A Semântica Do Intangível - Lucieni Menezes Simão

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

Lucieni de Menezes Simo

A SEMNTICA DO INTANGVEL. Consideraes sobre o


Registro do ofcio de paneleira do Esprito Santo.

Niteri
2008

Lucieni de Menezes Simo

A SEMNTICA DO INTANGVEL. Consideraes sobre o


Registro do ofcio de paneleira do Esprito Santo.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Ps-Graduao
em
Antropologia
da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obteno do Grau de
Doutor em Antropologia.

Orientadora: Prof Dr Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto


Linha de Pesquisa do orientador: transmisso de Patrimnios Culturais

Niteri
2008

Banca Examinadora

Aprovada em 30 de abril de 2008.

__________________________________
Profa. Orientadora Dra. Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dr. Glucia Oliveira da Silva
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dr. Sylvia Frana Schiavo
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dr. Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes
Universidade Federal Fluminense
_________________________________
Prof. Dr. Ricardo Gomes Lima
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________
Prof. Dr. Diana Antonaz
Universidade Federal do Par
__________________________________
Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida (suplente)
Universidade Federal do Amazonas
__________________________________
Prof. Dr. Eliane Cantarino ODwyer (suplente)

Universidade Federal Fluminense

Dedico esta tese a legio de anjos


que esteve sempre ao meu lado:
Eny de Menezes Simo (in memoriam)
Jorge Simo
Teresa Nazar
Pedro Pio Filho
Rosane Carvalho
Maria Christina Guido (in memoriam)

AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal


Fluminense e aos seus professores;
Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ) que me proporcionou uma bolsa de doutorado sem a qual no
seria possvel o investimento de tempo para elaborao intelectual desta tese;
minha orientadora Dra. Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto que soube
levar com firmeza o trabalho de orientao e apostar na sua concluso;
Clarisse Fukelman pela leitura crtica da tese e contribuies para a
fundamentao do trabalho;
Ao prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida pela leitura atenta do copio
da tese e por contribuies fundamentais na formulao de seu marco terico;

Heloisa

Bertol

(MAST-CNPq)

por

ter

me

disponibilizado

os

levantamentos no arquivo pessoal do professor Luiz de Castro Faria;


Ao prof. Dr. Ilmar R. de Mattos a quem sempre recorro para conversas e
conselhos;
Ao colega e jovem cientista social Pedro Pio Filho pela ajuda em etapas de
transcrio de fitas e tabulao de dados, mas, principalmente, pela amizade e
companheirismo incondicionais;
Aos colegas de turma de doutorado Soraya Simes e Paulo Delgado pela
generosidade da escuta, amizade e companheirismo;
Celi Maria de Souza, grande amiga capixaba, que tive a felicidade de
reencontra depois de doze anos, pelas diversas vezes que me acolheu em sua casa e
pelo apoio em momentos de extrema ansiedade. Posso afirmar que sem a acolhida
dessa minha segunda famlia tudo teria sido muito mais difcil. Sou-lhe gratssima!
Jamilda Alves Rodrigues Bento e a sua famlia (Jenete Alves Rodrigues e
Lucia Florinda Nascimento Corra) pelo carinho com que sempre me receberam em
suas casas e quintais. Jamilda, alm de interlocutora em todos os momentos de
trabalho de campo, tornou-se uma grande e querida amiga;
s paneleiras Izabel Corra Campos, Elizete Salles dos Santos, Geci Alves
Corra, Ilza dos Santos Barbosza, Bernanci Gomes Ferreira; Maria da Conceio

Gomes Barboza, Melchiadia Alves Corra da Victria Rodrigues, Domingas Corra


da Victria Fernandes; Margarida Lucidato Ribeiro; Palmira Alvarenga e Zilda
Campos pela generosidade com que me acolherem em seus quintais. Sem essa
convivncia to intensa e necessria para uma tese de doutorado em antropologia o
trabalho perderia a sua densidade analtica;
Elisabeth Marins e s pesquisadoras populares da Rede FITOVIDA;
famlia Alves Dalva, Pacfico, Fred e Kleber queridos amigos
capixabas que me acolheram nas primeiras viagens a Vitria;
Fabrcia Cabral e Natlia Brayner, dois exemplos de generosidade na
disponibilizao de materiais de pesquisa. Fabrcia disponibilizou-me documentos
fundamentais para a complementao da pesquisa em arquivos do IPHAN. Natlia,
por sua vez, solidarizou-se com o roubo das minhas fitas de campo e enviou-me em
tempo as entrevistas que havamos feito juntas. A elas a minha gratido.
Ao Jonhson da Fundacentro e Macao Ges do ArteSol, pela gentileza no
envio dos relatrios sobre as paneleiras realizados por essas instituies;
Ao Ricardo Gomes Lima (CNFCP/ IPHAN) que pelo tempo que j nos
conhecemos posso afirmar ser um grande amigo;
Carol Abreu, Mrcia SantAnna, Clia Corsino, Cludia Mrcia Ferreira,
Luiz Fernando Dias Duarte, Ana Cludia Alves pelas entrevistas concedidas, sem a
qual no seria possvel configurar o campo temtico do patrimnio imaterial;
Aos queridos Jos Carlos Frana e Ledilson Lopes companheiros, cada qual
em seu tempo pelo carinho e relao afetuosa;
amiga Rosane Carvalho e ao seu companheiro Antnio Carlos que tantas
vezes me acolheram em sua casa;
Tereza Nazar, Maria Aparecida Botelho Soares, Dinah Guimaraens,
Claudia Dowek, Ana Maria Oliveira, Maria de Lourdes da Silva, Beatriz Arosa,
Mrcia Hartt e a todos os meus amigos que com pacincia aturaram as minhas
oscilaes de humor e que, direta ou indiretamente, contriburam para que o peso
dessa tese me fosse suportvel;
minha famlia Jorge Simo e Jorge Carlos Menezes Simo aos primos,
primas, tios, tias e memria de minha querida me Eny de Menezes Simo.
A todos vocs meus verdadeiros Patrimnios!

RESUMO

Esta tese procura estabelecer relaes entre a produo antropolgica e as


polticas pblicas de patrimnio cultural imaterial no Brasil; em uma dmarche
histrica e analtica que vai da noo de patrimnio cultural questo da
salvaguarda, passando pelas diferentes polticas nacionais, recomendaes e
convenes internacionais. A construo, ao longo do sculo XX, de uma viso mais
abrangente de patrimnio resultou na conceituao da dimenso imaterial do
patrimnio cultural, criando polticas oficiais articuladas internacionalmente,
instrumentos de pesquisa e legislao especfica sobre a matria, com a colaborao
de antroplogos. A abordagem etnogrfica aqui apresentada analisa os modos de
apropriao do Registro do ofcio de paneleira como Patrimnio Cultural do Brasil,
considerando os sujeitos sociais envolvidos nesse processo, quais sejam, as famlias
produtoras de cermica utilitria no bairro de Goiabeiras Velha, na cidade de
Vitria. Interessou-me compreender como foram construdas e interpretadas as
referncias s origens desse artefato cermico e ao saber enraizado na comunidade
de paneleiras. Esses agentes foram estudados em suas interaes com as instncias
mediadoras do poder pblico e em seus embates com relao ao mercado. Nesse
sentido, o processo de patrimonializao da cultura constitui um desafio para
tcnicos e gestores do patrimnio, pois o ato administrativo do Registro produz
visibilidade sobre os bens culturais saberes, celebraes, ofcios, expresses e
lugares e gera compromisso poltico do Estado brasileiro no que tange ao fomento,
divulgao e salvaguarda dessas prticas e representaes sociais.

Palavras-chave: 1. Patrimnio Cultural Imaterial; 2. Salvaguarda; 3.


Paneleiras do Esprito Santo; 4. Produo Artesanal; 5. Brasil.

ABSTRACT

The purpose of this thesis is to establish connections between the


anthropological productions and the public policies of Brazils intangible cultural
heritage in a historical, analytical dmarche which analyses the notion of cultural
heritage as well as safeguard matters, touching on different national policies,
recommendations and internationals conventions. The building of a much wider
view of heritage in the Twentieth Century resulted in the conception of intangible
cultural heritage, which led to international official policies, research tools and the
especific legislation of the matter at issue, with the participation of anthropologists.
The ethnographic approach proposed in this research analyses the paneleiras
Register as the cultural heritage in Brazil, considering all social subjects involved in
the process that is to say, families who are ceramics producers in the district of
Goiabeiras Velha, in Vitria city. I was interested to understand how the references
to the ceramics artefact have been built and interpreted as well as the knowledge
rooted in the paneleiras community. These agentes interections and clashes with
the public sector and the market have also been studied. Thus, the process of the
cultural patrimonialization is a challenge to technicians and those in charge of the
heritage, because these registrations makes some cultural values worthwhile knowledge, celebrations, craftswork, places, expressions among others. This brings
about the brasilian State commitment to supporting, divulging and safeguarding
those practices and social representations.

Keywords: 1. Intangible Cultural Heritage; 2. Safeguard; 3. paneleiras of


Esprito Santo; 4. Craftsmanship; 5. Brazil.

A verdadeira atitude crtica, base da felicidade para o espectador


(descobrir a beleza), pedir obra-de-arte o que ela tem para
lhe dar e ver si ela o d com eficcia. Apenas isso. Exigir de um
vatap, que tenha gosto de feijoada o maior desacerto crtico, a
maior ladroeira esttica que se pode imaginar. Mrio de Andrade

SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................ 1
Goiabeiras atravs de seus quintais familiares............................................................. 9
CAPTULO 1 Patrimnio Cultural e Nao................................................................ 17
1.1.Temas instituidores da brasilidade: cultura, folclore e patrimnio...................... 25
1.2. A lgica dos formuladores da agncia de patrimnio: o anteprojeto de Mrio de
Andrade e o Decreto-lei 25/37 de Rodrigo M. F. de Andrade ................................... 37
CAPTULO 2 Elos do patrimnio: Luiz de Castro Faria e a preservao dos
monumentos arqueolgicos no Brasil. ........................................................................... 46
2.1. Quando o arquivo o campo............................................................................... 46
2.2. A preservao dos monumentos arqueolgicos no Brasil ................................... 53
CAPTULO 3 - A dimenso transnacional dos Patrimnios Culturais .......................... 68
3.1. Situando o debate: as agncias multilaterais e a salvaguarda do patrimnio
cultural imaterial......................................................................................................... 68
3.1.1. A participao do IPHAN na reunio de experts sobre Inventrio do
Patrimnio Cultural Intangvel (UNESCO, maro de 2005).................................. 81
CAPTULO 4 A Trajetria da Poltica de Patrimnio Imaterial no Brasil ................. 88
4.1. A nova fase de institucionalizao do patrimnio: a gesto Alosio Magalhes. 88
4.2. A semntica do intangvel na arena poltica do patrimnio cultural ................. 101
4.2.1. O Registro e o Inventrio Nacional de Referncias Culturais: as vrias fases
da pesquisa............................................................................................................ 109
4.3. O dossi de estudo das paneleiras de Goiabeiras: inventrio e registro............ 113
4.3.1. Os bens culturais associados: a moqueca, a torta capixaba e o congo Panela
de Barro. ............................................................................................................. 130
CAPTULO 5 Os modos de apropriao do Registro do Ofcio das Paneleiras de
Goiabeiras do Esprito Santo. ....................................................................................... 136
5.1. A localidade de Goiabeiras Velha: famlias tradicionais de paneleiras ligadas ao
ba(i)rro. ..................................................................................................................... 152
5.1.1. Os quintais tradicionais de Goiabeiras Velha............................................. 167
5.2. Associao das Paneleiras de Goiabeiras: tradio, produo e mercado......... 186
5.2.1. Aqui ns todos somos individuais .......................................................... 192
5.2.2. Panela da famlia, patrimnio da nao...................................................... 201
Consideraes Finais .................................................................................................... 222
Referncias Bibliogrficas............................................................................................ 232

APNDICE I - GUIA REVISTA DO PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO


NACIONAL. ndice cumulativo (1937-1990) ............................................................. 249
APNDICE II - LIST OF PARTICIPANTS of UNESCO Experts Meeting on
Inventorying Intangible Cultural Heritage. Paris, 17-18 March, 2005......................... 256
APNDICE III - INVENTRIOS E REGISTROS DO PATRIMNIO IMATERIAL
...................................................................................................................................... 259
APNDICE IV - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS DO INVENTRIO DE
REFERNCIAS CULTURAIS DAS PANELEIRAS ................................................. 264
APNDICE V - QUADRO SOBRE O GRUPO DE REFERNCIA: GENEALOGIA E
GRUPO FAMILIAR A QUE PERTENCE .................................................................. 271
ANEXOS ...................................................................................................................... 294

INTRODUO
Patrimnio imaterial, diversidade cultural, cultura popular estas noes
inter-relacionadas circulam amplamente, nos ltimos anos, em documentos oficiais
nacionais e internacionais, servindo para qualificar e legitimar programas, projetos e
polticas pblicas1. Sob uma auto-evidncia ou uma aparente transparncia de
significado recobrem, como sistema de valor e de referncia, um campo de
contradies discursivas, de interesses tericos, tcnicos e polticos que envolvem a
produo, o reconhecimento e a internalizao de signos distintivos e identitrios.
Em diversos momentos a idia de povo foi propalada com o sentido de origem e
sntese da nao moderna, e, nesses debates, o papel articulador dos Estados
Nacionais sustentou-se atravs do discurso ideolgico da unidade nacional. Pierre
Bourdieu explora a dimenso poltica e de uso sobre a categoria cultura popular,
desconstruindo concepes nominalistas e recupera historicamente essas questes. O
saber do povo2, revelador da ancestralidade e da tradio define-se em
meados do sculo XIX, como uma rea de conhecimento delineada no contexto da
redescoberta romntica do popular, do movimento europeu oitocentista
interessado nas curiosidades do primitivismo cultural3.
No Brasil, essa tradio compilatria instala-se mais claramente a partir da
gerao intelectual de Silvio Romero (1851-1914). Na literatura, discutia-se,
sobretudo, os debates sobre a raa e sobre a incorporao desses traos distintivos
nas letras e expresses. Com o surto do nacionalismo literrio, nas primeiras dcadas
do sculo XX, observou-se a expanso desse projeto de cultura nacional. Em
1

Institudo pelo Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000, o Registro de bens culturais de natureza
imaterial o instrumento legal do Estado brasileiro que reconhece e valoriza o Patrimnio Cultural
Imaterial. Associado ao Registro foi criado o Programa Nacional de Patrimnio Imaterial, responsvel por
viabilizar projetos de inventrio, identificao, documentao, salvaguarda e promoo da dimenso
imaterial do patrimnio cultural. A esse respeito ver IPHAN. O Registro do Patrimnio Imaterial:
dossi final das atividades da Comisso e do Grupo de Trabalho Patrimnio Imaterial. Braslia: MinC/
IPHAN, 2 ed., 2003.
2
O neologismo ingls folk-lore saber do povo cunhado por Williem John Thoms, em 1846, referia-se
a estudos de antiguidades populares" ou literatura popular. Cf. THOMPSON, E. P. Folklore,
Anthropology and Social History In: The Indian Historical Review, vol. III, n2. 1977.
3
Cf. BURKE, P. Cultura Popular na Idade Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 1989;
DAVIS, N. Z. O Povo e a Palavra Impressa. Culturas do Povo: sociedade e cultura no incio da Frana
moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 157-185. 1990; THOMPSON, E. P. Costumes em Comum:
Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998; THIESSE, A-M.
La Cration des Identits Nationales. Europe XVIII-XX sicle. Paris: Seuil. 1999.

nenhum outro perodo da nossa histria cultural discutiu-se com tanto entusiasmo a
noo de brasilidade. A redescoberta do Brasil, como era tratada por boa parte dos
intelectuais modernistas, inaugura a problemtica da brasilidade em suas dimenses
literria e artstica. Procuro entender de que modo propostas seminais de sua
abordagem sofreram transformaes e ressignificaes, desde o sculo XIX at a
atualidade, e, ao mesmo tempo, preservaram a memria de coordenadas
fundamentais para vises posteriores. Se, naquela poca, havia um sentimento de
que era preciso conhecer o Brasil, a histria no escrita, a tradio flutuante e
indecisa de nossas origens4, hoje, o desafio mapear a diversidade cultural, o
patrimnio imaterial do pas.
Em perodo to extenso, procuro, atravs de alguns recortes interpretativos,
identificar e relacionar os principais eixos de produo intelectual que objetivaram e
sustentaram a idia de um patrimnio nacional. Diferentes contextos polticos que
definiram projetos, interesses e prticas nesta rea j foram examinados em outros
trabalhos5. Preferi abordar o tema tomando como base autores ligados aos campos
disciplinares da histria e da antropologia, freqentemente mencionados em estudos
e em polticas institucionais de construo simblica da nao, como nos trabalhos
de Eric Hobsbawm, Benedict Anderson e Anne-Marie Thiesse dentre outros6.

ROMERO, S. Estudos sobre a poesia popular do Brasil (1870-1880). Introduo, captulos 1 e 2.


Petrpolis, 1977 (1a. ed. 1888). p. 38.
5
CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico
nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e II. Niteri, RJ: Universidade
Federal Fluminense, 1998; FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em Processo: trajetria da poltica
federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997; GONALVES, J. R. S. A
retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: editora UFRJ/ IPHAN,
1996; MALHANO, C. E. S. M. B. Da Materializao Legitimao do Passado: a monumentalidade
como metfora do Estado: 1920 1945. Rio de Janeiro: Lucerna/ Faperj, 2002. SANTOS, M. V. O tecido
do tempo: a idia de Patrimnio Cultural no Brasil (1920-1970). Tese de Doutorado. Braslia, Programa
de Ps-Graduao em Antropologia, UnB, 1992; RUBINO, S. B. As fachadas da Histria. Os
antecedentes, a criao e os trabalhos do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
1937/1968. Dissertao de Mestrado. Campinas, UNICAMP, 1992; CAVALCANTI, L. Os Modernistas
na Repartio. Rio de Janeiro: Pao Imperial, 1993.
6
RENAN, E. Que s una Nacin? In: BRAVO, A. F. (org.) La Invencin de la Nacin. Lecturas de la
identidad de Herder a Homi Bhabha. Buenos Aires: Manantial, 2000; BRAVO, A. F. Introduccin.
Ibid, 2000; MAUSS, M. La Natin. In: Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III, Barcelona: Barral, 1972
p. 275-327; HOBSBAWN, E. Naes e Nacionalismo desde 1780. 3 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2002; ELIAS, N. Uma digresso sobre o nacionalismo. Os alemes: a luta pelo poder e a evoluo do
habitus nos sculos XIX e XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1997; THIESSE, A-M. La Cration des Identits
Nationales (Europe XVIII-XX Sicle). Paris: ditions du Seuil, 1999. LESTOILE, B.; NEIBURG, F.;
SIGAUD, L. (orgs). Antropologia, Imprios e Estados Nacionais. FAPERJ. Rio de Janeiro: Relume
Dumar, 2002; CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos dualidade e polimorfia. In:
CHUVA, M. (org.) A Inveno do Patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. ANDERSON, B.

A idia de nao, desenhada no sculo XIX, como chama a ateno Thiesse7,


est ligada modernidade econmica e social; acompanha a transformao dos
modos de produo, o alargamento dos mercados, a intensificao das trocas
comerciais. Por outro lado, repousa sobre o primado de uma comunidade
atemporal cuja legitimidade reside na preservao de uma herana. Nessa tenso
complementar instaura-se a crena em uma fraternidade laica e, por conseguinte,
em uma solidariedade de princpio entre herdeiros de um mesmo legado, afirmando
a existncia de um interesse coletivo. Essa dupla concepo poltica e cultural da
nao moderna, que prope compreender a nao como um plebiscito de todos os
dias, ao mesmo tempo em que centra no domnio da poltica, visa singularizar e
distinguir as naes atravs dos seus traos distintivos e padres culturais.
Em um primeiro momento, essa idia esteve ligada a territrios e a fronteiras
materiais e simblicas muito bem delimitados. Isso provocou uma busca pela
uniformidade e padronizao, dentro de um contexto internacional, fazendo uso da
cultura popular como um de seus vetores de identidade. Portanto, nesse modelo
homogeneizador da ideologia dos estados nacionais, a cultura popular representava o
lado criativo e inusitado do carter nacional. Outras vezes, o sentido do popular
abrangeu fatos e significados em geral desqualificados, inseridos na lgica da razo
mtica8, que escapam a uma classificao e a uma explicao imediata. Segundo
Thiesse (1999), a partir da moderna noo de nao que se pode falar em um
check-list identitrio para essas comunidades imaginadas9.
No Brasil, ao longo do sculo XX, alm de fonte de investigao e objeto de
interesse dos estudiosos da cultura, as manifestaes populares acabam elas prprias
criando o seu campo de referncia com os estudos de folclore e sua posterior
institucionalizao na dcada de 194010. Cavalcanti et al. (2002) analisam a
construo desse campo de estudo e a importncia de Slvio Romero, Amadeu
Amaral e Mrio de Andrade para o desenvolvimento da disciplina, chamando
Introduo. In: Balakrishnan, G. (org.) Um mapa da questo nacional. Rio de Janeiro: Contraponto,
2000. ANDERSON, B. Nao e Conscincia Nacional. So Paulo: tica, 1989.
7
THIESSE, A-M. La Cration des Identits Nationales. Europe XVIII-XX sicle. Paris: Seuil. 1999, p.
16.
8
Cf. BOURDIEU, P. Vous Avez Dit Populaire? Actes de la Recherce de Sciences Sociales. 46:98105, 1983.
9
THIESSE, op. cit.; ANDERSON, op. cit..
10
VILHENA, L. R. Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro:
Funarte/ FGV, 1997.

ateno para a atuao desses personagens e para a estruturao das cincias sociais
no Brasil11. Mrio de Andrade, a referncia mxima do modernismo brasileiro,
argiu a tradio compilatria dos folcloristas que o antecedera, defendendo a
investigao cientfica do fato folclrico. Concomitante a todo esse processo de
consolidao de um campo de estudos, tendo a figura de Mrio de Andrade no
centro da encruzilhada, iniciou-se um longo debate sobre a questo da aplicao do
mtodo etnogrfico nas pesquisas sobre o folclore. Nos Congressos de Folclore
organizados pelo movimento intelectual que se institucionalizou como Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro aumentavam as crticas ao amadorismo das descries
que priorizavam as aes de coleta e classificao, deixando a interpretao e os
procedimentos cientficos para a pesquisa etnogrfica. A problemtica que se
anunciava est relacionada viso esttica que embasa a idia de cultura,
profundamente enraizada no senso comum, e que se manifesta com freqncia pela
busca da autenticidade. Esta questo foi, por muitos anos, o eixo das discusses do
campo de estudos do folclore e do campo temtico do patrimnio.
Os debates nos fruns internacionais conduzidos pela UNESCO aprimoraram
a noo de autenticidade em reunies especficas sobre o tema, como se observa
na Carta de Braslia - documento regional do Cone Sul sobre autenticidade,
Braslia, 199512. Tais debates, liderados pelos arquitetos, dominaram a cena mundial
e repercutiram no Brasil e em toda Amrica Latina. Hoje, incorporou-se ao conceito
da autenticidade a dinmica prpria dos processos mutveis das identidades sociais,
que pode adaptar, valorizar, desvalorizar e revalorizar os aspectos formais e os
contedos simblicos [desses] patrimnios13. A ampliao dessa noo deve-se, em
grande parte, incorporao dos temas e problemas da antropologia nesse campo
temtico14.
11

CAVALCANTI, M. L. et al. Os Estudos de Folclore no Brasil. In: Seminrio Folclore e Cultura


Popular. Srie Encontros e Estudos n. 1, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, IBAC, 1992, p.
101.
12
Para a definio de autenticidade Cf: IPHAN. Cartas Patrimoniais. Cury, I. (org.). 3a. ed. Rio de
Janeiro: IPHAN, 2004, p. 325.
13
Ibid., p. 325.
14
Cf. GONCALVES, J. R. S. Em Busca da Autenticidade: ideologias culturais e concepes de nao
no Brasil. In: GONALVES, M. A.; VILLAS BOAS, G. (Orgs.). O Brasil na Virada do Sculo: o
debate dos Cientistas Sociais. 1a ed. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1995, v. 1, p. 235-256.
GONALVES, J. R. S. Autenticidade, Memria e Ideologias Nacionais: o problema dos patrimnios
culturais. Estudos Histricos. v.1. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, n. 2, 1988, p. 264-275.

As sucessivas reunies dos comits que procuram aperfeioar os


instrumentos legais enfatizam que o termo autenticidade, tal como aplicado ao
patrimnio material, no adequado para identificar e salvaguardar o patrimnio
cultural imaterial, considerando que este constantemente recriado15. O conceito de
cultura que perpassa esses instrumentos internacionais vai sendo ressignificado
pelas agncias multilaterais que planejam e organizam as polticas do chamado
patrimnio cultural. A secularizao desses debates consolidou o campo de
atuao da antropologia em relao aos demais campos disciplinares. Hoje, existe
um consenso sobre a relao entre os debates tericos do campo do patrimnio
cultural imaterial e da antropologia, fundamentados por um conceito de cultura de
base antropolgica16.
Segundo definio da UNESCO (Organizao das Naes Unidas para a
Educao, a Cincia e a Cultura),
a cultura pode ser considerada atualmente como o conjunto dos
traos distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos
que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Ela engloba,
alm das artes e das letras, os modos de vida, os direitos
fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as
tradies e as crenas17.

Nesta tese procuro fazer uso da antropologia, tanto dos seus mtodos de
pesquisa, quanto de seu arsenal terico, para analisar o discurso do patrimnio e de
seu campo de atuao. Mariza Corra18 revela o quanto so ainda escassas as
anlises sobre as sociedades cientficas ligadas disciplina antropolgica destaco
aqui a Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), criada por Mrio de Andrade em
1936 e ao contexto institucional no qual produziram suas pesquisas, indicando que
essas associaes foram criadas no perodo em que as cincias sociais comeavam a
se institucionalizar. Corra discute que seria interessante compar-las a outras
instituies criadas por iniciativa dos agentes do Estado, especialmente no contexto

15

Declarao de Yamato sobre enfoques integrados para a salvaguarda do patrimnio material e


imaterial. Nara, Japo, 2004. Apud. IEP. Patrimnio Cultural Imaterial e povos indgenas.
Dominique Tilkin Gallois (org.). So Paulo: IEP, 2006.
16
A origem da definio cientfica de cultura surge com Tylor, em 1871, que a considera um todo
complexo que inclui conhecimentos, crenas, artes, moral, lei, costumes, ou qualquer outra capacidade ou
hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.
17
IPHAN. In: CURY, I. (org.). Cartas Patrimoniais. 3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p.272.
18
CORRA, M. Patrimnio da Nao: os ndios e a histria da Antropologia. Revista Brasileira de
Cincias Sociais. So Paulo: Vol. 14, n. 40, jun. 1999.

do nacionalismo autoritrio de Vargas, como o caso do Servio do Patrimnio


Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), criado em 1937. Na verdade, esta
preocupao j havia sido levantada por Luiz de Castro Faria que demanda, com
relao criao do Servio do Patrimnio, uma anlise de situao em que fiquem
explcitos os contextos entre agentes e agncias, todos marcados pela questo do
nacionalismo como poltica de Estado19.
Tal linha proposta por esses autores revela implicaes, como se ver, para a
prpria constituio das cincias sociais no Brasil e para o entendimento do
patrimnio histrico e artstico, principalmente atravs dos trabalhos coordenados
por Mrio de Andrade na Sociedade de Etnografia e Folclore e da sua interlocuo
com antroplogos da Universidade de So Paulo e do Museu Nacional do Rio de
Janeiro e com Rodrigo Melo Franco de Andrade no SPHAN. Portanto, o que se
pretende demonstrar neste trabalho que, contrariamente ao consenso dominante na
literatura pertinente (que demarca a dcada de 1970 como a entrada dos
antroplogos nesse campo temtico), os debates antropolgicos foram estruturantes
na definio de sentidos e propostas de patrimnio cultural no pas, desde as dcadas
de 30 e 4020.
A construo, ao longo do sculo XX, de uma viso mais abrangente de
patrimnio, resultou na conceituao da dimenso imaterial do patrimnio cultural,
criando polticas oficiais articuladas internacionalmente, instrumentos de pesquisa e
legislao especfica sobre a matria, com a colaborao de antroplogos. O
patrimnio imaterial se constitui de processos e de prticas sociais e, por esse
motivo, necessita de um enfoque metodolgico de proteo e salvaguarda
diferenciado do patrimnio material: novas medidas de registro e documentao so
necessrias para a sua identificao, difuso e preservao. Ademais, os novos
19

CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos - dualidade e polimorfia. In: A Inveno do


Patrimnio. Mrcia Chuva (org.). MinC: IPHAN. 1995. p. 29.
20
Adlia Ribeiro, ao traar a trajetria intelectual de Helosa Alberto Torres, Diretora do Museu Nacional
do Rio de Janeiro e Membro do Conselho Consultivo do ento SPHAN, nas dcadas de 1930 e 1940,
revela que o nome da antroploga esteve associado ao processo de formulao e implementao de uma
concepo de patrimnio histrico e artstico por meio da qual a moderna identidade nacional brasileira
veio a ser representada ao longo das ltimas dcadas. Apesar de possuir uma posio de prestgio no
campo intelectual, as anlises sobre a participao de Heloisa Alberto Torres no movimento de
preservao de bens culturais liderado pelo SPHAN tendem a omitir o nome daquela que foi a mo
direita de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Cf. RIBEIRO, A. Heloisa Alberto Torres e Marina So
Paulo de Vasconcellos: Entrelaamento de crculos e formao das cincias sociais na cidade do Rio de
Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2000, p. 108, 115.

mecanismos de democratizao da informao criam uma srie de facilidades para a


participao dos grupos e movimentos sociais nesses processos de patrimonializao
da sua cultura, tais como a anuncia prvia, que pressupe reunies com
representantes e porta-vozes, e uma abordagem de carter etnogrfico. Alm
disso, necessrio estabelecer uma rede entre parcerias institucionais e iniciativas
locais que devem ser estimuladas e postas para dialogar, pois sem o apoio desses
grupos o processo do registro e documentao das referncias culturais torna-se
inexeqvel.
Na tese darei especial ateno metodologia do Inventrio Nacional de
Referncias Culturais (INRC/IPHAN), instrumento de poltica de preservao do
patrimnio cultural imaterial, com foco nas dinmicas culturais locais. Mas foi na
instruo do processo de registro do ofcio de Paneleira de Goiabeiras que obtive a
maior parte dados sobre essa metodologia de pesquisa. Procuro levar em conta na
anlise a dimenso poltica desse procedimento tcnico: quem que tem autoridade
e legitimidade para selecionar o que deve ser preservado? A partir de que ponto de
vista? Em nome de que interesses e de que grupos? Para tal, investigo, de maneira
mais detida, o primeiro Registro do patrimnio cultural imaterial no Brasil, o ofcio
de paneleira, na localidade de Goiabeiras Velha, bairro perifrico da cidade Vitria,
capital do estado do Esprito Santo. As informaes produzidas, sistematizadas e
documentadas pela metodologia do Inventrio Nacional de Referncias Culturais21
foram o ponto de partida de meu trabalho de campo. Vale lembrar que a noo de
referncia cultural, cunhada nos anos de 1970 e 1980, atravs da experincia do
Centro Nacional de Referncia Cultural, mais abrangente que a do prprio
patrimnio imaterial, porque tambm est referida a memrias, lugares e
edificaes. Tomada no contexto de produo das tradicionais panelas de barro de
Goiabeiras, implicou na identificao dos principais executores daquele ofcio, de
suas famlias e de seus locais de trabalho.
Interessava-me cotejar as informaes contidas nas fichas e questionrios de
identificao desse instrumento da poltica de preservao do patrimnio cultural
imaterial, fazendo uma releitura do dossi de estudo sobre o registro do ofcio das
paneleira de Goiabeiras, a partir dos dados coletados em campo. As perguntas
21

IPHAN/ DID. Inventrio Nacional de Referncias Culturais. Manual de aplicao. Braslia: IPHAN,
2000.

centrais eram: quais foram os procedimentos para a definio do registro e como se


deu a apropriao22, por parte das paneleiras, desse processo que requalifica saberes
locais em um bem comum como patrimnio cultural do Brasil? Questes relativas
ao aprendizado do ofcio, sua transmisso e recepo, tcnica de confeco,
dinmica do trabalho, produo, tradio, s famlias tradicionais e ao parentesco
foram constantemente retomadas nas idas ao campo.

A divulgao do ttulo e o marketing das panelas

Foram feitas cinco visitas a campo, realizadas no perodo de maio de 2005 a


dezembro de 2007. No ano de 2005, estive duas vezes em Goiabeiras Velha. A
primeira, em maio, logo aps o meu exame de qualificao de projeto, quando
estabeleci os primeiros contatos com as famlias que trabalhavam no galpo da
Associao das Paneleiras de Goiabeiras23. A partir da, estruturei o meu grupo de
referncia, levando em conta as famlias identificadas pelo instrumento de pesquisa
do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), o Inventrio
Nacional de Referncias Culturais doravante muitas vezes referido apenas como
INRC sistematizado no primeiro e parte do segundo semestres de 2002, segundo
as fichas e questionrios de identificao e de localidade que datam de agosto e
setembro. Observei que muitas pessoas que trabalhavam no galpo possuam os
22

Cf. CHARTIER, R. A noo de apropriao central para esse trabalho, particularmente, aquela
empregada por Roger Chartier em seu texto Cultura Popular: revisando um conceito historiogrfico.
Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n 16, 1995, p. 179-192.
23
As demais idas a campo ocorreram entre os meses de novembro a janeiro, tanto por questes
operacionais, quanto por ser a poca de maior fluxo turstico em Vitria, e quando o galpo da
Associao recebe mais turistas e encomendas. No quinto captulo desta tese descreverei o galpo, tanto a
estrutura fsica quanto as relaes sociais que dali pude apreender.

sobrenomes das famlias tradicionais ligadas ao ofcio. Porm, havia algumas


lacunas, como os grupos familiares dos Barboza, dos Ribeiro e dos Rodrigues, que,
apesar de terem sido identificados pelo IPHAN, no trabalhavam no galpo, mas no
quintal de suas casas. Era preciso, pois, visitar esses quintais24.

Goiabeiras atravs de seus quintais familiares


Desde minha chegada ao galpo da Associao das Paneleiras de Goiabeiras
(APG), interessei-me pelas histrias das antigas famlias de paneleiras e de seus
quintais. Havia duas senhoras que estavam no galpo desde a sua fundao, dona
Domingas Corra da Vitria Fernandes, tambm conhecida por Iraci, e dona
Bernanci Gomes Ferreira25, com quem estabeleci os primeiros contatos. Alm delas,
muitas outras participaram da Associao26 e haviam voltado para os seus
respectivos quintais, independente de possurem ou no espao para a queima. Uma
srie de narrativas contraditrias justificava as razes desse regresso, apesar de
variarem de acordo com a posio de cada ncleo de produo familiar. Ou seja, de
um modo geral, aquelas paneleiras que mantiveram seus espaos de queima e uma
escala de produo, aliado a um portflio de compradores, no interromperam as
suas atividades. Outras, no entanto, mantiveram-se margem de todo esse processo,
apesar de ter aumentado a demanda de panelas de Goiabeiras, principalmente com a
sua titulao como Patrimnio Cultural do Brasil. Segundo as prprias paneleiras do
galpo, aumentou a divulgao da qualidade do produto e de seu diferencial perante
as similares no estado.

24

Conforme Simoni Guedes, a categoria quintal recobre os conjuntos de casas que foram construdas ao
longo dos anos num mesmo lote ou terreno, a partir de uma casa inicial, em que o proprietrio realiza ele
mesmo ou permite a realizao de novas construes. GUEDES, S. L. Redes de Parentesco e
Considerao entre Trabalhadores Urbanos: tecendo relaes a partir de quintais. Caderno do Centro de
Recursos Humanos. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Universidade Federal da Bahia.
Salvador. N. 29; 1998. p. 189-208. p. 198.
25
No decorrer da pesquisa de campo, essas senhoras se afastaram do galpo por problemas de sade.
Dona Domingas teve um derrame e as seqelas a impossibilitou de continuar no galpo da associao. J
dona Bernanci, mais recentemente, alegava fortes dores nas pernas decorrentes do cansao de muitas
horas em p. O agravamento do problema de sade dessas senhoras um desafio para a boa consecuo
das aes de salvaguarda. Muitas vezes fui questionada por alguns interlocutores sobre a necessidade de
polticas pblicas integradas, como a assistncia mdica e previdncia social, que trouxessem benefcios
imediatos para essas senhoras, que, afinal, eram patrimnio histrico do estado, como costumavam me
dizer.
26
A Associao das Paneleiras de Goiabeiras foi fundada em maro de 1987.

10

Quanto aos quintais, observei diversas modalidades de ocupao do territrio


e variaes relacionadas ao pertencimento s famlias tradicionais de Goiabeiras.
Havia em partes de Goiabeiras reas de ocupao mais recente, como a que aparece
identificada como a rua dos italianos, um trecho do bairro habitado por famlias e
descendentes de italianos. Os lotes apresentam formas e tamanhos variados e a
proximidade entre as casas, algumas situadas lado a lado, indica a concentrao de
pessoas de uma mesma famlia circunscrita aquele trecho27.
As circunstncias que justificavam a criao da Associao das Paneleiras de
Goiabeiras (APG) limitavam-se desapropriao do barreiro e perda de espao
nos quintais. No final da dcada de 1980, a prefeitura aterrou uma rea do porto de
Goiabeiras e construiu um total de doze cmodos para que as paneleiras que haviam
perdido suas reas de trabalho (fabricao, queima e estoque) pudessem ento
continuar a produzir sua cermica tradicional. Foram essas senhoras, portanto, as
primeiras a ocupar os quartinhos com pouco mais de trs metros quadrados, sem
ventilao e com apenas uma porta, construdos em alvenaria, rebocados e cobertos
com telhas de amianto. Hoje, funcionam como depsito de peas prontas, queimadas
e embaladas. Tais locais j no pertencem mais quelas senhoras, mas s suas filhas
e filhos, netos e sobrinhos. Dona Domingas (Iraci) passou as chaves para suas trs
filhas, neto e neta. Bernanci ao sair do galpo deixou a sua filha Inete e o filho
Lailson em seu lugar. A finada Dona Laurinda Lucidato, que ocupou tambm um
desses pequenos almoxarifados, o repassou para a filha Laureci e suas netas. Dona
Melchiadia Alves Corra fez o mesmo com suas sobrinhas Marinete e Berencia.
Acrescentam-se, ainda, os nomes de dona Palmira, dona Letcia, dona Silvana Rosa.
Depois chegaram as outras filhas e netos de dona Laurinda, as filhas de dona
Palmira, os irmos e cunhadas de Marinete e Berencia, e, num instante, todos os
cmodos foram ocupados.
Dias (2006) descreve os primeiros anos de organizao do galpo da
Associao e observa que cada pequeno agrupamento de trabalho formado por
um ncleo familiar. Algumas trabalham sozinhas, outras tm os filhos ao redor. A

27

O trecho compreende algumas casas situadas prximas umas as outras e que fazem parte de um mesmo
lote ou terreno, onde moram famlias ligadas por laos de parentesco (por consanginidade, ou por
afinidade).

11

maioria est do lado de fora, outras se resguardam nos quartinhos.28 A autora


surpreende-se ao retornar pela segunda vez ao lugar, em 1993, pois havia ocorrido
uma grande mudana na ocupao do espao. As mulheres afastaram-se de seus
lugares individuais e ocuparam o ptio com toscas bancadas de madeira.29 O galpo
expandiu-se rapidamente e as bancadas foram sendo ocupadas por duas ou mais
pessoas da mesma famlia, que passaram a trabalhar em p e em regime de tempo
integral.
Muitas dessas senhoras alegaram falta de espao para continuarem a trabalhar
vontade, como estavam acostumadas em seus quintais, e retornaram para as suas
casas. Dona Letcia Pinto, dona Laurinda Lucidato e dona Silvana Rosa j bastante
idosas, todas com mais de oitenta anos, pararam de fabricar panela30. Dona Lcia
Nascimento Corra que sempre trabalhou em seu quintal tambm parou de produzir.
Dona Palmira passou a fazer em seu quintal, mas reclama da falta de comprador.
Dona Melchiadia no interrompeu a sua produo. Ela, sua filha Alceli e filho
Ademilson do conta das encomendas que chegam para a famlia. Dividem-se
segundo a quantidade, o formato e o tamanho das peas31. Os prazos de entrega das
encomendas esto condicionados aos fatores climticos. Em dias muito midos ou
chuvosos as panelas demoram a secar e isso compromete a etapa da queima. Nessa
delicada relao entre as condies climatolgicas, a quantidade de peas
encomendadas e prazo para entrega a produo das panelas no quintal de dona
Melchiadia aumentou. Melchiadia e Alceli alegam que as panelas de Goiabeiras j
so muito reconhecidas e que o Registro do IPHAN veio atestar esse
reconhecimento. O uso do termo reconhecimento pelas prprias paneleiras, no caso
da fala de Alceli, remete a um discurso mais articulado sua posio de expresidente da associao das paneleiras, como veremos ao tratar da organizao
burocrtica do galpo.

28

DIAS, C. Panela de Barro Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio de
Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006, P. 16. Grifos do autor.
29
Ibid., p. 17.
30
Dona Laurinda Lucidato e dona Silvana Rosa vieram a falecer no incio da minha pesquisa de campo.
31
Ademilson costuma pegar peas diferentes, como a travessa em forma de peixe, a frma de pizza, o
fogareiro e a churrasqueira. Me e filha j preferem as formas tradicionais da frigideira e das panelas para
arroz e piro. Todos, porm, alegam fazer todo o tipo de peas, apesar de reconhecerem que algumas so
mais difceis.

12

Comecei visitando os quintais daquelas que mantiveram algum tipo de


vnculo com o processo de produo de panela de barro. Uma primeira constatao
foi a diversidade de situaes encontradas. H quintais que perderam todo o espao
para confeco e queima das peas, enquanto outros preservaram seus espaos de
queima e armazenamento de peas e de matria-prima, como a mesa de trabalho e o
canto do barro. Observei que em alguns deles a produo havia decado, como nos
casos da dona Palmira e dona Elizete, por razes que sero discutidas no quinto
captulo da tese. Noutros, porm, a fabricao era contnua e as encomendas
seguiam certa regularidade.
As paneleiras de fundo de quintal foram as que mais sentiram a mo invisvel
das foras de mercado, pois tiveram que acompanhar as transformaes no ritmo da
produo para atender a uma demanda varivel. Fregus antigo, hoje, muito
raro. Todas so unnimes em afirmar que cresceu a demanda por panelas dentro do
galpo da associao, bem como aumentaram os preos dos insumos bsicos para a
sua produo: o preo da bola de argila, da tinta, da mo de obra dos auxiliares
(tirador de barro, alisador, tirador de panela e aoitador). Com isso, a escala de
produo familiar no consegue fazer frente ao galpo, que se tornou a vitrine do
ofcio, apropriando-me do termo cunhado no livro do IPHAN, atraindo um nmero
cada vez maior de turistas, donos de restaurantes, lojistas e atravessadores em geral.
Alm disso, as parcerias entre a associao e as secretarias de governo e os apoios
dados pelo SEBRAE e IPHAN aumentaram a visibilidade do galpo em detrimento
da produo dos quintais. Ademais, as paneleiras de fundo de quintal se ressentem
por no receberem a mesma quantidade e regularidade de encomendas da associao
e costumam dizer que mesmo no galpo h uma disputa acirrada por clientes e
encomendas, referindo-se, na maioria das vezes, a alguma contenda entre primos ou
primas.
Nos quintais, fiz o recenseamento das casas e das pessoas que nelas
residiam. Tambm foram feitos os mapas genealgicos das famlias e traadas
algumas relaes de parentesco. Neste mapa das famlias tradicionais de
Goiabeiras Velha32 foram observadas unies matrimoniais entre os Alves e os
32

Essa expresso foi utilizada por uma das minhas interlocutoras em campo, Izabel Corra Campos,
quando lhe perguntava sobre o seu grupo familiar para montar o quadro de referncia. Izabel sintetizou
com essa frase o que eu estava procurando fazer na localidade.

13

Corra, os Lucidato e os da Vitria, os Fernandes e os da Vitria, os Nascimento e


os Rodrigues, os Barboza e os Salles, confirmando os dados levantados nas fichas
do Inventrio Nacional de Referncias Culturais do IPHAN de que havia fortes laos
de parentesco entre as famlias tradicionais. Na reconstruo dessa cartografia social
do bairro de Goiabeiras Velha, foram includas famlias que no haviam sido
contempladas pelo INRC, como o caso da famlia Salles. Apesar de no constarem
nas fichas de identificao do IPHAN como uma das nove famlias mais antigas
envolvidas com o ofcio, os Salles foram considerados gente antiga para o grupo
de referncia com o qual eu trabalhava. J os Rodrigues foram includos por relaes
de casamento com os Nascimento.
No galpo da Associao das Paneleiras de Goiabeiras, o espao foi
estruturalmente organizado em funo das famlias, porm a partir de uma lgica
mais empresarial: respeito ao horrio de funcionamento, desempenho de uma
nica funo voltada para a confeco e venda de panelas de barro33, relao salarial
com os auxiliares e mercantil com os clientes. Nesse sentido, como se d a produo
e a troca de mercadorias num contexto de economia cada vez mais autonomizada e
inventivadora de desigualdades?
Em novembro de 2006, voltei para acompanhar uma oficina de
Salvaguarda34 promovida pelo IPHAN35 e a XV Festa das Paneleiras36, evento anual
patrocinado pela prefeitura de Vitria. Nesse perodo, realizei novas entrevistas com
as paneleiras que constituam o grupo de referncia e acompanhei a produo das
panelas nos quintais e tambm no galpo da Associao. Foram realizados registros
fotogrficos, tanto das casas e dos quintais, quanto do galpo. Alm disso,
fotografei as ruas do bairro e as festas de que participei no perodo de minha estada

33

Utilizo a categoria panela de barro para designar o conjunto de artefatos cermicos utilitrios
produzidos na localidade de Goiabeiras Velha.
34
Os planos de salvaguarda objetivam desenvolver, implantar e acompanhar aes que contribuam para a
melhoria das condies de vida dos grupos, comunidades e expresses registradas, e constituam suporte
produo, reproduo e transmisso de bens culturais de natureza imaterial.
35
No ltimo captulo sero relatados os principais temas abordados nessas oficinas, bem como quantos e
quem foram os seus participantes. A questo da salvaguarda ser retomada nas consideraes finais deste
trabalho.
36
A festa acontecia h treze anos, prxima a data de 7 de julho, institudo pela prefeitura de Vitria como
o Dia da Paneleira (Lei n 70/91). A esse respeito ver trabalho: DIAS, C. A Tradio Nossa essa,
Fazer Panela Preta: produo material, identidade e transformaes sociais entre as artess de
Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ/EBA, 1999. DIAS, C. Panela de Barro
Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006.

14

em Goiabeiras Velha. Ao todo, 957 fotos e 30 horas de entrevistas37.


Retornei a campo mais uma vez em novembro de 2007 para complementao
de dados. Mais uma vez, os quintais tradicionais foram o foco da minha ateno.
Quintal, no contexto daquela comunidade, no deve ser entendido como um mero
espao fsico, mas como espao de relaes sociais e de estruturao de laos de
comunidade e de parentesco; portanto, aqui ser tratado de modo estrutural, na
maneira como se articula com outros quintais e com o galpo da Associao das
Paneleiras. Das famlias que constituem meu grupo de referncia, visitei os seis
quintais que ainda possuem espao para queima, estocagem das matrias-primas e
armazenamento das peas para comercializao. So eles: os quintais de Jenete
Alves Rodrigues, Maria da Conceio Gomes Barboza, Ilza dos Santos Barboza,
Elizete Salles dos Santos, Margarida Lucidato Ribeiro e Melchiadia Alves Corra da
Vitria Rodrigues.

Esta tese pretende dar uma contribuio aos estudos de poltica e gesto do
patrimnio cultural. O tema se insere nos debates contemporneos sobre patrimnio
cultural imaterial e procura construir um panorama de como se constituram e se
consolidaram instrumentos polticos e tcnicos de acautelamento, referidos na Carta
Constitucional de 1988 e estabelecidos em legislao complementar (Decreto
3.5551/2000). Pretendeu-se incorporar anlise modos de apropriao dessas
polticas por um grupo social - o das paneleiras de Goiabeiras do Esprito Santo que recebeu, em novembro de 2002, o ttulo de Patrimnio Cultural do Brasil.
Vale observar que esta tese no se restringe ao trabalho de campo em
Goiabeiras Velha. A pesquisa em arquivos Noronha Santos/IPHAN-MinC e Luiz
de Castro Faria/MAST-CNPq revelou-se fundamental para restituir a rede de
relaes entre agentes e agncias que configuram os debates sobre as polticas
37

Fao constar que tive roubadas onze fitas k7s, com entrevistas de campo (registro de ocorrncia n 02004577/2007, 20a Delegacia de Polcia). Esse triste relato de uma crnica carioca, dramatizada no bairro de
Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, em agosto de 2007, teve conseqncias, deixando algumas
questes em aberto, lacunas nas sries de dados para o exerccio interpretativo. Pretendo retornar a
campo, ainda neste primeiro semestre de 2008, com o intuito de checar e complementar meu material de
pesquisa.

15

nacionais de patrimnio cultural, ao longo da histria institucional do IPHAN38.


Pretende-se verificar a relao entre os discursos institucionais e acadmicos em
jogo nos processo contemporneos de registro de saberes e prticas tradicionais e
como essa idia de patrimonializao da cultura entendida, manipulada e
apropriada por um grupo social que recebeu a titulao de patrimnio Cultural do
Brasil.
O primeiro captulo recupera algumas idias centrais sobre patrimnio e
nao. Na inveno do mundo moderno, os discursos sobre patrimnio se constroem
como afirmao identitria e freqentemente associado a uma realidade nacional.
Os modernistas brasileiros lanaram-se na redescoberta do Brasil para renovarem
as suas produes intelectuais e artsticas. Esse movimento intelectual formulou as
bases da poltica de patrimnio na dcada de 1930.
No segundo captulo, a pesquisa no arquivo central do IPHAN e no arquivo
pessoal do professor Luiz de Castro Faria, ambos no Rio de Janeiro, demonstram
que a relao patrimnio-antropologia anterior dcada de 1970. Seguindo
LEstoile et al. (2002), procuro indicar como a a inscrio da antropologia no
campo das polticas de estado fornece uma pista para a compreenso da emergncia
de diferentes tradies acadmicas nacionais39. A legislao de arqueologia impe
alguns desafios conceituais e metodolgicos no registro e cadastramento dos stios
arqueolgicos, flexibilizando as fronteiras do patrimnio cultural nacional.
O terceiro captulo trata da redefinio do debate do patrimnio em sua
dimenso internacional. Marcel Mauss, em seu ensaio sobre a nao, chamava a
ateno para esses fenmenos intersociais, cada vez mais numerosos e
importantes40. Nesse captulo pretendo traar um panorama das agncias
38

Em setenta anos de atuao, a instituio passou por uma srie de reorganizaes administrativas
refletidas em sua nomenclatura. Em 1937, a Lei 378, de 13/01/1937 cria o Servio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional (SPHAN) e o Decreto-lei 25, de 30/11/1937 organiza a proteo do
patrimnio histrico e artstico nacional, analisado no primeiro captulo da tese. Em 1946, o Servio de
Patrimnio passa a se denominar Departamento de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, DPHAN,
que permanece com essa nomenclatura at 1970, quando passa a Instituto (IPHAN) como rgo
autnomo da estrutura administrativa. No quarto captulo, voltarei a discutir esses rearranjos
institucionais.
39
LESTOILE, B. Antropologia, imprios e estados nacionais: uma abordagem comparativa. In:
LESTOILE B.; NEIBURG, F.; SIGAUD, L. (orgs.) Antropologia, Imprios e Estados Nacionais. Rio
de Janeiro: Relume Dumar/FAPERJ, 2002, p. 30.
40
MAUSS, M. La Natin. In: Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III, Barcelona: Barral, 1972. p.
306, 308.

16

internacionais em particular, UNESCO e dos dispositivos que orientam o debate


sobre o patrimnio em escala mundial. A ratificao da Conveno da UNESCO
sobre Patrimnio Cultural Imaterial alarga a noo de patrimnio aos ritos, costumes
e campos dos saberes tradicionais. O IPHAN tem avanado nesse debate nos ltimos
anos, participando dos fruns internacionais. Em 2005, foi convidado pela UNESCO
a apresentar a experincia brasileira de inventrio e registro do patrimnio imaterial.
O quarto captulo procura situar o leitor nos debates que antecederam as
polticas de patrimnio imaterial, apresentando a experincia seminal do Centro
Nacional de Referncia Cultural e da Fundao Nacional Pr-Memria. Alm disso,
novas categorias, idias e conceitos foram se redesenhando nesse espao social, com
a incorporao de outras instituies e mediadores culturais nos debates dos anos de
1980 e 1990. Por fim, toma-se o primeiro dossi de registro do patrimnio imaterial
do IPHAN, concludo em setembro de 2002, o ofcio de paneleira do Esprito Santo,
no sentido de compreend-lo como espao de negociao e de flexibilizao das
fronteiras desse debate.
O quinto e ltimo captulo estabelece um dilogo crtico com o anterior ao
refletir sobre a apropriao do registro pelo grupo que recebeu essa titulao. A
partir dos dados coletados em campo e de pesquisas etnogrficas anteriores, observo
no contexto social de produo familiar das panelas de barro, como esses agentes
sociais locais compreendem, manipulam e se apropriam do processo de registro. Um
dos principais efeitos da valorizao das panelas de barro no mercado de bens
simblicos refere-se ao aumento da demanda pelo produto, e, conseqentemente,
disputa por clientes dentro do Galpo da Associao das Paneleiras. Os
compradores so variados e as encomendas chegam de todos os estados brasileiros.
Eu mesma pude presenciar alguns pedidos de mais de quinhentas peas, para
restaurantes na Bahia, ou kits de brinde para empresas em Belm e Rio de Janeiro,
informando um raio de distribuio bastante abrangente. Nesse sentido, o processo
de patrimonializao da cultura constitui um desafio para tcnicos e gestores da
agncia de patrimnio, pois o ato administrativo do registro produz visibilidade
sobre essa natureza de bem cultural, gerando compromisso poltico do Estado
brasileiro no que tange ao fomento, difuso e salvaguarda dessas manifestaes
culturais (conhecimentos, tcnicas e representaes).

17

CAPTULO 1 Patrimnio Cultural e Nao


Tratar de maneira articulada as idias de nao, territrio e identidade com a
de patrimnio significa, primeiramente, reconhecer o contexto histrico particular
em que se produziram tais conceitos. Foram os tericos do Estado nacional moderno
os primeiros a estabelecerem critrios para identificar o povo e a nao, criando
novas relaes entre uma noo e outra, ao vincularem uma populao a um
territrio geograficamente demarcado, destacando-se os costumes e as tradies.
Tais critrios, intensamente debatidos na Europa no sculo XIX, calaram-se em um
conjunto de elementos afirmadores das identidades e das fronteiras nacionais.
Etnicidade, lngua, religio, paisagens e histria so articulados e validados por uma
crena na herana comum de um patrimnio de todos, indiviso, estruturante e
estruturado como referenciais da nao41. Os patrimnios culturais so, ento,
celebrados atravs de marcas identitrias, em oposio a outros repertrios
simblicos internacionais, reunindo monumentos (edificados e naturais), paisagens e
tipos humanos considerados caractersticos, alm das especificidades culinrias,
indumentrias e expresses culturais. A idia de nao como comunidade atemporal
o referente assegurador que permite a afirmao de uma continuidade cultural para
alm das mudanas sociais42.
A origem da noo de patrimnio est ancorada no surgimento dos Estados
nacionais modernos e no processo de constituio da nao. Franoise Choay43
descreve a proteo do patrimnio francs como uma atitude de conteno aos
saques e confiscos dos bens da Nobreza e do Clero em meio Revoluo Francesa.
Debates intensos foram travados no sentido de garantir os meios de preservar e de
dar uma destinao pblica ao esplio que se avolumava nos depsitos do novo
Estado revolucionrio. Naquela ocasio, antiqurios e eruditos denunciavam a
crescente onda de vandalismo que se abatia sobre a sociedade francesa, com
pilhagem ou destruio das obras de arte de palcios e templos religiosos. Iniciavase um processo de formulao dos atos jurdicos e de institucionalizao das aes
41

THIESSE, A-M. La Cration des identits nationales: Europe XVIII - XXme sicle. Paris:
Editions du Seuil, 1999. Sobre a constituio dos Estados nacionais modernos tambm consultar
HOBSBAWM, E. A Era das Revolues. 1789-1848. 2a ed. Lisboa: Ed. Presena, 1982.
42
THIESSE. Op.cit., p. 16.
43
CHOAY, F. A Alegoria do Patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade: UNESP, 2001.

18

de levantamento e de preservao do patrimnio, instituindo-se, em regime de


urgncia, dispositivos de centralizao, comisses e atos legislativos, para
resguardar o interesse coletivo e integrar os bens patrimoniais sob o efeito da
nacionalizao44. Em todo esse processo, destaca-se a Instruo sobre a maneira de
inventariar45, que serviu de importante ferramenta de proteo dos monumentos
franceses.
Desde os primeiros indcios de atuao das polticas patrimoniais, imps-se a
necessidade de inventariar e catalogar todos os bens essenciais para a instruo
pblica dos cidados franceses. A criao de um museu nacional na Frana
revolucionria o resultado de trs decretos: o de 2 de novembro de 1789, que
nacionaliza os bens da Igreja catlica; o de 9 de novembro de 1791, quando os bens
do emigrados so confiscados; e, por fim, o de 8 de agosto de 1793, quando
decretada a supresso das Academias46. Vale observar que a padronizao das
tcnicas e terminologias de inventrio tornou-se cada vez mais comum nas
sociedades nacionais modernas. Por intermdio desse conjunto de normas foram
construdas as listas de arrolamento de bens e aprimorados os instrumentais de
classificao em categorias e subcategorias de identificao centradas na idia
colecionamento.
Na relao entre nao e nacionalismo literrio, coube aos intelectuais uma
posio de mediao muito importante. Com a ajuda da filologia, muitos literatos
estabeleceram o valor da lngua e dos gneros literrios populares, na poesia e nas
lendas, como determinantes da definio das identidades nacionais na Europa47. A
valorizao das expresses culturais populares esteve associada a um tipo de
sensibilidade romntica48, que, por sua vez, encontrava-se totalmente imbricada
44

CHOAY, F. A Alegoria do Patrimnio. So Paulo : Estao Liberdade: UNESP, 2001, p. 98, 120.
Grifos nossos.
45
Instruction sur la manire dinventorier et de conserver dans tout ltendue de la Rpublique, tous les
objets qui peuvent servir aux arts, aux sciences e lenseignement, propose par la Comission temporair
des arts et adopte par le Comit dInstruction publique de la Convention nationale, Paries, Imprimerie
nationale, ano segundo da Repblica. CHOAY, op.cit., p. 110.
46
BREFE, A. C. F. Museu, imagem e temporalidade. Anais do museu paulista. So Paulo, v. 15, n.
2, 2007.
47
BURKE, P. Cultura Popular na Idade Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 2a ed., 1989;
BRAVO, A. F. (org). La Invencin de la Nacin: lecturas de la identidad de herder a homi Bhabha.
Buenos Aires: Manantial, 2000; HOBSBAWM, E. Naes e Nacionalismos desde 1780. 3a ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2002.
48
O Romantismo, movimento artstico e filosfico surgido inicialmente na Alemanha pr-unificada,
adotou uma viso de mundo contrria ao racionalismo e cientificismo iluminista, exaltando as tradies

19

com a construo do Estado nacional moderno.


A produo do nacional sob essa tica articulava a tradio ao que era
considerado como mais autntico da nao. Nessa perspectiva, Hobsbawm
investiga o processo de inveno das tradies europias como elemento de
formao das identidades nacionais. Em seu argumento, deixa claro que est se
referindo sociedade urbana industrial e ao processo de fragmentao da memria
coletiva que no consegue mais incorporar todos os grupos que dela fazem parte.
No obstante o autor operar com dualidades entre autntico versus inventado e
costume versus tradio, tais noes expressam smbolos variados de busca do
passado e das origens da coletividade. nesse terreno em que se d a combinao de
elementos antigos costumes e inventados tradies , e que se constri
uma identidade nacional49.
Norbert Elias50, ao tratar do nacionalismo na Alemanha na virada do sculo
XIX para o XX, observou que os termos cultura e civilizao perderam o
sentido da dinmica dos processos sociais, e a cultura foi cada vez mais usada na
acepo de cultura nacional. No contexto de unificao do Estado nacional, o
sistema de crenas e de valores humanistas foi perdendo espao para setores
nacionalistas que colocavam o Estado e a nao acima dos demais valores e
instituies, na escrita da histria e em outras reas. A fixao das representaes e
referncias da nao alem estavam sendo produzidas dentro de lgicas e acordos
polticos particulares, o que colocava no centro da ateno os feitos de prncipes e
cortesos, os conflitos e alianas entre Estados, as aes de diplomatas e dos grandes
chefes militares, em suma, a histria dos setores aristocrticos dominantes dos
do povo e afirmando as prticas e os valores nacionais, com principais referncias ao folclore nacional,
por consider-lo a autntica cultura nacional. Todo esse processo de formao dos Estados nacionais
convocou pensadores para a formulao de diferentes teorias e doutrinas polticas, cujas matrizes de
pensamento foram apropriadas por intelectuais brasileiros nas formulaes tericas que embasaram o
desenho do Estado nacional brasileiro e nas reflexes sobre as diversas prticas e discursos nacionalistas.
Sobre o Romantismo no Brasil, ver: RICUPERO, B. O Romantismo e a idia de nao no Brasil, 18301870. So Paulo: Livraria Ed. Martins Fontes, 2004.
49
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A Inveno das Tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1884.
nesse processo de construo de uma continuidade histrica que os patrimnios nacionais so erigidos.
Para uma anlise crtica dessas categorias na construo do patrimnio cultural brasileiro ver
GONALVES, J. R. S. Autenticidade, memria e ideologias nacionais: o problema dos patrimnios
culturais. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 264-275; GONALVES, J. R. S. Em
busca da autenticidade: ideologias culturais e concepes de nao no Brasil. In: GONALVES, M. A.;
VILLAS BOAS, G. (Orgs.). O Brasil na Virada do Sculo: o debate dos Cientistas Sociais. 1a ed. Rio de
Janeiro: Relume Dumar, 1995, v. 1, p. 235-256.
50
ELIAS, N. Uma Digresso sobre o Nacionalismo. In: Os Alemes: a luta pelo poder e a evoluo do
habitus nos sculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

20

Estados absolutistas51.
Uma voz dissonante na poca foi a de Ernest Renan (1873)52, posicionandose criticamente quanto ao enfoque nacionalista dominante no sculo XIX. Ele
considerava um erro confundir raa com nao, lembrando que as primeiras naes
da Europa so de sangue essencialmente mesclado53. Renan tambm descartava a
lngua, a religio e a geografia como seguros operadores das fronteiras nacionais,
enfatizando que esses elementos no seriam critrios razoveis de diviso das naes
e nacionalidades. Com ironia, ressalta a necessidade de se compartilhar no s
lembranas, mas tambm esquecimentos. Se, por um lado, Renan amplia a discusso
para alm do tnico e geogrfico, por outro prope compreender a nao em sua
dimenso poltica, como principal responsvel pela constituio de uma unidade
nacional.
Outra vertente da discusso se d atravs de Marcel Mauss54, ao questionar
qual gnero de sociedade mereceria ser classificada como nao. Ele argumenta a
favor da historicidade da noo e traz para o entendimento da nao moderna
contribuies do pensamento antropolgico da escola sociolgica francesa. Mauss
enfatiza, como Renan, a importncia da construo de uma unidade moral e poltica
para a nao moderna, agregando em sua anlise os fenmenos psicossociais quando
se refere ao carter nacional. E, ao lana luz sobre questes da sua poca, afirma
que as sociedades no podem formar-se umas sem as outras55. Segundo o autor,
determinadas convenes internacionais, tais como as de propriedade artstica,
literria ou industrial expressam um estado de internacionalismo de certos fatos e
obrigam os diversos estados a adotarem os mesmos princpios de direito e, mais
ainda, jurisprudncias idnticas56. Mauss prenuncia a criao das agncias
multilaterais e das legislaes internacionais pautadas no respeito integridade
humana e diversidade cultural.

51

ELIAS, N. op. cit., p. 121.


RENAN, E. Qu s una Nacin? In: BRAVO, A. F. (org). La Invencin de la Nacin: lecturas de
la identidad de herder a homi Bhabha. Buenos Aires: Manantial, 2000.
53
Ibid., p. 54
54
MAUSS, M. La Natin. In: Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III, Barcelona: Barral, 1972. p. 275327.
55
Ibid., p. 306
56
. Mauss antecipa o papel estratgico das Organizaes Internacionais que sero formadas na dcada de
1940, aps o final da Segunda Guerra, como ser visto no terceiro captulo desta tese. Cf. MAUSS,
op.cit., p. 321
52

21

Com efeito, a eficcia das formulaes tericas e conceituais sobre a nao


moderna produziu uma srie de pressupostos estabilizadores no vnculo entre
delimitao territorial e populao, mas acrescentou a esse fenmeno uma
perspectiva muito peculiar de entender e valorizar o que era produo popular. Em
Naes e Nacionalismo desde 178057, Eric Hobsbawm descreve como foi tenso o
processo de seleo e fixao das representaes das nacionalidades na Europa prmoderna. Ao reconstituir o panorama conflituoso no processo de supresso das
lnguas

dialetais

europias

reconhecer

esforo

na

padronizao

homogeneizao da ortografia e gramtica nacionais, Hobsbawm compreende que


tais procedimentos de construo da unidade demandam uma investigao mais
ampla, abrangendo, inclusive, as pessoas comuns e no os governos, porta-vozes ou
ativistas de movimentos nacionalistas (ou no nacionalistas)58.
Neiburg et al. (2001) enfatizam na obra de Norbert Elias a questo da
violncia poltica nas sociedades nacionais modernas, referindo-se, particularmente,
aos casos da Alemanha e da Frana59. As divergncias encontradas entre os
conceitos de civilizao e de cultura explicam-se em funo das posies contrrias
entre os intelectuais que faziam parte do establishment dos novos Estados
nacionais
A referncia a processos de civilizao e de cultivao foi
substituda pela nfase nas diferenas entre as naes; o termo
civilizao passou a distinguir o mundo ocidental de naes e de
relaes entre naes de toda uma outra forma de organizao
social; o termo cultura comeou a ser utilizado no plural, para
designar as unidades delimitadas e diferenciadas que se
autodefinem como culturas nacionais cultura passou a ser
sinnimo de ser ou de carter nacional.60

Relaciona-se a todo esse processo de constituio dos Estados modernos a


gnese das cincias sociais, que
ao oferecer meios para conceituar a sociedade e a cultura, [...]
contriburam para a construo de um mundo social e cultural
feito de naes e de relaes internacionais no qual elas
57

HOBSBAWM, E. Naes e Nacionalismos desde 1780. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 10.
Ibid., p. 20.
59
NEIBURG, F. et al. In: Leopoldo Waizbort (org.). Dossi Norbert Elias. 2 ed. So Paulo: Edusp,
2001.
60
NEIBURG, F. O naciocentrismo das cincias sociais e as formas de conceituar a violncia poltica e os
processos de politizao da vida social. In: Leopoldo Waizbort (org.) Dossi Norbert Elias. 2 ed. So
Paulo: Edusp, 2001, p. 47.
58

22
passaram a existir. Pode-se descrever como naciocntricas as
teorias da cultura ou da sociedade que tm no seu horizonte, ao
mesmo tempo, uma ambio descritiva e prescritiva em relao
a ideais de boa cultura e de boa sociedade que, de uma forma ou
de outra, se referem sempre a sociedades ou a culturas
nacionais61.

Ao acentuar o dinamismo nas relaes entre naes e povos, os autores


citados deixam claro que determinados elementos da cultura so preteridos em nome
de uma suposta unidade nacional, em um processo tenso e de violncia simblica.
, ainda, o resultado de um princpio ordenador que opera com fronteiras de
incluso e afirmao das diferenas nacionais. Nem preciso dizer o quanto esse
novo enquadramento das naes modernas e ocidentais gerou uma hierarquizao
das sociedades humanas. Para a antropologia evolucionista de fins do sculo XIX,
haveria uma histria comum a todos os povos, que culminaria na civilizao
ocidental, pice de todo um processo evolutivo.
Esta lgica classificatria e hierrquica foi duramente criticada na virada
desse mesmo sculo por Franz Boas62. No perodo em que ocupa o cargo de curador
das colees etnolgicas do Museu Americano de Histria Natural, em Nova York,
adota novos mtodos de coleta do material e concebe registros mais laboriosos para
seus trabalhos de campo. Ele encontra grande resistncia para implementar seu
projeto e sua concepo museolgica das exposies, em particular por parte de
Mason, curador de etnologia do Museu Nacional dos Estados Unidos, que organizou
as colees etnolgicas do museu de acordo com os objetos e no conforme as tribos
a que pertenciam63.
Ainda ligado ao Museu Americano, em seis anos de expedies, conhecidas
como Expedies Jesup ao Pacfico Norte, Franz Boas estudou a mitologia das
tribos, coletou contos e mitos das tribos da costa do Pacfico norte e do Alasca. Em
sua concepo, a coleta de artefatos deve ser conduzida pelos novos princpios de
61

NEIBURG, op.cit., p. 45.


Boas inicia seus estudos etnolgicos ainda em Berlim sob a orientao do preeminente professor Adolf
Bastian, principal etnlogo da Alemanha na poca e curador do Museu Etnogrfico Real. Ao imigrar para
os Estados Unidos, trabalha como professor de Antropologia na recm-inaugurada Clark University. Cf.
BOAS, Franz. A formao da Antropologia Americana, 1883 1911: antologia. Organizao e
introduo George W. Stocking, Jr. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora UFRJ, 2004.
63
A preocupao de Franz Boas era com os significados dos conjuntos culturais. STOCKING JR.
Introduo. In: BOAS, Franz. A formao da Antropologia Americana, 1883 1911: antologia.
Organizao e introduo George W. Stocking Jr. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora UFRJ, 2004, p.
15-20.
62

23

classificao etnolgica, ou seja: cada pea deve ser estudada em seu contexto de
produo64.
A nfase no estudo da cultura material uma marca nos museus etnogrficos,
herana da tradio dos colecionistas dos sculos XVIII e XIX.65 Conforme
apontado, a passagem de um paradigma evolucionista para uma tradio mais
preocupada com os processos histricos, com os contextos sociais de produo e
significado simblico dos objetos muito deve a Franz Boas e s instituies
museolgicas americanas. As mudanas se manifestaram tanto nas classificaes do
material coletado em campo, quanto no projeto de montagem. Dessa forma, foram
estudadas as artes decorativas dos ndios da costa do Pacfico norte e a sua cultura
material, bem como pesquisados os mitos, as canes, as narrativas e as lendas do
folclore dos ndios do noroeste americano66.
A trajetria social de Franz Boas se d simultaneamente construo do
campo da antropologia norte-americana. Para alm da formao voltada para o
ensino e a pesquisa de campo, Boas marcou presena em outros segmentos, como o
Folclore, a Arqueologia, a Geografia e a Lingstica. Integrou as principais
associaes cientficas de seus campos de interesse, como a Associao Americana
de Folclore, para a qual contribuiu por dezessete anos, participando da edio da
revista. Alguns bigrafos seus mais especificamente Stocking Jr.67 interpretam
como uma estratgia para atrair centros alternativos de poder institucional, e, assim,
difundir suas idias sobre o novo mtodo antropolgico68. Franz Boas prope uma
ruptura no campo de debates do evolucionismo ao inserir uma nova linha
argumentativa. Atravs de seu rigor metodolgico, vai se opor s teorias racistas
dominantes e estabelecer o postulado da diversidade cultural.69
64

BOAS, F. op.cit., p. 139, 183.


