemos que grande parte da populao, ao ser acometida por algum mal, vale-se desta narrativa mitolgica (religiosa) para dar vazo quilo que potencialmente desconhecido. No entanto, a narrativa mitolgica no apresenta apenas essa funo, de baliza do entendimento sobre o surgimento do mundo, mas tambm auxilia-nos a perceber as dificuldades das prprias relaes humanas, tanto as possibilidades quanto as impossibilidades. O mito apresenta o modelo exemplar a partir do qual muitas das prticas sociais foram delimitadas, entretanto, tambm por ele, as pessoas conseguem ter acesso experincia cristalizada na cultura e elaborar aspectos de sua prpria vida. Afinal, o mito, assim como toda a narrativa, no apreendido em seu carter significativo geral, mas em um aspecto fragmentado, no qual o que entra em questo a forma como aquele que escuta significa a experincia mitolgica. Podemos perceber que, na Grcia, o advento da filosofia, do pensamento racional, fez com que este aspecto mtico da experincia humana fosse um tanto relegado (BRANDO, 2009), embora, de acordo com Eliade (2010), O mito pode degradar-se em lenda pica, em balada ou romance, ou ento sobreviver, em forma diminuda, nas superties, hbitos, nostalgias, etc., no perdendo, por isso, a sua estrutura nem valor (p. 352). Ou seja, as produes culturais, de maneira geral, que circunscrevem o aspecto pico da vivncia narrativa, resguardam muito das vivncias apresentadas enquanto estruturas mitolgicas. O mito pode ser entendido como uma fico, mas essa fico mantm uma relao singular com alguma coisa que est sempre implicada por trs dela, e da qual ela porta, realmente, a mensagem fortemente indicada, a saber, a verdade. (LACAN, 1999, p.258). Desta forma, o homem sempre se relaciona com a fico e a fantasia e, ao ter contato com ela, pode elaborar suas vivncias e ter acesso a sua prpria verdade. No entanto, as narrativas que apresentamos at o momento perfazem as da tradio oral, as quais passaro por um processo de compilao, sendo assimiladas pela linguagem escrita. Desta maneira, percebemos que a popularizao da narrativa escrita o romance surge com a imprensa, trazendo por sua caracterstica escrita uma modificao na forma de narrar. Uma delas refere-se ao prprio fato de que, agora, a narrativa esta restrita s pginas do livro. Este aspecto criticado por Walter Benjamin por dois motivos principais. O primeiro diz respeito a que a narrativa nasce e se 16
desenvolve tomando por base as variaes, que nascem do contato oral entre narrador e ouvinte. Na narrativa escrita estas variaes so excludas em prol de uma verso oficial. O segundo aspecto relaciona-se transmisso desta narrativa, que agora circunscreve aqueles que tm o domnio da leitura e da escrita. Com isto, deixa-se de ter uma relao com a sociedade, e esta arte passa a ser individualizada (BENJAMIN, 1994). interessante atentar para o fato de que, no decorrer do sculo XIX, inicia-se uma expanso da atividade literria, fato este que corroborou para a consolidao da importncia do amor conjugal e do casamento, tornando-os projetos de vida para uma burguesia. A narrativa passou a atuar como mobilizadora do iderio social. Nas palavras de Kehl (2008):
A literatura inventou o amor burgus, e o casamento burgus abriu espao para uma invaso literria que enriqueceu o imaginrio das mulheres, compensando frustraes, rompendo o isolamento em que viviam as donas- de-casa, abrindo vias fantasiosas de gratificao e, acima de tudo, dando voz s experincias isoladas das filhas e esposas das famlias oitocentistas (p.79).
A autora ainda afirma que o aumento do nmero de leitores que ocorreu na Europa, e consequentemente no restante do mundo, a partir do sculo XIX, no se devia exclusivamente ao aumento das taxas de alfabetizao bsica, exigncia da revoluo industrial, mas tambm em virtude da necessidade de se ocupar o tempo de lazer, vivido na privacidade da vida domstica e no mais entre as multides, nas praas e ruas da cidade (KELH, 2008). Entretanto, com o advento da ps-modernidade, esta relao narrativa se modifica. Num perodo marcado pela efemeridade, as vivncias sociais so alteradas e as estruturas narrativas tambm o so. Se antes eram pautadas, conforme aponta Jos Outeiral, em uma srie de comeo, meio e fim, agora no mais assim: as narrativas podem comear do meio, ir ao incio ou ao fim, em um desenvolvimento repleto de idas-e-vindas, flashbacks (voltas ao passado), flash-forwards (antecipaes). Na tentativa de elucidar como se d o processo narrativo contemporneo, Outeiral (2008) no o situa pela literatura, mas por uma prtica social contempornea que ele conceitua como a Esttica Ertica do ficar, na qual, a partir de um encontro fortuito de olhares, j possvel ocorrer o desenlace amoroso (meio), para depois os 17
envolvidos saberem como se chamam ou trocar telefones (inicio). No que em outros momentos tal prtica social no existisse, mas, diferentemente de hoje, ela no era tida como um modelo hegemnico. As pessoas que, em outras pocas, passavam por enlaces fortuitos, procuravam no ver o outro, pelo receio de ter gerado uma expectativa que no seria correspondida, ao passo que hoje os enlaces ocorrem sem uma grande expectativa. Desta maneira, podemos perceber que a narrativa, enquanto conceito polissmico, abarcando a prtica social e a esttica literria, apresenta diversos momentos e paradigmas que vo sendo desconstrudos e reconstrudos de acordo com cada momento histrico, sendo que tais alteraes modificam a relao que os sujeitos tm entre si e a configurao com que estes interagem com a figura do narrador, aquele que considerado como o portador desta narrativa. Ao tentarmos circunscrever a figura do narrador, partirmos das concepes do filsofo Walter Benjamin, este sendo considerado o pai da narrativa. Para ele, o narrador o depositrio da experincia, aquele que detm o conhecimento e as histrias de um povo. O narrador o responsvel pela trama que liga o indivduo histria de seu povo e, consequentemente, a sua prpria histria. Tendo por funo principal dar conselhos, os narradores so tecidos por meio da substncia viva da existncia, tendo um nome: sabedoria (BENJAMIN, 1994). Quando o autor alemo outorga figura do narrador a funo de conselheiro, ele o divide em duas qualidades diferentes: o mercador e o campons. O primeiro, por se aventurar no mundo, traz relatos da experincia de fora, daquilo a que as pessoas no tiveram acesso. Entretanto, a forma de relatar tal experincia no dada, mas construda junto pessoa que o escuta. J o segundo, traz os conhecimentos de dentro: reflexes acerca da terra, sobre o cotidiano, sobre aquilo que sua experincia prtica proporciona. Ao optarmos por trazer as proposies do autor frankfurtiano, devemos esclarecer que este conceitua a narrativa como perfazendo a tradio oral, creditando s obras escritas e, dentre elas o romance, difundido na Idade Moderna, a responsabilidade pelo fim da narrativa. Seguindo seu raciocnio, como se o romance, por ser recheado de palavras, fosse bem amarrado e explicado, estando a servio da informao e no da narrativa. Esta no se entrega de forma to fcil, o extraordinrio e o miraculoso so narrados 18
com a maior exatido, mas o contexto psicolgico no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser... (BENJAMIN, 1994, p. 203). J o romance, por estar cristalizado nas pginas do livro, tem um final fixo, diferente da narrativa que se desenvolve na relao entre as experincias do narrador e do ouvinte, deixando um final entreaberto. Tais aspectos conferem narrativa o poder de, mesmo aps muito tempo, se desenvolver. Discordamos de algumas das proposies desenvolvidas por Benjamin. Mesmo o romance sendo uma obra escrita, mesmo tendo esse carter informativo to criticado pelo autor, acreditamos que ele uma obra a servio da narrativa. Ao acessarmos o romance, entramos em contato com uma histria, com o desenvolvimento de uma personagem e suas relaes. Mesmo que a histria seja dada, a forma como a apreendemos, a relao singular que desenvolvemos com cada personagem, a cada leitura, nica. Deste modo, conseguimos atentar para o fato de que no nos relacionamos com o romance de maneira geral, mas com aspectos dele que, em determinado momento, se tornam significativos para nossas prprias vivncias. Parte da argumentao que utilizamos para formular esta crtica foi retirada dos estudos desenvolvidos pelo autor, j que o modo pelo qual se organiza a percepo humana, o meio em que ela se d, no condicionado naturalmente, mas tambm historicamente (BENJAMIN, 1994, p. 169), ou seja, a percepo do homem acerca da obra que acompanhou vai sendo modificada. Deste modo, podemos perceber claramente que o cerne da narrativa ainda se encontra no romance, embora modificado. Todavia vivemos em um momento diferente. Se, para Benjamim, o desenvolvimento da imprensa com o advento do Romance gerou uma srie de modificaes na figura do narrador, agora, com o desenvolvimento de diversas tecnologias, bem como a mdia e a cultura de massa, podemos encontrar novas formas de narrativas no mais circunscritas ao romance: filmes, seriados, novelas, desenhos animados, histrias em quadrinhos, so todas formas de narrar da contemporaneidade que tem seus formatos especficos (FERNANDES, 2008 p. 187). A principal 19
caracterstica destes produtos refere-se a sua dependncia com relao mdia, sendo uma das principais caractersticas dos fenmenos da cultura pop 2 . A sobrevivncia destas narrativas depende de como ela diverte e comunica algo a seus espectadores, como o pblico se relaciona com o produto. Setton (2002) aponta o quanto so comuns generalizaes negativas a respeito de tais produtos. No entanto, devemos compreender que as estruturas miditicas so produzidas no seio de uma sociedade, no se configurando como estruturas metafsicas que pairam acima dos indivduos. De acordo com a autora, a partir dos anos de 1960 comearam a serem desenvolvidos estudos que relativizam o carter dominador da cultura de massa, discorrendo sobre a capacidade ativa do receptor, o qual capaz de constituir um sentido individualizado do produto (SETTON, 2002). Podemos compreender as mudanas na forma como os sujeitos se relacionam com o elemento central da narrativa, a figura do heri, visto como a personagem que capta a ateno do leitor/ouvinte dentro dela. No perodo clssico, o heri era o responsvel pelo modelo exemplar, a partir do qual os demais poderiam basear sua conduta, uma vez que este passava por uma srie de provas difceis que deveriam auxili-lo no desenvolvimento da sabedoria e da humildade. j o heri da cultura de massas qualitativamente diferente, pois se trata de pessoas comuns que so levadas a agir, so heris que no possuem vocao heroica ou que realiza as faanhas por motivos egostas, de vaidade ou de quaisquer gnero (NEVES, 2008, p. 223). Se antes o heri era um ser diferenciado dos demais, agora os heris emergem do social, so pessoas comuns, com cujos problemas os sujeitos podem facilmente se identificar. No ambiente produzido por esta fico pode-se, de forma segura, por meio dessas personagens, elaborarmos alguns de nossos impasses, podendo tais fices serem desenvolvidas tomando por escopo conflitos reais, no apenas idealizaes (CORSO; CORSO, 2011). No entanto, podemos perceber que, embora modificados, os aspectos centrais da narrativa clssica permanecem nas obras da cultura de massa. Explicitaremos tais
2 Sato (2007) afirma que cultura pop refere-se a objetos vinculados pela mdia que tem ou tiveram grande identificao popular permanecendo na memria de uma parcela da populao e tornando-se uma referncia comum para determinado grupo. 20
aspectos com a obra Card Captors Sakura, que servir como nosso objeto primordial de estudo. A primeira questo pertinente ao heri mitolgico tal como apresentada por Brando (2009) refere-se paternidade, ao filho do deus com a mortal, ou tendo uma paternidade compartilhada, como no caso de Hrcules, filho de Zeus, Anfitrio e Alcmena. Em Sakura, percebemos este aspecto paterno, uma vez que a herona pode ser considerada tanto como filha do professor Fujitaka, como de Clow, o mago mais poderoso deste mundo. O segundo aspecto apresentado por Brando a existncia de um orculo que precede seu nascimento e comumente prediz a runa. No caso da obra estudada Sakura Card Captors, compreendemos este fato no caso as cartas serem libertadas, no entanto o que se faz com este vaticnio difere sobremaneira ao que apresentado nos mitos tradicionais. Enquanto nos mitos tradicionais o fato obriga o heri a fugir da terra de origem, tentando evitar o infortnio, na obra do grupo Clamp diferente. A herona deve ficar, s permanecendo em Tomoeda ela poder tentar dar conta das questes impostas por ser uma Card Captors 3 . Podemos compreender, mediante o apresentado por Brando, que esta primeira parte da jornada equivale a uma jornada de iniciao, na qual Sakura sai de seu mundo cotidiano, adentrando no mundo da magia e se apropriando de suas leis. Nas palavras do autor, o heri inicia suas aventuras, a partir de proezas comuns num mundo de todos os dias, at chegar a uma regio de prodgios sobrenaturais, onde se defronta com foras fabulosas e acaba por conseguir um triunfo decisivo (BRANDO, 2009, p. 22). Assim, podemos compreender os dois momentos da narrativa apresentada pelo mang: no primeiro, Sakura dever vencer as questes que lhes so impostas pelo mundo normal, as cartas, para, em um segundo momento, capacitada pelo poder destas, lutar contra a fora do criador das mesmas e conseguir o seu triunfo decisivo, que lhe permite perceber aquilo que para ela mais significativo. Se, para Benjamin, o romance e a imprensa eram os responsveis pelo declnio da figura do narrador, ns os percebemos como um dos refgios da narrativa, pois na sociedade contempornea a figura do narrador, enquanto pessoa e funo, est sofrendo um gradativo declnio, no no sentido literrio, mas no sentido funcional, uma vez que o
3 Caadora de cartas 21
adulto no se identica com a experincia adquirida em sua vida, mas com aa adolescncia enquanto ideal social. Neste contexto, convm destacar como surge a adolescncia, e o feitio com que o indivduo nesta to sonhada fase da vida passa a se relacionar com o narrador, ou com a ausncia deste. Essa argumentao ser mais bem desenvolvida a seguir.
2.1 A adolescncia e suas relaes com a narrativa
O atual interesse mundial pela adolescncia e pelos problemas adolescentes indica as condies especiais dos tempos em que vivemos. Se desejarmos explorar essa rea da psicologia, talvez convenha perguntar-nos primeiro: desejaro os rapazes e moas adolescentes ser compreendido? Penso que a resposta no. (WINNICOTT, 2005, P. 163)
Antes de esboar qualquer considerao acerca da ideia do que seria o adolescente, convm salientar a estreita relao que a adolescncia tem para com a puberdade. Uma vez que esta uma garantia biolgica, enquanto aquela se caracteriza como uma prtica social. (CALIGARIS, 2011; COUTINHO, 2005; ROCHA; GARCIA, 2008). No entanto, Caligaris apresenta que, para alguns, a adolescncia se efetivaria dois anos depois do inicio da puberdade, fase em que o estorvo fisiolgico se transformasse em uma espcie de identidade adolescente (2011, p.19). J outros a situam antes da maturao biolgica, tendo em vista a apropriao precoce de comportamentos e estilos tidos como adolescentes. Mas se a adolescncia tida como uma prtica social, em que momento poderemos situ-la? Por meio da literatura percebemos que ela uma construo social da Idade Moderna, surgida pela consolidao do individualismo, marco da Revoluo Francesa, articulando a imposio de limites nas esferas pblicas e privadas. (COUTINHO, 2005, OUTEIRAL, 2008). Tais transformaes so estudadas por Philippe Aris em seu famoso estudo Histria Social da Criana e da Famlia (1973). Nele, o autor explicita que o surgimento dos termos infncia e adolescncia ocorreu mediante um processo demorado, ainda existindo certa ambiguidade entre tais termos. Estes se apresentavam em contraposio ao que hoje consideramos juventude. No se possua a ideia do que 22
hoje chamamos de adolescncia, e essa ideia demoraria a se formar (ARIS, 1973, p. 14). Percebemos o esboar-se, paulatinamente, de um Ser Adolescente, o qual antes de se configurar como uma expresso da realidade social antevisto pelas obras artsticas, uma vez que estas, muitas vezes, so produzidas para dar fruio s angstias que o artista sente, geradas pelas questes a que ele tem de abdicar em favor da civilizao. Freud (1921; 1929) aponta que o artista um produto de sua poca, no sentido em que as obras refletem os anseios e aspiraes de um determinado tempo. Desta forma, entendemos o porqu de Aris (1973), ao procurar evidenciar as questes pertinentes adolescncia, tambm optar por uma questo artstica, tomando Siegfried de Wagner como o primeiro adolescente moderno. Ele acreditava que este exprimia uma mistura de pureza, que seria provisria, com fora fsica, naturalismo, espontaneidade e alegria de viver, caractersticas estas que fariam do adolescente o heri do sculo XX, nas palavras do autor: o sculo da adolescncia. Entretanto, tais questes ainda eram apresentadas de maneira rudimentar, reduzida queles que tinham o contato com a produo artstica, como se a adolescncia comeasse a ser desenvolvida enquanto um conceito esttico, o qual, neste primeiro momento, no repercutia nas relaes sociais. Por meio dos estudos desenvolvidos pelo autor francs, compreendemos que tal cenrio mudar sobremaneira aps a guerra deflagrada em 1914, na qual percebe-se a estruturao de uma conscincia juvenil, comeando como um sentimento comum entre os combatentes:
Da em diante, a adolescncia se expandiria, empurrando a infncia para trs e a maturidade para frente. (...) Assim, passamos de uma poca sem adolescncia a uma poca em que a adolescncia a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo. (ARIS, 1973/2006, p. 15).