Ao destacar aqui alm do Museu Etnogrfico de Berlim e o Museu de Etnografia do Trocadero em
Paris, reorganizado, em 1937, como Museu do Homem. Nesses contextos particulares de discusso,
precisavam-se estratgias metodolgicas para o trabalho de campo com implicaes nos projetos da
museografia, considerada como ramo da etnografia descritiva. Cf. SEGALLA, L. Gautherot no Museu do
Homem: museografia, etnografia, fotografia. O Olho Fotogrfico de Marcel Gautherot. So Paulo:
FAAP, 2007. Centro-me aqui no projeto boasiano pela importncia que teve nos debates sobre cultura
brasileira e nos estudos de folclore, nos anos 1940-60.
66
BOAS, F. A formao da Antropologia Americana, 1883 1911: antologia. Organizao e
introduo George W. Stocking, Jr. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora UFRJ, 2004, p. 133.
67
STOCKING JR., George W. (org. e introduo) In: BOAS, Franz. A formao da Antropologia
Americana, 1883 1911: antologia. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora UFRJ, 2004.
68
BOAS, op.cit.., p. 341.
69
No ensaio intitulado As limitaes do mtodo comparativo da antropologia (1896), lido pela primeira
65

24

LEstoile, Neiburg e Sigaud70 abordam o interesse da antropologia norteamericana pelas populaes submetidas ao processo de colonizao interna do
espao nacional, [...] centrando sua ateno na diversidade social e cultural do pas:
ndios, negros e imigrantes de origens diversas. Em seguida, discutem a passagem
da antropologia nacional, voltada essencialmente para o nation-building (como as
antropologias mexicana ou brasileira) para uma antropologia imperial ou
metropolitana. J Goldman e Neiburg (idem) exploram as condies histricas nas
quais foram se configurando os estudos sobre o carter nacional nos Estados
Unidos. Essa passagem vai ocorrer na dcada de 1940, no momento em que a
chamada escola norte-americana de cultura e personalidade inaugurava uma
abordagem antropolgica de escala nacional aplicada s relaes internacionais71.
Partia-se, portanto, da diversidade cultural dos grupos formadores da
sociedade norte-americana. Este pressuposto terico, difundido atravs da
antropologia boasiana e apropriado por vrios de seus ex-alunos72, configurou um
campo de debates em torno das questes relacionadas aos padres da cultura
nacional. Seguindo essa perspectiva analtica, a cultura tenderia a moldar
determinadas caractersticas da personalidade, apreendida atravs da lngua, da
cultura material e de tantos outros traos culturais73.
Estabelecer os nexos e as afiliaes intelectuais no tarefa fcil, mas se faz
necessrio quando o objetivo reconstruir um campo de estudo. Assim se pode
pontuar tanto o alargamento da esfera de atuao antropolgica e seus efeitos,
quanto entender o modo como o processo repercutiu no Brasil. A antropologia, que
surgiu vinculada aos museus, logo se difundiu, estabelecendo-se nas universidades e
formando associaes de classe. O impacto da mudana de perspectiva operada por

vez em um encontro da American Association for the Advancement of Science importante associao de
classe que tambm ajudou a criar, juntamente com a revista American Anthropologist, fez uma crtica
incisiva ao paradigma do evolucionismo cultural. Cf. BOAS, F. In: CASTRO, C. (org.). Antropologia
Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
70
LESTOILE, B.; BEIBURG, F.; SIGAUD, L. Apresentao. In:______. Antropologia, Imprios e
Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumar/ FAPERJ, 2002, p. 25.
71
Referindo-se aqui Segunda Grande Guerra e ao papel dos antroplogos vinculados Escola de
Cultura e Personalidade. GOLDMAN, M.; NEIBURG, F. Da nao ao imprio: a guerra e os estudos do
carter nacional. In: LESTOILE, B.; BEIBURG, F.; SIGAUD, L. (Orgs.) Antropologia, Imprios e
Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumar/ FAPERJ, 2002 p. 187-188.
72
Ruth Benedict, Margaret Mead, Bateson, Alfred Mtraux, dentre outros.
73
No exagero afirmar que este tema permeia a ao da UNESCO, organizao internacional criada
aps a Segunda Guerra Mundial. Mais adiante tratarei sobre a criao da UNESCO e da sua importncia
para a criao de instrumentos normativos de proteo e promoo da diversidade cultural.

25

Boas se fez sentir no Brasil, especialmente atravs dos escritos de Gilberto Freyre.
Os intelectuais brasileiros, que haviam se apropriado inicialmente das teorias raciais
desenvolvidas na Europa, em particular do Darwinismo social de Spencer, do
Evolucionismo unilinear de Frazer e Tylor, bem como do positivismo de Auguste
Comte, tiveram nas crticas de Boas ao evolucionismo um importante contraponto.
Pode-se afirmar que, ainda que sob paradigmas evolucionistas, cunha-se, ento, no
Brasil, toda uma concepo de Cultura Brasileira, mesmo que com uma conotao
diferente daquela estabelecida a partir da dcada de 1920, com o movimento
modernista.

1.1.

Temas instituidores da brasilidade: cultura, folclore e patrimnio.

Os conceitos de cultura e de folclore tm uma trajetria na histria social,


seno controversa, polmica. Consolidam-se na Europa do sculo XIX, na era da
chamada descoberta do povo74, e ganham significados diversos nas vrias
populaes nacionais nascentes e conforme os grupos de intelectuais. A variedade
de sentidos reflete a complexidade dos termos e de suas relaes. Confrontados com
o conceito de civilizao, ento alinhado noo de progresso, parece conotar as
particularidades, os modos de ser e de viver que variam de uma nao a outra. A
nfase na construo da unidade do territrio e da populao, atravs de dispositivos
de construo simblica, de um sistema legislativo e da centralizao poltica e
administrativa so pontos relevantes para se entender a articulao entre os termos
cultura e Estado nacional.
No Brasil, os debates sobre os elementos conformadores da nacionalidade
ganharam dimenso analtica a partir da segunda metade do sculo XIX, quando
estava em jogo uma srie de interpretaes sobre a sociedade e a cultura brasileira,
que se expressava, sobretudo, atravs da literatura. As revistas literrias, os folhetins
e as crnicas tematizam a questo nacional, dando produo literria uma
dimenso mais ampla, pela circulao social que do a estes debates e pela
diversidade de perspectivas que lanam75. A partir de 1870, comeam a se estruturar
as primeiras interpretaes cientficas sobre a nao e o nacionalismo. A tarefa que
74
75

BURKE, P. Cultura Popular na Idade Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 31-49.
CNDIDO, A. O Mtodo Crtico de Silvio Romero. So Paulo: Edusp, 1988.

26

se impunha era a de construir a nao, inventar tradies e celebrar costumes.


Nesse perodo, intensificaram-se as expedies de viajantes e naturalistas
estrangeiros, que, desde as primeiras dcadas do sculo XIX, percorriam o territrio
brasileiro procura de espcimes exticos e raros, coletando-os para os museus de
histria natural europeus. Esses objetos e materiais diversos foram agregados aos
acervos do nascente Museu Nacional e de outras instituies incipientes, como o
Jardim Botnico e a Biblioteca Nacional, todas no Rio de Janeiro.
A construo das representaes sobre a brasilidade apresenta no aspecto
pitoresco uma importante e recorrente chave interpretativa. A esse modelo de
brasilidade, gerado no momento em que se buscava identificar a poca colonial
como um passado herico e autntico, soma-se outra maneira de represent-lo: a
de carter folclrico e popular.
O sculo XIX significou para o Brasil fundamentalmente a conquista de uma
autonomia poltica e administrativa em relao a Portugal, ao mesmo tempo em que
se afirmava processualmente a idia de brasilidade. Nas primeiras dcadas psindependncia, um sentimento nacionalista muito forte localizado nos principais
centros de produo intelectual se expressa, sobretudo, atravs de intelectuais e
atravs da literatura romntica. Para a primeira gerao do romantismo no Brasil,
a busca pelas razes da brasilidade levaria a conhecer os antepassados e a construir
a histria da nao.
Fez parte desse movimento afirmativo nacional o aproveitamento de
instituies de estudo e pesquisa criadas na primeira metade do sculo, dentre as
quais destacavam-se o Museu Nacional, de 1818, a mais antiga instituio cientfica
do Brasil, e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro de 1838, que procurou
centralizar os esforos de teorizao e de interpretao sobre a histria literria e
historiografia brasileira. Grandes nomes da poltica, das letras, das artes e da
magistratura do pas integravam seu quadro de associados76.
Alguns expoentes, independentemente do vnculo com estas instituies,
contriburam para o avano de uma reflexo sobre a cultura brasileira. Um deles foi

76

O IHGB foi criado juntamente com o Arquivo Pblico do Imprio e a Academia Imperial de Belas
Artes, e integrou esforos na construo de representaes de um Estado imperial centralizado e forte.
Seu prestgio foi parcialmente abalado com a Repblica pela inevitvel associao com os smbolos e
personagens do Imprio.

27

Silvio Romero77. A originalidade de seus estudos produziu uma srie de reflexes


sobre o lugar de referncia do mestio na sociedade brasileira. O autor interessou-se
pelo estudo do negro do ponto de vista da histria social e da sociologia, apoiandose em estudo precursor de Nina Rodrigues. Os trabalhos dos primeiros estudiosos da
sociedade brasileira enfrentam um desafio conceitual78. Romero tambm o enfrenta:
preocupado em contextualizar os autores e as suas obras, tornou-se um crtico
rigoroso dos compiladores, dos nativistas e dos regionalistas. No obstante a crtica
romeriana empenhar-se em aprimorar as tcnicas de coleta, fazendo alguma meno
s circunstncias em que foram colhidas, ainda assim a localizao dos fenmenos
permanecia indefinida.
O folclore, tomado como expresso mais pura de brasilidade, mobilizou
parte substancial da intelectualidade, numa poca em que as fronteiras disciplinares
ainda no estavam definidas, proporcionando um trnsito entre o folclore, a
literatura e a nascente cincias sociais. Esse sentido de brasilidade est presente em
Romero, interessado, sobretudo, na compilao dos materiais de acordo com a sua
suposta origem racial. Em suas anlises, no obstante aparecerem os fatores
condicionantes do meio e da raa, atribua ao mestio um papel de agente
transformador. Como resultado de suas pesquisas sobre o folclore brasileiro,
escreve Cantos Populares do Brasil (1883), Estudos sobre a Poesia Popular do
Brasil (1888) e Folclore Brasileiro (1897).
Ao percorrer o pensamento social brasileiro e recuperar criticamente a
tradio compilatria dos estudos de folclore, verifica-se uma clivagem entre esses
trabalhos de pesquisa e de descrio em relao s cincias sociais incipiente. O
folclore conjuga ou convoca procedimentos menos cientficos, tais como a
reminiscncia e a sobrevivncia do que se est sendo perdido nas sociedades
77

Bacharelou-se em Direito em Recife, viveu alguns anos no Rio de Janeiro, e participou ativamente em
diversas reas da produo literria, como a crtica literria, a histria, a poesia, o ensaio e o folclore.
Presenciou o avano da cincia e a divulgao do evolucionismo de Darwin, que marcou profundamente
os autores que o influenciaram, como Renan e outros de seu tempo. Foi membro-fundador da Academia
Brasileira de Letras e membro do Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro, alm de ter participado de
diversas outras associaes literrias.
78
Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, os pesquisadores brasileiros fundamentavam suas hipteses
na pesquisa emprica, mesmo a produo pr-cientfica da gerao de 1870. Questiona-se, portanto,
sobre a clivagem estabelecida por Florestan Fernandes dos estgios pr-cientficos e cientficos da
produo das cincias sociais. Ver em: QUEIROZ, M. I. P. Desenvolvimento das cincias sociais na
Amrica Latina e contribuio europia: o caso brasileiro. Revista Cincia e Cultura, SBPC, 41(4): 378388, abril 1989.

28

modernas. Essa etnografia de urgncia privilegiou o registro pelo registro, sem


estabelecer critrios para a interpretao e anlise dos dados coligidos.
Coube a Dante Moreira Leite desenvolver uma reflexo crtica sobre os
desdobramentos do pensamento de Silvio Romero. Seu livro O carter nacional
brasileiro: histria de uma ideologia, publicado em 1968, resultado de sua tese de
doutorado defendida em 1954, na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP.
Leite aponta para uma excessiva nfase em aspectos psicossociais, em detrimento de
uma perspectiva que considerasse tambm dados econmicos, sociais (stricto sensu)
e polticos. A perspectiva ideolgica, a seu ver, acabara desvirtuando a proposta de
Romero de um conhecimento cientfico da realidade brasileira. Em seu trabalho,
faz inicialmente uma caracterizao geral do nacionalismo e de suas origens ao
historicizar o processo de formulao do conceito de carter nacional, baseado em
questes raciais e psicossociais. Ao elaborar uma histria literria da ideologia do
carter nacional brasileiro, o autor detm-se, ento, na obra de Silvio Romero,
destacando seu importante papel, ao ser apropriado de diferentes formas pelas
geraes subseqentes que pensaram o Brasil.
Schwartzman79, referindo-se noo de brasilidade, lembra que a
constituio da nacionalidade no incorporou aquela busca s razes mais profundas
da cultura brasileira que faziam parte da vertente andradiana do projeto modernista,
conforme ser marcado na prxima sesso; ao contrrio, foram os aspectos
relacionados ao ufanismo verde e amarelo, histria mitificada dos heris e das
instituies nacionais e ao culto s autoridades que foram tomados pelo projeto de
nacionalizao. Essas representaes produziram uma srie de inquietaes e
questionamentos naqueles intelectuais que se propuseram a pensar os desgnios da
nao brasileira. Silvio Romero em Histria da Literatura Brasileira; Euclides da
Cunha em Os Sertes; Oliveira Viana em Evoluo do Povo Brasileiro; Mrio de
Andrade em Macunama; Srgio Buarque de Holanda em Razes do Brasil; Gilberto
Freyre em Interpretao do Brasil, e tantos outros que procuraram narrar, descrever,
esclarecer, explicar ou descobrir as perspectivas do pas, sociedade nacional, povo
ou Estado-nao.

79

SCHWARTZMAN, S. Tempos de Capanema. So Paulo: USP/ paz e terra,1984. p. 141.

29

A perspectiva tipolgica possui uma forte conotao cultural, com


acentuados ingredientes psicossociais sobre determinados personagens da
literatura e da histria do Brasil. Segundo Otvio Ianni (2002), essa linha
interpretativa deita razes na produo romntica de Jos de Alencar e Gonalves
Dias, com ressonncia nos escritos de Slvio Romero e outros de seu tempo.
Trata-se da viso do Brasil, de sua histria, como uma
constelao de tipos, com alguns dos quais se constroem
tipologias, sendo que em alguns casos desdobram-se em mitos e
mitologias.80

So muitos os exemplos trazidos pelo autor: o ndio, o gacho, o


sertanejo, Macunama, Joo Grilo, Jeca tatu, Antnio Conselheiro, Padre
Ccero. Em sua anlise, Ianni destacou como desastrosa a construo dessa
constelao de tipos.
como se a histria do pas se desenvolvesse em termos de
signos, smbolos e emblemas, figuras e figuraes, valores e
idias, alheios s relaes, processos e estruturas de dominao
e apropriao com os quais se poderia revelar mais abertamente
os nexos e os movimentos da sociedade, em suas distintas
configuraes, e em seus desenvolvimentos histricos.81

A dcada de 1920 foi determinante para a elaborao de um sentimento


positivo de brasilidade e o marco desta redescoberta do Brasil foi o movimento
modernista originado em So Paulo em 1922. Os intelectuais modernistas,
empenhados em formular novas interpretaes sobre o Brasil, agregaram imensa e
polifnica cartografia do imaginrio brasileiro suas inquietaes e interrogaes.
As viagens de redescoberta do Brasil realizadas por Mrio de Andrade e por um
grupo de intelectuais modernistas, notadamente mineiros e paulistas, demarcam as
fronteiras de brasilidade. No empenho de construir a imagem de um Brasil real,
passaram a valorizar a herana colonial e as manifestaes de carter folclrico e
popular. Tomados pelo sentimento de renovao da produo artstica e
comprometidos em fazer circular as novas idias sobre a arte e cultura brasileiras
partiram em peregrinao s cidades mineiras. O contato com os artistas mineiros,
exmios talhadores em madeira, impressionou a caravana de modernistas de 1924,

80

IANNI, O. Tipos e Mitos do Pensamento Brasileiro. Revista Brasileira de Cincias Sociais., v. 14, n.
49, 2002, p. 6.
81
Ibid., p. 6

30

que se interessou pela arte barroca e pelas igrejas e monumentos do perodo


colonial, principalmente, os da segunda metade do sculo XVII e sculo XVIII.
Foi para descobrir o Brasil e d-lo a conhecer que Mrio de Andrade
empreendeu, juntamente com Blaise Cendras82, Olvia Guedes Penteado, Oswald de
Andrade e alguns intelectuais modernistas mineiros, uma viagem a Belo Horizonte e
a cidades histricas mineiras. Foi tambm com esse mesmo objetivo que, em 1927,
viajou pelo Amazonas at o Peru, pelo Madeira at a Bolvia e por Maraj at dizer
chega, e, no ano seguinte, conheceu o Nordeste entre novembro de 1928 e fevereiro
de 1929.
Em Mrio, a ideologia da unidade nacional ganhava uma dimenso mais
complexa, porque concebia a sociedade brasileira mais rica em suas expresses
artsticas e culturais. Nogueira (2005) revela-nos a importncia das viagens de
descoberta do Brasil e etnogrficas para Mrio de Andrade83, em se tratando da
construo de uma poltica cultural nos anos de 1930, perodo em que comeam a se
institucionalizar novas prticas culturais voltadas para a construo das
representaes da nao. As duas viagens etnogrficas corresponderam a
momentos em que a sua esttica nacionalista passa a atribuir novos valores aos bens
culturais.
Na primeira viagem etnogrfica, no ano de 1927, Mrio de Andrade
acompanhado mais uma vez de Olvia Guedes Penteado, pertencente aristocracia
urbana paulista e importante mecenas dos artistas modernistas. A viagem anterior a
Minas Gerais havia estreitado os laos de amizade, e, com o convite feito por Olvia,
Mrio de Andrade acaba por aceitar e realiza seu grande desejo de conhecer a regio
Amaznica. A expedio percorreu de navio o litoral brasileiro e seguiu at o Norte,
navegando pelo rio Amazonas at o Peru e pelo rio Madeira, em direo Bolvia.
Alm de registrar uma srie de canes, provrbios e contos, anotando-os em dirios
improvisados e papis avulsos, Mrio agiu como um fotgrafo atento s manifestaes
da cultura popular com as quais estabelecia contato. Inventou um verbo novo, o fotar,
e produziu cerca de 500 fotografias nas suas viagens. E foi sobre esse material que
82

O poeta francs Blaise Cendras, ao lado de Apollinaire, revigorou a poesia francesa da primeira metade
do sculo XX. Vale ressaltar que Cendras veio ao Brasil em 1924, e incentivou o movimento modernista
que aqui estava se constituindo.
83
O autor atribui s experincias de deslocamento pelo Norte e Nordeste do Brasil grande inspirao na
sua obra literria. Cf. NOGUEIRA, A. G. R. Por um Inventrio dos Sentidos: Mrio de Andrade e a
Concepo de Patrimnio e Inventrio. So Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005, p. 99-175.

31
trabalha por muitos anos, organizando-o a partir de dados novos, enviados por aquela
rede de relaes que estabelecera em suas viagens ao Norte e ao Nordeste. As viagens

foram sendo narradas e criadas em diferentes vertentes: uma delas seria da crnica
do cotidiano; outra, da investigao cautelosa sobre as expresses culturais e
linguagens regionais; outra, ainda, da vertente ficcional.
O dirio um gnero literrio hbrido e fragmentado pela sua prpria lgica
interna ao narrar experincias mltiplas e transitrias. Mas, ao ler os dirios de
viagens de Miro de Andrade, observa-se que o modo como trabalha e organiza seu
material, pautado pela lgica da elegibilidade dos elementos narrativos, com suas
seqncias e roteiros do que deve ou no ser observado, serve como material
emprico para a construo de seus textos literrios. Como atesta Tel Ancona
Lopez, a viagem ao Nordeste, entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929, marcou
o pesquisador do folclore. Mrio visitou Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte
e Paraba, e foi hspede de intelectuais ilustres, como Cmara Cascudo, em Natal, e
o poeta Jorge de Lima, em Macei, firmando amizade que seria profunda e
duradoura84. Para alm dos contatos estabelecidos, converte-se em experincia de
observao vivenciada estuda a religiosidade popular, o Catimb, a msica de
feitiaria, tem seu corpo fechado e passa o Carnaval no Recife. Na Paraba
encontra o cantador Chico Antnio, acompanhado de seu instrumento, o ganz,
ficando muito impressionado com sua capacidade de criador e de intrprete.
Mrio de Andrade tornou-se, portanto, um dos principais articuladores dos
debates sobre a formao da sociedade e cultura brasileiras. Sua trajetria social85
paradigmtica, pelo grau de reconhecimento no campo intelectual, pelas constantes
reconverses de seu capital cultural em capital tcnico e poltico, por participar de
uma produo literria de vanguarda e por integrar uma rede de relaes bastante
complexa: desde seus contatos com a instituio do patrimnio, passando pelos
estudos de folclore, pela antropologia ento nascente no pas, at sua incurso na
84

ANDRADE, M. In: O Turista Aprendiz. LOPEZ, T. P. A. (Introduo e Org.) Belo Horizonte:


Itatiaia, 2002, p. 20.
85
A noo de trajetria social, em Bourdieu, pressupe pensar a histria de vida e a produo acadmica
de determinado intelectual em relao ao seu espao social (...) Ela conduz a construo da noo de
trajetria como uma srie de posies sucessivamente ocupadas por um mesmo agente, (...) estando o
sujeito a incessantes transformaes. Portanto, Bourdieu no vai operar com uma noo linear de
histria de vida, j que as biografias tendem a operar com processos lineares e encadeamentos
particulares. BOURDIEU, P. A Iluso Biogrfica. In: FERREIRA, M. (org.). Usos e Abusos da Histria
Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 189.

32

gesto pblica. Nesse momento, o autor no considera mais


o folclore como disciplina isolada, autnoma, colocando-o
muito lucidamente enquanto cincia, como etnografia, pois no
dispunha de meios para diferenciar as atribuies da
Antropologia Cultural, da Etnografia e da Etnologia. Assim
fazendo, est se insurgindo contra uma posio elitista de seu
tempo que congelava o Folclore, dissociando-se dos demais
fenmenos da sociedade e reduzindo-o valorizao do
pitoresco86.

A discusso sobre a temtica da cultura brasileira fortalecida com a


implantao dos primeiros cursos de cincias sociais no pas, com destaque para os
da Escola Livre de Sociologia e Poltica (1933) e da Faculdade de Filosofia e
Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (1934), ambas em So Paulo, e da
Faculdade Nacional de Filosofia (1939), no Rio de Janeiro. Alm disso, a Faculdade
de Filosofia, Cincias e Letras da USP contratou professores visitantes, sobretudo
franceses, para ministrarem os primeiros cursos de cincias sociais no Brasil87. No
Rio de Janeiro, enquanto a Universidade do Distrito Federal e a Faculdade Nacional
de Filosofia davam seus primeiros passos na institucionalizao do curso de
Antropologia como uma disciplina cientfica, o Museu Nacional j havia firmado
uma posio de prestgio no campo da Antropologia fsica e biolgica e Roquette
Pinto avanava os estudos sobre a mestiagem. O Museu Nacional formava
cientistas naturalistas, incorporando-os aos seus quadros. Na gesto de Helosa
Alberto Torres88, intensificaram-se os intercmbios e convnios do Museu com
universidades e museus norte-americanos:
Naquele momento, o Museu Nacional teve um importante papel
no que diz respeito vinda de pesquisadores norte-americanos
para o Brasil. Helosa Alberto Torres responsvel por um
intercmbio com Franz Boas e Ruth Benedict, da Columbia
University, e patrocina a vinda de jovens pesquisadores com o
86

ANDRADE, M. op.cit., p. 16.


PEIXOTO, F. Franceses e Norte-americanos nas Cincias Sociais Brasileiras (1930-1960). In:
MICELI, S. (org.). Histria das Cincias Sociais no Brasil, v. 1. So Paulo: Editora Sumar, 2001.

87

88

Antroploga, dirigiu o Museu Nacional de 1937 a 1945, tendo sido responsvel pela restaurao do
prdio e inaugurao da exposio permanente dessa instituio. Intelectual de prestgio presidiu o
Conselho Nacional do ndio, Conselho Internacional de Museus no Brasil e foi Membro do Conselho
Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Cf. CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da
Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de
Doutorado em Histria. v. I e II. Niteri, RJ: Universidade Federal Fluminense, 1998, p. 499; RIBEIRO,
A. M. M. Heloisa Alberto Torres e Marina So Paulo de Vasconcellos: Entrelaamento de crculos e
formao das cincias sociais na cidade do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/
IFCS, 2000.

33
intuito de incrementar o treinamento de etnlogos.89

Na relao entre Mrio de Andrade e o Museu Nacional, merece destaque o


seu papel articulador na expedio a Serra do Norte.90 Em 1938, o jovem
antroplogo

francs

Claude

Lvi-Strauss,

professor

da

recm-inaugurada

Universidade de So Paulo, conduziu seu primeiro trabalho etnogrfico de campo,


realizando pesquisas no Mato Grosso do Sul. Lvi-Strauss foi acompanhado por
outro jovem naturalista do Museu Nacional, que se iniciava nas pesquisas
etnolgicas. Seu nome Luiz de Castro Faria91, designado pela Diretora, Heloisa
Alberto Torres, como representante do Museu Nacional e do governo brasileiro.
A viagem que parte de So Paulo e a visita ao Departamento de Cultura so
narradas por Castro Faria com o entusiasmo de um praticante gratuito, que recebe
essa misso como um verdadeiro ritual de iniciao antropologia. Em So Paulo,
na funo de pesquisador do Museu Nacional, examina a coleo de etnografia
regional do norte, pertencente ao Departamento de Cultura92, reconhecendo o seu
inegvel valor para a cincia. Nessa ocasio trava conhecimento com Mrio de
Andrade e cria-se a partir da uma relao marcada pela admirao recproca.
Segundo Castro Faria, duas dedicatrias balizaram seu tempo de convivncia com
Mrio de Andrade: a primeira, em 1938, e a segunda, em 194293.
Da sua atuao na direo do Departamento de Cultura, Mrio de Andrade se
descobre um gestor cheio de projetos para colocar em prtica. O contato com os
antroplogos e os estudos etnogrficos o levou a promover cursos e levantamentos
de pesquisa no perodo em que dirigiu o Departamento de Cultura de So Paulo
(1935-1938). Ao vislumbrar a possibilidade de estruturar, via administrao pblica,
um caminho para se preservar e recuperar as manifestaes da cultura popular, cria a
Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), em 1936. Para tanto, conta com as idias
89

PEIXOTO, F. op. cit., p. 513.


CASTRO FARIA, L. Um Outro Olhar: dirio da expedio Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2001.
91
O antroplogo Lus de Castro Faria, falecido em 2004, aos 91 anos, foi professor emrito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi por
duas vezes presidente da Associao Brasileira de Antropologia (ABA), alm de ter sido um dos
fundadores do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional e
fundador do Programa de Ps-Graduao em Antropologia (PPGA) da UFF.
92
CASTRO FARIA, L. op. cit., 2001, p. 35.
93
CASTRO FARIA, L. Lies de sabedoria e generosidade. Lembranas de Mrio de Andrade. S.P,
21/09/1992. (CFDA 09.06.097). Dedicatrias em que Mrio emprega as seguintes expresses: ao Castro
Faria, lembrana muito grata (1942); Ao Castro Faria, como lembrana amiga (1938).
90

34

inovadoras do casal Lvi-Strauss e a colaborao de Arthur Ramos, Edmundo Krug


entre outros. Sua primeira iniciativa foi montar um curso de durao de seis meses,
ministrado por Dina Lvi-Strauss94, com objetivo de formar folcloristas para
trabalhos de campo. O curso surpreende a todos pela grande aceitao e procura. No
ano seguinte, atravs dos contatos com a Sra. Lvi-Strauss, a Sociedade de
Etnografia e Folclore (SEF) recebe o convite para participar dos trabalhos do
Congresso Internacional desta rea do conhecimento, em Paris, em junho de 1937.
Preparou-se como ensaio metodolgico um projeto de Cartografia folclrica no
Brasil, publicada, sem os mapas, sob o ttulo: Etudes Carrtographiques des tabus
alimentaires e des danses populaires, nos volumes dos Travaux du 1er Congrs
International de Folklore, apresentado por Nicanor Miranda, e, segundo consta nos
anais do congresso, merecendo referncias elogiosas de Georges Henri Rivire,
Secretrio do evento.
No entanto, a importncia da SEF na divulgao do folclore e da pesquisa
cientfica no Brasil se traduziu, sobretudo, na rede de relaes estabelecidas entre
intelectuais e acadmicos, principalmente professores da Universidade de So Paulo
- USP, destacando-se as figuras de Emilio Willems, Livre-docente de Sociologia
Educacional e um dos scio-fundadores da SEF; Lavnia Costa Vilela, tambm
professora e assistente do professor Roger Bastide, assumindo, inclusive, funes
administrativas de secretariado na SEF; Claude Lvi-Strauss, recm-contratado
como professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
(FFCH). Alm disso, as correspondncias com outros rgos da administrao
pblica municipal, prefeituras e fundaes do interior de So Paulo, com professores
e diretores de escola, convocando-os a participar do inqurito folclrico produzido
pela SEF e a responder aos questionrios encaminhados configuram essa rede
espraiada de associados95.

94

Dividiu o curso em 23 aulas, produzindo para cada dia uma apostila com temtica diversa: as quatro
primeiras aulas foram dedicadas a Antropologia fsica; da 5a a 8a ao folclore anlise de objeto
decorado, a msica; as 9a e 10a, aos instrumentos musicais; 11a a dana e o drama; 12a, aos jogos; 13a:
contos, lendas, mitos, provrbios; 14a: cultura material; 15a: classificao dos objetos; 16a e 17a: plano
de habitao e arranho das diferentes partes; 18a: o fogo armas e instrumentos; 10a. e 20a: o arco e a
flecha a tecelagem a cermica; 21a. e 22a.: a cermica; 23a: lingstica.
95
Catlogo do Arquivo da Sociedade de Etnografia e Folclore (1993). Verso digital
http://www.centrocultural.sp.gov.br/livros/acervo/sef_1.swf. Acessado em 02/01/08.

35

Em 1938, recm-sado da Diretoria do Departamento de Cultura e convidado


a ministrar um curso de Filosofia e Historia da Arte na Universidade do Distrito
Federal, no Rio de Janeiro, dedica sua aula inaugural a um tema da cultura popular:
O artista e o arteso. Nas sesses seguintes, focaliza questes conceituais do
primitivo; das noes sobre o primitivo; do primitivo pr-histrico; do
homem natural; das fases histricas comparadas; da comunho social

96

. No

entanto, em suas descobertas estticas, aproxima-se cada vez mais dos debates das
cincias sociais, abordando temticas sobre a mentalidade primitiva, conforme
Lvy-Bruhl, Tylor e Frazer e a literatura antropolgica produzida na Alemanha97. E
atravs de uma concepo ampliada de arte e cultura, a um s tempo abrangente e
vertical, embasa a sua conceituao para um Servio do Patrimnio Artstico
Nacional.
Mrio de Andrade via com entusiasmo a iniciativa de uma agncia de
proteo do patrimnio nacional. A discusso sobre a criao de uma agncia com
essa incumbncia iniciou-se na viagem s cidades de Minas, na dcada de 1920,
quando se mostrou reveladora de uma cultura autenticamente brasileira, mas
tambm produziu uma srie de denncias sobre a situao de abandono dessas
cidades. Desde ento, os intelectuais que participaram da caravana de redescoberta
do Brasil passaram a escrever artigos, alertando para a ameaa da perda irreparvel
dos monumentos de arte colonial, considerados autntica tradio nacional.
Ainda que houvesse tenses nos modos de compreender as relaes entre
cultura e nao, o grupo de intelectuais modernistas que se manteve ao lado de
Gustavo Capanema, ministro da Educao e Sade Pblica de 1934 a 1945, buscava
consolidar um projeto centrado na idia de brasilidade98. Mais uma vez, observou-se
que as perspectivas eram divergentes mesmo quando pareciam dar noo o mesmo
96

ANDRADE, M. Curso de Filosofia e Historia da Arte & Anteprojeto do Servio do Patrimnio


Histrico e Artstico Nacional. So Paulo: Centro de Estudos Folclricos/ GFAU, 1955.
97
Em palestra realizada do Laboratrio de Educao Patrimonial da Universidade Federal Fluminense
(LABOEP/FEUFF), Tel Ancona Lopez, pesquisadora responsvel pelo acervo de Mrio de Andrade e
autora de muitos livros sobre a sua trajetria social, apresentou-nos um quadro muito ampliado das suas
leituras, revelando em seu acervo documental livros e revistas editados em alemo. Vale destacar a
assinatura da revista Der Querschnit, O Corte Vertical, cujas imagens, planos e poses abriram-lhe novas
perspectivas de olhar.
98
A elaborao de um projeto cultural em seu sentido amplo no se constitui como uma problemtica
nova em nossa histria cultural. Observa-se desde o romantismo que a questo da brasilidade era um
problema debatido pela elite culta do pas. Cf. MORAES, E. J. A brasilidade modernista. Rio de
Janeiro: Graal, 1978, p. 73.

36

sentido. A valorizao das diferentes manifestaes culturais como identificadoras


da brasilidade, como almejava Mrio de Andrade, perdia espao para uma
concepo universalista de arte e cultura que se enquadrava na classificao
tradicional da histria da arte ocidental.
A problemtica da proteo do patrimnio histrico e artstico deve envolver
relaes entre instituies, dentre as quais se destacam: o Ministrio de Educao e
Sade Pblica (1930) que abrigava o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional (1937), o Instituto Nacional do Livro (1937) e a Universidade do Brasil
(1937); o Conselho de Expedies Artsticas e Cientficas (1933); a Inspetoria de
Monumentos Nacionais (1934), vinculada ao Museu Histrico Nacional (1922); o
Departamento de Imprensa e Propaganda (1939) Apesar de bastante diversas, todas
essas instituies foram pensadas para exercer controle centralizado sobre o espao
e as pessoas, conforme enfatiza Castro Faria, que vai chamar a ateno para a
trama de contexto entre agentes e agncias. Portanto, no se pode pensar a
instituio do patrimnio sem considerar as outras instituies criadas por dentro de
uma poltica de Estado nacionalista, bem como os atores sociais frente das
mesmas. So os nacionalismos retricos, literrios e os de Estado os suportes
ideolgicos que sustentam o sistema poltico brasileiro nesse perodo99.
Miceli100, ao contextualizar as transformaes ocorridas no perodo, destaca
como eixos de investigao a criao dos novos cursos superiores, a expanso da
rede de instituies culturais e o surto editorial. O autor localiza dentro do aparelho
de Estado as mltiplas inseres desses intelectuais, formaes e pontos de vista em
conflito.

99

CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos dualidade e polimorfia. In: CHUVA, M. (org.) A


Inveno do Patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, p. 29-37. Em entrevista a ngela de Castro
Gomes, Castro Faria revela que, para alm do material divulgado no ensaio sobre a inveno do
patrimnio, prepara um fichrio desses vrios nacionalismos, com designaes colhidas em textos de
poca: h o nacionalismo catlico, nacionalismo de Petrpolis, nacionalismo disso ou daquilo. So vrios
os nacionalismos. Ver entrevista com o professor Lus de Castro Faria. In: GOMES, A. C.; NEDER, G.
Antropologia no Brasil: Trajetria intelectual do prof. Lus de Castro Faria. Tempo. Rio de Janeiro: UFF,
v. 2, no. 4, dezembro de 1997, p. 182.
100
MICELI, S. Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil: 1920-1945. So Paulo: Difel, 1979.

37

1.2. A lgica dos formuladores da agncia de patrimnio: o anteprojeto de


Mrio de Andrade e o Decreto-lei 25/37 de Rodrigo M. F. de Andrade

Na histria do pensamento social brasileiro, as figuras de Mrio de Andrade e


de Rodrigo Melo Franco de Andrade, ao lado da de Gustavo Capanema, tornaram-se
paradigmticas no que toca a idealizao, articulao e gesto das primeiras aes de
proteo do patrimnio histrico e artstico nacional.
Mrio de Andrade, escritor j ento consagrado pela crtica e por seus pares e
diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de So Paulo, foi convidado
a elaborar um projeto de lei que dispunha sobre a criao de um Servio de Proteo
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, no mbito de ministrio de Educao e
Sade Pblica. Fora escolhido pelo Ministro Gustavo Capanema justamente por ter
uma obra reconhecida, dedicada tarefa de expressar a verdadeira identidade do
brasileiro, obtida atravs do estudo e classificao do material recolhido em suas
viagens etnogrficas. Desafiado a criar as bases conceituais e organizativas da
agncia de preservao, Mrio de Andrade entregou ao Ministro Capanema, em
maro de 1936, o Anteprojeto do Servio do Patrimnio Artstico Nacional e
indicou, juntamente com Manuel Bandeira, o jornalista e advogado mineiro Rodrigo
Melo Franco de Andrade101 para a direo da agncia, principal instituio de
proteo dos bens culturais do pas e que veio substituir a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, dirigida por Gustavo Barroso102.

101

Rodrigo M. F. de Andrade bacharelou-se em direito pela Universidade do Rio de Janeiro. Na dcada


de 1920, foi redator-chefe da Revista do Brasil e diretor de O Jornal, na Capital Federal. Rodrigo era um
liberal que se engajou no modernismo a partir de suas relaes pessoais constitudas ainda em Minas
Gerais, e depois no Rio de Janeiro e em So Paulo. Envolveu-se com o governo Vargas desde seus
primeiros anos, como Chefe de Gabinete de Francisco Campos, no MES, por curto perodo de 5 meses,
ocasio em que indicou o nome de Lcio Costa para a direo da Escola de Belas Artes, que mais tarde
vai se juntar sua equipe do SPHAN, ao lado de Carlos Drummond de Andrade. CHUVA, M. R. R. Os
Arquitetos da Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico nacional no Brasil (anos 30 e
40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e II. Niteri, RJ: Universidade Federal Fluminense, 1998,
1998.
102
Escritor, jornalista e advogado, o cearense Gustavo Barroso foi o primeiro Diretor do Museu Histrico
Nacional, criado em 1922. A Inspetoria de Monumentos Nacionais, criada em 1934, funcionou nas
dependncias do Museu Histrico Nacional at a sua extino, em 1937. Encarregada de identificar,
classificar e restaurar os principais stios histricos brasileiros [...] Em Ouro Preto, a Inspetoria conduziu
entre 1934 e os meados de 1936 obras de restaurao em algumas dzias de fontes e igrejas. A esse
respeito ver: WILLIANS, D. Sobre patronos, heris e visitantes. O Museu Histrico Nacional, 19301960. Anais do Museu Histrico Nacional. Vol. 29, 1997.

38

Diversos trabalhos analisam o papel mediador do anteprojeto de Mrio de


Andrade para a criao do SPHAN103. Chuva revela a profunda intertextualidade
do anteprojeto quando cotejado ao Decreto-lei 25/1937. Fonseca refora a
importncia da noo de arte como um conceito unificador da idia de
patrimnio. J Nogueira, ao reafirmar as condies sociais de sua produo,
enfatiza a concepo de inventrio proposta no anteprojeto de Mrio de Andrade104.
Apesar de todos contriburem com novas perspectivas de anlise, produziu-se um
consenso sobre a amplitude das questes conceituais suscitados pelo texto do
anteprojeto.
Mrio de Andrade classificou as obras de arte patrimoniais de acordo com as
respectivas reas de conhecimento105. Na categoria artes arqueolgica e
amerndia, incluem-se todas as manifestaes que de alguma forma interessam
arqueologia em geral e particularmente arqueologia e etnografia amerndia. Na
arte popular, compreendem-se todas as manifestaes de arte pura ou aplicada,
tanto nacional como estrangeira, que de alguma forma interessem etnografia, com
excluso da amerndia. Desse modo, o autor explora, em cada uma das oito
categorias de obra de arte patrimonial, as condies de pertencimento/ incluso nos
quatro livros de Tombamento, a saber, Arqueolgico e Etnogrfico, Histrico, das
Belas-Artes e das Artes Aplicadas, com seus respectivos museus integrados106.
No texto do anteprojeto107 havia a preocupao em documentar todo o tipo de
obra tombada, fosse atravs de fotografias, fosse atravs de registro escrito, com
descries pormenorizadas e caractersticas gerais da obra, tamanho, condies de
conservao, autor e sua biografia, datas e justificao de seu valor arqueolgico,
etnogrfico ou histrico. E, no caso de ser obra folclrica, Mrio acrescentava a
necessidade de se acompanhar a sua reproduo cientificamente exata (quadrinhas,
103

CHUVA, op. cit., 1998, p. 175; FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em Processo: trajetria da


poltica federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997, p. 108.
104
NOGUEIRA, A. G. R. Por um Inventrio dos Sentidos: Mrio de Andrade e a Concepo de
Patrimnio e Inventrio. So Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005, p.253.
105
ANDRADE, M. Anteprojeto de criao do Servio do Patrimnio Artstico Nacional. Cartas de
Trabalho: correspondncia com Rodrigo M. F. de Andrade, 1936-1345. Braslia: SPHAN/ FNPM,
1981, p. 40-41.
106
ANDRADE, Ibid., p. 40-43.
107
Retomo aqui a maneira como tal processo passou a integrar os discursos de preservao, recuperando
no anteprojeto de Mrio de Andrade a acepo fundadora dessa prtica pelo rgo federal. Segundo
Antnio Gilberto Nogueira, a idia de inventrio enquanto gnero de trabalho sistemtico de registro e
documentao est presente no anteprojeto de Mrio de Andrade para a criao da agncia estatizada de
preservao. Cf. NOGUEIRA, op.cit. Grifos nossos.

39

provrbios, receitas culinrias etc.). Especificamente, no caso da obra musical


folclrica, seria conveniente que a proposta fosse acompanhada de uma descrio
geral de como era executada, e, se possvel, a reproduo da msica por meios
manuscritos; alm da descrio das danas e instrumentos que a acompanham, com
datas em que estas cerimnias se realizam, alm de propor-se a filmagem
cientfica108.
Considero produtiva a anlise de Nogueira sobre o carter central das prticas
de inventrio no anteprojeto de Mrio de Andrade, principalmente, enquanto gnero
de trabalho sistemtico de registro e documentao das manifestaes culturais de
natureza folclrica e popular109. Vale lembrar que Mrio de Andrade se contrapunha
falta de contextualizao dos levantamentos folclorsticos da sua poca, porque
no se ajustavam aos rigores de coleta etnogrfica; fato este que gerava descries
imprecisas e concluses apressadas110. Ele tambm condenava as interferncias
feitas pelos folcloristas, tanto sob o ponto de vista da tcnica da poesia como
quanto [da] inteligibilidade. Para esse autor, mesmo os estudos de Slvio Romero
sobre poesia popular refletem mais a curiosidade apaixonada e o polimorfismo do
escritor, que uma tendncia para encarar sistematicamente o Folclore, apesar de
reconhecer a honestidade de seu trabalho. Andrade ainda implacvel ao afirmar
que alm da indiferena dos governos e dos milionrios, o folclore cientfico sofre
[...] a concorrncia impudica do amadorismo, escandalosamente protegido pelas
casas editoras e o aplauso do pblico.111
O desinteresse pelas questes relacionadas ao folclore foi particularmente
observado na consecusso das polticas preservacionistas vinculadas ao Servio de
proteo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN)112. O Decreto-Lei
108

ANDRADE, M. Anteprojeto de criao do Servio do Patrimnio Artstico Nacional. Cartas de


Trabalho: correspondncia com Rodrigo M. F. de Andrade, 1936-1345. Braslia: SPHAN/ FNPM, 1981,
p. 40-43.
109
NOGUEIRA, A. G. R. Por um Inventrio dos Sentidos: Mrio de Andrade e a Concepo de
Patrimnio e Inventrio. So Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005.
110
Tais crticas foram retomadas dcadas seguintes pelo eminente socilogo Florestan Fernandes. Ver
FERNANDES, F. O Folclore em Questo. 2 ed. So Paulo: editora Hucitec, 1989.
111
ANDRADE, M. Folclore. In: Moraes, R. B. E Berrien, W. (orgs.) Manual Bibliogrfico de
Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: grfica editora Souza, 1948, p. 285-317, p. 285, 287.
112
O Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, criado atravs da Lei n. 378 de 13 de janeiro
de 1937, que organizou o Ministrio da Educao e Sade Pblica sob o comando do advogado e poltico
mineiro Gustavo Capanema, teve a sua ao de proteo regulamentada pelo Decreto-lei 25, de 30/11/37.
Mrcia Chuva analisa comparativamente o Decreto-lei 25/37 a outros textos que o antecederam, em
especial o anteprojeto de Mrio de Andrade, atestando a amplitude deste ltimo nas questes referentes

40

25, de 30 de novembro de 1937, conferiu ao SPHAN o dever de proteger o


conjunto de bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de
interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da Histria do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou
artstico; alm disto, equiparou ao conjunto de bens, com o mesmo princpio de
proteo, os monumentos naturais, bem como stios e paisagens que importa
conservar e proteger pela feio notvel com que tenham sido dotados pela natureza
ou agenciados pela indstria humana113.
O Decreto-lei n 25/37, elaborado por Rodrigo Melo Franco de Andrade e
tendo por base o anteprojeto de Mrio de Andrade, conceitua o organiza a proteo
do patrimnio histrico e artstico nacional. A formao de Rodrigo nas cincias do
direito o gabaritou para a empreitada de criar um instrumento legal de proteo e
acautelamento dos bens patrimoniais, dando uma feio jurdica ao texto do
anteprojeto elaborado por Mrio de Andrade.
O instituto do tombamento o instrumento jurdico de que dispe o Estado
brasileiro para garantir a proteo dos bens patrimoniais, mas estava voltado
basicamente para garantir ao rgo que surgia os meios legais para sua atuao num
campo extremamente complexo, que regulamenta a questo da propriedade114. No
tombamento, o Estado intervm na propriedade privada, protegendo bens de ordem
histrica, artstica, arqueolgica, etnogrfica e paisagstica. O ato gera alguns
relevantes efeitos no que concerne ao uso e alienao do bem tombado, tais como:
ser vedado ao proprietrio destruir, demolir ou mutilar o bem; ser obrigado a
informar toda reforma ou restaurao ao rgo pblico; informar no caso de
alienao do bem ao Poder Pblico, que possui o direito de preferncia. Finalmente,
cabe ressaltar que o tombamento no gera obrigatoriedade de o Poder Pblico
indenizar o proprietrio do imvel.
Voltando-nos para a trajetria de seu principal gestor, Rodrigo Melo Franco
de Andrade, a agncia estatizada de preservao era comandada por um intelectual
ao folclore a cultura popular. Cf. CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da Memria: a construo do
patrimnio histrico e artstico nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e
II. Niteri, RJ: Universidade Federal Fluminense, 1998; FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em
Processo: trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997.
113
ANDRADE, R. M. F. Brasil: Monumentos Histricos e Arqueolgicos. Mxico: Instituto
Panamericano de Geografia e Histria, 1952.
114
FONSECA, op.cit., p. 114.

41

que dispunha de relativo prestgio dentro dos crculos artsticos e literrios


modernistas dos anos de 1920 e 1930. Apesar de uma trajetria literria acanhada,
ao publicar um nico livro de contos, Velrios115, que pouca gente conhece, como
lembra Luiz de Castro Faria ao recordar os seus contatos com o Diretor do
Servio116, Rodrigo foi editor de revistas e jornais na capital mineira. Na verdade,
sua carreira no foi literria, mas voltada para a burocracia do Estado, dirigindo a
agncia estatizada de patrimnio por mais trinta anos. Mas foi a partir de meados
dos anos de 1930, quando se dedicou tarefa de organizar e dirigir o Patrimnio
Nacional, que Rodrigo passa a refletir e a escrever sobre o tema. Escreveu pequenos
textos e artigos, publicados em jornais da poca, tornando-se um especialista em
histria da arte e arquitetura no Brasil117. Seu livro sobre os mestres e artfices dos
sculos XVII e XVIII, rene uma srie de artigos sobre os monumentos da
arquitetura religiosa barroca, edifcios pblicos, casas de cmara e cadeia118. Rodrigo
tornou-se membro do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, da Academia
Nacional de Belas Artes de Portugal e do Comit Executivo do Conselho
Internacional de Museus. Seu prestgio no campo temtico do patrimnio pode ser
mensurado pelos Ttulos Honorficos acumulados: Doutor honoris causa da Escola
de Belas Artes, da Universidade do Recife e Cavalheiro Oficial de Ordem do Mrito
da Repblica Italiana.
Da interlocuo estabelecida entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mrio
de Andrade, legtimos formuladores dos aparatos jurdico e conceituais que
organizam a agncia do patrimnio, pode-se apreender algumas afinidades e tantas
outras diferenas entre os pensamentos desses dois intelectuais. Quanto s
afinidades, afirmaram-se como homens pblicos e devotados causa do patrimnio
nacional119. Outro ponto que os aproximava era a inteno de romper com as teses

115

Publicado pela primeira vez em 1936, somente em 2004, o livro ganha uma segunda edio pela
editora Cosac Naify.
116
Heloisa Alberto Torres aproximou Luiz de Castro Faria da roda de intelectuais que a partir de 1938
acompanhou a gesto de Rodrigo Melo Franco de Andrade frente do SPHAN. Cf. CASTRO FARIA, L.
Um Outro Olhar: dirio da expedio Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2001, p. 23.
117
ANDRADE, R. M. F. Artistas Coloniais. Rio de Janeiro: nova fronteira, 1997; ANDRADE, R. M. F.
Brasil: Monumentos Histricos e Arqueolgicos. Mxico: Instituto Panamericano de Geografia e
Histria, 1952.
118
ANDRADE, R. M. F. Artistas Coloniais. Rio de Janeiro: nova fronteira, 1997, p. 11.
119
GONALVES, J. R. S. A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ/ IPHAN, 1996; SANTOS, M. V. O tecido do tempo: a idia de Patrimnio Cultural

42

geograficizantes das origens da cultura nacional. Rodrigo escreve um artigo na


Revista do Brasil, em 1927, atacando abertamente Plnio Salgado e confrontando-se
com os modernistas conservadores da corrente verde e amarelo120. Mrio, por sua
vez, seguro de seu projeto de redescoberta do Brasil, prope uma
desgeografizao das tipificaes e um investimento na aceitao de uma
diversidade experimentada a partir de seus deslocamentos pelo territrio nacional.
No anteprojeto de Mrio de Andrade estava prevista uma Seo de
Publicidade, que, dentre outras atribuies, editaria uma Revista Nacional de
Artes. Esta idia foi levada adiante com muito entusiasmo pelo ento Diretor do
Servio, Rodrigo Melo Franco de Andrade, homem das letras e da arte. Data deste
perodo, portanto, o lanamento de duas sries de publicaes do SPHAN: a Revista
do SPHAN e a chamada Publicaes do SPHAN. Esses dois produtos editoriais do
SPHAN tiveram grande circulao nos meios intelectuais e acadmicos. Como
ressalta Chuva (1998, 2004), tais publicaes constituam uma rede de alianas e
uma reciprocidade nas trocas em que seus discursos legitimavam a ao
institucional121.
O estudo de Mrcia Chuva sobre as duas sries de publicaes do SPHAN,
nas duas primeiras dcadas de institucionalizao da agncia de patrimnio (1930 e
1940), revela um enovelado contexto de relaes de tenso e disputa do campo
intelectual. O status diferenciado que o antroplogo adquire naquele momento
evidenciava-se por sua forte presena na composio do Conselho Consultivo e por
sua contribuio nas publicaes da agncia, contribuies essas que conferiam um
novo enfoque para as questes relacionadas proteo do patrimnio nacional.
Considerando-se que os estudos etnogrficos representavam apenas 5,7% da
produo literria da Revista122, a tendncia natural seria minimizar a importncia da
categoria profissional do antroplogo no mbito do projeto editorial do SPHAN.
no Brasil (1920-1970). Tese de Doutorado. Braslia, Programa de Ps-Graduao em Antropologia, UnB,
1992.
120
CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico
nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e II. Niteri, RJ: Universidade
Federal Fluminense, 1998, p. 291.
121
CHUVA, Mrcia Fundando a nao: a representao de um Brasil barroco, moderno e civilizado.
Topoi: revista de Histria. Rio de Janeiro: Programa de Ps-Graduao em Histria Social da UFRJ/ 7
Letras, 2004, v. 4, n. 7, jul.-dez., 2003. CHUVA, op.cit, 1998.
122 CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico
nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e II. Niteri, RJ: Universidade
Federal Fluminense, 1998, p. 331.

43

Entretanto, deve-se enfatizar que seus artigos sobre a cultura material, os acervos
arqueolgicos, as habitaes indgenas e o patrimnio socioambiental representavam
uma considervel ampliao de perspectiva na discusso sobre o patrimnio de
modo geral.
Foi o que se extraiu observando-se sua concentrao dentre os
membros do Conselho Consultivo, espao reservado aos
intelectuais ilustres, onde a produo discursiva deveria ser
solidamente construda. Eles ampliaram, potencialmente, o
discurso possvel do SPHAN, via de regra, pela diversidade de
objetos culturais com que lidavam123.

Escreveram, nessas sries, intelectuais de renome, amigos de Rodrigo M. F.


de Andrade e assduos freqentadores de seu gabinete. Alguns deles compunham o
Conselho Consultivo do SPHAN, como Helosa Alberto Torres e Afonso Arinos de
Melo Franco, que era filho de diplomata e descendia de tradicional famlia de
polticos e intelectuais. Afonso Arinos participou por longos anos do Conselho
Consultivo do Patrimnio, ministrou cursos124 para tcnicos da instituio, publicou
na Revista do SPHAN, alm de ter participado das reunies de Gabinete.
Nas duas primeiras dcadas de institucionalizao do Servio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional estiveram presentes no Conselho Consultivo os
seguintes antroplogos: Edgard Roquette-Pinto, Helosa Alberto Torres, Raimundo
Lopes e Alberto Childe, todos com algum tipo de vnculo funcional com o Museu
Nacional.
O primeiro nmero da Revista do Patrimnio traz profundas contribuies
para o entendimento das mltiplas representaes concorrentes sobre o que se
considerava patrimnio da nao. Como analisa Chuva (1998), as publicaes do
SPHAN se caracterizavam por uma certa ampliao do escopo de anlise, uma vez
que seus autores partiam de posies bastante diferenciadas dentro da agncia
estatizada. Mrcia Chuva analisa a atuao e a trajetria dos autores que escreveram
para a Revista do Patrimnio no decnio de 1937 a 1947, os dividindo em trs
grupos, a saber: o de intelectuais que freqentavam o gabinete de Melo Franco de
Andrade, composto por uma elite com projeo social e poltica, mas que no faziam
123

Ibid., p. 325
FRANCO, A. A. M. Desenvolvimento da Civilizao Material no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro:
Topbooks Editora, 2005. O livro o resultado de cinco conferncias realizadas em 1941, por Afonso
Arinos de Melo Franco, como parte da formao do insipiente corpo tcnico da instituio. Inicialmente
editado em 1944, como parte da coleo de monografias editadas pelas Publicaes do SPHAN.
124

44

parte da estrutura burocrtico-administrativa do Servio; os acadmicos e


profissionais com vnculo funcional e que participavam do Conselho Consultivo; os
funcionrios de ilibado reconhecimento intelectual; e, por fim, os convidados.
Responsveis por uma produo discursiva descritiva e classificadora do
patrimnio histrico e artstico nacional, esses intelectuais escreveram sobre temas
variados125.
Mesmo aqueles antroplogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro que
colaboravam no Conselho Consultivo nesse perodo da pesquisa de Chuva nas
dcadas de 1930 e 1940 observou-se tratarem de assuntos bastante diversos:
enquanto Helosa Alberto Torres elaborou artigo sobre o estudo da proteo do
material arqueolgico e etnogrfico, assunto esse que estava no centro do debate da
instituio da qual ela era a Diretora e que congregava antroplogos europeus e
norte-americanos para a problemtica dos sambaquis brasileiros, Edgard RoquettePinto escrevia sobre a temtica da Estilizao. Raimundo Lopes preocupou-se em
relatar sobre a pesquisa etnolgica sobre a pesca brasileira no Maranho, alm de
refletir sobre A natureza e os monumentos culturais, temtica bastante lateral dos
debates daquela poca, mas foi sendo incorporada pela agncia de preservao nas
dcadas de 1970 em diante.
O Guia da Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional126 (1991)
permite que se tenha um panorama dos temas e problemas tratados pelas publicaes
do Patrimnio, no perodo que vai desde 1937 at 1991. Por ser um ndice
cumulativo por assuntos e autores, a anlise de suas partes revela certa impreciso
na incluso de determinados autores em seus respectivos assuntos. Sigo, no entanto,
a classificao do prprio instrumento. Procuro me referir aos temas e problemas
que interessam a essa tese, a saber: antropologia, arqueologia, artesanato, bens
culturais, cultura cultura e sociedade, cultura popular, cultura indgena ,
etnografia, identidade cultural, patrimnio arqueolgico, patrimnio cultural e
poltica cultural.
125

CHUVA, M. R. R. Os Arquitetos da Memria: a construo do patrimnio histrico e artstico


nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado em Histria. vol. I e II. Niteri, RJ: Universidade
Federal Fluminense, 1998, p. 320 - 324.
126
APNDICE I - quadro que situa antroplogos, socilogos, arquelogos e escritores que pensaram o
campo temtico do patrimnio brasileiro, por assunto e autor/ttulo. Para construo do quadro, baseei-me
em publicao do IPHAN. Guia da Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. ndice
cumulativo (1937-1990). Rio de Janeiro: IBPC, 1991.

45

Poder-se-ia fazer muitas interpretaes da anlise desse guia de publicaes.


A primeira delas, diz respeito ao espao dado a arqueologia em relao
antropologia, que nesse instrumento aparece praticamente de maneira residual. No
entanto, uma observao mais atenta revela que a antropologia se diluiu em outros
temas, como: carnaval, identidade cultural, cultura, artesanato, e tantos outros.
Chamou-me ateno, porm, a recorrncia da arqueologia nos debates da
preservao do patrimnio nacional. Observei, tambm, uma ampliao considervel
dos temas e problemas tratados pela antropologia, cada vez mais pautada pelo
relativismo cultural, pelas noes de dinmica cultural e de processo e de adeso ao
postulado da diversidade cultural.
Busco, portanto, reconstituir o lugar do antroplogo nos debates do
patrimnio nacional. Se, hoje, a figura do antroplogo se faz presente e atuante
constante nos debates do patrimnio imaterial, sua presena se faz notar desde a
concepo da agncia de preservao, principalmente nas instncias do Conselho
Consultivo e nas publicaes da instituio. Intelectuais vinculados s instituies
cientficas, aos museus e s universidades ainda incipientes na rea de cincias
humanas e sociais aplicadas participaram dos debates do campo temtico do
patrimnio, muitas vezes celebrando convnios em reas especficas, como no caso
do patrimnio arqueolgico que apresento a seguir.

46

CAPTULO 2 Elos do patrimnio: Luiz de Castro Faria e a


preservao dos monumentos arqueolgicos no Brasil.

2.1. Quando o arquivo o campo


O professor Luiz de Castro Faria revelou a seus alunos do Programa de PsGraduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, por ocasio da
aula inaugural realizada excepcionalmente em sua casa127, seu percurso pelas ruas
do Centro do Rio de Janeiro ao deixar o gabinete de Dr. Rodrigo Melo Franco de
Andrade. Neste relato, fez referncia a certos lugares de memria, cenrios e
personagens com os quais manteve uma relao duradoura.
Este depoimento espontneo e circunstancial foi to contundente que
provocou em mim o interesse em melhor compreender as mltiplas posies e
pertencimentos de uma trajetria social to rica e, no entanto, apagada pelo tempo.
Os contatos de Castro Faria com Rodrigo Melo Franco de Andrade parecia uma boa
pista para entender a sua participao na legislao de preservao dos sambaquis
brasileiros. Era o professor Luiz de Castro Faria falando de seu duplo: o pesquisador
do Museu Nacional do Rio de Janeiro e o gestor pblico engajado nos debates sobre
o valor cientfico dos monumentos arqueolgicos e a importncia de uma proteo
especfica para os stios, jazidas e inscries rupestres. Na funo de chefe do setor
de antropologia, vindo depois a se tornar diretor da instituio, ocupava posies de
prestgio dentro dos campos acadmico e poltico-institucional. Minha indagao
central era sobre o significado e o alcance da aproximao entre os campos da

127

Este curso, ministrado no primeiro semestre de 2004, contou com a participao dos professores
Alfredo Wagner Berno de Almeida (com quem Luiz de Castro Faria dividiu a disciplina) e Heloisa Maria
Bertol Domingues (como professora colaboradora). Todas as aulas foram ministradas nas dependncias
da Universidade Federal Fluminense, com exceo desta aula, marcada na casa do professor Luiz de
Castro Faria, no bairro de Icara, em Niteri. Foram lanados, recentemente, dois livros com os seus
programas do curso no Museu Nacional e na Universidade Federal Fluminense. No primeiro, alm de
constar a ltima ementa de curso, conta com a reproduo de uma palestra do professor Castro Faria,
proferida no Frum de Cincia e Cultura da UFRJ, em junho de 1995. Cf. CASTRO FARIA, L.
Antropologia: duas cincias. ALMEIDA, A.W.B.; DOMINGUES, H.M.B. (orgs.). Rio de Janeiro:
CNPq/ MAST, 2006. J o segundo livro apresenta um panorama dos planos de cursos ministrados por ele
no Museu Nacional da UFRJ, iniciados no segundo semestre de 1968 e concludos em 2000. O volume
tambm traz a ementa de seu ltimo curso na UFF, alm de anlises e depoimentos de ex-alunos e
colaboradores de Castro Faria, em sua longa trajetria de docncia. Cf. CASTRO FARIA, L.
Antropologia Escritos Exumados 3. Lies de um praticante. Rio de Janeiro: Eduff, 2006.

47

antropologia e do patrimnio.
A interseo dos pesquisadores entre os campos acadmico e poltico
tolerada, na maior parte das vezes, trazendo a discusso da ambigidade do valor
da autonomia da cincia, nos termos discutidos por LEstoile, Neiburg e Sigaud128.
Enveredei nesta direo, propondo-me a refletir sobre tais relaes e a aprofundar a
anlise sobre um campo especfico do patrimnio: a preservao dos monumentos
arqueolgicos e pr-histricas, tendo em vista os dispositivos jurdicos que se
constituam e a sua vinculao com a antropologia ainda incipiente no pas.
J naquele primeiro encontro tive algumas pistas. Sentado mesa do
escritrio, em companhia dos livros e de seu arquivo pessoal129, o professor
retomava alguns pontos do programa de curso, em que se propunha a:
convidar os participantes para uma reflexo detida que
acompanhe [...] tanto os deslocamentos tericos da relao entre
ttulo escolar e a autoridade da cincia, quanto aqueles da
relao entre produo intelectual e a sociedade, tendo as
distintas prticas profissionais no campo da antropologia no
Brasil como referncia emprica130.
Observei o quanto o objetivo reflexivo da ementa ganhava densidade, na medida
em que ele discorria sobre a sua prpria carreira no Museu Nacional. A longa prtica na
docncia talvez pudesse justificar o seu estilo eloqente, to conhecido de seus
discpulos, mas o fato era que Castro Faria contava-nos a sua verso da histria da
antropologia no Brasil. Considerando que as dcadas de 1930 e 1940 caracterizaram-

se pela imensa mobilizao desses intelectuais nos debates sobre as polticas de


preservao do patrimnio nacional, deduzi que faltava apurar a insero dos
antroplogos em debates que os afetavam diretamente. Foi, portanto, aquela
remisso aproximao entre os dois intelectuais a primeira pista que me estimulou
a investigar as relaes entre Luiz de Castro Faria e os modernistas vinculados
128

LESTOILE; NEIBURG; SIGAUD. Antropologia, Imprios e Estados Nacionais. Rio de Janeiro:


FAPERJ, 2002, p. 15.
129
Em entrevista s pesquisadoras ngela de Castro Gomes e Gizlene Nader do CPDOC, Castro Faria
revelou uma posio ambivalente quanto ao seu arquivo pessoal: E eu tenho, ali nos meus arquivos
so cinqenta caixas de arquivos que eu pretendo queimar... alguns salvos-condutos. Eu tinha um
documento oficial declarando que eu era fiscal do Conselho, eu no podia viajar em Mato Grosso, de um
municpio para outro, sem um salvo-conduto. Ver em: GOMES, ngela C. e NEDER, Gizlene.
Antropologia no Brasil: Trajetria intelectual do prof. Luiz de Castro Faria. In: Tempo, Rio de Janeiro:
UFF, vol. 2, no. 4, dezembro de 1997, p. 183. Grifos nossos.
130
CASTRO FARIA, L. Antropologia: duas cincias. ALMEIDA, A.W.B.; DOMINGUES, H.M.B.
(orgs.). Rio de Janeiro: CNPq/ MAST, 2006, p. 67-89. CASTRO FARIA, L. Antropologia. Escritos
Exumados 3. Lies de um praticante. Niteri, RJ: EDUFF, 2006, p, 375-389.

48

agncia do patrimnio, nas figuras de Rodrigo M. F. de Andrade, frente do Servio


do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, e de Mrio de Andrade, ento Diretor
do Departamento de Cultura de So Paulo.
O meu treinamento em pesquisa histrica serviu de grande ajuda durante o
levantamento das fontes em arquivos (fsicos e virtuais), no intuito de recuperar
fragmentos dessa memria dispersa131. Assim, me vi diante do desafio de estabelecer
um dilogo entre documentos e a problemtica que havia construdo, a saber, como
que o campo temtico do patrimnio foi se construindo a partir da interseo de
outros campos disciplinares, no caso, da antropologia. Na verdade, os campos
acadmico e poltico estavam se constituindo no mesmo perodo de formao do
Estado moderno brasileiro. Se, na arena poltica, a administrao pblica ganhava
contornos muito precisos mediante a expanso dos aparelhos do Estado, na esfera da
produo simblica, as transformaes no campo editorial e na institucionalizao
das cincias sociais, constituram fatores fundamentais para a sua autonomizao
relativa, nos termos propostos por Pierre Bourdieu132. A tese busca esclarecer a
dinmica entre esse conjunto de fatos e o campo temtico do patrimnio. Para tal,
fez-se necessrio organizar nveis diversos de informaes e de pesos funcionais nos
arquivos pesquisados.
Um conceito bsico para quem trabalha em arquivo o de fundo
documental, compreendido como uma unidade a ser mantida, pois espelha toda
uma trajetria institucional. O arquivo Noronha Santos, do IPHAN, possui como
ncleo principal de seu acervo o fundo IPHAN, cuja lgica de organizao est
subdividida nas seguintes sries: tombamento, arqueologia, obras, inventrios e
outras sries. O arquivo tambm elaborou uma srie de instrumentos de consulta de
modo a facilitar a pesquisa e a identificao de documentos. Dentre eles, destacamse o ndice das Atas do Conselho Consultivo do Patrimnio (1938/2004) e a
Listagem do arquivo tcnico administrativo do IPHAN.
131

Catlogo do Arquivo da Sociedade de Etnografia e Folclore (1993). Verso digital


http://www.centrocultural.sp.gov.br/livros/acervo/sef_1.swf , acessada em 02/01/08; SUMRIOS DO
ARQUIVO CASTRO - MAST/RJ (2 volumes); a listagem Srie Arquivo Tcnico-Administrativo
SPHAN (Sub-srie Instituto Evoluo Institucional. Md. 72 Prat. 02 Cx. 246 e 247 Pastas 54-56 e 5759). Srie Arqueologia (Sub-srie Histria cx. 90, pasta 12; Sub-srie Legislao Lei 3.924
[anteprojetos, correspondncias...] CX. 156. Folder: Legislao, Lei 3924/61).
132
As noes de peso funcional e autoridade sero os fios condutores dessa anlise. Nesse sentido, as
posies que atores polticos do patrimnio ocupam sero confrontadas atravs dos temas e problemas
referentes ao campo intelectual.

49

Como meu primeiro objetivo era identificar o perodo de participao do


professor Luiz de Castro Faria no Conselho Consultivo do Patrimnio, consultei o
instrumento de indiciamento. Constatei, ento, que participou como conselheiro no
perodo de 1958 a 1966. A primeira vez que aparece a citao de seu nome no
ndice de Atas, refere-se 25a Reunio do Conselho Consultivo na condio de
Diretor-substituto do Museu Nacional, cargo que lhe garantia a convocao nas
reunies do Conselho133. Castro Faria reconhece que no campo da produo erudita
da poca so os museus e as sociedades de intelectuais que ocupam posies
socialmente mais consagradas e consagradoras134. Nesse sentido, o Conselho
Consultivo do Patrimnio aparece como uma instncia de legitimao de agentes e
agncias; inclusive, dos saberes que ainda no haviam conquistado espao dentro
das universidades.
O Conselho Consultivo era presidido pelo Diretor do Servio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade, que, ao abrir
cada sesso, saudava todos os ilustres participantes e, sempre que possvel, enaltecia
os ttulos e mritos de cada um dos Conselheiros. Nesse rito de instituio135, aps
os cumprimentos do Presidente, passava-se para a leitura da Ata da Sesso anterior e
para a sua subseqente votao. Depois, o Presidente tomava novamente a palavra,
anunciando quem seriam os relatores dos processos de tombamento julgados naquela
Sesso, dando-lhes a palavra em uma ordem de apresentao. Dessa primeira fase do
Conselho Consultivo presidida pelo Dr. Rodrigo, no perodo de 1937 a 1967, consta
o nome do professor Luiz de Castro Faria nas Atas do Conselho Consultivo abaixo
relacionadas136:

133

De acordo com a Lei 378/1937, o rgo deliberativo do SPHAN o Conselho Consultivo. Era, ento,
composto pelo diretor do SPHAN, pelos diretores de museus nacionais e por dez membros de mandatos
vitalcios e funo no-remunerada, nomeados pelo presidente da Repblica. Integrado por intelectuais
notveis, literatos e especialistas (historiadores, arquitetos, etnlogos, juristas etc.), sua composio
sempre foi bastante heterognea.
134
CASTRO FARIA, L. A Antropologia no Brasil. Depoimento sem compromisso de um militante em
recesso. ANTROPOLOGIA. Espetculo e excelncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora Tempo
Brasileiro, 1993, p. 32.
135
Pierre Bourdieu avalia a eficcia simblica dos ritos de instituio capazes de produzir um conjunto de
atributos sociais pautados pelo critrio da distino. A esse respeito ver: BOURDIEU, P. Les Rites
comme Actes dInstitution. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 43, juin, 1982.
136
Arquivo Noronha Santos arquivo central/ IPHAN, Rio de Janeiro. Consulta ao livro de Atas. Cf.
SPHAN [IPHAN] Livro das Atas (1938-1983), p. 31- 40.

50
25 Sesso Ordinria do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional, em 17 de julho de 1958, na posio de Diretor-substituto do
Museu Nacional.
26 Sesso Ordinria do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional, em 21 de agosto de 1958, na posio de Diretor-substituto do
Museu Nacional. Nessa reunio, o recm-empossado Conselheiro Luiz de Castro
Faria foi designado pelo Presidente como o relator do processo de tombamento do
Santurio Bom Jesus da Lapa/BA. Conjunto paisagstico.
30 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 26 de janeiro de 1960, na posio de Diretor-substituto do Museu
Nacional.
32 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 01 de setembro de 1960, na posio de Diretor-substituto do Museu
Nacional.
35 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 15 de maro de 1961, consta o nome de Castro Faria como
convidado, pois nessa poca era considerado um especialista em monumentos
arqueolgicos. O Diretor do Museu Nacional, Jos Cndido Melo de Carvalho, foi
o relator do processo em julgamento sobre o Pico de Itabirito (MG). Consta na
leitura da Ata da 34 Reunio do Conselho Consultivo o tombamento da Lapa da
Cerca Grande (Matosinho/MG), com parecer de Jos Candido M. de Carvalho.
45 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 07 de julho de 1965, pela primeira vez o nome de Luiz de Castro
Faria aparece vinculado posio de Diretor do Museu Nacional.
46 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 27 de julho de 1966, o nome de Castro Faria aparece vinculado
posio de Diretor do Museu Nacional.
47 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 06 de setembro de1966, o nome de Castro Faria aparece vinculado
posio de Diretor do Museu Nacional.
48 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, em 18 de novembro de 1966, o nome de Castro Faria aparece vinculado
posio de Diretor do Museu Nacional.