No entanto, no possvel compreender tal perodo desvinculado da questo central referente famlia e suas modificaes. Com base em diversos autores, dentre os quais destacamos Outeiral (2008), evidenciamos que as maiores transformaes neste conceito e no que se espera dele foram subsidiadas pelas modificaes na prpria estrutura familiar que ocorreram, principalmente, entre os anos de 1960 e 1990. Para alm do proporcionado pela literatura especializada em questo, tambm 23
circunscreveremos outra mudana que vem sendo consolidada a partir dos anos 2000, cujas as nuances tambm se fazem presentes no ser adolescente:
Nos anos de 1960 temos a liberdade como elemento central em torno do qual se organiza o lao social, enquanto que outros ideais modernos como igualdade e fraternidade comeam a entrar em declnio (COUTINHO, 2005). Na dcada de 70, as questes pertinentes famlia se modificam, o perodo da passagem do modelo patriarcal para a famlia nuclear. O primeiro era constitudo por grupos familiares com vrios graus de parentesco, os quais habitavam espaos prximos. J o segundo se constitui de um casal (ou pelo menos da me) e de um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem (OUTEIRAL, 2008). Na dcada de 80, temos a normalizao das questes pertinentes s novas configuraes de famlia, reconstrudas, com filhos de casamentos anteriores e o reconhecimento da lei do divrcio que, se antes era motivo de vergonha para a mulher e a famlia, agora um fato corriqueiro, neste sentido tambm podemos perceber a mudana da posio da mulher no mundo do trabalho, que agora j no necessita da autorizao do marido para desempenhar atividades produtivas fora do contexto domstico (OUTEIRAL, 2008). Nos anos 90, temos a possibilidade de a mulher ter um filho sem ter tido relaes sexuais com homens, pelas tcnicas da fertilizao in vitro (OUTEIRAL, 2008). Nos anos 2000, discute-se acerca da unio formada por pessoas do mesmo sexo, sendo que ao longo desta dcada, em diversos pases, o Estado passa a reconhecer tais unies com direitos legais. Na Espanha, tal processo ocorreu em 2005, no Uruguai em 2008, na Colmbia e na Argentina em 2009 e no Brasil 2011 (O GLOBO 2009; G1, 2011).
Entendemos que tais transformaes ocasionam mudanas cclicas na realidade social, acarretando mudanas em aspecto legislativo, em prol de uma legitimao de tais 24
questes. Com isto, modifica-se tambm a relao deste sujeito com o Estado, relaes que afetaro exponencialmente a maneira como ser vivenciada a adolescncia. Apresentado minimamente este resgate histrico das transformaes da famlia e como estas se relacionam ao adolescer, optamos por problematizar acerca do adolescente contemporneo, situado em uma sociedade que muitas vezes no est preparada para ele. Para compreender tal processo, deveremos abordar um pouco a relao que os sujeitos ps-modernos tm para com as transformaes sociais engendradas pelo desenvolvimento tecnolgico, o qual tende a retirar o valor da experincia daqueles mais velhos, conferindo-o aos mais jovens, uma vez que eles j esto habituados a lidar com um mundo em constante transformao. Sobre as repercusses de tais questes, Barbero (1995) assevera que:
Essa nova relao com a tecnologia faz, por exemplo, com que muitos adultos sintam que perderam a vida, porque chegam aos 50 anos e percebem que seus conhecimentos, suas habilidades foram abolidos pela nova tecnologia; e no s ficam sem trabalho no sentido salarial, mas tambm sem toda aquela experincia vivida que os havia qualificado (...). Hoje h uma obsolescncia muito rpida, no s dos aparatos, como tambm dos conhecimentos, das habilidades, das destrezas. H uma fragmentao muito grande entre os jovens, que possuem uma espcie de conivncia, de empatia com nova cultura tecnolgica, e os adultos que se sentem impedidos de entrar nessa nova sensibilidade. (BARBERO, 1995, p. 46)
Este processo engendra novas necessidades sociais, o sujeito passa a ser caracterizado como um eterno devir. Percebe-se a estruturao de um novo ideal social, tendo em vista que: a satisfao que o ideal oferece aos participantes da cultura , portanto, de natureza narcsica; repousa em seu orgulho pelo que j foi alcanado com xito (Freud, 1927, p. 22). Ainda em seu texto O futuro de uma iluso (1927), Freud afirma que a partir das diferenciaes impostas por este ideal que toda cultura reivindica o direito de olhar com desdm para o resto (p. 22-23). Por meio desta mudana de paradigma, da experincia para a efemeridade, atentamos para o esvaziamento da narrativa enquanto conselho, tal como desenvolvido por Benjamin (1994), uma vez que no precisamos nos apropriar daquilo que antigo. J se configura como bastante problemtico apropriar-se de uma tecnologia que est sempre se reinventando, sempre havendo algo novo a ser aprendido. Acreditamos que esta mudana de paradigma geste um processo 25
de formao neste sujeito, que agora passa a deter uma conscincia desprovida de historicidade, ancorada no eterno devir. Tais processos modificam tambm a relao destes sujeitos com o tempo. Autores como Jerusalinsky (2011) asseveram que o adolescente tem uma relao com o tempo singular, voltando-se para as questes internas com o objetivo de elaborar o rompimento dos laos parentais e ir em busca de outras relaes. No entanto, compreendemos outro aspecto social que modifica a relao deste sujeito com o tempo: o processo da globalizao que impe uma agilidade e uma resolubilidade das questes pessoais de maneira rpida. Entretanto, esta caracterstica no apenas da poca da adolescncia, ela percebida tambm na infncia, uma vez que esta, agora, dura bem menos tempo que outrora. Esta mudana afeta principalmente o hiato, o tempo em que se deveriam elaborar as questes, que fica cada vez mais escasso. Observamos que, muitas vezes, a sociedade no prima por uma elaborao, mas por uma atuao naquela realidade. Neste sentido, Outeiral (2008) afirma que
Este contraste entre a referncia velocidade/tempo entre a gerao dos adultos e dos adolescentes me leva a inferir que um dos vetores que nos levam a encontrar hoje, mais do que ontem adolescentes atuadores se deve a esta quebra de paradigma: a tradicional, ou moderna, cadeia impulso- pensamento-ao cede lugar a um modelo caracterizado pela supresso do pensamento que demanda elaborao e, por conseguinte, tempo e que se configura ps-modernamente como impulso-ao, baixa tolerncia a frustrao, dificuldades em postergar a realizao dos desejos e busca de descarga imediata dos impulsos ( p.120).
Sob a gide de tais mudanas, percebemos o esvaziamento do tempo da narrativa e o consequente esgaramento de parte da rede simblica responsvel pela sustentao deste sujeito na sociedade. Percebemos que tais processos geram uma mudana no detentor da experincia que deixa de ser a famlia e passa a ser o profissional. Se antes, no nascimento de um beb, os avs se dirigiam a casa da nova famlia e lhes transmitiam aquilo que aprenderam, agora, as questes so trabalhadas diretamente com o pediatra, aquele que detm o conhecimento formal daquele perodo de vida. Tal fato aliado crescente ausncia dos pais no ambiente familiar, uma vez que estes devem trabalhar cada vez mais para prover o sustento dos filhos, faz com que estes tenham cada vez mais uma agenda lotada de atividades que, muitas vezes, visam a auxiliar o adulto do amanh a ter sucesso profissional garantido. O contato intergeracional 26
diminudo e, com ele, a dimenso do conselho, percebido como a transmisso de uma experincia de vida a ser apropriada pelo mais jovem. Desta forma, pode ficar uma dvida simblica para os pais, uma sensao de que no so bons, e de que, portanto, devem compensar os filhos com os objetos do consumo. Optamos por aprofundar teoricamente as questes pertinentes a este ideal e, para tanto, nos utilizaremos das assertivas desenvolvidas pela psicanlise. Neste sentido, percebemos que, no texto guisa de introduo ao Narcisismo (1914), Freud fornece o termo His Magesty, the baby (Sua Majestade, o Beb), que se refere ao processo pelo qual os pais tendem a doar parte de seu narcisismo aos filhos, fazendo com que aqueles passem a atribuir s crianas toda a perfeio e completude, tendendo a encobrir e esquecer seus defeitos. Compreendemos que tal processo no deixa de cobrar um preo: A criana deve satisfazer os sonhos e os desejos nunca realizados dos pais, tornar-se um grande homem e heri no lugar do pai, ou desposar um prncipe, a ttulo de indenizao tardia da me (FREUD, 1914, p. 110). No entanto, isto consiste em imposies do narcisismo primrio, existindo um segundo momento onde a criana apresentada a um social, onde no pode ter tudo, e onde lhe so apresentadas obrigaes e falhas. Os pais j no so perfeitos, isso faz com que ela erga para si um ideal-de-Eu, correspondente influncia crtica destes, como uma forma de conscincia moral, na qual o sujeito tenta vislumbrar algumas partes deste investimento inicial, que lhe traria a completude. Contudo, no questionamos: em que o lugar do adulto est vago o espao no qual a criana toma como ideal-de-eu seu eu prprio, no caracterizado como uma moral, uma vez que a moral passa pelo olhar de um outro, este que no quer ver, ou se responsabilizar? (KEHL, 1997). Nesta mudana de paradigma, quando as experincias da vida adulta no querem dizer mais nada, quando o imediatismo e a efemeridade se tornam o ideal no qual no importa o quanto se viva a experincia, ela no pode vale a ponto de ser transmitida, temos a crise na figura do narrador. Kehl (2004) aponta uma das caractersticas marcantes na sociedade atual, o iderio social no mais o adulto, aquele que detm alguma experincia, mas o adolescente. Nas palavras da autora:
Em uma sociedade em que o adolescente erigido posio de ideal de todas as idades, os adultos passam a sofrer de m conscincia diante de sua 27
experincia de vida. Se a regra viver com a disponibilidade, a esperana e os anseios de quem tem 13, 15 ou 17 anos, que fazer da seletividade, da desconfiana e at mesmo da consolidao de um certo perfil existencial mais definido, inevitveis para quem viveu 40 ou 50 anos? O adulto que se espelha em ideais teen sente-se desconfortvel ante a responsabilidade de tirar concluses sobre a vida e pass-las a seus descendentes. Isso significa que a vaga de adulto, na nossa cultura, est desocupada. (KEHL, 2004, p.96) Grifo nosso.
A maneira como Freud apresenta este perodo da infncia permite perceb-lo no como a forma como os adultos se relacionam com as crianas, mas sim, com os adolescentes. como se, na contemporaneidade, vivssemos sob a gide de Sua Majestade, o Adolescente, ou, parafraseado o autor; como se o Eu adolescente se encontrasse, de fato, em posse de toda perfeio e completude, pois se criana limitado o acesso ao sexual, ao adolescente no. O seu novo corpo encontra a potncia para desempenhar todas as funes sexuais, com o vigor que o adulto j no mais possui. Desta maneira, os adultos passam a cobrar deste a vida que no puderam viver, como se a potncia recm-descoberta relembrasse a estes todos os sonhos e projetos que tiveram de ser abortados ao longo da vida. Neste sentido, Winnicott (1963) aponta que o desenvolvimento e a difuso dos mtodos contraceptivos acabam por proporcionar ao adolescente moderno a possibilidade de explorar toda rea da existncia sexual (p. 168), na qual estes passam a usufruir de possibilidades que outrora eram vedadas aos pais. Em suma, percebemos que ao jovem no cabem apenas as imposies de seu prprio narcisismo, mas tambm as exigncias narcsicas de seus pais. Estas questes mudam sobremaneira a relao do sujeito com a narrativa enquanto prtica social e, consequentemente, com a figura do narrador. Autores como Fernandes (2008) asseveram que hoje vivemos sob a gide de uma nova espcie de narrador, o narrador ps-moderno. Se antes o narrador apresentava o que a experincia dos anos lhe trouxe, agora a experincia tida como um olhar junto. Narrador e ouvinte passam por ela para depois dialogar sobre a forma como a vivenciaram. Na perspectiva defendida pela autora, compreende-se que tanto na narrativa clssica quanto na contempornea, tanto em um aspecto social quanto no literrio, podemos atentar para uma relao dialgica. Na primeira, o sujeito era confrontado com a experincia do outro e deveria signific-la. Agora, o sujeito experiencia o mesmo que o outro e dialoga sobre isto. 28
Discordamos destas proposies. A experincia de uma vida no deve ser descartada, pois ela necessria para o aprendizado e para a vinculao do sujeito com os demais. Um modelo de relao estritamente horizontal/intergeracional faz com que se perca essa relao com o outro e sua experincia vivida, o convite a olhar junto e o lugar do adulto diante de uma sociedade. Quem aconselhar? Quem servir de barra ao desejo adolescente? A perspectiva dialgica do narrador ps-moderno pode parecer fascinante, mas no . O adolescente no necessita apenas de um amigo com quem possa andar junto, mas de algum que possa entender suas vivncias e apontar diferenas com relao ao passado. Como o adolescente poder ascender condio adulta se nenhum adulto quer estar nesta posio?
A desvalorizao da experincia esvazia o sentido da vida. No falo da experincia como argumento de autoridade - ''eu sei porque vivi''. Sobretudo numa cultura plstica e veloz como a contempornea, pouco podemos ensinar aos outros partindo da nossa experincia. No mximo, que a alteridade existe. Mas a experincia, assim como a memria, produz consistncia subjetiva. Eu sou o que vivi. Descartado o passado, em nome de uma eterna juventude, produz-se um vazio difcil de suportar (KEHL, 1997, online).
Daquilo que difcil suportar, perceber, tocar, que nascem muitas das expresses artsticas. As angstias gestadas no interior so como um signo deste mal estar presente na sociedade. De dentro do desconforto gerado, estas novas relaes arte nos mostram um caminho, revelam-nos um sentido narrativo, uma experincia, um tempo para elaborao, no contato individual que cada sujeito tem para com esta forma de expresso, uma forma de analisar suas vivncias e as resignificar. Desta forma, discordamos de algumas das proposies apresentadas por Benjamin, uma vez que este acusa o romance do fim da narrativa, sendo que hoje, ao contrrio, percebemos que, na ausncia de um narrador, enquanto aspecto pessoal, a narrativa, compreendida na dimenso do conselho, consegue sobreviver nas obras de arte, tanto as que perfazem um aspecto literrio, quanto nas representantes da cultura de massa, dentre os quais destacaremos o mang que, por vezes, esta a servio deste resgate da narrativa. Entendemos que os leitores, ao buscarem as obras, no as buscam apenas pela leitura, mas por uma gama de significaes que esto para alm dela:
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[...] A experincia da leitura do mang parece conduzir justamente a um resgate de valores que esses jovens reconhecem como importantes tais como amizade, honra e respeito diante da diferena e que esto escassos e cada vez menos reconhecidos em nossa sociedade contempornea. Entretanto, parece tambm contraditrio que esta mesma sociedade to marcada pelo apelo ao consumo frgil e rpido e pelo individualismo consiga gerar artefatos (os mangs) capazes de alimentar e gerar ideais fundamentais para o ser humano. (NEVES, 2004, p.233-234).
Os aspectos da confeco do mang que corroboram nossa proposio referem- se s caractersticas da indstria cultural japonesa que, em seus produtos, tende a incutir determinados valores ticos e morais que poderiam se esvair, dadas as diversas transformaes que o pas sofreu. Aqui se destaca a prpria estruturao do heri do quadrinho japons que ser mais bem especificado no tpico seguinte. Nesse sentido, acreditamos que o sujeito, ao consumir tais produtos, busca no apenas a distrao, mas uma maneira de compreender a si mesmo, um momento para a reflexo de que a sociedade ps-moderna o priva. Dedicaremo-nos agora a explorar um pouco mais o gnero narrativo que interessa nesse estudo, o mang, ou quadrinho japons, o qual adentra no Brasil nos anos de 1950 em sua dimenso pedaggica, embora sua popularizao como um produto destinado s massas brasileiras tenha ocorrido apenas nos anos de 1980 1990.
2.2 O Mang como gnero narrativo
Ao falar sobre os mangs nos propomos inicialmente a evidenciar os preconceitos que tal artigo sofre na sociedade ocidental, que os considera um produto destinado ao pblico infantil e que, por fazer parte da chamada cultura de massa, deve ser consumido e esquecido. Estudiosos dos quadrinhos afirmam que foi necessrio que as artes plsticas comeassem a utilizar alguns recursos presentes nestas narrativas para que os meios acadmicos comeassem a lhes dar valor, dentre eles podemos destacar Orson Welles, Luiz Buuel e Frederico Fellini (VERGUEIRO, 2005). Podemos encontrar diversos elementos da esttica dos quadrinhos japoneses em grandes sucessos 30
do cinema, como O Fabuloso destino de Amelie Poulain,(esttica do Shoujo 4 Mang ), e no filme de Hayao Miyazaki, A viagem de Chihiro, que foi vencedor do Oscar de melhor animao (SATO, 2007; MONIL, 2004; GRAVETT, 2006). O termo mang significa, literalmente, histria em quadrinhos, resultando, como afirma Sato (2007), da unio dos termos man (humor) e g (imagem) (no h ideia de concluso). Para os japoneses qualquer histria em quadrinho um mang. Entretanto, para os ocidentais, o termo mang refere-se s histrias que tm o chamado trao oriental, ou as caractersticas estticas do quadrinho japons. Assim, passou a existir no mercado, tanto no japons, quanto no dos demais pases, em decorrncia da popularizao deste produto desde o final dos anos de 1980 e ao longo da dcada de 1990, uma srie de livros ou cursos de como fazer mangs. Entretanto, devemos ressaltar que uma coisa copiar aquilo que ns consideramos como o estilo mang (algumas das caractersticas estticas, tais como olhos grandes e corpo fino) e outra, bem diferente, compreender os detalhes ideolgicos (com relao ao ritmo dos personagens, as diferenas existentes no layout da pgina, etc.) que acabaram conferindo aos quadrinhos japoneses identidade prpria (MONIL, 2004). Desta feita, antes de falarmos mais especificamente dos quadrinhos japoneses, abordaremos elementos gerais das histrias em quadrinho. Autores como Monil (2004) indicam que os historiadores das histrias em quadrinho concordam em situar seu nascimento, tanto como um produto popular, quanto como algo destinado s massas no sculo XIX, paralelamente ao auge do formalismo na Europa e na Amrica, em que tambm participava o Japo a partir da segunda metade do sculo (p. 17). Contudo, o autor espanhol aponta que, no caso japons, os quadrinhos aparecem no decorrer do sculo XI, momento em que se d uma primitiva manifestao de caricaturas grficas. Nos sculos seguintes foi adotado o desenho de caricaturas em pergaminhos e gravuras. Durante o Perodo Edo, compreendido entre os anos de 1600 e 1867, desenvolveram-se formas grficas com outras funes, desde auxiliar no processo de
4 Mang desenvolvido para o pblico feminino. Na bibliografia utilizada, encontramos tal termo escrito de trs formas diferentes: shjo, shojo ou Shoujo. Visando a uma uniformizao da escrita optamos pela grafia Shoujo. 31
meditao (Zenga), passando por biombos que ilustravam a forma da chegada dos portugueses terra do sol nascente (Nambam), at a utilizao de gravuras ilustradas em madeiras que retratavam temticas cmicas, conhecidas como ukiyo-e (MONIL, 2004). Dentre os tipos apresentados, aquele que para ns tem um maior destaque o ltimo, uma vez que podemos situ-lo como o responsvel pelo desenvolvimento do termo mang, cunhado por Katsuhika Hokusai (1960-1849), um dos mais famosos artistas ukiyo-e de sua poca (MONIL, 2004; GRAVETT, 2007, SATO, 2007). Porm, a estruturao do mang como o concebemos hoje nasceu do encontro do Ocidente com o Oriente, do velho com o novo (GRAVETT, 2007, p. 22), ocorrendo ao longo do sculo XIX, sobretudo devido influncia britnica. Dentre os ingleses, podemos destacar a figura de Charles Wirgman (1832-1891), responsvel pelo desenvolvimento de cartuns de cunho poltico, baseados na revista inglesa The Punch, Em 1862, ele lanou no Japo a revista The Japan Punch e o estilo de gravuras por ele utilizadas ficou conhecido como ponchi-e (desenhos Punch). Ao longo dos anos, tais quadrinhos acabaram por influenciar os japoneses, mas, no decorrer da dcada de 1890, o termo ponchi-e j havia sido substitudo pela palavra mang. (GRAVETT, 2007). Com o incio da guerra Sino-Japonesa em 1933 e a subsequente entrada do Japo na II Guerra Mundial, os quadrinhos que detinham uma crtica poltica passaram a sofrer um forte processo de censura, o mesmo ocorreu com a produo cinematogrfica. Entretanto, a mesma pde se desenvolver em um aspecto tcnico devido ao dinheiro injetado pelo governo militar. Neste perodo, a animao e os quadrinhos passaram a servir de propaganda pr-guerra, tornando-se cada vez mais militarizados, mostrando os pases inimigos no conflito sob um aspecto pouco menos que satnico. Com o fim do segundo confronto, a terra do sol nascente teve de se adaptar a sua nova situao, ao controle do governo estadunidense, o qual foi responsvel pelo regresso das HQs no pas. Foi um perodo de censura diferente: os quadrinhos e animaes eram analisados para tentar combater o militarismo e ultranacionalismo que ainda poderiam estar presentes no esprito japons. O Departamento de Propaganda das foras de Ocupao analisaram quase toda a produo do perodo da guerra e mais da metade das produes foram condenadas destruio (SATO, 2005; 2007; MONIL, 2004). 32
Tomando por base este momento histrico podemos perceber o estopim para os quadrinhos receberem a alcunha de literatura infantil ou corruptvel. Entretanto, a raiz deste processo no se encontra no Japo, mas em terras norte-americanas. Assim, para podermos entender o porqu destas denominaes, abordaremos um pouco da histria daquele pas durante os anos de guerra. De forma semelhante ao que ocorreu no Japo, os quadrinhos tambm se tornaram instrumento de divulgao ideolgica estadunidense:
O Super-homem foi convocado pelo presidente Roosevelt para ajudar na luta contra Hitler. O capito Amrica lutava contra o Caveira, que era o lder dos nazistas. Os super-heris, alm de defenderem os aliados, faziam apologia do patriotismo norte-americano. O que ocorreu, posteriormente, foi que os super-heris ganharam a guerra e a indstria de quadrinhos cresceu cada vez mais investindo nesse filo. (SILVA, 2002, p. 20)
Entretanto, durante a Guerra Fria, eles acabaram por se tornar o alvo do pnico moralista e tornaram-se o bode expiatrio do crescimento da delinquncia juvenil. Dadas as particularidades do Superman, as crianas aprendiam com ele a ter pouco respeito pelas pessoas comuns (SILVA, 2002). interessante perceber que o discurso reinante no pas queria atribuir o de insegurana que o pas enfrenta em virtude da Guerra Fria, ou da crise econmica, a existncia de quadrinhos violentos. O clima de tenso culminou com a poltica do Macarthismo 5 , que interferiu sobremaneira na atividade intelectual estadunidense. Neste momento foi cunhado o termo politicamente correto, sendo impostos censores e cdigos de controle aos estdios de cinema e animao e aos quadrinhos. Aps este perodo, os roteiros destinados s animaes e aos quadrinhos passaram a apresentar enredos cada vez mais simplistas, coisas de criana. Podemos perceber que, devido forte influncia estadunidense no Brasil, ler quadrinhos passou a ter uma conotao pejorativa, que ainda presenciamos at os nossos dias (GRAVETT, 2006, SATO, 2007). Entretanto, esta uma realidade estadunidense. Percebemos que sem os bloqueios criativos insuflados por tal poltica as personagens japonesas conquistaram cada vez mais espao e passaram a influenciar cada vez um maior nmero de autores (NAGADO, 2005).
5 Poltica criada em 1950 nos EUA contra uma suposta infiltrao comunista no pas. (SATO, 2007) 33
Mas como ocorreu a consolidao do mang como um produto japons? O que o fez to famoso? Para estas questes existe uma resposta: Osamu Tezuka: uma explicao para a popularidade dos quadrinhos no Japo [...] que o Japo tinha Osamu Tezuka, enquanto outras naes no o tinham. Sem o Dr. Tezuka, a exploso dos quadrinhos no Japo do ps-guerra teria sido inconcebvel (Asahi apud Gravett, 2006, p. 28). Este considerado at hoje o mang no kamisama (deus do mang) que, por ter presenciado os desastres causados pela guerra, as consequncias de um ataque areo ocorrido em Osaka, decidiu pregar a paz por meio da animao. um consenso entre os autores que o mang se modificou depois de Tezuka: no importa aquilo que for produzido depois dele, sempre haver algo dele em cada mang (SATO, 2007; 2004; GRAVETT, 2006; MONIL, 2004). Mas de que forma Tezuka conseguiu revolucionar os mangs? Antes de abordarmos seu momento autor, vamos elencar alguns elementos de sua infncia que propiciaram o desenvolvimento de sua forma de tecer a narrativa do mang. apontado por diversos autores que o fato do jovem Osamu ter nascido em um ambiente liberal, no qual o pai comprava para ele os mais diversos quadrinhos importados que chegavam ao Japo, fomentou no autor o sonho de ser cartunista. O pai tambm o levava frequentemente ao cinema para assistir aos filmes de Chaplin, ou as animaes desenvolvidas pelos estdios Disney (GRAVETT, 2006; SATO, 2005; 2007). No obstante a influncia cultural proporcionada pelo pai, sua me sempre o levava ao teatro de Takarazuka, onde o garoto comeou a conviver com diversas atrizes:
Naturalmente, na minha juventude eu assimilei a atmosfera romntica e extravagante desse mundo. A roupa dos meus personagens, assim como o cenrio que os cerca, deve muito ao teatro. E o mais importante, o sentimento de nostalgia de Takarazuka impregna e inspira meu trabalho (TEZUKA apud GRAVETT, 2006, p. 81).
O estilo que ser desenvolvido posteriormente por Tezuka bebe destas trs fontes: o cinema de Chaplin, as produes Disney, e o teatro de Takarazuka. Osamu comeou um trabalho que revolucionou os quadrinhos japoneses, tendo por objetivo narrar as histrias em quadrinho em formato de animao. Sua preocupao com os aspectos envolvendo o cenrio, com os recursos narrativos que se expressam no papel, e com a simbiose de tais aspectos era to importante na concepo deste autor que, por 34
vezes, fazia a escalao de personagens que atuariam na trama como se estes fossem atores. Neste processo, podemos entender como se desenvolve a forte relao dos quadrinhos japoneses com o cinema. Podemos perceber que Tezuka nunca desistiu da animao. Os lucros adquiridos com a venda dos mangs financiava seu sonho de v-los transpostos para as telas de cinema. Este fato o levou a fundar em 1961 a Mushi Productions. Por meio dela, produziu desenhos para a TV de seu mang Tetsuwan Atom que em 1964 foi comprado pela rede de televiso estadunidense NBC, sendo rebatizado com o nome de Astro Boy. Tal fato fez de Tezuka o primeiro produtor de animes a export-los. Um ano mais tarde foi lanado o Jungle Taitei (Kimba, o Leo Branco 6 ), baseado em uma srie de mangs criada por ele na dcada de 1950. O sucesso de ambas as produes estabeleceu as matizes da relao mang/anime que conhecemos hoje. (GRAVETT, 2006; SATO, 2005; 2007).
Fig 1 Produes de Tezuka
As caractersticas hoje tidas como as do quadrinho japons foram insufladas por ele, que no tinha medo de acrescentar em suas histrias questes humanas bsicas, como identidade, auto-aceitao, famlia e amizade, perda, envelhecimento e morte. Isto, aliado verdadeira miscelnea de temas existente no mercado editorial japons, que as elevava ao nvel mximo, fez com que vrias pessoas tivessem acesso ao mang.
6 Esta srie criada por Tezuka centro de uma controvrsia, na qual os Estdios Disney so acusados de plgio, por terem lanado O Rei Leo como criao original do estdio estadunidense. 35
A leitura do mang proporcionava ao japons uma forma de escapar de sua realidade to estafante, cheia de noes de respeito e hierarquia, fazendo com que eles pudessem experimentar de maneira indireta os reinos mais livres da mente e dos sentidos (GRAVETT, 2006, p. 17). De acordo com Monil (2004), por meio dos esforos desenvolvidos por Tezuka, o desenvolvimento dos mangs passa a sofrer mudanas cada vez mais rpidas:
1947: aparece a primeira publicao mensal composta exclusivamente de mangs, o Manga Shonen. 1955: desenvolvem-se as primeiras revistas compostas de Shoujo mang (para meninas). 1962: desaparecem as revistas Shonen Club e Shoujo Club, extinguindo-se um modelo de revista juvenil originado no pr-guerra, inicia-se o boom das publicaes de mang semanais (MONIL, 2004).
Com a multiplicao de ttulos de mang houve tambm um crescimento exponencial nos temas a serem desenvolvidos nestas revistas, bem como o desenvolvimento dos prprios enredos, consolidando novos gneros, muitos dos quais inexistentes fora do Japo. Dentre eles, podemos destacar os mangs esportivos, ou aqueles que abordavam o dia a dia do trabalho de um homem no escritrio (MONIL, 2004). Na atualidade, percebemos que, dentro do universo dos mangs, os que fazem mais sucesso no Japo esto vinculados editora Shonen Jump. Barral (2000) assevera que quase todas as aventuras desenvolvidas por esta editora so construdas em torno de trs palavras: Esforo, Amizade e Vitria. Um fato interessante apresentado por diversos autores que tratam da histria dos mangs que, ao contrrio do que acontecia nos EUA e na Europa, nas quais os quadrinhos enfrentaram uma forte decadncia, principalmente devido ascenso de outras mdias tais como a televiso, no Japo a situao era bem outra; a indstria de mangs experimentou um aumento espetacular. Os quadrinhos, como Tesuka bem sabia, sero sempre um meio ambiente frgil. Como qualquer forma de entretenimento de massa, um meio propenso estupidez, ao 36
plgio, e ao uso de frmulas prontas. Para ele, felizmente a demanda contnua por mais e mais histrias fomentou novos talentos e deixou entrar esse importantssimo sopro de ar fresco (GRAVETT, 2006). Podemos situar a entrada dos quadrinhos japoneses em terras brasileiras em dois momentos distintos. Conforme apresenta Braga Jnior (2011), no ano de 1908 chega ao Brasil o navio Kasato Maru, com a primeira grande leva de imigrantes japoneses, sendo hoje, o Brasil, o pas com maior colnia de descendentes japoneses fora do Japo (uma populao estimada em 1,5 milho de descendentes). Ou seja, muito antes das revistas japonesas ganharem fama e popularidade no exterior, o Brasil j era consumidor do mang, que chegava s terras tupiniquins aos milhares desde os anos 50, e durante trs dcadas movimentaram dezenas de livrarias que atendiam imigrantes japoneses espalhados pelo pas (SATO, 2007, p. 66). Tendo como principal funo a dimenso pedaggica, eles auxiliavam que os descendentes ainda lessem em japons, guardando traos culturais. No entanto, nos anos de 1980, tais livrarias comearam a desaparecer em virtude de que estes descendentes orientais no tinham mais o afinco de ler quadrinhos na lngua materna de seus ascendentes japoneses, fazendo com que a importao de tais produtos fosse reduzida. Sato (2007) aponta que foi necessria uma valorizao destes quadrinhos na Europa e nos EUA para que, mais uma vez, os mangs atrassem a ateno de leitores, tanto descendentes como no descendentes de orientais. Compreendemos que, mesmo o mang j estando presente no Brasil desde o incio do sculo XX, o seu advento enquanto produto de massa ocorreu, principalmente, a partir do ano de 1994 com a chegada do anime (animao japonesa) Os Cavaleiros do Zodaco (Saint Seiya), tido como responsvel pela difuso e popularizao dos animes e mangs em terras brasileiras, e exibido pela extinta Rede Manchete. O sucesso de Cavaleiros trouxe consigo uma srie de outros animes, tais como Dragon Ball, Shurato, Sailor Moon, Yu Yu Hakusho, que se destacaram no inicio dos anos de 1990. Entre os anos de 1999 e 2001 houve uma consolidao do setor com a divulgao na tev aberta de animes como: Pokmon, Samurai X, Sakura Card Captors, Dragon Ball Z, Digimon, dentre outros (SATO, 2007; GUSMAN, 2005):
Isto criou um ambiente propcio para a vinda dos mangs que originaram as sries animadas de TV e graas a isso a editora JBC investiu no setor em 37
2001 com o lanamento de quatro ttulos nas bancas: Samurai X, Sakura Card Captors, Video Girl Ai e Guerreiras Mgicas de Rayearth. (...) O mercado evoluiu e a editora, depois de dois anos, publica 11 ttulos inditos por ms nas bancas e conta com 14 ttulos diferentes traduzidos para o pas. Em 2003, ela se tornou a maior editora de mangs do Brasil (GUSMAN, 2005, p. 86).
Fig 2 "Tarde demais para segurar a invaso" MARREIRO apud GUSMAN, p. 81
A caracterstica marcante do mang no contexto ocidental que, ele nasce de sua relao com o anime, sendo que no Japo ocorreu o inverso; o bero do anime foi o mang. No Brasil, assim como nos demais pases ocidentais, as pessoas comearam a sentir curiosidade sobre como seriam as histrias que geravam os animes, da veio a importao deste produto cultural. Se, ao contrario das HQs, a televiso no conseguiu afetar a indstria de quadrinhos no Japo a partir dos anos 60, como ocorreu com a Europa e EUA, agora, com o advento e a expanso dos computadores, principalmente da internet, este mercado est sofrendo grandes redues, a exemplo da revista Shonen Jump, que no ano de 1995 alcanava uma tiragem mdia de 6 milhes e meio de exemplares por semana, ao passo que em 2005 a tiragem mal atingiu os 3 milhes de exemplares (SATO, 2007). Atualmente o mercado est diversificado. Com a internet, as pessoas no necessitam mais da TV, tanto aberta quanto fechada para ter acesso a este produto, sendo que muitos mangs que vm ao Brasil no esto mais vinculados aos seus animes enquanto produto apresentado por uma rede de TV nacional. 38
Mesmo que alguns estudos explicitem um reconhecimento dos quadrinhos pelo meio acadmico, por parte das artes plsticas e do cinema, ainda no percebemos a forma como este reconhecimento reverbera na sociedade em geral, onde muitos ainda consideram quadrinhos como coisa de criana, qual no deveria ser dada ateno. No meio acadmico, podemos perceber outra espcie de preconceito contra os mangs, e no s contra eles, mas tambm contra os demais representantes da cultura de massa. Tais crticas fundamentam-se teoricamente em alguns autores, dentre os quais podemos citar Walter Benjamin (1994) e Theodor Adorno (2002). Podemos subdividir estas crticas em trs blocos: os produtos da cultura de massa acabam com autenticidade da obra; so responsveis pela massificao da cultura; e mantm uma forte ligao com o consumo. 1. Para Benjamin (1994), os artigos desenvolvidos pela cultura de massa so feitos de uma forma que possam ser facilmente copiados, o que caracteriza a reprodutibilidade da tcnica, desta reproduo existe algo que se esvai, a autenticidade do produto. Ou seja, aquilo que podemos caracterizar como o aqui agora da obra, a forma como ela foi concebida, o momento histrico, sua prpria estrutura. O autor da escola de Frankfurt afirma que, se antes a obra era desenvolvida tomando por base seu aspecto ritual, agora no mais assim, ela passa a ser desenvolvida tomando por fundamentao outra seara; a poltica. Contudo, alguns fatos apontam que a questo da reprodutibilidade da tcnica no uma caracterstica to nova, bem como a relao entre a arte e a esfera poltica, uma vez que muitas obras passam a ser desenvolvidas para dar uma legitimao histria de um povo. Algumas obras consideradas clssicas foram desenvolvidas tomando por base obras j existentes. Como apresenta Albertin (2008), por mais que as realizaes artsticas tenham a pretensa liberdade criadora, sempre esto calcadas nas experincias humanas, ou seja, para se entender a obra, devemos perceber a sua historicidade. Tomemos por exemplo o clssico de Virglio, Eneida. Tal obra tem uma vinculao poltica com o Imprio romano, uma vez que foi criada para formular uma histria acerca do mesmo. Nas palavras da autora: a relevncia dessa obra dentro da Literatura Latina ocorre, principalmente, por se tratar de um projeto poltico idealizado por Augusto, e partilhado por Virglio (p.12). A obra virgiliana foi desenvolvida no sc. I 39
a.C, mas seu desenvolvimento toma por base as obras homricas, que foram desenvolvidas por volta do sc VIII a.C (ALBERTIN, 2008). Ou seja, a obra de arte, mesmo que de maneira velada, sempre esteve relacionada ao aspecto poltico, tendo em vista que o prprio posicionamento dentro da esfera ritual serve como uma legitimao desta (BENJAMIN, 1994). Nesse sentido, percebemos tambm que, seguindo este aspecto da historicidade, podemos atentar para o fato de que o grau de valor das obras pode ser modificado atravs do tempo, como no caso da literatura cortes japonesa. No momento em que foi desenvolvida era considerada uma literatura menor, tanto por ser desenvolvida por mulheres, como escrita em japons, e no em chins como se era esperado. Durante a mudana de paradigma ocorrida na Era Meiji (1868 1912), na qual o pas precisava de uma escrita nacional de qualidade, tais obras passaram a ser valorizadas (CUNHA, 2011). 2. Percebemos outras crticas cultura de massa no que exposto por Graa (1991). O autor apresenta que a teoria crtica denunciou o processo de massificao da cultura por meio da manipulao da conscincia e da estandardizao de hbitos e interesses. Esta, por sua vez, diferiria sobremaneira da cultura erudita, que necessitaria de uma aprendizagem precoce e sistemtica constituindo-se da quintessncia da produo intelectual humana ao longo da histria (p.90). No entanto, dadas as condies sociais, muitas pessoas no conseguem ter acesso a esta forma de expresso cultural, por vezes considerada como a verdadeira cultura. Para os fins a que tal estudo se prope, tomamos como arte, em sua forma de expresso literria, no... os mais aplaudidos pelos crticos, mas os menos pretensiosos..., que gozam, entretanto, da estima de um amplo crculo de leitores entusiastas de ambos os sexos (FREUD, 1908/1907 [1996], p. 139). Compreendemos por arte aquilo que nos liberta da realidade extingue nossa lembrana normal dela, e nos situa em outro mundo e numa histria de vida inteiramente diversas, que, em essncia, nada tem a ver com a nossa histria real (FREUD, 1900 [2001], p. 29). Em suma, aquilo que capaz de transcender o aspecto puramente racional e nos vincular, e despertar as emoes no leitor. 40
3. Neste contexto, apresenta-se uma nova dicotomia: de um lado, os produtos tidos como clssicos (as obras desenvolvidas por grandes autores da literatura mundial) e, do outro, aquilo que convencionamos chamar de produtos de massa. Mas, muitas vezes, esquecemos um pequeno detalhe: os grandes clssicos tambm foram feitos para o consumo, um consumo por parte de uma nobreza que pagava por seus servios. Ser que tal crtica no acaba por ser um tanto preconceituosa e saudosista ao situar o valor artstico de uma obra em algo que foi feito em um perodo anterior e desconsiderar, em virtude do carter mercantil, aquilo que esta sendo ou ser produzido? Acerca de tais questes Fischer assevera que:
O patrocinador individual foi invalidado por um mercado livre no qual a avaliao das obras de arte se tornava difcil, precria,e onde tudo dependia de um conglomerado annimo de consumidores chamado pblico. A obra de arte foi sendo cada vez mais subordinada s leis da competio. (FISCHER, 1971, p. 59).