51

Para melhor exemplificar a dinmica das reunies do Conselho Consultivo,


transcrevo abaixo parte da Ata da 26a sesso ordinria do Conselho Consultivo do
Patrimnio Histrico e Artstico, ocasio em que Castro Faria foi o relator do
processo n. 579-T-58. Este pode ser considerado o seu batismo nos debates sobre
o patrimnio.
Aos 21 dias do ms de agosto do ano de 1958, em a sala (sic.) de
sesses do Conselho Nacional de Educao do Ministrio da
Educao e Cultura, reuniu-se o Conselho Consultivo do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, sob a Presidncia do
Sr. Rodrigo M.F. de Andrade, presentes os senhores Alfredo
Galvo, Gilberto Ferrez, Luiz de Castro Faria, diretorsubstituto do Museu Nacional, Correa Lima, Osvaldo Teixeira,
Manuel Bandeira, Mirian Latif, Afonso Arinos de Melo Franco,
Paulo Santos, Pedro Calmon e Francisco Marques dos Santos...
O presidente saudou os novos membros do Conselho que pela
primeira vez participavam de suas deliberaes, enaltecendo o
mrito e os ttulos de cada um, tendo o Conselheiro Alfredo
Galvo agradecido em seu nome e no do Sr. Gilberto Ferrez. Em
seguida foi lida a ata da sesso anterior, a qual foi unanimente
aprovada. Passando a ordem o dia, o presidente deu a palavra ao
Conselheiro Luiz de Castro Faria, relator do processo 579-T58, referente ao conjunto paisagstico do morro do Santurio do
Bom Jesus da Lapa, Estado da Bahia, que, depois de tecer
consideraes sobre o referido conjunto e as alteraes e
depredaes que tem sofrido, concluiu pelo no tombamento.
Posta a matria em discusso, o Conselho acompanhou o
pronunciamento do relator, contra o voto do conselheiro
Osvaldo Teixeira, que opinou pelo tombamento.137

Lendo mais detidamente o processo de tombamento do bem, observo a


especificidade do olhar e da sensibilidade do antroplogo na elaborao do seu
parecer:
No Santurio do Bom Jesus da Lapa pratica-se um culto de
cunho popular. A religiosidade da massa humana que ali ocorre
em poca de romaria se exprime de acordo com padres ticos
prprios; a sua sensibilidade possui tambm um sistema de
valores estticos algo diferente do nosso. Para que esse santurio
possa continuar fiel a essa tradio preciso que lhe no
restrinja a liberdade de ampliao, renovao e mesmo
inovao, em consonncia com as exigncias daquelas formas
peculiares de comportamento138.
137

Arquivo Noronha Santos arquivo central/ IPHAN, Rio de Janeiro. Consulta ao livro de Atas. Cf.
SPHAN [IPHAN] Livro das Atas (1938-1983), p. 32. Grifos nossos.
138
Arquivo Noronha Santos arquivo central/ IPHAN, Rio de Janeiro. Processo n 579-T-58, p. 19 e 20.
Grifos nossos.

52

Apesar de o conselho legitimar, na maioria das vezes, a orientao imprimida


pelos tcnicos do SPHAN, as deliberaes s ocorriam aps o assunto ser submetido
a calorosas discusses. Muitas vezes, o parecer do relator era contrrio resoluo
do conselho, que, por unanimidade, recomendava o tombamento. Em algumas
sesses, dada a polmica quanto ao bem, convertia-se o julgamento em diligncia ao
local, para que o redator pudesse melhor fundamentar seus argumentos.
Seguindo a cronologia das Atas, observei que a participao Luiz de Castro
Faria nas reunies do Conselho Consultivo do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional esteve concentrada em dois momentos bastante precisos: o perodo em que
antecedeu elaborao da Lei 3.924/1961, e, posteriormente, quando assumiu a
funo de Diretor do Museu Nacional. Apesar do intervalo entre ambos, no h
descontinuidades nem na conduo da poltica de salvaguarda do patrimnio
arqueolgico, nem na de gesto dos recursos para tal fim. Os debates sobre a
preservao dos monumentos arqueolgicos podem ser acompanhados atravs das
publicaes da agncia estatizada, bem como atravs de portarias139, resolues140 e
demais dispositivos que anteciparam o anteprojeto de lei.
A leitura dos documentos de arquivo, confrontada ao depoimento de Castro
Faria na aula inaugural referida na abertura deste captulo termina por apontar uma
especificidade do papel exercido por ele no mbito da antropologia/arqueologia. A
meno sua experincia de membro do Conselho Consultivo do antigo SPHAN e,
sobretudo, s dificuldades que havia em se propor a preservao de qualquer coisa
que no se referisse ao barroco e ao colonial141 tornaram-se chaves para melhor
identificar a atuao peculiar de Castro Faria, quer no contexto da produo do
139

Portaria de designao da Comisso Especial que elaborar o projeto de lei destinado a proteo do
patrimnio pr-histrico e arqueolgico nacional. Portaria de 3 de maio de 1957. O Ministro de Estado,
dos Negcios da Agricultura, resolve expedir a seguinte portaria: n. 521 - Designa, para constiturem a
Comisso Especial que dever elaborar, no prazo de 30 dias, o projeto de lei destinado a proteo do
patrimnio pr-histrico e arqueolgico nacional, os Senhores Dr. Benjamin de Campos, Consultor
Jurdico do Ministrio da Agricultura, Dr. Avelino Incio de Oliveira, Diretor Geral do Departamento
Nacional de Produo Mineral, do mesmo Ministrio, Dr. Rodrigo M. F. de Andrade, Diretor do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Dr. Jos Cndido de Melo Carvalho, Diretor do Museu
Nacional, ambos do Ministrio da Educao e Cultura, Dr. Paulo Duarte, Diretor da Comisso de Prhistria de So Paulo e Dr. J. Loureiro Fernandes, da Faculdade de Filosofia do Paran. Cf. Arquivo
Noronha Santos arquivo central/ IPHAN, Rio de Janeiro.
140
Resoluo n. 289, de 5 de setembro de 1950. Recomenda aos Poderes Pblicos competentes a proteo
e conservao de grutas naturais e sambaquis. Cf. Arquivo Noronha Santos arquivo central/ IPHAN,
Rio de Janeiro.
141
CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos dualidade e polimorfia. In: Mrcia Chuva (org.)
A inveno do patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995.

53

campo intelectual, quer no mbito do patrimnio, quer, ainda, nos debates


fundamentais da disciplina antropolgica. A dimenso bem precisa da participao
de Castro Faria na elaborao da lei de arqueologia ficou evidenciada durante a
consulta ao Arquivo Noronha Santos do IPHAN e a seu arquivo pessoal. Neles,
pude analisar o anteprojeto de lei que objetivou dar conta da nova problemtica
circunscrita aos stios e jazidas arqueolgicas de formao pr-histrica. Tambm
tive acesso s correspondncias trocadas com o Diretor do SPHAN, que solicitava
pareceres ao antroplogo, alm de relatrios de viagens, planos de trabalhos e
prestaes de contas, que comprovam um envolvimento de longo prazo. Castro
Faria, at meados de 1970, foi o principal gestor dos projetos de pesquisa e de
cadastramento dos stios arqueolgicos brasileiros, a partir da sua posio no campo
intelectual enquanto professor e pesquisador do Museu Nacional. Ocupei-me,
portanto, em investigar a extenso dessa participao.

2.1. A preservao dos monumentos arqueolgicos no Brasil


A poltica de preservao dos monumentos arqueolgicos e pr-histricos
brasileiros, regulada por lei especfica, n. 3.924, de 26 de julho de 1961, resultou
em pouca reflexo sobre o seu contexto de produo, circulao e apropriao,
ficando a apreciao muitas vezes restrita s analises comparativas dos vrios textos
mediadores da sua elaborao. Regina Coeli Pinheiro da Silva142 faz algumas
anlises sobre a primeira proposta de lei apresentada pelo professor Alberto Childe,
arquelogo e conservador do Museu Nacional, em 1920, que considerava como
riquezas nacionais e de propriedade exclusiva de cada estado da Unio, as runas,
edifcios, jazidas, grutas, cemitrios e sambaquis143; e a autora destaca outros
projetos que tramitavam no Congresso Nacional ainda nos anos de 1920 e 1930. Ela
tambm faz referncia ao trabalho apresentado pelo professor Raimundo Lopes144 no
primeiro Congresso Brasileiro de Proteo Natureza, ocorrido no Rio de Janeiro,
em 1935, e ao anteprojeto de Mrio de Andrade, confirmando a perspectiva ampla
142

SILVA, R. C. P. Compatibilizando os instrumentos legais de preservao arqueolgica no Brasil: o


Decreto-Lei n 25/37 e a Lei n 3.924/61. Revista de Arqueologia v. 9. 1996, p. 11.
143
CHILDE, 1920 apud. SILVA, Ibid., p. 13.
144
Raimundo Lopes, ex-diretor do Museu Nacional, desenvolvia pesquisas na rea de antropogeografia e
biogeografia. Integrou o Conselho Consultivo do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,
entre 1938-1946, e teve dois artigos publicados na Revista do SPHAN, em 1937 e 1938.

54

da noo de patrimnio do escritor modernista, ao atribuir valor arqueolgico a


objetos, monumentos, paisagens e folclore amerndio145.
A autora enfatiza as contribuies de Luiz de Castro Faria, antroplogo do
Museu Nacional, que realizou inmeros estudos etnogrficos, com foco nos
vestgios arqueolgicos e nas comunidades pesqueiras e sambaquis que serviram de
base para o projeto de lei. Em algumas expedies do Museu Nacional, Castro
Faria recebia a honrosa incumbncia de colaborar com o S.P.H.A.N. no trabalho de
elaborao do inventrio preliminar das obras de valor arqueolgico e
etnogrfico146. So de suma relevncia seus levantamentos de toda a bibliografia
relativa aos sambaquis no sc. XIX e parte do sc. XX, acompanhados de seus
prprios trabalhos de campo realizados na dcada de 1950 com sambaquis de Minas
Gerais e de Santa Catarina147. Por fim, Regina Coeli coteja os dois instrumentos
legais de preservao do patrimnio arqueolgico no Brasil, o Decreto-lei n. 25/37 e
a Lei n. 3924/61, e destaca as divergncias na aplicao e nos efeitos jurdicos das
duas legislaes. Essa ltima no trata a preservao pela exceo [...] Nela, todos
os stios arqueolgicos so importantes para o conhecimento do nosso passado
cultural, sem previso de destaque por excepcionalidade ou exemplaridade.148
Buscando situar a iniciativa de Castro Faria no contexto mais abrangente do
circuito de produo e circulao dos saberes antropolgicos, recorri a alguns textos
em que o autor discute os domnios e fronteiras da antropologia149. Para ele, ainda
145

SILVA, op.cit., p, 12-14.


Importante destacar a sua excurso expresso usada pelo prprio Castro Faria ao estado do
Esprito Santo, em abril de 1945. Nessa viagem, visita a cidade de Nova Almeida e chama a ateno para
a repercusso que tiveram as obras realizadas pelo SPHAN sobre a vida local. Considera a igreja ncleo
material da vida religiosa e o papel que esta desempenha fator de coeso das comunidades rurais. Mas
seu maior interesse era visitar as jazidas paleoetnogrficas nos arredores da cidade de Vitria,
enfatizando seu processo de destruio por explorador desastroso. Preocupou-se, tambm, com a
documentao das casas populares daquela regio esprito-santense Cf. CASTRO FARIA, L. Relatrio
de uma viagem ao estado do Esprito Santo. Abril de 1945. CNPq/ Museu de Astronomia/ Arquivo
Luiz de Castro Faria (CFDA.11.03.074).
147
Essa situao foi relatada pelo Diretor do ento Departamento do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade, no incio da dcada de 1950, ao afirmar que o
inventrio e a proteo do material arqueolgico do Brasil permaneceu a cargo do Museu Nacional, no
tendo podido, por enquanto, a DPHAN assumir a responsabilidade de suced-lo nessa tarefa. Mais
adiante, Rodrigo faz referncia aos trabalhos de explorao de jazidas de material arqueolgico, nos
sambaquis de Laguna, no Estado de Santa Catarina, a cargo de um dos naturalistas do Museu Nacional,
numa meno indireta dos trabalhos executados por Luiz de Castro Faria. Cf. ANDRADE, R. M. F.
Brasil: Monumentos Histricos e Arqueolgicos. Mxico: Instituto Pan-americano de Geografia e
Histria, 1952, p. 108, 178.
148
Silva refere-se ao trabalho de Snia Rabelo de Castro, que reconhece se tratar de instrumento legal de
atuao, procedimento e de feitos diversos do tombamento Castro, 1991 apud. SILVA, op.cit., p 20, 21.
149
CASTRO FARIA, L. A Antropologia no Brasil. Depoimento sem compromisso de um militante em
146

55

est por se compreender a complexidade do campo intelectual brasileiro.


, sobretudo, o desvendamento das relaes que atores e autores
do campo intelectual mantm com as instncias de poder, com
as instituies do mundo acadmico, com o mercado de trabalho
e editorial, que torna possvel a apreenso dos significados mais
profundos150.

Visto pelo prisma de um intelectual que exerceu importante papel em


instituies de ensino e pesquisa, parecer-lhe-ia evidente que a compreenso desse
campo de foras revelaria, em certa medida, os interesses conflitantes, como os do
mercado editorial em expanso, ou o das unidades de ensino superior, em processo
de institucionalizao. Castro Faria lembra, nesse enquadramento, da centralidade
do ensino da geografia no perodo do Estado Novo e de como essa disciplina
alcanou uma posio de hegemonia no campo intelectual151.
No novo ordenamento das unidades de ensino, a antropologia disputava
espao com disciplinas de maior prestgio acadmico, como a geografia e a histria.
Alm disso, os domnios do conhecimento foram se especializando e houve todo um
esforo de separar a noo de antropologia da de arqueologia. Essa distino
produziu uma descontinuidade de perspectivas terico-metodolgicas entre as duas
disciplinas, antes integradas dentro dos museus de cincia e de histria natural.
Ademais, o refinamento do conceito de cultural, a emergncia da semiologia, a
instrumentalizao dos mtodos de anlise, ofereceram arqueologia pr-histrica o
suporte terico que a historiografia no lhe poderia conceder152.
Ao buscar informaes sobre o contexto de produo da lei, obtive de duas
tcnicas do Setor de Arqueologia153 a confirmao de que a lei do sambaqui havia
sido gerada fora da instituio. Com o fim de compreender e fundamentar essa

recesso; Domnios e fronteiras do saber. A identidade da arqueologia. In: ANTROPOLOGIA.


Espetculo e excelncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora Tempo Brasileiro, 1993.
150
CASTRO FARIA, L. A Antropologia no Brasil. Depoimento sem compromisso de um militante em
recesso. In: ANTROPOLOGIA. Espetculo e excelncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora Tempo
Brasileiro, 1993, p. 5.
151
Ibid., p. 5; 10
152
CASTRO FARIA, L. Domnios e Fronteiras do Saber. A identidade da Arqueologia. Ibid., p. 30.
153
Tive contato com as arquelogas Rosana Najjar e Regina Coeli, na 6. Superintendncia Regional do
IPHAN e no Palcio Gustavo Capanema, respectivamente. Segundo Silva, foi somente em 1980 que
Alosio Magalhes cria, dentro da estrutura SPHAN/ Fundao Nacional Pr-Memria, um Ncleo de
Arqueologia, mais tarde transformado em coordenadoria, contando com a presena de arquelogos em
algumas regionais. Cf. SILVA, R. C. Compatibilizando os instrumentos legais de preservao
arqueolgica no Brasil: o Decreto-Lei n 25/37 e a Lei n 3.924/61. Revista de Arqueologia. v. 9. 1996,
p, 20.

56

afirmativa, foi necessrio consultar o arquivo central da instituio154 e o arquivo


pessoal do professor Luiz de Castro Faria155 para obter elementos que permitissem
reconstituir a gnese de um empreendimento produzido fora do IPHAN, mas com
impacto definitivo dentro do rgo.
A lei 3.924, de 26 de julho de 1961, que dispe sobre os monumentos
arqueolgicos e pr-histricos, surge em funo de uma demanda muito especfica:
as pesquisas de campo realizadas por antroplogos constatavam a destruio em
massa dos sambaquis. Estes stios arqueolgicos pr-histricos correspondem aos
acmulos artificiais de conchas e tais vestgios indicariam os padres de ocupao
dos primeiros habitantes do territrio brasileiro, sendo, portanto, objeto de
investigao cientfica. Alm disso, indicariam o interesse em recobrir as etapas da
evoluo peculiar dos diversos elementos que constituem a populao brasileira156.
A questo da ancestralidade como marca de construo identitria e elemento
conformador do carter nacional estava presente na definio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, posto que eram reconhecidos os valores arqueolgico
e/ou etnogrfico desses bens patrimonializveis. Por que, ento, o movimento
preservacionista dos sambaquis no partia da agncia estatizada, e, sim, de
instituies de ensino e pesquisa do pas157? Para responder a essa pergunta, fez-se
necessrio, como se ver a seguir, recuperar a trajetria do professor Luiz de Castro
Faria e o lugar que ocupava no contexto de produo da Lei 3.924/61, atravs dos
arquivos que documentaram o seu empenho e a sua insero nesse debate.
Antes, porm, vale registrar que o debate acerca da preservao dos
sambaquis j era sustentado pela antropologia fsica e biolgica e esteve circunscrito
154

O arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN, est localizado no Palcio Gustavo Capanema,
no Rio de Janeiro.
155
O arquivo pessoal de Castro Faria, doado em vida ao Museu de Astronomia, CNPq/MAST, no Rio de
Janeiro, passa por um processo de catalogao e classificao em conjuntos temticos O arquivo
composto por 59 caixas-box, (divididas, pelo autor, em duas partes (antiga e nova), com duas sries de
numerao (de 1 a 25 e de 1 a 34) e resultou no fichamento de 7.334 documentos textuais e iconogrficos.
A diviso por maos e muitos documentos se repetem. So documentos administrativos do Museu
Nacional, correspondncias, trabalhos de campo, fotografias, textos acadmicos, recortes de jornais,
ementas de curso e uma srie de outros documentos, dentre eles, alguns sobre patrimnio arqueolgico,
contendo relatrios, pareceres, projetos com alunos sobre prospeco arqueolgica e minuta do texto da
lei. A esse respeito consultar: http://castrofaria.mast.br/
156
Procuro nessa tese fazer a conjuno entre saberes arqueolgicos e antropolgicos situados nesse
perodo nos departamentos de antropologia e nos museus.
157
O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e a Comisso de Pr-Histria de So
Paulo e o departamento de antropologia da Universidade do Paran foram os articuladores, em parceria
com o DPHAN, na elaborao da legislao.

57

ao mbito dos museus. O Museu Nacional, desde sua origem, abrigou colees
arqueolgicas e etnolgicas adquiridas em expedies de naturalistas brasileiros e
estrangeiros. O prprio Castro Faria, ao fazer uma reflexo sobre as Exposies de
Antropologia e Arqueologia do Museu Nacional, destaca o que estava por trs desse
processo de colecionamento no sculo XIX. A constituio da coleo etnolgica
esteve vinculada aos incentivos e contatos que o Imprio oferecia aos naturalistas
que partiam para o interior das provncias em busca de novos exemplares da
cultura material. Tais incentivos vieram a se institucionalizar nas primeiras dcadas
do sculo XX, atravs de uma poltica sistemtica de aquisio de acervo158.
Seu olhar perscrutador guia-nos atravs da histria da construo do campo
da antropologia no Brasil. Tributrio da tradio dos quatro campos, que engloba
os estudos da lingstica, da arqueologia, da antropologia biolgica e cultural, sua
trajetria social valiosa para se pensar as inter-relaes constitutivas do campo da
antropologia. Ainda jovem, Castro Faria inicia a carreira no Museu Nacional. Para
os parmetros acadmicos atuais, estava a meio caminho entre um estagirio e um
voluntrio - funo que denominou praticante gratuito. Em 1937, nomeado
naturalista interino, na vaga de Padbeg Drenkpol.
Ao relembrar sua trajetria, ele menciona os antigos professores e colegas no
Museu Nacional (Raimundo Lopes, Helosa Alberto Torres e Roquette Pinto), que,
como ele, tornaram-se membros do Conselho Consultivo do SPHAN. Mas foram
seus contatos com a diretora do Museu, a antroploga Heloisa Alberto Torres159, e a
sua trajetria na hierarquia institucional que o habilitaram a participar, em 1937, da
memorvel expedio Serra do Norte, organizada pelo antroplogo Claude LviStrauss160. Este fato foi um marco em sua trajetria, pois ali foi iniciado no trabalho
158

O texto o resultado de uma Conferncia (1947), onde Castro Faria apresenta a nova exposio de
antropologia e arqueologia do Museu Nacional. Nessa ocasio, aproveitou para fazer um balano das
exposies antropolgicas e do lugar perifrico da seo de antropologia na estrutura hierrquica
institucional. Cf. CASTRO FARIA, L. As Exposies de Antropologia e Arqueologia do Museu
Nacional. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1949.
159
Sobre a trajetria de Helosa Alberto Torres ver RIBEIRO, A. M. M. Heloisa Alberto Torres e
Marina So Paulo de Vasconcellos: Entrelaamento de crculos e formao das cincias sociais na
cidade do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2000.
160
Em 2001, mais de sessenta anos depois da expedio, foram publicados os cadernos de campo do
professor Castro Faria, primeira iniciativa de tornar pblica parte de seu arquivo pessoal. Ver CASTRO
FARIA, L. Um Outro Olhar. Dirio da expedio a Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ed. Ouro Sobre
Azul, 2001. Estes dirios de campo revelam suas impresses da viagem e as dificuldades enfrentadas na
expedio: vigilncia constante sobre o territrio; os problemas operacionais, como compra de mulas para
a tropa, de munio para a caa e para a proteo pessoal, despacho de bagagens etc. Castro e Lvi-

58

de campo, com o intuito de fazer etnografia e dar um passo adiante em relao


produo de Roquette Pinto, que havia percorrido a regio em 1912.
Para os objetivos especficos deste trabalho de tese, mereceu investigao
detalhada, no arquivo de Luiz de Castro Faria161, o conjunto de documentos sobre o
patrimnio arqueolgico, dando-se nfase ao tipo de interlocuo que o professor
estabeleceu com o Diretor do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional162, Rodrigo M. F. de Andrade. Atravs dele se pode observar um aspecto
decisivo: a participao da categoria profissional do antroplogo na estrutura
organizativa da agncia de patrimnio, seja atravs do egrgio Conselho Consultivo,
seja nos debates que levaram elaborao de legislao especfica, seja, ainda, na
gesto de recursos e conduo da poltica de proteo do patrimnio arqueolgico.
A polidez e a admirao recproca pautam o conjunto das correspondncias
trocadas entre Luiz de Castro Faria e Rodrigo Melo Franco de Andrade. A relao,
que comea na dcada de 1940, quando relata ao Diretor da agncia de Patrimnio o
andamento das pesquisas que realizou em Mato Grosso, incluindo registros das
imagens das igrejas e monumentos do centro histrico de Cuiab e tambm
documentao das habitaes perifricas163, vai se estender mais de 20 anos.
A preocupao em descrever a paisagem cultural, em particular as casas
populares, est referida em diversos relatrios de viagens, como foi visto no caso da
excurso ao estado do Esprito Santo164. No entanto, fica claro seu interesse especial
pelas jazidas paleoetnogrficas, tanto que no relatrio para o DPHAN dedica uma
parte especial do documento destruio dos sambaquis. Desde ento esta
problemtica ganha relevo nas discusses sobre as polticas de preservao do
Strauss fazem o mesmo caminho, em 1938.
161
Importante enfatizar que so documentos inditos, para os quais procuro dar uma dimenso poltica,
ou seja, seu engajamento na preservao dos sambaquis, atravs da participao na legislao do
patrimnio cultural arqueolgico brasileiro. Arquivo do MAST/ RJ.
162
Em setenta anos de atuao, a instituio passou por uma srie de reorganizaes administrativas
refletidas em sua nomenclatura. Em 1937, a Lei 378, de 13/01/1937 cria o SPHAN, e o Decreto-lei 25, de
30/11/1937 organiza a proteo do patrimnio histrico e artstico nacional, analisado na primeira sesso
desse captulo. Em 1946, o Servio de Patrimnio passa a se denominar Departamento de Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, DPHAN, que permanece com essa nomenclatura at 1970, quando passa a
Instituto (IPHAN) como rgo autnomo da estrutura administrativa. Nos captulos seguintes, voltarei a
discutir esses rearranjos institucionais.
163
Fotografias reproduzidas de alguns lbuns, retratos da expedio, mapas e reprodues; fotografias
pertencentes ao Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (CFDA 01.06.039F). Arquivo do
MAST/ RJ.
164
Esse relatrio ser mais uma vez retomado no ltimo captulo desta tese (CFDA 11.03.074). Arquivo
do MAST/ RJ.

59

patrimnio histrico e artstico nacional, e, conforme apontado acima, j se


consolidara um debate acerca desses monumentos arqueolgicos, na Antropologia
fsica e biolgica. Conceitualmente, autores mais antigos no campo da Antropologia
concordavam com a importncia dos estudos paleoetnogrficos no Brasil:
Virchow, que na reunio da Sociedade Berlinense de
Antropologia, Etnologia e Pr-histria de 16 de julho de 1886,
dizia que nenhuma Sociedade cientfica do mundo se ocupara
tanto do assunto referente aos sambaquis brasileiros, observa-se
conferir uma certa constncia, fruto sem dvida do cunho de
originalidade que o tema apresentava. 165

Segundo os cnones cientficos da poca, o estudo de tais jazidas exige um


trabalho preliminar de localizao (idem, p. 4). De fato, conseguiram-se recursos
pblicos de apoio e fomento a projetos, o que se verifica no projeto de dotao de
verba em servio de inventrio de monumentos arqueolgicos destinado ao padre
Rohr por ocasio de seus trabalhos de arqueologia em Santa Catarina166.
O quadro de tenses e disputas fica mais claro quando se considera o
contexto de produo da Lei167 que acompanha as discusses cientficas sobre a
proteo dos sambaquis. Elas extrapolam as fronteiras das universidades e dos
centros de pesquisa, como pode ser atestado no Decreto-lei n. 4146, de 4/3/42, que
dispe que os depsitos fossilferos de propriedade da Nao. Em 1947, foi
encaminhado um projeto ao Congresso Nacional, relatado pelo senhor Aureliano
Leite, em que afirma os sambaquis possurem elevado valor cientfico, tecendo
comparaes com os kjoekken-moedding da Dinamarca ou aos ktchenmiddens dos
EUA (...)168. Segundo um nmero crescente de cientistas, mediados pela agncia
165

CASTRO FARIA, L. Relatrio de uma viagem ao estado do Esprito Santo. Abril de 1945, p. 6.
CNPq/ Museu de Astronomia/ Arquivo Luiz de Castro Faria (CFDA.11.03.074). Arquivo do MAST/ RJ.
166
CNPq/ Museu de Astronomia/ Arquivo Luiz de Castro Faria (CFDA 07.04.056). Arquivo do MAST/
RJ.
167
Anteprojeto de lei, encaminhado pelo Ministrio da Agricultura e que dispe sobre a proteo de
monumentos arqueolgicos e pr-histricos. Em comum acordo com o Depto. de Produo Mineral, o
Diretor do PHAN, o Diretor do Museu Nacional, o Presidente da comisso de pr-histria de So Paulo.
A Comisso chegou as seguintes concluses: de que a legislao federal existente sobre o assunto e para
as quais se tem tentado inutilmente apelar (Decretos-leis nos. 25, de 30/11/37 e 4.146, de 4/3/42, o
primeiro dispondo sobre o Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e o segundo sobre a proteo dos
depsitos fossilferos), no podem de forma alguma, satisfazer aos reclames de uma ao ampla,
coordenada e eficaz e que deve versar, simultaneamente, sobre os termos capitais do problema: a proteo
das jazidas e a regulamentao das escavaes arqueolgicas e pr-histricas. Arquivo Noronha Santos/
IPHAN- RJ.
168
Segundo o relator, h muito se discute no Brasil o valor cientfico dos seus sambaquis. Naturalistas,
arquelogos e historiadores, alguns - simples cronistas, outros vm deles se ocupando, tentando penetrar
mais as suas origens, envolvidas ainda em certo mistrio. Dirio do Congresso Nacional, 30 de

60

estatizada de preservao, era preciso criar um projeto de legislao especfica para


a proteo das jazidas arqueolgicas, incluindo a regulamentao das escavaes.
Castro Faria, dando prosseguimento ao pleito de se programar um estudo
sistemtico e rigoroso das jazidas, sobretudo das mais ameaadas de completa
destruio, como as de Lagoa Santa, viaja com bolsa de estudos para a Frana. Seu
objetivo empreender uma anlise comparativa entre o material etnogrfico das
colees do Museu Nacional e as colees arqueolgicas e etnogrficas braslicas
existentes no Muse de LHomme e noutros da Frana 169.
Em agosto de 1947, ao apresentar seu projeto para estudar na Frana, afirma
em seu plano de trabalho que:
os estudos de arqueologia no Brasil, por circunstncias diversas,
mas quase todas decorrentes da falta quase absoluta de
possibilidades de especializao em tcnicas de investigao e
de anlise do material recolhido, apresentam lamentveis
deficincias. Com a ameaa de destruio completa de
muitas jazidas pela explorao econmica intensiva de seu
substrato, como no caso dos sambaquis, com a progressiva
ocupao humana de reas reconhecidas e frteis em achados
arqueolgicos (Lagoa Santa), o problema se apresenta cada dia
mais grave, exigindo atenes especiais e solues urgentes170.

Na dcada 1950, Castro Faria apresenta-se como um especialista na rea de


antropologia fsica, com estudos etnogrficos em stios arqueolgicos, e com capital
tcnico e terico aperfeioado nos estudos comparativos entre colees do Muse de
LHomme e do Museu Nacional. Passa ento a colaborar mais intensamente com a
agncia de preservao, sendo solicitado a dar pareceres171 e a participar do
Dezembro de 1947. Relatrio do senhor Aureliano Leite. Projeto n 685/47. Arquivo Noronha Santos/
IPHAN- RJ.
169
Em 04 de agosto de 1947, Helosa Alberto Torres envia, em anexo ao projeto de pesquisa, a carta de
apresentao do pesquisador Luiz de Castro Faria embaixada da Frana, no Rio de Janeiro: (...) notre
conversation sur la possibilit dobtenir une source pour um des naturalistas de notre Diviso de
Antropologia, Luiz de Castro Faria, je vous envie um plan dtudes tre faites em France et que,
jespre, poure vous, se utile pour lexamen de la question H. A. Torres.
170
Outro conjunto que merece destaque em seu arquivo o destaque que se refere ao seu empenho em
atribuir aos depsitos fossilferos o tombamento, voluntrio ou compulsivo dos sambaquis existente no
territrio nacional (Caixa 06, doc. C.F.D.A. 054). Arquivo MAST/ RJ. Grifo nossos.
171
Oficio de CF, de 8 de fev. de 1956, parecer sobre os quesitos propostos pela UNESCO, sobre um
acordo internacional para regulamentao das escavaes arqueolgicas; sobre a incluso de especialistas
(arquelogos que pesquisam as reas americanas) para que tal cooperao pudesse se viabilizar. A
preocupao em citar o campo da legislao a respeito sobre o assunto, solicitando a Diretoria do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e ao Conselho de Fiscalizao das Expedies Artsticas e
Cientificas as respectivas leis e regulamentos. Cita as legislaes estaduais do PR e SP, que j legislam
sobre o assunto. O Conselho Nacional de Pesquisa concedeu a Castro Faria uma bolsa de pesquisa para
estudar o problema da proteo as jazidas arqueolgicas em geral e de modo particular aos sambaquis, a

61

Conselho Consultivo da instituio. O levantamento feito relativamente ao contato


com Rodrigo M. F. de Andrade e a trajetria acadmica intimamente ligada ao
Museu Nacional me autorizam fazer tais conexes172.
Desde 1952, com bolsa do Conselho Nacional de Pesquisas, debrua-se sobre
tal questo. Declara no XXXI Congresso Internacional de Americanistas: "O nosso
plano de investigao do problema dos sambaquis inclui necessariamente uma
reviso de toda a bibliografia sobre o assunto"173. Os trabalhos cientficos da poca
apontam para a tese de que "os sambaquis foram encarados como jazidas
paleoetnogrficas no somente idnticas pela natureza de seu substrato, mas
igualmente idnticas pelo contedo arqueolgico". Est implcito nessa afirmao o
reconhecimento de que no pertinente qualquer hierarquizao entre os stios.
Desse modo, Castro Faria quebra uma srie de preceitos relativos autenticidade.
Em seus estudos descarta a autenticidade e a excepcionalidade como critrios
pertinentes para efeito de tombamento. Alm disso, esses stios so espaos que
precisam ser escavados para produzirem conhecimento sobre os vestgios e
materiais ali encontrados.174
Em sintonia com os debates internacionais, discorre no referido Congresso
Internacional sobre "A formulao do problema dos sambaquis".
Cientificamente
os
sambaquis,
ostreiros,
casqueiros,
berbigueiros, minas, ou outras denominaes regionais que
possam ter essas jazidas, interessam sobretudo do ponto de vista
zoolgico (fauna fssil e atual) e antropolgico (como
contribuio a histria de grupos humanos hoje
desaparecidos)175.
fim de que o Conselho e o Museu Nacional pudesse pleitear junto ao legislativo federal uma lei bsica,
que assegure de maneira definitiva a preservao arqueolgica do pas. (Caixa 14, C.F.D.A.14.220).
Arquivo MAST/ RJ.
172
Castro Faria, ao descrever sua trajetria, lembra que freqentava o escritrio de Rodrigo M. F. de
Andrade e que, na poca, era considerado um daqueles jovens chamados de esperanosos e
promissores. Cf. CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos dualidade e polimorfia. In:
CHUVA (org.) A inveno do patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, p. 28. Em vrios artigos e
entrevistas, Castro Faria reconheceu a assimetria de posio que ocupava em relao aos intelectuais do
patrimnio, posio esta que vai se alterando medida que obtm reconhecimento acadmico e
institucional. Castro foi chefe da diviso de antropologia e diretor-substituto do Museu Nacional. Entre os
anos de 1965 e 1967, assumiu a direo da instituio. Em 1968, cria o Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social do Museu Nacional, juntamente com Roberto Cardoso de Oliveira, voltando-se para
a atividade docente.
173
CASTRO FARIA, L. Separata dos Anais do Congresso XXXI Congresso Internacional de
Americanistas, in: "A formulao do problema dos sambaquis", 1955, p. 574
174
Cf. SILVA, R. C. P. Compatibilizando os instrumentos legais de preservao arqueolgica no Brasil: o
Decreto-Lei n 25/37 e a Lei n 3.924/61. Revista de Arqueologia v. 9. 1996, p . 21.
175
Nesta ocasio, firma-se determinada forma de conhecimento arqueolgico que vai atribuir aos

62

Em 1956, a Recomendao de Nova Delhi, no mbito da 9a sesso da


Conferncia Geral da UNESCO, estabelece critrios cientficos, direitos e
obrigaes impostos ao pesquisador para proceder as escavaes arqueolgicas.
Entende-se por pesquisas arqueolgicas todas as investigaes
destinadas descoberta de objetos de carter arqueolgico, quer
tais investigaes impliquem uma escavao do solo ou uma
explorao sistemtica de sua superfcie, quer sejam realizadas
sobre o leito ou no subsolo das guas interiores ou territoriais de
um Estado-membro 176.

Alm disso, sugere a cada Estado-membro, como modo de salvaguardar os


stios arqueolgicos para futuras pesquisas cientficas, a manuteno do bloco
testemunho. Tambm se discutem os critrios para que determinado vestgio
possa ser considerado de interesse pblico, podendo cada estado-membro adotar
o critrio mais apropriado. Est em foco o corte temporal a ser adotado e a
atribuio a uma determinada poca ou uma ancianidade de um nmero mnimo de
anos fixados por lei.177
A dimenso precisa da participao de Castro Faria ficou evidenciada aps
consulta a Srie Arqueologia no fundo IPHAN. Nesta, pude analisar os diversos
pareceres que antecederam ao projeto de Lei de arqueologia.
Os desenhos rupestres existentes nas lapas da regio de Lagoa Santa formam
um precioso conjunto de arte pr-histrica e vm sendo destrudos pelos prprios
proprietrios das terras em que se encontram tais jazidas. A Lapa da Cerca Grande,
considerada a mais importante para efeito de tombamento, foi visitada e estudada
por Peter Wilhen Lund, em 1837. O Diretor do DPHAN destaca a necessidade de se
tomarem medidas protetoras dos desenhos rupestres existentes nas lapas da regio de
Lagoa Santa ver se tira conforme respsta anterior, e, em breve despacho, solicita o
parecer do naturalista Luiz de Castro Faria.
Em seu parecer, Castro Faria enfatiza que uma legislao especfica, sugerida
em esboo conclusivo, seria o nico meio de resolver de modo satisfatrio o
problema da salvaguarda do patrimnio arqueolgico, e que,

sambaquis "o carter de monumentos", Idem, 1955, p. 575.


176
IPHAN. CARTAS PATRIMONIAIS. Isabelle Cury (org.). 3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 71.
177
IPHAN, 2004, op. cit., p. 71.

63
no caso particular das pinturas parietais das cavernas de Minas,
achamos que a medida de tombamento, inadequada no caso
dos sambaquis, poder ser aplicada com vantagem, desde que a
DPHAN possa dispor de meios eficientes de fiscalizao. No
h dvida de que do ponto de vista cientfico qualquer deciso
no sentido de preservar aquelas pinturas estar plenamente
justificada178.

Apesar de seu parecer favorvel, o processo de tombamento s ser


concludo com a promulgao da lei de arqueologia, em 1961, quando o Diretor do
Museu Nacional, Jos Cndido de Mello Carvalho, emite novo parecer em favor do
tombamento da Lapa da Cerca Grande:
Compareci pessoalmente a regio de Lagoa Santa, a fim de
estudar a possibilidade de tombamento de algumas grutas
calcreas mencionadas no processo n. 491-T-53. [...] Sou
favorvel ao tombamento imediato da Lapa de Cerca Grande...
Nessa lapa encontram-se cerca de 100 desenhos de cenas de
caas e de animais que existiam na regio. O cientista Lund, em
1835, ao estud-la j preconizava sua proteo pelo governo. Ali
foram encontradas evidncias positivas de uma cultura indgena
pr-cermica (complexo Cerca Grande), considerada atualmente
pelos cientistas como a mais antiga da regio. A meu ver o
tombamento devera incidir sobre todo o macio calcreo da
Lapa e uma rea de 100 metros em torno da mesma. Opino
tambm pelo tombamento de uma pequena rea da Lapa dos
Poes por existirem alguns desenhos que pela finura e detalhe
[...] Urge impedir o contato direto do pblico com as mesmas
[...] Devo esclarecer ao egrgio Conselho Consultivo que o
tombamento apenas pouco adiantara para a preservao das
cavernas e figuras pr-histricas, caso no haja no local um
guarda permanente para esse fim.179

Conclui seus argumentos afirmando estar certo que tal medida ser de grande
alcance para a cultura e a cincia brasileira, visto essa regio atrair a ateno de
numerosos cientistas interessados no problema da contemporaneidade do homem e
das espcies de animais extintos do Pleistoceno180.

178

Parecer de Luiz de Castro Faria, naturalista do Museu Nacional, em 13/4/1954. Processo n. 491-T-53
Grutas Lapa da Cerca Grande e Lapa dos Poes. Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN/
RJ. Grifos nossos.
179
Parecer do conselheiro Jos Cndido de Mello Carvalho, diretor do Museu Nacional, em favor do
tombamento da Lapa da Cerca Grande, em 14/3/61. Processo n. 491-T-53 Grutas Lapa da Cerca Grande
e Lapa dos Poes. Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico. Inscrio: 030, em 27-61962. Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN/ RJ.
180
Idem.

64

Observa-se, portanto, que, mesmo depois de sancionada a Lei, os debates


ainda foram freqentes entre o DPHAN e os principais ncleos de produo
acadmica, como na correspondncia enviada pelo Diretor da DPHAN, Dr. Rodrigo
M. F. de Andrade, ao professor Castro Faria:
Encaminho em anexo a sua abalizada considerao copia do
memorando que nosso ilustre patrcio Dr. Paulo Duarte redigiu
para o chefe da casa civil da Presidncia da Republica, com o
objetivo da adoo de medidas importantes para a proteo
efetiva do patrimnio pr-histrico e arqueolgico do pas,
solicito com empenho seu urgente pronunciamento a respeito,
em beneficio da orientao desta diretoria181.

O mesmo contedo foi enviado nas cartas n. 352, para Heloisa Alberto
Torres, Presidente do Conselho Nacional de Proteo ao ndio; n. 353, ao professor
Jos Loureiro Fernandes, Diretor do Departamento de Antropologia da Universidade
do Paran; e n 354, ao professor Eduardo Galvo, Diretor do Departamento de
Cincias Humanas da UnB.
Diversos convnios foram assinados entre o Museu Nacional e a agncia de
patrimnio para a realizao de projetos de pesquisas em arqueologia pr-histrica.
Coube aos tcnicos do Museu Nacional a superviso do trabalho e as pesquisas de
campo para o cadastramento dos stios arqueolgicos. Alm disso, uma srie de
instrumentos foi incorporada pela agncia, atravs do contato com o Diretor da
Diviso de Antropologia do Museu Nacional, justamente o professor Luiz de Castro
Faria.
A lei federal deu a incumbncia ao DPHAN de cuidar do seu cadastramento,
concesso de autorizao para o seu estudo e explorao cientifica, proteo e ao
legal decorrente quando de sua mutilao ou destruio.
A Lei 3.924, de 26/07/1961, coloca sob a proteo do Poder
Pblico todos os elementos, que constituem monumentos
arqueolgicos e pr-histricos no pas. A mesma lei federal d,
por se tratar de crime contra o Patrimnio Nacional182.

A anlise das diferentes frentes em que o debate se organiza, internamente no


meio acadmico e cientfico e no mbito mais amplo do campo jurdico e poltico
(alcanando, por vezes, uma dimenso pblica mais efetiva, atravs dos meios de
181

DPHAN, Carta n. 351, de 23 de dezembro de 1963. Ao Prof. Luiz de Castro Faria, Museu Nacional.
Ofcio n 1109, do Diretor do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Renato Soeiro, em 25 de
junho de 1969. Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN/ RJ.

182

65

comunicao) fez com que a pesquisa observasse outros aspectos que ganharam,
gradativamente, destaque. Por exemplo: os primeiros questionamentos sobre a
excepcionalidade dos stios e sobre a busca por sua representatividade. Ou seja, os
questionamentos com relao ao autntico e ao excepcional que embasam os debates
sobre o patrimnio cultural. Nesse sentido, procura dar conta de uma nova
problemtica circunscrita aos stios, jazidas e inscries rupestres.
A agncia de preservao celebrou diversos convnios com o Museu
Nacional do Rio de Janeiro, em que foram produzidos novos instrumentos, como o
cadastramento dos stios arqueolgicos para pesquisas de campo. As tarefas de
localizar, proteger e preservar os stios arqueolgicos eram realizadas da seguinte
forma:
a) Cadastramento do stio arqueolgico no IPHAN atravs de ficha-padro;
b) Comunicao oral ao proprietrio do terreno, quando localizado, onde se
localiza o stio.
A diversidade nos sentidos dados aos monumentos mais um dado a ser
considerado. Castro Faria discute a ausncia de problematizao sobre o que seria o
patrimnio histrico e artstico nacional183, lembrando que o significado da noo
de monumento varia no tempo e no espao. A noo de stio arqueolgico,
por exemplo, apesar do entendimento de que um bem construdo pelo homem, mas
que ainda se integra paisagem natural, motivo de calorosos debates.
Ao atribuir aos sambaquis "o carter de monumentos", firma-se determinada
forma de conhecimento sobre a arqueologia pr-histrica no Brasil. Castro Faria
comenta equvocos cometidos por tcnicos do SPHAN, na poca da gesto do Dr.
Rodrigo, notadamente por classificarem o patrimnio arqueolgico brasileiro
utilizando-se das mesmas categorias da Conferncia Internacional em Atenas, em
1931, construdas a partir do modelo da Arqueologia clssica, o que implica outra
concepo de monumento, absolutamente inaplicvel ao Brasil. Segundo ele, certos
princpios adotados pela UNESCO no cabem para o patrimnio arqueolgico
brasileiro184. Essa problemtica leva ao questionamento da categoria monumento e
de sua aplicabilidade no caso das jazidas arqueolgicas, porque aqui no est em
183

CASTRO FARIA, L. Nacionalismo, nacionalismos dualidade e polimorfia. In: CHUVA (org.) A


inveno do patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. p. 37.
184
Ibid., p. 37 - 38. Grifos nossos.

66

jogo o seu valor de excepcionalidade, mas uma certa produo de ancestralidade.


Trata-se de produzir dataes e obter levantamento minucioso sobre a ocupao
humana de determinado territrio.
Para essa nova natureza de bem foram adotados novos procedimentos de
controle e proteo. Desse modo, foi concedido s instituies cientficas da Unio,
dos Estados e Municpios realizar escavaes arqueolgicas, desde que limitadas "a
prvia comunicao a DPHAN, para fins de registro no cadastro de jazidas (Art.
16). A construo de um Cadastro dos monumentos arqueolgicos (Art. 27)
pressupe um levantamento das jazidas existentes. Nesse sentido, a identificao e o
inventrio so etapas fundamentais para realizao do Cadastro.
O Museu Nacional elaborou as primeiras fichas para esse cadastro185, bem
como promoveu os primeiros inventrios e cadastramentos dos monumentos
arqueolgicos, atravs de convnios e projetos. Nos primeiros anos de aplicao da
lei, houve uma intensa troca de correspondncias entre o diretor da DPHAN, Dr.
Rodrigo M. F. de Andrade, e o Prof. Castro Faria, que entre 1961 e 1964, ocupava a
chefia da Diviso de Antropologia do Museu Nacional. Em correspondncia com
Melo Franco de Andrade, responde pelos planos de aplicao de crditos
concedidos no oramento para servios em proveito das jazidas arqueolgicas186, e
sobre o
projeto de aplicao de verba em servios de inventrio,
documentao e registro de monumentos arqueolgicos e prhistricos (de acordo com a Lei 3924, de 26 de julho de 1961)
no Estado de Santa Catarina enviado ao Diretor da DPHAN, Dr.
Rodrigo M.F. de Andrade.187

Uma extensa documentao referente aos custos de trabalho das pesquisas


arqueolgicas e de projeto de aplicao de verba em servios de inventrio,
documentao e registro de monumentos arqueolgicos e pr-histricos,
principalmente no estado de Santa Catarina, confirmam a imensa mobilizao, por
parte do Museu Nacional, em articular-se com outros agentes e instituies de
185

Do Diretor do Museu Nacional, Luiz de Castro Faria. Ao Diretor do PHAN, Rodrigo M.F. de
Andrade. Ofcio n. 41, em 12 de janeiro de 1965. Em ateno ao pedido de Vossa Senhoria estou
remetendo uma srie completa de fichas utilizadas pelo Setor de Arqueologia deste Museu Nacional, em
diferentes tipos de pesquisas arqueolgicas. Esclareo, ainda, que o Museu Nacional no possui ficha
especfica para cadastro de jazidas, mas para esse fim, poder ser feita uma adaptao utilizando-se
alguns dados das fichas anexas. Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN/ RJ.
186
Arquivo CASTRO FARIA, MAST, Rio de Janeiro (CFDA 07.04.065).
187
Idem (CFDA 07.05.068).

67

ensino e pesquisa para estabelecer normas para a explorao de jazidas


arqueolgicas junto agncia estatizada de preservao.
Em 1965, Castro CASTRO FARIA assume a direo do Museu Nacional,
mas continua colaborando na localizao, identificao e preservao dos stios
arqueolgicos cadastrados. Em finais da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970,
perodo em que cria, junto com Roberto Cardoso de Oliveira, o Programa de PsGraduao em Antropologia Social do Museu Nacional, Castro Faria continua sendo
a pessoa autorizada a proceder ao estudo e escavaes cientficas dos sambaquis. Ele
foi, sem dvida, at meados da dcada de 1970, o principal gestor de projetos de
pesquisa e de cadastramento dos stios arqueolgicos atravs do Setor de
Antropologia do Museu Nacional. Convnios foram assinados entre o Museu
Nacional e a agncia de patrimnio para a realizao de projetos de pesquisas em
arqueologia pr-histrica.
O fio a conduzir esse percurso na trajetria profissional de Luiz de Castro
Faria foi a necessidade de conhecer a posio que ocupava no campo temtico do
patrimnio, o que aquela nova problemtica contribuiria para a flexibilizao das
fronteiras do patrimnio, at ento definido pela prtica do tombamento, e, atravs
dele, entender melhor a participao dos antroplogos em um debate relativo a
polticas de preservao, que mobilizava a intelectualidade modernista.

68

CAPTULO 3 - A Dimenso Transnacional dos Patrimnios Culturais


3.1. Situando o debate: as agncias multilaterais e a salvaguarda do patrimnio
cultural imaterial

Historicamente, a afirmao de nacionalidades mostra-se um territrio


controverso. Eric Hobsbawm188 descreve como foi conflituoso o processo de seleo
e fixao das representaes das nacionalidades na Europa. O autor reconstitui o
panorama de conflitos atravs do processo de supresso das lnguas dialetais
europias e identifica o esforo secular na padronizao e homogeneizao da
ortografia e gramtica nacionais. Entretanto, ele prprio chama ateno para a
fragmentao dos fatos e para a multiplicidade dos relatos histricos, assinalando o
quanto demandam uma investigao mais abrangente, com as suposies,
esperanas, necessidades, aspiraes e interesses das pessoas comuns, as quais no
so necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas189. Ao acentuar o
dinamismo nas relaes entre naes e povos, deixa claro que determinados
elementos da cultura so preteridos em nome de uma suposta unidade nacional,
em um processo tenso e de violncia simblica. , ainda, o resultado de um
princpio ordenador que opera com fronteiras de incluso e excluso, e com a busca
de critrios que contribuam para a afirmao das diferenas nacionais.
Em meados do sculo XX, quando a geografia mundial depara-se com uma
cartografia fixada em novas bases, aps o trmino da Segunda Grande Guerra, havia
condies para que a temtica da nacionalidade ganhasse uma nova dimenso; no
entanto, no se observa, de imediato, uma mudana na perspectiva de discusso do
tema, exceto em questionamentos pontuais, com destaque para o colonialismo. Se,
por essa poca, pouca ateno era dada s unidades transnacionais que se
constituam, talvez fosse por no haver espao e lugar na economia global para
refletir sobre essas unidades intersticiais, nos termos que se colocaro dcadas
depois190. Segundo Anderson191, a poltica mundial do ps-guerra foi largamente
188

HOBSBAWM, E. A Era das Revolues - 1789-1848. 2 ed. Lisboa: Ed. Presena, 1982;
HOBSBAWM, E. Naes e Nacionalismos desde 1780. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
189
HOBSBAWM, op. cit., 2002, p. 20.
190
Somente em perodos recentes, uma srie de escritos aponta o paradoxo entre o local e o global das
ideologias nacionalistas Cf. BRAVO, A. F. et al. La Invencin de la Nacin. Lecturas de la identidad de

69

entendida em termos supranacionais e transnacionais do que traada pelas fronteiras


territoriais e polticas. Como resultado dessas transformaes, o nacionalismo passa
a ser praticado de diferentes formas, com base na idia de um nacionalismo
porttil, em que as pessoas se deslocariam por toda parte, sem perderem seus
referenciais de cultura e de territrio. Marshall Sahlins192, por sua vez, ao apresentar
suas reflexes sobre o transculturalismo no Pacfico Sul, chama a ateno para o
fluxo ininterrupto de pessoas, de objetos, de dinheiro e de alimentos e para os
constantes cruzamentos das fronteiras nacionais. A idia de nao, sob essa mais
recente perspectiva, deixa de ser um dado da realidade e passa se tornar uma
categoria social construda discursivamente.
Na verdade, na seara da poltica internacional, o debate que entrelaa
nacionalidade e cultura j tem uma trajetria iniciada nos debates sobre culturas
nacionais e diversidade atravs de aes da Organizao das Naes Unidas para a
Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), desde sua criao em 1945. Tomadas
em perspectiva histrica, as Declaraes e Convenes so os principais dispositivos
jurdicos do direito internacional e, hoje, no h como desconhecer que o direito
interno dos Estados no est isolado do contexto global. Essas Convenes so at
hoje submetidas ratificao, aceitao e adeso dos Estados Membros da
UNESCO, na forma prevista por suas Constituies.
Considerada uma agncia especializada dentro da estrutura organizacional
das Naes Unidas, a UNESCO foi criada em Londres, em novembro de 1945, ainda
sob o impacto da guerra. Idealizada para difundir e promover a ideologia da paz e da
tolerncia entre as naes, acreditava que a difuso e a confraternizao das culturas
pudessem frear violncias e preconceitos entre as naes e os povos. Esse discurso,
construdo sobre as runas de uma Europa devastada, obteve ressonncia imediata
junto a intelectuais e organizaes sociais que j atuavam em prol da diversidade e
pluralidade das culturas em perodos anteriores. Segundo Joo Paulo Macedo

Herder a Homi Bhabha. Buenos Aires: Manantial, 2000; ANDERSON, B. Introduo. In: Balakrishnan,
G. (org.) Um mapa da questo nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000; HOBSBAWN, E. Naes e
Nacionalismo desde 1780. 3 Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
191
ANDERSON, B. Introduo. In: BALAKRISHNAN, G. (org.). Um mapa da questo nacional. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2000.
192
SAHLINS, M. O Pessimismo Sentimental e a Experincia Etnogrfica: por que a cultura no um
objeto em via de extino. Revista Mana. v. 3, n. 1, 1998, p.41-73.

70

Castro, existe
um consenso na literatura analtica sobre a UNESCO [...] de que
a Organizao fruto de duas experincias anteriores de
organizao internacional: o Instituto Internacional de
Cooperao Intelectual (IICI), surgido em 1925, que reuniu
intelectuais como Sigmund Freud, Thomas Mann, Henri
Bergson e Albert Einstein, entre outros (Maio, 1997:17) e a
Convergncia de Ministros Aliados da Educao (CMAE),
criada em plena Segunda Guerra, em 1942.193

Os pases aliados, dentre os quais o Brasil, foram os primeiros signatrios da


Conferncia Geral de 1945. Na segunda Conferncia Geral, em 1947, os Estados
Membros foram conclamados a participar da sua constituio interna, incentivando
suas respectivas comunidades cientficas a contribuir na elaborao do documento.
Foi somente a partir da terceira Conferncia de 1948 que se adotou a estratgia de
agregar novos participantes, conclamando as organizaes internacionais nogovernamentais e incentivando programas e projetos junto s organizaes
intergovernamentais.
verdade que desde a dcada de 1930, congressos internacionais
promovidos por associaes de profissionais de museologia e de arquitetura
moderna vinham discutindo doutrinas e princpios gerais para a proteo dos
monumentos nacionais. Desse perodo merecem destaque a Carta de Atenas (1931),
estabelecida pelo Escritrio Internacional dos Museus e Sociedades das naes e o
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna CIAM (1933), que propunham
um pacto de colaborao pela salvaguarda das obras-primas nas quais a civilizao
se tenha expressado em seu nvel mais alto e que se apresentem ameaadas194.
Naquela ocasio foram apresentadas as legislaes de proteo dos monumentos
histricos, artsticos e cientficos pertencentes s diferentes naes. Destarte, a partir
da criao da UNESCO, e de sua relao com os demais programas e organismos
especializados no mbito da ONU e outras agncias multilaterais e aqui destaco o
Conselho Internacional de Museus , cada vez mais centralizam-se nas agncias
internacionais os debates que antes se faziam em nvel nacional.
193

A esse respeito consultar MACEDO CASTRO, J. P. Unesco Educando os jovens cidados e


capturando redes de interesse: uma pedagogia da democracia no Brasil. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: UFRJ/ PPGAS/MN, 2005, p. 64.
194
IPHAN. In: CURY, I. (org.). Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3 Ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p. 16.

71

Filiado UNESCO, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) a


organizao internacional que rene museus e profissionais de museus, tambm
voltada para a conservao, preservao e comunicao para a sociedade do
patrimnio cultural e natural mundial, tangvel e intangvel. Diana Lima195 identifica
os Comits Internacionais do ICOM, contabilizando um total de vinte e oito, todos
dedicados s diferentes tipologias e temas de museus. Eles so instncias de
legitimidade cultural cujos associados, agentes de variadas naturezas ligadas s
diferentes reas do conhecimento relacionadas aos diversificados temas e enfoques
tratados pela Museologia, perfilam-se em categorias individuais ou institucionais
correspondendo s categorias Profissionais de Museu e Instituies de Carter
Museolgico196.
Este Conselho Internacional, atravs de seus Comits, propicia o
aprofundamento do estudo destas temticas ou tipologias, o debate, a publicao de
artigos, as comunicaes em eventos cientficos e a elaborao de recomendaes e
padres tcnicos a serem utilizados na rea, em todos os continentes197. O ICOM a
instncia de consolidao e validao das teorias e prticas museolgicas, na medida
em que congrega representantes de quase todos os pases. Apesar de voltado para
museus, o ICOM parte do pressuposto de que todos os bens culturais, mantidos ou
no sob a gide dos museus, so parte do patrimnio cultural universal e, para tanto,
acolhe o debate de temas provenientes dos diferentes pases, reelaborando-os em
diretrizes, padres tcnicos e normas de informao para museus e patrimnio
cultural.
Esse conjunto de agncias multilaterais vinculadas UNESCO vai adotar
uma srie de definies relativas proteo dos patrimnios culturais. A UNESCO
veio, desde ento, desempenhando importante papel normativo198 e de arena de
debates nas reas da educao, cincia e cultura. Com um staff de experts que

195

LIMA, D. F. C. Cincia da Informao, Museologia e fertilizao interdisciplinar: Informao em


Arte, um novo campo do saber. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, UFRJ/ECO-IBICT, 2003.
196
Ibid., p.153.
197
CARVALHO, R. M. R. As Transformaes da Relao Museu e Pblico: a influncia das
tecnologias da informao e comunicao no desenvolvimento de um pblico virtual. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro, ECO/UFRJ-IBICT, 2005.
198
Dentre os instrumentos normativos mais importantes criados pela Organizao, esto: a Conveno
para a Proteo do Patrimnio Mundial, Cultural e Natural (1972); a Declarao Universal da Diversidade
Cultural (2001); a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial (2003) e a Conveno
sobre a Proteo e Promoo da Diversidade das Expresses Culturais (2005).

72

representam as instituies de governo ou da sociedade civil dos vrios comits e


reunies intergovernamentais, promove discusses sobre as aes implementadas
pelos diferentes Estados-membros.
O Brasil vem participando do debate internacional, e, desde a dcada de
1960, pelo menos, o IPHAN tem estabelecido contato com a UNESCO. Atravs de
uma jurisprudncia consolidada pelo o instituto do tombamento, o Estado brasileiro
vem estabelecendo acordos de cooperao tcnica com a UNESCO e ampliando
seus critrios de seleo dos bens culturais passveis de patrimonializao. Tais
parcerias foram consolidadas ao longo da dcada de 1970, como atestam
documentos encontrados no arquivo Noronha Santos do IPHAN199.
Entretanto, observa-se a complexidade em se trabalhar com a dimenso
internacional das agncias multilaterais; no somente por se constituir de um
enredamento entre agncias governamentais, no-governamentais e rgos de
cooperao tcnica e cientfica, mas por aquilo que Macedo Castro (2005) chamou
de internacionalizao das disputas nacionais200. Constata-se, ainda, que tais
organizaes se constituem em verdadeiros fruns de debates, e, portanto, de
disputas acirradas sobre as definies e as conceituaes desse campo temtico.
Controlados por um sistema de categorias, tais como excepcionalidade e
autenticidade, dentre outras, os patrimnios culturais so dispositivos201 que
engendram articulaes entre campos de saberes, politicamente pautados,
controlados

por especialistas e experts202 nacionais

e internacionais. A

conservao203 dos monumentos artsticos e arqueolgicos est na base das


199

Desde 1967, a preocupao era no s confrontar o monumento isolado, mas, inclusive, considerar a
moldura no qual esse se insere, a ambincia de que era prprio, ameaado pelas grandes obras pblicas e
particulares. A assistncia tcnica da UNESCO mencionada para os problemas mais graves
relacionados com os principais conjuntos arquitetnicos e urbansticos tombados. Sub-srie Instituto
Evoluo Institucional. Md. 72 Prat. 02 Cx. 246 e 247 Pastas 54-56 e 57-59.
200
Joo Paulo Macedo Castro adverte que ainda so necessrias anlises mais aprofundadas sobre a
fundao da Unesco, seus dilemas, conflitos e tenses internas. Cf. MACEDO CASTRO, op.cit., p. 75.
201
A noo de dispositivo fundamental para Foucault, que assim o define: Atravs deste termo tento
demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogneo que engloba discursos,
instituies, organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas. Em suma, o dito e o no-dito so os
elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se pode estabelecer entre estes elementos [...] isto
o dispositivo: estratgias de relaes de fora sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.
FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Difel, 1979, p. 244, 246.
202
UNESCO. Third Session of the Intergovernamental Meeting of Experts on the Preliminary Darft
Convention for the Safeguarding of the Intangible Culture Heritage. Paris: Headquarters, 2-14 June
2003.
203
As categorias conservao e restaurao so centrais nas discusses da UNESCO. Tais termos foram

73

legislaes nacionais e transnacionais. Segundo as definies contidas na Carta de


Burra, em seu Art. 1o,
o termo conservao designar os cuidados a serem dispensados
a um bem para preservar-lhes as caractersticas que apresentem
uma significao cultural. De acordo com as circunstncias, a
conservao implicar ou no a preservao ou a restaurao,
alm da manuteno; ela poder, igualmente, compreender obras
mnimas de reconstruo ou adaptao que atendam s
necessidades e exigncias prticas204.

Nas reunies com especialistas do campo temtico do patrimnio, era cada


vez mais freqente a afirmao da necessidade de se desvelar a trama e ambincia
em que se inseriam os monumentos mais significativos para a humanidade. Em
novembro de 1964, no mbito da 13a sesso da Conferncia Geral da UNESCO, na
cidade de Paris, recomendou-se, entre outras providncias, que os Estado-membros
adotassem, sob forma de lei nacional, medidas mitigadoras destinadas a proibir e
impedir a exportao, a importao e a transferncia de propriedade ilcita de bens
culturais205. Naquela ocasio, precisou-se o conceito de bem cultural, transcrito
abaixo:
Para efeito desta recomendao, so considerados bens culturais
os bens mveis e imveis de grande importncia para o
patrimnio cultural de cada pas, tais como as obras de arte e de
arquitetura, os manuscritos, os livros e outros bens de interesse
artstico, histrico ou arqueolgico, os documentos etnolgicos,
os espcimens-tipo da flora e da fauna, as colees cientficas e
as colees importantes de livros e arquivos, includos os
arquivos musicais206.

Em 1968, a UNESCO lana uma nova Recomendao sobre a conservao


dos bens culturais ameaados pela execuo de obras pblicas ou privadas. Entre
os mtodos de preservao dos bens culturais, destaca-se a criao de zonas
protegidas para serem salvaguardados os vestgios etnolgicos ou histricos207.
Retoma-se e reafirma-se nesta Conferncia o conceito de bens culturais, que para
efeito daquele documento, se estenderia tambm ao entorno de
definidos na Reunio do ICOMOS Conselho Internacional de Monumentos e Stios e ficou conhecida
como Carta de Burra. Austrlia, 1980.
204
IPHAN. In: CURY, I. (org.) Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3a ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p. 247, 248. Grifos do autor.
205
Ibid., p. 97.
206
Ibid., p. 98.
207
Ibid., p. 133.

74
bens imveis, como os stios arqueolgicos, histricos ou
cientficos, edificaes ou outros elementos de valor histrico,
cientfico, artstico ou arquitetnico, religiosos ou seculares,
includos os conjuntos tradicionais, os bairros histricos das
zonas urbanas e rurais e os vestgios de civilizao anteriores
que possuam valor etnolgico. Aplicar-se- tanto aos imveis do
mesmo carter que constituam runas do solo como aos vestgios
arqueolgicos ou histricos descobertos sob a superfcie da
terra.208

A amplitude do conceito de bem cultural considerada um avano nas


polticas internacionais sobre o campo temtico do patrimnio, preparando o debate
para a Conveno do Patrimnio Mundial, em 1972. Alm disso, a UNESCO
recomenda inventrios nacionais e relatrios dos pases signatrios das
recomendaes e cartas conclusivas das reunies relativas proteo do patrimnio
cultural. Esses relatrios devem informar as aes dos Estados nas polticas de
preservao e seus respectivos planos de salvaguarda. As iniciativas so analisadas
em reunies peridicas, organizadas pelo Comit Intergovernamental, comisso
criada na Conveno do Patrimnio Mundial, em novembro de 1972. Este Comit
avalia as propostas encaminhadas, organiza e divulga a Lista do Patrimnio
Mundial, conceitua os novos bens culturais, cria programas e prmios
internacionais. Nestes e noutros casos, os inventrios ganham foco e centralidade
nas polticas de preservao. Ademais, sentimentos de insatisfao sobre os critrios
de seleo das Listas do Patrimnio Mundial209 conduziram muitos pases a se
expressarem a favor do desenvolvimento de um novo dispositivo legal.
A definio de salvaguarda contida na Carta de Restauro, de abril de 1972,
produz uma tenso sobre a extenso de sua aplicao. Em seu Art. 4o,
entende-se por salvaguarda qualquer medida de conservao que
no implique a interveno direta sobre a obra; entende-se por
restaurao qualquer interveno destinada a manter em
funcionamento, a facilitar a leitura e a transmisso integralmente
ao futuro e as obras e os objetos definidos nos artigos
precedentes210.

208

IPHAN. In: CURY, I. (org.) Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3a ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p. 125, 126.
209
De acordo com os critrios de seleo institudos pelo comit da UNESCO, os bens culturais devem
representar o testemunho nico, a obra-prima do gnio criativo humano, ou constiturem-se, ainda, em
exemplar excepcional. igualmente importante o critrio da autenticidade do stio e a forma pela qual
esteja protegido.
210
IPHAN. op. cit., p. 148.

75

Categoria central do novo discurso patrimonialista, a construo de um


conceito de salvaguarda ainda est por se formular, do mesmo modo que se
precisou o conceito de bem cultural em meados da dcada de 1960. Na
Recomendao de Nairbi, no mbito da 19a Conferncia Geral da UNESCO, em
novembro de 1976, retoma-se a definio de salvaguarda, agora com menos
ambigidades: a identificao, a proteo, a conservao, a restaurao, a
reabilitao, a manuteno e a revitalizao dos conjuntos histricos ou tradicionais
e de seu entorno.211
Em termos analticos, a noo de patrimnio cultural mundial vem sendo
debatida a partir dos dispositivos legais que ordenam os discursos e as aes
governamentais. O propsito da Conveno Relativa Proteo da Cultura e
Patrimnio Natural Mundial de 1972 era o de assegurar a identificao, proteo,
conservao e transmisso do patrimnio cultural e natural de valor extraordinrio s
geraes futuras. Nessa Conveno ratificada por mais de cento e cinqenta pases
da Amrica Latina, Caribe, Europa, frica e Oriente, o patrimnio cultural refere-se
a monumentos e a conjuntos de edifcios e terrenos, incluindo terrenos
arqueolgicos de valor universal excepcional212.
Na ocasio, questionava-se o conceito de monumento histrico contido no
documento final. Desde que a Bolvia levantou a questo da excepcionalidade dos
bens culturais centrada em valores ocidentais e judaico-cristos em um encontro do
comit intergovernamental (1973), muitas reflexes foram propostas e atividades
organizadas.
Assumindo uma perspectiva relativista, a Conferncia Mundial sobre
Polticas Culturais (Mondiacult) 213 discutiu os princpios que regem essas polticas,
211

IPHAN. In: CURY, I. (org.). Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3a ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p. 220.
212
A Conferncia Geral da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura,
reunida em Paris, em 16 de novembro de 1972, adota a Conveno relativa Proteo do Patrimnio
Mundial, Cultural e Natural, a qual concentrava uma listagem de elementos de valor universal
excepcional pertencente herana construda e natural, incluindo no presente desta maneira itens
como canais, uma srie de terrenos e cenrios culturais. Aps a reunio, 176 pases j tinham aderido
Conveno, fazendo desta a maior ferramenta legal internacional universal de proteo do patrimnio
cultural e natural.
213
IPHAN, op.cit., p. 272. Encontrei divergncia quanto s datas da Conferncia. Segundo as Cartas
Patrimoniais, editado pelo IPHAN, a Conferncia Mundial sobre as Polticas Culturais reuniu-se na
cidade do Mxico, em 1985. Ao consultar arquivo digital da UNESCO, segundo o documento Brief
history of the Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage (2003), pude
constatar que The Mondiacult World Conference on Cultural Policies (Mexico City) ocorreu no ano de

76

principalmente aqueles relativos a identidade, diversidade, cultura e patrimnio.


Diante de um mundo marcado pela intolerncia e por mltiplos conflitos, valorizouse nessa conferncia o pleno exerccio de liberdades fundamentais do homem e dos
povos, e o direito autodeterminao214. Nos prembulos da Declarao, ao
expressar a esperana na convergncia final dos objetivos culturais e espirituais da
humanidade, a cultura definida como um conjunto de traos distintivos
espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um
grupo social. Essa concepo engloba tanto as artes e as letras, quanto os modos
de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradies
e as crenas. (idem, p. 272)
Uma importante etapa para se chegar aos debates contemporneos do
patrimnio intangvel (imaterial) foi a Recomendao sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular, aprovada na 25a Conferncia Geral, em novembro
de 1989, documento que instrui todos os questionamentos posteriores sobre as
definies de cultura tradicional e popular. Naquela ocasio, os signatrios dessa
Conferncia definem Cultura Tradicional e Popular como
o conjunto de criaes que emanam de uma comunidade cultural
fundada na tradio, expressas por um grupo ou por indivduos e
que reconhecidamente respondem s expectativas da
comunidade enquanto expresso de sua identidade cultural e
social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por
imitao ou de outra maneira. Suas formas compreendem, entre
outras, a lngua, a literatura, a msica, a dana, os jogos, a
mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e
outras artes215.

Aplicada as disposies relativas salvaguarda das expresses da cultura


tradicional e popular, a Recomendao no cria uma jurisprudncia que pudesse ser
seguida internacionalmente, como no caso de uma Conveno. Sem gerar
obrigatoriedade, a Recomendao pode apenas ter um impacto relativamente
limitado. Alm disso, os instrumentos de identificao sugerem o registro atravs de
inventrio, pesquisa e documentao em arquivo.

1982 A esse respeito ver: http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=EN&pg=00007. Acessado em


26/04/2007.
214
IPHAN. op. cit., p. 271
215
Ibid., p. 294 - 295.