Percebemos que este processo gera uma mudana na exigncia sobre o autor, uma vez que antes ele tinha que desenvolver algo que potencialmente agradasse esteticamente ao patrocinador. Agora este patrocinador invalidado e difundido em uma matriz social. O autor agora desenvolve um produto que dever ser consumido por uma mdia.
2.3 Caractersticas dos mangs
Existe uma srie de fatores que diferenciam a estrutura do mang dos HQs estadunidenses. Dentre elas, podemos destacar, de acordo com Monil (2004), a diversidade de temas, a psicologia dos personagens, o ritmo narrativo e o layout dos quadrinhos. O mang bem diferente dos comics (quadrinhos ocidentais), em uma primeira olhada j conseguimos visualizar algumas de suas peculiaridades: enquanto os comics tm capa e pginas coloridas e uma folha maior, nos mangs, normalmente a capa colorida, mas seu interior composto de pginas em preto e branco. Alm disso, as 41
dimenses da folha so menores. Outra diferena marcante consiste no nmero de pginas, enquanto os HQs possuem um nmero limitado de pginas, por volta de 32, as revistas semanais japonesas so grossas como agendas telefnicas, contendo cerca de 400 pginas, narrando de 15 a 30 histrias em uma mesma edio. Com relao a sua forma de leitura, o Comic lido da esquerda pra direita, e o mang da direita para a esquerda. Faria (2007), e Monil (2004) apontam que, uma vez terminadas, as histrias so compiladas em forma de livros de capa mais grossa e papel de qualidade superior, os chamados tankohon, mantendo o interior preto e branco para continuar como os originais. Existem raras excees, casos nos quais algumas pginas iniciais dos tankohon so coloridas. No Brasil, alguns mangs publicados pela editora JBC tambm apresentam as pginas iniciais coloridas. Diferentemente dos quadrinhos estadunidenses, que so publicados a mais de cinquenta, sessenta anos, e cujas edies base j esto fora das bancas, sendo consideradas edies raras e alcanando altos preos no mercado, no Japo, as revistas sempre esto tendo novas tiragens. Ou seja, pode-se facilmente encontrar revistas escritas por Osamu Tezuka nos anos 50 ao lado das obras de Akira Toriyama 7 , Massami Kurumada 8 ou Ken Akamatsu 9 . A diversidade de temas: neste segmento da indstria cultural japonesa existe uma grande diversidade de temas para os mangs. Como afirma Adorno em relao indstria cultual de uma maneira geral, percebemos que tambm no Japo, para todo o consumidor da indstria cultural alguma coisa prevista, a fim de que nenhum possa escapar; as diferenas vm cunhadas e difundidas artificialmente (ADORNO, 2002, p. 7), sendo os temas variveis de robs gigantes at os que tratam de romances homossexuais, passando pela dinmica de uma dona de casa normal, ou do dia-a-dia de um homem no escritrio. Monil (2004, p. 29) apresenta: claro que no ocidente existem vrios gneros de histrias, mas no mang os roteiros alcanam sua mxima expresso ao citar temas raramente, para no dizer nunca, retratados em histrias fora do Japo.
7 Autor da srie Dragon Ball. 8 Autor da srie Saint Seiya (Os Cavaleiros do Zodaco). 9 Autor da srie Mahou Sensei Negima?! 42
Uma caracterstica da indstria cultural japonesa ressaltada por Sakurai (2008) que ela tenta adaptar-se ao seu pblico tanto jovem quanto infantil, ensinando-lhes valores da tica, que poderiam ter sido esquecidos em virtude das transformaes ocorridas no pas, a partir da Era Meiji. Em virtude da postura adotada pelo pas, compreendemos que, para o japons
Um ser actual es un ser antiguo y um ser antiguo es um ser moderno. El tiempo existe pero se mueve por tuberas que conectan el hoy, el ayer y el maana. (...) El japons, em cambio, vive em um presente fundido con el passado y el futuro. El cambio marca el lmite entre um tiempo y outro, pero este cambio se acepta como parte consustancial del ser y del existir. (PAZ, 2010, p. 121) 10
Os produtos culturais tendem a evidenciar, com uma nova roupagem, caractersticas caras sociedade japonesa, e nem somente a ela, mas tambm a valores tidos como universais. Psicologia dos personagens: Elencaremos algumas das particularidades nos quadrinhos japoneses que os diferencia dos quadrinhos ocidentais:
1. Os heris ocidentais, muitas vezes, so apresentados como ideais de perfeio, diferentemente das personagens japonesas. Elas apresentam defeitos e sentimentos: riem, choram, crescem, amadurecem, e alguns chegam at a morrer. Neste aspecto, Gusman (2005, p.80) aponta que: por mais fantstica que seja a histria, os roteiristas japoneses trabalham com muito mais competncia o aspecto humano dos personagens. Muitos mangs comeam com a partida do heri, na qual ele obrigado a sair de um lugar em que estava e encarar o mundo e, neste trajeto, como toda pessoa normal, os heris erram e tentam aprender com os erros. Neste sentido, percebemos que o mang no apresenta o heri mitolgico, enquanto o modelo exemplar, mas a figura do anti- heri, aquele que no tem certeza de seus atos heroicos, ou os pratica em
10 Um ser atual um ser antigo, e um ser antigo um ser moderno. O tempo existe, mas se move por tubos que conectam o hoje, o ontem e o amanh. O japons, em mudana, vive um presente fundido com o passado e o futuro. A mudana marca o limite entre um tempo e outro, mas esta mudana se aceita como parte consubstancial do ser e do existir (PAZ, 2010, p. 121; Traduo nossa). 43
detrimento de suas prprias aes anteriores; so heris que apresentam falhas. Em Card Captors Sakura, a protagonista tem verdadeiro pavor a fantasmas e, normalmente, tende a chorar quando se v totalmente sozinha.
Fig 3 Sakura Card Captors: as falhas das Personagens.
2. A escrita dos quadrinhos japoneses trabalha com um mix de tempo cronolgico e psicolgico, uma vez que, ao longo da narrativa, percebemos a importncia que a personagem d a vrios momentos. Assim, algumas cenas podem durar vrios quadros, enquanto que a narrativa est inserida em uma cronologia prpria. 3. Diferente dos quadrinhos ocidentais, nos quais os heris so apresentados em um ponto esttico, no quadrinho nipnico somos convidados a conviver com a vida das personagens. Nas histrias que ganham um maior nmero de publicaes, percebemos as modificaes pelas quais as personagens passam: em Sakura Card Captors, Shaoran 11 comea
11 Existe outra grafia para este nome: Syaoran, entretanto, utilizaremos Shaoran, pois foi a escolhida pela editora JBC. 44
detestando Sakura; ela era sua rival na luta pelas cartas Clow, e pelo corao de Yukito. Mas depois de certo tempo este comea a perceber que gosta dela, de forma to paulatina que o leitor convidado a sentir o que a personagem sente. Da mesma forma, o tempo vai passando e o leitor vai percebendo um crescimento da personagem. A transformao psicolgica pela qual passam as personagens auxilia na identificao com eles, pois, ao longo da vida, tambm ns ressignificamos as relaes, atentando para a complexidade, por vezes camuflada na infncia.
Fig 4 Sakura Card Captors: a mudana nas relaes ao longo da trama.
4. Enquanto que nos Comics estadunidenses os personagens tornam-se propriedade das empresas, na qual os desenhistas so tidos como meros prestadores de servios, na terra do sol nascente, o desenhista recebe o tratamento de autor e o real dono das histrias e das personagens que cria (SATO, 2007). Assim, o autor tem controle total sobre a histria, o seu trao e a sua linha de pensamento que nela esto materializados. Os autores so livres para mudar o tema, o gnero e o pblico alvo de seus mangs, e quando eles morrem, salvo algumas excees, sua histria no continuada por outros.
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O ritmo narrativo e o layout dos quadrinhos: dentre os estudos apresentados por Monil (2004), ao tratar a respeito do ritmo narrativo e da estruturao das cenas, compreendemos que nos quadrinhos as cenas podem ocorrer em diversos quadros, pois estes, depois dos anos de 1960, passaram a ser desenvolvidos de maneira que um quadro interfira no seguinte. Diferente da lgica ocidental que prima pela objetividade, as cenas dos mangs so mais detalhistas, como se ocorresse um convite a vislumbrar todas as nuances da cena, como se o leitor estivesse junto ao heri:
Fig 5 Sakura Card Captors: quadrinho narrado em tempo psicolgico.
Dessa forma, tempo e realidade no estavam mais encaixotados, e as narrativas podiam passear por memrias e sonhos. Os personagens tambm no estavam limitados aos quadros: podiam colocar-se diante deles de corpo inteiro, tornando-se mais vivos e livres para exibir sua linguagem corporal e vesturio. (GRAVETT, 2006, p. 83).
O cenrio no qual se desenvolve a cena tambm deve ser levado em considerao. As mudanas de ambiente muitas vezes revelam os sentimentos que a protagonista nutre. No raro nos mangs Shoujo o uso de flores, luzes, dentre outros recursos grficos que, nas palavras de Gravett (2006, p. 83) identificavam a herona da histria, refletiam a atmosfera de uma cena ou revelavam os sentimentos de um personagem. (...) Era como se as artistas fotografassem a aura psquica de seus personagens. 46
Compreendemos ser esta uma caracterstica bsica do mang. Os mangaks (criadores de mangs) utilizam habitualmente poucos quadrinhos por pgina, sendo que, no raramente, um quadro ocupa mais de uma pgina. Ao convidar o leitor a perceber os sentimentos das personagens, convida-os tambm a sentir a mesma emoo.
Fig 6 Sakura Card Captors: a utilizao de flores evoca o estado emocional da personagem.
Dentre a gama de temas disponveis dentro da seara dos mangs japoneses, optamos por trabalhar com Sakura Card Captors, um mang produzido pelo grupo Clamp, composto exclusivamente por mulheres. Desta forma, antes de evidenciar as questes existentes nesta produo que nos auxiliam a conceb-la como uma obra de fico em torno da personagem Sakura encarada como uma garota, voltaremos nossa ateno ao processo de constituio da mulher e de sua feminilidade. Tentaremos circunscrever, minimamente, o desenvolvimento histrico das mulheres no Japo, e suas relaes com a narrativa, de uma maneira geral, E, posteriormente, abordaremos a maneira como tais mulheres se apropriam dos mangs, de uma forma especfica, tentando evidenciar como sua coragem e audcia conferiram a estas produes grande parte do ar que Tezuka tanto desejava. 47
3 A mulher no Japo e sua relao com a narrativa
A mulher, seu desejo e seu prazer se configuram como uma espcie de enigma em todos os tempos e em todos os povos. Tentou-se responder a esse enigma atravs de esteretipos, nos quais se credita ao reinado feminino, representado pelo matriarcado, um sistema pautado na anarquia e na desordem. A mulher deveria ser subjugada, figurando apenas em seu papel natural de me. Buscamos aqui tentar circunscrever aquilo que considerado como o que h de mais selvagem que na sociedade, a mais devastadora dentre as foras da natureza, a sexualidade feminina (ROUDINESCO, 2003). Em virtude deste processo, nas mais diversas mitologias, a mulher em estado livre que traz a desgraa ao mundo: Eva, ao comer do fruto proibido, acaba trazendo ao mundo a morte. Pandora, ao abrir a caixa, traz as mazelas ao mundo e, no caso oriental, Izanami, ao dar luz ao deus do fogo acaba morrendo, e, no mundo dos mortos, gesta crias horrendas, as quais sero responsveis por levar ao reino dos mortos muitas das criaturas viventes (SEGANFREDO, 2011). Roudinesco (2003) acerca de tais questes aponta que as diferenas biolgicas entre homens e mulheres lhes conferem uma identidade enquanto seres sexuados, sendo que, aquilo que se modifica, a forma que tais papis repercutem no que se refere relao com seus semelhantes. A autora assevera que, nas representaes mais arcaicas, a mulher sempre associada maternidade, e suas funes sociais deveriam ser pautadas nesta disposio biolgica. No inicio, no era entendido que tal fato tinha relao com sua submisso autoridade marital e com o no acesso desta educao, mas que tais caractersticas pouco importavam mulher, que deveria ser uma boa esposa e me, sempre subjugada autoridade de seus maridos. No entanto, em vrios pases do mundo, o movimento feminista comeou a se desenvolver e as mulheres passaram a exigir os direitos to negados pelo pensamento masculino. Existia o medo de que se a elas fosse dado o acesso ao saber, este saber minaria a sua feminilidade, concebida como passividade e docilidade. Por meio de 48
muitas lutas elas acabam conseguindo assegurar tais direitos, embora o mundo ainda detenha alguns dos preconceitos arraigados do sistema patriarcal. Hoje, olhamos para as nossas mulheres a as percebemos como livres, proativas, e ningum mais duvida das capacidades femininas. Ento, voltamos nosso olhar ao oriente, mais precisamente ao Japo, e pensamos nas japonesas como diferentes das demais mulheres do mundo: aquelas ainda guardam o respeito e a obedincia cega a seus maridos. Percebemos que tal impresso foi cunhada durante a era Tokugawa (1600-1868), na qual o pas passou a adotar a filosofia confucionista, que pregava a subordinao feminina. O xogunato aplicou tais ensinamentos s famlias da elite, mas o movimento, neste perodo, no atingiu as classes populares. A difuso de tal filosofia ocorreu no perodo feudal, onde a subordinao feminina foi imposta a todas as mulheres do Japo (NAMEKARA, 2011). Esta parte do estudo trata de refutar uma concepo naturalizante de se entender a mulher como passiva e obediente, como se a passividade fosse inerente natureza feminina, e no um aspecto dado pela relao desta com o social. Sobre tais questes Kehl (2008) assevera que:
A feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos prprios a todas as mulheres em funo das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; a partir da, atribui-se s mulheres um pendor definido para ocupar um nico lugar social a famlia e o espao domstico , a partir do qual se traa um nico destino para todas: a maternidade. A fim de melhor corresponder ao que se espera delas (que , ao mesmo tempo, sua nica vocao natural), pede-se que ostentem as virtudes prprias da feminilidade: o recato, a docilidade, uma receptividade passiva em relao aos desejos e necessidades dos homens e, a seguir, dos filhos. (p.48)
No entanto, a crtica a essa maneira naturalizada de entender a feminilidade j foi feita a partir das descobertas da psicanlise. Freud, em sua conferncia acerca deste assunto, j asseverava que: tambm a psicologia incapaz de solucionar o enigma da feminilidade. (FREUD, 1996, p. 117). Em outras passagens, o autor aponta que, durante o desenvolvimento infantil, as diferenas entre os sexos so eclipsadas pelas semelhanas apresentadas entre eles, ou seja, no podemos situar a feminilidade como uma caracterstica inata mulher, dada pelas suas particularidades fisiolgicas, mas se 49
no podemos compreend-la a partir de seu desenvolvimento biolgico, como poderemos entend-la? Para poder compreender minimamente tal esfera, devemos tomar um cuidado especial para no confundirmos aquilo que inato (biolgico) e aquilo que nos dado por meio dos costumes sociais que, muitas vezes, so os responsveis por gerar uma viso da mulher como um ser passivo e as caractersticas tidas como femininas, reunidas sob a alcunha de feminilidade como um sinnimo para passividade. Autoras como Sakurai (2008) apontam que at meados do sculo XX as mulheres japonesas no tinham direitos polticos. No entanto, podemos perceber que este lugar social ocupado pela mulher oriental no difere sobremaneira do que ocorria e ainda ocorre em muitos pases ocidentais, como, por exemplo, o grande nmero de mulheres que, mesmo assumindo diversos postos no mercado de trabalho, devem ainda se ocupar dos afazeres domsticos. De acordo com a autora, as japonesas sofriam discriminao no mundo do trabalho de forma semelhante ao que ocorria com as mulheres ocidentais e em uma escala muito menor que nos pases rabes.