77

Alfredo Wagner B. de Almeida (2007) discute a importncia da ratificao


desses tratados internacionais que so incorporados aos dispositivos constitucionais
dos Estados-membros. Inmeros decretos e portarias assinados tambm fazem
referncia direta ou indiretamente aos contratos multilaterais. Segundo Almeida, a
ratificao da Conveno 169 da OIT (Organizao Internacional do Trabalho)
reforou os instrumentos de redefinio das polticas agrria e ambiental e avanou
na conceituao de comunidade local,
que antes denotava principalmente um tributo ao lugar
geogrfico e a um suposto isolamento cultural, tornou-se
relacional e adstrita ao sentido de tradicional, enquanto
reivindicao atual de grupos sociais e povos face ao poder do
Estado e enquanto direito manifesto atravs de uma diversidade
de formas de auto-definio coletiva.216

Na dcada de 1990, a nfase na importncia da cooperao cultural


internacional e a crescente reafirmao de movimentos identitrios fizeram desses
fruns internacionais importantes arenas polticas e de disputa. Abre-se, portanto,
um campo de debates tericos e conceituais dentro dessas agncias multilaterais
quando importantes acordos internacionais esto sendo assinados e ratificados A
Conveno 169, aprovada pela OIT em julho de 1989, e a Recomendao sobre a
salvaguarda da cultura tradicional e popular, aprovada pela UNESCO no mesmo
ano, foram duas importantes reunies deliberativas. No final dos anos 90, os
especialistas concluram pela necessidade de um novo instrumento internacional217,
algo como uma Conveno, que viesse a criar diretrizes para a salvaguarda da
cultura tradicional e popular.
O texto que esboou a Conveno da Salvaguarda do Patrimnio Intangvel
foi o resultado de uma srie de encontros entre especialistas governamentais e no
governamentais, e foi enviado ao Comit Executivo da UNESCO, a qual
recomendou que a Conferncia Geral se realizasse ainda naquele ano218. Em outubro
216

ALMEIDA, A. W. B. Apresentao. In: Joaquim Shiraishi Neto (org.). Direito dos Povos e das
Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: UEA, 2007, p. 11.
217
Entende-se por instrumentos internacionais os documentos variados e normativos que servem como
referncia para as aes conjuntas da UNESCO e de seus Estados Membros.
218
As atividades preparatrias ficaram a cargo de um Comit Intergovernamental, que in order to
facilitate the work [...] the Intangible Heritage Section of UNESCO is organising a number of thematic
meetings aimed at preparing the implementation of the Convention. A first meeting co-financed by
Norway, took place in March and was dedicated to Inventorying Intangible Cultural Heritage. The other
seminars will be dedicated to Selection Criteria for Intangible Cultural Heritage, and to Safeguarding and
Management of Intangible Cultural Heritage. These meetings will aim at producing an overview, a

78

de 2003, a UNESCO aprovou a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio


Cultural Imaterial219, que, em suas disposies gerais, estabelece as definies para o
patrimnio cultural imaterial e para a salvaguarda do patrimnio imaterial.
Define-se por Patrimnio Cultural Intangvel, no mbito da Conveno de
2003, em seu Artigo 2:
as prticas, representaes, expresses, conhecimentos e
tcnicas junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares
que lhes so associados que as comunidades, os grupos e, em
alguns casos, os indivduos reconhecem como parte de seu
patrimnio cultural. Este patrimnio cultural imaterial, que se
transmite de gerao a gerao, constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em funo de seu meio ambiente, de sua
interao com a natureza e de sua histria, gerando um
sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim
para promover o respeito pela diversidade cultural e criatividade
humana.220

Os critrios para a identificao do patrimnio cultural imaterial so:


consagrao pelo tempo, permanncia e reconhecimento de sua importncia para a
sua identidade, por parte da prpria comunidade. Portanto, a Conveno indica que o
patrimnio cultural imaterial transmitido de gerao em gerao e recriado
constantemente por comunidades e grupos aos quais fornecem um sentido de
identidade e continuidade. Entretanto, essa proteo contida na Conveno
significa amparar os meios que habilitam as comunidades e grupos a continuarem a
desempenhar as suas prticas. Estabeleceu-se, tambm, que a documentao e o
arquivamento so os meios para a salvaguarda. A documentao no
necessariamente congela o patrimnio cultural imaterial (intangvel), nem tampouco
restitui o imaterial (intangvel) em material (tangvel). O que a documentao faz
preservar, para futuras geraes e para pesquisas, um ou mais elementos especficos
do patrimnio cultural imaterial.

comparison and an analysis of experiences already by Member States. UNESCO. op.cit., 2003. p. 2-14.
219
O Brasil adota a mesma nomenclatura dos pases de lngua latina (Frana, Itlia e Espanha): utiliza o
termo imaterial. O texto da Conveno na lngua inglesa adota o termo intangvel. Ambos possuem o
mesmo significado; logo, so passveis de apropriaes indistintas. No caso desta tese, procuro empregar
com mais freqncia o que consta no dispositivo Constitucional e nos instrumentos de poltica cultural
brasileira.
220
IPHAN. In: CURY, I. (org.). Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3a ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p. 373.

79

A Conveno visa aperfeioar as definies de patrimnio cultural


imaterial e de salvaguarda no sentido de formar um conceito amplo para essas
noes.
Entende-se por salvaguarda as medidas que visam garantir a
viabilidade do patrimnio cultural imaterial, tais como a
identificao, a documentao, a investigao, a preservao, a
proteo, a promoo, a valorizao, a transmisso
essencialmente por meio da educao formal e no-formal e
revitalizao deste patrimnio em seus diversos aspectos.221

Na reunio foram estabelecidas medidas de salvaguarda para patrimnio


imaterial. O Artigo 12 estabelece como importante medida de salvaguarda a adoo de
inventrios nacionais.
Para assegurar a identificao com fins a salvaguarda, cada
Estado Parte estabelecer, um ou mais inventrios do patrimnio
cultural imaterial presente em seu territrio, em conformidade
com seu prprio sistema de salvaguarda do patrimnio. Os
referidos inventrios sero atualizados regularmente.222

Alm disso, as relaes entre patrimnio tangvel e intangvel foram


extensivamente discutidas numa Conferncia Internacional de experts realizada em
Outubro de 2004 em Nara no Japo. A Declarao adotada no fim dessa reunio,
chamada Declarao Yamato, foi apresentada durante outra Reunio, desta vez em
2005, que apresentarei um pouco mais a frente.
A

Conveno

de

Salvaguarda

do

Patrimnio

Cultural

Imaterial,

explicitamente nos artigos 11, 12 e 15, exortou seus Estados-membros a envolver


em suas atividades nacionais de salvaguarda os grupos e as comunidades que so os
portadores e transmissores dos elementos a serem resguardados. Na definio de
Patrimnio Cultural Imaterial tambm foram ressaltados os campos nos quais essa
natureza de bem se manifesta, a saber223:
a) tradies e expresses orais, incluindo o idioma como veculo de
patrimnio cultural intangvel;
b) expresses artsticas;
c) celebraes, prticas sociais, rituais e atos festivos;
221

IPHAN. In: CURY, I. (org.). Cartas Patrimoniais. Edies do Patrimnio. 3a ed. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004, p.374.
222
Ibid., p. 378.
223
Ibid., p. 374.

80

d) conhecimentos e prticas, relacionados natureza e ao universo;


e) tcnicas artesanais tradicionais.
Em ltima instncia, salvaguardar a diversidade cultural e a criatividade
humana a meta dos acordos e discusses desse campo temtico. No obstante
tratar-se de um postulado construdo dentro dos debates da antropologia, essa
multiplicidade de expresses culturais comea a ser reconhecida e valorizada como
um bem comum da humanidade.
As medidas adotadas pela UNESCO visam a assegurar a reproduo do
patrimnio cultural imaterial, incluindo tanto documentao, pesquisa, preservao,
proteo, estmulo, intensificao, propagao (particularmente favorvel
educao formal e informal), quanto a revitalizao de vrios aspectos desses
patrimnios. Ao ratificar uma Conveno, o Estado obriga-se a cumprir os preceitos
assinados pelo tratado, vinculando os pases na ordem internacional e impondo
sanes em caso de descumprimento das normas acordados.224
Com a adoo do postulado da diversidade, a UNESCO vem reconhecendo a
importncia da salvaguarda e do acesso diversificado a uma srie de expresses
culturais.
A Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural proclama,
em seu artigo 4, que a defesa da diversidade cultural um
imperativo tico, inseparvel do respeito dignidade da pessoa
humana. E, na Conveno sobre a Proteo e a Promoo da
Diversidade das Expresses Culturais, em seu artigo 5, as partes
se comprometem a adotar medidas para a proteo e a promoo
da diversidade das expresses culturais225.

As Naes Unidas adotam como princpio fundamental da sua aplicao o


respeito aos direitos humanos e s liberdades fundamentais de modo que nenhuma
medida poltica para proteger e promover a diversidade infringir direitos humanos e
liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expresso, informao e
comunicao, bem como o direito dos indivduos escolherem suas expresses
culturais. Alm disso, ao vincular-se a Declarao dos Direitos Humanos reafirma as
aes contra as violaes dos direitos individuais e coletivos das populaes
224

NETO, J. S. A Particularizao do Universal: povos e comunidades tradicionais face s Declaraes e


Convenes Internacionais. In:______. Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil.
Manaus: UEA, 2007, p. 36.
225
DUPRAT, Deborah Prefcio. In: NETO, J. S. (org.). Direito dos Povos e das Comunidades
Tradicionais no Brasil. Manaus: UEA, 2007, p. 20.

81

tradicionais e povos indgenas.


O Brasil vem participando das reunies do Comit Intergovernamental e
relatando as experincias bem sucedidas na aplicao da legislao complementar ao
texto constitucional de 1988. Ao criar instrumento jurdico-legal apropriado para a
dimenso imaterial de seu patrimnio cultural, o Estado brasileiro avana nos
debates sobre os critrios de seleo de seus patrimnios culturais e as polticas de
salvaguarda. Destaca a necessidade de identificar e definir as mltiplas expresses
culturais locais, contando, para tal, com a participao das comunidades e grupos.

3.1.1. A participao do IPHAN na reunio de experts sobre Inventrio


do Patrimnio Cultural Intangvel (UNESCO, maro de 2005)

Com o propsito de estudar as variadas metodologias de inventrio e debater


assuntos a serem levados em conta na implementao da Conveno de 2003, a
UNESCO organizou em Paris, nos dias 17 e 18 de maro de 2005, a Reunio de
Experts sobre Inventrio do Patrimnio Cultural Intangvel226, da qual participaram
trinta profissionais de diversos pases227. Estes participantes foram selecionados entre
pesquisadores, representantes de comunidades, servidores civis de administraes
locais e nacionais, assim como ONGs (Organizaes No-Governamentais)
relevantes. A maioria veio de pases que j tinham adquirido experincia em
preparar um ou mais inventrios. O encontro teve o apoio financeiro do Governo da
Noruega, que facilitou a participao de quinze experts de pases em
desenvolvimento, dentre os quais a Diretora do Departamento de Patrimnio
Imaterial do IPHAN, a arquiteta Mrcia SantAnna.
A WIPO (World Intellectual Property Organization) tambm foi convidada,
assim como observadores dos Estados membros da UNESCO, em particular aqueles
que j tinham ratificado a Conveno ou demonstrado interesse neste tipo de
programa da UNESCO. Em torno de cinqenta observadores assistiram a todo ou a
226

UNESCO. Report on the Experts Meeting on Inventorying Intangible Cultural Heritage. Intangible
Heritage Section, Division of Cultural Heritage. Paris, 17-18 March, 2005. 44 p. Disponvel em:
http://www.unesco.org/culture/ich/doc/src/00036-EN.pdf. Acessado em 15 de maro de 2007.
227

APNDICE II - LIST OF PARTICIPANTS OF UNESCO. Experts Meeting on Inventorying


Intangible Cultural Heritage. Paris, 17-18 March, 2005.

82

parte do encontro. Houve quatro sesses de trabalho em plenrio, cada uma


introduzida por uma palestra de provocao, alm dos grupos de discusso. Os
participantes da reunio foram convidados, algumas semanas antes, a preencher um
questionrio referente s experincias em seus pases no inventrio de Patrimnio
Cultural Intangvel e atividades relacionadas228. Os questionrios devolvidos cobrem
vinte pases.
O propsito do questionrio era coletar e comparar informaes acerca de
diferentes sistemas de inventrio, a fim de facilitar as discusses durante a reunio.
Foram apresentadas vinte e duas questes, que procuraram, entre outras, identificar:
- Se o pas j preparou um ou mais inventrios de Patrimnio Cultural
Intangvel;
- Os domnios da lista de Patrimnio Cultural Intangvel (descritos
anteriormente na Conveno de 2003) estavam cobertos pelo inventrio;
- A participao da comunidade nas atividades de salvaguarda;
- Os princpios pelos quais as tradies eram distinguidas (tnica, lingstica,
religiosa, ocupacional, outra);
- Se os elementos do inventrio estavam ameaados de desaparecimento;
- Se o inventrio era uma listagem de informao resumida sobre os
elementos (como um catlogo), ou se caracterizava por uma abundante informao e
documentao enfocando abordagens diversas dos bens culturais;
- Os tipos de problemas que afetaram inventrios no pas, tais como falta de
base institucional, meios financeiros, de reconhecimento social, conscincia poltica,
de envolvimento das comunidades ou problemas de identificao e outras
possibilidades.
Fazendo um balano dos resultados, pode-se afirmar que as respostas no
podem ser vistas como representativas para os pases ou regies representados, sem
contar que nem todas as regies foram igualmente bem representadas. Alm disto, a
UNESCO fez a escolha deliberada de convidar especialistas tanto de pases com
experincia limitada quanto de outros pases de considervel experincia, o que no
criou uma homogeneidade mnima necessria para a apurao dos dados.
Questionrios completos foram recebidos de:
228

ANEXO A QUESTIONRIO DA UNESCO ENCAMINHADO AOS REPRESENTANTES DOS


ESTADOS-MEMBROS.

83

Seis pases da Europa e Amrica do Norte: Blgica,

Bulgria, Gergia, Litunia, Espanha e EUA;

Cinco pases da frica e dos Estados rabes: Arglia,

Cabo Verde, Qunia, Maurcio, frica do Sul;

Cinco pases da sia e do Pacfico: Buto, Fidji, ndia,

Japo, Uzbequisto;

Quatro pases da Amrica Latina e do Caribe: Brasil,

Colmbia, Haiti, Panam.


As respostas a estes questionrios foram analisadas e agrupadas em torno dos
principais temas da reunio, apresentadas ao incio de cada sesso de trabalho e
levadas em conta na redao do relatrio final. Se, por um lado, no houve a
padronizao metodolgica citada acima, por outro lado o material serve para um
mapeamento inicial do que se faz atualmente em termos de inventrio nos diversos
pases.
A reunio de 2005 foi aberta pelo Diretor Geral Assistente para Cultura da
UNESCO, Mounir Bouchenaki que, em sua palestra de boas vindas, apresentou um
histrico das atividades de Patrimnio Cultural Intangvel descrito na pesquisa,
finalizando o seu discurso com a Conveno de Salvaguarda de 2003, a qual, at
aquele momento, j tinha sido ratificada por doze Estados Membros. Enfatizou,
ainda, a importncia dos inventrios para a salvaguarda do Patrimnio Cultural
Intangvel e props que sasse daquela reunio um conjunto de normas e diretrizes
operacionais de inventrio a partir do relato e da anlise de experincias no nvel
nacional e definio das melhores prticas.
Em seguida, Rieks Smeets, Chefe da Seo de Patrimnio Intangvel da
UNESCO, brevemente indicou que a reunio se desenrolaria em quatro sesses de
trabalho plenrias e reforou o papel do futuro Comit Intergovernamental de
Patrimnio Cultural Intangvel da Humanidade (o Comit) contando com a
participao formal de representantes de Estados-membros eleitos. Ele tambm
enfatizou que, aps uma primeira fase de trocas de experincias e de idias sobre
inventrio, deveria haver, como resultado, um documento com recomendaes
conclusivas. Assistem s reunies do comit representantes de outras agncias
multilaterais, como o Centro Internacional de Monumentos e Stios (ICOMOS), o

84

Centro Internacional de Estudos para a Conservao e Restaurao dos Bens


Culturais e a Unio Internacional para a Conservao da Natureza e de seus
Recursos (UICN).
Mrcia SantAnna, Diretora do Departamento de Patrimnio Imaterial do
IPHAN/Brasil, fez a palestra de provocao da primeira sesso de trabalhos,
intitulada Escopo e Construo de Inventrios, apresentando as experincias
brasileiras de inventrio durante a Reunio de Experts sobre Inventrio do
Patrimnio Cultural Intangvel. Em seu relato, cita a Constituio Federal brasileira
de 1988, no Artigo 216, que j definia a noo de patrimnio cultural como um
conjunto de bens culturais, materiais e imateriais, portadores de referncia
identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem as formas de expresso e os modos de criar, fazer e viver (Art.

216, I e II). Em sua apresentao, SantAnna relatou que o estatuto do Registro,


institudo em agosto de 2000, foi criado para salvaguardar o patrimnio cultural
brasileiro em todas as suas dimenses, simblicas e materiais.

Atravs desse

registro, elementos do cotidiano at ento inseridos nas prticas culturais locais so


alados categoria de patrimnio. Considerando a natureza dinmica do Patrimnio
Cultural Intangvel, recomenda-se que o Registro seja periodicamente revisado, pelo
menos uma vez a cada dez anos. Os bens culturais registrados so declarados
Patrimnio Cultural brasileiro, o que os qualifica como uma categoria de bens de
elevado valor simblico no mbito do Estado brasileiro. Paralelamente ao Registro
foi estabelecido o Programa Nacional para o Patrimnio Imaterial que funciona
como um programa de fomento, apoiando com recursos financeiros as instituies
do Estado a promover o mapeamento e o inventrio desses bens.
A tarefa do IPHAN, rgo do Ministrio da Cultura, est voltada para
atividades de pesquisa, para a identificao e registro da propriedade e recursos de
patrimnio histrico e cultural, assim como a superviso dos trabalhos de
conservao, educao pblica e programas de conscientizao.229. A metodologia
desse inventrio cultural, segundo SantAnna, compreende trs fases: 1.
Levantamento preliminar; 2. Identificao e documentao; 3. Interpretao. Para a
Diretora do IPHAN, um aspecto importante que a interpretao seja desenvolvida
229

Esta definio pode ser consultada no site do rgo: http://www.iphan.gov.br/

85

em conjunto com as comunidades locais, envolvidas em todo o processo, desde o


seu comeo, por exemplo, no preenchimento de um questionrio por seus
representantes, alm de serem entrevistados in situ.
Para estimular as condies de vida destas comunidades atravs da
salvaguarda do seu Patrimnio Cultural, alm do Registro em si, segundo
SantAnna, quatro linhas de ao so desenvolvidas: apoio financeiro para a
transmisso de conhecimentos, apoio gerencial focado no artesanato tradicional,
desenvolvimento de capacitao na comunidade e apoio para encontrar novos
mercados para determinados produtos.
Aps sua apresentao, Mrcia SantAnna conduziu o debate respondendo
primeiramente aos experts da Arglia, Espanha, Bulgria e Blgica que relataram
um pouco dos aspectos dos inventrios que vinham desenvolvendo. Os experts do
Mxico e Nicargua perceberam muitas semelhanas do inventrio brasileiro com o
sistema de inventrios em seus pases. Participaram tambm os dos Estados Unidos,
Uzbequisto, Maurcio, Panam e frica do Sul, recebendo contribuies dos
observadores das delegaes de Portugal e da Noruega. SantAnna enfatizou a
importncia da cooperao entre os pases de lngua portuguesa no intercmbio de
procedimentos e mtodos de inventrio.230 Apreende-se, acompanhando todo esse
debate, que a experincia brasileira considerada precursora para muitos pases.
Tanto assim que a palestra de SantAnna inaugura uma sesso temtica desse
encontro, despertando muito interesse das demais delegaes dos Estados-membros.
A Conferncia Geral da UNESCO adotou a Conveno relativa salvaguarda
do patrimnio imaterial, em 17 de outubro de 2003. O principal objetivo dessa
Conveno o de indicar que o patrimnio cultural imaterial (intangvel)
transmitido de gerao em gerao e recriado constantemente por comunidades e
grupos aos quais fornecem um sentido de identidade e continuidade (Art. 2, I). O
papel dado s comunidades e grupos na identificao e documentao dos bens
culturais decisivo para a sua salvaguarda. A Conveno fundamenta-se nos
pressupostos da diversidade cultural e no respeito aos direitos humanos individuais e
coletivos.

230

UNESCO. op. cit., p. 13-15.

86

Sete convenes internacionais foram elaboradas pela UNESCO desde os


anos 50 com o propsito de preservar os vrios aspectos ligados diversidade
cultural. Estes instrumentos constituem hoje a sntese da estratgia da UNESCO no
que se refere proteo e promoo da diversidade cultural, traduzidos pelos termos
jurdicos do artigo 7 da Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural:
Toda criao tem suas origens nas tradies culturais, porm se
desenvolve plenamente em contato com outras. Essa a razo
pela qual o patrimnio, em todas suas formas, deve ser
preservado, valorizado e transmitido s geraes futuras como
testemunho da experincia e das aspiraes humanas, a fim de
nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um
verdadeiro dilogo entre as culturas231.

Com a adoo do postulado da diversidade, a UNESCO vem reconhecendo a


importncia da salvaguarda e do acesso diversificado a uma srie de expresses
culturais.
A Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural proclama,
em seu artigo 4, que a defesa da diversidade cultural um
imperativo tico, inseparvel do respeito dignidade da pessoa
humana. E, na Conveno sobre a Proteo e a Promoo da
Diversidade das Expresses Culturais, em seu artigo 5, as partes
se comprometem a adotar medidas para a proteo e a promoo
da diversidade das expresses culturais232.

As Naes Unidas adotam como princpio fundamental da sua aplicao o


respeito aos direitos humanos e s liberdades fundamentais de modo que nenhuma
medida poltica para proteger e promover a diversidade poder infringir direitos
humanos e liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expresso, informao
e comunicao, bem como o direito dos indivduos escolherem suas expresses
culturais. Alm disso, ao vincular-se a Declarao dos Direitos Humanos reafirma as
aes contra as violaes dos direitos individuais e coletivos das populaes
tradicionais e povos indgenas.
Na verdade, as culturas descritas ora como dominadas, ora
como subalternas continuam incrementando suas experincias
de atualizao cultural, em processos muito interessantes que
vrios antroplogos se dedicam a estudar e divulgar,
contrapondo-se idia da suposta homogeneizao conduzida
231

Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural. In: Joaquim Shiraishi Neto (org.). Direito dos
Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: UEA, 2007, p. 126.
232
DUPRAT, Deborah Prefcio. In: Joaquim Shiraishi Neto (org.). Direito dos Povos e das
Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: UEA, 2007, p. 20.

87
por culturas ditas hegemnicas [...] O que importa
compreender e, portanto, valorizar, o ponto de vista local. na
escala local que so selecionados, traduzidos e apropriados
objetos ou saberes que circulam no sistema mundial233.

Tudo isso parte de um grande debate internacional em que diversos agentes


e agncias grovernamentais e no-governamentais foram convocados a
participar, atuando junto s polticas pblicas dos Estados nacionais relacionadas
promoo da diversidade das culturas e dos povos.
No Brasil, a flexibilizao das fronteiras do patrimnio cultural teve na figura
de Alosio Magalhes seu principal articulador, que despontou na cena cultural
brasileira com um discurso voltado para o desenvolvimento e valorizao das
manifestaes da cultura brasileria, principalmente aquelas de feies populares.
Habilmente, Alosio tece uma rede de relaes polticas entre agentes de diferentes
instncias governamentais, implementando programas e projetos de grande
abrangncia. Atento aos debates internacionais, Alosio Magalhes apropriou-se do
conceito de bem cultural cunhado pela UNESCO e procurou aplic-lo na
diversidade das expresses da cultura brasileira.

233

IEP. Patrimnio Cultural Imaterial e povos indgenas. Dominique Tilkin Gallois (org.). So
Paulo: IEP, 2006, p, 21.

88

CAPTULO 4 A Trajetria da Poltica de Patrimnio Imaterial no


Brasil

4.1. A nova fase de institucionalizao do patrimnio: a gesto Alosio


Magalhes.
Na segunda metade dos anos de 1960 e por toda a dcada de 1970,
foram introduzidas profundas reformas institucionais, polticas, econmicas e sociais
no pas. Nesse perodo, o Estado fortaleceu a mquina administrativa criando
inmeras instituies e empresas pblicas. A economia cresceu e diversificou-se, no
sentido de modernizar-se, com expanso tambm do setor privado. Nesse contexto,
Governo e empresrios discutiam a acelerao do desenvolvimento econmico
brasileiro, qualificado por indicadores de complexificao crescente. No mbito das
instituies na rea cultural, o governo militar de Geisel formalizou um conjunto de
diretrizes para orientar as suas atividades, operacionalizadas atravs da Poltica
Nacional de Cultura234 que, nos seus princpios fundamentais, obrigava o Estado a
respeitar a liberdade de criao e a garantir o acesso cultura, fazendo-o assumir um
papel de fomentador da produo cultural, principalmente junto a setores mais
perifricos da administrao pblica235.
No objetivo deste trabalho aprofundar as diretrizes gerais dessa poltica,
mas somente enfatizar a sua vertente patrimonial. Ao estabelecer novas diretrizes
para a preservao do patrimnio cultural brasileiro, a Poltica Nacional de Cultura
faz referncia proteo, salvaguarda e valorizao do patrimnio histrico,
artstico, arquitetnico, paisagstico e natural, bem como aos elementos tradicionais
da cultura popular236. Dentro de uma conceituao ampla de cultura, as polticas
234

A Poltica Nacional de Cultura foi elaborada por membros do Conselho Federal de Cultura e do
Departamento de Assuntos Culturais DAC/MEC e teve como um de seus principais articuladores o
antroplogo Manuel Diegues Jr., diretor do DAC. Antes de assumir a direo do DAC, Diegues Jr.
ocupou, at 1961, o cargo de Diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Cincias Sociais,
entidade criada pela UNESCO no Rio de Janeiro. Em linhas gerais, o DAC propunha-se a criar um
Sistema Nacional de Cultura, incluindo tambm um Sistema Nacional de Museus.
235
MICELI, S. Estado e Cultura no Brasil. So Paulo: Difel, 1984.; ANASTASSAKIS, Z. Dentro e
Fora da Poltica Oficial de Preservao do Patrimnio Cultural no Brasil: Alosio Magalhes e o
Centro Nacional de Referncia Cultural. Rio de Janeiro: UFRJ, Museu Nacional, PPGAS, 2007.
236
HERRERA; DIGUES, JR.; SILVA. Novas Frentes de Promoo da Cultura. Srie Informao e
Documentos. Rio de Janeiro: FGV/DAC/Fundo Internacional de Promoo da Cultura, 1977.

89

culturais do Estado buscavam inter-relacionar as vertentes patrimonial e da produo


cultural da Secretaria de Cultura do MEC. Ao Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional (IPHAN) competia executar grande parte da diretriz anunciada
por essa vertente patrimonial, necessitando reformular as suas estruturas de modo a
permitir agilidade no cumprimento adequado de suas tarefas.
Nas dcadas de 1970 e 1980, as medidas normativas de proteo dos bens
culturais ampliaram-se significativamente, principalmente por fora dos debates
conduzidos pelos organismos internacionais. Determinados aspectos do patrimnio
cultural passaram a ser protegidos atravs da lei de arqueologia, instituda em 1961,
e que dispe sobre os monumentos arqueolgicos e pr-histricos. Tal lei estabelece
normas que devem ser seguidas por instituies de ensino e pesquisa para a
concesso da licena de escavao de stios arqueolgicos, regulamentando,
inclusive, a explorao econmica pelas indstrias e empresas mineradoras. A
agncia de patrimnio estabeleceu uma srie de convnios com instituies de
ensino e pesquisa pelo Brasil, destacando-se o Museu Nacional do Rio de Janeiro,
conforme descrito no segundo captulo desta tese.
A partir da dcada de 1970, organizaram-se encontros nacionais e
internacionais, buscando reconceituar o patrimnio cultural e restabelecer novas
relaes com o mercado; principalmente, com a indstria do turismo. Em um
contexto de desenvolvimento acelerado das metrpoles e de construo do parque
industrial brasileiro, a especulao imobiliria atingia ndices elevados237. Tais
preocupaes foram debatidas em dois encontros promovidos pelo Ministrio da
Educao e Cultura. O primeiro deles, realizado em abril de 1970, ficou conhecido
como Compromisso de Braslia (1970) e convocou governadores de Estado,
secretrios da rea cultural, prefeitos e representantes de instituies culturais para
discutirem os rumos da preservao do patrimnio histrico e artstico nos estados e
municpios238. No ano seguinte, o segundo encontro de governadores, em
Salvador, rediscutiu-se as recomendaes da Carta de Braslia, ratificando todos
237

Destaca-se nesse perodo a primeira grande Conveno da UNESCO sobre a Salvaguarda do


Patrimnio Mundial, Cultural e Natural (1972). Antes dela, porm, em outro importante encontro
internacional foram estabelecidas as Normas de Quito (1967). No Brasil, duas reunies com polticos e
gestores da rea cultural marcam esse perodo. Ver em: FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em
Processo: trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997, p.
160; IPHAN. Cartas Patrimoniais. Cury, I. (org.). 3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.
238
IPHAN. op.cit., p. 137-141.

90

os seus itens239. Tambm foi a partir dessas duas reunies que foram tiradas as
diretrizes para o processo de descentralizao das aes de preservao, estimulando
estados e municpios a criarem legislao especfica para a proteo dos bens
culturais de valor regional e instituies museais regionais. 240
Em 1970, a Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional241
(DPHAN) foi reestruturada em Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional (IPHAN) e vinculada, ento, ao Ministrio de Educao e Cultura (MEC),
sob o comando de Jarbas Passarinho. Com a passagem de Diretoria para Instituto
como rgo autnomo transformado em autarquia242, o IPHAN ampliava o nmero
de escritrios tcnicos e superintendncias regionais, alm de estabelecer
cooperao tcnica com a UNESCO para os problemas mais graves relacionados
com os principais conjuntos arquitetnicos e urbansticos tombados243.
Miceli chama a ateno para o processo de reestruturao das instituies
culturais nesse perodo e para a dicotomia entre as vertentes executiva e
patrimonialista. Nesse mesmo perodo foram criados o Departamento de Assuntos
Culturais244 - DAC/ MEC (1972); o Programa de Reconstruo de Cidades
Histricas245 (PCH); o Programa de Ao Cultural (PAC) MEC (1973); o

239

IPHAN. Cartas Patrimoniais. Cury, I. (org.). 3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 144.
Ibid., 138, 139.
241
Conforme descrevi na introduo desta tese, a agncia de preservao passou por diversos arranjos
institucionais. As mudanas de sigla no so casuais e refletem momentos de ampliao de seus
domnios. Em 1946, expandiu-se, quando o Servio transformou-se em Departamento e foram criadas as
primeiras Superintendncias Regionais: Recife, Salvador, Belo Horizonte e So Paulo. Em julho de 1970,
um novo decreto transforma a DPHAN em IPHAN. Em 1979, ocorreu a incorporao do Centro Nacional
de Referncia Cultural e Programa de Cidades Histricas ao IPHAN, sob a sigla SPHAN-Pr-Memria.
Em 1990, a agncia estatizada de preservao volta a ser denominada IPHAN, autarquia federal
constituda pelo Decreto no 99.492, de 3 de setembro de 1990, e pela Lei no 8.113, de 12 de dezembro de
1990, com base na Lei no 8.029, de 12 de abril de 1990, vinculada ao Ministrio da Cultura,
permanecendo at a atualidade.
242
Entidade auxiliar da administrao pblica estatal autnoma e descentralizada. O Decreto-Lei n 200
de 1967, no seu artigo 5, inciso I, define autarquia como "Servio autnomo criado por lei, com
personalidade jurdica de direito pblico, patrimnio e receita prprios, para executar atividades tpicas da
Administrao Pblica, que requeiram para seu melhor funcionamento gesto administrativa e financeira
descentralizada".
243
MinC /IPHAN, Arquivo Noronha Santos, Sub-srie Instituto Evoluo Institucional. Md. 72 Prat.
02 Cx. 246 e 247 Pastas 54-56 e 57-59.
244
Dirigido pelo antroplogo Manuel Diegues Jr., o rgo era subordinado ao Ministrio da Educao e
Cultura e possua uma posio central na estrutura administrativa do Ministrio, ao coordenar e
supervisionar as atividades desenvolvidas pelos rgos de preservao dos bens culturais.
245
O objetivo geral do PCH era compatibilizar a idia de preservao e com o uso social do Monumento.
Vale observar que nesse perodo de crescente urbanizao e desenvolvimento das atividades econmicas,
em particular, da atividade turstica, so criados novos desafios para a preservao e revitalizao dos
monumentos histricos.
240

91

Conselho Nacional de Direito Autoral246 (CNDA/ MEC) (1973). Em 1975, merecem


destaques a criao do Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC) Ministrio
da Indstria e Comrcio (MIC) (1975) e da Fundao Nacional de Arte FUNARTE MEC (1975) 247.
Em nvel internacional, a UNESCO formalizava a criao do Fundo do
Patrimnio Mundial, aprovado na 17a Conferncia Geral, de 16 de novembro de
1972, sobre a Salvaguarda do patrimnio Mundial, Cultural e Natural248. Tal
iniciativa veio ampliar as formas de cooperao tcnica e de ajuda financeira entre
os Estados-membros e as agncias multilaterais. Em novembro de 1976, o Fundo
Internacional de Promoo da Cultura da UNESCO, juntamente com o
Departamento de Assuntos Culturais do MEC, promoveram no Rio de Janeiro um
encontro destinado a focalizar a problemtica da cultura e de seu financiamento249.
O documento final desse encontro faz referncia no s proteo, salvaguarda e
valorizao do patrimnio histrico, artstico, arquitetnico, literrio, paisagstico e
natural, como ainda aos elementos tradicionais, geralmente traduzidos em
manifestaes folclricas e de artes populares250.
Gonalves (1996) descreve esse perodo como de profundas mudanas na
gesto da poltica oficial de cultura em geral e, em particular, na de patrimnio251.
Em um contexto caracterizado pela crescente complexidade dos aparatos
burocrticos, desponta, na cena da poltica cultural brasileira, a figura de Alosio
Magalhes252. Vindo de uma linhagem de polticos nordestinos, Magalhes
246

A institucionalizao do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), criado pela Lei 5.988, de 14
de dezembro de 1973, s veio a operar efetivamente em meados de 1975. MICELI, S. Estado e Cultura
no Brasil. So Paulo: Difel, 1984, p. 56.
247
A Fundao Nacional de Arte (Funarte) foi criada pela Lei n. 6.312, de 16 de dezembro de 1975. Uma
nova portaria incorpora a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro como Instituto Nacional de
Folclore FUNARTE, em maro de 1978. MICELI, S. op. cit., p. 56.
248
O Fundo prev a contribuio dos Estados-membros, organizaes integrantes do Sistema das Naes
Unidas, rgos pblicos ou privados e pessoa fsica. Cf. IPHAN. Cartas Patrimoniais. Cury, I. (org.).
3a. ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 186.
249
HERRERA, F.; DIEGUES Jr., M.; SILVA, B. Novas Frentes de Promoo da Cultura. Rio de
Janeiro: FGV/ DAC MEC. 1977, p. VIII.
250
Ibid., p. 43.
251
GONALVES, J. R. S. A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ; IPHAN, 1996.
252
Alosio Magalhes, advogado, artista plstico e designer. Nasceu em Pernambuco, em 5 de novembro
de 1927. No incio de sua carreira participou como gravurista de um atelier experimental de edio de
livros. Viaja para os Estados Unidos, onde entra em contato com o artista e desenhista industrial Jim
Feldmann; logo em seguida, aceita o convite para um estgio mais prolongado, familiarizando-se com as
novas linguagens grficas de comunicaes e com os novos paradigmas de anlise (teoria da informao
etc.) Depois, firma-se como designer, participando da fundao da Escola Superior de Desenho Industrial

92

aproximou-se dos crculos governamentais durante os anos em que trabalhou para o


Banco Central como responsvel pelo design do novo papel moeda. Passa ento a
atuar como consultor da rea de programao visual de algumas empresas pblicas,
como os Correios e Telgrafos e a Petrobrs253. Constri sua carreira de designer,
tornando-se respeitvel e reconhecido na rea da produo cultural254. desse lugar
central no campo da produo cultural que Alosio Magalhes comea a refletir
sobre o design e a cultura brasileira. Conterrneo de Gilberto Freyre, que foi para ele
e para outros de sua gerao uma referncia intelectual e, sem dvida, um dos
grandes intrpretes do Brasil, adotou uma perspectiva para a cultura brasileira
bastante prxima da de seu mentor, preocupando-se com a diversidade das
expresses culturais.
O Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC)255, idealizado e dirigido
por Alosio Magalhes (1975-1979), teve por objetivo traar um sistema referencial
bsico para a descrio e anlise da dinmica cultural brasileira. Inicialmente
estruturado como um programa interministerial passou a desenvolver diversos
projetos na rea da cultura popular. Muitos deles voltaram-se para o artesanato
produzido em pequenas comunidades como alternativa de gerao de renda e de
trabalho256. O objetivo principal dos levantamentos do Centro para esse campo
temtico era produzir documentao e registro dos processos de produo, das
tcnicas tradicionais e dos contextos scio-produtivos. Na perspectiva de Alosio,
atravs da instrumentalizao da rea cultural, poder-se-ia atingir os indicadores
apropriados ao modelo de desenvolvimento econmico da nao. Era um discurso
do Rio de Janeiro. Ver em Miceli, S. Estado e Cultura no Brasil. So Paulo: Difel, 1984, p. 80-81.
253
Ao consultar o arquivo Alosio Magalhes depositado na sede do IPHAN, em Braslia,, Zoy
Anastassakis prope-se fazer uma reviso da literatura que concebe a criao do Centro Nacional de
Referncia Cultural. Cf. ANASTASSAKIS, Z. Dentro e Fora da Poltica Oficial de Preservao do
Patrimnio Cultural no Brasil: Alosio Magalhes e o Centro Nacional de Referncia Cultural.
Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, Museu Nacional, PPGAS, 2007, p. 23.
254
Fabrcia Cabral (2007) enfatiza a importncia da figura de Alosio Magalhes para o desenvolvimento
da produo cultural brasileira. CABRAL, F. G. S. Saberes Sobrepostos: design e artesanato na
produo de objetos culturais. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Design da PUC,
Rio de Janeiro, maro de 2007, p. 66.
255
O CNRC, inicialmente instalado nas dependncias da antiga reitoria da UnB, possua um perfil
claramente acadmico e contava com a colaborao de diversos professores da universidade, como a
sociloga Brbara Freitag, o antroplogo Georges Zarur e a professora Clara de Andrade Alvim, da PUCRio. Era dividido em quatro reas de inspirao nitidamente acadmica: Cincias Humanas, Cincias
Exatas, Documentao Artes e Literatura Cf. FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em Processo: trajetria
da poltica federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997, p. 165.
256
CENTRO NACIONAL DE REFERNCIA CULTURAL. Bases para um Trabalho sobre o Artesanato
Brasileiro Hoje. Braslia, SCN, s/d.

93

multifacetado e que respondia a demandas de diversos tipos, enfatizando a


importncia de um desenvolvimento harmonioso para a nao brasileira, atingvel
somente na delicada relao entre a dinamizao da cultura e o progresso
tecnolgico.
Em seus discursos, Alosio operava com uma conceituao de cultura mais
abrangente, de carter antropolgico257. Seguro de que a compreenso da cultura era
fator decisivo para o desenvolvimento social, Alosio Magalhes preocupou-se em
conceituar o que seria um produto cultural com caractersticas nacionais. Nesse
sentido, vai construir algumas coordenadas tericas para fundamentar suas escolhas
polticas. A principal delas foi a noo de referncia cultural. Quando ele falava
em referncia cultural, estava atribuindo a essa noo uma dimenso mais
abrangente de patrimnio. certo afirmar que Alosio procurava manter-se bem
informado a respeito do que se passava no debate internacional das polticas para o
campo temtico do patrimnio, bem como das categorias cunhadas pela UNESCO258.
No processo histrico de inveno das naes e nacionalismos das sociedades
ocidentais, o patrimnio inscreve-se essencialmente como afirmao identitria,
freqentemente de carter nacional. Sob o postulado da diversidade cultural
instituram-se polticas de Estado que procuram articular a questo da diversidade
problemtica da unidade nacional. Thiesse (1999), ao revelar o processo de
constituio das identidades nacionais na Europa do sculo XIX, enfatiza que as
culturas populares tornaram-se o eixo poltico desses debates259. Por ser plena de
particularismos e guardar modos de vida e vises de mundo fundamentados pela
tradio, a cultura popular foi escolhida pelos intelectuais que participaram na
elaborao dos patrimnios culturais nacionais como autntica representao da
nacionalidade. No Brasil, esses debates se fizeram sentir a partir dos modernistas.
Dcadas depois, Alosio Magalhes retoma o famoso anteprojeto de Mrio de
Andrade e acentua seu interesse por um tipo particular de expresso cultural
relacionada ao campo dos estudos de folclore e cultura popular.

257

Cf. GONALVES, J. R. S. A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil. Rio de


Janeiro: Ed. UFRJ; IPHAN, 1996.
258
Conforme foi visto no captulo anterior, o conceito de Bem Cultural foi cunhado pela Unesco, na 13a
Conveno Geral, em Paris 19 de novembro de 1964. Cf. IPHAN. Cartas Patrimoniais. Cury, I. (org.).
3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 98.
259
THIESSE, A-M. La Cration des Identits Nationales. Europe XVIII-XX sicle. Paris: Seuil. 1999.

94

Em 1979, tem incio a gesto de Eduardo Portella frente do Ministrio da


Educao e Cultura. Uma de suas primeiras iniciativas foi transferir o Programa de
Cidades Histricas que pertencia Secretaria de Planejamento da Presidncia da
Repblica para o IPHAN. Dessa fuso, criou-se a Secretaria do Patrimnio Histrico
e Artstico Nacional e a Fundao Nacional Pr-Memria SPHAN/ FNPM. O
novo rgo tambm encampa o Centro Nacional de Referncia Cultural, originado
em 1975 por convnio entre organismos governamentais e destinado pesquisa260.
Esse quadro de foras possibilitou a emergncia de novas orientaes, que tiveram
impacto expressivo no que tange a ampliao dos referenciais tericos do patrimnio
cultural brasileiro.
Ao assumir a direo-geral do IPHAN, em 1979, e, no ano seguinte, a
Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e a Presidncia da Fundao
Nacional Pr-Memria, Magalhes marca um novo perodo na formulao de uma
poltica cultural mais abrangente. Maria Ceclia Londres Fonseca descreve a gesto
de Alosio Magalhes frente ao CNRC e, posteriormente, SPHAN/ Pr-Memria,
contrapondo-a a carreira administrativa de Rodrigo Melo Franco de Andrade261. Essa
periodizao prioriza as discusses internas da agncia estatizada e considera a
adeso de diversos agentes sociais cena poltica e as transformaes internacionais.
Vale lembrar que foi na gesto de Alosio que cidades e paisagens naturais
brasileiras passaram a figurar na lista do Patrimnio Mundial262.
Conceitualmente, a fuso IPHAN/PCH/CNRC deve ser compreendida em
virtude da necessidade de articular melhor as duas vertentes pelas quais se podem
considerar os bens culturais: de um lado, a vertente preservacionista, preocupada
em proteger e conservar o que j havia sido identificado como bem patrimonial
brasileiro; de outro, a vertente executiva, que procura identific-lo tecnicamente,
para recuperar as informaes do respectivo acervo e, a seguir, devolv-lo sua
comunidade263. A equipe multidisciplinar montada a partir do CNRC264 e incorporada
260

Cf. MICELI, S. Estado e Cultura no Brasil. So Paulo: Difel, 1984, p. 59.


FONSECA, M. C. L. O Patrimnio em Processo: trajetria da poltica federal de preservao no
Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997.
262
A cidade histrica de Ouro Preto/ MG foi declarada pela Unesco Patrimnio da Humanidade, em
1980, sendo seguida pelo centro histrico de Olinda/ PE, em 1982, e pelas runas jesuticas-guarani de
So Miguel das Misses/ RS, em 1983. Hoje, a lista denominada Patrimnio Mundial e o ltimo
registro que figura na lista so a Ilhas Atlnticas brasileiras: reserva de Fernando de Noronha e Atol das
Rocas, em 2001.
263
Segundo Fabrcia Cabral, o apoio que o Estado deveria fornecer produo cultural culminava na
261

95

a SPHAN/Pr-Memria imprimiu uma nova dmarche de trabalho, proporcionando


uma ao verdadeiramente nova para aquela agncia de preservao.
Imprescindvel sublinhar que parte dessa equipe de tcnicos permaneceu na
instituio, mesmo depois da morte de Alosio em 1982. Com a Nova Repblica, em
1984, e o recm-institudo Ministrio da Cultura, esses profissionais continuaram
atuando em benefcio da diversidade cultural brasileira: desse perodo alguns
tombamentos importantes, por se constiturem como lugares de memria de
comunidades e grupos sociais, tais como, o do terreiro de candombl Casa Branca,
na Bahia, e da Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. Tais diretrizes de poltica cultural
dos anos 1980 vieram a influenciar decisivamente a atual construo dos
dispositivos constitucionais no seu artigo 216, que define o patrimnio cultural
brasileiro em suas dimenses materiais e imateriais.
Alosio Magalhes entendia que o conceito de bem cultural no Brasil
continuava voltado sobretudo para os bens culturais imveis, de natureza histrica,
religiosa ou leiga, a que se juntou posteriormente o conceito de stios e conjuntos
arquitetnicos

relevantes265,

devidamente

consagrados

pela

vertente

preservacionista do antigo SPHAN. Faltava-lhe, portanto, agregar vasta gama de


bens, procedentes do fazer popular, tomando-o dinmico, elemento vivo, aberto s
modificaes e alteraes que ocorrem ao longo do processo histrico266. Nesse
sentido, a ampliao do conceito leva a uma redefinio dos critrios de seleo
empregados na definio do patrimnio cultural brasileiro. Uma avaliao global
permite afirmar que o saldo foi a ampliao dos mtodos e recortes temticos
empregados na identificao dos bens culturais267.
noo de devoluo (a finalidade dos projetos), criando o contraponto interveno versus devoluo.
Em busca de realizar o almejado apoio, as aes do CNRC contemplavam a identificao, para
conhecimento da dinmica cultural; o registro e a indexao, por meio de documentao audiovisual que
resultaria na memria; e a devoluo, tambm definida como uma forma de comunicao, reintegradora,
adequando-se complexidade cultural de cada contexto, tudo isto resultando na reflexo. Cf. CABRAL,
op.cit, p. 31.
264
Os agentes recrutados por Alosio Magalhes distinguiam-se dos tradicionais funcionrios do IPHAN,
cuja hegemonia era de arquitetos com uma viso dogmtica de preservao. A equipe era composta por
matemticos, com especializao em informtica, educadores, tcnicos em biblioteconomia e
documentao, crticos literrios, cientistas sociais, dentre outros. Cf. FONSECA, op.cit., p. 162, 164.
265
MAGALHES, A. E Triunfo? A questo dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Fundao Roberto Marinho, 1997, p. 62.
266
MAGALHES, A. Bens Culturais: instrumento para um desenvolvimento harmonioso. Revista do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. n. 20, 1984, p. 42.
267
MOTA, L.; SILVA, M. R. (orgs.). Inventrio de Identificao do Patrimnio. Rio de Janeiro:
IPHAN, 1998, p. 11.

96

Outras instituies participavam desse processo de flexibilizao das


fronteiras do patrimnio cultural, informadas por uma tica antropolgica e
etnogrfica de cultura, dentre elas, o Instituto Nacional de Folclore (INF), vinculado
ao debate internacional sobre o postulado da diversidade cultural. Sua trajetria
paradigmtica para se pensar a crescente complexificao do campo temtico do
patrimnio e o seu enredamento transnacional. No mbito das relaes
internacionais, o Ministrio das Relaes Exteriores havia criado o Instituto
Brasileiro de Educao, Cincia e Cultura, IBECC, considerado a Comisso
Nacional da UNESCO no Brasil. Em 1947, por iniciativa do escritor e diplomata
Renato Almeida, criou-se a Comisso Nacional de Folclore, como rgo ligado
estrutura administrativa do IBECC/ UNESCO. Em 1958, o Movimento Folclrico
consegue se institucionalizar em Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro,
atravs do decreto n. 43.178, com sede e estrutura administrativa prprias.
Renato Almeida como primeiro presidente soube mobilizar um nmero
significativo de intelectuais em torno dos debates sobre a definio da identidade
nacional. Na dcada de 1950, o Movimento Folclrico congregava um grupo de
intelectuais em torno dos debates da preservao da identidade nacional. Estudos
mais detidos das trajetrias sociais desses intelectuais mostram suas relaes com
vrios socilogos e antroplogos em torno de novas formulaes sobre a disciplina
do folclore268. Os intelectuais que participavam do Movimento continuaram a
promover congressos, editar boletins e organizar um acervo documental e de cultura
material, depositados na biblioteca e museu da recm-criada instituio.
De acordo com depoimentos de Assessores Tcnicos do Museu de Folclore
Edison Carneiro, a antroploga, escritora e historiadora da arte Llia Gontijo Soares
foi indicada por Alosio Magalhes para assumir o cargo de diretora do Instituto
Nacional de Folclore, em 1982. No binio 1982/1984, Llia foi a principal
responsvel pela implantao da nova proposta do Instituto Nacional do Folclore
FUNARTE-MinC (hoje Centro Nacional do Folclore e da Cultura Popular
CNFCP-IPHAN-MinC). A proposta de Llia Soares residia em transformar o
Instituto Nacional do Folclore em uma ponta de lana institucional em nvel federal,
268

Vilhena deteve-se nos Congressos de Folclore, nas temticas em pauta e na institucionalizao do


Movimento Folclrico na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958. Cf. VILHENA, L. R.
Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte/ FGV, 1997.

97

que pudesse aplicar, na prtica, as diretrizes para a operacionalizao da poltica


cultural do MEC, no tocante valorizao dos bens culturais ainda no consagrados,
bem como da proteo do produto cultural brasileiro atravs do apoio aos rituais e
formas de representao artesanal, musical, teatral e/ou outras que procedem da
experincia coletiva de um grupo pertencente a uma regio ou segmento social
definido, desde que estivesse evidenciado um carter eminentemente popular.
O Instituto atravessou profundas transformaes de cunho administrativo e
conceitual. Sua incorporao FUNARTE, na dcada de 1980, e sua reestruturao
em Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), na dcada seguinte,
significou ampliao de suas responsabilidades de ao. Instituio federal
exclusivamente responsvel pela rea das culturas populares, ele passou por vrias
fases e recentemente saiu da FUNARTE e foi para o IPHAN. A atuao do CNFCP
tem se pautado pelo reconhecimento do carter dinmico e diverso da cultura.
Consoante com as diretrizes da UNESCO, o Centro considera equivalentes as
expresses folclore e cultura popular. O universo abrangido por essas duas
expresses bastante amplo, e isso no s pela diversidade de itens que a se
inscrevem, como pelo seu carter plural, intrnseco s manifestaes culturais dessa
natureza.
Com esses novos enquadramentos institucionais, observa-se uma ampliao
da noo de patrimnio cultural. Vale ressaltar que alguns aspectos que configuram
essa nova idia foram se constituindo atravs dos dispositivos legais. O Decreto-lei
25/37, em seu artigo primeiro, j previa a preservao dos bens de excepcional
valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico. A lei de arqueologia
de 1961, alicerada em valores cientficos vigentes em sua poca, pe entre
parnteses uma questo fundamental nas narrativas sobre o patrimnio: o seu valor
excepcional. No se sustentava cientificamente a idia de um carter nico ou
autntico para os monumentos arqueolgicos. Em meados da dcada de 1970, o
Centro Nacional de Referncia Cultural incorporou novos elementos na
problemtica do patrimnio cultural brasileiro, principalmente aqueles relacionados
cultura popular.
Paralelamente histria poltica e cultural da nao brasileira, esse debate j
estava sendo formulado internacionalmente. Fruns representativos buscavam

98

formas de proteo e acautelamento para a cultura tradicional e popular, como no


caso da 25a Conferncia Geral da UNESCO.
Os debates que se estabeleceram sobre o patrimnio nacional, na dcada de
1980, articulavam as experincias dos diversos contextos sociais e das
comunidades s polticas de incluso e de cidadania, fornecendo canais de
comunicao entre governo e setores organizados da sociedade civil. Em um
momento de abertura poltica e de fortalecimento dos movimentos sociais, buscavase incorporar novas temticas ao campo. A idia, nesse perodo, era de instruir uma
concepo de memria social pautada na atuao dos agentes sociais locais.
Por essa razo, esse processo se estrutura em torno de intensa
competio e luta poltica em que os grupos sociais diferentes
disputam, por um lado, espaos e recursos naturais, e por outro
[...] concepes ou modos particulares de se apropriarem
simblica e economicamente deles.269

Na inveno da sociedade moderna brasileira, o patrimnio nacional


essencialmente afirmao das identidades culturais dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, segundo o dispositivo constitucional de 1988 ,
esses ligados a uma realidade histrica e territorial especfica. Nesse sentido, os
debates sobre o patrimnio cultural se redesenham nas duas ltimas dcadas do
sculo XX e ganham novo estmulo nos primeiros anos do sculo XXI. Ampliam-se
os temas ligados preservao e a noo de cultura ganha centralidade.
O Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e
Turstico (CONDEPHAAT), rgo de preservao do estado de So Paulo, sob a
direo do antroplogo Antnio Augusto Arantes (1982-1984)270, organizou um
seminrio, em 1983, para tratar dessas questes conceituais do patrimnio cultural
na cidade de So Paulo. Nesse encontro, alguns antroplogos so convidados a
participar das mesas, entre esses esto Eunice Duhan, que introduziu a importncia
269

ARANTES, A. A. Introduo. In: _____. Produzindo o passado. Estratgias de construo do


patrimnio cultural. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.
270
Bacharel em Cincias Sociais (Universidade de So Paulo, 1965), Mestre em Antropologia
(Universidade de So Paulo, 1967) e PhD em Antropologia Social (University of Cambridge / Kings
College, 1977). Foi um dos criadores do Departamento de Antropologia da Unicamp, ao qual est
vinculado desde 1968. Foi Presidente da ABA - Associao Brasileira de Antropologia e Secretrio-geral
da ALA - Associao Latino-americana de Antropologia. Presidiu na dcada de 1980 o Condephaat Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico, Arqueolgico e Turstico do Estado de So Paulo.
Ministrou cursos no pas e no exterior, participou de inmeras reunies cientficas e de especialistas sobre
temas de sua rea de atuao. Publicou diversos livros e artigos sobre cultura e poltica, com nfase em
patrimnio cultural e cultura popular.

99

da valorizao da cultura como estratgia de reformulao da deselitizao da


poltica cultural271, Olympio Serra, antroplogo da Fundao Pr-Memria, que
discute o tema da identidade cultural e da diversidade272, Bela Feldman-Bianco,
professora de antropologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
analisa a problemtica do poder local, a partir de um estudo de caso realizado em um
municpio da Grande So Paulo273 e Antnio Augusto Arantes, professor de
antropologia da UNICAMP e diretor do CONDEPHAAT da Secretaria de Estado da
Cultura de So Paulo, que fala de um trabalho realizado, em 1977, em So Miguel
Paulista, Zona leste da cidade de So Paulo274.
Todas as apresentaes desse seminrio apontaram para um mesmo ponto:
como a metodologia antropolgica na orientao dos trabalhos produziu resultados
satisfatrios. Para o antroplogo Antnio Augusto Arantes a configurao do
patrimnio que se desenhava naquele perodo deveu-se, sobretudo, a uma ao
desencadeada pelos interesses de grupos sociais especficos, de prticas profissionais
institucionalizadas

de

um

lastro

jurdico-administrativo

construdo

historicamente.275
Em 1988, Arantes era o Presidente de Associao Brasileira de Antropologia
e desempenhou importante papel da mediao nos debates e aprovao das emendas
enviadas ao Congresso Nacional sobre as questes relacionadas poltica cultural,
em particular, sobre a ampliao do conceito de patrimnio nacional. A Constituio
brasileira de 1988, em seu Artigo 216, define o patrimnio cultural brasileiro nas
suas dimenses materiais e imateriais, reconhecendo, portanto, que a sociedade
brasileira mltipla, complexa, e que a poltica de preservao do patrimnio
cultural necessitava, cada vez mais, ampliar seus campos de atuao. Conforme
enfatizei anteriormente, todo esse processo ocorreu em simultaneidade com as linhas
271

DURHAM, E. Cultura, patrimnio e preservao. In: ARANTES, A. A. (org.). Produzindo o


passado. Estratgias de construo do patrimnio cultural. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25.
272
Ao reconstituir a sua trajetria, Serra fala da passagem pelo Centro Nacional de Referncia Cultural e
da experincia com a microfilmagem da documentao do arquivo do Museu do ndio, no Rio de Janeiro.
SERRA, O. Questes da identidade cultural. In: ARANTES, A. A. (org.). Produzindo o passado.
Estratgias de construo do patrimnio cultural. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 97, 98.
273
FELDMAN-BIANCO, B. Histria e poder local. In: ARANTES, A. A. (org.). Produzindo o
passado. Estratgias de construo do patrimnio cultural. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 127.
274
ARANTES, A. A. Revitalizao da capela de So Miguel Paulista. In: _____. Produzindo o
passado. Estratgias de construo do patrimnio cultural. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 149.
275
ARANTES, A. A. A preservao de bens culturais como prtica social. Revista de Museologia.
Ano 1, nmero 1. So Paulo. Set. 1989, p. 16.

100

discursivas do debate internacional.


Arantes constri a sua posio de especialista no campo do patrimnio
cultural ao publicar uma srie de artigos sobre a temtica em peridicos e revistas,
inclusive, na Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Em 1996,
organiza um dos volumes da Revista, cujo tema cidadania276. Sua produo
acadmica amplia-se, e, em 2000, exerce a funo de consultor para o Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. No mbito da comemorao dos
quinhentos anos do Brasil, Antnio Augusto Arantes convidado a realizar uma
pesquisa na regio de Porto Seguro e coordena uma equipe de pesquisadores da
UNICAMP no projeto sobre o Museu Aberto do Descobrimento, com posterior
publicao277. Intelectual de ponta nesses debates, participando como expositor em
Simpsios, Congressos e Seminrios sobre o tema278 e publicando nos anais desses
encontros, nacionais e internacionais, sua participao na construo de
instrumentos e dispositivos institucionais sobre o patrimnio cultural de natureza
imaterial reflete essa posio centralizada e dialgica entre os campos da
antropologia e do patrimnio cultural.
O Departamento de Identificao e Documentao (DID) do IPHAN, na
gesto de Clia Corsino279, contrata a empresa de Consultoria Andrade & Arantes,

276

ARANTES, A. A. A guerra dos lugares: sobre fronteiras simblicas e liminaridades no espao


urbano. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Rio de Janeiro, v. 1, n. 23, p. 190-203,
1994; ARANTES, A. A. Documentos histricos, documentos de cultura. Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, Rio de Janeiro, v. 22, p. 48-55, 1987; ARANTES, A. A. (Org.).
Cidadania. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, 1996. v. 1. 303 p.
277
ARANTES, A. A. Museu Aberto do Descobrimento. Guia cultural.. 1. ed. Braslia e Campinas:
IPHAN e Andrade e Arantes Ltda, 2001. v. 1. 147 p.
278
Arantes, A. A. . A preservao do patrimnio como prtica social (expositor). Painel sobre ''Nuevas
Concepciones del Patrimnio Cultural''. In: Simpsio ''Patrimnio y Poltica Cultural: para el siglo XXI'',
Escuela Nacional de Antropologia y Historia, 1987, Cidade de Mxico; Arantes, A. A. . A preservao do
patrimnio como prtica social (expositor). In: Simpsio sobre Las Polticas Culturales y la Antropologia
Argentina Actual. Direccin de Etnologa y Folclore, 1988, Buenos Aires; Arantes, A. A. . Polticas
Pblicas de Patrimnio: Memria e Comemorao. In: Conferncia no Evento Revisitando os
Descobrimentos, do Programa de Ps-Graduao em Histria da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, 1999, So Paulo. Revisitando os Descobrimentos, 1999.; Arantes, A. A. . Valorizao do
patrimnio e da diversidade cultural. In: Seminrio Nacional de Polticas Pblicas para as Culturas
Populares, 2005, Braslia. Seminrio Nacional de Polticas Pblicas para as Culturas Populares. So Paulo
e Braslia : Instituto Plis e Ministrio da Cultura. v. 1. p. 134-137. Arantes, A. A. . O patrimnio cultural
e seus usos nas cidades contemporneas. In: Comunicao apresentada na mesa redonda Antropologia na
cidade e polticas patrimoniais, 2006, Goinia. Anais da XXV Reunio Brasileira de Antropologia.
Florianpolis : Associao Brasileira de Antropologia, 2006.
279
Museloga, dirigiu o Museu de Folclore dison Carneiro entre os anos de 1978-1983, quando sai para
integrar a equipe de tcnicos do Programa Nacional de Museus. Em 1990, assume a Diviso tcnica da
Regional do IPHAN, em Braslia (com a reforma administrativa Collor, IBAC). Em 1997, assume o

101

para elaborar uma nova metodologia de inventrio cultural. A instituio havia


avanado no debate, conforme se observa acima, com as experincias institucionais
do CNRC e da Fundao Pr-Memria. Alm disso, o dilogo com o meio
acadmico, mais intenso e menos reativo s crticas que recebera ao longo da dcada
de 1980, produziu as condies sociais e polticas para intensificar os debates.
Arantes e sua equipe elaboram o Inventrio Nacional de Referncias
Culturais e aplicam essa metodologia no stio do Museu Aberto do Descobrimento.
Posteriormente, em 2000, no mbito da criao da nova legislao sobre o
patrimnio cultural imaterial, o DID publica o manual de aplicao. Inicia-se uma
nova etapa na poltica do patrimnio cultural brasileiro. Nesse contexto, o
antroplogo Antnio Augusto Arantes convidado a dirigir a instituio,
permanecendo no cargo por um curto perodo (2004-2006) no qual os debates sobre
o patrimnio cultural imaterial ganham centralidade poltica. Cria-se o
Departamento de Patrimnio Imaterial e intensificam-se os inventrios de
referncias culturais pelo pas, como ser visto adiante.

4.2. A semntica do intangvel na arena poltica do patrimnio cultural


As discusses contemporneas sobre o patrimnio cultural imaterial280 giram
em torno de questes conceituais e vo ampliar a noo de bem patrimonial aos
campos dos saberes, ritos e expresses. Categorias, idias e conceitos esto sendo
construdos por organizaes e institutos, ao passo que apropriados, ressignificados
e reutilizados por grupos e segmentos sociais. Essa definio muito recente e vem
sendo aprimorada por intelectuais e gestores de polticas pblicas no mundo inteiro.
As implicaes polticas dessa concepo de patrimnio esto cada vez mais visveis

Departamento de Identificao e Documentao. Segundo nossa interlocutora, o DID no tratava s de


bibliotecas e arquivos. Propunha-se identificar e mapear o Patrimnio Cultural. Conforme visto em
captulo anterior, os inventrios de conhecimento ganharam centralidade poltica e administrativa nesse
perodo. Entrevista gravada no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular em seminrio de avaliao
do Projeto Celebraes e Saberes da Cultura Popular (CNFCP/IPHAN) sobre a aplicao dos Inventrios
Nacionais de Referncias Culturais, em 26 de janeiro de 2007.
280
Patrimnio Imaterial e Patrimnio Intangvel, apesar de possurem o mesmo significado, so
denominaes encontradas nos textos das legislaes internacionais. No Brasil, o dispositivo legal que
institui a poltica de preservao dos bens dessa natureza, vai denomin-los de patrimnio imaterial.
BRASIL. Decreto no. 3.551, de 4 de agosto de 2000, institui o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial.

102

e seus usos parecem se multiplicar para alm da definio normativa proposta pela
UNESCO.
No Brasil, a poltica de patrimnio at ento centrada nos bens de pedra e
cal e no instituto do tombamento voltou-se de maneira irreversvel para a dimenso
imaterial do patrimnio cultural e em novas maneiras de acautelamento desses bens.
O patrimnio imaterial fonte de identidade, criatividade e diversidade e se constitui
por meio de mltiplas manifestaes culturais (conhecimentos, tcnicas,
representaes e prticas singulares).
No mbito da SPHAN/Pr-Memria, a partir da gesto de Alosio
Magalhes, vrios trabalhos de registro de manifestaes culturais foram realizados,
mas no chegaram a ser propostos instrumentos de preservao especficos. Diante
dos desafios na elaborao de uma nova poltica de preservao para o Patrimnio
Cultural brasileiro, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
organizou, em novembro de 1997, um Seminrio Internacional281 com o objetivo de
recolher subsdios que permitissem a elaborao de diretrizes e a criao de
instrumentos legais e administrativos visando a identificar, proteger, promover e
fomentar os processos e bens282. O encontro produziu como documento final a
Carta de Fortaleza que recomendou, dentre outras proposies, o aprofundamento
da discusso sobre o conceito de bem cultural de natureza imaterial, a realizao de
inventrios desses bens culturais em mbito nacional e o desenvolvimento de
estudos para a criao do instituto jurdico denominado Registro como seu principal
modo de preservao283.
Em maro de 1998, foi assinada uma portaria do Ministrio da Cultura
(MinC) instituindo uma Comisso composta por membros do Conselho Consultivo
do Patrimnio Cultural284 com a finalidade de definir proposta, visando o
estabelecimento de critrios, normas e formas de acautelamento do patrimnio

281

O Seminrio intitulado Patrimnio Imaterial: estratgias e formas de proteo teve a participao de


intelectuais, tcnicos do patrimnio e autoridades nacionais e internacionais, dentre eles, o socilogo
Laurent Lvi-Strauss, diretor-adjunto da Diviso de Patrimnio Cultural da UNESCO.
282
IPHAN. O Registro do Patrimnio Imaterial: dossi final das atividades da Comisso e do Grupo de
Trabalho Patrimnio Imaterial. 2a ed. Braslia: IPHAN, 2003, p. 47, 48
283
Ibid., p. 47
284
Fizeram parte da comisso os Conselheiros Joaquim Falco, Marcos Vinicius Vilaa e Thomas Farkas,
alm do presidente da Fundao Biblioteca Nacional, Eduardo Portella. Vale observar que Marcos Vilaa
e Eduardo Portella pertencem Academia Brasileira de Letras; Joaquim Falco jurista e Thomas Farkas
um fotgrafo e cineasta renomado.

103

imaterial brasileiro. O Conselho Consultivo merece destaque em todo o processo285,


porque de l partiu a Comisso responsvel pela elaborao da nova legislao.
Alm disso, foram muitos os debate sobre a relevncia nacional e a continuidade
histrica do Registro, todos registrados em Atas286.
Na mesma portaria, foi criado o Grupo de Trabalho Patrimnio Imaterial
(GTPI) com tcnicos do IPHAN, da FUNARTE e do MinC,287 cujo objetivo era
assessorar a Comisso para o levantamento do extenso material bibliogrfico de que
dispe o assunto. O GTPI trabalhou em duas frentes: pesquisas sobre experincias
de legislaes, programas e aes de registro no mbito internacional (UNESCO e
outros organismos internacionais) e em experincias bem sucedidas no contexto
nacional. Todo esse processo foi documentado pela Comisso e pelo Grupo de
Trabalho Patrimnio Imaterial288.
Finalizados os trabalhos, o grupo elaborou proposta de dispositivo com base
no levantamento das experincias de polticas, programas e projetos, tanto de ordem
nacional, quanto internacional. O Decreto 3.551/2000289 procura dar conta da
dimenso simblica do patrimnio cultural, incidindo sobre os processos, os
conhecimentos e suas formas de transmisso e as interaes sociais. Questes
delicadas foram discutidas, como a propriedade intelectual coletiva e as negociaes
do que se preserva, o que se preserva e por que se preserva. Alm disso, foram
elaboradas as diretrizes da poltica de fomento do Programa Nacional de Patrimnio
Imaterial e discutidas as linhas de ao para a salvaguarda do patrimnio cultural
imaterial de grupos e indivduos. A definio do termo patrimnio imaterial ou
285

De acordo com o Decreto n 5040, de 07/04/2004, que aprovou a recente estrutura regimental do
IPHAN, segue-se em seu Art. 9: Ao Conselho Consultivo do Patrimnio Cultural compete examinar,
apreciar e decidir sobre questes relacionadas ao tombamento, ao registro de bens culturais de natureza
imaterial e sada de bens culturais do Pas e opinar acerca de outras questes relevantes propostas pelo
Presidente.
286
Apesar de consult-las, no houve tempo para incorporar anlise as informaes delas tiradas.
287
A Superintendente da 4a Regional do IPHAN, Mrcia SantAnna (coordenadora); a Diretora do
Departamento de Identificao e Documentao DID/IPHAN, Clia Corsino; as tcnicas Ana Claudia
Lima e Alves e Ana Gita de Oliveira DID/IPHAN; Maria Ceclia Londres Fonseca, da Secretaria de
Patrimnio, Museus e Artes Plsticas do MinC e a Diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular da FUNARTE, Cludia Mrcia Ferreira.
288
IPHAN. O Registro do Patrimnio Imaterial: dossi final das atividades da Comisso e do Grupo de
Trabalho Patrimnio Imaterial. 2a ed. Braslia: IPHAN, 2003.
289
Em 04 de agosto de 2000, o ento Presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso sanciona o
Decreto 3.551, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. O mesmo decreto cria o
Programa Nacional de Patrimnio Imaterial, que prev diretrizes polticas de fomento e linhas de ao
com o objetivo de implementar poltica de inventrio, registro e salvaguarda de bens culturais de
natureza imaterial.

104

patrimnio intangvel tambm foi motivo de caloroso debate nas reunies do


Conselho Consultivo do Patrimnio. Discutiu-se a dificuldade semntica do termo
imaterial ou intangvel e os desafios de superao dessa dificuldade. A
Comisso preferiu utilizar a expresso patrimnio imaterial para que este pudesse
se contrapor ao patrimnio material, com instrumento normativo consolidado
atravs do tombamento. Assim, aos bens mveis e imveis, conjuntos arquitetnicos
e stios urbanos, onde a presena da materialidade indiscutvel, dever-se-iam
acrescentar novos repertrios, como as histrias, as narrativas, as lendas e as festas.
A partir da Constituio de 1988, tambm os inventrios passam a ser
considerados formas de acautelamento e preservao, assim como o tombamento,
o registro e a desapropriao290. Na verdade, observa-se que a idia de inventrio,
enquanto gnero de trabalho sistemtico de registro e documentao, j estava
presente no anteprojeto de Mrio de Andrade (NOGUEIRA, 2005). Esta
preocupao com o registro das manifestaes de carter folclrico ou popular teve
como ltima experincia na sua gesto no Departamento de Cultura da cidade de
So Paulo, a Misso de Pesquisa Folclrica, em 1938. Para Nogueira, o
investimento intelectual de Mrio foi significativo, motivando-o a criar um curso de
treinamento para trabalho de campo e registro e a comprar equipamentos para
gravao em udio e vdeo. Todo esse investimento vai colocar o inventrio no
centro de sua prtica, legitimando-o como instrumento de preservao em si mesmo
e no apenas como uma ferramenta de gesto para bens tombados291. Mas a histria
da agncia estatizada se dirigiu para o patrimnio arquitetnico edificado e as
proposies sugeridas por Mrio de Andrade no foram incorporadas.
Quanto tarefa de catalogar os bens materiais, segundo os critrios de valor
excepcional, histrico, artstico e nacional, tais como definidos pelo decreto-lei
25/37, o antigo SPHAN realizou uma srie de inventrios e tombamentos de acervos
bibliogrficos e artsticos de colees museolgicas e de obras de conservao e
restaurao de monumentos, entendidos referncia da nacionalidade. O SPHAN
naquele momento tinha uma noo de patrimnio nacional edificado e
monumental e os levantamentos estavam voltados para essa preocupao. Somente
290

BRASIL. Constituio (1988). Constituio de Repblica Federativa do Brasil. Braslia: Senado


Federal, 2001, p. 122
291
NOGUEIRA, A. G. R. Por um Inventrio dos Sentidos: Mrio de Andrade e a Concepo de
Patrimnio e Inventrio. So Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005, p. 191.

105

em meados dos anos de 1970, essa idia de patrimnio nacional se relativiza quando
se vai percebendo o limite dos critrios de seleo para os bens tombados.
Os inventrios passam, ento, a ser considerados importantes instrumentos de
proteo dos bens culturais, mas ainda no se implanta uma poltica especfica para
esse fim. O debate sobre a poltica de inventrio tornou-se mais denso na instituio
na dcada de 1980292, com a agregao de novos valores ao patrimnio cultural,
ampliado em funo das pesquisas desenvolvidas pelo Centro Nacional de
Referncia Cultural293 e da Fundao Pr-Memria. Lanou-se um novo olhar sobre
a idia de inventrio e, por conseguinte, de patrimnio. Levantavam-se questes
sobre o cotidiano, os modos de vida, e se incorporavam novas preocupaes ao
instrumento inventrio, construdo para atender s novas demandas de
reconhecimento de bens representativos da diversidade e pluralidade culturais.
No se quer aqui traar uma trajetria de continuidade entre os processos de
inventrio; muito pelo contrrio, deseja-se situar para cada tipo de inventrio uma
nova abordagem terico-metodolgica. As prticas de inventrio e arrolamento de
bens confundem-se com as demais formas de coleta, levantamento e mapeamento
que h muito tempo vm sendo feitas no Brasil. No entanto, preciso problematizar
essa noo, situando-a em contextos particulares de produo, circulao e
ressignificao. Primeiramente, e buscando o sentido etimolgico da palavra,
inventrio vem significar relao de bens; por extenso, descrio e enumerao
minuciosa;

levantamento

individuado

completo

de

bens

valores.

Conseqentemente, uma caracterstica importante de qualquer inventrio a sua


exaustividade; e, para ser exaustivo, deve ser sistemtico. Inventariar significa
tambm encontrar, tornar conhecido, identificar. Portanto, descrever de forma
acurada cada bem considerado de modo a permitir a sua adequada classificao294.

292

Para acompanhar o processo de consolidao da poltica de Inventrio do IPHAN cf. MOTTA; SILVA
(orgs.). Inventrios de Identificao: um panorama da experincia brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN,
1998.
293
Os programas e projetos desenvolvidos pelo Centro foram inovadores, tanto pelo tipo de bem (as
produes da cultura popular e indgena, a indexao e microfilmagem de documentos, a documentao
do patrimnio cultural brasileiro, o estudo multidisciplinar do caju, dentre outros), quanto pela abordagem
terico-metodolgica empregada pelos tcnicos.
294
IPHAN. Inventrio Nacional de Referncias Culturais INRC: Manual de Aplicao. Braslia:
MINC/ IPHAN/ DID, 2000. p. 28.

106

Marcel Mauss aborda em seu Manuel dEthnographie os problemas


referentes ao mtodo etnogrfico: como observar, coletar, construir sries lgicas
reunindo o mximo de informaes em torno de um mesmo objeto, localizando ao
mesmo tempo sua produo e seu uso social. Enfatiza a necessidade de preciso
(mencionar locais, datas e condies da observao) e exaustividade na
reconstituio analtica de fatos sociais totais295. Para poder explicar os fatos,
preciso orden-los de maneira coerente e construir snteses, sem vincul-los a uma
razo ideal. Alm disso, faz-se necessria uma meticulosa pesquisa bibliogrfica.
Com relao preservao do patrimnio, a prtica de inventrio uma
tendncia seguida internacionalmente e anunciada desde o sculo XIX na Europa.
Os inventrios do patrimnio cultural so instrumentos tcnicos utilizados pela
UNESCO, que recomenda, atravs de seus tratados internacionais Convenes,
Resolues, Declaraes e Recomendaes , em diferentes escalas de valor e de
alcance, inventrios nacionais dos pases Estados-membros. Esses inventrios
devem informar as aes dos Estados nas polticas de preservao e seus respectivos
planos de salvaguarda. As iniciativas so analisadas em reunies peridicas,
organizadas pelo Comit Intergovernamental, criado na Conveno do Patrimnio
Mundial, em novembro de 1972. Esse Comit avalia as propostas encaminhadas,
organiza e divulga a Lista do Patrimnio Mundial, conceitua os novos bens
culturais, cria programas e prmios internacionais.
Pretende-se aqui chamar a ateno para o fato de que a categoria inventrio
pressupe uma atitude recenseadora e colecionista. Veyne (1989) vai dizer que
preciso existir uma problemtica apriorstica capaz de organizar a classificao e
catalogao dos fatos coligidos, pois de nada vale sair por a coletando
informaes ao acaso se no se possui uma questo para orientar a forma de
selecionar as fontes e de, posteriormente, organizar e disponibilizar os dados. O ato
acumulativo que absorve o sujeito inventariante ir obrig-lo a explicitar as
diferenas e a se separar da coisa inventariada. Esta suposta objetividade tende
a encobrir as dimenses ideolgicas e doutrinrias dos sujeitos e a produzir efeitos
de realidade. 296

295
296

MAUSS, M. Manuel d' Ethnographie. Paris: Petite Bilbiothque Payot, 1967, p. 17.
VEYNE, P. O Inventrio das Diferenas. Lisboa: Gradiva, 1989.

107

Toda iniciativa de inventrio pressupe cortes, incorporaes e um constante


processo de traduo297. A dimenso da autoria na formulao, na conduo e na
apresentao dos dados nos inventrios de identificao deve ser considerada como
fator determinante no processo de registro, de guarda e de disponibilizao do
material inventariado.
Este trabalho pretende traar um panorama dos atuais instrumentos de
preservao do patrimnio cultural brasileiro, explorando a natureza particular dos
inventrios dos bens denominados imateriais ou intangveis. necessrio dizer, no
obstante, que uma atitude mais auto-reflexiva na conduo dos inventrios de
identificao do patrimnio cultural imaterial torna-se fundamental, quer pela
natureza simblica dos bens culturais a eles identificados, quer pelo processo de
negociao com as comunidades, grupos e pessoas portadores desses bens.
Na dcada de 1990, consolidada essa metodologia, os inventrios tornam-se
os principais instrumentos para a identificao, a documentao e a interpretao
dos bens culturais. Em outubro de 1995, o IPHAN organizou um encontro para
tratar dos Inventrios de Conhecimento, como assim eram chamados. O seminrio
era dirigido aos tcnicos da instituio e procurou ampliar o debate sobre a
importncia da sistematizao de tais prticas no seu prprio mbito. Discutia-se
ento um novo formato para os inventrios de identificao do patrimnio. Com esse
objetivo, a equipe de Inventrios e Pesquisas do Departamento de Identificao e
Documentao (DID) do IPHAN realizou o levantamento dos inventrios do
IPHAN. (...) As informaes coletadas foram consolidadas num quadro preliminar
dos inventrios de bens imveis do IPHAN298.

297

Mrcia Chuva vai chama a ateno para essa dimenso para a categoria inventrio. Cf. CHUVA, M.
A Histria como Instrumento na Identificao dos Bens Culturais. In: MOTA; RESENDE (orgs.).
Inventrio de Identificao do Patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN, 1998, p. 42.
298
No quadro preliminar dos inventrios dos bens imveis do IPHAN, buscou-se relacionar os
inventrios propostos nas dcadas de 1980 e 1990, e fornecer uma idia geral dos procedimentos
adotados, alm de explicitar os conceitos que norteavam tais levantamentos. Do total das propostas de
investigao observadas, a maioria contemplava conjuntos urbanos, seguidos de edificaes e bens
culturais e naturais. Quanto aos instrumentos de levantamento de dados, a maioria dos inventrios era
constituda de formulrios, seguida de fotos, plantas, levantamentos socioeconmicos e vdeos. Quanto
forma de coleta do material, constatou-se que a grande maioria das propostas adota critrios estritamente
arquitetnicos e estilsticos, na seleo dos bens a serem inventariados. Apenas 28% dos mtodos incluem
algum tipo de consulta ou envolvimento das comunidades para a identificao dos bens. Cf. MOTTA;
SILVA (orgs.). Inventrio de Identificao: um panorama da experincia brasileira. Rio de Janeiro:
IPHAN, 1998.

108

Nesse novo formato, procurou-se sistematizar uma metodologia de estudo


para cada grupo de objetos inventariado: Bens Imveis e Conjuntos Urbanos, Bens
Mveis e Integrados, Stios Arqueolgicos e Patrimnio Cultural de Natureza
Imaterial. Concebido como um mdulo do Inventrio de Bens Imveis, o Inventrio
Nacional de Referncias Culturais (INRC) foi criado para dar conta das Referncias
Culturais locais299. Implementado, inicialmente, na cidade do Serro, em Minas
Gerais, e depois expandido para aplicao em ncleos histricos tombados, foi
aplicado com sucesso na cidade de Gois, como parte do processo de instruo da
candidatura lista do Patrimnio Mundial300.
Em 2000, no mbito das comemoraes dos 500 anos do Descobrimento do
Brasil, o Departamento de Identificao e Documentao contratou, como j se
indicou, a consultoria Andrade & Arantes para construir uma metodologia de
pesquisa para ser aplicada no Projeto Museu Aberto do Descobrimento (MADE).
Coordenado pelo antroplogo Antnio Augusto Arantes, o objetivo da metodologia
foi identificar, documentar e registrar sistematicamente os bens culturais
expressivos da diversidade cultural brasileira301. O manual de instruo seguiu as
categorias de bens culturais destacadas pelo Grupo de Trabalho do Patrimnio
Imaterial (GTPI).

299

Antnio Augusto Arantes faz uma breve digresso sobre o sentido que a noo de referncia cultural
ganha no contexto do inventrio: Referncia um termo que sugere remisso; ele designa a realidade em
relao qual se identifica e baliza ou esclarece algo. No caso do processo cultural, referncias so as
prticas e os objetos por meio dos quais os grupos representam, realimentam e modificam a sua
identidade e localizam a sua territorialidade. Ver em: ARANTES. Patrimnio Imaterial e Referncias
Culturais. Revista Tempo Brasileiro. Patrimnio Imaterial, n. 147, Rio de Janeiro: ed. Tempo
Brasileiro, out.-dez., 2001. p. 123-128.
300
A esse respeito ler o relato de Ana Gita de Oliveira sobre a experincia do inventrio nacional de
referncias culturais na cidade de Gois, executada pela 14a Superintendncia Regional do IPHAN, entre
junho e agosto de 1999, visando o aprimoramento conceitual e metodolgico do INRC, que nesse
primeiro caso foi desenvolvida como proposta metodolgica a centralidade nas narrativas locais,
contendo informaes sobre as brincadeiras, os jogos, os personagens, as festas e as lendas locais. Ver
em, OLIVEIRA, A. G. A Experincia do Inventrio Nacional de Referncias Culturais na Cidade de
Gois. Revista Tempo Brasileiro. Patrimnio Imaterial, n. 147, Rio de Janeiro: ed. Tempo Brasileiro,
out-dez, 2001, p. 29-44.
301
ARANTES, A. A. Introduo. IPHAN. Inventrio Nacional de Referncias Culturais. Manual de
aplicao. Braslia: IPHAN/ DID, 2000, p. 23.

109

4.2.1. O Registro e o Inventrio Nacional de Referncias Culturais: as


vrias fases da pesquisa302

Todos os indivduos e grupos interessados em registrar determinado saber,


manifestao, tcnica ou forma de expresso devem encaminhar suas propostas,
acompanhadas da documentao tcnica, ao Presidente do IPHAN, que as
submeter ao Conselho Consultivo do Patrimnio Cultural303. Nesse sentido, a
anuncia das comunidades e grupos sociais condio fundamental para o pedido
junto ao IPHAN do registro dos bens culturais de natureza imaterial304. A
participao do poder pblico local e o consentimento dos moradores na preservao
e conservao dos bens culturais tombados vinham sendo debatidos, desde a poca
da Fundao Pr-Memria. Nos atuais processos de patrimonializao da cultura,
constata-se a necessidade de mobilizao dos atores sociais envolvidos na produo
desses bens. Somente a boa conduo dos inventrios de referncias culturais e a
identificao do objeto do registro possibilitaro aes de salvaguarda consistentes e
compatveis com os objetivos dos grupos e comunidades.
Marcus Vincius Garcia interessou-se por perceber, neste mbito, os
encontros/ negociaes entre Estado e a Sociedade, focando sua anlise nos
pleitos advindos de segmentos da sociedade solicitando, junto ao IPHAN, o
registro de bens culturais de natureza imaterial305. O autor explorou as idias da
sntese do nacional como primeiro operador de seleo dessas manifestaes,
retomando o dispositivo da lei 3.551/2000, que restringe a inscrio nos livros de
registro queles bens nos quais se pode identificar sua referncia a continuidade
histrica [...] e sua relevncia nacional para a memria, a identidade e a formao da
sociedade brasileira306.

302

APNDICE III - Inventrios e Registros do Patrimnio Imaterial. Fonte: www.iphan.gov.br


Decreto 3.5551/2000 - Artigo 3.
304
Segundo o Decreto 3.551/2000, em seu Artigo 2o, so consideradas partes legtimas para provocar a
instaurao do processo de registro: I o Ministrio de Estado da Cultura; II instituies vinculadas ao
Ministrio da Cultura; III Secretarias de Estado, de Municpio e do Distrito Federal; IV sociedades ou
associaes civis.
305
GARCIA, M. V. C. De O Belo e o Velho ao Mosaico do Intangvel. Aspectos de uma Potica e de
Algumas Polticas de Patrimnio. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social da UnB, Braslia, junho de 2004, p. 71 72.
303

306

Ibid., p, 74.

110

Em seguida, o autor analisa dois desses pedidos encaminhados ao IPHAN.


Decidiu abord-los justamente porque seus contedos foram considerados
improcedentes. O primeiro, o Dossi R. 02/01 Talian/ Municpio de Erechim /RS,
teve como proponente a Associao de Apresentadores de Radio Talian do Brasil,
que enviou ao IPHAN, em 2001, seus argumentos para o registro da lngua Talian,
falada por imigrantes italianos e seus descendentes. Na exposio de motivos, seus
proponentes chegam a considerar que a lngua o mais genuno patrimnio
imaterial de uma nao, e circunscrevem geograficamente os municpios do Sul
que falam esse dialeto. Garcia apresenta-nos o parecer da Equipe Multidisciplinar
Interdepartamental EMI sem contextualizar ao leitor quem so esses pareceristas
e de que lugar falam. Sua nfase recai no jogo das negociaes sobre a condio do
nacional. Segundo o autor, essa equipe concluiu serem insuficientes e inadequadas
as informaes enviadas e considerou o pedido improcedente.307
O segundo pedido analisado por Garcia refere-se ao Dossi R 03/01
Enciclopdia Ita Cultural de Artes Visuais/ SP, enviado ao IPHAN em 01/06/2001,
portanto, com menos de um ano da regulamentao do instituto do registro. Seu
proponente, o Instituto Ita Cultural, teve na figura do Diretor Superintendente
Ricardo Ribenboim seu representante. Mais uma vez, a equipe do EMI emitiu
parecer desfavorvel, alegando que esse teve uma compreenso equivocada do que
seja o registro de bens culturais imateriais308.
A importncia da conduo dessas primeiras propostas dentro de critrios
considerados insuficientes pelos tcnicos do IPHAN traz tona mais uma vez a
questo da seleo dos bens. A definio dos critrios da seleo envolve questes
tericas e metodolgicas de pesquisa, pois revela que sobre um conjunto
circunscrito de bens que vo incidir as aes de registro, proteo e promoo. A
estratgia fundamentar a proposta em dossi extremamente detalhado, com
mtodos de pesquisa etnogrfica e documental. A atuao do rgo pblico para
salvaguardar os processos de criao de determinados padres culturais, alguns de
tradio secular, seja nas festas rituais, danas e celebraes religiosas, seja no
artesanato tradicional, volta-se no sentido de viabilizar a transmisso desses saberes
e prticas.
307
308

Ibid., p. 85.
Ibid., p. 89.

111

O Inventrio Nacional de Referncia Cultural (INRC) do IPHAN pea


fundamental para que se possa instruir o Registro do bem de natureza imaterial, caso
se siga a metodologia proposta pelo Instituto. A aplicao do Inventrio Nacional de
Referncias Culturais pressupe trs etapas:
1a etapa: o levantamento preliminar pressupe a sistematizao das
informaes coletadas em campo; pesquisas de fontes em bibliotecas e arquivos pblicos e particulares; levantamento dos contatos (das referncias); documentao
fotogrfica do stio ou lugar e entrevistas preliminares. Na sua fase preliminar, o
inventrio visa selecionar o maior nmero de bens culturais possveis referidos
dinmica cultural de um determinado territrio. Tais bens so classificados nas
quatro categorias de identificao: 1) Celebraes; 2) Ofcios e Modos de Fazer; 3)
Formas de Expresso; 4) Lugares.
2a

etapa:

identificao

dos

bens

culturais

procura

descrever

sistematicamente as etapas de determinada atividade produtiva, festa, rito, ritual,


lugar e saber tradicionais. Geralmente, inicia-se com uma reviso bibliogrfica sobre
a expresso, localizando as manifestaes no seu tempo e seu espao. Na
identificao pressupe-se aprofundar as questes levantadas preliminarmente e
definir o objeto de inventrio. A grande dificuldade na aplicao da metodologia
do inventrio adequar as categorias contidas no manual do INRC aos processos e
prticas inscritos na vida cotidiana.
3a etapa: a documentao, interpretao e instruo para Registro que ir
subsidiar as aes de salvaguarda para o bem cultural.
A noo de referncia cultural central no inventrio de bens de natureza
imaterial. A referncia cultural sintetiza a idia de que no se busca uma cultura
brasileira ou identidade nacional, num sentido amplo e abstrato, mas pressupe
sujeitos sociais. As referncias culturais so elementos e valores a que os grupos e
as comunidades atribuem significado ou expresso.
Alm dessa noo, outras duas categorias so consideradas centrais no
Inventrio: stio e localidade. O recorte territorial foi o escolhido no sentido de
delimitar a rea de trabalho do pesquisador de campo. Nas fichas de identificao
do stio e da localidade, deve-se descrever o processo de ocupao do territrio,
seguido do levantamento das paisagens naturais e dos marcos edificados, alm de

112

anexar plantas, mapas e croquis. Essas atitudes de mapeamento, coleta,


sistematizao e classificao produzem determinado conhecimento sobre o bem
inventariado, mas tambm restringem seu significado. o resultado de escolhas do
pesquisador, das abordagens terico-metodolgicas e da delimitao do objeto. O
recorte de um ou mais elementos que configuram a referncia cultural de um
grupo ou comunidade parte da problemtica da construo do objeto do inventrio.
Caso se faa de maneira arbitrria e genrica, pouco tende a contribuir para o
entendimento, porque apaga os conflitos inerentes aos processos sociais.
O manual do INRC foi elaborado para mapear a diversidade das expresses
da cultura, em seus marcos de identidade e alteridade. Destarte, no deve ser
pensado como o recorte de um e outro elemento que constitui uma paisagem
regional ou local, ou mesmo de uma cidade, mas sim para os grupos sociais,
protagonistas e criadores de referncias culturais, para quem essas mesmas
referncias fazem sentido e do significado aos seus modos de vida.
Para ilustrar a problemtica discutida acima, tomo como estudo de caso o
primeiro registro do patrimnio cultural imaterial. A conduo dos estudos
referentes ao pedido de instruo de Registro do Ofcio de Paneleira de Goiabeiras
na cidade de Vitria, Esprito Santo, reuniu referncias bibliogrficas e documentais,
levantamentos fotogrficos e audiovisuais, alm de mapas do territrio (cidade e
bairro). Quanto s referncias textuais, verifica-se o farto uso do material
jornalstico309. Muitas reportagens informam sobre o risco de perda da matria-prima
devido construo de um aterro sanitrio no local. Esse fato produziu calorosos
debates e intensa luta poltica entre os agentes do patrimnio, os engenheiros dos
governos estadual e municipal, as secretarias de cultura e de turismo, tcnicos e
especialistas em solo e em meio ambiente, advogados, alm setores da sociedade
civil capixaba num discurso polissmico sobre os desgnios do artefato panela de
barro.

309

No APNDICE IV, segue quadro com matrias de jornais, acrescidos de registros bibliogrficos
contidos no instrumento do Inventrio Nacional de Referncias Culturais.

113

4.3. O dossi de estudo das paneleiras de Goiabeiras: inventrio e registro310


Dossi um acontecimento em torno do qual e a propsito do
qual vieram se cruzar discursos de origem, forma, organizao e
funo diferentes, um caso atravs do qual todos falam ou
parecem falar da mesma coisa (1977, p. XII). Contudo, ao
contrrio do que se pressupunha, esses discursos no formam
nem uma obra nem um texto, mas uma luta singular, um
confronto, uma relao de poder, uma batalha de discursos e
atravs de discursos. E ainda dizer uma batalha no dizer o
bastante; vrios combates desenrolam-se ao mesmo tempo e
entrecruzam-se. 311

O Dossi de Estudo para o registro do ofcio de paneleira segue uma ordem


cronolgica de apresentao e comea com o termo de anuncia da representante da
Associao das Paneleiras de Goiabeiras, solicitando ao Presidente do IPHAN
instaurao de processo de registro do Ofcio das Paneleiras, que tem como
produto a panela de barro denominada e conhecida como Panela de Barro do
Esprito Santo. Tal requisio justificava-se, segundo os argumentos contidos
naquele documento, tanto pela necessidade emergencial de proteo [da] matriaprima a argila do Mulemb como pelo amplo reconhecimento [da] atividade
como bem do patrimnio cultural de herana indgena que [...] j faz parte da
identidade de Vitria e do Estado do Esprito Santo. Por fim, a Presidente da
Associao dizia-se informada sobre a conduo do Inventrio Nacional de
Referncias Culturais, sob a coordenao da 6a sub-regional do IPHAN, na
comunidade de Goiabeiras Velha, lugar onde se situa o galpo da referida
Associao e onde residem as paneleiras.
Em novembro de 2002, o IPHAN reconhece na expertise desse saber-fazer o
primeiro bem cultural de natureza imaterial. Para o grupo social das paneleiras,
representado pelos membros da Associao das Paneleiras de Goiabeiras, que
congrega artesos do galpo e de fundo de quintal, a titulao aparece como o
reconhecimento de um ofcio passado de gerao em gerao, uma tradio312 na
310

IPHAN/ DID. Dossi de Estudo R. 01/01, integrante do Processo 01450000672/2002-50, referente ao


1 Registro de Patrimnio Imaterial (Ofcio das Paneleiras Goiabeiras), Braslia, 2002.
311
FOUCAULT, M. Eu, Pierre Rivire, que Degolei Minha Me, Minha Irm e Meu Irmo... Um
Caso de Parricdio do Sculo XIX. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1977, p. XII.
312
Entre tantos aspectos dessa complexa definio, tomo a noo de tradio investida de dinamismo e
renovao.

114

localidade. Paneleira aquele indivduo (artes ou arteso) que modela e d forma


s panelas e a outros objetos cermicos utilitrios; uma atividade eminentemente
feminina, transmitida de me para filha, atravs de processos de aprendizado
informal.
Para compreendermos todo esse processo de titulao313, foi necessrio
recuperar a histria protagonizada pelas paneleiras de Goiabeiras na defesa da
matria-prima e na busca de melhorias nas condies de trabalho. Em finais da
dcada de 1980, algumas senhoras artess reuniram-se com os poderes pblicos
municipais, primeiramente com tcnicos da secretaria de ao social, reivindicando
aes de apoio ao artesanato tradicionalmente produzido naquela localidade. Nesse
processo, as paneleiras foram angariando alguns apoios e tambm travando embates,
seja para o acesso a sua principal matria-prima, seja para garantirem melhores
condies de trabalho e renda. Em vinte anos de associao, conquistaram o direto
explorao do barreiro apesar da posse do terreno ser do governo do estado ,
construram um galpo para produo e comercializao das peas e ganharam
visibilidade nos principais meios de comunicao do estado. Logo adiante trato da
crescente vulgarizao das panelas e da sua vinculao ao turismo cultural.
As negociaes para que esse bem cultural se tornasse objeto de registro da
poltica de patrimnio cultural imaterial brasileiro iniciaram-se muito antes da
constituio deste dossi. A proposta surge em 1997, durante o Seminrio de
Fortaleza314, por iniciativa da Diretora da 6a sub-regional do IPHAN no Esprito
Santo, Tereza Carolina de Abreu (Carol Abreu, como conhecida na instituio e
assina alguns artigos)315. Seus argumentos tomaram uma dupla direo: primeiro, a
313

ANEXO B CERTIDO DE REGISTRO DO OFCIO DAS PANELEIRAS DE GOIABEIRAS.


Como relatado anteriormente, o Seminrio Internacional promovido pelo IPHAN, em 1997, em
comemorao dos sessenta anos, tinha como principal objetivo discutir sobre novas formas de proteo
acautelamento dos bens culturais de natureza processual e dinmica, tambm denominados imateriais,
dando-se incio aos debates que culminaram no Decreto 3.551/2000.
315
Tereza Carolina de Abreu licenciada em Desenho e Plstica pela Universidade de Braslia, com
formao em Desenho Industrial e Programao Visual pela Escola Superior de Desenho Industrial
(ESDI-RJ), onde foi aluna de Alosio Magalhes. Exerceu o magistrio superior na Universidade Federal
da Paraba, antes de mudar-se para Braslia. Trabalhou no Ministrio de Educao e Cultura, em Braslia.
Retoma seu contato com Alosio Magalhes, na poca, presidente da Fundao Nacional Pr-Memria,
sendo ento absorvida nos quadros dessa instituio, em 1980. Na FNPM, Abreu inicialmente alocada
na rea de comunicao, na edio do boletim do IPHAN. Tempos depois passa a integrar por muitos
anos o projeto "Interao entre os Diversos Contextos Culturais Existentes no Pas". Em 1987, muda-se
para o Esprito Santo. Neste estado, Carol Abreu trabalha no Museu Melo Leito e depois na Subregional, na poca um escritrio tcnico ligado regional do Rio de Janeiro. Ps-graduada em
Antropologia pela Universidade Federal do Esprito Santo, entre os anos de 1989 e 1990, vai assumir a
314

115

panela de barro havia se tornado, h algumas dcadas, um smbolo da cultura


capixaba, constituindo-se em uma referncia cultural consagrada e reconhecida
pela sociedade local. Alm desse lastro histrico, por assim dizer, Abreu apontava
para uma alta probabilidade de desaparecimento, considerando uma srie de
acontecimentos envolvendo disputas locais entre a Companhia Esprito-Santense de
Saneamento (CESAN) e a Associao das Paneleiras de Goiabeiras (APG), em
funo do terreno da jazida de onde se retira o barro316. A preocupao com a
matria-prima empregada na produo artesanal das panelas de barro constitua a
principal reivindicao daquela comunidade de ceramistas. O medo que abatia a
todos em Goiabeiras Velha no era o da escassez da argila do Vale do Mulemb;
muito pelo contrrio, ainda hoje existe a crena compartilhada por aquele grupo de
ceramistas de que o barro sempre se renova. O que se procurava impedir era a
instalao no local de uma estao de tratamento de esgoto, garantindo, assim, aos
produtores o acesso ao barreiro.

O Mulemb: local de extrao do barro

Ao ler o processo, pode-se identificar as mltiplas vozes desse dossi,


algumas delas, inclusive, dissonantes quando referidas problemtica do barreiro.
Mediante leitura da cpia de correspondncia do Sr. Luiz Simoni, da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), dirigida a APG, em 1994, referente ao processo entre
as partes APG e CESAN, observa-se que a orientao jurdica quanto ao laudo da
Diretoria da 6a Sub-Regional do IPHAN, hoje, 21a Regional.
316
O Vale do Mulemb, localizado no bairro de Joana DArc em Vitria, at hoje a nica jazida
utilizada pela comunidade de Goiabeiras para confeco dos artefatos cermicos. A presena de areia e de
outros elementos minerais (feldspato, mica, argilitos, quartzo e gneiss) determina o modo de fazer dessa
cermica, pois inviabiliza o uso do torno e do forno nessas condies. Sobre esse assunto consultar alguns
livros editados: PEROTA, C. As Paneleiras de Goiabeiras. Srie Memria Viva. Secretaria Municipal de
Cultura, 1997; IPHAN. Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras. In: Dossi IPHAN 3. Braslia: IPHAN,
2006; DIAS, C. Panela de Barro Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio
de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006.

116

exausto da jazida de barro do Mulemb, no prazo de 18 anos, era conflitante com o


laudo anterior de 106 anos de exausto. Nesse sentido, o advogado vai opinar quanto
a ser interessante ou no, para essa Associao assinar o termo de acordo com a
CESAN:
no temos dvida em afirmar que esse acordo, nos termos em
que est redigido, e tendo por base dados obtidos de um laudo
decididamente divergente de outro, no dever ser assinado, em
hiptese nenhuma por essa Diretoria, sob pena de, futuramente
essa Presidncia vir a ser responsabilizada pelo desaparecimento
desse processo cultural.317

A favor da CESAN, tcnicos e engenheiros do estado alegavam ser aquele o


lugar estratgico para resolver os problemas de saneamento da grande Vitria, uma
vez que os laudos comprovavam o esgotamento da jazida de barro.
A Superintendncia Regional do IPHAN vai assumir o papel de mediao
face ao impasse entre a Associao e a CESAN ao encaminhar correspondncias aos
rgos do governo do estado e do municpio. Em ofcio encaminhado ao DiretorPresidente da CESAN, Eng Nilton Andrade, a Diretora da Sub-Regional apresenta
as atividades relacionadas ao registro do bem cultural Panela de Barro de Goiabeira
como parte do Inventrio Nacional de Referncias Culturais. Tereza Carolina de
Abreu afirma que a ao do IPHAN
visa identificar e documentar o processo de fabricao do bem, a
partir das questes relativas s matrias-primas, procedimentos
tcnicos e relaes de produo, distribuio e usos, alm dos
diferentes valores atribudos e as diversas formas de apropriao
social do bem cultural.318

Segundo Abreu, o INRC se apresenta como um instrumento no s voltado


para o registro de bens culturais, mas tambm para as possibilidades de
preservao desse bem. E considerando
a localizao da jazida de argila utilizada em terreno de
propriedade da CESAN e a existncia do Termo de Acordo
entre a CESAN, a APG e a SEAMA datado de 1994,
gostaramos de contar com a colaborao na disponibilizao de
informaes com o objetivo de melhor instruir o processo de
registro em andamento,[solicitando] fotografia area da rea
onde se encontra a jazida de argila, bem como da projeo da
317

Carta encaminhada Presidente da Associao das Paneleiras de Goiabeiras, Sra. Marinete, em 26 de


fevereiro de 2994.
318
Ofcio 6 SubR/6SR/IPHAN/009/01, em 12 de fevereiro de 2001.

117
Estao de Tratamento de Esgoto; diagnstico ambiental
atualizado da rea; plano de manejo e licenas ambientais.319

O processo de desapropriao da rea do barreiro pelo Governo do Estado


para a construo da estao de tratamento de esgotos mobilizou a comunidade de
artess de Goiabeiras Velha. Elas formaram uma associao para poderem
reivindicar, junto ao poder pblico, a posse do barreiro e as condies necessrias
para manterem as suas prticas artesanais.320 Alm dos problemas relacionados com
a desapropriao do barreiro, as paneleiras pleitearam um espao para organizarem a
produo. Tal medida era necessria, pois a ocupao dos quintais pelos filhos
adultos que constituam novos ncleos familiares, somada crescente valorizao do
bairro pela proximidade com o aeroporto e a Universidade Federal do Esprito Santo
(e sua inevitvel urbanizao), acarretaram uma srie de limitaes que provocaram
a restrio da produo artesanal, principalmente na etapa relacionada queima das
peas, que antes se dava nas ruas, no campo de futebol, na pedreira e em locais
prximos s moradias321.
As estratgias associativas potencializam a visibilidade para determinados
tipos de reivindicaes coletivas, como no caso estudado. As prprias paneleiras
buscaram no apoio do IPHAN, da municipalidade de Vitria e das entidades da
sociedade civil ligadas aos movimentos sociais as formas de impedir a construo do
aterro sanitrio e de defender a sua subsistncia. Ao se apropriarem rapidamente do
discurso da cultura, tomaram-no como uma ferramenta para legitimarem seu
ofcio.
Na articulao das parcerias, a sub-regional do IPHAN procurou aquelas
instituies que atuavam na promoo e divulgao do artesanato capixaba,
destacando-se a Prefeitura Municipal de Vitria, que oficializou o seu apoio ao

319

Ofcio 6 SubR/6SR/IPHAN/009/01, em 12 de fevereiro de 2001..


Segundo matria do jornal A GAZETA, de 18/04/1976, intitulada As panelas de barro no sero
feitas, o drama dessas mulheres iniciou-se quando os membros da famlia Jos Nunes, antigo
proprietrio das terras do barreiro, no quiseram mais que se explorassem o local. Com a desapropriao
do terreno pelo governo do Estado, em 1988, iniciou-se uma nova batalha, desta vez contra a CESAN.
Documento faz parte do Dossi de Registro Cf. APNDICE IV REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
DO INRC.
321
Sobre o processo de urbanizao de Goiabeiras e o processo de confeco e queima das panelas de
barro ver IPHAN. Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras. In: MINGO JR. Goiabeiras. Vitria: Secretaria
Municipal de Cultura, 2000; Dossi IPHAN 3. Braslia: IPHAN, 2006; DIAS, C. Panela de Barro
Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006.
320

118

registro do bem cultural "Panela de Barro de Goiabeiras"322, e o SEBRAE/ES


(Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas), que forneceu
informaes relacionadas aos programas e s atividades realizados com as
Paneleiras323.
O critrio de ser um bem consagrado como referncia cultural,
principalmente pela sociedade local, foi o que mais motivou a abertura do primeiro
dossi sobre as panelas de barro do Esprito Santo. Outras razes foram
argumentadas, como a existncia de uma farta documentao produzida sobre a
tecnologia de confeco do artefato cermico utilitrio, principalmente atravs de
matrias de jornais, impressos promocionais de secretarias de cultura e de turismo e
trabalhos institucionais e acadmicos324.
Llia Gontijo Soares em documentos oficiais do Instituto Nacional do
Folclore (INF) na dcada de 1980, afirmava a necessidade em se identificar o
produto artesanal no seu contexto social e natural de produo, levando-se em conta
a tecnologia, a tipologia e os aspectos simblicos e funcionais, alm das formas de
comercializao325. Segundo o depoimento da atual Diretora do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular, antigo INF, a museloga Cludia Mrcia Ferreira:
A instituio, que tem origem nos anos de 1950, a responsvel
pela rea das culturas populares no pas, e privilegia o aspecto
cultural, levando em conta o objeto artesanal no apenas como
meio de gerao de renda para os produtores, mas como
resultado de relaes sociais que exprimem uma viso de mundo
singular e dependem, para sua continuidade, de determinadas
condies.326

322

Atravs do ofcio SEMC/GAB no 040/2001, encaminhado em 22 de maro de 2001, a secretria de


cultura de Vitria lembra que a construo do galpo da APG, a criao do selo de autenticidade e a
publicao de livros e pequenos impressos comprovam o compromisso com as paneleiras.
323
SEBRAE/ES. Diagnstico do Setor Artesanal. Matrias primas: barro, produtos do mar e
madeira (Grande Vitria). Vitria, fevereiro 2000.
324
Ao dossi foram anexadas matrias de jornais do Estado do Esprito Santo, alm da dissertao de
mestrado da antroploga Carla Dias, considerada a base do levantamento etnogrfico para o INRC. Cf.
DIAS, C. A tradio nossa essa, fazer panela preta: produo material, identidade e
transformaes sociais entre as artess de Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ/
EBA, 1999. A pesquisa foi recentemente publicada, porm, a estruturao dos captulos foi mantida com
a incorporao de apenas algumas poucas atualizaes de campo. Cf. DIAS, C. Panela de Barro Preta:
A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006.
325
SOARES, L. G. Produo de artesanato popular e identidade cultural. Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro: IPHAN, n 19, 1984, p. 138-148. Este artigo resume os
debates apresentados em um encontro realizado no INF, no Rio de Janeiro, em junho de 1983.
326
Palestra proferida no Laboratrio de Educao Patrimonial da Faculdade de Educao da Universidade
Federal Fluminense, em abril de 2004.

119

No caso da produo cermica tradicional de Goiabeiras, os estudos de


folclore nas dcadas de 1950 e 1970327, interessados na idia de origem e
centrados na tecnologia de confeco, construram as noes de tpico e de raiz,
tambm presentes nas narrativas nativas sobre o artesanato local perspectiva que
pe entre parnteses dois aspectos de destaque no trabalho com as paneleiras: os
modos de apropriao em relao ao saber-fazer e ao territrio. Em termos de
poltica pblica para a preservao de bens culturais, esse primeiro registro de
patrimnio cultural imaterial est totalmente imerso no campo das culturas
populares, em especial nos programas de apoio s comunidades artesanais
desenvolvidos pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP),
iniciados na dcada de 1980, ainda sob a denominao de Instituto Nacional de
Folclore.
O carter experimental deste primeiro inventrio levou a tcnica do IPHAN,
Ana Cludia Lima e Alves,328 do Setor de Referncias Culturais da Coordenao de
Identificao, a viajar para Vitria, em fevereiro de 2001, para "acompanhar as
atividades do INRC 329. Seu objetivo era auxiliar Carol Abreu no andamento dos
trabalhos de inventrio. Naquela ocasio, visitaram a Associao das Paneleiras,
reuniram-se com a equipe da 6 Sub-regional, analisaram o material documental
levantado, discutiram o planejamento da continuidade do inventrio,
considerando o trabalho j realizado e a complementao das
entrevistas e pesquisas de campo, o levantamento de outros
dados histricos e scio-econmicos importantes para o
referenciamento do bem cultural, bem como o levantamento de
maiores informaes sobre a associao, sobre os acordos
relativos manuteno das fontes de matria-prima e
instituies signatrias, entre outros aspectos a serem

327

PACHECO, R. J. C. Goiabeiras: terra de panela de barro. In: Cadernos de Etnografia e Folclore,


n. 5, Vitria, Esprito Santo, 1975; NEVES, G. S. Folclore brasileiro: Esprito Santo. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1978.
328
Licenciada em Desenho e Plstica pela Universidade de Braslia/ UnB, 1979. Especializada em
Poltica, Administrao e Promoo do Desenvolvimento Cultural Municipal pela Fundao Nacional
pr-Memria / SEC / MEC, Universidade Federal de Ouro Preto e Organizao dos Estados Americanos /
OEA. Mestra em Histria. Programa de Ps-graduao do Departamento de Histria da Universidade de
Braslia/ UnB, 2004. Gerente de Registro do Departamento do Patrimnio Imaterial do Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional / Iphan, desde abril de 2004. Entrevista gravada em novembro
de 2006, no Rio de Janeiro.
329
Em seu relatrio, Alves reporta-se ao CNFCP como parceira institucional no Inventrio de
Referncias Culturais das panelas de barro e das paneleiras de Goiabeiras. ALVES, Ana Claudia Lima.
Relatrio de viagem a Vitria ES (13 a 18 de fevereiro de 2001). Departamento de Identificao e
Documentao/ IPHAN/ MinC. Dossi de Estudo R.01/01.

120
aprofundados330.

Naquele momento, era importante testar os novos instrumentos da poltica de


patrimnio imaterial, pois eles subsidiariam todo o processo de instruo do
Registro. O ofcio das paneleiras se revelava oportuno para esse fim pelo seu
universo limitado e circunscrito a um territrio e a extensa documentao produzida
sobre o ofcio. Trata-se de um ncleo residencial, com um nmero relativamente
reduzido de executantes e circunscrito a algumas famlias que tradicionalmente
ocupavam a regio. Assim, poder-se-ia resultar em trabalho consistente na aplicao
da metodologia do INRC. Vale observar que a noo de tradio operada pelo
inventrio pressupe a dinmica dos processos sociais, vinculados aos saberes
disciplinares da antropologia331.
Conforme pde-se constatar, o dossi apresenta a maioria dos documentos
em ordem cronolgica, principalmente os trmites entre ofcios institucionais e
memorandos internos do Departamento de Identificao e Documentao (DID)
para a 6a SSR-ES, e vice-versa. O pedido da APG foi imediatamente encaminhado
pelo Presidente do IPHAN, Dr. Carlos H. Heck, Diretora do Departamento de
Identificao e Documentao, Sra. Clia Corsino, para abertura do processo. Junto
solicitao foram anexados, ainda, documentos referentes ao Estatuto da
Associao, mapas, referncias bibliogrficas sobre as panelas de barro do Esprito
Santo, levantamento fotogrfico preliminar332, laudos periciais de prospeco do solo
sobre a suposta exausto da jazida de argila no Vale do Mulemb333.
A pesquisa sobre as Paneleiras do Estado do Esprito Santo constituiu-se em
projeto-piloto, visando testar os procedimentos administrativos de tramitao dos
processos e os procedimentos tcnicos para identificao e documentao dos bens
culturais334. Um empreendimento desse tipo demandava uma ampla articulao. Era
330

ALVES, A. C. L. Relatrio de viagem a Vitria ES (13 a 18 de fevereiro de 2001). Departamento


de Identificao e Documentao/ IPHAN/ MinC. Dossi de Estudo R.01/01.
331
Consta no Decreto 3551/2000, em seu Artigo 7o, a reavaliao dos bens culturais registrados, pelo
menos a cada dez anos [...] para decidir sobre a revalidao do ttulo de Patrimnio Cultural do Brasil.
Pargrafo nico. Negada a revalidao, ser mantido apenas o registro, como referncia cultural de seu
tempo
332
Consta no dossi de estudo o levantamento preliminar de sessenta e seis fotografias ampliadas em
papel fotogrfico no formato (10X15) cm e fotocpia de duas fotos panormicas, de autoria do arquiteto
Mrcio Viana (6a SubR II), feita entre os meses de outubro de 2000 e junho de 2001. Cf. IPHAN/ 6a
SSR/ Vitria, 20 de junho de 2001.
333
No dossi de estudo foram anexados laudos divergentes sobre o esgotamento da jazida.
334
IPHAN. Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras. In: Dossi IPHAN 3. Braslia: IPHAN, 2006, p; 43.

121

preciso envolver a Secretaria de Cultura, o Conselho Municipal de Cultura, o


SEBRAE e os rgos ambientais do estado e municpio. J havia o entendimento de
que a articulao de uma rede local com as instituies, fossem elas governamentais
ou no-governamentais, daria o suporte para a boa consecuo do Registro. Outras
instituies envolvidas com o fortalecimento e continuidade do bem cultural panela
de barro de Goiabeiras foram comunicadas do processo de inventrio e chamadas a
participar, fornecendo informaes relacionadas s atividades de promoo do
artesanato, proteo do meio ambiente, aos programas de incentivos da cultura
popular capixaba.
Diversos acordos com a Companhia de Saneamento e Abastecimento do
Estado (CESAN) garantiram o acesso ao barreiro, adiando em mais de uma dcada a
construo do aterro sanitrio no terreno. Desse longo processo de negociaes entre
Associao e CESAN, a assinatura do ltimo acordo, em 2001, possibilitou a
construo da estao de tratamento de esgoto com a anuncia da Associao335. Em
contrapartida, as paneleiras receberam algumas benfeitorias, como uma van e uma
casa em Goiabeiras para montar um restaurante. Este imvel encontra-se desativado.
O saldo da luta apresenta alguns aspectos positivos e tantos outros
controversos. A partir do acordo assinado pela Diretoria, ficou acertado que as
paneleiras no se pronunciariam na imprensa contra a CESAN, com a promessa de o
estado construir uma estao de tratamento de esgoto compacta e suspensa do solo,
de modo que pudesse ser totalmente monitorada no caso de um vazamento. A
localizao jusante do crrego foi tambm objeto de negociao entre a CESAN,
APG e a Diretora da Coordenao da Sub-Regional do IPHAN, Carol Abreu, que
alertava para os perigos da construo de uma estao de esgoto em local de onde se
extrai matria-prima para a confeco de panelas. Alm disso, foram exigidos
diagnsticos ambientais sobre a rea e plano de manejos.
Todo esse histrico de disputa sobre o barreiro, culminando no acordo
assinado pela Diretoria da Associao, representa uma passagem conturbada nesse
primeiro processo de registro. As verses sobre o episdio so mltiplas sobre
esse assunto, reporto ao dossi do IPHAN de 2002. A Presidente da Associao das
Paneleiras de Goiabeiras (APG) tambm tem a sua verso, alegando que, na poca,
335

Em memorando Diretora do DID, de 02/07/2001, Carol Abreu relata a natureza polmica da


questo colocada no que respeita a poltica de proteo e de promoo do bem cultural.

122

as artess foram levadas a conhecer algumas outras estaes de tratamento de esgoto


e que teria sido prometido a elas uma indenizao, caso houvesse algum vazamento.
O acordo, no entanto, desagradou uma parte dos artesos associados, que se diziam
no representados nas decises tomadas em assembia e corroboradas pela
Diretoria da associao. O caso foi parar na justia, mas o ganho de causa foi dado
para Associao.
Entidades culturais capixabas, notadamente o Conselho Estadual de Cultura,
fizeram publicamente uma moo de desagrado pelo acordo assinado sem o
conhecimento das entidades participantes da Comisso de Defesa das Paneleiras e
do Vale do Mulemb e demais instituies. Em carta manifesto contra a construo
da Estao de Tratamento de Esgoto, datada de 11/07/01, a Associao das Bandas
de Congo Amores da Lua, Panela de Barro e Boi Estrela, repudiou a atitude
da Diretoria da APG que, contrariando os anseios da opinio pblica capixaba,
assinou um acordo no qual dado o aval da APG para a construo da estao. As
bandas de congo ausentam-se da Feira das Paneleiras.336
A conduo dos estudos referentes aos pedidos de Registro levou a Diretora
do DID, Clia Corsino, a submeter os dados coligidos apreciao do Conselho
Consultivo do Patrimnio Cultural, na 31 Reunio de agosto de 2001. Corsino
enumerou as razes da prioridade atribuda ao caso: 1) existncia de pesquisas
anteriores e apresentao do pedido de Registro pelos portadores desse saber fazer;
2) grande interesse da comunidade e das autoridades estaduais e municipais; 3) risco
de perda da matria-prima obtida no barreiro, com a construo de um aterro
sanitrio no local. A tcnica do DID exps em linhas gerais a organizao social
produtiva no galpo da associao e a comercializao do produto. Referiu-se
tambm realizao de documentao fotogrfica de todo o processo de produo
do artefato cermico panela de barro, as tcnicas empregadas na sua confeco, o
local onde era obtida a matria-prima e a anlise qumica desse material, a fim de
que, a partir do dossi, se possibilitasse o resgate dessa atividade, na hiptese do
seu desaparecimento.
336

Assinam a carta o Presidente das Associaes de Bandas de Congo e a Coordenadora da Associao


da Banda de Congo Panela de Barro, Reginaldo Salles e Jamilda Alves Rodrigues Bento,
respectivamente, e o Presidente da Comisso Esprito-Santense de Folclore, Eliomar Mazoco.

123

A preocupao de Corsino nessa exposio ao Conselho Consultivo tambm


era de ordem conceitual, considerando como maior problema a definio do objeto
de registro: se eram as panelas de barro, ou o ofcio das paneleiras. Observou, ainda,
que a aplicao do INRC excede o estudo do patrimnio imaterial, uma vez que se
pretende com esse instrumento mapear os bens culturais significativos de um
determinado territrio, quer sejam eles materiais ou imateriais. Alm disso, ela
lembrou ao egrgio Conselho a complexidade desses estudos e a indispensvel
participao da comunidade para a boa consecuo do processo. Para o Conselho
Consultivo, o conhecimento produzido pelo Inventrio das panelas de barro definiria
procedimentos a serem adotados para a instruo de Registro de outros bens
culturais de natureza imaterial.
Lendo atentamente o Dossi, observa-se que a idia de registrar o ofcio foi
posterior abertura do processo. Em 20 de junho de 2001, foi anexado o
memorando da 6a SSR/SR/IPHAN n. 141/2001, que sugere alterar a denominao
do Registro das Panelas de Barro do Esprito Santo em favor do ofcio das
Paneleiras de Goiabeiras. Tal redimensionamento justificou-se em funo dos
dados gerados pelo Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC). No dossi
para o registro foram indicados os trmites administrativos do processo: as
correspondncias, os relatrios de viagens, a composio da equipe de
pesquisadores. O quadro tcnico de servidores da sub-regional foi convocado para o
levantamento de dados, so eles: Mnica Esteves, tcnica em turismo; Mrcio
Vianna, arquiteto; Gerson Vidal, assistente social e Suely Pereira, bibliotecria.
Alm destes, foram contratados temporariamente trs entrevistadores para aplicarem
os questionrios do inventrio, todos trs estudantes universitrios de comunicao
social e, como colaboradora eventual, a historiadora Elizabeth Salgado, que treinou
a equipe de entrevistadores. A dirigente da 6a SSR, Tereza Carolina Frota de Abreu,
assumiu a coordenao e superviso da aplicao da metodologia do INRC para
instruo do registro. O trabalho foi finalizado em setembro de 2002.
Na instruo para o registro, a preocupao com a origem do artefato
cermico constantemente retomada pelo aspecto da herana indgena. Toda a
construo discursiva corrobora a idia de pertencimento a uma das matrizes
formadoras da sociedade brasileira e a uma antiga permanncia no territrio.

124

Segundo estudos da conduzidos por Celso Perota (1997), que fundamentou o seu
argumento a partir dos vestgios arqueolgicos prximos quela localidade, a
cermica encontrada apresenta caractersticas semelhantes quelas produzidas pelas
populaes pr-histricas de tradio Tupi-guarani e Una. Ao focar no objeto
cermico, procurou-se dar conta de sua origem, tecnologia de confeco manual
com a queima das peas em fogueira a cu aberto , e matrias-primas empregadas
barro de uma mesma jazida e demais insumos naturais encontrados no meio
ambiente337. Mas, alm disso, deslocou-se a ateno do produto para o processo,
preocupando-se em compreender seu significado simblico dentro de um quadro
mais amplo das relaes sociais na comunidade de Goiabeiras Velha, identificando a
funo de cada um dos executantes da produo de panela de barro.

Brao do mangue: a entrada para o porto de Goiabeiras

Nos Questionrios de Identificao do bem cultural constam os nomes e


sobrenomes de 63 entrevistados, todos residentes em Goiabeiras e possuindo alguma
relao de parentesco ou de vizinhana com uma das nove famlias mais antigas
envolvidas com o ofcio, so elas: Lucidato, Corra, da Vitria, Alves, Ribeiro,
Gomes, Fernandes, Barboza e Rodrigues. O estudo conduzido pela metodologia do
337

do mangue que as paneleiras retiram o vegetal mangue vermelho (Rhyzophora mangle) utilizado
para impermeabilizar as panelas de barro. Cf. PEROTA (1997); DIAS (1999, 2006). IPHAN. Ofcio das
Paneleiras de Goiabeiras. In: Dossi IPHAN 3. Braslia: IPHAN, 2006.

125

INRC levou em conta as funes exercidas pelos principais executantes do ofcio no


espao do galpo da Associao das Paneleiras e nos quintais das casas de
paneleiras. Essa descrio aponta em direo a uma especializao da produo,
repercutindo em mudanas nos modos de interao, antes pautados nas relaes de
entreajuda e reciprocidade entre grupos de parentes. Nem todas as paneleiras
desempenham todo o processo de confeco das panelas. A lgica de uma produo
artesanal em escala crescente alimenta o processo de diviso social do trabalho.
Nessa perspectiva, as paneleiras do galpo da associao contratam outros
ajudantes para executarem etapas precisas do processo de confeco: levantar a
panela, cortar e passar a faca, alisar, queimar e aoitar.
No item 5.1 do Questionrio de Identificao, indicou-se a relao da
atividade com o bem inventariado338. As etapas so descritas segundo a lgica dos
processos de trabalho e comercializao, tendo em vista o repertrio de produtos.
Mas as relaes so apresentadas de maneira muito frouxas. No se observam em
nenhum momento desse instrumento tcnico as genealogias das famlias que
ocupam o espao do galpo e dos quintais, tampouco as alianas estabelecidas pelas
relaes de parentesco existentes:
Paneleiras Artess ceramistas, as paneleiras so mestras no
oficio e responsveis por sua transmisso s geraes
descendentes e aos vizinhos interessados; dominam todas as
etapas do ofcio e conhecem as respectivas matrias-primas e
procedimentos tcnicos. Executam, particularmente, a
modelagem das panelas: a puxada com as mos e depois com
a cuia; algumas tm auxiliares para realizar as primeiras e
ltimas etapas: a retirada e escolha do barro, o alisamento, a
queima e o aoite das panelas. Desde os anos 1990, a pedido da
Prefeitura de Vitria, algumas paneleiras tm ensinado a fazer
panela em escolas municipais.
Tirador de barro Profissional da extrao do barro da jazida
no Vale do Mulemb. Fura o cho com os dedos para ver se o
barro est bom; escava um buraco no cho, com uma enxada, at
a profundidade de aproximadamente 1 metro; a partir da retira o
barro, que molhado e pisado para a preparao das bolas. Cada
bola de barro pesa em torno de 15 Kg e vendida a R$ 0,50.
Desde os anos 1980, as bolas so carregadas em caminho ou
carroa a frete e transportadas at o galpo da Associao ou at
as casas das paneleiras. Anteriormente, o tirador levava o barro
338

Inventrio do Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras; Questionrio de Identificao: ofcios e modos de


fazer Q60; item 5.1; IPHAN, 2002.

126
em carroa, do barreiro at o mangue, seguindo de canoa at
Goiabeiras.
Escolhedor de barro Auxiliar de paneleira, faz a limpeza do
barro molhando, pisando e amassando as bolas de barro,
retirando as impurezas e tornando a massa mais homognea,
melhor para ser modelada. Geralmente parentes homens ou
auxiliares pagos realizam essa tarefa para as paneleiras, em seus
quintais ou no galpo da associao.
Alisadoras Auxiliares de determinadas paneleiras, geralmente
parentes ou vizinhas, realizam o polimento das panelas, depois
de secas, antes da queima; utilizam uma pedra de rio seixo
rolado para alisar a superfcie interna e externa; executam a
tarefa mediante pagamento.
Tirador de panela Auxiliar que retira as panelas em brasa da
fogueira, aps a queima, utilizando uma vara comprida com dois
ganchos (garras) na ponta e depositando-as junto paneleira ou
auxiliar, para que sejam aoitadas.
Casqueiro Profissional que coleta a casca do manguevermelho, rvore nativa do manguezal, para o preparo da tintura
de tanino, utilizada no aoite de panelas. Ele entra no manguezal
de bote ou canoa levando um porrete para bater na casca da
rvore at solta-la do tronco; leva saco e balde para carreg-la;
traz a casca, de canoa, at Goiabeiras, onde vende para as
paneleiras.
Comerciante Empresrio dono de ponto de produo de venda
de panelas, localizado beira da avenida que d acesso ao
Aeroporto de Vitria; tem 4 paneleiras trabalhando no seu
quintal, cuja produo ele comercializa; o entrevistado
eventualmente tambm faz panelas.

A nfase recaiu no processo de produo, com a descrio das etapas de


confeco do bem e a identificao dos principais envolvidos com o processo de
produo e suas respectivas funes paneleira, tirador e escolhedor de barro,
alisador, tirador de panela, aoitador, casqueiro e comerciante. As descries dos
lugares da atividade e de obteno das matrias-primas so tambm pontos
levantados pelo estudo. So dois os diferenciais que a conduo do Inventrio
procura enfatizar: primeiro, o fato de as panelas serem modeladas manualmente e
queimadas a cu aberto, sem o uso do torno e do forno, fato que associado
utilizao de matrias-primas naturais e locais na confeco agrega-lhe um valor
especial; segundo, que em sua confeco utilizado o barro de uma nica jazida,

127

situada no Vale do Mulemb, no bairro Joana DArc. O acesso ao barro foi


exaustivamente documentado, principalmente porque estavam em disputa a posse do
terreno do barreiro e o apoio dos poderes pblicos estaduais e municipais. As
disputas poltico-partidrias entre os governos estadual e municipal acirraram os
debates em torno da desapropriao do terreno e da continuidade da extrao da
argila pelas paneleiras e seus familiares.
Ao verificar as fontes e os documentos reunidos no dossi, observei que a
dimenso da retrica da perda est presente na contestao pelo acesso ao barro339.
Os argumentos da perda do barreiro e da questo da autenticidade da panela de
barro de Goiabeira aparecem como principais motivaes para a instaurao do
processo de registro. As paneleiras buscaram o apoio do IPHAN, da municipalidade
de Vitria, das entidades da sociedade civil ligadas aos movimentos sociais no
sentido de barrar a construo do aterro sanitrio. Assim, apropriaram-se
rapidamente do discurso da cultura, tomando-o como um escudo para
legitimarem-se.
Com imensa habilidade, souberam manipular os discursos da mdia, das artes
tursticas e das instituies culturais e construir essa posio de smbolo da cultura
popular capixaba. Nesse sentido, distribuio e consumo so etapas importantes
desse processo. Observa-se uma crescente mercantilizao das panelas de barro que
em muito ultrapassam as fronteiras do estado. O turismo cultural traz divisas e as
secretarias de turismo e cultura vm incentivando a participao dos artesos em
feiras e eventos que possam divulgar o artesanato, a culinria e as expresses
culturais considerados tpicos do Esprito Santo. Os compradores (restaurantes,
empresas, turistas, hotis, lojas e supermercados) chegam a todo o momento no
galpo da Associao, fazendo encomendas diretamente s paneleiras. Segundo as
prprias paneleiras, a maior parte dessas encomendas feita atravs do telefone
pblico instalado na entrada do galpo. Esses pedidos so feitos, geralmente, por
restaurantes especializados em peixes, mariscos e frutos do mar, ou por empresas
como, por exemplo, a Companhia Siderrgica de Tubaro (CST) que presenteiam
seus funcionrios mais graduados ou clientes especiais.
Na minha chegada ao campo, falava-se o tempo todo no galpo dos kits para
339

Urbanizao ameaa acabar com smbolo da cultura capixaba. A Tribuna. Vitria, 21 jul.
1992.CESAN PROCURA JAZIDA DE BARRO PARA PANELEIRAS. A Gazeta. Vitria, 10 mar. 1994.

128

empresas e encomendas de restaurantes, que enchiam com mais de mil peas por
semana os bas dos veculos das empresas especializadas em transportes de cargas.
Vendidas por atacado, as panelas atingem um preo baixo por unidade para o
intermedirio e valores um pouco mais elevados para o consumidor final. A
responsabilidade pelo pagamento da firma transportadora sempre fica ao encargo do
comprador. As paneleiras j detm tcnica de embalagem para grandes encomendas:
as panelas so embaladas uma a uma com jornal, depois empilhadas dentro de caixas
de papelo e revestidas por engradados de madeira.

As encomendas para restaurantes: produo em larga escala.

No inventrio das paneleiras foram arrolados compradores em Vitria,


Manguinhos, Jacarepe, Nova Almeida, Maratazes, Anchieta, Meape, Guarapari,
Vila Velha e Linhares. Alm das encomendas para dentro do estado, foram listadas
as seguintes cidades340: Angra dos Reis, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, So Paulo,
Sorocaba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Braslia. E, ainda, encomendas para
fora do pas: Boston, EUA341.
Segundo o depoimento de Carol Abreu, imensa a complexidade de aes de
salvaguarda para bens dessa natureza. Ela reconhece que as fichas do INRC do
conta da tecnologia de confeco do artefato cermico e da comercializao do
produto, mas que se deixou de lado a questo familiar, como as relaes de
parentesco e de vizinhana.
O conhecimento que obtido atravs da pesquisa e ela que
fundamenta a ao de salvaguarda. [...] como a gente estava
conversando, e voc faz essa pergunta que eu acho fundamental:
embora voc tenha no ofcio das paneleiras o exemplo de uma
atividade que eminentemente feminina, a questo da famlia,
340

Do universo pesquisado (49 paneleiras), 24 tm clientes fixos e trabalham por encomenda; 19 vendem
no varejo e as demais no informaram. Inventrio do Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras; Ficha de
Identificao: ofcios e modos de fazer F60; item 10.2; IPHAN, 2002.
341
Inventrio do Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras; Ficha de Identificao: ofcios e modos de fazer
F60; item 10.2; IPHAN, 2002.

129
da insero do homem nesse meio, estruturante e fundamental.
[...] So muitos comportamentos e hbitos tradicionais que
foram se modificando em funo da vida moderna, da
incorporao dos produtos industriais, de tudo isso [...] 342.

Carol Abreu avaliou como satisfatria a conduo desse primeiro registro,


referindo-se ao problema do barreiro como de difcil conduo poltica. Segundo o
depoimento da Superintendente da 6a SR, a ficha de localidade foi preterida em
relao ao Questionrio de Identificao dos ofcios e modos de fazer, e que outros
bens culturais associados ficaram de fora no processo:
voc tem benzedeiras, tem as paneleiras de fundo de quintal,
comadres de fogueira que so do So Joo, que so de infncia,
comadres de boneca, fazedores de rede (dos homens), a folia de
reis, o boi-estrela que foi revitalizado e j est no terceiro ano,
cantigas de roda, brincadeiras de rua, bloco de sujo no carnaval,
festa de So Benedito no dia 26 de dezembro e banda de congo
panela de barro, futebol de vrzea, uma srie de prticas da
comunidade que no foram contempladas naquele momento343.

No entanto, as crticas sobre a parcialidade do levantamento partiram dos


prprios integrantes dos grupos familiares. Para Jamilda Alves R. Bento, o registro
deveria ser um instrumento de melhoria da qualidade de vida para o segmento social
das paneleiras. Ela acredita que esse processo de quantificao gerado a partir dos
questionrios e formulrios da pesquisa do INRC deixou de lado uma parte
expressiva das relaes humanas: a afetividade. Minha interlocutora se interroga
sobre o porqu de no inclurem no processo de registro as relaes que no existem
mais, como os antigos laos de solidariedade do ritual da queima.
As senhoras paneleiras se lembram do "tempo dos quintais", quando a ajudamtua pautava as relaes de produo no momento da queima, bem como das
festas religiosas associadas antiga igreja catlica, do antigo ponto cultural de
Goiabeiras Velha - atualmente o aougue , onde os blocos carnavalescos se
reuniam e era montado um palco para o teatro, apresentao do boi e outras
brincadeiras, dos brincantes e festeiros, do mangue e da beleza da fora da mar.
Essas e outras expresses da cultura local foram preteridas em funo de demandas
mais imediatas, como aquelas referentes matria-prima e imitao do modelo das
342

Entrevista concedida pela Superintendente Regional do IPHAN, Carol Abreu, realizada nas
dependncias do Museu Solar Monjardim, 21 Superintendncia Regional, no bairro de Jucutuquara em
Vitria, gravada em maio de 2005.
343
Idem.

130

panelas pelos oleiros de Guarapari.


O questionrio de identificao (Q60) menciona, no item 8.4, as comidas
tpicas da culinria regional associadas ao produto do ofcio, e, adiante, no item 8.7,
faz referncia ao congo enquanto uma manifestao popular presente nas
celebraes religiosas catlicas e em pleno vigor no bairro de Goiabeiras, onde
participam algumas paneleiras.344 Esses bens culturais associados ao ofcio, apesar
de brevemente mencionados no questionrio de identificao do inventrio das
paneleiras, no se desdobraram em Questionrios e Fichas de Identificao prprios,
sejam eles das celebraes, sejam das formas de expresso, ou dos modos de
fazer, respectivamente345.

4.3.1. Os bens culturais associados: a moqueca, a torta capixaba e o


congo Panela de Barro.

O Inventrio Nacional de Referncias Culturais aplicado na comunidade de


Goiabeiras se centrou na descrio pormenorizada do ofcio no ambiente de trabalho
do galpo da Associao das Paneleiras, considerando cada uma das sete etapas do
processo de produo do artefato cermico346. Classificada como um cone da
sociedade capixaba, a panela de barro um produto artesanal utilitrio e continua
mantendo a sua funcionalidade como um recipiente utilizado para o preparo de
alimentos. Essa eficincia comprovada atravs da crescente demanda de
restaurantes especializados e de consumidores em geral, que adotaram a panela de
barro como elemento principal da cozinha capixaba.
No Dicionrio do Folclore Brasileiro347, Lus da Cmara Cascudo associa a
panela de barro ao preparo da moqueca prato este popularmente consumido em
boa parte do territrio nacional. No levantamento do IPHAN, valorizou-se o modo
de fazer moqueca capixaba, que se diferencia das demais pelo uso do urucum e do

344

Inventrio do Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras; Ficha de Identificao: ofcios e modos de fazer
Q60; itens 8.4 e 8.7; IPHAN, 2002
345

IPHAN. Inventrio Nacional de Referncias Culturais: manual de aplicao. Fichas de Identificao F20, F40
e F60 e Questionrios de Identificao Q20, Q40 E Q60. Braslia: IPHAN, 2002.
346

ANEXO C MATERIAL DE DIVULGAO DA ASSOCIAO: FOLDER E CARTAZ.


CASCUDO, L. Dicionrio do folclore brasileiro. 9 ed. revista, atualizada e ilustrada. So Paulo:
Global, 2000, p. 396.
347

131

coentro348. Roberto da Matta aborda a predileo do brasileiro pelo alimento cozido,


entre o lquido e o slido, como expresso de uma culinria nacional. O autor
salienta o quanto a comida um importante operador de identidades pessoais e
grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver349.

moqueca s capixaba o resto peixada

Naturalmente associada a pratos da culinria regional, a panela de barro


conserva a sua funo primeira como utenslio domstico. Disseminada em seu uso,
costuma acompanhar pratos de frutos do mar, peixe e mariscos. O estatuto do
registro vai lanar um foco de luz sobre uma determinada forma de produzir e de
consumir as panelas de barro.
No entanto, observa-se que muitos consumidores passaram a utilizar este
utenslio como enfeite, suporte qualquer, mesmo que na maioria das vezes, o uso
que se faz dela privilegia a sua dimenso utilitria350. Ao desloc-la de um lugar
especfico, a cozinha, para adquirir outros usos e significados, como souvenir351 ou
pea de museu, agregam-se a essas peas novos valores. A panela de barro

348

Existe uma rivalidade entre a moqueca capixaba e a baiana. A primeira glorifica-se por valorizar mais
o sabor de peixe, uma vez que no leva o azeite de dend. H, inclusive, um bordo bastante conhecido e
disseminado na cidade de Vitria sobre essa antiga rixa: moqueca s capixaba, o resto peixada. Alm
dessa disputa j bastante difundida na sociedade capixaba quanto ao modo de preparar a moqueca
capixaba, observei em publicao do IPHAN uma discordncia quanto ao preparo da moqueca e ao
excesso no uso do coentro. Parece-me, no entanto, que no caberia qualquer atribuio de valor nesse
sentido. Cf. IPHAN. Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras. In: Dossi IPHAN 3. Braslia: IPHAN, 2006,
p. 39.
349
DA MATTA, R. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1989, p. 57.
350

KLEIN, Denise. Mos Mestras. Conhecer o processo de fabricao da panela de barro, alm de comer
torta capixaba, uma boa dica neste feriado. A Gazeta. Vitria, 07 abr. 2004. Cad. Turismo. Depoimentos
de consumidores/ turistas: gosto de presentear os amigos; recheio as panelas com bombons.
351
Sobre os diversos significados para a categoria souvenir. Cf. STEWART, S. On Longing. Narratives
of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. USA: The John Hopkins University Press,
1984.

132

produzida em Goiabeiras um bem cultural que ganha status de objeto


patrimonial.
Dos museus administrados pelos governos federal e estadual na Grande
Vitria, somente no Museu Solar de Monjardim encontram-se expostas as panelas
de barro de Goiabeiras352. O prdio ocupado pelo museu o nico exemplar da
arquitetura rural existente na cidade de Vitria. At a dcada de 1960, abrigou o
Museu de Arte e de Histria. Em 1980, aps obras de recuperao, o museu foi
reaberto com o nome de Museu Solar Monjardim, e o acervo foi direcionado para
reconstituir uma residncia rural de famlia abastada no sculo XIX.

A cozinha imaginada: qual o lugar das panelas?

A nfase na antropologia dos objetos justifica-se segundo os argumentos de


Jos Reginaldo Gonalves:
na medida em que os objetos materiais circulam
permanentemente na vida social, importa acompanhar descritiva
e analiticamente o seu deslocamento e suas transformaes (ou
reclassificaes) atravs dos diversos contextos sociais e
simblicos: sejam as trocas mercantis, sejam as trocas
cerimoniais, sejam aqueles espaos institucionais e discursivos
tais como as colees, os museus e os chamados patrimnios
culturais. Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das
fronteiras que delimitam esses contextos em grande parte
entender a prpria dinmica da vida social e cultural, seus
conflitos, ambigidades e paradoxos, assim como seus efeitos na
subjetividade individual e coletiva. Os estudos antropolgicos
produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro,
tm oscilado seu foco de descrio e anlise entre esses
contextos sociais, cerimoniais, institucionais e discursivos.353
352

Em um levantamento preliminar feito no IPHAN, segundo a tipologia panela de barro (no


necessariamente de Goiabeiras), foram encontradas peas/ artefatos nos acervos dos seguintes museus:
Museu de Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro; Museu de Arqueologia de Itaipu, no Rio de
Janeiro; Museu da Abolio, em Pernambuco; Museu do Ouro, em Minas Gerais; Museu Solar
Monjardim, no Esprito Santo.
353
GONALVES, J. R. S. Antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios. Rio de
Janeiro, IPHAN; Garamond, 2007. Sobre o papel dos museus etnogrficos na institucionalizao da
antropologia ver: GONALVES, J. R. S. Colees, Museus e Teorias Antropolgicas: reflexes sobre
conhecimentos etnogrficos e visualidade. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro:

133

Esses discursos tambm se diferenciam no plano museolgico. Nesse


sentido, procuro discutir o lugar que ocupam os artefatos cermicos de uso cotidiano
e de fatura popular na lgica expositiva desse museu, considerando uma visvel
separao entre o bronze e a argila, o monumental e o cotidiano, para usar os
termos empregados por Gonalves354. Portanto, quais seriam as implicaes do
processo de patrimonializao sobre agentes que produzem panelas de barro?
Procuro responder essa questo no prximo captulo, quando abordarei a visita das
paneleiras ao Solar Monjardim.
As modalidades de apropriao do espao social de Goiabeiras Velha so
mltiplas e compreendem os ofcios tradicionais, os lugares e conhecimentos
associados ao mangue e as formas de expresso culturais. O Congo uma
manifestao muito forte em toda a regio metropolitana da Grande Vitria e, em
particular, na localidade de Goiabeiras Velha. Segundo Jamilda Alves Rodrigues
Bento, Presidente da Banda de Congo, desde as dcadas de 1970 e 1980, essa
banda atuou primorosamente como um importante agente disseminador da cultura
local. O antigo paneleiro Arnaldo Gomes Ribeiro formou uma banda de congo no
seu galpo de trabalho, e, neste local, eram guardados os instrumentos musicais,
principalmente os tambores de congo, a caixa e a casaca. Aps a jornada de trabalho,
as paneleiras cantavam e danavam o congo em uma roda animada. Portanto, o
congo e o ofcio de paneleira esto historicamente imbricados, fazendo parte do que
Celso Perota (1997) denominou de Complexo Cultural das Paneleiras.
No incio da dcada de 1990, um incndio acidental no galpo do Arnaldo
destruiu os instrumentos e uniformes dos tocadores e das cantadeiras de congo. Uma
dcada depois, sua sobrinha Jamilda Bento revitaliza a Banda de Congo Panela de
Barro e retoma os festejos de So Benedito na localidade. Pela fora do ofcio de
historiadora, Jamilda Bento procurou os antigos mestres e mestras, as paneleiras que
exercem os seus ofcios em fundo de quintal e as benzedeiras, e, num precioso
trabalho de histria oral, resgatou as letras e melodias, articulou o grupo e remontou
a banda.
UERJ, n. 8, 1999. p. 2134; DIAS, N. Le mus dethnographie Du Trocadro (1878-1908).
Anthropologie e musologie em France. Paris: dition Du Centre Nacional de La Recherche
Scientifique, 1991.
354

GONALVES, J. R. S. Monumentalidade e Cotidiano: os patrimnios culturais como gnero de


discurso. In: Lucia Lippi Oliveira (org.) Cidade: histria e desafios. p. 108-123. FGV/CNPq, 2002.