3.1 Breve histria da mulher no Japo
Um dado interessante no desenvolvimento desta pesquisa o fato de que, ao pesquisarmos acerca da figura da mulher no Japo, encontramos diversos estudos que apontam primordialmente as transformaes que ocorreram durante o perodo feudal, j marcado pela filosofia confucionista, bem como pelos ideais da doutrina de Buda, at a Idade Contempornea. Entretanto, quando desenvolvemos nossa busca acerca das expresses do feminino na literatura, encontramos uma srie de estudos que traam um panorama acerca da mulher e das transformaes que ocorreram neste contexto. Dentre os estudos em questo, convm salientar Namekara (2011). Tal autora apresenta um breve panorama acerca de como se constitui o ser mulher no Japo. Nas sociedades arcaicas, quando havia o casamento comunitrio e a promiscuidade ou seja no se determinava quem era marido de quem 12 (...) , era a
12 O marido poderia visitar sua esposa e depois retornar a sua famlia. A poligamia (homem com mais de uma mulher) e a poliandria (mulher com mais de um marido) eram prticas aceitas. (SAKURAI, 2008). 50
me quem determinava as relaes de sangue, o que lhe conferia um alto posto na sociedade (NAMEKARA, 2011, p.64). Acredita-se que, no Japo, tal perodo corresponda aos sculos I a III. Neste momento, no havia a diviso do trabalho, as mulheres sendo responsveis pelas mesmas atividades que os homens. Neste perodo comea a se desenvolver a cultura do arroz, na qual a mulher estava totalmente imbricada desde o plantio at a colheita e o polimento. Tal fato explica-se pela capacidade da mulher de gerar filhos e no de se estranhar que, no Japo, assim como em diversas sociedades, a divindade responsvel pela fertilidade e pela colheita era personificada com aspecto feminino. Tal caracterstica era predominante no Perodo Jmon (NAMEKARA, 2011). Sobre tais particularidades Eliade (2010) aponta que:
A mulher adquiria o prestgio de poder influir na fertilidade e de poder distribu-la. assim que se explica o papel predominante desempenhado pela mulher nos comeos da agricultura sobretudo no tempo em que esta tcnica era apangio das mulheres , (...) as mulheres desempenham o papel principal nas cerimnias e nos trabalhos relativos cultura do arroz. Os homens colaboram apenas no corte de silvas e urzes e em alguns trabalhos finais... so as mulheres que escolhem e conservam as sementes... Parece que se sente nelas uma afinidade natural com as sementes de que elas dizem estar grvidas (p. 208 209).
A transio do modelo matriarcal para o patriarcal na terra do sol nascente, deve-se ao perodo Yayoi (300 a.C 300 d.C), marcado pela expanso da cultura do arroz (SAKURAI, 2008). A partir deste perodo, os homens passaram a dominar a produo e, consequentemente, a mulher 13 . No entanto, Namekara (2011) afirma que, se compararmos este momento com o perodo feudal japons 14 , pode-se perceber que as mulheres ainda detm certa liberdade e no so depreciadas. Dessa forma, percebemos que, embora o sistema seja marcado quer pelas relaes matrilineares quer pelas patrilineares, no conseguimos vislumbr-lo de uma forma pura, pois as determinaes que tais mudanas geram na esfera poltica por vezes
13 Interessante notar que mesmo sendo a japonesa, apresentada como uma mulher submissa, a deusa mais importante no panteo japons Amaterasu, deusa do sol, sendo considerada como a me de todos os imperadores. Tsukuyomi, seu irmo, considerado o deus da lua, tendo importncia secundria. 14 poca em que a nica funo da mulher era gerar um filho varo para continuar com o nome da famlia. 51
no so transmitidas moralidade no exerccio de uma ou outra forma de poder (ROUDINESCO, 2003). No decorrer dos sculos V ao VI comea o processo de unificao dos uji (cls). Neste perodo, as atividades comearam a ser divididas: aos homens competia a tarefa da caa, e s mulheres, a da agricultura, da fiao, da tecelagem e da cermica. Entretanto, os impostos ainda eram separados. Nota-se neste quesito ainda uma separao entre os homens e as mulheres, o que sugere uma pretensa igualdade entre os sexos (NAMEKARA, 2011). No sculo V, a corte de Yamato fortaleceu-se ainda mais, evidenciando de maneira mais determinante as diferena de classes, fazendo com que os impostos fossem aumentados. A unificao do pas ocorreu no sculo VI, sendo que todos os uij ficaram sob domnio do imperador. Neste momento, o Japo passou a adotar a filosofia confucionista, responsvel pela consolidao do modelo de famlia nuclear na terra do sol nascente. uma mulher fiel no tem dois maridos (uma mulher fiel no se casa duas vezes), a obedincia e auto-sacrifcio eram indicativos de honestidade ideal, e a moral da obedincia era atribuda, sobretudo mulher (NAMEKARA, 2011, p. 67-68), Nestas renuncias que haveria um reconhecimento de seu valor.
Ainda com relao a mulher, havia as imperatrizes do sistema Ritsuy, que no eram apenas figura decorativa: eram ativas, e a elas so atribudos diversos feitos de suas pocas. A imagem da mulher apenas como meio de dar continuidade a linhagem familiar surge posteriormente, e caracterstica do perodo feudal. (NAMEKARA, 2011, p. 68).
Nesta poca, se o aspirante a imperador fosse algum no grato casa imperial, a imperatriz, a me do imperador, ou at mesmo a ex-imperatriz, assumiam o trono (NAMEKARA, 2011). No perodo Heian (794 1185), era comum a prtica da poligamia masculina; um homem poderia ter at dez mulheres. Mas podemos perceber que a origem desta mulher era mais importante do que sua beleza, sendo que, entre os nobres, o interesse pela filha mulher relacionava-se com o interesse em agreg-la casa imperial. A literatura aponta que a maior depreciao da figura feminina se d a partir da insero do confucionismo. A entrada do budismo no Japo comea por volta do sculo 52
X, levando criao de escolas dentro de seus templos, os quais reuniam tanto uma formao de cunho religioso quanto militar. Entretanto, mulher era vedado o acesso educao. A partir do sculo XI, a cultura japonesa tornou-se autnoma, desenvolvendo uma arte e literatura prprias. Os japoneses tornaram-se independentes das formas de literatura e arte de inspirao chinesa e desenvolveram modos de expresso na sua prpria linguagem (RAFFAELLI, 2010, p. 333). No entanto, conforme apresenta Paz (2010), embora as mulheres estivessem alheia ao processo educacional, elas tambm faziam parte da corrente alfabetizada, sobretudo as provenientes de famlias ligadas nobreza. Contudo, suas atividades no estavam relacionadas individualidade feminina, mas atreladas as suas famlias de origem (SAKURAI, 2008). Acerca deste fato Paz (2010) afirma que:
De hecho, desarrollaron una forma de escritura, um alfabeto silbico el hiragrana que simplificaba los caracteres chinos, y que permitia La lectura y La escrituta de forma ms fcil, sin una necesidad de formacin tan grande. Para hacerse una Idea, el tiempo necesario para aprender el alfabeto silbico hiragana de forma fluida puede ser de dos o trs semanas, mientras que para usar los ideogramas chinos aplicados al japons de forma tambin fluida, el tiempo necessrio puede ser de unos cienco a siete aos. Es fcil comprender que al desarrollar uns forma de escritura com esas caractersticas y que adems era suya, la mujer se convirtiera em autora mucho ms fcilmente que el hombre (p. 135 136) 15 .
Dentre tais escritoras, convm destacar os nomes de Murasaki Shikibu (976 1031), autora de Genji Monogatari (Histrias de Genji), e Sei Shnagon (966 1017), Makura no Sshi (Notas do meu travesseiro). Este ltimo considerado um dos primeiros romances psicolgicos do mundo, uma vez que o foco do texto seriam as expresses das emoes pessoais, ao descrever as relaes destas mulheres com seus homens (CUNHA, 2011; NAMEKARA, 2011). Tais obras ganharo importncia durante a Era Meiji.
15 De fato, desenvolveram uma forma de escrita, um alfabeto silbico - a hiragrana - que simplificou os caracteres chineses e que permitiu a leitura e a escrita mais facilmente, sem uma grande necessidade de treinamento. Para se ter uma ideia, o tempo necessrio para aprender o alfabeto silbico hiragana de maneira fluida pode ser duas ou trs semanas. J para se aprender os ideogramas chineses aplicados ao japons de forma fluida, o tempo necessrio pode ser de cinco a sete anos. fcil compreender que, ao desenvolver uma escrita com essas caractersticas e que, alm de tudo, era sua, a mulher se convertia em autora muito mais facilmente que os homens (p. 135-136; Traduo nossa). 53
Na cultura oriental, na ocasio do casamento, no era a mulher que era tomada como esposa, mas o homem como marido. Entretanto, na condio da mulher at ento,
O casamento selava seu destino e todo horizonte de sua relao pessoal como esposa, me, dona-de-casa (...), era uma espcie de investimento definitivo, do qual dependeriam todo o prazer e todas as alegrias que ela viesse a conhecer (KEHL, 2008, p. 80 81).
Namekara (2011) afirma ainda que, diferentemente das mulheres do perodo Heian, as do perodo feudal japons, embora subjugadas, eram ensinadas a ser fortes e corajosas em virtude dos diversos conflitos existentes no pas, no sendo rara a participao destas em guerras ao lado dos homens; uma participao ativa. No perodo posterior, Kamakura (1185 1333), o elemento mais importante passou a ser a terra, entendida como moeda de troca e proteo. As famlias passaram a se organizar em um sistema denominado ie (casa). No topo da hierarquia estava o chefe do cl, com sua famlia tronco e, abaixo deles, grandes grupos familiares secundrios e subordinados ao tronco. Convm salientar que somente ao filho homem primognito caberia a liderana do cl, sendo ele o representante do ramo principal. Seus irmos faziam parte do ramo secundrio, e as mulheres pertenciam famlia do esposo (SAKURAI, 2008, PINHEIRO, 2011). Nessa nova concepo, a mulher passou a ser apenas a me, a filha, no sendo mais necessria para a continuidade do nome da famlia, bem como dos filhos homens de um casal. Entretanto, tais filhos tinham a opo de casar-se com uma mulher e herdar os bens de sua famlia, caso relegassem o nome paterno. Tais questes foram consolidadas no perodo Edo (1603 - 1867), no qual o pas passou por um perodo de isolamento poltico e econmico at o advento da Era Meiji. Tal fato se assemelha estrutura burguesa europeia, a qual se baseava na autoridade do marido, na subordinao das mulheres e na dependncia dos filhos. No perodo Meiji (1868 1912), o pas volta a ter relaes comerciais com o restante do mundo, estando agora em pauta importantes reformas que visavam sua adaptao s exigncias do mundo na poca: Trata-se de um profundo redimensionamento das foras sociais no cenrio poltico-econmico (SAKURAI, 2008, p.133). Tais mudanas acabaram por modificar tambm as relaes com o feminino, to arraigadas em outros perodos. Dentre elas, podemos destacar o maior 54
desenvolvimento industrial do pas, o qual acabou acarretando a necessidade de uma escolaridade para as garotas, a qual propiciou uma alterao significativa na questo de gnero com maiores possibilidades para as mulheres desenvolverem seu potencial intelectual, (...) o que, claro, afetou seu relacionamento com os homens. (SAKURAI, 2008, P. 145). Neste aspecto podemos perceber que as questes que se apresentam ao feminino japons em decorrncia da Era Meiji pouco diferem das discusses acerca do feminino que se faziam no mundo como um todo. E, de maneira semelhante ao que ocorria em contexto global, no Japo, as mulheres comeavam a ter acesso educao formal. Contudo, muitos conservadores acreditavam que uma educao igualitria poderia minar os fundamentos da sociedade (KEHL, 2008, p. 84), como se, fosse a ignorncia que garantisse s mulheres o acesso a sua feminilidade e os processos de esclarecimento e erudio corroborassem para o fim da mesma. Cunha (2011) afirma que, neste momento, as oligarquias japonesas necessitavam construir sua legitimidade domstica, passando a adotar um nacionalismo oficial que j era adotado por parte da Europa. Neste contexto, precisava-se de algo que representasse a cultura nacional. O autor, citando Casanova, relata que: quanto mais antiga a literatura, mais importante o patrimnio do pas, e maior o seu prestgio junto a seus concorrentes: a antiguidade um elemento determinante do capital literrio (p. 5). Entretanto, tais modelos eram difceis de serem aplicados no Japo, tendo em vista que grande parte daquilo que se tinha escrito em prosa e poesia no pas at aquele momento era escrita em chins. Desta forma, a escrita cortes do perodo Heian foram convocadas para figurar como romance nacional. At aquele momento, nenhum dos escritos desenvolvido por homens tinham comparvel qualidade escrita em japons. Em 1947, com a constituio imposta pelos EUA ao Japo, garantida a igualdade de direito s mulheres, sendo que estas ganham o direito a um casamento por livre escolha, sem a necessidade do consentimento de outrem, bem como parte do patrimnio da famlia de origem, e o direito ao voto. Entretanto, as famlias as desencorajavam a usufruir de tal direito. Atentamos para o fato de que, em sua dimenso poltica, o mang feminino, desenvolvido ento por homens, narra estrias de mulheres sbias e filhas obedientes s determinaes dos pais e do marido. 55
Os quadrinhos femininos eram produzidos por homens, tomando seus aspectos de difuso ideolgica e apresentavam o que estes consideravam interessante ser consumido pelas mulheres. Desta forma, o Shoujo promovia a imagem de uma mulher que deveria ser, acima de tudo, submissa e recatada, atendendo ao padro da mulher ideal. Acerca do Shoujo e de como este se desenvolveu falaremos no tpico seguinte.
3.2 O Shoujo: Histria e Esttica
Watashi no sekai Yume to koi to fuan de dekite'ru Demo souzou wo shinai mono Kakurete'ru hazu (Purachina, Maaya Sakamoto) 16
O desenvolvimento da mulher japonesa, bem como sua importncia na rea da literatura j foi explicitado no tpico anterior. Agora, amparados nestas discusses, teceremos consideraes acerca da relao desta com os quadrinhos, no caso o Shoujo mang, considerado como o quadrinho destinado ao pblico feminino. Na atualidade, compreendemos que este quadrinho confeccionado majoritariamente por mulheres, mas nem sempre foi assim. Em seus primrdios, este gnero era desenvolvido por homens. Tal quadro permaneceu at a dcada de 1960. O enredo de tais histrias reproduzia a percepo da mulher enquanto um ser passivo, apresentando uma viso ideolgica acerca da mesma. Tratava-se de histrias de filhas ou mes obedientes. At esta dcada, era comum que os mangs para meninas fossem produzidos pelos mesmos autores que os mangs para meninos. Entretanto, como apresentado em O Mang como gnero narrativo, tal mercado crescia. No mbito do Shoujo, este fato foi evidenciado com a chegada de diversas revistas ao cenrio japons, tais como: Nakayoshi (Boas amigas) e Ribon (Fita) no ano de 1955. Tais publicaes tornaram-se verdadeiras instituies nacionais, sendo que
16 O meu mundo feito de sonhos, amor e preocupaes Mas ainda h coisas escondidas Que eu no posso sequer imaginar (Platina, Maaya Sakamoto). 56
mais da metade das garotas japonesas cresceram lendo alguma destas revistas. Neste contexto de ampla ascenso, a demanda por artistas aumentou. Entretanto, ainda eram homens. Dentre estes autores, podemos destacar Tetsuya Chiba, que relatou:
Era difcil para mim escrever para as revistas para meninas, porque eu sou homem e no tenho irms nem irmos. At mesmo a minha me era quase um homem. Os mangs para meninas naquela poca eram verdadeiros dramalhes. Eu pensei se isso que eles querem, eu devia fazer o mesmo (...) Eu cheguei a um ponto em que trabalhava em histrias tristes nas quais a pessoa perdia a me, o pai, era maltratada... (GRAVETT, 2006, p. 82)
Chiba ento decidiu mudar, e desenvolveu um trabalho denominado Miso Curds, uma srie que tratava de uma menina da cidade que encontra novos amigos e com eles adquire fora e confiana em si mesma. Porm ele termina por abandona o mercado Shoujo para ganhar grande nome nas revistas Shonen 17 . Outras figuras de destaque so Fujio Akatsuka e Mitsuteru Yokoyama que lanaram as bases de um novo estilo de Shoujo, o Mahou Shoujo 18 , que passou a retratar histrias de garotas que encontram um objeto ou animal que lhes conferem poderes mgicos. Quando a mulher comea a se apropriar do estilo Shoujo? De forma semelhante ao que aconteceu com a popularizao do mang, com Osamu Tezuka, ao falar da chegada da mulher no mundo dos quadrinhos, devemos situar Machiko Hasegawa (1920-1992), uma vez que esta entra em um mercado que outrora era dominado pelas figuras masculinas, trazendo um sentimentalismo e questes que, at ento, no tinham conseguido ser trabalhadas pelos autores. A partir dela as portas das editoras comearam a se abrir para as autoras. Esta abertura comeou nos anos de 1960, sendo que a partir da no encontramos nenhum retrocesso na participao das mulheres no desenvolvimento dos mangs. Gravett (2006, p. 78) aponta que: no Japo, e somente l, as mulheres conseguiram trabalhar os quadrinhos at transform-los no foro mais influente para a comunicao feminina.
17 Especializou-se em mangs esportivos, sendo um de seus principais trabalhos Ashita no Joe (Joe do Amanh). 18 Comumente traduzido por Garota Mgica. 57
Embora durante muito tempo, no Japo, a passividade tenha sido imposta s mulheres, nos momentos em que elas ganham algum espao, elas transformam e renovam a produo de algo, dando a ele um estilo prprio, que acaba gestando uma nova forma de conceb-lo. Neste sentido, convm destacar a importncia dAs magnficas de 24 19 . Todas chegaram ao Shoujo quando tinham por volta de 20 anos, sendo influenciadas pela obra de Tezuka e responsveis pela inovao na forma de se fazer o mang. Osamu props uma forma de quadrinhos que fosse semelhante ao processo de animao. Com isto, elas comearam a mexer na prpria estrutura interna dos quadrinhos, transformando-os em uma espcie de tela do corao. (GRAVETT, 2006). Podemos perceber na mulher japonesa essa caracterstica de transformao, como se, guardadas as devidas propores, de forma semelhante ao que Sei Shnagon e Murasaki Shikibu fizeram para o desenvolvimento da lngua japonesa, as Magnficas de 24 proporcionaram as modificaes na esttica do mang. Se, com as primeiras, ocorreu o desenvolvimento de um romance psicolgico que narrava s vivncias e percepes de uma cortes na corte imperial, com as ltimas, atentamos para o desenvolvimento do quadrinho psicolgico, onde a lgica e a linearidade comeam a ser quebradas. A partir de ento, a configurao da pgina passa a se adequar s emoes que elas gostariam de evocar. Por meio delas se desenvolve ainda mais a noo de que um quadrinho deve interferir naquele que se encontra em seguida, para que eles possam ser lidos com uma maior fluidez e dinamismo. Diversos autores apontam que, no Shoujo, prima-se pelos detalhes e pela beleza esttica. Como afirma Farias (2007, p. 140): O desenho do mang feminino muito caracterstico, simblico e o que h de mais engenhoso dentro da temtica de quadrinhizao. Gravett, 2006, afirma que
Com a combinao dessas tcnicas, as mangaks conseguiram fazer os leitores responderem a emoes internalizadas de modo to envolvente quanto o que ocorria diante da ao explicita e espetaculosa dos mangs para meninos. Na verdade, as de 24 e vrias outras foram alm, levando em
19 Grupo composto por cinco criadoras independentes: Moto Hagio, Riyoko Ikeda, Yumiko Oshima, Keiko Tekemiya e Riyoko Yamagishi (GRAVETT, 2006, p.82). 58
conta algumas das maiores questes filosficas da vida e examinando a histria japonesa e ocidental, os gneros de horror e fico cientfica, problemas sociais e outros assuntos que finalmente estavam abertos s mulheres (p. 83).