134

Brincando o Congo em Goiabeiras Velha

A Banda de Congo Panela de Barro composta por mestre, tocadores e


cantadeiras, todos eles moradores de Goiabeiras Velha: paneleiras, paneleiros,
benzedeiras, pescadores e trabalhadores dos setores industrial e de servios. Hoje,
boa parte dos componentes da banda formada por senhores e senhoras da terceira
idade. As senhoras cantadeiras so filhas, netas e bisnetas de paneleiras, e trabalham
nesse ofcio confeccionando panelas de barro em seus quintais. Os tocadores ou
possuem alguma atividade formal no mercado de trabalho, ou so aposentados. A
entidade possui estatuto jurdico e seus integrantes se renem periodicamente,
principalmente no ms de dezembro, fazendo apresentaes pela cidade atravs de
convnio celebrado com a prefeitura de Vitria.

Bens Associados: a Banda de Congo Panela de Barro

So muitos os desafios surgidos na anlise do material coligido, tanto a partir


do estudo do INRC, quanto atravs do trabalho de campo. do enfrentamento
desses desafios que nasceram as primeiras concluses expostas a seguir.
Inicialmente, interessa-me o exerccio de confrontar as categorias sociais impressas
no instrumento de Inventrio e Registro do patrimnio imaterial quelas expressas
em prticas e representaes dos portadores do saber fazer panelas. Interessa-me
tambm compreender a forma com que as paneleiras apreendem a categoria

135

patrimnio e se essa categoria provocava algum tipo de ressonncia na maneira de


entendimento do seu ofcio355. Assim sendo, e atenta ao fato de que a produo da
panela de barro uma prtica social em plena vigncia no bairro de Goiabeiras
Velha, procuro investigar os modos de apropriao do registro desse ofcio,
considerando os produtores da cermica local, as instncias mediadoras do poder
pblico e o mercado que exploram essa imagem da panela autntica de
Goiabeiras, de Vitria e do Esprito Santo.

355

Jos Reginaldo Gonalves, em texto apresentado nos Simpsios Especiais, na XIV RBA, Recife,
Pernambuco, em junho de 2004, sugere que os patrimnios culturais sejam estudados a partir de uma
perspectiva etnogrfica. Posteriormente, o texto foi publicado na revista Horizontes Antropolgicos. Ver
GONALVES, J. R. S. Ressonncia, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimnios.
Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 15-36, jan/jun 2005.

136

CAPTULO 5 Os modos de apropriao do Registro do Ofcio das


Paneleiras de Goiabeiras do Esprito Santo.
A abordagem etnogrfica aqui proposta analisa a recepo ao registro do
ofcio de paneleira como Patrimnio Cultural do Brasil, considerando os sujeitos
sociais envolvidos nesse processo, quais sejam, as famlias produtoras de cermica
utilitria no bairro de Goiabeiras Velha, na cidade de Vitria. Esses agentes foram
estudados em suas interaes com as instncias mediadoras do poder pblico e em
seus embates com relao ao mercado. Conforme argumento na introduo desta
tese, o processo de patrimonializao de natureza imaterial constitui um desafio para
tcnicos e gestores do patrimnio cultural, pois o ato administrativo do Registro
produz visibilidade sobre os bens culturais saberes, celebraes, ofcios,
expresses e lugares e gera compromisso poltico do Estado brasileiro no que
tange ao fomento, difuso e salvaguarda dessas prticas socioculturais. Tendo em
vista a perspectiva histrica desenvolvida nos captulos precedentes, um importante
vis de anlise refere-se aos usos e s interpretaes que circulam na sociedade
brasileira sobre as noes de cultura e de patrimnio. Geralmente enquadradas pela
lente da cultura erudita, essas concepes, por muito tempo, restringiram-se a um
conjunto pouco diverso de produes culturais.
Roger Chartier, ao afirmar que a cultura popular uma categoria erudita,
refere-se a modelos descritivos que procuram delimitar, caracterizar e nomear
prticas e representaes culturais:
o primeiro, concebe a cultura popular como um sistema
simblico coerente e autnomo, que funciona segundo a uma
lgica absolutamente alheia e irredutvel da cultura letrada. O
segundo, preocupado em lembrar a existncia das relaes de
dominao que organizam o mundo social, percebe a cultura
popular em suas dependncias e carncias em relao cultura
dos dominantes356.

As implicaes tericas e metodolgicas desses dois modelos de


inteligibilidade mostram a cultura popular na iminncia do seu desaparecimento,
ao passo que renasce das prprias cinzas. Essa dupla perspectiva, contudo,
356

CHARTIER, R. Cultura popular: revisitando um conceito historiogrfico. Estudos histricos, Rio de


Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p. 179-192, p.179

137

desconsidera as formas de apropriao dos textos, dos cdigos, dos modelos


compartilhados [que] so to ou mais geradores de distino que as prticas prprias
de cada grupo social357. De acordo com Chartier, ainda, o conceito de apropriao
contribui para construo de uma histria social das formas pelas quais as
diferentes comunidades [...] se apoderam desses textos os usam e compreendem358.
Ao focar a anlise nos modos de apropriao, interessava-me compreender
como foram construdas e interpretadas as referncias s origens desse artefato
cermico e ao saber enraizado na comunidade de paneleiras. Empenhei-me, ainda,
em discutir como se deu a identificao dos executores e das etapas no processo
de trabalho, que levou ao registro do ofcio de paneleira e ao primeiro diagnstico
que subsidiou as aes de salvaguarda do IPHAN junto quela comunidade.
Adiante fao algumas observaes etnogrficas sobre as oficinas comportamentais
realizadas pelo IPHAN e que pude acompanhar no perodo do trabalho de campo.
As oficinas sobre estratgias associativas e formao de preos, que ocorreram
durante o ano de 2006, no obtiveram resultados significativos nas prticas de
tomadas de preo, nem na mediao dos conflitos gerados no ambiente do galpo da
associao. Pelo contrrio, constatou-se que no h poltica de preos e a associao
segue a uma intensa escala de produo, com prazos de entrega cada vez mais
exguos. Para dar conta de uma agenda sempre apertada de encomendas, as
paneleiras esto cada vez mais intensificando a produo no galpo da associao,
contratando pessoas para levantar as panelas, para fazer os acabamentos e para tirar
da fogueira e aoitar panelas.

Auxiliares na etapa de acabamento: alisadeiras na porta do galpo

357
358

CHARTIER, R. op. cit., p.184.


Ibid., p. 187.

138

A instruo do registro enfatiza a tradio desse ofcio na localidade, com


descrio da organizao social de produo e da formao associativa. De fato,
nesse processo de construo discursiva, as paneleiras identificam-se como
portadoras de um saber-fazer que as diferenciam de outros grupos ou comunidades
artess, seja pelas caractersticas do barro, seja pelo processo de confeco e de
queima. Segundo a concepo nativa, receberam esse reconhecimento do governo
por passarem de gerao em gerao um conhecimento que veio de suas
antepassadas. Para Valdinia Lucidato, as paneleiras mais jovens esto tendo
oportunidades que
a av, a bisav, a tatarav, a me da tatarav no tiveram, assim
que ns temos ouvido e visto sobre as panelas. Ento para ns
gratificante saber que por elas ns demos continuidade. E hoje
em dia isso tem reconhecimento nacional e internacionalmente.
[...] O que eu entendo por patrimnio? Talvez eu no saiba te
responder de acordo com o que voc queira. Patrimnio aquela
coisa que tem um valor no s para mim, mas em si para o
Estado. Um valor cultural. Um patrimnio uma coisa antiga. A
gente tem que resguardar aquilo, mesmo ele estando em
evidncia ou no. Que um dia ele vai passar a ser histria do
Brasil, digo um patrimnio. Patrimnio aquela coisa que voc
tem. Entendeu? Aquilo que voc tem e no aquilo que voc no
tem. Ou aquilo que voc j teve. Eu tinha assim... Vou fazer essa
referncia a voc. Eu tenho um patrimnio que a panela de
barro. Minha me teve. Minha bisav teve. Minha tatarav. A
me da minha tatarav. A me da me da minha tatarav
tambm teve.359

O que respalda todo esse processo de patrimonializao das paneleiras,


segundo a lgica de minha entrevistada, maneira como esse saber-fazer foi
cultivado e transmitido. Isso faz com que no s Valdinia Lucidato, mas tambm a
sua me, Edite da Vitria Lucidato, e toda a gerao de paneleiras ascendente sejam
Patrimnio Cultural do Brasil. Os efeitos positivos dessa idia de patrimnio
repercutem no processo de construo da identidade social da paneleira, tornando
possvel a categoria reivindicar polticas de acesso sade e previdncia social,
como se ver adiante nas oficinas de salvaguarda.

359

Depoimento gravado no galpo da Associao, em dezembro de 2005, na mesa de trabalho de


Valdinia da Vitria Lucidato. APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia
e grupo familiar a que pertence.

139

A produo de panelas de barro em Goiabeiras Velha, bairro perifrico da


cidade de Vitria, organiza-se em torno de algumas famlias moradoras da
localidade h muitas geraes360. Conforme visto no captulo anterior, essas famlias
formaram a Associao das Paneleiras de Goiabeiras, em 1987, e conquistaram uma
srie de benefcios junto ao poder pblico local. A prefeitura de Vitria construiu
um galpo de trabalho para os associados, produziu e patrocinou a Festa das
Paneleiras, instituiu um dia comemorativo para essa atividade profissional, criou um
selo para as panelas, alm de subsidiar viagens e participaes em feiras de
artesanato dentro e fora do estado.
O ofcio envolve diretamente mais de uma centena de pessoas, tanto no
galpo da associao, quanto em muitos domiclios daquele bairro. Uma srie de
participantes desempenha funes diferenciadas nas vrias etapas do processo de
confeco desse artefato cermico. Pacheco (1975), Hovenkamp (1992), Perota
(1997), Dias (1999, 2006), Mingo Jr (2000), IPHAN (2006) revelam ser essa uma
prtica muito antiga e que as prprias paneleiras j no conseguem mais identificar o
tempo em que comeou361. Esses autores tambm so unnimes em afirmar que a
produo se estrutura a partir de relaes de parentesco e de vizinhana. Nesse
sentido, pretendo complementar essa discusso levantando as genealogias das
famlias tradicionais e recuperando a importncia dos quintais e de como se
estruturam as redes de sociabilidades. Como se ver adiante, os laos familiares,

360

As geraes so parte da dinmica coletiva que as impele e lhes imprime continuidade social.
Impossvel, portanto, ignor-las ou menosprezar sua importncia analtica, principalmente na construo
das tenses e desigualdades sociais. Bourdieu (1983, p.118) discute a alternncia ou sucesso de geraes
para chegar s diferenas que geram conflitos como conseqncia da diversidade de localizao no tempo
social. Ao operar com essa noo, pretendo enfatizar as transformaes nas relaes sociais de produo
ocorridas na localidade de Goiabeiras Velha. Tais mudanas podem ser apreendidas nos discursos
construdos pelas paneleiras velhas sobre os dois modos de organizao social produtiva na localidade:
dos quintais tradicionais e do galpo da Associao, como veremos na construo desta etnografia.
BOURDIEU, P. A Juventude apenas uma palavra. In: Questes de sociologia. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1983.
361
PACHECO, R. J. C. Goiabeiras: terra de panela de barro. In: Cadernos de Etnografia e Folclore, n.
5, Vitria, Esprito Santo, 1975; HOVENKAMP, H. De paneleiras van Goiabeiras: pannenmaaksters op
de informele arbeidsmarkt in Vitoria, Brazili. Doctoraalscriptie Culturele Antropologie en Sociologie
der niet-westerse samenlevingen. Vrije Universiteit Amsterdam. Juni, 1992; PEROTA, C. As Paneleiras
de Goiabeiras. Srie Memria Viva. Secretaria Municipal de Cultura, 1997; MINGO JR. Goiabeiras.
Vitria: Secretaria Municipal de Cultura, 2000; CHAIA, V.; DANTAS G. Panela de Barro. Raiz da
Cultura Capixaba. Vitria: Secretaria de Estado de Turismo, 2002; IPHAN. Ofcio das Paneleiras de
Goiabeiras. Braslia: IPHAN, 2006; DIAS, C. A tradio nossa e essa, e fazer panela preta: produo
material, identidade e transformaes sociais entre as artess de Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio
de Janeiro, UFRJ/EBA, 1999; DIAS, C. Panela de Barro Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras
- Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006.

140

somados aos usos do espao fsico, constituem os pilares para o entendimento


etnogrfico deste segmento social e produtivo e das modalidades de apropriao
acima referidas.
As narrativas sobre a localidade de Goiabeiras Velha e as suas tradicionais
panelas de barro362 adquiriram um lugar de destaque no imaginrio da populao da
cidade de Vitria. Nas representaes correntes sobre a cidade, o bairro de
Goiabeiras Velha aparece descrito como um reduto de ocupao antiga, habitado
por famlias de pescadores e artess ceramistas que ganhavam seu sustento com os
recursos naturais a sua volta. A essa literatura mais especializada, que combina
narrativa histrica com dados arqueolgicos e etnogrficos ainda incipientes,
somam-se, ainda, outros pequenos materiais impressos, como reportagens
jornalsticas e folhetos de divulgao sobre a panela de barro, seu modo de fazer,
matrias-primas empregadas e receitas culinrias associadas a esse produto. Tais
textos apontam, em maior ou menor dimenso, para a construo de um smbolo do
artesanato regional, que, associado moqueca e torta capixaba, atribuem uma
tipicidade inseparvel do territrio de produo. Essas representaes sobre uma
cultural regional foram apropriadas pelos mltiplos agentes sociais que esto direta
ou indiretamente referidos a todo esse processo.
O papel estruturante das famlias na transmisso do saber363 faz parte desse
universo de representaes, prticas e apropriaes constantemente acionadas pelas
prprias paneleiras. Nesse caso, a pesquisa etnogrfica vem ampliar a compreenso
sobre as alianas dentro e fora do galpo da associao. Os levantamentos de mapas
genealgicos esto presentes na disciplina antropolgica, desde as grandes viagens
etnogrficas do final do sculo XIX. Aps a expedio ao Estreito de Torres (1898),
W.H.R. Rivers364 aprimora os sistemas classificatrios do parentesco. De acordo
com este autor, a pesquisa de campo nas sociedades no ocidentais deve iniciar-se
pela coleta genealgica. Segundo Rivers, a tcnica permitiria ao etngrafo construir
362

No mbito da poltica oficial de artesanato, o Instituto Nacional de Folclore, desde a dcada de 1980,
empreendeu uma srie de aes de fomento e valorizao do produto artesanal de feio tradicional.
Documentos elaborados nesse perodo discutem sobre essa definio: no encaramos o tradicional
como resduo do passado, e sim como um conjunto de prticas sociais e culturais materialmente presentes
e que se reproduzem atravs do trabalho e do poder de recriao de seus agentes. Cf. SOARES, L.G.
Produo de artesanato popular e identidade cultural. Rio de Janeiro: FUNARTE/ INF, 1983, p. 9.
363
PEROTA, op. cit, 1997; DIAS, op. cit., 2006; IPHAN, op. cit., 2006.
364
RIVERS, W. H. R. O Mtodo Genealgico na Pesquisa Antropolgica (1910). In: Oliveira, R. C.
(org.). A Antropologia de Rivers. So Paulo: editora UNICAMP, 1991.

141

o sistema de relaes de parentesco365. Rivers indica, alm disso, que o mtodo


genealgico essencial quando se quer trabalhar exaustivamente os modos de
transmisso, seja de nomes, seja de propriedades366.
Neste captulo, procuro lanar luz exatamente sobre as questes do mtodo
genealgico, a partir dos diagramas de parentesco dos grupos familiares de
referncia desta pesquisa. A construo do mapa no se pretendeu exaustivo, pois,
como em Lima (2006), meu objetivo no era proceder a um estudo de parentesco.
Segui as indicaes propostas pelo mtodo no que se refere a construir linhas para
cada gerao, e padronizar a forma geomtrica do quadrado para o homem e crculo
para mulher, e, de acordo com Rivers, os nomes masculinos em letras maisculas e
os nomes femininos na forma habitual367. E como no era uma genealogia completa
deixei os nomes das famlias, uma vez que a linhagem uma marca importante para
o grupo.
Esta tcnica de aproximao mostrou-se a mais eficiente por se tratar de uma
comunidade com intricada relao de parentesco368 e elevada incidncia de
casamentos

entre

primos,

seja

cruzados

ou

paralelos,

matrilineares

ou

patrilineares369. Esse tipo de configurao familiar encontrada por Schiavo e Lima, e


ainda muito recorrente em pequenas cidades e lugarejos do interior do pas, so
menos freqentes nas grandes cidades, principalmente, quando se trata de uma das

365

Segundo Oliveira, referindo-se ao campo de debates estabelecido na poca em torno da problemtica


do parentesco, Kroeber haveria de conceder anos depois que os termos de parentesco, como parte da
linguagem, refletem a lgica inconsciente e os padres conceituais tanto quanto as instituies sociais cf.
Kroeber, 1952 apud. Oliveira, 1991. RIVERS. In: Oliveira, R. C. (introduo e org.) A Antropologia de
Rivers. So Paulo: UNICAMP, 1991, p. 21.
366
Em seu estudo nas ilhas Salomo, Rivers exemplifica, atravs do diagrama genealgico, como a
questo da sucesso na chefia, bem como a herana e a propriedade passam de mo em mo. RIVERS,
op. cit., p. 60.
367
RIVERS, op. cit., p. 53
368
comum afirmao do tipo: "aqui ns somos todos parentes por parte de pai ou de me, desde muito
tempo", segundo depoimento de dona Melchiadia Alves Corra da Vitria Rodrigues, 80 anos. Vale
observar, em seu sobrenome to extenso a sntese operada pela intrincada rede de relaes familiares.
369
Sylvia Schiavo revela em seu estudo sobre produtores rurais no municpio de Nova Friburgo que a
prtica da endogamia e das relaes tradicionais de compadrio um costume bastante difundido na
regio. Situao anloga foi encontrada por Ricardo Gomes Lima em sua pesquisa com a comunidade
ceramista do Candeal no estado de Minas Gerais. Lima revela no ter feito um levantamento exaustivo do
quadro genealgico, uma vez que seu objetivo era to somente conhecer os habitantes atuais da
localidade. Cf. SCHIAVO, S. Sendas da Transio: descendentes de suos em Nova Friburgo-RJ. Rio
de Janeiro: EDUFF, 1997; LIMA, R. G. O Povo do Candeal: sentidos e percursos da loua de barro.
Tese de Doutorado. Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ,
IFCS, 2006. HERDIA, B. A.; GARCIA JR., A. R. Trabalho Familiar e Campesinato. In Amrica
Latina. Rio de Janeiro, ano 14, n 1-2, jan-jun 1971, pp. 10-20. HERDIA, B. A.; GARCIA JR., A. R.
Mudanas e Continuidades na Famlia. So Paulo: Fundao Carlos Chagas, 1994.

142

cidades capitais da regio sudeste. Era preciso, pois, compreender os condicionantes


histricos e culturais que proporcionaram formas organizacionais produtivas
centradas na idia de famlia.
Semelhante ateno foi dada s unidades domsticas370 e posio dos
sujeitos no grupo de parentesco, pois so as referncias analticas que orientam e
organizam as atividades produtivas no contexto de transmisso dos saberes desse
ofcio. Neste caso, o mtodo genealgico me pareceu bastante operativo,
principalmente ao tratar de uma forma vivel a sistematizao das informaes sobre
parentes. Procedendo da mesma maneira que Lima em seu estudo sobre produtores
ceramistas, pretendeu-se construir um mapa mais completo da organizao social
produtiva em Goiabeiras Velha. No entanto, em dado momento do trabalho de
campo tal tarefa chegou a parecer quase impossvel por se tratar, hoje, de um
agrupamento urbano bastante numeroso. Para dar conta dessa empreitada, as visitas
localidade deveriam ser muito mais constantes; de se considerar que seria
necessrio me mudar por um tempo para Goiabeiras, como orientam as monografias
clssicas da disciplina. Mas, por razes de ordem prtica e financeira, entre outras,
procedi s visitas anualmente, sempre no final do ano letivo371, permanecendo em
um prazo mximo de vinte dias.
Alm disso, e mais uma vez me referindo ao trabalho de Lima, ocupava-me
to somente de investigar os modos de organizao social produtiva atuais na
localidade, onde moravam, seus nomes e graus de parentesco372. No campo da
genealogia, e considerando o contexto urbano moderno, fao constar o trabalho de
Joo Pina Cabral e Antnia Pedroso Lima que desenvolvem uma metodologia
denominada histria de famlia a partir de anotao genealgica que tem por
finalidade dar conta do percurso de vida de um sujeito social (ego) dentro de uma
complexa teia de relaes familiares, em contextos urbanos modernos, no mbito
das pequenas, mdias e grandes cidades373.
370

Segundo dados levantados pelo IPHAN, foram contabilizadas cerca de 120 famlias nucleares que
mantm algum tipo de envolvimento com a atividade artesanal de confeco de panela de barro. (IPHAN.
op.cit., 2006, p. 13).
371
Vale registrar que a primeira visita ocorreu aps a qualificao do projeto de doutorado, em maio de
2005. As demais idas a campo ocorreram entre os meses de novembro a janeiro, tanto por questes
operacionais, quanto por ser a poca de maior fluxo turstico em Vitria.
372
LIMA, R. G. O Povo do Candeal: sentidos e percursos da loua de barro. Tese de Doutorado.
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2006, p. 15.
373
CABRAL, J. P; LIMA, A. P. Como Fazer uma histria de famlia: Um exerccio de

143

Nas entrevistas, tais egos relataram sobre o contexto da sociabilidade local,


das relaes vicinais e das transformaes ocorridas entre as geraes,
principalmente aquelas dramatizadas pela oposio quintal versus galpo. O
trabalho de campo baseou-se na observao do quotidiano desses atores sociais em
seus quintais e no galpo da Associao. Minha inteno era confrontar a
organizao social produtiva nos quintais com a do galpo da Associao das
Paneleiras de Goiabeiras, observando esses dois modos de produo artesanal. A
partir desse exerccio comparativo, tirar algumas consideraes sobre o processo de
transmisso desse fazer artesanal e sobre como o registro do patrimnio cultural foi
apropriado desigual e diferentemente por essas unidades familiares.
Durante as visitas a Goiabeiras Velha, fui conhecendo as famlias e
estruturando o grupo de referncia desta pesquisa. Foram realizadas dez entrevistas
no-diretivas374 e vinte outras realizadas no contexto de produo, ou seja, nas mesas
e oficinas de trabalho, com os filhos e filhas que ajudam na produo. O fato de
sempre agendarem a conversa em pleno processo de trabalho revela o modo
estruturante desse ofcio na comunidade. Era comum receber o seguinte convite:
venha [tal dia] que estaremos queimando [panela]. Nesse momento, era como se o
corpo delas tambm pudesse responder s minhas questes como, de fato,
respondia fosse atravs das reaes diante da quentura da fogueira, fosse pela
rotinizao de determinadas posturas, como nos instrui a observar Marcel Mauss, em
seu ensaio sobre as tcnicas corporais375.

contextualizao social. Etnogrfica. Vol. IX (2): 355-390. Essa metodologia foi tratada por Joo Pina
Cabral no curso Antropologia da famlia, ministrado no PPGAS/ UNICAMP, entre maro e junho de
2005.
374
Sem desconhecer as questes epistemolgicas levantadas por Bourdieu (1997), que recomenda que na
relao entrevistador-entrevistado deve-se instaurar uma relao de escuta ativa e metdica, to afastada
da pura no-interveno da entrevista no-diretiva, quanto do dirigismo do questionrio, cuja
complexidade no pode ser aqui analisada, adotou-se a perspectiva de Michelat, quando sugere a
entrevista no diretiva como uma tcnica que oferece vantagens para apreenso do contedo simblico,
permitindo ao entrevistado um 'grau de liberdade', na medida em que no estrutura completamente o
campo de investigao. Alm disso, interessava-me explorar essa oposio entre dirigismo e no
dirigismo nas entrevistas, uma vez que estava confrontando ao Instrumento tcnico do IPHAN.
MICHELAT, G. Sobre a utilizao da entrevista no diretiva em Sociologia. In: THIOLLENT, M.
(org.). Crtica Metodolgica, Investigao Social & Enquete Operria. 3a ed., So Paulo: editora
Polis, 1982; BOURDIEU, P. Compreender. In: BOURDIEU, et. al. A Misria do Mundo. Rio de
Janeiro: editora Vozes. 1997.
375
MAUSS, M. As tcnicas do corpo. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2003.
535 p. p. 401.

144

O aoite das panelas nos quintais dos Barboza e dos Nascimento

Existem roupas e acessrios prprios para o momento da queima, como


chapus, bons, panos e lenos de cabea. A inteno proteger ao mximo os
corpos do sol, dos respingos do tanino, e da intensa fumaa que se desprende do
choque trmico entre a cermica e a tintura. A posio dos corpos na queima e no o
aoitamento indica o desconforto dessa etapa de trabalho. Para se protegerem dos
respingos do tanino, as paneleiras vestem cala ou saia compridas, ou colocam um
pedao de pano por cima das pernas. Algumas usam luvas no momento do aoite
para que suas mos e unhas no fiquem impregnadas com a tintura avermelhada da
casca do mangue. Ao afirmarem: continuamos fazendo do mesmo jeito, as
paneleiras confirmam aquilo que Mauss define por tcnicas corporais:
Chamo tcnica um ato tradicional eficaz [...] Ele precisa ser
tradicional e eficaz. No h tcnica e no h transmisso se no
houver tradio. Eis em qu o homem se distingue antes de tudo
dos animais: pela transmisso de suas tcnicas e muito
provavelmente por sua transmisso oral376.

Registradas as principais posturas das paneleiras, fosse na queima em p ou


sentadas , fosse na habilidade das mos ao modelar as panelas, associada ao uso
dos insumos e aos instrumentos de trabalho, essas tcnicas corporais devem ser
interpretadas no contexto das geraes377. Portanto, agrega-se ao aspecto fsico ou
expresso fisionmica no trabalho, a anlise dos discursos sobre a intensificao do
seu ritmo, que expressa um conjunto conflituoso de atitudes e de mudana na
atribuio de valores ao ofcio:
Ah! Elas no vo agentar, no! [Referindo-se quelas que
trabalham no galpo] Quando chegarem na idade de 50 anos,
acabou. Antigamente no era assim. Antigamente, as mes
376
377

MAUSS, op. cit., p. 407.


Ibid., p. 402.

145
faziam as panelas sentadinhas e faziam poucas. A pessoa
trabalhava tranqila em casa. As mulheres, antigamente, no
faziam essas quarenta panelas como hoje esto fazendo.
Antigamente, faziam seis panelas; puxava... terminava; no outro
dia, terminava para fazer bonitinho... Caprichado. Ento, era
uma coisa que se fazia devagar. Hoje, a agilidade. Tem gente
que pe gente para trabalhar. Trabalham at aos domingos!378

As mudanas ocorridas no processo de produo do artefato cermico panela


de barro a que se refere Izabel Corra Campos379 foram impulsionadas pela demanda
crescente desse produto. Essa transformao mais evidente para aquelas pessoas
que trabalham no espao do galpo da Associao das Paneleiras de Goiabeiras.
Podemos listar as variaes observadas: todos os associados cumprem uma escala de
trabalho que vai das 8 horas da manh, horrio em que se costuma abrir o galpo,
at as 19 horas. Alm disso, a ateno agora est direcionada para o potencial cliente
que se desloca at ao galpo que a rea de turismo, segundo muitos
depoimentos , ou para as eventuais encomendas feitas atravs do telefone pblico
instalado na sua entrada. Pode-se resumir a atual postura atravs da seguinte frase:
profissionalizou-se a produo. Algumas paneleiras e artesos preferem trabalhar
com a camiseta da associao, como o caso de Evanilda Fernandes Corra e Carlos
Barbosa dos Santos (fotos abaixo). certo tambm que essa no a regra seguida
por todos; inclusive, motivo de crtica o uso de certos decotes por paneleiras
mais jovens.

A queima no galpo: em p, individualizada e com a camiseta da associao

378

Depoimento de Izabel Corra Campos, 61 anos, gravado no quintal da sua casa, em novembro de
2006.
379
Dona Izabel nasceu em Goiabeiras Velha e filha de Oswaldo Alves Corra e Ana Dolores da Rosa
Corra. Depois que se separou do marido, Izabel voltou a morar no quintal de seu pai, com uma de suas
duas filhas e quatro netos. Dos quatro filhos de Izabel, Douglas foi o nico que aprendeu a mexer com
barro. Ver APNDICE V: remeto ao quadro sobre o grupo de referncia - genealogia e grupo familiar a
que pertence.

146

Foram sendo incorporadas, aos relatos e entrevistas, muitas anotaes


referentes s observaes dos momentos de confeco e de queima posies dos
agentes sociais no processo de produo e suas atitudes corporais, ritmo e funo ,
bem como temperatura do meio ambiente380. Ademais, acrescenta-se anlise as
mudanas na ecologia da regio, que foram bem sintetizadas pela minha
interlocutora Izabel Corra: a gente tinha aqui muita rvore; no era essa coisa que
tem agora; era uma coisa mais tranqila, porque as pessoas no sabem como
terrvel queimar panela381.

Experimentando o calor da fogueira

As informaes coletadas foram sistematizadas em quadros e mapas


genealgicos que facilitaram, pela visualizao, a leitura das permanncias e
mudanas no exerccio do ofcio. O conjunto de questes abrange o fazer artesanal e
procura identificar as continuidades e descontinuidades no processo de transmisso
desse saber-fazer, a incorporao de homens no processo de confeco da panela de
barro e a relao escolaridade e atividade artesanal, dentre outras.
Ao estudar a comunidade ceramista do Candeal, situada no municpio de
Cnego Marinho, no norte de Minas Gerais, Ricardo Gomes Lima382 observa a
importncia de entrelaar territorialidade, memria e genealogia. Segundo o autor,
somente atravs da construo do mapa genealgico dos moradores que se chega
posio das famlias e s redes de relaes, fundamentais para se construir uma
interpretao sobre os sentidos atribudos pelo processo de produo, circulao e
380

Neste caso, exponho aqui as minhas prprias limitaes fsicas, quando tive uma violenta queda de
presso devido ao calor da fogueira.
381
Depoimento de Izabel Corra Campos, 61 anos, gravado no quintal da sua casa, em novembro de
2006.
382
LIMA, R. G. O Povo do Candeal: sentidos e percursos da loua de barro. Tese de Doutorado.
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2006.

147

consumo383. Lima enfatiza a importncia dos objetos da cultura material como marca
de construo identitria. Ao faz-lo, insere-se no campo temtico de estudos da
cultura popular e da produo artesanal384. Especial ateno tem sido dada anlise
das biografias e histrias de vida, ao processo de aprendizagem terico/ prtico e ao
papel desempenhado pela gerao mais velha na transmisso do saber relativo
atividade385. A tecnologia de produo desses artefatos cermicos, suas tcnicas e
instrumentos de trabalho e contexto sociocultural de produo fazem parte de
estudos consagrados sobre essa temtica.
Carla Dias386, cuja dissertao de mestrado foi incorporada ao dossi de
estudo do IPHAN, em 2002, conforme apontado no captulo anterior, tambm
enfatiza que o modo de fazer tradicional fundamenta-se numa rede de parentesco,
que se expressa como referncia do lugar que ocupam socialmente387. Dias se
props revelar a genealogia do fazer em si, abordando questes relacionadas
tecnologia de confeco das panelas de barro, matrias-primas empregadas e etapas
do processo produtivo. Como observou Antnio Carlos de Souza Lima, a pesquisa
de Dias insere-se numa tradio de estudos da cultura material preocupada em situar
os objetos no seu contexto sociocultural de produo, apoiando-se em literatura
vinculada ao (sub)campo da Antropologia da Arte388.
No caso desta pesquisa, procuro construir complementarmente o mapa
genealgico das famlias para melhor localiz-las no espao social e estabelecer as
intersees necessrias na constituio dessa rede de sociabilidade local, entendendo
a sociabilidade como uma modalidade de interao.
Nas reminiscncias sobre o bairro de Goiabeiras Velha, as paneleiras antigas
do grupo de referncia desta pesquisa afirmam que havia poucas casas, todas de
estuque ou de madeira e com fogo lenha. Ao redor, formando quintais abertos
383

Ibid., p. 41,43.
Antroplogo e funcionrio do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/IPHAN, Ricardo Gomes
Lima est vinculado a essa instituio desde 1983, quando ingressa em seus quadros atravs do convite de
Llia Gontijo Soares, ento diretora do Instituto Nacional de Folclore (cf. mostrei no captulo anterior).
385
LIMA, Ricardo G. O Povo do Candeal: sentidos e percursos da loua de barro. Tese de Doutorado.
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2006, p.78-79.
386
DIAS, Carla da Costa. A tradio nossa e essa, e fazer panela preta: produo material,
identidade e transformaes sociais entre as artess de Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio de
Janeiro, UFRJ/EBA, 1999.
387
Ibid., p. 92
388
LIMA, Antnio C. apresentao. In: DIAS, C. C. Panela de Barro Preta: A Tradicao das
Paneleiras de Goiabeiras - Vitoria-ES. Rio de Janeiro: Mauad X/ Facitec, 2006, p. 10.
384

148

desprovidos de muros ou cercas, o pomar de frutos tropicais abundantes na regio e


trocados no crculo de vizinhana e parentela. Nesses quintais ocorriam como
ainda ocorrem, mas em menor proporo uma srie de atividades produtivas
ligadas confeco de artefatos cermicos utilitrios, como se ver adiante. Os
frutos silvestres tambm eram bastante apreciados e colhidos na mata de Camburi,
juntamente com a lenha para queimar a cermica produzida na localidade. Alm
disso, havia nesses quintais a criao de pequenos animais como pato, galinha e
porco; ou, ainda, animais domsticos e de estimao, como gato e cachorro. A
proximidade com o rio e com o mangue fez da pesca uma atividade econmica
importante para os homens, fonte de subsistncia para boa parte das famlias que ali
residiam. Toda essa descrio de espao extrado das narrativas das paneleiras evoca
um contexto quase paradisaco de fartura e harmonia, que servir de contraponto ao
quadro atual em que, de imediato, registra-se uma ciso entre as prticas dos
quintais e a do galpo.
Os moradores de Goiabeiras Velha falam ao mesmo tempo de suas relaes
com o artefato cermico panela de barro e com a extrao de mariscos no mangue e
da jazida de barro, visto que so referncias vividas. Os ofcios tradicionais em
Goiabeiras so atividades sociais e produtivas fortemente relacionadas ao
ecossistema manguezal, como os de paneleira e de pescador e marisqueiro. O
conhecimento sobre o mangue e o meio ambiente sempre fez parte do cotidiano dos
moradores da localidade, e est presente no depoimento de Dona Elizete Salles, 75
anos:
O mangue preto a gente tirava junto com o vermelho para tingir
o couro... Aqui tinha o curtume. A casca era para fazer o tanino
junto com o mangue preto. O couro depois de curtido era para
fazer sapato, cinto, essas coisas... O mangue vermelho tambm
serve pra aoitar panela... Esteiro era a passagem de canoa e
onde a gente tirava ostra. Cada um tem um nome prprio pra
gente ir. Eu andava com papai no mangue. A gente botava rede
de arrasto e rede de cerco no mangue. Ns, os antigos, a gente
sim era manguista: comadre Ilza, comadre Maria... Ns ia no
mangue pra viver, tirava marisco pra viver. Agora, eu no vou
mais no mangue. S vou pra tirar ostra e sururu pra fazer a torta
uma vez por ano. Antes no, eu ia direto no mangue pra tirar
ostra. Meu trabalho era tirar ostra de dia e fazer panela noite.
Eu ia pra Vila Velha vender as ostras. Eu contava as casas e
tinha um monte de comprador. Eu tambm fazia lenha, tanto na

149
UFES e no areal que ficava no Tubaro389.

Ao partir desse cenrio, construdo atravs do grupo de referncia, que se


procura adiante localizar os antigos quintais tradicionais de Goiabeiras Velha.

O porto de Goiabeiras: referncia aos ofcios tradicionais

Perto do Porto de Goiabeiras ficava o rancho de pesca da famlia Salles, que


tradicionalmente se ocupou com essa atividade. Os irmos Cludio, Joo, Argeo,
Amarolino e Elsio Gomes Salles escoavam a produo de pescado, marisco e
panela de barro para alm das fazendas e chcaras da regio, atravs do porto. O
meio de transporte utilizado era a canoa: saam da localidade e subiam a foz do Rio
Santa Maria em direo noroeste at a antiga colnia de imigrantes suos e alemes
de Santa Leopoldina. Se fossem vender no mercado central da Vila Rubim, desciam
at Vitria, ou ainda, mais ao sul, passando por Vila Velha, chegavam a Barra do
Jucu. Seu Joo Salles, pai do mestre de congo Reginaldo Salles390, era um grande
vendedor de panelas de Goiabeiras, recorda-se a propsito mestre Reginaldo, 78
anos:
Alm das panelas ele vendia caranguejo e cal feita de casca de
ostra. O comprador dele era o comerciante chamado Luiz
Guedes. De canoa ele tambm levava panelas para a Barra do
Jucu, para a venda de Pedro Valadares. Vendia ainda em
Cariacica, Itaquari, Ilha das Caieiras, Santo Antnio, mercado
da Capixaba e da Vila Rubim. Ia de canoa at onde dava, o resto
a gente andava a p, nessa poca eu tinha uns 12 anos.391
389

Depoimento gravado no quintal de Elizete Salles, em novembro de 2007.


Vindo de uma linhagem de mestres congueiros, mestre Reginaldo Salles filho de paneleira. Nascido
em Goiabeiras Velha, hoje reside no Morro Dona Marta, na ilha de Vitria. o mestre de congo da banda
Amores da Lua e presidente da associao das bandas de congo de Vitria.
391
CHAIA, V.; DANTAS G. Panela de Barro. Raiz da Cultura Capixaba. Vitria: Secretaria de Estado
de Turismo, 2002, p. 10
390

150

O territrio ocupado pela famlia Salles partia da margem do mangue e subia


por um barranco um pouco ngreme, hoje conhecido como o Morro dos Salles.
Segundo o relato da paneleira Elizete Salles dos Santos392, o terreno foi repartido
entre os filhos de Leopoldo Gomes Salles, que construram suas casas na medida em
que constituam novos ncleos familiares393. Em meados da dcada de 1950, alguns
herdeiros de Leopoldo venderam suas partes para uma fbrica de lajes e manilhas
pr-moldadas, hoje totalmente desativada.

Elizete Salles: paneleira, benzedeira e manguista em Goiabeiras Velha

Em Goiabeiras, observam-se diversas modalidades de ocupao do territrio,


com lotes em formas e tamanhos variados. Alguns quintais foram totalmente
construdos, assemelhando-se, hoje, a estreitos becos com casas dispostas lado a
lado. Esse o caso do quintal dos Lucidato394, que segundo o relato de moradores,
392

Dona Elizete paneleira e benzedeira em Goiabeiras Velha. Filha de Claudio Gomes Salles e Adelina
Gomes Salles, antigos moradores dessa localidade, casou-se com Joaquim dos Santos e teve quatro filhos.
Nenhum de seus filhos interessou-se pelo ofcio. Todos exercem alguma atividade formal no mercado de
trabalho. APNDICE V- remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que
pertence.
393
Observa-se em Goiabeiras a mesma regra de residncia referente ao casamento encontrada por
SHIAVO (1997) segundo a qual as mulheres vo morar nos terrenos dos maridos. Atenta s
consideraes de Lima, em seu estudo na comunidade arteso de Candeal, quanto analise das regras de
residncia, se uxorilocal/ matrilocal, virilocal/ patrilocal ou neolocal, em que leva em conta as fases ou
ciclos de desenvolvimento do grupo domstico, se em expanso/ disperso ou ciso/ substituio (Fortes
apud. Lima, 2006, p. 14-15). Estou me referindo ao ciclo inicial de desenvolvimento dessas unidades
domsticas na localidade, que vai permanecer com descontinuidades nas geraes seguintes ao meu grupo
de referncia de mulheres entre 60 e 80 anos.
394
Quintal totalmente tomado pelas casas dos filhos e netos de Laurinda e Aristides Lucidato. Hoje, as
casas esto subindo o segundo andar para poderem abrigar mais pessoas dessa famlia. Casa de Carlinhos
(mora com mulher e dois filhos), casa de Valdineia (mora com a irm), casa de Valdir (irmo de
Valdineia), casa de Lucilina (mora com marido e filhos), casa de Genilda, casa de Maria Nilse (moram os
quatro filhos e respectivas famlias), casa de Alvina (moram os trs filhos e respectivas famlias), casa de
Laureci (mora com as filhas), casa de Nilceia (moram o marido e os dois filhos). Casa de Laugrepina,

151

bastante antigo, tendo aproximadamente duzentos e oitenta e cinco anos395. Aroldo


Lucidato lembra-se de uma Goiabeiras do tempo dos quintais, sem ruas, muros e
tantas casas:
AROLDO Esse quintal voc imagina ele... Vamos botar a
minha idade: eu tenho 70. Na poca minha de garoto, quando
tinha 13 para 14 anos, no tinha cerca, no existia separao de
terra, entendeu?
LUCIENI Era tudo aberto.
AROLDO Isso j era uma tradio. Ento esse quintal pegava
l onde era a esquina ali, ele ia at no p do Morro do Salles, l
na subida. Ento era tudo aberto. O quintal era direto. Tinha
uma marcao de famlia. Tinha a famlia dos Salles l, tinha a
famlia dos Barboza ali, e a famlia Lucidato aqui396.

Nesses quintais compartidos, sem cercas para demarcar os limites das


propriedades, conviviam e ainda convivem as famlias Salles, Barboza e
Lucidato. Salles e Barboza tm estreitos laos de parentesco, uma vez que dona
Jardelina, esposa de Leopoldo Gomes Salles, era a me de Carolina Salles Santos,
que se casou com Joo dos Santos Barboza, mudando-se para o quintal do marido. A
norma observada, e identificada como tradio pelo grupo de referncia das
mulheres mais velhas, entre 60 e 80 anos, era que as mulheres mudavam-se para o
quintal dos maridos; no obstante, encontram-se casos de viuvez ou de separaes
que contriburam para o rompimento dessas prticas.

Travessa Aristides Lucidato: a primeira casa de Genilda fica de frente para a rua Jos Alves
casa de Jorge (marido de Laugrepina), casa de Adelaide (me de carlinhos). Esta ltima casa era a antiga
casa de Dna. Laurinda Lucidato (matriarca da famlia), e, por fim, casa de Aroldo, no alto da pedreira.
395
Esta estimativa foi feita por Aroldo Lucidato, 70 anos, filho de Laurinda e Aristides Lucidato.
Segundo Aroldo, a ocupao daquele territrio comeou com o Lucidato e a Isabel Lucidato ele bugre
claro e ela de cabelo cumprido e loiro ambos escravos de Nossa Senhora, porque como eram brancos
no podiam ser escravos do senhor. Isso no tempo da escravido, relata Aroldo numa narrativa quase
mtica de ocupao daquele terreno (entrevista gravada no quintal dos Lucidato, em novembro de 2007).
396
Entrevista gravada no quintal dos Lucidato, em novembro de 2007. APNDICE V- remeto ao quadro
sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.

152

5.1. A localidade de Goiabeiras Velha: famlias tradicionais de paneleiras


ligadas ao ba(i)rro397.
Desde a primeira metade do sculo XIX, nas crnicas e relatos de viagens
sobre a regio, faz-se referncia a um lugar chamado Goiabeiras, prximo da
capital do Esprito Santo, onde so fabricadas as caldeiras de terracota de orla
muito baixa e fundo muito raso398. Alm deste primeiro relato, datado de 1815, h
um outro, que faz referncia formao da sociedade capixaba e possui como foco a
imigrao sua do sculo XIX. A Viagem provncia do Esprito Santo
Imigrao e Colonizao Sua399 produziu uma rica iconografia da regio de
Vitria e de seu entorno. Integrava a expedio o fotgrafo francs Victor Frond,
que produziu uma srie de dezesseis fotografias sobre a cidade de Vitria e regio
circunvizinha, do planalto e da serra, enfatizando em seus enquadramentos as
paisagens transformadas pelo trabalho. Nessa perspectiva, as fazendas e os
ranchos ganham destaque nas cenas capturadas pelas lentes de Frond, representando
um projeto civilizador em plena expanso400.
Nas primeiras dcadas do sculo XX, a Grande Goiabeiras era uma regio
isolada e rural, composta por fazendas, em sua maioria produtoras de gado de corte e
leite, alm de stios e chcaras de mdio e pequeno porte401. Uma paisagem
constituda por vegetaes rasteiras, restingas, canais e coqueirais de guriri. Em uma
estreita faixa a oeste prxima ao manguezal, um pequeno ncleo de casas de estuque
formava uma vila de pescadores; entre caminhos e trilhas, as pessoas transitavam at
a estrada principal, que, desde a dcada de 1930, fazia a conexo entre Vitria e os

397

ANEXO D MAPA DO DISTRITO DE GOIABEIRAS, DESDE A PONTE DA PASSAGEM AT


O AEROPORTO EURICO SALES (plotado em 2007).
398
O registro mais antigo que se tem notcia sobre tais objetos cermicos pode ser encontrado em SAINTHILAIRE. Viagem ao Esprito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia/ USP, 1974, p. 55. Segundo
as formulaes de Luiz de Castro Faria, as excurses desse perodo prestavam-se a mltiplas finalidades,
as mais caractersticas eram as atividades de coleta de objetos para formao de colees destinadas aos
vrios museus etnogrficos e de histria natural.
399
TSCHUDI, J.J. Viagem provncia do Esprito Santo Imigrao e Colonizao Sua 1860. O
livro traz relatos do Baro de Tschudi, incumbido de percorrer as colnias suas do Esprito Santo para
verificar a situao e os problemas encontrados.
400
Frond chega ao Brasil em 1857 e, naquele mesmo ano, apresenta ao Imperador e s elites dirigentes
seu projeto editorial intitulado Brazil pittoresco. A esse respeito consultar: SEGALA, L. Ensaio das
Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de Victor Frond. Tese de Doutorado. PPGAS,
Museu Nacional/ UFRJ, 1998.
401
MINGO JR. Goiabeiras. Vitria: Secretaria Municipal de Cultura, 2000, p. 8.

153

municpios da Serra e do norte do Estado. Nessa poca, Goiabeiras integrava o


municpio da Serra, de modo que nascimentos, casamentos e bitos eram registrados
na sede daquele municpio402. Segundo depoimento do mestre de congo Reginaldo
Salles, as pessoas que morriam eram enterradas em Carapina e o enterro seguia a p
at o cemitrio mais perto da localidade. No surpresa, portanto, que a imagem de
uma Goiabeiras associada ruralidade esteja presente no imaginrio das pessoas
mais velhas, conforme atestaram os contatos por mim realizados.
Na dcada de 1930, foi instalado um campo de aviao no distrito de
Goiabeiras403, que trouxe uma srie de benfeitorias para os moradores da regio,
aumentando

circulao

de

pessoas

mercadorias

promovendo

desenvolvimento econmico, considerando-se que, durante os primeiros anos da


dcada de 1940, em que se tornou parte de Vitria, Goiabeiras havia permanecido
desprovida de gua encanada, energia eltrica, linhas de nibus, ruas urbanizadas,
postos de sade, entre outras coisas, tendo como nico benefcio a instalao de um
gerador de energia movido a gasolina.
Uma parte da populao mudou-se para outras localidades da Grande Vitria,
outra parte construiu suas casas nos chamados fundos de quintais. Aos poucos, os
servios de infra-estrutura bsica da cidade foram chegando a toda aquela regio.
Alm disso, com a expanso da malha urbana, as fazendas, stios e chcaras foram
cedendo presso da indstria imobiliria. A venda das terras de pastagem e o
aterramento do mangue para a implantao de conjuntos habitacionais
intensificaram o povoamento, que adquiriu ares de periferia urbana. Pode-se
facilmente depreender o quanto estas transformaes tiveram impacto social. Se, por
um lado, os moradores foram beneficiados pelos servios de luz, gua, coleta de lixo
e tratamento de esgoto, por outro, sofreram as presses imobilirias e tiveram que
restringir o espao til de seus quintais e das atividades de trabalho e lazer.
A justaposio entre as atividades de pescador, tanto no mar como no
mangue, e de empregado assalariado no eram incompatveis; muito pelo contrrio.
Os depoimentos das paneleiras mais velhas do grupo de referncia, acima de
sessenta anos, indicam que no havia muitos postos de trabalho na regio, e, como
402

No tive oportunidade de verificar os registros cartoriais no municpio da Serra sobre os antigos


moradores de Goiabeiras Velha.
403
Depois da Segunda Guerra, foi transformado no aeroporto de Vitria, hoje administrado pela Infraero.

154

os chefes de famlia de Goiabeiras exerciam posies subalternas no mercado de


trabalho, nas atividades da indstria e de servios, a atividade pesqueira
complementava a renda familiar404. Portanto, alm do aeroporto, que arregimentou
e ainda arregimenta a mo de obra masculina de Goiabeiras outra atividade
produtiva importante na regio foi a instalao de um curtume de couro de animais
para a fabricao de calados, malas, bolsas, cintos e outros produtos. O curtume
atraiu parte da mo de obra masculina, oferecendo oportunidade de emprego direto e
indireto, pois, alm de trabalhar no processamento do couro, algumas pessoas
extraiam e vendiam para o curtume cascas e folhas de rvores necessrias para curtilo. Alm disso, as mulheres dos pescadores, utilizando-se dos recursos naturais
existentes coletavam no mangue a casca da rvore Rhizophora mangle, e, na mata de
Camburi, lenha trazida em feixes, dois insumos necessrios para a confeco dos
produtos cermicos utilitrios, como panelas, caldeires e frigideiras.
A instalao de uma fbrica de beneficiamento de cal virgem no local foi
motivada pela grande quantidade de conchas de ostras e mariscos acumulados nos
quintais dos pescadores de Goiabeiras, que as reservavam e vendiam fbrica. A cal
obtida pela calcinao do carbonato de clcio extrado das conchas foi, por muito
tempo, utilizada como argamassa para o assentamento de tijolos e rebocos de
paredes, alm da caiao das casas. Em larga escala, essa matria-prima era tambm
usada para o asfaltamento de rodovias, o que provocou a destruio em massa de
Jazidas paleoetnogrficas, ou sambaquis, que so depsitos artificiais de conchas
resultantes da ocupao humana pr-histrica. Este, alis, pode ser apontado como
um dos primeiros reflexos do acelerado desenvolvimento econmico pelo qual
passaria a regio nos anos de 1950 e 1960, quando foi instalada uma indstria de
pr-moldados da Previx, onde tambm funcionava a usina de asfalto405.

404

Segundo os depoimentos de Izabel Corra Campos, Jenete Alves Rodrigues, Lucilina Lucidato de
Carvalho, Domingas Corra da Vitria, Gecy Alves Corra seus pais e/ou maridos aposentaram-se como
funcionrios do aeroporto (ver quadro de referncia), mas alguns desenvolveram outras atividades
produtivas, principalmente relacionadas pesca. Outras narrativas situam o valor estruturante desse
sistema produtivo na organizao social e produtiva das paneleiras de Vitria, principalmente para
localizar o papel do homem nesse sistema, que era o principal responsvel pelo escoamento da produo.
405
At a sua total desativao essa indstria recebeu uma srie de multas e advertncias da Secretaria do
Meio Ambiente pela poluio do Manguezal. Cf. ALMEIDA, P. O. Do Manguezal Panela de Barro:
proposta de insero de novos espaos no tecido urbano da Grande Vitria. Monografia apresentada ao
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFES, 1997.

155

Em verdade, as caractersticas geogrficas e arqueolgicas daquela regio


foram objeto de estudos cientficos desde a dcada de 1940, quando naturalistas
do Museu Nacional do Rio de Janeiro empreenderam diversas excurses para
inventariar e cadastrar os sambaquis. O antroplogo Luiz de Castro Faria, em
viagem ao Esprito Santo, em abril de 1945, relata os estragos provocados por um
explorador desastroso, referindo-se muito provavelmente a essa fbrica de Cal
Virgem instalada na regio de Goiabeiras. Nessa excurso, o pesquisador do Museu
Nacional trabalhava em colaborao com o SPHAN na elaborao do inventrio
preliminar das obras de valor arqueolgico e etnogrfico existentes naquele
Estado406. J nessa poca, Castro Faria chamava a ateno para o processo de
destruio dos sambaquis.
As configuraes socioambientais acabaram gerando preocupaes de
natureza preservacionista, tanto no que se refere proteo do mangue, quanto da
mata nativa. Hoje, a regio possui duas importantes reas de preservao ambiental,
regulamentadas por lei municipal: a Estao Ecolgica Municipal da Ilha do
Lameiro407 e a Reserva Ecolgica Municipal Mata de Goiabeiras408.

406

Castro Faria empreendeu trs excurses com objetivos pr-determinados. O primeiro, de seguir
rumo ao interior para visitar uma estao biolgica do Museu Nacional. Depois, ao percorrer a regio
litornea, at a cidade de Nova Almeida, observa que tinha diante dos olhos uma paisagem cultural bem
diversa e at mesmo antagnica em relao ao povoamento das terras altas do interior (idem, p. 2).
Durante essa excurso, realiza alguma documentao fotogrfica da igreja dos Reis Magos (p. 2). Quanto
aos sambaquis existem no interior da baa de Vitria, entre mangues, pequenos montes artificiais ali
chamados ilhas, [...] com abundante material sseo humano, alm de instrumentos de pedra (idem, p. 4),
eram objeto de intensa explorao econmica. O problema dos sambaquis ganhava repercusso nos
debates internacionais. Nessa poca, o Museu Nacional ainda era o grande centro de referncia por
estabelecer uma srie de convnios entre pesquisadores estrangeiros e os da instituio. Alm disso, uma
intrincada rede de relaes havia se estabelecido entre o Museu e algumas universidades e outros rgos
da administrao pblica, como no caso do SPHAN. (CFDA.11.03.074). Arquivo Castro Faria. Museu de
Astronomia - MAST/ RJ.
407
A Estao Ecolgica Municipal Ilha do Lameiro situa-se na Baa ao noroeste de Vitria, prximo
foz do Rio Santa Maria da Vitria. O manguezal recobre 92,66% da estao ecolgica, numa rea de
8.918.350 m. Lei Municipal n. 3.377, de 25 de janeiro de 1986, criou a Reserva Biolgica Municipal
Ilha do Lameiro.
408
Localizada no Morro de Goiabeiras, identificado em minhas entrevistas como Morro do Sales, devido
a concentrao de moradores dessa famlia nesse trecho de Goiabeiras. A Reserva Ecolgica Municipal
Mata de Goiabeiras, regulamentada atravs do Decreto n. 10.029, de 05 de junho de 1997, possui uma
rea de 50.722 m2. O Acesso ao morro se d pela rua Argeu Gomes Sales.

156

Estao Ecolgica Municipal da Ilha do Lameiro

Com os problemas de uma cidade insular que precisa acomodar um nmero


cada vez maior de habitantes, Vitria tem sofrido com as dificuldades de ampliao
de sua malha urbana. Nesse processo de expanso metropolitana, boa parte da orla e
do mangue que circundam a ilha foi aterrada, pontes foram construdas para fazerem
a ligao com o continente e novos bairros foram sendo planejados, de modo que,
com o tempo, o desenho ou mapa da cidade foi-se modificando paulatinamente. A
cidade se expandiu para o norte, em direo ao aeroporto.
nessa direo que se localiza o bairro de Goiabeiras Velha, que, embora
residencial, tambm concentra atividades comerciais e de servio. Situado na parte
norte e continental da capital, denominada como Grande Goiabeiras, o distrito tinha
grande extenso territorial, sendo limitado ao norte pelo Planalto de Carapina, ao sul
pelo Canal da Passagem, a leste pela Baa de Camburi e a oeste pelo Manguezal da
Ilha do Lameiro. Com a crescente ocupao urbana, o antigo distrito se fragmentou
nos bairros de Goiabeiras, Repblica, Jabour, Slon Borges, Maria Ortiz, Aeroporto,
Morada de Camburi, Jardim Camburi, Carapina I, Bairro de Ftima, Antnio
Honrio, Segurana do Lar, Boa Vista, Mata da Praia e Jardim da Penha.

157

Mapa da Grande Goiabeiras

A complexificao do desenvolvimento urbano promoveu mudanas no


bairro, em termos de circulao viria e de recursos naturais. Ele foi cortado pela
Avenida Fernando Ferrari, principal via de acesso ao aeroporto Eurico Salles
localizado nesta mesma avenida em Goiabeiras e abriga a ponte da Passagem, que
liga a parte continental da cidade parte norte da ilha. Essa posio estratgica na
cartografia da cidade recente, em funo da pavimentao e duplicao da pista
dessa importante avenida, na dcada de 1970, da ampliao do aeroporto e da
instalao do plo industrial de Tubaro. Antes, porm, os moradores prximos ao
manguezal utilizavam a canoa como o meio de transporte mais eficiente, alm de
retirarem a sua subsistncia da pesca e de outros insumos produzidos pelo mangue.
Mas com o contnuo processo de aterramento, muitos canais secaram e a pesca de
mariscos decresceu consideravelmente, causando impacto ambiental e ecolgico.
Em verdade, a grande Goiabeiras vinha urbanizando-se rapidamente a partir
do incio da dcada de 1960, com a construo do conjunto habitacional da antiga
Cohab-ES, que daria origem ao atual Bairro Repblica e que, na poca, recebia a
denominao de Goiabeiras II e III409. Logo em seguida foi inaugurado o bairro
409

MINGO JR. Goiabeiras. Vitria: Secretaria Municipal de Cultura, 2000, p. 32, 34.

158

Jabour, e, no final dos anos 60, foi concludo o conjunto Antnio Honrio, cujos
imveis valorizaram-se com a instalao do Porto de Tubaro. Hoje, esses conjuntos
j se encontram totalmente consolidados e em rea valorizada, com acesso a infraestrutura, posto de sade, escolas, duas instituies de ensino superior, sendo que
uma federal, servios bancrios e transporte pblico410.
A impresso que se tem ao abandonar a grande avenida que corta a localidade
com seu pesado fluxo automobilstico a de uma descontinuidade abrupta de tempo
e espao. Imagine-se em uma das principais vias de acesso ao centro da capital
capixaba e, ao desviar-se em direo ao manguezal que acompanha todo aquele
trecho da Avenida Fernando Ferrari, deparar-se com um ambiente residencial e
tranqilo, onde circulam poucos carros e pessoas. A maioria da populao de
moradores antigos, que residem h bastante tempo no local. Nas ruas, as crianas
apropriam-se dos espaos pblicos com suas brincadeiras e jogos infantis, como se
observa nos desenhos riscados de amarelinha no asfaltamento de algumas ruas
perifricas do bairro.
Goiabeiras Velha apresenta-se ao olhar do etngrafo por diferentes planos.
Um deles tem como coordenadas espaciais a Av. Fernando Ferrari e o Campus da
Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), para onde se dirigem diariamente
centenas de estudantes. Pela avenida circulam dezenas de linhas de nibus
410

Segundo dados coletados pelo censo 2000 do IBGE, a composio da populao que reside em
Goiabeiras Velha organizada segundo os critrios de idade e sexo a seguinte: 2.350 pessoas, sendo 557
crianas com idade entre 0 e 15 anos (291 homens e 266 mulheres), 436 jovens com idade entre 16 e 24
anos (218 homens e 218 mulheres), 1.119 adultos com idade entre 25 e 59 anos (534 homens e 585
mulheres) e 238 idosos com idade a partir de 60 anos (100 homens e 138 mulheres). Tambm segundo o
Censo, Goiabeiras vem apresentando uma diminuio das taxas de crescimento do total de pessoas que
habitam a regio. Nos anos de 1991 e 2000, a diminuio da populao total foi de 18,5%, sendo que
entre as mulheres houve uma reduo de 1404 para 1207 pessoas, ou seja, menos 14% da populao
feminina. Entre os homens decresceu de 1482 para 1143 pessoas, ou seja, 23% (IBGE apud. Dossi
IPHAN, 2002). A diminuio das taxas de crescimento um dos indicadores do ethos urbano e pode
informar sobre a constituio de ncleos familiares menores, conforme pude, de fato, observar no
trabalho de campo. A composio socioeconmica dos moradores dessa localidade de famlias de baixa
renda e de baixa escolaridade (PEROTA, 1997; DIAS, 2006). No entanto, os dados do IBGE referentes
educao, realizado na regio de Goiabeiras no ano de 2000, considerando os fatores de idade e sexo, em
uma amostra de 2.169 pessoas apontam para uma inverso dessas taxas, indicando que a alfabetizao
atinge 92% das pessoas. Dessa amostra, tem-se: 332 crianas com idade entre 0 e 14 anos (141 homens
alfabetizados e 39 homens no alfabetizados; 120 mulheres alfabetizadas e 32 no alfabetizadas); 480
jovens com idade entre 15 e 24 anos (239 homens alfabetizados e 01 homem no alfabetizado; 238
mulheres alfabetizadas e 02 mulheres no alfabetizadas); 1.119 adultos com idade entre 25 e 59 anos (522
homens alfabetizados e 12 homens no alfabetizados; 557 mulheres alfabetizadas e 28 mulheres no
alfabetizadas); 238 idosos com idade a partir de 60 anos (84 homens alfabetizados e 16 homens no
alfabetizados; 103 mulheres alfabetizadas e 35 mulheres no alfabetizadas). IPHAN. Inventrio do Ofcio
das Paneleiras de Goiabeiras; Ficha de Identificao: stio F10; IPHAN, 2002.

159

municipais e intermunicipais que ligam Vitria aos municpios da Serra e do norte


do Estado, alm de carros e caminhes. Nela tambm esto concentrados os
principais servios locais: agncias bancrias e de correios, loteria esportiva,
padaria, supermercado, farmcias e lojas de artigos diversos vesturio, cama e
mesa, calados, mveis e eletrodomsticos. no entroncamento com a Avenida
Jernimo Verloet que est situada a praa principal de Goiabeiras e, do outro lado da
rua, o ponto de venda de Panela de Barro pertencente famlia de Arnaldo Gomes
Ribeiro411. H ainda escolas pblicas e particulares de ensino fundamental, mdio e
de educao infantil.

Praa Coronel Francisco Pereira: entroncamento da Av. Fernando Ferrari com a Av. Jernimo Verloet

O traado das ruas de Goiabeiras Velha irregular, e a maioria


pavimentada com blocos ou asfalto. Dispostas pelo bairro como se fossem os
antigos e estreitos canais de mangue, essas ruas convergem para os principais
acessos ao bairro. Partindo-se da Av. Fernando Ferrari, os principais acessos so
pelas Ruas Jos Gomes Loreto, Leopoldo Gomes Salles, Jos Alves e
Desembargador Cassiano Castelo, todas pertencentes a Goiabeiras Velha. Nessa
ltima, funciona uma faculdade particular, que, apesar de se chamar Universidade de
Vitria (UNIVIX), oferece poucos cursos na grade curricular. O campo de futebol
de vrzea pertencente ao 3 de Maio Futebol e Esporte Clube de Goiabeiras e a rea
de lazer com quadra de esportes e campo de bocha fazem parte da paisagem desse
411

H tambm paneleiras que trabalham para os filhos de Arnaldo Gomes Ribeiro e que deram
continuidade ao comrcio de panelas na localidade.

160

recanto ao norte do bairro de Goiabeiras Velha. Adiante, o Centro Esprita Nossa


Senhora dos Navegantes, a Igreja Batista e a Praa Coronel Francisco Pereira, mais
conhecida como Praa de Goiabeiras.

Goiabeiras ao norte: rea de lazer e o campo de futebol de vrzea

Em frente ao campo de futebol, reside Bernanci Gomes Ferreira412, uma das


paneleiras mais velhas que trabalham no galpo da Associao; voltarei a falar dela
adiante, localizando-a no grupo de referncia desta pesquisa. A poucos metros da
casa de Bernanci, reside o grupo familiar de Margarida Lucidato Ribeiro413, a filha
mais velha de Laurinda e Aristides Lucidato. Margarida soube cultivar o ofcio
dentro de seu ncleo familiar, tanto que das doze pessoas identificadas em seu
quintal, dentre filhos, filhas (biolgicas e de criao) e nora, nove desempenham
diretamente o ofcio. Ela atribui essa concentrao da produo familiar nas prprias
mudanas ocorridas na localidade. Diz hoje s lutar com os de casa, revelando-nos
uma polaridade entre os dois modos de produo: quintal X galpo. Alm disso,
quase todos os filhos possuem deficincia visual, e, por isso, alegam possuir maior
sensibilidade com as mos para desempenhar a funo de artesos. Margarida nos
revela, ainda, que antes faziam a fogueira na rua, em frente a sua casa, mas com o
crescimento urbano e a proibio por parte dos rgos pblicos, passaram a queimar
412

Dona Bernanci filha de Odete Corra Gomes e Alcides Gomes. Foi casada com Joaquim dos Santos,
filho de Ana Ferreira da Conceio, conhecida como me Ana, antiga paneleira que ganhou relativa
projeo nos crculos artsticos locais por modelar esculturas em argila. Dos sete filhos de Bernanci,
somente Inete e Lailson aprenderam o ofcio de sua me, avs, tias e primas. APNDICE V - remeto ao
quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.
413
Dona Margarida foi casada com Benjamim Ribeiro, com quem teve seis filhos. Todos eles
interessaram-se pelo ofcio e desempenham alguma funo no processo produtivo do quintal dos Ribeiro.
APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que
pertence.

161

dentro do prprio quintal414.


A casa original de estuque foi derrubada, pois estava erigida no centro do
terreno hoje local onde fazem a fogueira. Em sua casa atual, construda na lateral
do terreno, moram com ela seus filhos solteiros, sua filha de criao e dois netos. No
fundo do terreno, deparamo-nos com um pequeno galpo para confeco e
armazenamento das peas. Ao lado desta oficina de trabalho, um pequeno cmodo
onde mora a filha mais velha de Margarida, Snia Ribeiro, com sua filha e neta.
Fechando o quadrado do terreno, na lateral oposta casa da matriarca, a casa do
filho Samarone e esposa (sem filhos) e galpo de produo e venda exclusiva do
casal. Todos os integrantes da famlia extensa de Margarida, com exceo dela
prpria, que alm da idade avanada est com problemas de sade, e de suas netas e
bisneta, vo ao barreiro tirar barro, ao mangue tirar tinta, alm de desempenharem
todas as etapas da produo no quintal, desde a confeco, passando pela queima,
armazenamento e venda do produto.

Um dia de queima no quintal dos Ribeiro

Com relao ao processo produtivo no quintal dos Ribeiro, pode-se a esta


altura tirar as primeiras constataes. A principal delas refere-se organizao
social produtiva. Esse grupo domstico costuma desempenhar todas as etapas do
processo produtivo no sistema de entreajuda, ou seja, queimam juntos as panelas,
dividindo as tarefas de aoitamento e de tirador de panela. Aqueles que
desempenham o papel de tirador de panela Brbara, Maria Cerino, Samarone ou
Leones tambm preparam o barro e cortam-no, confeccionam as panelas, viram,
alisam e aoitam. Sandra, Ivone e Valdete que estavam no aoitamento na ocasio
414

Um dos pontos de tenso identificados pela pesquisa nos quintais refere-se s denncias de vizinhos ao
IBAMA, que, sentindo-se prejudicados com a fumaa procuram os rgos pblicos de fiscalizao.
Segundo relatos, em algumas vistorias ameaam apagar a fogueira ou apreender as panelas ainda em
processo de queima, causando prejuzos aos artesos e suas famlias.

162

da minha visita, mas tambm podem desempenhar outras tarefas. No entanto, essa
permissividade no observada na hora da venda, em que cada um tem seus
compradores. Snia Ribeiro radicaliza essa individualidade ao desempenhar todo o
processo sozinha confeco, queima e distribuio , alegando ser a nica a
trabalhar com miniatura de panelas no referido quintal. Voltarei a essas questes
mais adiante quando for inserido o modelo do galpo.

Retomando o traado das ruas de Goiabeiras Velha, e me deslocando


agora para o limite sul do bairro, indo em direo ao campus universitrio da UFES,
as ltimas ruas desta localidade denominam-se Jos Gomes Loreto e Joo Gomes
Loreto. Esta ltima foi planejada aps o intenso processo de aterramento do mangue,
conforme descrito anteriormente. Nelas encontram-se casas de boa feitura e que
apresentam sinais de cuidado e acabamento. Algumas, inclusive, construdas em
centro de terreno, so gramadas e ajardinadas. Mas h tambm aquelas casas de
alvenaria mais simples sem reboco nas paredes, s vezes com puxadinho, e sem
espao no terreno para um jardim ou mesmo um quintal. Na Rua Jos Gomes Loreto
mora uma das paneleiras do grupo de referncia, dona Elizete Salles dos Santos e
seus quatro filhos. Conforme dito, nenhum de seus filhos e noras interessou-se pelo
ofcio que realiza em fundo de quintal. A rua de dona Elizete possui pouco comrcio
e servio, destacando-se duas oficinas mecnicas e os bares do Jonas e do Chico,
este ltimo na esquina com a Rua Leopoldo Gomes Salles.

163

A expanso urbana de Goiabeiras: Ruas Leopoldo Gomes Salles e Jos Gomes Loreto

A terceira via de acesso ao ncleo residencial de Goiabeiras Velha se d pelas


ruas Jos Alves e Leopoldo Gomes Salles. A paisagem formada por casas,
sobrados e pequenos comrcios, como bares, mercearia, aougue, locadora de vdeo
e marcenaria. O galpo da Associao das Paneleiras de Goiabeiras415 fica na
continuao da Rua Leopoldo Gomes Sales e destaca-se pelo espao social e
simblico que ocupa dentro da comunidade. o local de trabalho de parte das
paneleiras cadastradas na Associao e por onde se escoa a maioria absoluta da
produo de panelas de barro. Placas sinalizam a sua localizao para os turistas e
compradores que chegam ao bairro.
Nas caladas, eventualmente, observam-se bolas de barro acumuladas em
frente aos portes de dona Melchiadia416 e Marlene (tia e sobrinha, respectivamente),
indicando a presena de paneleiras que trabalham nos quintais de suas casas. So
denominadas, bem como se autodenominam, paneleiras de fundo de quintal. A
maioria dos moradores desse bairro mantm algum tipo de envolvimento com a
atividade artesanal de confeco de panela de barro. A argila a matria-prima
essencial para a confeco do artefato cermico utilitrio, e, nos depoimentos por
mim coletados, as paneleiras manifestam uma relao afetiva no mexer com o barro
e no modelar as panelas. Izabel Corra Campos - outra sobrinha de Melchiadia e

415

Mais adiante tratarei da organizao social e produtiva das paneleiras do Galpo da Associao das
Paneleiras de Goiabeiras.
416
Melchiadia Alves Corra da Vitria Rodrigues casada h quase cinqenta anos com Alceneu
Rodrigues, com quem teve cinco filhos. Todos os seus filhos interessaram-se pelo ofcio e desempenham
alguma atividade relacionada ao processo produtivo no quintal da famlia, estendendo essa relao para os
sobrinhos e as sobrinhas que moram na vizinhana. APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de
referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.

164

moradora desse mesmo trecho familiar417 - afirma que o fazer panela um dom e
que ela o faz por amor e por necessidade financeira. Nota-se em seu depoimento um
indicativo de como importante para o grupo associar a atividade econmica a uma
dimenso pessoal, conformadora de uma identidade social.

Mos de paneleira: No sei se a gente usa a natureza ou se ao contrrio

Em Goiabeiras Velha so comuns placas penduradas nas fachadas das casas


ou nos portes, onde se l: Panela de Barro Aqui. Observam-se dentro desses
quintais reas reservadas para o armazenamento do barro e da madeira para queima
das peas, principais insumos na fabricao da panela de barro, como veremos
adiante. Em outros recantos, repete-se a mesma cena: pequenos amontoados de
argila em frente aos portes das casas. A matria-prima distribuda atravs do
caminho da prefeitura, que, semanalmente, transporta cerca de 300 bolas de barro
da jazida do Mulemb at o galpo da Associao das Paneleiras418. Mediante
encomenda, o caminho tambm distribui as bolas de barro nas casas das paneleiras
de fundo de quintal. As famlias que compram nesse sistema no vo mais ao
barreiro419.

417

Apesar dos espaos pblicos se constiturem a partir de modalidades de apropriaes variveis, que se
modificam ao longo do tempo, os trechos de rua pesquisados em Goiabeiras Velha apresentam
caractersticas peculiares quando comparados a de outros bairros: concentrao de pessoas de uma mesma
famlia, estabelecendo intensa relao de vizinhana e de parentesco.
418
O percurso do bairro Joana DArc, cerca de 5 km da localidade, faz-se atravs da Estrada do Contorno.
419
Na minha primeira ida ao campo, em maio de 2005, cada bola custava cinqenta centavos de real. Em
novembro de 2007, estava custando um real.

165

A distribuio das bolas para a APG e para as paneleiras de fundo de quintal

Antigamente, as paneleiras iam juntas ao barreiro e os filhos ajudavam a


bater as bolas de barro. Essa prtica era rotineira dentro dos grupos domsticos,
sendo mantida atualmente somente por algumas poucas famlias.
As mulheres sempre trabalharam mais do que os homens. As
mulheres em panela sempre trabalhavam mais. Eles s iam
entregar na Vila Rubim. Alguns homens tambm tiravam o
barro. At as crianas tinham que ir. Eu, por exemplo, ia com
vov Dud, tia Filhinha... Ia com enxada e abria buraco. Tirava
cada torro! Depois, catava gua pra amolecer o barro, e
sapateando no barro para formar o bolo. Era um bolo mesmo.
Hoje em dia chamam bola. [...] Tia Rumancina, Tia Vitria,
Dona Floripis, vov Dud, Dona Lcia, Dona Mocinha, o
marido dela ia, o marido de dona Lucia ia. Iam alguns homens.
Mas eram mais as mulheres e os filhos para ajudar. Faziam o
buraco e viam se era um barro bom de fazer; seno misturava
barro fino com barro grosso. O pessoal antigo conhecia bem.
Esse barro de hoje lama! No aquele barro do meu tempo.
Em cada buraco eles olhavam e misturavam o barro fino e o
barro grosso420.

420

Depoimento gravado no quintal dos Gomes, em novembro de 2007, com as irms Zilda e Gilda
Gomes Campos. APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo
familiar a que pertence.

166

Como enfatizado no captulo anterior, que tratou do dossi de estudo e do


Inventrio dos Ofcios e Modos de Fazer das Paneleiras de Goiabeiras, com o
aumento da produo houve a especializao de determinadas funes. Alm da
paneleira mestre artes que modela ou d forma panela , destacam-se as funes
do tirador de barro e do casqueiro. Esses dois profissionais so valorizados pelas
prprias artess, por conhecerem a liga do barro421 e o ecossistema manguezal.
Na Associao das Paneleiras de Goiabeiras, alguns homens exercem essa
funo de tirador de barro, so eles: Ronaldo Alves Corra, Jos Carlos Ambrosio e
Genivaldo Alves Corra. Ainda no Vale do Mulemb, a matria-prima recebe um
primeiro tratamento para a retirada de impurezas, principalmente matrias orgnicas,
como folhas e tocos de rvores. O barro que ser trabalhado limpo de restos de
madeira e pedras. Para melhorar a sua plasticidade, amassado com os ps e ento
armazenado em bolas de 20 quilos. O processo muito cansativo, pois necessrio
cavar o solo com a enxada. s vezes, e dependendo da poca do ano, a terra est
muito seca, o que obriga a molhar a argila de modo a ganhar plasticidade suficiente
e ser transformada em bola422.
Os tiradores de barro deixam as bolas prontas e cobertas por um plstico,
para manter a umidade e proteger da chuva, que, em excesso, retira delas a nata ou a
goma. Ronaldo Alves Corra aprendeu a conhecer o barro com seu pai, Eudxio
Alves Corra, que desempenhava essa funo de tirador de barro423. Segundo
relatos dos prprios filhos, Eudoxio faleceu ao final de um dia de trabalho na
extrao do barro, vtima de um ataque do corao. Soma-se a esse drama familiar o
fato de terem perdido a me paneleira, Donria Alvarenga de Siqueira Corra,
poucos meses antes. Mesmo assim, todos os seis irmos desse grupo domstico
desempenham um ofcio ou funo relacionada confeco da panela de barro e
421

Tem barro que para fazer uma pea dessas no d. Esse um barro bonito! Nem sempre o barro est
bom, depende da lua. Hoje ningum mais fica na lua. Tirava-se na lua nova e no escuro, revela a
paneleira Jenete Alves Rodrigues entrevistada em maio de 2005.
422
Todas as paneleiras so unnimes em achar que o mais difcil a retirada do barro, no bairro de Joana
DArc. Temos que abrir o buraco com enxada e procurar no fundo do solo, afirmam. Izabel Corra
Campos fala da dificuldade de coletar barro: Tem que ser heri para deixar o barro prontinho para a
paneleira. O barro vem cheio de impurezas. Para mim, coletar e amassar com os ps pior do que
queimar. Preparar o barro cansa!... (entrevista gravada no galpo do Arnaldo, em dezembro de 2005).
423
"Eu comecei a tirar o barro quando era menino ainda e gosto at hoje. Eu ligo o rdio e vou tirando,
escutando um pagode, amassando com os ps, fazendo as bolas", diz Ronaldo Correa. Em uma semana de
trabalho ele, acompanhado por seu ajudante, retira cerca de 300 bolas. "Eu vou empilhando as bolas e no
sbado o caminho da prefeitura vem aqui e leva para o galpo das paneleiras", conta Ronaldo (entrevista
gravada no galpo da Associao, em dezembro de 2005).

167

possuem forte ligao com a Associao, como veremos na ltima sesso do


captulo.
Com a urbanizao do bairro e o loteamento dos terrenos, os quintais das
famlias tradicionais foram cercados com muros e portes. J no mais permitido
pelos rgos pblicos municipais queimar panelas na rua, nem em frente s casas, ou
no Campo 3 de Maio, como denominado o campo de futebol de vrzea do clube da
regio424. Alm disso, com a especulao imobiliria na regio, a diminuio da rea
para esses espaos pela agregao de novos ncleos familiares restringiu essa etapa
to importante no processo de produo. Preservar esses quintais com seus espaos
para produo artesanal pressupe a manuteno da rea reservada para
armazenamento das matrias-primas e queima. A fogueira aparece como um
elemento central nas narrativas que sustentam o sistema de entreajuda dos quintais
de Goiabeiras Velha. E quando se est falando em locais de reproduo social dessa
atividade no mbito domstico no se est falando apenas dos elementos materiais,
mas da existncia de regularidades ou padres de comportamento que se expressam
dentro e fora da casa.

5.1.1. Os quintais tradicionais de Goiabeiras Velha


Em Goiabeiras, observam-se diversas modalidades de ocupao do territrio,
com lotes em formas e tamanhos variados. Dependendo das particularidades do
terreno grande ou pequeno, aplainado ou em declive os quintais podem
apresentar dimenses variadas e as casas virem perfiladas, dispostas em simetria,
localizadas no incio ou no final do lote, ou, ainda, dispersas, sem um aparente
ordenamento prvio.
Mas este tipo de constatao no d conta da complexidade que estabelecer
um mapa das famlias tradicionais de Goiabeiras Velha. No uma operao de
simples execuo, porque no se trata apenas de uma cartografia do espao dividida
pelas famlias que se encontram distribudas pelo territrio: os quintais so lugares
de produo de sociabilidade, de extenso e de ajuda mtua, que muito contribui
424

A lei municipal 6.080/2003 regulamenta o Cdigo de Posturas e de Atividades Urbanas do Municpio


de Vitria. Esta Lei define e estabelece as normas de posturas e implantao de atividades urbanas para
o Municpio de Vitria, buscando alcanar condies mnimas de segurana, conforto, higiene e
organizao do uso dos bens de interesse pblicos.

168

para a compreenso das relaes sociais de produo dessa localidade. Esse tipo de
enquadramento pressupe um olhar mais treinado, capaz de perceber as redes de
relaes sociais que recobrem esse lugar. Com efeito, ao mesmo tempo em que fazia
o reconhecimento fsico da rea, conhecendo os nomes das ruas e travessas, buscava
identificar os moradores, tornava-me aos poucos uma figura conhecida, saciando as
dvidas e situaes de estranhamento sobre a minha pessoa, com as conversas e
esclarecimentos sobre a pesquisa que realizava.
Essa diversidade de padres de domiclio encontrada na localidade de
Goiabeiras Velha mereceu ateno, pois informava sobre possveis coalizes ou
rupturas na maneira de organizar o espao social e produtivo. A demarcao no
se fazia apenas pela organizao no espao fsico, j que outros terrenos totalmente
separados por muros com entradas e portes individualizados nem pareciam
pertencer a uma mesma famlia e, no entanto, pertenciam. Sendo assim, o fato de as
famlias compartilharem um mesmo quintal, como j havia observado Dias (1999)
nas unidades domsticas de Marinete, Berencia e demais irmos, vai indicar um
espao onde as relaes se reproduzem e os conflitos pessoais tomam
caractersticas e propores familiares425.
Em tais quintais, no necessariamente contguos, como no caso dos Gomes,
seus ocupantes relacionam-se muitas vezes atravs dos estreitos laos de parentesco
que os unem so primos primeiros, como costumeiramente se referem uns aos
outros e que se expressam em situaes de intimidade e de convivncia intensa.
Segundo Simoni Guedes, interessa acentuar no estudo dos quintais seu significado
como fenmeno multidimensional e as possibilidades que apresenta de sugerir uma
abordagem diversa para os estudos de famlia e parentesco entre trabalhadores
urbanos426.
Bernanci Gomes Ferreira, apesar de mudar-se para o quintal do marido427,

425

DIAS, C. A tradio nossa e essa, e fazer panela preta: produo material, identidade e
transformaes sociais entre as artess de Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro,
UFRJ/EBA, 1999, p. 38.
426
GUEDES, S. L. Redes de Parentesco e Considerao entre Trabalhadores Urbanos: tecendo relaes
a partir de quintais. Caderno do Centro de Recursos Humanos. Faculdade de Filosofia e Cincias
Humanas. Universidade Federal da Bahia. Salvador. N. 29; 1998. p. 189-208, p. 198.
427
O marido, Rubens Ferreira da Conceio, hoje falecido, aposentou-se pelo curtume Capixaba,
importante posto de trabalho para a mo de obra masculina de Goiabeiras, h dcadas passadas.
Conforme visto, Rubens era filho de me Ana, que no transmitiu o ofcio para nenhuma de suas duas
filhas, Ruth e Emlia, moradoras at hoje daquele trecho dos Ferreira.

169

revela nunca ter deixado a referncia do terreno da sua famlia paterna: o meu lugar
no aqui; o meu lugar l, afirma. Lembrando-se do quintal de seus avs, da
antiga casa de estuque e do p de gabiroba, rvore muito comum na regio e que
dava boa sombra, e reconstri uma cartografia afetiva do seu lugar de origem.
Hoje, com o crescimento do bairro, o antigo quintal dos Gomes em nada se parece
com a imagem construda por Bernanci. Ele foi totalmente repartido. A especulao
imobiliria na regio fez com que outros herdeiros vendessem as suas partes, e a
estreita faixa de terreno que permaneceu de posse da famlia Gomes foi ocupada por
novas construes, abrigando filhos e filhas, com seus respectivos cnjuges e proles.

No quintal dos Ferreira: a casa original em estuque

O quintal do marido de Bernanci, tomado para o uso residencial, tambm


perdeu a antiga funo destinada queima de panelas. O que se mantm a forma
de organizao familiar, com os filhos morando no mesmo quintal: em cima da sua
casa mora a filha mais velha, Ana Lucia; na casinha de estuque ao lado da sua mora
Jorge, o filho caula; atrs mora a filha Inete, esposo e filhos. Manter filhos e netos
prximos de si significa reconstruir formas particulares de territorialidades428. Esses
espaos sociais implicam em laos solidrios e de ajuda mtua [que] informam um
conjunto de regras firmadas sobre uma base fsica considerada comum, essencial e
inalienvel429.
Na reconstituio da sua trajetria, Bernanci revela vir de uma linhagem de
paneleiras a me Odete, a av Galdncia, a tia Geralda , alm das primas Zilda,
428

Segundo Alfredo Wagner B. Almeida, a noo de territorialidades especficas configura esse carter
dinmico dos processos sociais de territorializao e das formas de apropriao dos recursos. Para o
autor, a territorialidade funciona como fator de identificao, defesa e fora, principalmente em se
tratando de grupos e comunidades cujas prticas revelam um conhecimento aprofundado e peculiar dos
ecossistemas de referncia. Cf. ALMEIDA, A. W. B. Terras de Quilombo, terras indgenas,
babauais livres, castanhais do povo, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente
ocupadas. Manaus: PPGSCA-UFAM, 2006, p. 24 e 25.
429
ALMEIDA, A. W. op. cit., p. 24.

170

Gilda e Jaqueline, que tambm exercem o ofcio. Mesmo gostando da atividade que
praticada h mais de cinqenta anos, Bernanci s conseguiu transmitir seu ofcio aos
dois filhos que trabalham com ela no galpo, Inete e Lailson. A filha mais velha,
Ana Lcia, apesar de no desempenhar uma atividade profissional com formao
especfica hoje trabalha como auxiliar de servios gerais e de possuir apenas o
ensino fundamental incompleto, mesmo assim revela no sentir inclinao para o
ofcio. Disse ajudar, eventualmente, em uma ou outra etapa da produo, como
alisar ou passar a faca no fundo da panela.
A quebra na transmisso ainda maior quando visitado o quintal de suas
primas. Os filhos de Gilda e de Jaqueline no aprenderam o ofcio. Zilda no teve
filhos e criou os dois sobrinhos, hoje rapazes, filhos de sua cunhada Izabel. O acesso
ao grupo domstico se d pela Avenida Fernando Ferrari, atravs de um estreito
beco, que se abre para um conjunto de casas de alvenaria muito prximas umas das
outras e onde no h mais espao para queima das panelas. Se, por um lado, o modo
de vida tradicional se manteve, pois essas casas confluem para um ptio de
convivncia e uso comuns, onde as irms Zilda, Gilda e Jaqueline primas
primeiras de Bernanci por parte de pai permaneceram confeccionando panelas; por
outro, elas no do mais conta de todo o processo de produo e vendem suas
panelas ainda cruas no queimadas por preos irrisrios430 a outras paneleiras,
principalmente as do galpo, num esquema de revenda. Sem espao para produzir
no galpo e se dizendo excludas da Associao431 trabalham para outros, seja no
estabelecimento dos filhos do Arnaldo, seja para alguma paneleira da Associao.

Territorialidades especficas: o quintal repartido e os usos do espao


430

O valor de uma panela sem queimar, reduz-se a menos da metade do seu valor. Justifica-se pagar
preos to reduzidos, porque se corre o risco de quebr-la na hora da queima.
431
Todas as entrevistadas afirmaram que houve um sorteio para ocupao das mesas de trabalho no
galpo. Nenhuma delas, porm, conseguiu explicar direito quais foram esses critrios. Bernanci e
Domingas (Iraci) afirmaram ser a falta de espao nos quintais. No entanto, verifica-se que esse critrio
no justifica totalmente tais escolhas. Voltarei a essa questo adiante quando me referir ao galpo da
Associao.

171

No entanto, Zilda revela que fazer panela para outros uma prtica antiga
entre as paneleiras. Lembra, inclusive, que, quando o pai vendeu parte do terreno,
sua me comeou a fazer panela em outras casas432. Mas, diferentemente da situao
atual, mantinha-se certa independncia, pois a artes era dona de todo o processo de
produo, inclusive, a queima, recebendo pelo dia de panela:
Arnaldo, Jenete, Melchiadia, entre outros. O pai e os irmos de
Elizete levavam de canoa. No tinha mais lugar onde queimar
panela, ento mame comeou a fazer na casa de outras
paneleiras. Falava para eu ir na casa de dona Melchiadia para
ver um dia de panela, ou da dona Lcia. A era pago esse dia.
Combinavam a quantidade de peas: caldeiro eram oito com
tampa; frigideira eram 12. Pagava um dia de panela. Ela ia para
a casa da Melchiadia e fazia esse dia de panela. Dali ela saa e ia
pra casa da dona Lcia, que na poca morava no mesmo trecho.
Depois, na casa de dona Mocinha (me de Marinete). Da casa de
mocinha, ia pra casa de tia Romancina (das antigas e que
tambm era parteira). Da casa de Romancina ia pra casa de vov
Dud - [me do pai de Zilda, Gilda e Jaqueline]. Depois, pra
casa de dona Orminda. Depois, casa de tia Maria.433

Para Hovenkamp (1992), a atividade econmica de confeco da panela de


barro apresentava todas as caractersticas do setor informal da economia.
Transcrevo abaixo resumo de sua tese, gentilmente enviado pela autora, para se
somar anlise deste trabalho. Segundo ela, a sua pergunta central formulada na
introduo da tese :
de que maneira so as paneleiras presentes no mercado de
trabalho informal e o que [quais] so as conseqncias desta
posio. Resultado que (na minha pesquisa) h dois tipos de
relaes de trabalho, a saber, as paneleiras que trabalham para
um dono e as paneleiras que trabalham para elas mesmas. As
paneleiras independentes so, ao contrrio das paneleiras que
trabalham para um dono, responsveis por adquirir a matriaprima com a lenha, o barro, o pinto [tinta], por todas as
despesas de trabalho, pelo processo de trabalho inteiro e pela
venda do produto. Ambos os tipos de paneleiras so pagas na
base da pea, ningum tem, na base de trabalho dela, direito da
432

Anlise seminal nesse assunto foi o da holandesa Hanneke Hovenkamp, cujo trabalho de campo em
Goiabeiras foi realizado no incio da dcada de 1990. Em sua pesquisa, Hovemkamp chama ateno para
duas modalidades de relaes de trabalho: as paneleiras que trabalham em outras casas, e aquelas que
trabalham em seus prprios quintais. Essa distino me foi indicada pela autora em texto em portugus.
Cf. HOVENKAMP, H. De paneleiras van Goiabeiras: pannenmaaksters op de informele arbeidsmarkt in
Vitoria, Brazili. Doctoraalscriptie Culturele Antropologie en Sociologie der niet-westerse
samenlevingen. Vrije Universiteit Amsterdam. Juni, 1992.
433
Depoimento gravado em novembro de 2007. APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de
referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.

172
previdncia social.434

A abordagem de Hovenkamp , sobretudo, econmica. Ela no s indica a


forma de pagamento em vigor (moeda-panela), como traz tona uma questo social
bastante importante e atual (os direitos trabalhistas). Mas aqui interessa aliar esse
dado s formas de transmisso do saber tradicional, tanto no mbito do quintal
domstico e de vizinhana, quanto no do galpo, onde, como se ver adiante,
mudam simultaneamente o modo de trabalhar, a forma de remunerar e o convvio
familiar ou de amizade. Entrar nas casas, lugar onde a atividade teve origem,
um elemento operacional necessrio para prosseguir a investigao.

No tempo das donas das panelas

Guedes explora com pertinncia a hierarquia interna dos quintais ao tomar


como referencial de anlise os ocupantes da casa original435. Ainda possvel
reconhecer essas casas antigas, em torno das quais se cristaliza a trajetria do
grupo domstico. Mesmo quando essa casa original j no existe mais, ela
permanece facilmente localizvel na memria de seus moradores. Em alguns
quintais, observam-se os seus alicerces, e, s vezes, ali que se monta a fogueira.
Alguns relatos sobre os quintais em Goiabeiras destacam o lugar ocupado pela
fogueira e a sua centralidade em relao ao espao reservado mesa de trabalho,
geralmente situada prxima a casa. Primeiramente, deve-se contrapor a intimidade
do cotidiano da casa sua unidade de consumo ao quintal sua unidade de
434

Vale observar que a autora no traduziu seu texto para outra lngua, tendo o mesmo permanecido em
holands, enviando-me o resumo em portugus que havia apresentado na ocasio de sua pesquisa, ou seja,
em 1992, para a Secretaria de Ao Social da Prefeitura de Vitria, aos cuidados da assistente social
Julimar. Preferi utiliz-lo na ntegra, fazendo apenas algumas poucas correes em negrito.
435
GUEDES, S. L. Redes de Parentesco e Considerao entre Trabalhadores Urbanos: tecendo relaes
a partir de quintais. Caderno do Centro de Recursos Humanos. Faculdade de Filosofia e Cincias
Humanas. Universidade Federal da Bahia. Salvador. n. 29; 1998, p. 189-208, p. 199.

173

produo, e, ao mesmo tempo, observar certa complementaridade entre esses dois


ambientes.
Na casa de Jenete Alves Rodrigues436 moram os filhos solteiros Lcio,
Moacir, Dbora e Henrique mas nem todos participam do processo produtivo.
Todos os sete filhos de Jenete completaram o ensino mdio, sendo que dois esto
concluindo a ps-graduao. Jamilda Alves Rodrigues Bento casada e trabalha
como bibliotecria no Centro Federal de Educao Tecnolgica do Esprito Santo
(CEFETES). Formada em histria e mestranda em educao, Jamilda afirma ter
aprendido o ofcio com sua me e av, e que parou de fazer panela quando passou
em seu primeiro concurso pblico, na Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos.
Desde ento, desempenha importante papel na articulao e divulgao das
manfestaes culturais dentro e fora da comunidade. de sua iniciativa a
revitalizao da banda de congo Panela de Barro, da Folia de Reis, da brincadeira de
Boi e das cantigas de roda. Henrique, o filho caula, tambm possui formao
universitria com ps-graduao. Hoje, ele trabalha como professor de ensino mdio
e no participa mais de nenhuma etapa do processo de produo das panelas de
barro.
Na casa ao lado de Jenete mora a sua me, dona Lcia Florinda do
Nascimento Corra437. Moram com Lcia o filho Jos e o neto Avelino, filho de
Jenete. Dona Lcia, com mais de noventa anos, j no faz mais panelas. Passa boa
parte do dia sentada em alguma parte do quintal da famlia, ou em um sof na
varanda da sua casa. Geralmente, fica acomodada em uma cadeira nos fundos,
prxima a porta da sua cozinha, que simtrica e frontal a da cozinha de Jenete. Ela
costuma observar o trabalho da filha, que se divide entre os afazeres domsticos e a
confeco das panelas de barro.
No quintal das famlias Nascimento e Alves Rodrigues, convivem trs
geraes de paneleiras. Justificam-se as aspas pelo fato de o filho de Jenete, Lcio

436

Viva de Avelino Rodrigues Neto, Jenete mora no quintal de seu av paterno. Hoje, ela cuida da sua
me, dona Lcia Florinda do Nascimento Corra, a paneleira mais velha de Goiabeiras, que reside em
uma casa ao lado da sua. APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e
grupo familiar a que pertence.
437
Dona Lcia filha de Telvina e Rogrio do Nascimento. Foi casada com Moacir Alves Corra e teve
cinco filhos. Suas filhas Gecy e Jenete aprenderam o ofcio de paneleira. Os filhos desempenharam
atividades formais no mercado de trabalho e hoje esto aposentados. APNDICE V - remeto ao quadro
sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.

174

Alves Rodrigues, desempenhar o ofcio junto com a me. Ele decidiu abandonar o
trabalho com peixe para se dedicar ao ofcio. Hoje, o nico que confecciona
panelas e outros produtos. Se a identidade de paneleira h muito se encontra
consolidada no imaginrio das mulheres da localidade, o mesmo no se pode falar
dos homens que trabalham na confeco das panelas de barro438.
Carla Dias tambm observou a presena de homens nessa atividade
eminentemente feminina, e tece algumas consideraes sobre esse fenmeno:
So alguns os fatores que levam os homens a ingressarem neste
fazer, de forma profissional, com dedicao exclusiva e no
somente como um trabalho extra praticado nas horas vagas: o
desemprego e a possibilidade de com as panelas, ter um ganho
regular, a autonomia no trabalho, sem ter que obedecer a
horrios e chefes e, tambm pertencer a uma famlia de
paneleiras 439.

Srie homens paneleiros/ artesos de fundo de quintal e do galpo.

Uma das formas de estudar a atividade produtiva desempenhada pelas


paneleiras e por seu grupo domstico examinar a ligao entre a distribuio do
espao interno dos quintais, "sua planta", e os fatos que ocorrem em cada "lugar".
Neste momento vou me deter na descrio das etapas do processo de produo do
artefato cermico panela de barro no quintal da paneleira Jenete Alves Rodrigues.
Ele servir como um modelo de anlise para aqueles quintais que mantiveram todas
as etapas de produo resguardadas: confeco, queima, armazenamento e
comercializao do produto.

438

Os homens preferem ser chamados de artesos, uma vez que paneleiro possuir outro significado em
Portugal: emprega-se o termo paneleiro para se referir opo homossexual masculina.
439
DIAS, op. cit., 1999, p. 105

175

Planta baixa do quintal da famlia Nascimento: esquerda, situa-se a casa de Lucia Florinda do
Nascimento Corra e direita a de Jenete Alves Rodrigues.

Jenete Alves Rodrigues vem de uma linhagem de paneleiras: avs, me e tias


trabalhavam em seus quintais em sistema de entreajuda440. Segundo Jamilda Bento,
os laos de afeto e solidariedade eram mais fortes naquela
poca. Basta lembrar que, na maioria das vezes, a paneleira que
ia queimar suas panelas sempre podia contar com a ajuda de
outras, as quais deixavam seus afazeres e se dirigiam para o
quintal daquela paneleira. No final da queima (fogueira), serviase um caf para todos que participaram da referida atividade.
Servia-se caf, polenta com coco, aipim cozido em gua e sal,
canjiquinha com coco, cuscuz, po caseiro, car... Era uma festa
ajudar na fogueira.441
440

O momento de ruptura desse modelo de reciprocidade entre as famlias parece associado diminuio
dos espaos de queima nos quintais. No entanto, observa-se que o sistema de ajuda est cada vez mais
circunscrito ao ncleo familiar, ou seja, entre mes e filhos.
441
Filha de Jenete Alves Rodrigues, Jamilda Alves Rodrigues Bento, 45 anos, afirma ter vivenciado esse
perodo, situando-o, segundo as suas lembranas, na 1970. Conforme visto, coincide com o processo de
crescimento e urbanizao do bairro. BENTO, J. A. R. Conhecendo as Benzedeiras de Goiabeiras

176

Srie mulheres paneleiras - continuidades e descontinuidades no ofcio

Desde o momento em que o barro deixado pelo caminho da prefeitura no


porto da paneleira, ele submetido a uma transformao real e simblica. Logo ao
ser recolhido, preparado para ganhar a plasticidade desejvel. As bolas so
molhadas e o escolhedor de barro comea a pisote-las, formando uma pasta
homognea. Essa funo exercida geralmente pelos filhos homens da casa, j que a
tarefa necessita de muito vigor. Depois de escolhido, o barro cortado, ou seja,
seccionado para ser armazenado no canto do barro, um tanque construdo para esse
fim e coberto com um plstico ou lona de caminho. No quintal de Lcia e Jenete, o
canto do barro localiza-se rente ao muro dos fundos, entre as duas casas, construdas
lado a lado, em centro de terreno, e que se comunicam pelas portas das cozinhas.
Em outros quintais o barro fica tambm armazenado em tanques prximo ao
muro, ou fica dentro de alguma caixa dgua, ou, ainda, atrs de alguma escada, em
baixo de algum alpendre. Enfim, o objetivo de se ter um canto do barro proteger a
matria-prima da chuva e deix-la pronta para o uso.

Locais onde se armazenam o barro - o canto do barro

Velha. Vitria, Esprito Santo: edies do autor, 2004, p.15.

177

Geralmente, o processo de produo envolve diversas etapas e tem por base


as senhoras paneleiras dos quintais, auxiliadas pelos filhos, filhas, netos e sobrinhos
que moram no mesmo terreno. Cada um desempenha uma funo na hora da
produo e da queima.
A fabricao das panelas acontece sempre do lado de fora da residncia da
paneleira, em ambiente prprio, que pode ser a varanda, ou mesmo um pequeno
galpo prximo a casa. No caso de Jenete e Lcio, esses costumam confeccionar
suas peas em uma mesa de madeira na varanda da casa, ou em outra mesa ao ar
livre, embaixo de uma mangueira em frente a sua casa.

A centralidade da mesa no processo de organizao produtiva das panelas nos quintais

Sobre essa mesa, a matria-prima e os poucos instrumentos de que


necessitam: uma faca, um arco, pedras de rio e um pedao de cuit442. Quanto
modelagem propriamente dita, costumam executar em p essa etapa da produo.443
Virar a panela para a raspagem e polimento final das peas podem ser feitos na
posio sentada.
Dona Jenete faz panelas e frigideiras de todos os tamanhos. Ela vende a sua
produo para dois restaurantes tradicionais de Vitria, o Partido Alto e o Piro,
ambos situados na Praia de Camburi. Em mdia, as encomendas chegam a cento e
cinqenta peas mensais. Quando os restaurantes interrompem os pedidos por
alguma razo, Jenete divide com sua tia Lucila a fabricao de cumbucas para uma
bombonire no aeroporto de Vitria. Tia e sobrinha vendem mensalmente cerca de
sessenta peas para essa bombonire, onde trabalha uma das filhas de dona Lucila
do Nascimento Corra.
442

Cf. DIAS, 1999, 2006; IPHAN, 2006.


Em relatos anteriores, assim como nas fotografias antigas, as paneleiras desempenhavam sentadas suas
funes. Somente Elizete Salles confecciona suas panelas sentada no cho da sua varanda. Como se ver
na prxima seo, todas as paneleiras do galpo trabalham em p. A postura em p agiliza a produo.
443

178

Observa-se que Lcio procurou se especializar nas formas que sua me e tia
no fazem. Prefere as peas grandes, como o caldeiro, o fogareiro e a
churrasqueira. Alm disso, possui a sua rede de clientes, que se restringe a pequenos
comerciantes e moradores do prprio bairro. Essa mesma autonomia no momento da
produo ampliada para a comercializao.
Dona Jenete desempenha as suas atividades domsticas nos intervalos da
produo. A rotina dos afazeres dentro e fora da casa parece no prejudicar o ofcio.
Ao acordar, sempre antes das sete horas da manh, Jenete reza o seu tero. Em
seguida, vai para a cozinha fazer caf. Os filhos hoje adultos tambm acordam cedo:
h os que saem para trabalhar e estudar e os que desempenham alguma funo
associada produo das panelas, conforme descrito anteriormente. Na casa de dona
Lcia, o filho Jos e o neto Avelino saem para trabalhar e, logo cedo, dona Jenete e
a filha Dbora se revezam nos cuidados com a matriarca da famlia. Dividem-se
tambm no preparo do almoo, na limpeza da casa e na lavagem das roupas. Nesse
meio tempo, caso tenha ficado alguma panela para virar ou passar a faca do dia
anterior, interrompe-se alguma dessas atividades anteriores. s vezes, dona Jenete
encontra-se no tanque e lembra que necessita mexer um pouco na sua produo. s
vezes, ainda, Dbora quem vira a panela para a sua me, ou ento passa a pedra de
rio (alisa), deixando-as pronta para a queima.
Geralmente, a ajuda se inicia na etapa seguinte modelagem, no momento de
alisar ou passar a faca. A ajuda em uma ou outra etapa da confeco, como virar a
panela e passar a faca no fundo, alisar, ou ainda tirar panela da fogueira e
aoitar considerada parte do processo de socializao no ofcio, porm etapa
secundria do processo produtivo. As crianas comeam nas etapas consideradas de
iniciao ao ofcio, como alisar panela444, mas nem todos sentem a inclinao
para dar seqncia ao aprendizado, sendo percebido como um dom que a criana vai
manifestando no contato com o dia-a-dia dos familiares que fazem panelas,
observando e assimilando tcnicas, posturas e valores445. Lcio ajuda na limpeza do
444

Etapa do polimento com seixos de rio. Para descrio detalhada das etapas de confeco, ver: Dias,
1999; 2006.
445
A idade mdia de iniciao ao ofcio aos doze anos, quando a menina ou o menino aprende a
levantar a panela. Izabel fala sobre seu neto: Esse menino aqui j comeou a fazer. Se eu for levar ele
adiante [...] Eu gosto que ele aprenda. Sabe, ele j pega direitinho, j alisa a panela todinha. Acho que ele
tem mo de paneleira, mesmo. A pessoa quando tem a tendncia pega a cuia direitinho. Se eu for colocar
para fazer direto, ele pega direitinho. Entrevista gravada em novembro de 2006.

179

quintal: varre o terreiro, separa as madeiras num canto, ou liga o radinho e vai para a
sua mesa de trabalho na frente da casa. As mesas de trabalho tambm circulam
pelo quintal. s vezes, as mesas de me e filho esto lado a lado; outras vezes, dona
Jenete coloca a sua mesa mais prxima a casa de sua me, porque assim fica mais
fcil prestar-lhe algum auxlio. Prefere, ainda, utilizar a mesa mais prxima de sua
cozinha, pois assim consegue vigiar o fogo e assistir sua me. Aguar as plantas
e cuidar dos animais de estimao tambm incumbncia das duas mulheres
ativas da casa. Os gatos convivem pacificamente com o co Mustaf, que sempre
est aos ps de sua dona. E quando chega alguma pessoa no porto, mesmo sendo
conhecida, os latidos podem ser ouvidos de longe.
pela manh que as atividades da casa se concentram nessas unidades
domsticas. Aps o almoo e arrumada a cozinha, retoma-se alguma etapa da
produo. Nos dias de queima, a preferncia de comear a montar a cama e atear o
fogo na cabeceira da fogueira bem antes de anoitecer, porque noite fica mais
difcil perceber quando a panela est cozida.
At muito recentemente, era Moacir quem costumava tirar as panelas da
fogueira, mas, agora, como trabalha e estuda, s pode desempenhar essa funo nos
finais de semana. Passou para Lucio, portanto, a incumbncia de tirar da fogueira a
produo conjunta das panelas, enquanto que Jenete aoita em companhia da sua tia
Lucila.

Cama de panela e queima de panela

Aps a queima e aoite das peas, necessrio esfriar as panelas para separar
a produo de cada um e embalar em papel jornal. Enquanto as panelas esto
resfriando, prepara-se na cozinha um caf preto com po francs e manteiga. Nesse
momento de descontrao quando as pessoas conversam sobre o dia-a-dia de

180

Goiabeiras, principalmente se ocorre alguma novidade. O assunto pode tambm


voltar-se para alguma encomenda ou comprador. Ou ainda relacionar-se a rotina das
pessoas que ali residem. Terminado o caf e embaladas as peas, dona Lucila
aguarda o carro do cunhado que transporta as peas at a sua residncia no morro
Boa Vista.

No quintal dos Nascimento: depois da queima, o caf com po da tarde

No quintal de Conceio Barboza, cunhada de Ilza e sua vizinha, os filhos


Ivonei, Jucileida, Jucilia e Ipojucam Barboza so os responsveis pela produo
artesanal desse grupo domstico. Observou-se a mesma rotina na diviso das
atividades domsticas (sob a responsabilidade da me e das filhas) e nos papis
desempenhados por cada um no processo produtivo e na comercializao da
produo, mas sem concorrncia entre me e filhos.

No quintal de Conceio Barboza: me e filhos na produo das panelas

A mesma relao de produo observada em dois outros quintais. Com


dona Melchiadia, o filho Ademilson faz as peas consideradas diferentes, como as
travessas em forma de peixe, ou o cofre em formato de porco. Enquanto Melchiadia
e Alceli (me e filha) preferem as panelas e frigideiras. Ademilson o tirador de

181

panela, enquanto Alceli, Melchiadia e, eventualmente, Alcilene aoitam as panelas.

Melchiadia prefere as frigideiras; j Ademilson as formas diferentes

No quintal dos Ribeiro, Lenis Ribeiro, filho de Margarida Lucidato


Ribeiro, quem faz as peas consideradas menos tradicionais. Ele diz seguir o
modelo solicitado pelo cliente, podendo ser uma travessa quadrado, uma frma de
pizza, uma luminria ou, ainda, qualquer novo repertrio cermico em que o cuit,
cabaa cortada em quatro partes, deixa de ser utilizado como instrumento de
modelagem. Lenis disse utilizar a mente e a mo para dar forma a esses objetos
incomuns, ou seja, que se distinguem em formato e funo das tradicionais
panelas, frigideiras e caldeires produzidos h muito tempo na localidade.

Srie mente, mo e objetos incomuns.

Esses objetos pouco convencionais que desafiam mos e mente no processo


de confeco costumam se quebrar com mais facilidade na hora da queima. Tais
perdas justificam-se pelas alteraes na superfcie e no volume dos mesmos,
variando o tempo em que permanecem na fogueira. Em algumas unidades
domsticas, a queima feita pela manh bem cedo ou no final da tarde. No
aconselhvel queimar panela noite, pois no se sabe exatamente quando o objeto
cermico est pronto para ser retirado da fogueira. Na hora da queima, os filhos
homens geralmente desempenham a funo de tirador de panela. Nos Barboza,

182

Ivonei o tirador, enquanto Jucileida, Jucilia e Conceio aoitam as panelas; cada


um desempenha uma funo na queimada. No entanto, pude presenciar uma
queimada sem Ivonei. A explicao para a sua ausncia era a de que ele s tira [da
fogueira] quando est queimando peas dele. Portanto, o sistema de entreajuda est
atravessado por certos condicionantes ligados autonomia da produo da paneleira
(o). Nesse caso, outros filhos podem desempenhar essa funo, como no caso de
Jucileida, que exerceu essa funo para a me aoitar. Eventualmente, o filho que
alisa panela pode vir a tir-la da fogueira.

Srie quintais de lenha: variaes na funo de tirador.

A ajuda que se manifesta nas etapas auxiliares alisar, virar, queimar e


aoitar e nas etapas preliminares escolher e cortar o barro organiza a produo
nos quintais. Como diria dona Ilza Barboza: assim e foi assim. A Margarida com
a turma dela, com a famlia dela, a Conceio com os filhos... como sempre foi nos
quintais. Mas agora quem no tem famlia, que estou vendo que tem essas pessoas
l... [referindo-se ao galpo]446. A minha entrevistada disse-me, ainda, que as
mulheres sempre foram mais estimuladas a seguirem a tradio das panelas,
enquanto os homens desempenhavam papel coadjuvante em outras etapas do
processo produtivo, etapas essas consideradas mais pesadas para a mulher. Para dar
continuidade ao ofcio de sua me e av, Ilza precisou transmiti-lo para a sobrinha
Snia e a prima Valdelicis. Nesse sentido, continuidades e descontinuidades no
processo de transmisso do ofcio mereceram, ao longo desta pesquisa, um olhar
mais detido, e os casos das famlias de Ilza Barboza e de Elizete Salles pareceramme paradigmticos para discutir o sistema de alianas acionado pelos quintais.

446

Entrevista gravada no quintal de sua casa, em novembro de 2007.

183

Ilza dos Santos Barboza447 mora em casa de frente de terreno, com seu
marido e filho. Suas sobrinhas Rogria e Snia, filhas de sua irm Teresinha
Barboza, residem com seus respectivos maridos e filhos em outra casa de dois
pavimentos, localizada na parte de trs do terreno.

A mesa de trabalho no quintal: poucos compradores e pequena produo

No que se refere ao processo produtivo das panelas de barro em seu quintal,


Ilza diz contar com a ajuda do marido, hoje aposentado, em vrias etapas: escolhe o
barro, alisa panela e tira panela da fogueira para ela aoitar. Seu Waldir tambm o
responsvel pela limpeza do quintal, varrendo-o constantemente, ou arrumando a
lenha para a queima das panelas ou, ainda, fazendo alguma benfeitoria no interior e
exterior da casa. O filho Cleberson, aps concluir o ensino mdio, preferiu trabalhar
no comrcio. As razes alegadas para o seu desligamento do processo produtivo
resumiram-se ao fato de ser filho homem e de no possuir vocao para o ofcio.
Mas esses quintais familiares no so meros espaos de produo e
reproduo de um modo de fazer artesanal. Apresentam uma vasta mistura de
atividades sociais. Neles, as crianas brincam e acompanham toda a manufatura da
cermica, iniciando-se nessa atividade atravs da convivncia com os mais velhos
ou mesmo atendendo a demandas de ajuda; as famlias renem-se ali tambm para
conversar, comemorar e se divertir.
Ilza Barboza revela sempre promover algum tipo de reunio em seu quintal:
aniversrio, festa junina, Natal ou Rveillon, no importa a data, nem o motivo da
comemorao. Na ltima festa junina que organizou, seu quintal transformou-se em
um verdadeiro arraial. Ficou todo embandeirado e iluminado, dando-lhe a impresso
447

Casou-se com Waldir Chaves Barboza, uma pessoa considerada de fora de Goiabeiras, e foram morar
no quintal do pai de Ilza. Tiveram um nico filho, que no aprendeu o ofcio. APNDICE V - remeto ao
quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que pertence.

184

de criar um outro cenrio, segundo o seu relato. Todos vestem trajes de caipira e
danam quadrilha, forr e outros ritmos populares. A sua mesa de trabalho, nessas
ocasies, deslocada para outro canto. O lugar ento ocupado por alguma
barraquinha, ou brincadeira, como a a pescaria na areia, por exemplo, em que as
crianas tm que conseguir pegar os peixes, ganhando diferentes brindes tudo de
graa, afirma.
Nessas ocasies, est sempre presente o pessoal de casa. Tudo planejado
com muita antecedncia. Ilza revela tambm que em suas festas sempre h muita
fartura de comida. A proximidade com as sobrinhas e cunhada permite que dividam
as tarefas da organizao da festa, principalmente no que se refere ao preparo dos
pratos tpicos; cada uma fica responsvel por uma coisa: Rogria cuida do caldo
verde; Snia, da canjica; ela, Ilza, do mingau; sua irm e sua cunhada trazem outros
quitutes: uma faz o bolo, a outra o p-de-moleque. Sua habilidade de paneleira
tambm se manifesta nessas ocasies: para dar conta da comilana, s vezes so
produzidas cumbucas especialmente para o consumo dos caldos. Alm disso, uma
boa fogueira no pode faltar.
As festas, pela transformao visvel operada no espao de trabalho,
caracterizam de modo mais evidente no s as diferentes possibilidades de uso e de
dinmica de ordenao do local como o seu papel comunitrio propriamente dito.
Pode-se, ainda, fazer referncia ao hbito cotidiano de ficar sentada na varanda,
conversando com a sua irm e a sua comadre, enfim, explorar esses mltiplos
cenrios dos quintais de Goiabeiras e de como o espao redefinido em funo do
uso social a que se destina.

Festa Junina e roda de Congo no quintal de Ilza Barboza (acervo Ilza Barboza)

185

Procurei descrever o processo de produo nos quintais, seus principais


executores e ajudantes, todos ligados por estreitos laos de parentesco, enfatizando
as hierarquias de posies e de lugares. Compreend-los enquanto espaos sociais e
traduzi-los em formas organizativas que orientam as aes dos agentes sociais, foi
meu objetivo. Contrapor esse modelo ao da Associao, tentando compreender
atravs da estrutura da produo as razes de uma apropriao desigualmente do
registro do ofcio o que me proponho nas prximas sees deste captulo
principalmente, nas discusses sobre as medidas propostas para salvaguard-lo, dado
que as oficinas de cooperativismo propostas pelo IPHAN, em 2006, no surtiram
o efeito esperado. Ao contrrio, geraram conflitos dentro do grupo do galpo da
associao e no uniu as paneleiras de fundo de quintal em torno de um bem
coletivo. A construo de polticas de salvaguarda consistentes constitui o maior
desafio para os gestores pblicos como mediadores culturais.
Em entrevista com Jamilda Alves Rodrigues Bento, gravada no quintal da
famlia de sua me, foram levantadas algumas razes para que o processo de
associativismo no galpo no tenha funcionado.
O que eu percebo, o que eu acho que a prpria cultura, essa
autonomia que as paneleiras sempre tiveram em estarem em
seus quintais, terem os seus prprios compradores, ela no foi
rompida quando se decidiu fazer uma associao. Ento, o que
aconteceu? Juntou-se um nmero de pessoas num galpo e o
processo continua sendo o mesmo. Eu estou aqui no galpo,
questo de espao fsico, porm os meus compradores so os
meus compradores, e se vier uma encomenda de duas mil
minha, eu vou dar pra quem eu quiser. E a, tem at uma certa
dificuldade da diretoria pra romper com isso, porque as pessoas
que esto l, a diretoria, no conseguiu romper com isso
tambm. [...] Isso no mudou. Continua fundo de quintal. Por
qu? A metodologia a mesma, a dinmica a mesma e o
processo o mesmo. Porque eu tenho os meus compradores e a
de voc se ficar oferecendo as panelas ao meu comprador. Se eu
no tiver, talvez eu indique pra voc. Ento tem isso. At
algumas brigas j aconteceram no galpo por conta dessas
coisas. Ento, as paneleiras continuam trabalhando no fundo de
quintal, mesmo estando no galpo, porque no mudou. A
mentalidade, a cultura no mudou. um quintal grande.448

448

Entrevista gravada com Jamilda Alves Rodrigues Bento, sua me Jenete e av Lcia ambas
paneleiras no quintal da famlia Nascimento, em maio de 2005.

186

Ricardo Lima, ao analisar a experincia de associativismo dos ceramistas do


Candeal, em 1998, relata a construo de uma idia de grupo, diferente do modo
anterior de organizar a produo, em que as mulheres modelavam suas peas
isoladamente no ambiente domstico449. Observa-se, portanto, semelhanas no
desempenho dessa atividade no que tange a produo nos quintais. A experincia da
Associao do Candeal recente, quando comparada de Goiabeiras, organizada na
dcada anterior. A experincia de Goiabeiras na dcada de 80 era tambm
coletivizada, demandava da prefeitura um espao local aonde todas pudessem fazer
panela. No entanto, nas dcadas seguintes, as relaes dentro da associao
tornaram-se cada vez mais individualizadas na produo e na distribuio.

5.2. Associao das Paneleiras de Goiabeiras: tradio, produo e mercado


Os problemas que Vitria enfrenta para expandir sua malha urbana criam
impasses de ordem socioambiental. A problemtica enunciada no captulo anterior
sobre a disputa entre a administrao pblica do Estado, atravs da Companhia
Esprito-Santense de Saneamento (CESAN), e a Associao das Paneleiras de
Goiabeiras pelo uso dos recursos naturais da jazida de barro do Vale do Mulemb
tornou-se paradigmtica nesse sentido. Sob esse prisma, a criao de uma associao
tambm serviu de instrumento de presso poltica contra a implementao do aterro
sanitrio no barreiro, fonte nica e tradicional de matria-prima.
A atividade de confeccionar panela de barro, como j sublinhei, faz parte do
cotidiano de muitas famlias moradoras da localidade de Goiabeiras Velha.
Caracterizada, nos tempos da memria social local, como uma forma de organizao
social produtiva antiga, disseminada para um nmero crescente de executantes e
transmitida no convvio dirio com o grupo familiar atravs de geraes, a panela de
Goiabeiras qualificada seja pela populao local, seja pelas instituies nas reas
da cultura e das pequenas empresas, seja nos programas tursticos, como produto de
tradio450. O modo de produo artesanal da cermica utilitria na localidade de
449

LIMA, R. G. O Povo do Candeal: sentidos e percursos da loua de barro. Tese de Doutorado.


Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2006, p. 104,
105.
450
Vale lembrar que nos apropriamos do termo tradio enquanto um conjunto de prticas sociais e
culturais presentes que se reproduzem por meio do trabalho e do poder de recriao de seus agentes.

187

Goiabeiras Velha era, como vimos, inicialmente, organizado nos antigos quintais e
passou por alteraes significativas, em finais da dcada de 1980, com a criao da
Associao das Paneleiras de Goiabeiras.
As transformaes relacionadas ao espao de produo, ao tempo e ao
processo de trabalho sero descritas a seguir. Antes, porm, procuro situar essas
mudanas materiais e simblicas do processo produtivo das panelas no contexto
mais amplo de polticas de instituies federais e estaduais, ligadas produo
cultural.
Em meados da dcada de 1970, o Centro Nacional de Referncia Cultural
desenvolvia uma srie de programas de apoio s comunidades produtoras de
artesanato tradicional, com o intuito de atender s necessidades econmicas e
sociais

de

referenciamento

do

produto451.

Crescia

entendimento

dos

administradores e gestores pblicos de que o artesanato gerava renda para seus


produtores, afirmava as identidades culturais locais, produzia divisas para o pas j
que se tratava de um produto com fortes caractersticas culturais , ajudava a frear a
migrao campo-cidade, dentre outros benefcios na gerao de emprego e renda.
Na dcada de 1980, a orientao do Instituto Nacional de Folclore (INF/
FUNARTE) era mapear a diversidade de materiais e de tcnicas empregadas no
artesanato brasileiro atravs de pesquisa etnogrfica. Uma das primeiras iniciativas
desse Instituto, em cobrir esse vasto panorama de produo artesanal, foi o Projeto
Artesanato Brasileiro divulgado pela publicao Artesanato brasileiro, cuja primeira
edio data de 1978, reimpresso em 1980. Esta obra foi dividida em captulos
referentes aos materiais e tcnicas empregados. No captulo reservado cermica
tradicional, existe referncia cermica utilitria do Esprito Santo, com foto452,
451

CENTRO NACIONAL DE REFERNCIA CULTURAL. Bases para um Trabalho sobre o


Artesanato Brasileiro Hoje. Braslia, SCN, s/d. Ainda segundo esse mesmo documento o Centro
Nacional de Referncia Cultural um organismo, ligado ao Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional e que tem como objetivo principal a anlise da dinmica cultural brasileira e o seu
referenciamento.
452
Jarro e bacia peas em cermica utilitria, escurecida atravs da utilizao de sucos e cascas
naturais. Goiabeiras Vitria Estado do Esprito Santo Fundao Nacional de Arte. Artesanato
brasileiro. 2a ed. Rio de Janeiro, 1980, figura n. 23, p. 43. Nas minhas idas a campo, entre 2005 e 2007,
no observei a produo de jarro, mas somente frigideiras, panela de arroz, cumbuquinha para feijoada ou
caldo, caldeiro, assadeira, travessa, travessa com detalhe de peixe, telha para peixe assado, forma para
pizza, fogareiro, churrasqueira e cofre. Como todo bem de natureza processual, observa-se que novos
repertrios vo sendo incorporados, enquanto outros abandonados. Um bom exemplo o novo catlogo
produzido pelo Artesanato Solidrio, em agosto de 2007, em que ao lado dos produtos tradicionais,
como a frigideira, a panela ou o caldeiro, so encontrados produtos diversos, tais como: casquinha de

188

considerada uma das principais expresses artesanais do pas.


No mbito estadual e municipal, incorporou-se o mesmo discurso produzido
pelos rgos de governo federal, no campo de ao de uma poltica nacional de
artesanato e de gerao de renda, que recomendava a valorizao do artesanato
regional como smbolo ou ndice de construo identitria, como o comprovam
algumas matrias de jornais da dcada de 1980453:
Paneleira amassando o barro est cada vez mais difcil. No
Esprito Santo, desde que se fala em artesanato, todos os rgos
pblicos responsveis nunca primaram por uma poltica sria de
apoio ao arteso local [...] a Secretaria de Bem-Estar Social
quem tem a obrigao do desenvolvimento do artesanato, pois
ela quem recebe dividendos do Programa Nacional do
Desenvolvimento do Artesanato (PNDA) [...] Basicamente na
promoo social do arteso seria de incio necessrio o apoio de
assistentes sociais, tcnicos em artesanato, locomoo para
venda e fornecimento de matria-prima em alguns casos, preos
mais reduzidos e formas cooperativas [...] A soluo sempre foi
a do poder executivo, realmente interessado em resolver o
problema e compreend-lo como atividade cultural e social454.

Nesse contexto de valorizao da produo artesanal, a constituio da


categoria profissional paneleira foi sendo apropriada pelas prprias artess de
Goiabeiras como um modo de distino social455. , portanto, nesse perodo que as
lideranas locais vo se estruturando no sentido de reivindicar mercado e melhores
condies de trabalho, como se evidencia no depoimento de Melchiadia Alves
Corra:
verdade que a gente no tem conduo e difcil o transporte
das panelas at a feira, mas, no final, o lucro compensa o
sacrifcio. Nesta feira eu vendi mais de 300 peas e estou
satisfeita [...] A gente precisa de um galpo, barro e lenha.
siri, pimenteira com tampa e rchaud.
453
O consciente ofcio de quem mantm viva a arte regional. A Tribuna, 21 set. 1980, Vitria,
Esprito Santo; Artesanato e Panela de Barro. A Gazeta, 25 maio 1983; A Tradio das Paneleiras
de Goiabeiras est morrendo. A Gazeta. Vitria, 16 abril 1985, Cad. DOIS.
454
Artesanato e Panela de Barro. A Gazeta, 25 maio 1983.
455
Nos estudos sobre artesanato, a produo da cermica utilitria considerada uma atividade
eminentemente feminina. A participao do homem nesse sistema restringe-se ajuda nas tarefas
consideradas mais difceis. Cf. IPHAN, 2006. No entanto, algumas pesquisas etnogrficas demonstram o
carter complexo dessa diviso do trabalho por sexo. Ricardo Lima (2006) verificou em sua pesquisa de
campo a presena de homens na modelagem da cermica no Candeal. Cf. LIMA, R. G. O Povo de
Candeal. Sentidos e percursos da loua de barro. Tese de doutorado. PPGSA/ IFCS/ UFRJ, 2006. Carla
Dias tambm verificou em Goiabeiras Velha a crescente participao dos homens na produo. Cf. DIAS,
C.C. Panela de Barro Preta: a tradio das paneleiras de Goiabeiras. Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad
X/ Facitec, 2006. No perodo em que fiz meu trabalho de campo em Goiabeiras Velha, pude constatar a
crescente presena masculina na etapa da modelagem.

189
Ensinar pessoas a fazer panela eu j ensinei a muitas456.

A dinmica nas relaes sociais de produo, provocadas, por um lado, por


todo esse processo de ampliao da demanda pelo produto e, por outro, pele perda
dos espaos de queima, gerou conflitos nas diferentes redes sociais de paneleiras,
principalmente de ordem geracional, sobre o saber fazer:
At seis anos atrs no se falava muito nas panelas. Havia
poucos compradores e a produo era bem menor. Desta forma,
as pessoas tinham mais tempo para trabalhar melhor o barro.
Com a grande divulgao que se fez sobre nosso trabalho, a
procura aumentou muito e as paneleiras acabaram no tendo
estrutura para enfrentar o grande nmero de pedidos. Isso
coincidiu tambm com o perodo de aprendizado por parte da
nova gerao. Como a procura aumentou muito, as novas
paneleiras no tiveram tempo suficiente para aprender melhor o
servio. Por isso, essas primeiras panelas que esto fazendo no
podem ter a mesma qualidade das que ns, as paneleiras mais
antigas, fazemos (Idem).

O mapa genealgico das famlias mais uma vez ajuda a compreender as


posies centrais no sistema produo-distribuio-consumo das panelas de barro de
Goiabeiras. A produo de panela nos quintais sempre se estruturou em torno do
saber fazer da mulher mais velha responsvel pela reproduo do grupo domstico.
A anlise dos diagramas me permitiu verificar a posio das trs famlias que hoje
esto concentradas no espao da Associao das Paneleiras de Goiabeiras.

Gente antiga de Goiabeiras: dona Orminda Lucidato e dona Enedina com filha e sobrinha.

Floripis Alves457 casou-se com Viriato Corra e tiveram nove filhos:


456

A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras est morrendo. A Gazeta. Vitria, 16 abril 1985,
Caderno DOIS.
457
Segundo Chaia e Dantas (2002), Floripis Alves era mestia de ndios e africanos, nascida em
Goiabeiras, em 1899, e falecida aos 72 anos, em 1971. Cf. CHAIA; DANTAS. Panela de Barro. Raiz
da Cultura Capixaba. Vitria: Secretaria de Estado de Turismo, 2002, p. 5, 11.

190

Domingas, Eudxio, Antnio, Oswaldo, Leocdio, Geny, Moacir, Maria e


Melchiadia. Naquela poca, Floripis fazia panela com suas filhas e queimava em
frente de sua casa e Viriato era caranguejeiro (catava e vendia caranguejo). A
distribuio-circulao das panelas para os mercados da Vila Rubim e adjacncias
era funo dos homens dessa famlia, que saam de canoa para comercializ-las para
o seu grupo familiar.
Isabel Alves Lucidato e Galdncia da Vitria tambm constituram
importantes linhagens de paneleiras em Goiabeiras Velha. O quintal dos da Vitria e
o dos Lucidato, situados um em frente ao outro e ambos, hoje situados na Rua Jos
Alves, tm na figura de Adelina Rosa da Vitria um elo. Filha de Isabel Lucidato,
Adelina casou-se com Oswaldino Corra da Vitria, filho de dona Galdncia da
Vitria. Desta unio nasceu dona Domingas Corra da Vitria Fernandes (Iraci), a
paneleira mais antiga do galpo da Associao na ocasio da minha pesquisa de
campo. A linhagem de Domingas uma das mais fortes no galpo da associao,
pois l encontram-se representados as filhas e filhos, netas e netos dessa anci.
Melchiadia Alves Corra da Vitria Rodrigues458, filha de Floripis, lembra-se
do tempo em que era freqente a ajuda na fogueira entre as comadres, irms,
sobrinhas e filhas, configurando formas de solidariedade bastante eficientes para as
dinmicas do trabalho desses grupos familiares. Aps a queima e o aoite das peas,
etapas finais de todo o processo, as mulheres lavavam suas mos em uma grande
bacia de alumnio, refrescando-se depois de enfrentarem o calor da fogueira e a
dona das panelas 459 servia um caf com polenta para as paneleiras ajudantes de
fogueira. Nesse momento eram reafirmados os compromissos de entreajuda, quando
as outras paneleiras fossem queimar em seus quintais.

458

APNDICE V - remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que
pertence.
459
Ouvi essa expresso com Berencia Corra Nascimento ao narrar o mesmo sistema de entreajuda
quando trabalhava no quintal da sua tia Melchiadia, que tambm aparece registrada pela pesquisadora
Holandesa Hanneke Hovenkamp. Cf. HOVENKAMP, H.. De paneleiras van Goiabeiras:
pannenmaaksters op de informele arbeidsmarkt in Vitoria, Brazili. Doctoraalscriptie Culturele
Antropologie en Sociologie der niet-westerse samenlevingen. Vrije Universiteit Amsterdam. Juni, 1992.

191

Domingas, a paneleira mais velha do galpo, e Lcia, a paneleira mais velha de Goiabeiras.

Em meados da dcada de 1980, Melchiadia e suas companheiras de fogueira,


Laurinda, Palmira, Silvana e Iraci (Domingas) alm de outras senhoras de meiaidade ao sentirem os primeiros sinais de desgaste na produo dentro de seus
quintais, seja pela perda dos espaos, seja pelos problemas de aquisio dos insumos
bsicos, articularam-se no sentido de reivindicar dos poderes pblicos do municpio
de Vitria460 algum tipo de apoio oficial para garantir a continuidade da atividade.
V-se, portanto, que a criao da Associao das Paneleiras de Goiabeiras,
em maro de 1987, surge em um contexto de mobilizao em funo de um conjunto
de demandas muito centrais para o grupo, tais como: construo de um galpo para
abrigar as paneleiras que haviam perdido os espaos dos quintais; melhorias nas
condies de transporte da argila e maior divulgao do artesanato em feiras e
eventos. As reivindicaes do grupo objetivavam garantir a continuidade da
produo e a atender ao crescente nmero de encomendas.
Dias (1999), ao reconstituir a histria da Associao, situa a luta pelo
barreiro como um marco para a inveno desta tradio. Segundo a autora, o
barreiro passou a representar o processo pelo qual as mulheres buscavam a
legitimao ancestral do seu fazer461. Da organizao e mobilizao dos anos
460

Conforme visto, num momento em que esto sendo construdas as narrativas sobre o
desenvolvimentismo no pas, crescem os debates sobre os incentivos do poder pblico na promoo da
pequena produo artesanal, na fixao do homem a terra e valorizao do trabalho. As demandas das
paneleiras tiveram o apoio das Secretarias de Ao Social e de Trabalho. (Cf. DIAS, 1999, 2006;
PEROTA, 1997).
461
DIAS, C. A tradio nossa e essa, e fazer panela preta: produo material, identidade e
transformaes sociais entre as artess de Goiabeiras. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro,
UFRJ/EBA, 1999, p. 112.

192

iniciais vieram importantes conquistas. Os grupos familiares que permanecem


frente da Associao, desde a sua fundao, conseguiram junto Prefeitura
melhorias nas condies de trabalho, como o transporte em caminho da argila do
Vale do Mulemb e a construo de pequenos depsitos em alvenaria situados
beira do mangue para abrigar matria-prima e peas acabadas. Dias descreve com
surpresa a maneira acelerada com que essas mulheres foram se apropriando do
espao. Da sua primeira visita, onde havia somente os cmodos462 e as mulheres
mais velhas trabalhando em seu interior, aquelas mesmas senhoras de meia-idade
identificadas acima, converteu-se um ambiente de burburinho marcado pela
ocupao do ptio com toscas bancadas de madeira, sobras da Festa que ali
ocorrera dias antes.463 Em 1991, por meio da Lei Rubem Braga464, e com o apoio da
Vale do Rio Doce, conseguiram ampliar o espao e a expanso do galpo, onde
atualmente concentram-se as atividades. Alm de institurem no calendrio turstico
da cidade a festa das paneleiras, o selo de autenticidade e o dia das paneleiras,
indicados anteriormente. Em vinte anos, a associao adquiriu uma posio de
destaque junto ao poder pblico local e as empresas privadas, firmando-se como o
principal grupo de artesos da Grande Vitria. Esta colocao no mercado de bens
simblicos no se configurou de repente, mas em um processo gradual que levou a
reestruturao da organizao social e produtiva dentro do galpo.

5.2.1. Aqui ns todos somos individuais


Em maio de 2005, estive pela primeira vez no bairro de Goiabeiras Velha. Na
chegada localidade, algumas poucas placas indicavam a direo para o galpo da
Associao das Paneleiras de Goiabeiras, situado beira do mangue, no antigo porto
por onde se escoava a produo de panela de barro. Paneleira aquela pessoa que

462

Hoje, nem todas as paneleiras e artesos do local tm acesso a esses depsitos. Inicialmente reservada
s fundadoras da associao, hoje, a estocagem de produtos acabados est condicionada ao pagamento
mensal de R$ 5,00 (cinco reais).
463
Panela de Barro Preta: A Tradio das Paneleiras de Goiabeiras - Vitria-ES. Rio de Janeiro: Mauad
X/ Facitec, 2006, p. 17.
464
Criado em 1991, o Projeto Cultural Rubem Braga concede, s empresas estabelecidas no municpio
que realizem investimentos nos projetos culturais por ela aprovados, descontos nos incentivos fiscais.
http://www.cultura.gov.br/apoio_a_projetos/lei_rouanet/index.php?p=16835&more=1&c=1&pb=1

193

domina todas as etapas de confeco da panela de barro465. tambm a figura


central em cada um dos postos de trabalho no galpo.
Minha chegada ao galpo no representou grandes alteraes de rotina nem
fez necessrias quaisquer apresentaes prvias, por ser esse um local de trabalho e
de acesso pblico466. Durante o meu tempo de permanncia naquele espao, preferi
me localizar na parte de trs para melhor observar a dinmica de trabalho das
pessoas e a circulao dos clientes467. Alm disso, passava tambm em cada mesa de
trabalho com o intuito de anotar os dados pessoais das paneleiras, a que famlias
pertenciam, a diviso das tarefas naquele ambiente, a preferncia por alguma etapa
do trabalho468, a venda das panelas refletida na clientela fixa e em turistas que
visitavam o galpo, a relao com as demais paneleiras, alm de alguns aspectos
sobre o fazer469. Assim, aos poucos, fui encontrando o meu lugar.

465

Segundo as definies nativas, paneleira aquela pessoa que vai ao barreiro e retira o barro, leva para
casa, prepara o barro, faz a panela, vira, alisa, queima e comercializa a panela. As formas tradicionais
produzidas e comercializadas na localidade de Goiabeiras se resumem, basicamente, na panela, destinada
ao preparo do arroz e do piro; na frigideira para a moqueca de peixe e de frutos do mar; no caldeiro
para o feijo e na assadeira para tortas, carnes e assados em geral. Alm disso, com o aumento da
demanda pelo produto, houve uma ampliao do repertrio de formas, dos usos e significados atribudos a
esses objetos. Cf. PEROTA, op.cit, 1997; DIAS, op. cit., 1999, 2006.
466
O IPHAN refere-se ao galpo como a vitrine do ofcio Cf. IPHAN. Ofcio das Paneleiras de
Goiabeiras. Braslia: IPHAN, 2006, p. 25.
467
No abordarei aqui a circulao de clientes no espao do galpo. Nesse sentido, fao referncia ao
estudo de Eliseo Veron sobre pblico de exposies, bem como de sua construo tipolgica de
circulao pelos espaos expositivos. Fazendo um pequeno paralelo, observou-se, no caso do galpo, que
muitos clientes param de mesa em mesa. Outros, j vo direto para a mesa de alguma paneleira. Outros
ainda circulam sem muita sistematicidade, indo em ziguezaque e parando quando lhes convm. Cf.
VERON, E.; LAVESSEUR. M. Ethnographie de L'exposition: l'espace, le corps e le sens. Paris: Centre
Georges Pompidou, 1989.
468
Muitas paneleiras informaram-me sobre suas preferncias pela confeco de determinadas peas, ou
determinada etapa da confeco. A paneleira Eronildes disse gostar de fazer o acabamento das peas,
etapa de virar a panela e tirar os excessos de barro do fundo e das laterais, por isso acredita que suas
peas so mais finas e bem acabadas. Disse tambm gostar de vender as panelas, por ser comunicativa e
por transmitir segurana (referindo-se ao produto) ao cliente. J a sua irm Evanilda prefere queimar e
aoitar as peas. Essas preferncias marcam diferenas na qualidade do produto.
469
No irei me deter no processo da confeco do artefato cermico, por ter sido exaustivamente
estudado. Cf. PEROTA, 1997; DIAS, 1999, 2006; IPHAN, 2002, 2006.

194

Galpo da APG: a vitrine do ofcio com seus aprendizes da tradio.

Localizado no porto de Goiabeiras, o galpo da Associao das Paneleiras470


possui uma rea construda de 432 m2. Sua estrutura em alvenaria com cobertura de
telhas de cimento-amianto possui um corredor central ladeado por mesas de trabalho
que so ocupadas pelas paneleiras, seus familiares e eventuais auxiliares. Com duas
entradas, o porto principal situa-se na Rua das Paneleiras,471 por onde entra a maior
parte dos clientes e turistas que costumam visitar o lugar. H tambm uma porta
lateral no local reservado para a queima e armazenamento da lenha prximo beira
do manguezal.
O galpo dividido em vinte bancadas, com estantes e mesas de trabalho
feitas em madeira simples. So nesses postos de trabalho que ficam as paneleiras. O
barro fica armazenado em vinte e oito tanques individuais, situados nas laterais do
galpo. Na parte de trs, foram edificados doze quartinhos (almoxarifado), alm de
dois banheiros.
Tambm havia sido planejada uma pequena cozinha situada ao lado da
entrada principal. Esse cmodo, porm, encontrava-se desativado no perodo de
minhas visitas localidade. Quando perguntadas por que no utilizavam mais a
cozinha, as respostas eram as mais diversas. Umas alegavam que preferiam ir para
casa almoar, uma vez que moravam perto do galpo. Outras combinavam com os
filhos, ou outra pessoa da casa, para levarem marmita ou quentinha. Mas o que as
evidncias demonstram que o galpo tornou-se cada vez mais uma oficina de

470

ANEXO E PLANTA BAIXA DO GALPO (cf. IPHAN, 2002).


A Rua Leopoldo Gomes Sales muda de nome para Rua das Paneleiras, na altura dos portes de uma
fbrica desativada de lajes e manilhas pr-moldadas.
471

195

trabalho472, com horrio reduzido para o preparo e servio de almoo.


A bancada da Eonete Alves Corra473 logo a primeira de quem entra no
galpo. Situada esquerda, Eonete divide o seu espao, ou mesa como chamam,
com sua irm caula, Jessilene Alves Corra. Colada sua mesa est a de duas
outras irms: Berencia Corra Nascimento e Marinete Corra Loureiro, ambas expresidentes da APG. Em frente bancada de Eonete foi instalado um telefone
pblico (orelho), onde as (os) paneleiras (os) recebem suas encomendas,
telefonemas particulares e efetuam chamadas, quando necessrio. Ao lado do
orelho fica localizada a bancada de seu outro irmo, Ronildo Alves Corra e
esposa. Ao lado do espao de Ronildo, esto as sobrinhas, filhas de Marinete, Rejane
e Rosemary. As mesas seguintes pertencem s duas outras famlias de paneleiras que
participam das disputas polticas do galpo: os Lucidato e os da Vitria. A bancada
de Nilcia Alvarenga Ambrosio474 (dos Lucitado) menor quando comparada as
outras no entorno. Carlos Alberto da Vitria (tambm da famlia dos Lucidato) no
possui um local fixo de trabalho e recebe por pea nas mesas de Rejane, Ronildo,
Evanilda e Carlinhos. Ao lado de Nilcia, encontram-se as mesas de Domingas
Corra da Victria Fernandes475 e de sua filha mais velha, Eonetes Fernandes dos
Santos, e neto, Flvio Fernandes dos Santos. Mais adiante, ainda, os postos de
trabalho das duas outras filhas de Domingas, Eronildes Corra Fernandes e Evanilda
Fernandes Corra. H tambm a mesa de Valdinia da Vitria Lucidato476 ao lado da
bancada Ronaldo Alves Corra e sua mulher, Zlia. Depois vem Lucilina Lucidato
de Carvalho477 e ao lado o seu primo, Jos Carlos Barboza (tambm da famlia
Lucidato). Por fim, ainda necessitam ser contabilizadas no galpo as bancadas da
famlia de Bernanci Gomes Ferreira e de seus filhos Inete e Lailson, bem como as
mesas de Laureci Lucidato da Vitria e de sua filha Lauriete, de Dionara Alvarenga,
Heloisa Helena (tambm da famlia Lucidato), Dulcinia de Jesus e Jos Carlos
Corra Fernandes, todos na parte detrs do galpo.

472

Muitos se referem ao galpo como uma firma.


APNDICE V- remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que
pertence.
474
Idem
475
Idem
476
APNDICE V- remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo familiar a que
pertence.
477
Idem.
473

196

Na ocasio da minha primeira visita trabalhavam no galpo 32 paneleiras e


um mesmo nmero de auxiliares entre escolhedores de barro, alisadores, tiradores
de panela e aoitadores478. Os auxiliares so contratados pelas paneleiras para
desempenharem atividades secundrias ao ofcio, quando o ritmo de trabalho intenso
e o prazo de entrega das encomendas bastante exguo exigem a remunerao dessas
pessoas. Geralmente, esse ajudante no vem de uma famlia de paneleira, sendo
considerado uma pessoa de fora. No pode, portanto, ser comparados com aqueles
que ajudam nos quintais, mesmo porque a relao no galpo estritamente
financeira. As paneleiras dizem botar os outros para trabalhar, e, geralmente,
possuem dois assistentes fixos, dependendo do volume de encomendas.
Em 2006, foram incorporadas pessoas com funes subordinadas ao ofcio no
quadro de associados, como alisadores e passadores de faca ou tiradores de panela
da fogueira. Segundo levantamento do IPHAN, so 118 artesos cadastrados na
APG479. Observa-se pelo quantitativo de pessoas registradas na Associao, que a
maioria dos associados trabalha em seus quintais, ou so contratados como auxiliar
na produo do galpo. Verifica-se tambm que ano a ano vem aumentando o
nmero de paneleiras no galpo, hoje totalizando 36 profissionais divididos pelos
mesmos postos de trabalho, ou colocando mesas menores e apertando o espao
daqueles que estavam no galpo desde a sua fundao.
Em vinte anos de associao e pouco mais de quinze do espao do galpo, o
modelo comeava a dar sinais de saturao. Esse acrscimo significativo provocava
desconforto, e todas foram unnimes em afirmar que o galpo estava pequeno para
abrigar os profissionais envolvidos no processo de produo. No toa que as
paneleiras reivindicam aos poderes pblicos (municipal e IPHAN), como principal
ao do Estado, um galpo novo, pois se dizem espremidas e sem espao para
trabalharem. Principalmente na poca das frias de final de ano, quando aumenta o
nmero de encomendas e, por conseguinte, de auxiliares.
Alm da carncia de espao, so problemas recorrentes o sistema de
pagamento dos associados, os convites para exposio e o processo de distribuio
das encomendas. O valor da mensalidade de cinco reais mensais, e muitos alegam
478

Essas funes foram descritas no captulo 4, quando detalhei os procedimentos da pesquisa do


Inventrio Nacional de Referncias Culturais do IPHAN.
479
Segundo cadastramento realizado em abril de 2006. Cf. IPHAN. Ofcio das Paneleiras de
Goiabeiras. Braslia: IPHAN, 2006, p. 28.