Alm disso, tais autoras comearam a adotar um fundo de pgina em branco, e o entorno da cabea das personagens comeavam a ganhar diversos efeitos expressionistas. O desenvolvimento de tais recursos estilsticos no ficou circunscrito s produes destinadas ao Shoujo, passaram a tambm integrar aspectos do Shonen e de tudo o que consideramos ser a esttica do mang. No entanto, no foram s as caractersticas do Shoujo que se transformaram. Se, outrora, eram os homens que desenvolviam o mang feminino, agora tambm as mulheres passam a desenvolver mangs masculinos, muitas alcanando grande sucesso, tais como: Rumiko Takahashi autora de Ranma e Inu-Yasha,; Hiromu Arakawa que desenvolveu Fullmetal Alchemist ou o Grupo Clamp, dentre cujos trabalhos podemos situar Tsubasa Reservior Chronicle, X, xXx Holic. Acerca de tais autoras, Monil (2004) assevera que suas produes ganharam um posto de honra entre as mangaks, alcanando a devoo de leitores de ambos os sexos. No tocante caracterstica esttica do Shoujo, percebemos que as mulheres aparecem com traos ocidentais, altas e com olhos bem definidos, ao passo que as figuras masculinas so apresentadas como ideais de perfeio, sempre mais altos que as mulheres, ombros largos, sendo altamente prendados: sabem lavar, passar, cozinhar, costurar, so inteligentes, ou seja, so verdadeiros prncipes encantados que toda garota gostaria de ter um dia. Em muitas revistas Shoujo, em especial algumas desenvolvidas pelo grupo Clamp, existe a questo do amor proibido, no qual normalmente uma garotinha se apaixona por um homem mais velho. Diferentemente do que acontece no Shonen, no qual a figura de autoridade muito comumente encarada como a figura de um professor que assedia e corrompe a aluna, nas personagens do mang Shoujo, muitas vezes a relao entre pessoas de idade muito diferente encarada numa perspectiva do amor romntico. A pessoa mais velha, o prncipe encantado, verdadeiramente se apaixona e espera sua garotinha. Este primeiro tipo de relao sempre tratado com muita delicadeza. Percebemos esta questo ser apresentada de forma recorrente nas obras da 59
Clamp observando-a em casais como: Zagar & Princesa Esmeralda, Lantis & Hikaru (Guerreiras Mgicas de Rayearth); Yumi & Ueda (Chobits) e, em Card Captors Sakura: Rika & Terada, Kaho & Eriol.
Fig 7 Sakura Card Captors: A relao entre adultos e crianas retratada com delicadeza.
No so apenas as relaes envolvendo pessoas com grande diferena de idade que perfazem a literatura feminina japonesa, mas tambm, dadas as particularidades estticas do homem dentro de algumas obras, percebemos a a presena de romances homossexuais de forma velada ou explcita. Acerca da recorrncia desta temtica, Sato (2007) aponta que:
Na realidade cotidiana o homossexualismo no , tanto quanto no ocidente, um comportamento aceito com naturalidade pela sociedade, mas a frequncia e o modo aberto de como o assunto exposto nos meios de comunicao e no entretenimento japons espanto aos desavisados. Mais espantoso ainda a constatao de que tais romances, mangs e animes, ao invs de serem apreciados e consumidos majoritariamente por um pblico gay, so lidos e comprados por um enorme pblico feminino heterossexual estudantes, office ladies, donas de casa, enfim, mulheres comuns (SATO, 2007, p. 105).
A autora ainda aponta este fato como um dos motivos da no ojeriza a tais quadros, como ocorreu no Ocidente, onde Sailor Moon teve sua divulgao cancelada, ou, como ocorreu no Brasil, onde a dublagem de certa personagem foi feita por uma voz 60
feminina, para que no se percebesse o romance homoafetivo e a animao pudesse ser exibida no pas.
Fig 8 Sailor Moon: Morte de Zoicite.
Sobre tais particularidades, os autores destacam que, no Japo, a maioria esmagadora das pessoas segue o budismo ou o xintosmo, os quais no condenam a prtica homossexual em si, tal como as religies ocidentais. No que o Japo possa ser considerado o paraso gay, mas Sato (2007) assevera que na lgica japonesa a opo sexual por si s no chega a ser chocante ou motivo suficiente para se odiar ou matar algum, o que possibilita um grau mnimo de tolerncia. As obras desenvolvidas pelo grupo Clamp utilizam este recurso em diversos enredos, podemos perceber tais relaes em diversos personagens no decorrer de suas narrativas. Em Guerreiras Mgicas tal relao explicitada por Hikaru e Nova; Lantis & Eagle, em xXx Holic: Doumeki & Watanuki, em Card Captors Sakura, a relao de extrema admirao que Tomoyo tem pela protagonista e a relao existente entre Touya e Yukito.
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Fig 9 Sakura Card Captors: O amor entre pessoas do mesmo sexo retratado no Shonen ai.
Podemos perceber no prprio desenvolvimento das mangaks algumas possibilidades para tais enredos. Assim que uma autora ganha um concurso de mangs, a ela destinado um agente, o qual responsvel por ela, e pelos quadrinhos que ela dever desenvolver. Eles atuam como verdadeiros pais destas autoras, muito embora, no raramente, em virtude desta proximidade, eles acabam se casando. Da pode-se perceber o substrato objetivo da representao desta primeira forma de amor proibido. Outra fonte desta representao pode estar tambm numa critica ao prprio modelo social, uma vez que o corruptor algum que detm certa autoridade sobre a criana. Existe certa controvrsia em torno da popularidade desses enredos, alguns acreditam que o fato de as japonesas, em uma sociedade em que os papis sociais esto bem delimitados, procurarem a um estilo de relao em que as pessoas no tenham que fingir ser mais fraco que o outro. Outros acreditam que estes meninos retratados no Shoujo representam uma forma segura para as garotas fantasiarem sobre o sexo oposto sem ter a concorrncia de outra figura feminina (GRAVETT, 2006). Acerca dessas fantasias em torno da relao entre homens e mulheres, Barral (2000) assevera que por meio do romance yaoi 20 elas podem vislumbrar um modelo de
20 Romance homossexual masculino. 62
relao e de amor diferente daquele proposto pela sociedade e materializado pela sua famlia de origem. Nas palavras do autor: ao escolher personagens masculinos homossexuais, esto seguras de que sua histria de amor ideal no terminar de forma demasiadamente banal: eles se casaram, tiveram muitos filhos e terminaram por se parecer com seus pais... (BARRAL, 2000, p. 147). Neste contexto o homoerotismo visto como uma garantia de paixo absoluta. No mang feminino a relao homossexual explicitada de uma maneira idealizada ou fantasiada, dentro de um contexto romntico, sendo que, segundo alguns autores, este romantismo que faz o shonen ai ser to presente dentro do estilo Shoujo. Podemos perceber tal relao em um dilogo entre estes personagens:
Yukito: ... Quando a Sakura apareceu de repente, voc nem notou que ela estava atrs de voc, n Touya... at pouco tempo, voc podia estar com olhos fechados mas sempre sabia quem estava perto de voc... voc perdeu essa sensibilidade por minha causa... e o seu sono tambm... Touya: ... Yuki. Imagina que voc carregue um lanche. E na hora que vai comer este lanche, voc v que eu estou literalmente morrendo de fome. O que voc faria? Yukito: Eu iria entregar todo o meu lanche pra voc, Touya. Touya: Foi Exatamente o que eu fiz. ... se voc continuar preocupado com isso, eu vou ficar bravo. (CLAMP, 1997)
No entanto, dentro do Shoujo, o prprio shonen ai passou por modificaes. Antes existiam verdadeiros dramas onde o amor entre rapazes estava destinado ao fracasso, podendo estar relacionado prpria concepo que na poca se tinha sobre uma relao homoafetiva. Gravett (2006) aponta que, certa vez, Ryouko Yamagishi admitiu que percebeu, algum tempo depois, que em seu pico ambientado no Japo antigo, ela havia sido incapaz de vislumbrar o prncipe gay encontrando a felicidade. Agora, em muitos mangs, os casais conseguem ficar juntos, como o caso de Touya e Yukito em Sakura Card Captors. Estudar o Shoujo mang necessrio, pois a beleza e delicadeza com que so apresentadas suas gravuras camuflam as questes que tais mangs trabalham, que so as mais caras e subjetivas deste sujeito. Normalmente eles apresentam aspectos relacionados percepo de si, autoaceitao, a perdas, amizade e n morte. 63
Acerca do mercado de trabalho para autoras Shoujo, percebemos que elas devem ingressar muito cedo, em torno dos 19 anos de idade, uma vez que elas tm de ser jovens para ficarem prximas ao pblico leitor. Yasuda afirma que: voc tem que conhecer as tendncias dos mangs para meninas e tambm as tendncias das meninas do colgio (apud GRAVETT, 2006, p. 20). comum que as revistas Shoujo apresentem no encarte alguma bijuteria ou formulrios para que as leitoras votem em suas sries de mangs preferidas, ou team crticas e sugestes, as quais podem ser respondidas por carta ou dentro do prprio exemplar da revista. As sries mais bem conceituadas continuam sendo exibidas e as outras so canceladas. A interao entre autor e pblico muito grande. Por vezes, gera-se uma sensao de confiana e proximidade quase fraterna que, segundo alguns autores, pode durar at a fase adulta da leitora, ou durante toda a carreira da autora. De tal maneira que, no Japo, no raro as mulheres se identificarem umas com as outras pelos quadrinhos que acompanhavam na juventude. A relao das japonesas com o Shoujo tal que algumas chegam a relatar: o mang Shoujo me mostrou pessoas que eram corajosas o suficiente para no seguir o mesmo caminho dos outros, pessoas que no se encaixavam no sistema. Para mim, essas histrias eram lies de que voc pode pensar a vida de outra maneira. (WAJIMA apud GRAVETT, 2006, p.85). Em uma sociedade como a nossa, em que, muitas vezes, tais assuntos so considerados como naturais e pouco debatidos, um produto que traga tais temas torna-se essencial para que possamos refletir sobre nossas escolhas de maneira segura. No Shoujo esta relao fica bem clara, as mulheres so fortes, mesmo ingnuas so elas que detm a maior fora, a magia mais poderosa. Nessas histrias abre-se um mundo no qual tamanho, fora, idade e gnero passam a no importar mais, ou esto a seu servio. como se tais enredos atuassem exatamente nestas reivindicaes prprias da puberdade. Aps executar toda esta reviso terica acerca das questes pertinentes ao feminino, feminilidade e quilo que pode ser considerado como uma esttica voltada para o consumo feminino, tentaremos evidenciar, por meio da obra do grupo Clamp Card Captors Sakura, o feitio como estas autoras executam uma sntese de tais questes, gestando um produto que, at hoje, consumido e referenciado. 64
4. Sakura, um mito do tornar-se mulher e da feminilidade
O mang CARDCAPTORS Sakura, ou Sakura Card Captors foi desenvolvido pelo grupo Clamp e publicado pela editora Kondansha em 1997. Deste quadrinho desenvolveu-se o anime homnimo que veio ao Brasil por meio dos canais Cartoon Network, Globo e, posteriormente, Boomerang. Em virtude do sucesso alcanado nestas mdias a editora JBC comea a lan-lo em 2001. Hoje, o anime no est mais vinculado a nenhum canal da tev aberta. No entanto, com o advento da internet 21 , percebemos que seus fs continuam fiis, e em um nmero crescente, fato este responsvel pelo lanamento da edio comemorativa deste mang no ano de 2012 com trmino previsto para 2013. A histria deste mang no simplesmente a histria de Sakura Kinomoto, uma garota de 10 anos que tem por misso capturar as cartas Clow. Mas, de uma maneira simblica, demonstra os impasses com os quais todas as garotas devem se deparar para poder se tornarem mulher. De forma semelhante aos mitos, que conferem uma significao simblica quilo que no pode ser nomeado, Sakura contorna tais questes e nos aponta uma sada para duas delas: o processo da adolescncia e o da feminilidade. Ao contrrio de outras espcies de narrativa, nas quais o processo de passagem da infncia para a vida adulta se d por meio de uma viagem inicitica, devendo o protagonista sair de sua cidade e afastar-se da famlia para poder se desenvolver enquanto um sujeito, em Sakura Card Captors funciona de maneira diferente. Ela deve se encontrar com os problemas ocasionados por si mesma, devendo descobrir mais acerca de si mesma, de suas limitaes, e dos desgnios do poderoso mago Clow, para poder se separar da relao parental e tornar-se um sujeito de desejo. Tomarei como recorte da histria de Sakura alguns pontos que, como leitor de mangs, considero estarem relacionados aos temas que pretendo discutir, ou seja, a adolescncia e a feminilidade. Devo ressaltar que este momento do trabalho
21 Se antes os consumidores de animes e quadrinhos tinham que esperar sua exibio no Brasil para poder ter acesso a eles, hoje isso no acontece. Muitos os acompanham pela internet, quase concomitantemente ao que est sendo apresentado no Japo. 65
paradoxal, uma vez que o mais complicado e pelo qual mais ansiei, pois tentarei, em parte, despir-me do sentimentalismo imposto pelo meu interesse em torno da temtica e, principalmente, do quadrinho em questo. O enredo no ser apresentado de forma cronolgica, mas de maneira que as questes a serem trabalhadas neste estudo fiquem inteligveis at para aqueles que no tm contato com o mang.
4.1 Sakura Enredo
Clow, o mago mais poderoso deste mundo, cria 19 cartas mgicas, as cartas Clow. Estas, se liberadas de seu lacre, poderiam atrair as mais completas desgraa e desordem. O feiticeiro, devido aos seus grandiosos poderes, consegue antever os mais diversos meandros do futuro, no entanto, este dom se converte em uma maldio, pois ao mago no agradava este infinito saber. No momento de sua morte, ele chama suas criaes queridas: Krberus o Sol e Yue a Lua, informando-os tanto acerca de seu fim quanto da vinda de um novo dono. Yue no aceita a finitude de Clow, bem como a possibilidade servir a outro, ento o mago decide que este ser o juiz, aquele que decidir se o novo mestre merecedor ou no. Krberus caber a escolha de um novo mestre. Aps este momento, o mago aloca-os dentro do livro e faz um ltimo feitio, dividindo sua prpria alma em duas partes: a primeira se transformar em Eriol Hiragizawa, e a segunda em Fujitaka Kinomoto. Quando a narrativa do mang comea, Sakura uma garota de 10 anos, sendo filha do professor Fujitaka Kinomoto e da modelo Nadeshiko Kinomoto. Esta morreu quando a protagonista tinha apenas trs anos. A garota tem um irmo mais velho, Touya, melhor amigo de Yukito Tsukishiro que, ao longo da maior parte da narrativa, foi tido como o grande amor da protagonista. Pouco depois de entrar na quarta srie, Sakura encontra um misterioso livro na biblioteca de seu pai: O Livro de Clow. Ao abri-lo, escapam diversas cartas que se espalham pela cidade. Neste momento, sai da capa do livro um estranho ser na forma de bichinho de pelcia, Krberus (apelidado por ela de Kero). Este se intitula como o guardio do livro que continha as cartas. O ente sobrenatural confere garota a misso de recuper-las, uma vez que existe um alerta feito pelo mago: Cartas Clow, quando o 66
seu lacre de proteo for violado, ao mundo vir desgraa. A partir de ento, Sakura passa a ser uma Card Captor. Em determinado momento da narrativa apresentado outro temor do feiticeiro: Eu desejo do fundo da minha alma para que nunca venha o dia em que a desgraa vir a este mundo, quando todas as cartas Clow forem lacradas (CLAMP, 2001[1997], p. 35). Este ponto figura como uma mudana, a desgraa no se situa mais caso a jornada seja fracassada, mas seu trmino seria o preldio de tais eventos. Sakura no sabe o que pensar acerca deste infortnio, e quais os eventos que o mesmo desencadearia. Outra questo enigmtica a proximidade de Yue, ao qual Sakura no tem acesso, mas, a cada momento, ele situado como uma entidade que fica prxima herona. No momento da captura da carta Trevas, ela alertada: Yue a julgar at os ltimos instantes. (CLAMP, 2012 [1997]), bem como sua professora Mizuki: Yue, o juiz, est bem ao seu lado (Ibidem). Sakura no deve enfrentar apenas os vaticnios que lhe so apresentados e que, ao invs de elucidarem as questes da jornada, deixam-na cada vez mais confusa, representando um julgamento ao qual ela nem mesmo tem acesso. Alm de tudo, a herona deve tentar impedir que uma desgraa que j est em curso desde que ela rompeu o lacre do livro mgico ocorra. Para estar apta a enfrentar todos estes infortnios que figuram em seu futuro, ela deve enfrentar, primeiramente, os seus prprios fantasmas que, por hora, so materializados na forma das cartas Clow. Dentre as primeiras cartas apresentadas no mang, podemos destacar a Iluso, esta tem a capacidade de se transformar naquilo que a pessoa mais gostaria de ver naquele momento ou podendo tambm refletir um desejo mais profundo. Sakura e suas amigas tm alguns contatos com a carta e, dadas as suas caractersticas, cada uma v algo diferente. Na primeira vez em que a herona a observa, a carta apresenta aspecto feminino, indeterminado, podendo ser qualquer mulher. No segundo contato, percebemos uma mudana significativa, a carta passa a tomar a forma de Nadeshiko Kinomoto. Este encontro resulta no quase afogamento da herona. O guardio do sol tenta ajud-la, mas nocauteado por estranho poder, posteriormente percebido como a alegria de Sakura por ter se encontrado com a me. Em seu terceiro encontro com a Iluso, esta mais uma vez tenta afog-la, mas a herona indaga-se se sua me tentaria 67
faz-lo, elaborando uma resposta: a mame nunca faria isso (CLAMP, 2001 [1997]). Desta forma, enfrenta o fantasma materno conseguindo capturar a carta. Em outro momento da trama, Sakura deve enfrentar a carta Espelho, cuja capacidade a de tomar a forma da pessoa em si, e interagir com os demais desta maneira. A carta em questo toma a forma da protagonista Sakura e executa diversas travessuras pela cidade. Entretanto, a carta decide se aproximar de algum muito importante para Sakura, seu irmo Touya, pedindo-o para encontrar um objeto que esta alegava ter perdido. Nesta busca ele cai de um penhasco, mas apenas torce o tornozelo. O irmo da protagonista, devido aos seus poderes, percebe que aquela no sua irm, mas um ser que precisava de ajuda e que por isso havia tomado forma de Sakura:
... Olha s... Eu prometo que vou procurar o que voc perdeu... Mas poderia... deixar de usar a imagem... da Sakura? que me da impresso de que ela se transformou em um esprito... e isso no legal pra mim. (CLAMP, 2012 [1997]).
O comportamento de Touya fez com que a carta passasse a se preocupar com ele, permitindo-se, posteriormente ser conquistada pela Card Captors. No desenvolvimento da trama, a personagem principal poucas vezes corre risco de morte e, dada a constante interferncia do mago ou de seus representantes, os perigos objetivos conseguem ser contornados. No entanto, o caminho mais tortuoso aquele que leva em direo aos prprios personagens, os momentos em que eles devem refletir e ver o caminho que iro seguir. Tomando por base o apresentado no mang, o principal medo de Sakura a possibilidade de ficar totalmente sozinha, sendo que as cartas Apagar e Trevas proporcionaram a herona justamente esta vivncia. No momento da libertao da primeira destas cartas, a herona estava em uma excurso do colgio. A carta logo fez com que, uma a uma, todas as pessoas que estavam com ela desaparecessem, gerando o desespero na garota. A mesma acalmada por Shaoran outro Card Captor e seu rival na luta pelas cartas. Graas interveno deste, ela consegue enfrentar seu medo de ficar sozinha e conquistar a carta. De uma forma qualitativamente diferente ocorre a liberao da segunda carta, a Trevas, que transporta Sakura para um espao infinito onde s ela existia. O feitio como 68
a herona deve enfrentar tal carta diferente do que ocorreu na primeira. Com a carta Apagar as pessoas sumiam aos poucos e ainda restava algum para auxili-la, at o momento em que esta pessoa tambm desaparece. Diante da carta Trevas ela se v sozinha, sem ningum, devendo perceber em si mesma uma forma de sair daquela situao, tendo por resposta a carta Luz 22 . a Luz, a potncia da vida que faz com que Sakura consiga sair do isolamento imposto pela influncia da Trevas. No desenrolar do enredo, percebemos o paulatino fortalecimento da protagonista, chegando ao ponto em que ela consegue capturar todas as cartas Clow. Entretanto, no so apenas as cartas que a garota deve conquistar, ela tambm deve passar pela ltima prova impetrada por Yue, o guardio da Lua. Quando a jornada atinge seu pice, no momento em que todas as cartas Clow so lacradas, Yukito Tsukishiro revela-se como sendo um disfarce que Yue utilizou para estar perto da candidata a dona das cartas. Sob a gide deste acontecimento, d-se inicio o Juzo Final, com a revelao acerca do que realmente espera-se daquele que se candidata a ser o senhor das cartas Clow, bem como sobre a possvel desgraa acarretada pelas cartas.
Se o escolhido por Kerberus para reunir as cartas for julgado por Yue e no passar na ltima prova as cartas Clow e as pessoas que tiveram contato com elas esquecero esse sentimento especial que sentem pelas pessoas queridas. Para as cartas Clow, a pessoa que as pegou a pessoa mais querida. Mas quando tal pessoa no digna de ser a dona delas, para que as cartas no sofram, elas so obrigadas a esquecer da pessoa que mais gostam e isso vale para as pessoas que se envolveram com as cartas Clow tambm (CLAMP, 2012 [1997]).
A desgraa no tem um aspecto objetivo, como terremotos, ou erupes vulcnicas, mas tem cunho subjetivo, como o fim da capacidade de vinculao entre os sujeitos. Sakura quase perde o confronto, mas ajudada por Clow, que confere a Kaho Mizuki (professora de Sakura) um sino com o poder da lua, para que, quando este momento chegasse, Sakura tivesse uma segunda chance. Neste segundo momento ela consegue vencer Yue sendo reconhecida por este como nova senhora das cartas Clow. Desta forma, Sakura consegue se apropriar do legado que lhe foi conferido por Clow. Entretanto, as cartas lacradas pelo nome de Sakura tinham seus poderes
22 revelado que, no momento da liberao das cartas, a Luz escolheu abrigo dentro do corpo da herona. 69
originados de Clow. Na vitria da herona sobre Yue, esta escuta o mago informar: Pode ser que eu v incomod-la em breve, mas vai estar tudo bem com voc (CLAMP, 2001 [1997]). Sob o paradigma destes novos acontecimentos entendemos a vinda de Eriol Hiragizawa (parte da nova encarnao de Clow) Tomoeda. Este comea a executar diversas travessuras na cidade, provocando episdios do mais perfeito caos. Sakura deve impedi-lo utilizando-se da magia das cartas e de seus guardies, mas, neste primeiro momento, seus intentos no surtem efeito. Uma vez que as cartas e os guardies foram criados por Clow, aquilo que foi criado por ele no poder det-lo. Se antes Sakura deveria solucionar os problemas impostos pelas cartas, agora ela deve enfrentar os problemas causados pela presena do mago Clow, transformando as cartas Clow em cartas Sakura, tornando-se assim, de fato, a nova senhora das cartas. Percebemos que o dever de Sakura no deveria ser apenas assumir as cartas, mas tambm os guardies. Contudo, pelo fato de seus poderes mgicos ainda serem escassos, ela no consegue assumir todo o legado deixado por Clow. Tal fato evidenciado em sua relao com o segundo guardio, Yue. Este, ao contrrio de Krberus, no se alimenta, e seus poderes derivam dos poderes do mestre das cartas. Uma vez que Sakura no tem poderes suficientes para manter as cartas e o guardio, este ltimo quase desaparece 23 . Neste contexto surge Touya, que tambm tem poderes mgicos e esteve acompanhando a jornada inteira como espectador. Ele decide salvar a vida da pessoa mais importante para ele, Yukito, disfarce de Yue, conferindo a ele todos os seus poderes mgicos. Sakura, ao tomar conscincia destes fatos sofre duplamente, tanto pela possibilidade de perder a pessoa que at ento ela considera a mais querida, quanto pelo fato de seu irmo ter doado todos os poderes que possua para impedir que algo acontecesse, sendo que esta deveria ser uma responsabilidade dela. Aps este momento, Sakura decide declarar os sentimentos que nutria pelo melhor amigo de seu irmo. Este os aceita, mas a questiona acerca daquilo que ela diz sentir:
23 Podendo ser considerado como morte. Entretanto, nas terminologias da Clamp, Yue, por se tratar de uma criao do mago Clow, e no de uma criatura comum, no pode morrer, apenas desaparecer. 70
Ser que este sentimento de gostar no o mesmo? Voc no acha que o sentimento que voc tm pelo seu pai... so muito parecidos com os sentimentos que tem por mim? (...) Afinal eu sou muito parecido com o senhor Fujitaka (CLAMP, 2001 [1997], p. 40-44).
Tomando por base aquilo que lhe foi questionado por Yukito, Sakura reavalia seus sentimentos e percebe que este gostar parecido. Mas, mesmo assim, sofre ao perceb-lo, tendo em vista que ela sempre foi apaixonada por ele. Nos momentos finais da trama compreendemos quais so as reais intenes de Eriol, e o que Clow realmente gostaria com Sakura. Sua primeira inteno era proteger as cartas, uma vez que estas, da forma como estavam,
poderiam continuar sendo usadas durante mais algum tempo, graas ao poder mgico que eu havia deixado nelas. Mas se continuasse assim, o poder mgico seria esgotado com o tempo e elas passariam a ser apenas cartas comuns (CLAMP, 2001 [1997], p.106).
E em um segundo momento, Clow almejava deixar de ser o mago mais poderoso deste mundo, para que seu enorme poder de vidncia se esvasse. Desse modo, precisava que algum com um poder mgico maior que o dele dividisse o poder do mesmo em dois, para as duas partes de sua alma. O final da trama consiste em uma avaliao final que Sakura faz acerca de si mesma e de seus sentimentos no momento em que ela descobre que Shaoran, agora seu amigo, deve partir para Hong Kong, sem data prevista de volta. A herona reavalia seus sentimentos por ele e enfim descobre que este a pessoa mais importante para ela.
4.2 Sakura: consideraes acerca da feminilidade
Podemos perceber que a histria apresentada no Mang consiste tanto do nascimento de Sakura enquanto uma Card Captor (na qual ela deve se alienar ao desejo do mago Clow a fim de evitar a desgraa), quanto separao com relao aos ditames do feiticeiro, tornando-se a nova mestra das cartas. Em outras palavras, esta narrativa aponta de forma simblica o percurso que a menina deve tomar para se transformar em uma mulher. Podemos compreender que a epopeia impetrada por Sakura tem o aspecto campons apresentado por Benjamin (1994), uma vez que esta no conhece outros 71
locais diferentes de Tomoeda, mas, por meio das cartas, ela explora a prpria cidade, como tambm explora acerca de sua prpria histria alm de outras que antecederam seu nascimento. Sendo esta a perspectiva camponesa defendida pelo autor alemo, o campons conhece sua casa, sua terra, sendo esta experincia da terra a que ele narra. uma jornada mais de reconhecimento acerca de si mesmo e dos outros. Sakura nasce enquanto filha de Fujitaka, uma das novas verses do mago Clow, no entanto, mesmo antes de seu nascimento, ela j estava destinada a ser uma Card Captor, o feiticeiro j havendo deixado tudo preparado, seno porque ele faria um bculo to bonitinho (CLAMP, 2001 [1997], p. 65). Esta se configura como uma necessidade para a existncia do sujeito, antes ele deve ser concebido pelo desejo de um Outro, que o nomeie e aliene, que seja capaz de significar as vivncias deste. Desta forma, coseguimos perceber a importncia do discurso oracular existente no desenrolar da trama. Este, conforme apontado por Pelbart (2009), um discurso tortuoso que no se entrega de maneira rpida contendo uma verdade, um saber que aponta para as questes do prprio sujeito, mas que s poder ser compreendida a posteiori. O que conseguimos perceber destes fragmentos a inexorabilidade da desgraa, que j est em curso desde o momento em que a herona rompeu o lacre do livro e liberou as cartas. As mudanas no vaticnio podem representar a maneira pela qual Sakura lida com o possvel infortnio apresentado pelo mago, quer negando-o, caso as cartas consigam ser detidas, quer acatando esta possibilidade, quando a desgraa poder ser efetivada no momento em que todas as cartas forem lacradas. As cartas apontam para uma verdade a qual Sakura ainda no pode ter acesso; a verdade sobre sua prpria existncia. Embora Sakura possa ser encarada como uma espcie de filha de Clow, a garota tem uma magia completamente diferente da criada pelo mago, conforme apontado por Kero, mas esta deve se apoderar das criaes do feiticeiro, seguindo seus preceitos, pois, At certo ponto, qualquer um pode usar as magias antigas, desde que siga as instrues e respeite as regras (CLAMP, 2001[1997], p.10). Situamos este momento como a entrada na linguagem, por meio da qual adentramos na rede simblica ao sermos alienados a um outro que detm as significaes acerca de ns. Nas palavras de Fink (1998, p.72.): a escolha de sujeio necessria para que o indivduo advenha enquanto um sujeito. Sakura, para ser uma Card Captor, deve seguir as regras do 72
mago, no entanto, esta alienao pode ser concebida como um primeiro passo para a constituio do sujeito. As mudanas neste discurso tambm podem elencar algumas das caractersticas mais marcantes da adolescncia, nas palavras de Jerusalinsky (2011), o paradoxo temporal, no qual o indivduo passa a responder pelo que pode acontecer no futuro, por uma espcie de dever no passado, mas um passado que muitas vezes no corresponde ao dele, e sim ao dos pais. Enquanto que nas narrativas tradicionais os heris devem sair de sua casa e se aventurar atravs do mundo, para mostrar seu valor e poder voltar a sua terra natal, em uma forma de se separar da famlia, de seus julgamentos e desgnios (CORSO; CORSO, 2006), Sakura fica em sua terra natal. As questes que ela enfrenta no esto relacionadas ao mundo normal, mas ao mgico, no qual ela deve se deparar com seus desejos e anseios. A vivncia de Card Captor percebida como uma jornada secreta, caracterizada como a dificuldade que Sakura encontra em seu caminho para se tornar mulher, uma jornada que, mesmo que tenha aspectos semelhantes aos de todas as mulheres, guarda muito da singularidade da protagonista. Por meio de Winnicott (2005) entendemos que o adolescente um ser isolado, mas a partir deste isolamento que ele comea a exprimir relaes. Entendemos que este no apenas um isolamento geogrfico, mas tambm um isolamento vivencial. O corpo adolescente muda da mesma forma que suas relaes, os pais j no so mais aqueles heris, falham, e este ser em mutao deve ser capaz de enfrentar as intempries da vida sem o auxlio deles. Cada carta tem um poder e uma personalidade diferentes. Sakura deve passar por todos os testes e conquistar cada carta, tendo por nico conselheiro Kero, tido como elemento de passagem de sua vida normal para as misses enquanto Card Captor. No entanto, este um conselheiro que no tem todas as respostas, ou, algumas vezes, estas existem, mas so incomunicveis. O guardio no entendia o motivo da rebeldia de da carta Alada que no era de ataque. Em outros momentos, ele estava dormindo enquanto a protagonista tinha que descobrir por si mesma como sair das situaes mais complicadas. Entende-se que a protagonista dever passar por sua aventura praticamente sozinha. Entretanto, no uma desassistncia, em alguns momentos a herona recebe ajuda de amigos ou conselhos dos guardies e tambm do prprio mago 73
que, devido a seus poderes divinatrios, deixou alguns instrumentos que poderiam ajud-la quando necessrio. Ainda na linha de interpretao do autor ingls, compreendemos que o adolescente no saber o que fazer. Trata-se de uma parte preciosa da adolescncia na qual o sujeito cria sadas para os problemas, ideias para um modo de vida diferente (WINNICOTT, 2011 [1968], p. 158). um momento de separao no qual o outro j no pode dar as respostas quilo sobre que lhe indagamos; o momento no qual o sujeito tem de formular as respostas para os enigmas de sua prpria vivncia. As cartas so o legado do mago Clow, sendo que: cada uma das cartas est viva, e cada uma delas tem um nome, uma forma, e um poder mgico. (CLAMP, 2001[1997], p. 31-32). A estas criaes o feiticeiro conferiu o mximo de seu poder mgico e de sua alma. Desta maneira, poderemos questionar: as diversas personalidades existentes em cada carta no exprimem os diversos aspectos da alma/personalidade de seu criador? Nesta linha de raciocnio, acreditamos que, no contato com as cartas, o que entra em questo so os diversos aspectos da personalidade de Sakura com os quais ela se deve confrontar e os quais devem ser integrados pela mesma. Nas palavras de Winnicott (1960), ela deve assumir plena responsabilidade por todas as ideias e sentimentos pertencentes ao estar vivo. As autoras do Clamp criam um ambiente seguro no qual Sakura pode se desenvolver. A herona mal apresenta mudanas externas no decorrer da narrativa do mang, mas suas lutas no so contra os outros, e sim na tentativa de reconhecimento de si mesma. Interessante notar que, uma vez que a forma liberada conquistada pela herona, ela volta a ter a forma de carta e o que lhe garante o selo o nome de Sakura escrito na mesma. a que a garota reconhece como sendo seu aquilo que foi deixado pelo outro, convertendo-o em memria. Este fato muito comum na infncia. As histrias que temos como nossas so, antes de tudo, as histrias que contam acerca de ns mesmos. Depois de determinaado perodo aceitamos e repetimos tais enredos como pertencentes a nossa vida. Por meio das cartas, Sakura se depara com um mundo nunca visto..., no 74
importa o que me espera por l, mesmo que no for o ideal 24 (SAKAMOTO, [s.a]). o mundo como ela o experimenta; sua realidade. Dente os primeiros fantasmas que aparecem no mang, vemos a relao de Sakura e sua me, que morreu quando aquela tinha apenas trs anos. Entendemos que a carta Iluso a responsvel pela materializao simblica destas questes. Ao longo do confronto com tal ente, atentamos para o processo da construo da fantasia, uma vez que, no primeiro contato, Sakura v uma figura feminina, a qual no teria necessariamente relao alguma com ela. Tratava-se de qualquer mulher. No segundo contato materializada a figura materna, que tenta mat-la. Nesta fantasia, Sakura consegue fazer reviver, mesmo que de forma alucinatria, sua finada me. Freud, em seu texto Uma Criana Espancada (1919), assume que as fantasias que envolvem espancamento morte, no caso de Sakura so acompanhadas por um alto grau de prazer, tendo um contedo significativo. O prazer neste encontro foi to grande que impediu a interferncia de Kero, uma vez que formulada uma fantasia de que a me a estaria matando por sentir-se sozinha. Outra questo significativa deste encontro o fato de que Touya havia dito a Sakura: a mame no est mais aqui. Ela ficou feliz porque voc cresceu e foi para um lugar lindo no cu (CLAMP, 2001 [1997], p.87). Havia ocorrido uma separao entre ambas, mas Sakura de certa maneira quis experimentar uma religao com a figura materna, aquela da primeira infncia. A carta encontra-se dentro de um lago, pontuando aquilo que Sakura procurava neste encontro; uma forma de voltar a experimentar um amor materno incondicional. No momento em que ela deveria se deparar com a separao das figuras parentais, ela opta por um caminho de volta. Por meio de Sakura, percebemos a iminncia de uma morte real, tendo, de certo modo, uma conotao potica: afogar-se no desejo da me, contudo, no apenas uma morte objetiva que pode acontecer, mas tambm uma estagnao na qual o filho, por ter se hipotecado ao desejo da me ou do pai paga como preo a sua prpria vida. Ele vive, mas se trata de uma vida que dedicada a satisfazer aquilo que os outros querem dele:
24 Mada minu sekai/ soko de nani ga matte-ite mo/ moshimo risou to chittega mo. 75
O preo de sua prpria vida ou do equilbrio mental para ocupar um lugar na estante de trofus dos pais. Para esse tipo de filho, ser necessrio tornar-se deficiente para o mundo externo, sendo incapaz para o sexo ou amor (de forma a nunca substitu-los); ou invivel para certas ousadias e transgresses necessrias para se independizar (assim nunca os abandonar). (CORSO, D. L; CORSO, M. 2006, p. 147).
A compreenso acerca da relao me e filha pode ser considerada como uma das problemticas mais difceis a serem abordadas em psicanlise, uma vez que a sexualidade feminina tida como o continente negro. Antes de se problematizar tais questes, precisamos compreender que elas sofreram diversas mutaes ao longo do tempo. Valdiva (1997) assevera que, no incio, as proposies freudianas pressupunham uma paridade acerca do desencadeamento do Complexo de dipo, sendo que, de forma homloga do garoto, que toma a me como primeiro objeto de amor, a menina tomaria o pai. Consoante apresentado pela autora, tais concepes so mantidas por Freud com tenacidade decrescente, at que ele a invalida totalmente em 1925. O pai da psicanlise, em seu texto Algumas consequncias psquicas da diferena anatmica entre os sexos (1925), assume que: habituamo-nos a tomar como tema de nossas investigaes a criana do sexo masculino, o menino. Com as meninas, assim supnhamos, as coisas deveriam ser semelhantes (FREUD, 1996 [1925], p. 278). Percebemos que em tal estudo encontram-se os elementos centrais da maior parte da teoria freudiana acerca do desenvolvimento da mulher, quer nos estudos sobre a Feminilidade (1933/1932), quer em a Sexualidade Feminina (1931). Tomando por base esta mudana de paradigma, podemos compreender o porqu de em seu texto de 1919 a relao de fantasia ser sexista, na qual a menina fantasiaria estar sendo batida pelo pai, e o menino pela me. Em virtude dos estudos desenvolvidos no perodo posterior a 1925, Freud passa a considerar uma fase anterior ao Complexo de dipo, na qual, assim como o menino, a menina tambm toma por primeiro objeto amoroso a me, pois esta, ou sua substituta, que, com seu toque e olhar, tanto o investe de maneira libidinal, quanto comea a dar- lhe os contornos do Eu. A separao entre ambas se d de forma paulatina, primeiro pelo desmame, pelo qual a criana deixa de ser apresentada ao seio, que ilusoriamente seria considerado como posse do infante. No entanto, estes processos de separao e regulamentao do prazer so proporcionados pela figura materna a ambos os sexos (FREUD, 1924; 1931; 1933 [1932]). 76
Segundo a teoria freudiana, o que leva a garota a se voltar para o pai a percepo da castrao, momento este em que ela se depara com a diferena anatmica entre os sexos e cr que esta me, a quem tanto amava, foi incapaz de lhe dar o falo (figura da completude). O ressentimento leva a menina ao Complexo de dipo, no qual ela passa a rivalizar com a me, uma vez que:
Seu amor estava dirigido sua me flica; com a descoberta de que sua me castrada, torna-se possvel abandon-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade, que h muito vinham acumulando, assumem o domnio da situao. Isso significa, portanto, que, como resultado da descoberta da falta de pnis nas mulheres, estas so rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o so pelos meninos, e posteriormente, talvez, pelos homens. (FREUD, 1996 [1932/1933], p. 128).
Por meio das contribuies apresentadas por Soler (2005), percebemos que, para Freud, o desejo da mulher se constitui de uma variao do desejo de se ter o amor de um homem, ou do filho flico. Tomando por base este paradigma, podem-se compreender as trs sadas apresentadas para o desenvolvimento da mulher: a renncia, a masculinidade e a feminilidade. Renncia: a constatao da castrao gera uma averso sexualidade, a garota assusta-se com a comparao entre ela e os meninos, ela abandona a atividade flica e, com ela, sua sexualidade, esvaindo-o para outras searas (FREUD, 1996 [1931]). Masculinidade: a garota se aferra a sua masculinidade ameaada, como se esperasse que o pnis fosse ainda se desenvolver, tal esperana torna-se um objetivo de vida (Ibidem). Feminilidade: considerada como a sexualidade normal, na qual toma o homem como objeto, encontrando assim a forma do complexo de dipo feminino. (Ibidem). De acordo com a autora francesa:
Para Freud, sabemos perfeitamente, o amor de um homem culmina no filho esperado, margem da relao sexual, como nico objeto cauda de desejo para a mulher. (...) O filho decerto um objeto a possvel para uma mulher, s que decorre da dialtica flica do ter, que no lhe prpria. Entre a me e a mulher existe um hiato, o filho flico por vezes capaz de tamponar a exigncia feminina. (SOLER, 2005, p.35)
77
A autora defende que a contribuio de Lacan a esta discusso refere-se ao fato dele tirar o foco desta discusso da inveja do pnis, e migrar para o significante flico. O desejo da me, se no for barrado, um desejo de assimilao que toma o filho como objeto de sua completude e o assimila, no permitindo sua emancipao. Para Lacan este desejo tem importncia capital, pois
O desejo da me no algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocs esto a me isso. No se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da me isso. (LACAN apud FINK, 1998, p.79).
Algo semelhante ocorre na vivncia da carta Iluso, que proporciona herona um confronto com a separao da figura materna e a deflagrao das questes pertinentes feminilidade. Entendemos que outra carta, a Espelho, faz com que a protagonista se depare com sua prpria destrutividade e com sua capacidade de envolvimento e reparao (WINNICOTT, 1960; 1963). Embora as cartas, na maioria das vezes, testem as habilidades da Card Captor, esta testa a capacidade de resilincia de seu irmo, que dever ser capaz de receber os impulsos destrutivos da nova Sakura e no agredi-la, dando a ela a capacidade de reparar tais aes. Tais questes foram problematizadas por Winnicott (1990) e, parafraseando este autor, percebemos que no momento em que Touya sustenta a situao deflagrada pela carta, esta tem tempo para organizar tal vivncia, e resgatar algo que possa ser conceituado como bom. Desta maneira, pode reparar parte do mal que causou, desculpando-se com o mesmo e deixando-se capturar por Sakura. Esta, por sua vez, cuida do irmo que est machucado, assumindo a responsabilidade pelo ato da carta. Nas palavras do autor ingls:
O que mal retido por algum tempo, para ser usado em expresses de raiva, e o que bom retido para servir ao crescimento pessoal, bem como restituio e reparao, e para fazer o bem ali onde imaginativamente havia sido feito o mal (WINNICOTT, 1990, p. 91).
Por meio da Espelho, a herona percebe a capacidade de reparar o mal que ela tambm poder fazer. 78
As cartas proporcionam a Sakura perceber mais acerca daquilo que foi dito profetizado acerca dela, entretanto tal caminho no to simples. Algumas vezes, esta deve deparar-se com seus piores pesadelos, adentre os quais solido. So os momentos de catbasis da herona, quando ela enfrenta a si mesma. Podemos elencar tais momentos no enfrentamento da carta Trevas e de Yue. Na prova imposta pela primeira, a garota deve perceber o que existe dentro dela para poder contornar a situao, caso contrrio ficaria presa nas trevas para sempre, onde no teria contato com ningum. O julgamento imposto pelo segundo mais grave, pois dele depende a capacidade de vinculao. Os outros existem, j o lao amoroso no mais, sendo esta perda da capacidade de amar o golpe mais duro que a Card Captor poderia receber. Yue, a lua, encontra-se em uma posio antagnica de Krberus, o sol. Enquanto este potncia de vida, tendo por vezes comportamentos infantis, aquele a calma, a serenidade, por vezes at o frio, encarnando a maturidade inerente vida adulta. Sakura, como aspirante a nova dona, encontra-se entre eles. Este seria o dever do adolescente, tal como expresso por Jerusalinsky (2011): a criao de laos que lhe permitam articular o passado e o futuro. O que entra em questo no juzo final o fato de Sakura ter conquistado as cartas, no apenas de uma maneira objetiva, mas tambm pelo fato de estas a considera- la a pessoa mais importante. Cada carta tem uma personalidade diferente, demonstrando as diversas facetas da Card Captor. O juzo final uma espcie de tudo ou nada no qual, ou as questes so integradas e legitimadas por ela, ou ela poder perder o amor. No fim, este lao que impera em todas as relaes, toda a demanda , em ltimo caso, uma demanda de amor. Compreendemos que todo este processo responsvel pelo nascimento da nova dona. Embora algumas vezes ela consiga elaborar algumas vivncias, ainda um ser alienado ao desejo de Clow, que a fez uma Card Captor. Entretanto, a influncia de Clow e de tudo o que ele disse fizeram com que Sakura assumisse como responsabilidade um ideal; todo o legado de Clow. Mas a capacidade de assumir tudo o que foi desejado pelos pais uma questo fantasiosa, ou o fantasma parental, tal como conceituado por Jerusalisky (2011); uma demanda ao sujeito que no seja nem mais nem menos que um ideal do Eu, a encarnao das expectativas que esta figura parental 79
detinha acerca deste. A primeira fase do mang consiste na apropriao que Sakura faz deste fantasma parental para que, assim, possa super-lo. Este processo, bem como o esfacelamento da encarnao de Sakura enquanto um ideal se d na segunda metade da narrativa, uma vez que, na expectativa de Clow, a Card Captor deveria assumir tanto as cartas quanto os guardies. Porm ela falha com um destes ltimos, seus poderes no sendo suficientes para manter a existncia de Yue. Podemos encarar este momento como qualitativamente diferente do restante da jornada, pois, pela primeira vez, Sakura falha. Os outros momentos de insucesso eram tamponados pelo auxlio de amigos, ou pela influncia do mago, como se este corroborasse o logro da jornada. Porm, mesmo com suas interferncias, quem executava as aes era a herona. Com Yue, isto no acontece. O processo pelo qual passa o guardio da Lua marcado por um no saber da protagonista, embora o disfarce apresentasse mais sono e fome do que o normal, sinais que podem ser compreendido como uma tentativa de manter sua existncia. A garota, porm, no percebia este processo, pois no era a ela que caberia a guarda deste ente, mas a seu irmo, Touya, que atentava para o enfraquecimento do amigo e tentava, de todas as maneiras, ajud-lo. No entanto, nesta falha que Sakura consegue se libertar dos ditames impostos por Clow, rejeitando, embora a contragosto, parte de seu legado. O final da jornada culmina quando Eriol apresenta uma fraqueza do Mago Clow, que era a sua incapacidade de controlar os poderes divinatrios, sendo que Sakura, agora a maga mais poderosa deste mundo, tambm poderia ter acesso a tais dons, mas com determinado controle. Percebemos que todo este processo tem por finalidade a apropriao de sua prpria histria, bem como de partes do legado deixado pelo pai. Transformado agora em um legado de Sakura, que sempre guardar muito de sua relao com o poderoso Mago Clow. A herona se reveste das insgnias daquele com quem se identificou, e que desempenham nele o papel e a funo de um ideal do eu (LACAN, 1999, p. 308). Um ideal que comporta a capacidade de falha e que, ao contrrio do Eu ideal, consiste na perfeio infantil, este ltimo consistindo na melhor maneira de Sakura lidar com as situaes. De acordo com o enredo apresentado pelo mang e as articulaes analisadas, seguindo o referencial psicanaltico, podemos perceber que Card Captors Sakura se configura como um mito acerca da constituio do sujeito, em um processo que vai 80
desde sua alienao, no qual dito pelo outro que detm um saber acerca dele separao, na qual ele deve se apropriar disto que lhe foi apresentado e transform-lo em algo seu. Percebemos que tais questes, para a mulher, ganham um novo contorno, pois no perodo da adolescncia que a elas apresentado o enigma acerca da feminilidade, que perpassa no apenas as vivncias desta, mas tambm a forma como encara a feminilidade materna. Compreendemos que atravs do processo de separao, Sakura dever deixar de indagar acerca das questes que o mago fez acerca dela e passar a encarar no mais o desejo deste, mas sua prpria vontade. 81
5 CONSIDERAES FINAIS
Por meio das temticas trabalhadas nesta exposio, esperamos ter podido elucidar algumas das questes pertinentes ao mang, enquanto produto cultural e um possvel representante do gnero narrativo. Ao tomarmos por foco que a funo primordial do narrador dar conselhos, possivelmente encarnado em uma funo parental, apresentando impossibilidades e falhas, acreditamos que o mang pode, sim, ser tido como uma obra a servio desta arte. Percebemos que em uma sociedade pautada por um ideal narcsico, na qual as falhas no so permitidas e os erros so tidos como um sinal de fraqueza, as formas de se expressar a tristeza ou qualquer aspecto que o obrigue a sair da lgica imediatista e pensar acerca de si so tidas como nocivas ao bem social. Fazendo das expresses de tristeza, que podem ser consideradas as marcas de nossa humanidade, patologias medicalizadas, cremos que realmente se faa necessrio um produto que volte a tomar o ser humano por foco em sua diversidade de temas e concepes. Dessa forma, conceituamos o mang e suas camadas como uma tentativa de promoo de uma espcie de retorno daquilo que foi recalcado pelo novo iderio social. Primeiramente, enquanto humanos, somos seres de relao, sempre necessitaremos de um outro que nos acolher, ou no. Por outro lado, nossa sociedade prega o hiperindividualismo, no qual o sujeito deve bastar-se a si. E a este sujeito que prometida a porta para a felicidade. No mang as relaes no se expressam desta forma. O heri sempre precisar de um outro, existindo apenas enquanto um ser de relao. Enquanto espectadores e leitores, percebemos que a sua maior conquista no o aumento de sua fora e, em decorrncia dela, a derrota do vilo, mas conseguir vencer o isolamento que a ele imposto por alguma razo e se relacionar com os demais. O segundo aspecto que podemos apresentar o reconhecimento por parte do outro daquilo que se , independentemente das concepes. O mang de Sakura acaba quando ela transforma as cartas em cartas Sakura e passa a ser reconhecida enquanto Sakura, e no enquanto as previses do mago Clow. Em outro mang, Naruto, percebemos que sua jornada em busca de um reconhecimento, ele almeja ser 82
Hokage 25 , mas, antes de tudo, quer ser reconhecido no como a besta que existe dentro de seu corpo, mas como o ninja Naruto Uzumaki, pertencente aldeia da folha. O enredo deste mang ainda est se desenvolvendo, mas observamos que Naruto conseguiu seu objetivo principal; ele no mais apenas o Jinchuuriki 26 da Kyuubi 27 , mas agora considerado um companheiro de todos em sua vida, protegendo e sendo protegido por todos. A terceira caracterstica que permite considerar os quadrinhos como uma obra a servio da narrativa o aspecto integral que apresenta suas personagens, ao contrrio de outras produes que apresentam uma concepo maniquesta de mundo, onde elas so divididas entre boas e ms. Em muitos mangs estas terminologias no podem ser aplicadas de forma bastante segura, uma vez que nenhuma personagem to boa que, dadas as circunstncias, no possa executar algo que possa ser conceituado como mau, nem to vilo que no possa fazer alguma coisa tida como boa. Desta forma, estes quadrinhos propiciam que o homem entre em contato com estes seus dois aspectos, integrando-os como caractersticas suas. A leitura do mang, assim como de qualquer narrativa, ao nos fazer confrontar com a realidade ficcional apresentada faz com que, invariavelmente, entremos em contato com a nossa prpria realidade, sendo que a maneira como o heri a enfrenta pode nos oferecer balizas para o entendimento e o enfrentamento de nossas prprias questes. As pessoas no falham, no podem sofrer ou chorar. Aos heris de mang dada esta possibilidade, o que confere a possibilidade de o leitor tambm se autorizar a vivenciar estes aspectos humanos que esto sendo cada vez mais esvados de sentido na ps-modernidade. Por meio de Sakura Card Captors, podemos perceber em que medida as produes japonesas no relatam exclusivamente as questes da subjetividade daquele pas, mas esto intimamente relacionadas com questes que perfazem, por assim dizer, a natureza da mulher e das relaes humanas propriamente ditas.
25 Maior ttulo da aldeia da folha. 26 Nome que se d a um hospedeiro de um Bijuu. 27 Raposa de nove caldas. No universo Naruto um Bijuu, uma grande massa de Chakra que toma a forma desta entidade. 83
Acreditamos que, de maneira geral, conseguimos alcanar nosso objetivo, que era defender a natureza narrativa dos quadrinhos. Contudo, devemos esclarecer que as questes mais problemticas e que, por conseguinte, merecero ser abordadas em outro momento, num estudo dirigido a esta temtica especfica, so os relacionados feminilidade e sexualidade feminina, uma vez que tais questes figuram como as mais complicadas a serem tratadas em psicanlise. 84
6 GLOSSRIO
Anime Animao Japonesa. Bijuu No anime/mang, Naruto configura-se como uma grande massa de Chakra. Card Captor Caadora de cartas. Chakra Na terminologia utilizada por Kinhimoto em Naruto, considerado o mesmo que energia. Comics Quadrinho estadunidense. CLAMP Grupo de formao exclusivamente feminina, atualmente composto por quatro membros: Mokona Apapa; Satsuki Igarashi; Mick Nekoi e Nanase Ohkawa, que so autoras de diversos mangs. Hokage Maior ttulo da aldeia da folha, presente no mang Naruto. Jinchuuriki No universo Naruto, nome dado ao hospedeiro do Bijuu. Kamisama Deus. A expresso Mang no Kamisama significa o Deus do Mang, forma honrosa como conhecido Osamu Tezuka. Kyuubi Raposa de nove caldas. No mang/anime, Naruto uma das Bijuus. Mang Quadrinho japons. Mangak Autor(a) do Mang. Mahou Shoujo Estilo de Shoujo no qual a garota consegue seus poderes de algum ente mgico. Nambam Biombos ilustrados com desenhos que relatavam de forma estilizada a chegada dos portugueses ao Japo (MONIL, 2004). Perodo J amon 13000 a.e.c ao 4 sculo a.e.c. Perodo Yayoi 4 sculo a.e.c ao 4 sculo e.c. Perodo Nara Compreendido entre 710 794. Perodo Hein Compreendido entre 794 1185. Perodo Edo Compreendido entre 1615 1868. Perodo Meiji Compreendido entre 1868 1912. Ponchi-e Desenhos Punch, caricaturas normalmente de cunho poltico veiculadas na revista The Japan Punch. Shonen ai Elemento presente no enredo de algumas narrativas do Shoujo mang, que consiste no amor entre rapazes. 85
Shonen Estilo de Mang desenvolvido para o pblico masculino. Shoujo Estilo de mang desenvolvido para o pblico feminino. Tankohon Compilao de enredos presentes nas revistas de mang em forma de livros de capa mais grossa e papel de qualidade superior. Uji Comunidades consanguneas de base patriarcal (NAMEKARA, 2011). Ukiyo-e Podendo ser traduzido por imagem do mundo flutuante, consistia de gravuras feitas a partir de pranchas de madeira, geralmente de temtica cmica. (MONIL, 2004). Xogunato Ditadura feudal estabelecida no Japo em 1630. Yaoi Personagens masculinos que mantm um relacionamento homossexual. Yuri Personagens femininos que mantm um relacionamento homossexual. Zenga Podendo ser traduzida por imagens Zen, consistiam de gravuras monocromticas que utilizavam a caricatura para auxiliar na meditao. 86
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FESTA DO DIVINO PAI ETERNO, NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO: Coletânea de fotos; fatos históricos do Distrito de Lagolândia; curiosidades sobre os 100 anos da festa