197

no pagar por se sentirem excludos de todo e qualquer benefcio que parta do


galpo. Mediante o pagamento, o associado tem direito de receber os selos, os
folders com as receitas de moqueca que acompanham o produto e as sacolas para a
venda, todos os produtos possuem logomarca da Associao das Paneleiras de
Goiabeiras. No entanto, muitas pessoas dizem que esses trs itens so doados por
grandes empresas Associao, como a Companhia Siderrgica de Tubaro ou a
Vale do Rio Doce, criticando a postura da Diretoria da Associao em no distribuilos para todo mundo e que no deveriam ser repassados como custo para a (o)
paneleira (arteso) de fundo de quintal. Como observa Bartra (2004), os problemas
das associaes e cooperativas esto ancorados na carncia de princpios
democrticos que regem a organizao dos grupos.480
Fundada, inicialmente, com a finalidade de construir um galpo onde todas
pudessem fazer e vender panelas, a Associao das Paneleiras de Goiabeiras,
entidade da Sociedade Civil de direito privado, sem fins lucrativos, de durao
indeterminada, com sede no bairro do mesmo nome e frum na Comarca de Vitria
teve seu estatuto lavrado em Cartrio de Registro Civil, em 07 de julho de 1987.
Dona Melchiadia fala com orgulho da Associao que ela ajudou a criar e da qual
foi a primeira Presidente. O fato de ter sido juridicamente instituda, com cargos e
atribuies definidos em estatuto, dava-lhe um sinal de distino. No estatudo, os
cargos estavam previamente definidos, bem como o tempo de mandato bienal.
Constituda por uma Diretoria Executiva, eleita em Assemblia Geral, assim
composta: presidente; Vice-presidente; 1o Secretrio; 2o Secretrio; 1o Tesoureiro e 4
(quatro) fiscais.
Melchiadia foi eleita sem voto, porque, segundo as suas companheiras,
exercia uma liderana na comunidade e o cargo lhe parecia bem deliberado. Nas
eleies seguintes, Melchiadia preferiu se afastar, voltando, inclusive, a trabalhar no
quintal da sua casa, que no muito grande, mas d para fazer uma fogueira com
at duzentas panelas, confirmando a idia de quem possui espao prefere trabalhar
vontade em seu quintal. Alceli Rodrigues, ex-presidente da APG, justifica assim

480

BARTRA et al. Creatividad Invisible: mujeres y arte popular en Amrica Latina y el Caribe. Mxico:
Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 2004.

198

a sada de sua me do espao do galpo.


Foi criada a associao, que comeou com minha me, D.
Melchiadia, porque havia muitas paneleiras uma numa casa,
uma na outra. Ento elas queriam se unir todas num ncleo s,
num lugar s. Uniram-se dentro do galpo, que a rea que ns
temos hoje, que a rea do turismo, para que como elas estavam
em casa mas uma ajudava a outra... Na poca delas uma
colaborava com a outra: Hoje dia de queima, vamos todas
para a casa de fulana, queimar e ajudar fulana... Hoje dia de
alisar panela, vamos ajudar.... Ento, fizeram aquele grupo. E l
elas continuaram fazendo isso. A elas no se adaptaram,
acharam que ficar em casa era melhor... A os filhos comearam
a dar continuidade, renovando, eram novas idias, ento se
continuou481.

Com o trmino do mandato de dona Melchiadia Alves Corra Rodrigues,


houve eleio, em 1990, para ocupar o cargo de Presidente da APG e Diretoria.
Entrou a sobrinha-neta Marinete Corra Loureiro, que permaneceu por mais dois
mandatos. Em seguida, foi eleita outra sobrinha-neta de Melchiadia e irm de
Marinete, Berencia Corra Nascimento, que tambm ficou na Presidncia por mais
trs mandatos. Em minha chegada ao campo, Alceli Maria Rodrigues, filha de
Melchiadia, estava como Presidente, e Valdinia da Vitria Lucidato como Vicepresidente. Da diretoria, tnhamos: Rosimary Loureiro Amorim (tesoreira), Rejane
Corra Loureiro (secretria) ambas filhas de Marinete Corra Loureiro; Jessilene
Alves Corra (irm de Marinete), Ceclia (trabalha na frente para as irms Marinete
e Berencia), Lucilina Lucidato de Carvalho (da famlia Lucidato), Carlos Barbosa
dos Santos, Laureci Lucidato da Vitria (ambos da famlia Lucidato) e Sonia (filha
de Margarida Ribeiro).
Quando houve novas eleies, em abril de 2006, entrou para a Presidncia da
associao a filha de Marinete, Rosimary Loureiro Amorim, que permaneceu pouco
tempo no cargo. Alguns meses depois, Rosimary decidiu imigrar para os Estados
Unidos, deixando o cargo livre para a Vice-presidente Lucilina Lucidato de
Carvalho. No binio 2006/2007, a Diretoria da APG estava constituda da seguinte
forma:

481

Nessa poca, Alceli era a Presidente da APG. Entrevista gravadano quintal da famlia Alves Corra,
em maio de 2005. APNDICE V- remeto ao quadro sobre o grupo de referncia: genealogia e grupo
familiar a que pertence.

199
Presidente Lucilina Lucidato de Carvalho
Vice-Presidente Dionara Alvarenga Siqueira
1a Secretria Lucinia (nia) Jesus da Silva
Tesoureira Eronildes Corra Fernandes
1o Fiscal Samarone Ribeiro
2o Fiscal Snia Ribeiro
3o Fiscal Carlinhos Barboza dos Santos
4o Fiscal Heloisa Helena Lucidato
5o Fiscal Alceli Rodrigues

Apesar dessa feio mais mercadolgica impressa pelas relaes sociais de


produo da Associao, os laos de parentesco continuam unindo as paneleiras do
galpo, que se distribuem pelo espao em pequenos ncleos familiares. Dividem as
mesas de trabalho, irms e irmos, marido e mulher, mes, filhos e noras, que
buscam proximidade entre as suas mesas. Curiosamente, mesmo alguns
reconhecendo possuir vnculos consangneos com o colega da frente, todos so
unnimes em afirmar ao pesquisador: ns aqui somos individuais.
Para atender aos crescentes pedidos de clientes da cidade de Vitria, de
Guarapari e de outros balnerios capixabas, bem como a uma demanda de outros
estados da federao brasileira e mesmo de outros pases, as paneleiras assumem
que o ritmo de trabalho se intensificou; e, por conseguinte, o nmero de auxiliares
tambm vai variar com o volume das encomendas. Como a lgica da distribuio se
d de forma individualizada, ou seja, cada paneleira possui seus prprios clientes
donos de restaurantes, lojistas, turistas, moradores de Vitria, consumidores e
atravessadores em geral , adquiridos por indicao, da maneira a mais variada
possvel, observa-se um quadro de tenses e de disputas pelos clientes que se
refletem nos preos, nas intrigas quanto qualidade do produto do concorrente e nos
prazos de entrega das encomendas. Tudo feito por encomenda, informa
Eronildes, que disse estar em um processo alucinado de fazer panela para
restaurantes e comerciantes, alm dos brindes de final de ano para as grandes
empresas.

200

Srie queima individual no galpo da APG

Para Ronildo Alves Corra importante formar seu portiflio de clientes. Ele
entende que o cliente se agrada com a mo da pessoa e com a relao que
estabelece com o arteso482. Disse tambm contratar ajudantes no perodo de muita
encomenda. De fato, as relaes no galpo se opem aquelas do ambiente
familiar483. Enquanto neste ltimo as paneleiras de fundo de quintal param para
descansar, tomar caf, preparar almoo e arrumar a casa, foi observado que as
paneleiras do galpo no se preocuparam em criar condies mais confortveis em
seus locais de trabalho. No h bancos suficientes, nem um ambiente em que possam
descansar. Os poucos assentos em madeira situados atrs das bancadas so ocupados
pelas alisadeiras contratadas com o intuito de acelerar a produo. Nesses postos de
trabalho, costuma-se ficar o tempo todo em p. Nem mesmo o lugar reservado para a
cozinha foi aproveitado e equipado, ficando evidenciado, portanto, que o galpo
visto como um espao estritamente voltado para o trabalho e a comercializao. Essa
opo causa uma srie de problemas de sade para esse grupo, principalmente dores
nas pernas, varizes e lombalgias484.
482

Conforme foi visto anteriormente, os homens que desempenham esse ofcio preferem ser chamados de
artesos.
483
Dias descreve as adaptaes impostas pelo uso da ocupao do galpo [...] que pode ser visto tambm
como uma extenso das casas, enquanto espao de convivncia social onde as relaes se reproduzem e
os conflitos pessoais tomam propores familiares (DIAS, op.cit., 1999, p.38).
484
FUNDACENTRO-ES. Estudo de Segurana e Sade no Trabalho das Paneleiras de Goiabeiras.
Vitria, ES: Fundacentro-ES, 2002.

201

5.2.2. Panela da famlia, patrimnio da nao.


A afirmao de que as paneleiras constituem verdadeiros cones da cultura
capixaba parece estar contida no reconhecimento de sua atividade como uma
tradio, fixada em uma territorialidade e transmitida atravs do convvio
cotidiano, que rene formas de sociabilidade particulares, apropriao e uso dos
recursos naturais e habilidade tcnica de seus produtores. uma tradio que se
manifesta atravs do gosto de mexer com o barro, e cujo aprendizado se d de
modo espontneo: o convvio vai ensinando a conhecer a melhor consistncia do
barro, a lua para colet-lo, o vento para fazer a fogueira e o tempo de cozimento das
peas. Atravs do relato das mais antigas e das observaes em campo, procurou-se
reconstituir o processo de iniciao de uma criana no ofcio. Como nos mostra
Dias, a transmisso do saber-fazer se d no convvio dirio, geralmente, fazendo
parte do processo de socializao primria (1999, p. 96).

Aucena, aprendiz de paneleira.

Ainda conforme Dias, a transmisso vem se constituindo atravs dos anos


de me para filha, na forma de um aprendizado informal, gerado na intimidade do
convvio domstico, na proximidade que estes laos possibilitam (idem, p. 95).
Como em toda interao social, essa aprendizagem envolve inmeras nuances:
convivncia, hierarquia, interesse, disciplina etc. Pode ser um ato puramente
imitativo, ou pode envolver um desejo ou vontade mais profundos de ser paneleira

202

ou arteso. Segundo Isabel Correa Campos:


Paneleira aqui em Goiabeiras no vai acabar fcil no. Esse
menino aqui [referindo-se ao neto] j comeou a fazer. Se eu for
levar ele adiante... Eu gosto que ele aprenda. Sabe, ele j pega
direitinho, j alisa a panela todinha. Acho que ele tem mo de
paneleira, mesmo. A pessoa quando tem a tendncia pega a cuia
direitinho. Se eu for colocar para fazer direto, ele pega
direitinho.485

O acabamento: etapa no processo de socializao

Para se tornar uma paneleira preciso conhecer a matria-prima e


desenvolver certas habilidades manuais; por isso, requer uma disciplina e uma
perseverana, um treinamento insistente, onde no caso o mestre, a me, rigorosa na
transmisso de seu saber, como assinala Dias (idem, p. 97). Nesse sentido, o
processo de aprendizagem se d em etapas. Primeiro, a criana ajuda a me alisando
a panela com seixos de rio. Depois, aprende a virar a panela e passar a faca em seu
fundo, controlando a sua espessura. A queima e o aoitamento, etapas mais difceis,
tambm fazem parte de todo esse processo de iniciao ao trabalho artesanal. Pela
intensidade da convivncia, aprende-se a fazer panelinhas para brincadeiras,
cobrinhas e outros pequenos caquinhos em cermica. Com o passar do tempo, essa
aprendiz comea a fazer peas cada vez maiores e bem acabadas, tornando-se uma
paneleira pronta.
Domingas Corra da Vitria Fernandes lembra-se de quando aprendeu a fazer
panela: aprendi com minha av vov Galdncia e eu estava com doze anos. Ela
me chamava: vem para c. Venha fazer caquinho aqui. A eu fazia com concha de
485

Entrevista realizada com Izabel Corra Campos, 61 anos, concedida em seu local de trabalho, no
galpo de vendas de Arnaldo Ribeiro Filho, em Goiabeiras, em dezembro de 2005.

203

ameixa486.
No obstante essas prticas associadas transmisso do saber serem
realmente observadas in loco, enfatizo a dinmica de todo o processo de aprendizado
para a construo identitria da paneleira enquanto categoria social e profissional.
Volto a enfatizar que o foco do registro recaiu no ofcio e nas funes auxiliares por
ele estabelecidas, em particular na organizao social produtiva do galpo, e que se
ampliou para o territrio ocupado tradicionalmente pelas famlias de ceramistas da
localidade. Conforme me informou a Superintendente Regional e Coordenadora do
INRC, Carol Abreu:
Quando a gente registra, e foi esse o primeiro processo, foi feito
o inventrio e muitas coisas a gente comeou a fazer: a
genealogia, que acabou no sendo inserida na instruo, mas
existe, porque foram sessenta e poucas entrevistas com um
nmero relativamente reduzido de famlias. E no foi esse o
critrio. Buscamos entrevistar pessoas que estavam no galpo e
pessoas que estavam em casa tambm, porque a gente sabia que
a atividade se dava nos dois espaos familiar e domstico e no
galpo. Mesmo assim h essa relao fortssima de
parentesco.[...] A gente vai entender no s a atividade
produtiva das paneleiras, mas essa pessoa, esse indivduo
paneleira, e esse indivduo onde ele pertence, no seu grupo, e o
que que fixa essa pessoa naquela localidade, o que que
explica [...] Eu acho que mais um aspecto pra explicar esse
enraizamento. Seno fica uma coisa at economicista: o que
elas pagam, o que d um retorno financeiro, isso d uma
evidncia porque afinal de contas um cone da identidade
regional capixaba, e agora tambm patrimnio cultural do
Brasil.487

A visibilidade conquistada por esse segmento junto s instncias


mediadoras do poder pblico explica parte da grande penetrao do produto panela
de barro nos mercados regional, nacional e internacional. Segundo Carol Abreu, na
pesquisa do INRC era importante percorrer o circuito de circulao desse produto:
Tem a questo depois da distribuio; enfim, pra onde vo essas
panelas [...] A panela de barro que um cone da cultura
capixaba, usada e apropriada pelas diversas instncias desde a
486

Dona Domingas, tambm conhecida com Iraci, tem 82 anos, paneleira mais velha do galpo, trabalhou
em sua mesa at adoecer de um derrame; mesmo assim, continuou produzindo bem pouco em sua casa.
Esta entrevista foi gravada em maio de 2005, quando ainda estava no galpo. Depois disso, voltei diversas
vezes a sua casa.
487
Entrevista concedida pela Superintendente Regional do IPHAN, Carol Abreu, realizada nas
dependncias do Museu Solar Monjardim, 21 Superintendncia Regional, no bairro de Jucutuquara em
Vitria, gravada em maio de 2005. Grifos nossos.

204
municipal, tanto do setor de cultura, quanto do setor de turismo
como uma referncia de imagem, inclusive, para identificar o
que capixaba488.

Nesse sentido, os debates sobre as denominaes de origem ou indicaes


geogrficas, enquanto marcas de diferenciao e qualidade do produto, esto sendo
conduzidos por essas instncias de governo e pelo SEBRAE489. Sob essa rubrica,
subentende-se o controle do manejo sustentvel das matrias-primas, a habilidade
tcnica de seus produtores e a identidade cultural do produto.

A identificao geogrfica do produto e o selo de autenticidade

Hoje no galpo, so encomendados kits de panelas, como pude acompanhar


na minha chegada a campo, o empacotamento de uma encomenda de 450 peas para
um nico cliente. Essa dimenso da mudana no ritmo do trabalho est referida no
Inventrio. O princpio econmico bsico de que a demanda cria sua prpria oferta
parece fazer sentido no ambiente de trabalho do Galpo das Paneleiras. Para atender
aos crescentes pedidos de clientes, as paneleiras assumem que o ritmo na produo,
como vimos, precisou mudar, seja no aumento do numero de horas trabalhadas no
galpo, seja na contratao de mais ajudantes, seja nos usos do corpo trabalhar de
p e com os ps490 , agilizando o trabalho. Essa economia do corpo direcionada
para o aumento da produo e para o cumprimento de prazos exguos de entrega das
encomendas transformou as relaes baseadas na considerao e na reciprocidade
488

Idem.
O Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) tem organizado uma srie de
encontros e publicado livros e peridicos com estudos de caso sobre esse assunto. Ver em: Territrios
em movimento: cultura e identidade como estratgia de insero competitiva. LAGES et.al. (orgs.).
Braslia: Sebrae/ Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2004.
490
Algumas paneleiras, na etapa de virar as panelas e tirar-lhes o excesso do fundo com uma faca, ou
com um instrumento chamado arco, deixam cair ao cho o barro e com os ps ficam amassando para
poderem reutiliz-lo depois.
489

205

familiar em relaes de compromisso entre as paneleiras e seus compradores, como


bem observa Carla Dias em seu estudo sobre o galpo da Associao:
Cada uma tinha compradores certos e a produo estava
basicamente vinculada s encomendas, e conseqentemente aos
prazos de entrega. Este sistema mudou o delineou o carter da
produo, e o ritmo do trabalho, da relao das mulheres com o
seu fazer, pois serviu como mecanismo de rearticulao,
garantia de sua permanncia. As mulheres podiam contar com
a venda, antecipadamente acertada. A dimenso do trabalho no
cotidiano, na vida familiar, mudou significativamente. A
encomenda cria uma relao de compromisso profissional que
passa a ocupar o espao antes destinado aos compromissos
familiares. A dinmica se altera: antes o trabalho era uma opo
possvel de conciliao com o universo domstico-familiar.
Agora, a famlia se volta para esfera pblica que o trabalho
impe.491

A rapidez em responder os impulsos do mercado, ampliando de forma


crescente e acelerada a produo, atraiu a ateno do SEBRAE/ES, que, em 2002,
elaborou um relatrio sobre o setor artesanal na Grande Vitria492. O objetivo do
estudo era apresentar um panorama da produo artesanal na regio metropolitana,
cadastrando os artesos pelo tipo de produto e matria-prima empregados.
Interessou-me particularmente a sesso sobre a cermica produzida na localidade de
Goiabeiras Velha, que consumiu mais da metade do nmero de pginas dessa
publicao. As informaes produzidas pelos assessores tcnicos do SEBRAE
revelam uma srie de ampliaes desse mercado de bens culturais e simblicos.
Nesse levantamento, foram abordados os critrios para fixao do preo de venda,
os sistemas de produo e de comercializao, alm das participaes dos artesos
em feiras e exposies. Dos resultados apresentados, selecionei apenas aqueles
relacionados com a formao de preos, confirmando que no existe uma poltica de
preos dentro da Associao. Essa questo foi abordada na oficina de salvaguarda,
da qual participei e sobre a qual comentarei adiante.
Quanto ao quesito embalagem, alm de ser um componente da formao de
preo, observei a prtica de vender panela crua ou semi-acabada, informando
um sistema de apropriao dos meios de produo muito prximo ao que

491

DIAS, op. cit., 1999, p. 144.


SEBRAE/ES. Diagnstico do Setor Artesanal Matrias-primas: barro, produtos do mar e
madeira (grande Vitria). Vitria, fevereiro, de 2002.

492

206

Hovenkamp indicou na dcada de 1990, conforme exposto na seo anterior, quanto


a fazer panela para um dono.

Nome do arteso

Critrios para fixao do preo de venda

Jaquelina Gomes Campos

O tempo de produo

Dinalva Alves Corra

O que o cliente paga

Gecy Alves Corra / Sula


Maria Dalva Carlos de Salles

O custo da mo-de-obra

Gilda Gomes Campos


Zilda Campos
Domingas Corra Santana
Joslia Rodrigues Corra / Zlia

O preo dos produtos semelhantes

Marlene Corra Alves


Maria Celina dos Santos
Tania Maria Lucidato Medina

O custo do material empregado


O preo dos produtos semelhantes

Alzina Campos do Nascimento


Bernacy Gomes Ferreira
Eloisa Helena Ferreira Lucidato
O custo da mo-de-obra
Genilda Ferreira Lucidato

O custo do material empregado

Jessilene Corra Fernandes


Lucila do Nascimento Corra
Valdelcia Salles de Souza
Maria da Conceio Barboza
O preo dos produtos semelhantes
Lucia Florinda Nascimento Corra

O que o cliente paga

Jenete Alves Rodrigues


Delci Salles da Silva
Elizete Salles dos Santos

O custo da mo-de-obra

Ilza dos Santos Barboza

O custo do material empregado

Licia Alvarenga De Siqueira

O tempo de produo

Palmira Rosa de Siqueira


Snia Santos da Conceio

O tempo de produo
O custo do material empregado

Janilda Alves Rodrigues Bento

O custo da mo-de-obra
O preo dos produtos semelhantes
O preo dos produtos semelhantes

Marinete Correia Loureiro

O que o cliente paga


O tempo de produo

Maurcio Csar Rocha Corra de S

O tempo de produo

Alceli Maria Rodrigues

O custo da mo-de-obra

207
Aldi Corra Campos
Lucy Barboza Salles

O que o cliente paga

Jos Nazareno CASTRO FARIAs


Claudiano
Dbora Keila Barboza Corra
Rosimere Loureiro Amorim
Jos Carlos Ambrsio / Esquerdinho
Nilcia

Alvarenga

Ambrsio

O preo dos produtos semelhantes

Esquerdinho
Valda da Vitria Lucidato
Letcia Pereira Pinto
Valdinia da Vitria

O custo do material empregado

Fbio Fernandes dos Santos


Leones Ribeiro

De acordo coma oferta e a procura

Mrcia Ferreira de Jesus / Marcinha

O que o cliente paga

Domingas

Corra

da

Fernandes

Vitria

O custo do material empregado


O preo dos produtos semelhantes

Lucilina Lucidato de Carvalho


Ronildo Alves Corra

O custo da mo-de-obra

Marli Barboza

O tempo de produo

Melchiadia Alves Rodrigues

O preo dos produtos semelhantes

Sonia Ribeiro

O que o cliente paga

Valdete Maria Mohem / Deti

Ivone Ribeiro

Maria Ins Leo Garcia

Margarida Lucidato Ribeiro

O que o cliente paga


O custo da mo-de-obra
O tempo de produo
O que o cliente paga
O custo do material empregado
O tempo de produo
O preo dos produtos semelhantes
O custo da mo-de-obra

Ademilson Rodrigues
Ana Iziz Reis Silva

O custo da mo-de-obra

Berencia Corra Nascimento

O custo do material empregado

Eonetes Alves Corra

O tempo de produo

Eronildes Corra Fernandes


Brbara Peroba

O custo do material empregado

Ivonei Barboza

O preo dos produtos semelhantes

Jucileida Barboza

O que o cliente paga

Lucinia de Jesus da Silva

O custo do material empregado


O custo da mo-de-obra

Carlos Barboza Santos

O preo dos produtos semelhantes

208
O custo do material empregado
Maria das Graas Corra

O custo da mo-de-obra
De acordo coma oferta e a procura

FONTE: http://vix.sebraees.com.br/arquivos/pesquisa%20madeira.doc, acessado em 24 de maro de 2008.

Dentro do galpo a poltica de preos competitiva entre os prprios


associados, reproduzindo a lgica da economia clssica da concorrncia perfeita. Os
critrios para formao de preos so individualizados e levam em conta as relaes
de trabalho l estabelecidas (tempo de produo, custo da mo-de-obra terceirizada e
custo das matrias-primas). Apesar dos insumos utilizados serem os mesmos e os
produtos semelhantes, o custo final do produto varia de acordo com o poder de
barganha dos clientes, o que se traduz em muita encomenda. Do mesmo modo,
observam-se tambm nos quintais relaes de mercado; contudo, as unidades
domsticas tendem a conservar os seus compradores. Nesse sentido, as encomendas
no costumam gerar competio entre as paneleiras de fundo de quintal, pois as
relaes com os clientes (donos do restaurante ou atravessadores, em sua maioria)
esto pautadas pela lgica da considerao493.
No contexto de produo do inventrio do IPHAN, as tenses provocadas
pelo acordo assinado entre a Diretoria da APG e CESAN, em 2001, expuseram e
fragilizaram as questes referentes representao poltica dos grupos familiares
que estavam na diretoria da Associao. Esse e outros aspectos representavam um
desafio para a implementao das aes de salvaguarda junto ao grupo de
ceramistas. Conforme me revelou Carol Abreu,
para a poltica de salvaguarda so vrias aes possveis e
desejveis. Ns vamos fazer uma oficina comportamental de
associativismo; no mais s a questo conceitual. ver como
elas lidam com a questo da liderana, da representatividade
poltica, e que outras vantagens o fato delas estarem associadas
pode render para elas494.
493

A anlise de Lygia Segala sobre as diferentes lgicas instituidoras do trabalho comunitrio


observadas em seu trabalho de campo, na Rocinha, parece-me tambm apropriada para esse caso.
Segundo Segala, as representaes do iderio do trabalho comunitrio, calcado no bem comum, no
voluntariado e na considerao so reestruturadas pela lgica do contrato, pelas descontinuidades
administrativas e pela racionalidade burocrtica da ao pblica municipal. Nas duas situaes
pesquisadas, enfatizo a interferncia do poder pblico e de outros atores sociais nas dinmicas de trabalho
e renda. Cf. SEGALA, L. B. P. O riscado do balo japons: trabalho comunitrio na Rocinha (19771982). Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGAS/ MN/ UFRJ, 1991, p. 6, 12.
494
Entrevista concedida pela Superintendente Regional do IPHAN, Carol Abreu, realizada nas
dependncias do Museu Solar Monjardim, 21 Superintendncia Regional, no bairro de Jucutuquara em
Vitria, gravada em maio de 2005.

209

Na fase de identificao da pesquisa do INRC foram revelados


desentendimentos no ambiente do galpo com relao s hierarquias do espao e s
encomendas. Segundo Carol Abreu, o estudo do IPHAN verificou
vrios nveis de insero e de excluso. Voc tem, a primeira
vista, num nvel mais raso, as que esto no galpo e as que esto
fora. As que esto fora porque desejam continuar fora, nas suas
casas, no seu ritmo tradicional, e as que no foram contempladas
com o espao do galpo. E voc tem dentro do galpo tambm a
insatisfao ou a hierarquizao do espao: as que esto mais
pra frente, as que esto mais atrs, as que esto com uma rea
mais reduzida, as que ocupam uma rea maior.495

Diante de um conjunto de atitudes to individualizadas perante aos demais


associados do galpo e de fundo de quintal, o IPHAN realizou uma srie de oficinas
voltadas para a gesto associativa e a formao de preo, no sentido de redefinir
normas de convivncia e de funcionamento do galpo e discutir uma tabela nica
de preos para os associados. No entanto, essa iniciativa provocou a resistncia do
grupo de artesos do galpo e as oficinas foram esvaziadas. Quando inquiridos sobre
o assunto, a resposta era sempre a mesma: aqui ningum combina. Acho que
porque todo mundo trabalha para si.
As tabelas produzidas pelo SEBRAE, em 2002, do um panorama do estado
das artes da produo artesanal em Goiabeiras. Ao analis-las, pude identificar os
alguns nomes de artesos e suas famlias. Pude verificar tambm que a maioria das
pessoas faz parte da Associao das Paneleiras. Quanto ao preo final do produto, a
embalagem mais um elemento a ser considerado. O fato de embalarem seus
produtos em engradados para o negociante atacadista evidencia uma prtica comum
e antiga em Goiabeiras, uma vez que a produo est voltada para fora da
comunidade em um circuito de atravessadores informado pela lgica de mercado. A
tabela abaixo tambm informa para uma prtica antiga na localidade: a venda da
panela crua de outra paneleira.

495

Idem.

210
Embala

Nome

seus Como

produtos

Ademilson Rodrigues

No embala seus produtos Por

embala?*

qu?
Custa caro e no tem

No

Sim

Alceli Maria Rodrigues

No

Aldi Corra Campos

No

Alzina Campos do Nascimento

Sim

Ana Iziz Reis Silva

Sim

Brbara Peroba

Sim

Berencia Corra Nascimento

No

Bernacy Gomes Ferreira

Sim

Carlos Alberto da Vitria / Cac

Sim

Carlos Barboza Santos

Sim

Dbora Keila Barboza Corra

Sim

Delci Salles da Silva

Sim

Dinalva Alves Corra

Sim

Sim

Domingas Corra Santana

Sim

Elizete Salles dos Santos

Sim

Eloisa Helena Ferreira Lucidato

No

No

Eronildes Corra Fernandes

Sim

Fbio Fernandes dos Santos

Sim

Genilda Ferreira Lucidato

No

Vende panelas cruas

Gecy Alves Corra / Sula

Sim

Gilda Gomes Campos

Sim

Ilza dos Santos Barboza

Sim

Ivone Ribeiro

Sim

Ivonei Barboza

Sim

Jaclia Barboza Lima

Sim

Jenete Alves Rodrigues

Sim

Janilda Alves Rodrigues Bento

Sim

Jaquelina Gomes Campos

No

gueda

Valentina

Nunes

Machado

Domingas

Corra

da

Vitria

Fernandes

Eonetes Alves Corra

costume

Custa cara e no h o
costume de embalar
Apenas

entregam

produto

Custo caro e no h
custume

As panelas so vendidas
cruas
Custa caro e no tem
costume de embrulhar

211
Jessilene Corra Fernandes

Sim

Sim

No

Deixa exposto

Sim

Jucileida Barboza

Sim

Leones Ribeiro

Sim

Letcia Pereira Pinto

Sim

Licia Alvarenga De Siqueira

Sim

Sim

Lucila do Nascimento Corra

Sim

Lucilina Lucidato de Carvalho

Sim

Jos

Carlos

Ambrsio

Esquerdinho
Jos Nazareno CASTRO FARIAs
Claudiano
Joslia Rodrigues Dias Corra /
Zlia

Lucia

Florinda

Nascimento

Corra

Quando

Lucinia de Jesus da Silva

No

os

clientes

compram j trazem a caixa para


levar o produto

Lucy Barboza Salles


Mrcia

Ferreira

de

Sim
Jesus

Marcinha

Vende

No
Sim

Maria Celina dos Santos

Sim

Sim

da

Conceio

Gomes

Barboza

Vende

Maria da Glria Ferreira

No

Maria Dalva Carlos de Salles

Sim

Maria das Graas Corra

Sim

BA

Maria Ins Leo Garcia

Sim

Marinete Correia Loureiro

Sim

Marlene Corra Alves

Sim

Marli Barboza

Sim

Sim

Melchiadia Rodrigues

Sim

Nilcia Ambrsio Esquerdinho

Sim

Palmira Rosa de Siqueira

Sim

Rejane Corra Loureiro

Sim

B,A

Ronildo Alves Corra

Sim

Rosimere Loureiro Amorim

Sim

Maurcio Csar Rocha Corra de


S

panela

as

panelas

semiacabada

Margarida Lucidato Ribeiro

Maria

semiacabadas

212
Produo

Rosy Mary Campanha Barcelos

No

Sonia Ribeiro

Sim

Snia Santos da Conceio

Sim

Tania Maria Lucidato Medina

Sim

Valda da Vitria Lucidato

Sim

Sim

Valdete Maria Mohem / Deti

Sim

Valdinia da Vitria

Sim

Zilda Campos

No

Valdelcia Salles de Souza

para

uso

pessoal e para presentear

*A = Para transporte/frete, sem funo complementar ou decorativa


B = Para apresentao do produto final, independente de ser objeto de outro arteso.

FONTE: http://vix.sebraees.com.br/arquivos/pesquisa%20madeira.doc, acessado em 24 de maro de 2008.

As feiras e exposies do visibilidade ao produto e as informaes


produzidas pelos assessores tcnicos do SEBRAE/ES revelam esse processo de
ampliao desse mercado de bens culturais e simblicos. Os associados que
participam do galpo da Associao so os que mais se beneficiam com as feiras
regionais e nacionais. Para aqueles que no esto inseridos no galpo paneleiras
de fundo de quintal , a Festa das Paneleiras representa o nico evento que
possibilita alcanar uma visibilidade da produo e, por conseguinte, novas
encomendas e clientes. A participao em feiras lucrativa, porque a maneira mais
eficaz de divulgar o produto. No entanto, requer planejamento para dar conta dos
prazos e das encomendas contratados anteriormente. As paneleiras contratam
auxiliares e aumenta a sua produo para no deixar nenhum cliente na mo. Alm
disso, comprometem-se com novos compradores nesses eventos. Geralmente, a
prefeitura paga um nibus para as paneleiras viajarem e levarem no bagageiro as
panelas condicionadas em engradados de madeira. A prefeitura e o SEBRAE so os
maiores parceiros na divulgao das panelas de Goiabeiras.

213
Nome

Feiras/exposies

Ademilson Rodrigues

Feira em So Paulo

gueda

Valentina

Nunes

Artenor (AL), Febarro (ES), Feira do Verde, Feira dos


municpios, Feira da Solidariedade

Machado
Alceli Maria Rodrigues

Feira latino Americana de artesanato (RS), Mo de


Minas,Febarro (ES), FEARTE PR, Feira de Natal RN

Aldi Corra Campos

Feira das paneleiras em Goiabeiras

Ana Iziz Reis Silva

Feira de Carapina

Brbara Peroba

Feira das paneleiras em Goiabeiras

Berencia Corra Nascimento

Feira latino Americana de artesanato (RS), Mo de Minas,


Febarro (ES), FEARTE PR, Feira de Natal RN

Bernacy Gomes Ferreira

Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,


Febarro (ES),

Carlos Alberto da Vitria / Cac

Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,


Febarro (ES),

Carlos Barboza Santos

Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,


Feira de curitiba e das Paneleiras

Dbora Keila Barboza Corra

Feira latino Americana de artesanato (RS), Feira de


CuritibaPR

Dinalva Alves Corra


Domingas

Corra

Festa das paneleiras


da

Vitria

Febarro (ES), Festa das Naes SP

Fernandes
Domingas Corra Santana

Festa das Paneleiras em Goiabeiras

Elizete Salles dos Santos

Feira de artesanato no Rio de Janeiro


Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de

Eonetes Alves Corra

Minas,Febarro (ES), Feira de NatalRN, Mostra Brasil RJ, Sutaco SP

Eronildes Corra Fernandes

Feira latino Americana de artesanato (RS), Artenor (AL),

Fbio Fernandes dos Santos

Feira das Paneleiras em Goiabeiras

Ilza dos Santos Barboza

Febarro (ES),

Ivonei Barboza

Feira das paneleiras em Goiabeiras


Febarro (ES), Em So Paulo e Belo Horizonte, Portal do

Jaclia Barboza Lima

Itamaraty na Malsia (internet)


CEFETS, UNICAMP, Espao cultural e de lazer de

Janilda Alves Rodrigues Bento

Goiabeiras (panelo)

Jessilene Corra Fernandes


Jos

Carlos

Ambrsio

FEART Curitiba, PR
/

Festa das paneleiras

Esquerdinho
Joslia Rodrigues Dias Corra /
Zlia

Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,


Febarro (ES), Feira de NatalRN

Leones Ribeiro

Festa das paneleiras em Goiabeiras

Letcia Pereira Pinto

Febarro (ES),

Lucilina Lucidato de Carvalho

Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,

214
Febarro (ES), Festa das paneleiras
Lucy Barboza Salles

Mo de Minas

Margarida Lucidato Ribeiro

Congresso de Medicina na UFES

Maria Celina dos Santos

Festa das paneleiras em Goiabeiras


Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,

Maria Ins Leo Garcia

Feira em Braslia e no Rio de Janeiro


Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,

Marinete Correia Loureiro

Febarro (ES), Feira Latino AmericanaCuritiba PR, Mostra BrasilRJ,


Feira em NatalRN

Maurcio Csar Rocha Corra de


S

Feira latino Americana de artesanato (RS),Febarro (ES),


Feira da Solidariedade e Feira do Verde Vitria

Melchiadia

Alves

Corra

Vitria Rodrigues
Palmira Rosa de Siqueira

Rejane Corra Loureiro

Rosimere Loureiro Amorim

Sonia Ribeiro
Tania Maria Lucidato Medina
Valdinia da Vitria

da

Feira latino Americana de artesanato (RS), Artenor (AL),


Febarro (ES),
Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,
Febarro (ES),
Feira latino Americana de artesanato (RS),Mo de Minas,
FIART Curitiba
Feira latino Americana de artesanato (RS),Febarro (ES), ES,
terra do beija flor SP
Congresso de medicina na UFES (exposio e venda de
panelas)
Feira das paneleiras
Feira latino Americana de artesanato (RS), Mo de Feira
internacional de Curitiba

FONTE: http://vix.sebraees.com.br/arquivos/pesquisa%20madeira.doc, acessado em 24 de maro de 2008.

Os gargalos identificados nesse processo de produo-distribuio-consumo


foram explorados nas oficinas programadas pelo IPHAN e executadas em parceria
pelo Artesanato Solidrio (ArteSol), uma Organizao da Sociedade Civil de
Interesse Pblico (Oscip), que tem como objetivo principal atender as necessidades
econmicas das comunidades artess, em todo o territrio nacional, gerando trabalho
e renda por meio da revitalizao do artesanato tradicional.
O ArteSol realizou um diagnstico sobre a situao da produo artesanal das
Paneleiras de Goiabeiras496, no perodo de 17 a 19 de agosto de 2005, confirmando
496

A reunio foi realizada no clube 3 de maio, em Goiabeiras Velha, com representantes das associaes
locais (Paneleiras, Moradores, Banda de Congo, Pescadores e Marisqueiros) e de rgos pblicos e
privados que apiam as paneleiras. A reunio, conduzida pelo IPHAN, teve a participao das Secretarias
de Cultura e Turismo do Municpio, principais rgos apoiadores das paneleiras em feiras e eventos, alm
das Associaes de Folclore, Banda de Congo e do SEBRAE/ ES, para citarmos os mais importantes.
Discutiu-se, principalmente, a reforma do galpo das paneleiras, mas no houve qualquer consenso entre
as partes. Ao final dessa tumultuada reunio, chegou-se a concluso de que o grupo de artesos era

215

as principais questes identificadas no processo de inventrio, conforme visto:


acesso e preservao das matrias-primas; infra-estrutura de trabalho e organizao
das atividades de produo e comercializao e acesso s polticas pblicas de sade
e aposentadoria.497 Esse estudo inserido no mbito do plano de salvaguarda serviu
de subsdio para as oficinas temticas programadas para o ano de 2006.
Em verdade, as paneleiras so bastante procuradas pelas instncias do poder
pblico e da iniciativa privada, seja em funo desse saber-fazer enraizado na
comunidade e tomado como smbolo de um artesanato regional, seja pela autonomia
e projeo que alcanaram com o produto panela de barro. Em diversas ocasies
entrevistas, palestras, cursos e oficinas , elas so solicitadas a relatar sobre o
processo de transmisso do ofcio e o modo como organizam a produo dentro da
associao. Segundo Alceli Alves Rodrigues, ex-presidente da Associao das
Paneleiras de Goiabeiras:
Voc produz; ningum quer ficar parado. A produo alta e
no tem mais espao nos quintais. No comeo da Associao,
eram as 12 casinhas com as senhoras que comearam. Depois,
entraram os filhos, os netos... Em 1991, atravs da Lei Rubem
Braga, houve o aumento do galpo.498

O fato de os prprios associados exporem publicamente o modo de


organizao social produtiva na associao, sempre enfatizada pela idia de que
"aqui todos somos individuais", criou as bases reflexivas e conceituais para as
oficinas sobre "estratgias associativas" e formao de preo 499.
A primeira oficina foi realizada entre os dias 07 e 09 de maro de 2006, nas
dependncias da Universidade de Vitria (UNIVIX), campus Goiabeiras Velha, e
pretendeu retomar as discusses que estavam em pauta na reunio anterior, dandolhes um carter de urgncia. A reforma do galpo e a questo das vendas
provocaram muitas discusses entre os associados, com tons acusatrios para
aqueles que no distribuem as encomendas aos demais associados. As oficinas
bastante fragmentado, uma vez que parte do grupo no aceitou a planta apresentada pela Secretaria de
Obras.
497
IPHAN, op.cit., 2006, p. 48 49.
498
Depoimento dado por Alceli Alves Rodrigues na palestra Cultura da Cooperao, realizada no dias
10 de novembro de 2006, no restaurante de associao, e conduzida por um assessor do SEBRAE/ES.
499
Agradeo a transparncia dessa organizao por me disponibilizar os relatrios de atividades
referentes s duas primeiras oficinas. Em novembro de 2006, pude acompanhar a terceira oficina sobre
associativismo e formao de preos. Na ocasio, estavam presentes as assessoras Macao Ges
especialista em cooperativismo/ArteSol e Ftima especialista em gesto/ArteSol e SEBRAE/ RN.

216

programadas previam noes de prticas associativas e formao de preo, com


especial ateno ao relacionamento interpessoal, gesto associativa, ao trabalho
coletivo e gesto produtiva.500 O segundo ciclo de oficinas ocorreu no galpo da
Associao das Paneleiras, no incio do segundo semestre de 2006, entre os dias 19 e
21 de julho, e procurou retomar os principais pontos de estrangulamento
identificados pelo grupo. Segundo os relatrios de atividades da ArteSol,
participaram vinte e uma pessoas no primeiro ciclo e vinte e trs no segundo
variando a freqncia nos trs dias, conforme relatrio , todos artesos
cadastrados na Associao das Paneleiras de Goiabeiras. Nessa etapa da
capacitao dos artesos, admitiu-se o baixo ndice de participantes, considerando
o nmero de associados inscritos na Associao das Paneleiras de Goiabeiras.
Constatou-se tambm a no participao de outros membros que trabalham
individualmente fora do galpo501.
Em novembro de 2006, pude acompanhar o terceiro ciclo de oficinas
programadas como parte das aes de salvaguarda pelo IPHAN. As oficinas foram
realizadas nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 2006, no restaurante desativado das
paneleiras. Com relao ao uso do restaurante, as paneleiras enfatizam a dificuldade
de trabalhar nesse ramo, referindo-se gastronomia como um mundo parte,
apesar de seus produtos cermicos estarem sempre associados moqueca e a torta
capixaba.

Bem imvel da Associao: o restaurante das paneleiras

Ministrada pelas especialistas em gesto e cooperativismos do Artesanato


Solidrio (ArteSol), dessa vez estiveram presentes paneleiras e artesos ligados ao

500
501

ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas. s/d, p. 1.


ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas (parte II). s/d, p. 5.

217

galpo502 e aos quintais503. No entanto, observei que a freqncia se manteve baixa e


varivel. No primeiro dia, participaram apenas oito pessoas; nos dois ltimos dias
foram quinze artesos, em mdia, pois muitos no permaneceram o dia todo nas
atividades programadas.
Dona Lucilina Lucidato de Carvalho, nessa poca Presidente da Associao
das Paneleiras, falou-nos sobre a dificuldade das pessoas do galpo tomarem parte
nas reunies: As pessoas no largam as panelas para nada! Na hora vai sempre
algum fazer fogueira. Sobre a pequena participao das paneleiras de fundo de
quintal, justifica-se pela lateralidade dessas artess nos processos decisrios que
envolvem clientes e benfeitorias para o galpo. Durante a minha permanncia em
campo, ouvi diversas vezes as seguintes declaraes: Tem muita paneleira em casa
esquecida. Se no est no galpo no paneleira.; quem trabalha de fundo de
quintal sabe pouca coisa [sobre os assuntos da associao], no considerada
paneleira.; o galpo est pequeno para todos; as antigas no so mais nada!;
tem muita paneleira que est parando por motivo de doena. Essas declaraes
repercutem nas prticas cotidianas das paneleiras e nas representaes que tm sobre
o trabalho. Tais constataes indicam que h no galpo uma centralizao das
informaes que provavelmente tem a ver com os esquemas familiares de controle
da produo. Mostram, ainda, a inexistncia de uma identidade de grupo, de trabalho
cooperativo para alm dos sistemas familiares de ajuda.
Aps as reflexes realizadas e considerando o histrico de conflitos do
grupo, observou-se que alguns artesos no vem sentido em participar de nada
coletivamente, pois a descrena de que algo acontea em relao a mudanas
positivas grande para a maioria504. A esse ponto soma-se a seguinte pergunta: por
que o desinteresse em participar das oficinas? Certamente porque isso pouco
responde s necessidades das paneleiras, aos modos como compreendem o trabalho
e as alianas locais.

502

Audir Corra Campos, Berencia Corra Nascimento, Carlos Barbosa dos Santos, Eronilde Corra
Fernandes, Eonetes Alves Corra, Jessilene Alves Corra, Janete Gomes Inocncio, Joslia Dias Corra,
Lucy Barbosa Salles, Lucilina Lucidato de Carvalho, Marinete Corra Loureiro, Nilceia Alvarenga
Ambrozio, Ronildo Alves Corra e Valdineia da Vitria Lucidato.
503
Alceli Maria Corra Rodrigues, Ademilson Rodrigues, Melchiadia Alves Corra da Vitria Rodrigues
Maria da Conceio Gomes Barboza, Elizete Salles dos Santos e Izabel Corra Campos.
504
ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas (parte II). s/d, p. 3.

218

Partindo desse diagnstico das condies de produo, distribuio e


atividades de promoo, a idia dessas oficinas era produzir uma srie de mudanas
comportamentais no associado de modo a aceitar formas cooperativadas de
organizar a produo dentro do galpo. Na base desse discurso, propunha-se uma
redefinio da estratgia competitiva de mercado, com ganhos de qualidade,
competitividade, otimizao e reduo de custos de aquisio de matria-prima, no
beneficiamento, no transporte e na distribuio dos produtos505. Estruturadas em
tcnicas comportamentais, essas duas primeiras oficinas tiveram como
embasamentos tericos a teoria dos jogos, a dinmica dos grupos e a
andragogia, tendo como bases a metodologia APA - Aprendizagem por Ao e
[o] mtodo METAPLAN (visualizao mvel), onde toda a execuo dos
treinamentos vivencial e participativa com foco na realidade do grupo506.
Dentro dos contedos trabalhados pelas oficinas, destacam-se as questes da
auto-sustentabilidade na aquisio das matrias-primas, produo e distribuio,
da importncia e conseqncia do trabalho em grupo e da cooperao dos
associados. Outro item que me chamou especial ateno foi a identificao dos
pontos fracos e das oportunidades de melhorias [para o grupo] desvinculadas da
dependncia de rgos pblicos e privados. Isso nos faz supor uma rede intrincada
de relaes e de mediaes, cujas tenses para dentro e para fora do grupo de
artesos precisam ser melhor investigadas. Alm disso, parte-se do pressuposto de
que h um grupo, mas pouco se discute a formao desse mesmo grupo e a gesto
de seus conflitos. Ademais, h uma contradio entre uma suposta autosustentabilidade e a proposta de uma postura empreendedora, se pensarmos que
so lgicas de mercado antagnicas.507
Durante o ltimo ciclo de oficinas, programou-se uma visita ao Museu Solar
Monjadim. Conforme visto no captulo anterior, este museu reconstitui uma
residncia rural do Sculo XIX. Nos arredores de Goiabeiras havia muitas chcaras e
construes de estilo rural, feitas de estuque e equipadas com fogo de lenha. Para o
grupo de senhoras de meia e terceira idades que visitaram a exposio, esse
505

ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas. s/d, p. 1.


No me cabe fazer qualquer juzo de valor quanto aos fundamentos tericos, tampouco a metodologia
utilizada. O que se pode apreender nesse caso foi a ineficcia de sua aplicao perante o mesmo grupo.
ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas. s/d, p. 2.
507
ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas (parte II). s/d, p.4.
506

219

ambiente lhes pareceu familiar. Portanto, desde o incio do circuito, interessaram-se


pelo exerccio da memria e sentiram-se estimuladas a falar de uma Goiabeiras at a
bem pouco tempo rural: as casas de estuque da regio; os apetrechos de cozinha,
com destaque para as panelas de barro e o fogo lenha.

Paneleiras no museu: espao de valor patrimonial para um grupo de igual valor

Na volta comunidade, as assessoras conduziram nova dinmica prevista na


terceira etapa das aes de salvaguarda. Foi pedido para as paneleiras desenhassem
ou escrevessem sobre os seguintes assuntos: voc e a panela de barro; voc e as
paneleiras; voc e seu patrimnio. No tive acesso aos resultados dessa parte da
dinmica para uma posterior anlise, mas, do que pude observar, todas, sem
exceo, preferiram desenhar. Nos desenhos, o processo de trabalho foi muito
explorado e em quase todos eles havia uma fogueira. No entanto, a dinmica no
aprofundou as implicaes desse processo de patrimonalizao sobre os agentes que
produzem as panelas, tampouco a relao entre o ofcio das paneleiras (patrimnio
imaterial) e as panelas (patrimnio material) expostas como objetos utilitrios que
veiculam sentido histrico e tradicional no contexto da sociedade capixaba.
Dando continuidade s dinmicas, passou-se para a outra temtica em pauta:
os direitos previdencirios das paneleiras. Em uma folha de papel pardo, constava o
seguinte cabealho: o arteso e a previdncia: direitos e deveres. Segundo o
exposto, dever das paneleiras contribuir, ao menos por doze meses, com um
percentual calculado sobre o salrio mnimo, para que assim possam usufruir dos
benefcios previdencirios, como o auxlo maternidade e a percia mdica. Esta
questo suscitou longo debate, uma vez que tais esclarecimentos no resolviam o
problema daquelas senhoras que no possuam renda o suficiente para se
inscreverem como asseguradas autnomas do INSS.

220

Izabel Corra Campos fala do processo de excluso das paneleiras mais


velhas, tanto as que ainda esto dentro do galpo, quanto as que esto nos quintais,
em funo das mudanas que vem ocorrendo na dinmica de trabalho:
Ali no galpo no tem mais ningum com mais de 60 anos, s
Luci, Bernanci e Lucilina. Quando chega a essa idade, a mulher
no tem mais estrutura de enfrentar aquela fogueira de sol a sol,
principalmente quando chega dezembro e janeiro. No d pra
enfrentar mais! Hoje, ela [a paneleira velha] ou faz pra algum,
ou paga pra algum queimar. Eu no tenho como pagar ningum
pra queimar pra mim [...] Quando falo que eu fico triste, por
causa disso: aonde eu cheguei. Eu no fico triste por ser
paneleira, no. aonde eu cheguei com a panela de barro. Meu
pai, minha me chegaram na simplicidade deles, que deu pra
eles chegarem [...] Eu quero fazer conforme aprendi, devagar; se
errei, desmanchar. Eu no fao mais panela do jeito que gostaria
de fazer, porque voc vai se esgotando. O trabalho de paneleira
muito duro! Quem t ali no galpo, cada um tem o seu
parceiro: um pra alisar, outro pra fazer, outro pra queimar. Tem
tudo isso. Eu no tenho! Como eu posso fazer? Se uma pessoa
vem aqui e me encomenda vinte panelinhas, mas isso no d pra
eu sobreviver!508

A melhoria na qualidade de vida e a repartio eqitativa dos benefcios do


processo de patrimonializao dos bens culturais de natureza imaterial constituiem
desafios de difcil consecuo. Nas oficinas de salvaguarda, abordou-se a proposta
de um gerenciamento coletivo dos processos de produo e de comercializao
dentro do galpo decorrente do aumento da produo e da maior visibilidade das
panelas. No entanto, essa individualidade de que falam as paneleiras est
relacionada ao fato de possurem as suas redes prprias de clientes. Concluiu-se,
portanto, de que a sada para tais impasses seria pensar a Associao de Paneleiras
enquanto uma estratgia competitiva de mercado onde o fomento de prticas
associativas se constitui em uma maior eficincia da produo com ganhos de
qualidade e competitividade atravs do desenvolvimento de habilidades pessoais,
interpessoais e empreendedoras.509 Vale investigar em que medida essa idia de
508

Esse depoimento foi gravado no quintal de Izabel Corra Campos no meu retorno comunidade para a
XV festa das paneleiras, nos dias 24, 25 e 26 de novembro de 2006; ou seja, dois finais de semanas depois
da oficina do IPHAN. Izabel assim resume a oficina: convivncia no galpo, organizao, respeito, venda
de panela, preo de panela, encomendas e INSS. Por fim, disse ter gostado do que falaram, mas
reconhece: no adiante que eles no aceitam! E conclui: sempre assim, questo de famlia.
509

ArteSol. Relatrio de Atividade Estratgias Associativas (parte II), p. 5. Grifos nossos.

221

prtica associativa rompe com a o sistema de produo que envolvia ajuda entre as
famlias e com as alianas no ambiente do galpo.

Dinmicas de comunicao e criatividade

As tcnicas vivenciais abordadas pouco do conta de um aprendizado da


negociao e da representao na produo do grupo. Ao que tudo indica, essas
oficinas tiveram como objetivo primeiro criar um grupo de trabalho, neutralizando
iniciativas individuais concorrentes, calcadas em redes de relaes produtivas
marcadas pelo parentesco. Isso, por um lado, implica em redefinio da produo,
das relaes de trabalho e do escoamento da produo, criando estratgias para
centralizao da produo, alargamento do mercado, gerao de demanda,
conhecimento das possibilidades e dos circuitos de venda j consolidados; por outro
lado, a produo do grupo pelo esforo associativo, ou prtica associativa, implica
em um trabalho de negociao permanente, de produo de consensos
circunstanciais.
O formato da oficina, sempre muito breve, no considera uma questo central
que a da mediao para resoluo e encaminhamento dos conflitos gerados pelas
mudanas na produo e no mercado, uma vez que no se problematiza a prpria
idia de organizao social produtiva. Toma-se isso como um dado sem se
reconhecer as especificidades dos processos "tradicionais" de produo. Na verdade,
so modos diversos de produzir e de escoar a produo. Essa passagem, estimulada
pelo IPHAN e acelerada pelo registro, muda completamente uma lgica pautada
pela considerao, pela reciprocidade equilibrada e pelo parentesco para uma lgica
de galpo em que est em jogo uma racionalidade burocrtica, contratados e
centralizados por alguns.

222

Consideraes Finais
Ao final deste trabalho, procuro retomar alguns pontos centrais sobre os quais
pude construir o meu argumento de pesquisa. Na correlao entre patrimnio e
nao e no quadro de foras das instituies nacionalizantes da dcada de 1930, o
Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional destacava-se por congregar
uma srie de intelectuais modernistas, alguns deles articulados ao campo
universitrio das cincias sociais nascentes e ao campo editorial interessado em
ttulos sobre cultura brasileira. Os contatos de Mrio de Andrade com professores
da Escola de Sociologia e Poltica da Universidade de So Paulo, bem como os de
Rodrigo M. F. de Andrade com os antroplogos naturalistas do Museu Nacional do
Rio de Janeiro apontam nessa direo. Nas publicaes do SPHAN figuram os
nomes de grandes intrpretes do Brasil, como os de Gilberto Freyre e de Srgio
Buarque de Holanda.
Ao identificar e relacionar os principais eixos de produo intelectual que
objetivaram a idia de um patrimnio nacional, observa-se que o dilogo da
antropologia com a poltica de patrimnio contnuo e se manifesta desde a
institucionalizao da agncia de preservao. Heloisa Alberto Torres, Raimundo
Lopes, Edgar Roquette-Pinto e Luiz de Castro Faria so alguns desses nomes. Este
ltimo manteve uma relao de dcadas com a agncia do Patrimnio, participando
do Conselho Consultivo e da elaborao da poltica de preservao dos stios
arqueolgicos, bem como da gesto dos recursos sobre pesquisa, cadastramento e
registro em instrumento prprio da agncia.
Nas dcadas seguintes, observam-se novas formas de se entender e de se
praticar a antropologia. Uma delas o prprio uso da cultura popular como termo
de referncia. O panorama que se pretendeu traar justifica-se pela recorrncia com
que certos dispositivos permaneceram controlados pela agncia estatizada. Nesse
sentido, comentei uma srie de formulaes e de discursos intelectuais, de
procedimentos administrativos e de aes de preservao adotados que construram
processualmente a idia de patrimnio cultural imaterial.
Para chegar ao contexto de produo da legislao sobre o patrimnio
cultural imaterial foi necessrio percorrer a longa histria institucional,

223

principalmente os anos de 1980 e 1990. A idia de um Servio do Patrimnio


Histrico e Artstico Nacional consolida-se a partir dos anos de 1930 e tem na
presena de alguns intelectuais modernistas a sua base de formulao poltica. Na
anlise desse campo temtico, busquei anexar novos elementos; ou seja, no me
limitei constatao de uma anlise institucional ao redor da gesto de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, diretor-fundador do SPHAN, mas me fixei nas
representaes da vertente patrimonialista daquele momento. De um lado, Mrio de
Andrade na gesto do Departamento de Cultura de So Paulo e nas articulaes
estabelecidas com instituies de ensino ligadas s cincias sociais nascente,
notadamente com a Universidade de So Paulo e a Sociedade de Etnografia e
Folclore. De outro, Rodrigo Melo Franco de Andrade frente do SPHAN, articulado
a outras redes modernistas e com relaes com os antroplogos naturalistas do
Museu Nacional em torno do patrimnio arqueolgico.
Dentre os instrumentos de poltica de preservao do patrimnio, tm-se
condutas diferenciadas que ocasionam impasses de ordem conceitual e
metodolgica. O tombamento, por exemplo, vai incidir sobre os bens materiais de
pedra e cal, as obras artsticas e os monumentos, ou seja, as coisas em sua
materialidade; j o cadastramento dos stios arqueolgicos impe outra dmarche de
trabalho e outros desafios j que o processo de seleo e conservao se pauta por
cnones cientficos de uma antropologia ainda vinculada arqueologia, lingstica,
antropologia fsica e biolgica a antropologia dos quatro campos tributada por
Franz Boas.
Internacionalmente, os debates tambm se estruturam em torno do patrimnio
edificado, dos monumentos da antiguidade clssica e dos stios arqueolgicos. No
obstante muito rapidamente o enfoque das agncias multilaterais, em particular da
UNESCO, voltar-se para o postulado da diversidade cultural e da cultura popular.
Valores, prticas e representaes de diferentes grupos humanos comeam a ganhar
o estatuto de patrimnio mundial, como informa o Programa Tesouros Humanos
Vivos e, mais recentemente, a Lista representativa do Patrimnio Cultura
Imaterial da Humanidade510. Com a publicao dessas novas listas, os antroplogos
510

A UNESCO programou medidas para assegurar maior visibilidade do patrimnio cultural imaterial,
aumentar o grau de conscientizao de sua importncia e propiciar formas de dilogo que respeitem a
diversidade cultural, segundo Art. 16 da Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural

224

so os experts nos debates sobre a cultura e a diversidade tnica e cultural.511


O Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, ao promover o
Seminrio comemorativo de seus sessenta anos, em 1997, deu um grande passo em
direo poltica de patrimnio imaterial que se consolidou na dcada seguinte.
Nesse sentido, o IPHAN elabora novo dispositivo legal, o Decreto 3.551, de agosto
de 2000, pretendendo com ele regulamentar o dispositivo Constitucional de 1988.
Essa iniciativa antecede em cerca de trs anos a Conveno de Salvaguarda da
UNESCO para o Patrimnio Cultural Imaterial. Conforme visto, a consolidao
dessa poltica de registro e inventrio do IPHAN levou a Diretora do Departamento
de Patrimnio Imaterial a expor a experincia brasileira e inaugurar sesso solene na
UNESCO.
Um outro momento institucional identifica o patrimnio imaterial e
estabelece aes de salvaguarda, segundo uma definio antropolgica de cultura.
Porm, essa uma noo muito recente e ganha espao no mundo oficial das
polticas a partir dos anos 80. Alm disso, vem sendo amadurecida pelos gestores e
pelos tcnicos de poltica pblica no mundo inteiro para dar conta de uma dimenso
da cultura que prioriza os saberes populares e os fazeres que constituem tradies
locais. Por esse motivo, as discusses contemporneas sobre patrimnio cultural
giram em torno de questes como cultura popular, diversidade e pluralidade
sociocultural.
As discusses sobre o Patrimnio 'imaterial ou intangvel' referem-se aos
processos humanos de criao e transmisso do conhecimento e manuteno de
padres, alguns deles de tradio secular, presentes nas festas rituais, celebraes
religiosas, nas formas de expresso e no artesanato tradicional. A valorizao desse
tipo de processo de produo conduz a uma metodologia de inventrio apropriada a
esse patrimnio imaterial. Com as muitas anlises dos casos apresentados ao
IPHAN, fundamentados em dossi e em pesquisa de inventrio, cria-se uma
Imaterial. Paris, 17 de outubro de 2003.Ver IPHAN. Cartas Patrimoniais. 3 ed. Rio de Janeiro: IPHAN,
2004, p. 380
Dentre as obras que ingressaram na lista incluem-se as Expresses Grficas dos Wajpi e o Samba de
Roda do Recncavo Baiano.
511
Vale lembrar que Lvi-Strauss gozava de grande prestgio na Organizao e que escreveu sob sua
encomenda, em 1952, o trabalho Raa e Histria. Ver: LVI-STRAUSS, C. Raa e histria. In:
Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 4. ed, p. 328-366, 1993.

225

jurisprudncia. O registro do patrimnio imaterial vai incidir sobre os processos,


sobre a transmisso dos conhecimentos e a interao social. As polticas de Estado
procuram articular essa diversidade noo de unidade nacional. Em princpio, o
Inventrio Nacional de Referncias Culturais foi desenvolvido por antroplogos,
mas de uma maneira que no-antroplogos tambm possam fazer pesquisa de
patrimnio imaterial. Quanto ao objeto especfico do presente estudo o ofcio de
paneleira no bairro de Goiabeiras Velha, na cidade de Vitria, capital do Esprito
Santo o inventrio foi conduzido pela Superintendente do IPHAN/ES, que possui
ps-graduao em antropologia. Para se conduzir uma pesquisa de inventrio do
patrimnio imaterial, necessita-se maior ateno aos referenciais tericos da
antropologia e um enfoque metodolgico de salvaguarda differenciado daquele do
patrimnio material.
Vale observar que na ltima dcada a ressignificao desse dispositivo do
patrimnio imaterial conseguiu agregar um nmero crescente de grupos e
comunidades interessadas em preservar a sua cultura. Clia Corsino, ex-Diretora
do Departamento de Identificao e Documentao, revela que a demanda
institucional na poca do lanamento do Decreto foi menor do que a esperada. Em
sua gesto, deu-se a contratao da consultoria do antroplogo Antnio Augusto
Arantes para a elaborao de um novo Inventrio Nacional para os bens culturais de
natureza processual e dinmica. Segundo Corsino, em sua sala de trabalho foram
promovidas reunies para diversos ajustes na metodologia do Inventrio Nacional de
Referncias Culturais INRC. Na ocasio, participaram, alm da equipe do
antroplogo Antnio Augusto Arantes, tcnicos da instituio, como as historiadoras
Ana Claudia Lima e Alves e Mrcia Chuva, a antroploga Ana Gita e a museloga e
Diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Cludia Mrcia Ferreira.
Fazendo um parntese e contraponto ao quadro da legislao de arqueologia,
verifica-se que, no caso do patrimnio imaterial, a agncia de preservao
apropriou-se do processo de elaborao e refinamento desse instrumento.
A aplicao da metodologia do INRC em Goiabeiras esteve sob a
responsabilidade da Superintendente regional do IPHAN no Esprito Santo, Tereza
Carolina de Abreu que foi quem sistematizou os dados apresentados no final do
quarto captulo. Diante das informaes levantadas pelo INRC, a superintendncia

226

regional do IPHAN props aes de salvaguarda voltadas para a questo da matriaprima, por envolver insumos no renovveis na natureza, como o barro e o tanino
este ltimo extrado das rvores do mangue. Ademais, as disputas pela jazida do
Vale do Mulemb, que envolveu a CESAN e a APG, foram intensamente debatidas
durante todo o processo do registro.
Alm das questes de natureza ambiental, as medidas de salvaguarda
elaboradas pelo IPHAN tambm previram oficinas comportamentais de
associativismo. O IPHAN chegou a esse modelo de proposta a partir do diagnstico
elaborado pela OSCIP Artesanato Solidrio (ArteSol), conforme visto no ltimo
captulo da tese. A anlise que envolveu questes relacionadas liderana no galpo
e sua representatividade poltica foi construda levando-se em conta as verses
produzidas no ambiente galpo mediante a aplicao de questionrios.
A conduo da pesquisa do IPHAN sobre as Paneleiras procurou identificar
seus principais executores, seus locais de trabalho e as famlias tradicionalmente
vinculadas ao ofcio. Os critrios pautaram-se na representatividade (Fonseca,
2004), tal como o reconhecimento das panelas de barro, associado culinria tpica
regional refiro-me moqueca e torta capixaba, como uma tradio da
sociedade capixaba, bem como das prprias paneleiras, atravs de sua Associao,
que manifestaram interessa pela preservao de seus bens culturais. Acrescenta-se a
essa lista de mediadores e parceiros as entidades culturais, as empresas e o poder
pblico local. Destarte, essas polticas por sua prpria especificidade demandam a
participao de mediadores culturais que estabelecem parcerias com o IPHAN no
sentido dar continuidade salvaguarda do bem cultural.
A Associao das Paneleiras de Goiabeiras a entidade representativa da
categoria profissional, j vem estabelecendo relao com a Prefeitura de Vitria,
com o SEBRAE/ES e, atravs das leis de incentivo cultura, encaminhando projetos
para empresas no sentido de angariar apoio, como obteno de material de
divulgao e de embalagens e demais necessidades. Paralelamente, a atuao da
associao junto aos rgos pblicos e privados, o ofcio de paneleira se mantm de
forma considerada tradicional, no mbito dos grupos familiares e dentro dos
limites fsicos de seus quintais.

227

No caso desse primeiro processo de registro, as novas demandas do mercado


parecem significativas para o grupo. Quando perguntadas, as paneleiras afirmaram
que a produo alta e que as pessoas que esto nos quintais no possuem mais
muito espao de queima. Limites, portanto, dessa nova economia de escala de
produo do galpo. Em minhas visitas localidade de Goiabeiras Velha, nas
conversas com as paneleiras de fundo de quintal, a questo do registro do
patrimnio sempre apareceu de maneira liminar. Para as senhoras mais antigas,
ento, que no participavam mais to diretamente do processo de produo, a maior
parte dizia desconhecer a instituio IPHAN e todo o processo de registro. Nos
quintais de Goiabeiras, a notcia de que as paneleiras haviam se tornado Patrimnio
Cultural do Brasil era ento um assunto distante e pouco compreendido. Alm
disso, os benefcios com o aumento de encomendas no atingiram todo o segmento.
As senhoras e grupos familiares que se mantiveram ativos no ofcio em seus quintais
alegam, inclusive, ter sofrido os impactos negativos do efeito do registro, com a
perda de clientes e encomendas para o galpo da associao.
A pesquisa de campo, realizada no bairro de Goiabeiras Velha, revelou um
processo de produo arraigado no tempo e no espao. A transmisso do ofcio se
manifesta atravs da oralidade e em ambiente familiar. Boa parte dos moradores da
localidade possui alguma relao com a produo das panelas de barro. Os estudos
conduzidos pelo IPHAN contabilizaram cerca de 120 famlias nucleares que esto
envolvidas de alguma maneira no processo, seja atravs da obteno dos insumos
naturais (o barro e a tinta da rvore do mangue), seja produzindo ou participando
como auxiliar em alguma das etapas da confeco das panelas.
At muito recentemente, e aqui localizo a dcada de 1980 a partir dos relatos
das pessoas envolvidas no processo produtivo, as paneleiras e seus familiares se
organizavam de maneira mais solidria na produo e distribuio das panelas de
barro, destacando-se o sistema de entreajuda. Isso significava dizer que, ao
confeccionarem as panelas em seus respectivos quintais e segundo as regras de
residncia apontadas na pesquisa, todas contavam com a ajuda das outras paneleiras
- todas suas parentas - no momento da queima e aoite das panelas. A diviso do
trabalho social dentro das unidades domsticas segue etapas muito prximas quelas
estudadas por antroplogos sobre comunidades de oleiros tradicionais. Nesse

228

modelo, so as mulheres que produzem o artefato cermico com a ajuda nas etapas
de acabamento das filhas, sobrinhas, noras ou mesmo vizinhas mais jovens.
Quanto aos homens, estes so responsveis pelo servio pesado: coletar o barro,
escolher, cortar e armazenar em locais apropriados de modo a deix-lo pronto para
o uso. So eles tambm que costumam tirar as panelas, seja do forno, seja da
fogueira, quando o processo de queima cu aberto, como aqueles enfocados nesse
estudo de caso. Quanto distribuio e venda desse artefato cermico, j se
observam mudanas significativas. Em tempos passados, eram os homens dessas
famlias, geralmente pescadores e catadores de mariscos, os responsveis pela
distribuio nos mercados de Vitria e adjacncias.
Interessado em revelar as relaes de trocas estabelecidas entre grupos
tribais, cls e famlias, Mauss512 demonstra como tais coletividades se obrigavam
mutuamente, contratando e estabelecendo alianas em um longo circuito de trocas.
Essas obrigaes de ordem material e moral configuram um sistema de
reciprocidade pautado nas relaes familiares e de aliana. Em Goiabeiras, foi
necessrio investigar o processo de organizao social produtiva nos antigos
quintais e reconstituir as genealogias das famlias que tradicionalmente trabalham no
ofcio. Em uma comunidade com elevado ndice de casamentos endogmicos, em
que todos os envolvidos no processo produtivo se reconhecem como parentes, as
relaes de produo determinadas pela entreajuda de parentes e vizinhos nos
quintais das paneleiras foram se transformando principalmente por conta da perda
dos espaos de queima. Atravs dos depoimentos coletados, pude concluir que era
no processo da queima o momento que essas alianas eram reafirmadas. Alm disso,
com o crescimento urbano e a especulao imobiliria, muitos desses antigos
moradores, pescadores com baixo nvel de renda e de escolaridade, foram levados a
vender parte desses terrenos. Novas famlias foram morar no bairro, sendo que
algumas delas se agregaram ao processo de trabalho, principalmente atravs das
relaes de casamento.
As transformaes ocorridas pela expanso urbana, pelo aterramento de parte
do manguezal e pela construo da estao de tratamento de esgoto sanitrio
512

MAUSS, M. Ensaio sobre a ddiva. In: Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify,
2003.

229

aparecem nas narrativas dos moradores da localidade como expresso do conflito:


com o crescimento do bairro o ofcio que antes era executado nos quintais e
mobilizava uma rede de parentela passou a se concentrar no porto de Goiabeiras,
mais precisamente no galpo da associao. Com o processo associativo de finais da
dcada de 1980, as paneleiras foram estimuladas pelo poder pblico municipal a se
organizar em entidade prpria, com estatuto e regimento interno. A partir desse
momento, estreitaram-se os laos com os poderes pblicos locais e algumas
demandas foram atendidas, como o galpo de trabalho e o transporte da matriaprima em caminho da prefeitura. Estado e municpio passaram a investir no turismo
e na gastronomia regional, que ganham relevo nessa estratgia de capitalizao
econmica e simblica. Com respeito disputa pelo barreiro, foram observados
conflitos e negociaes. Em relao ao processo produtivo propriamente dito,
observam-se mudanas significativas se comparadas aos tempos dos quintais.
Apesar do espao do galpo ser organizado em funo das famlias, observou-se que
se estrutura a partir de uma lgica empresarial, pautada por relaes mercantis com
auxiliares e clientes.
As oficinas programadas pelo IPHAN, em parceria com entidades com perfis
diferenciados, como so os casos do ArteSol e do SEBRAE, foram produzidas em
cima de um diagnstico que pouco refletiu as demandas e expectativas dessas redes
sociais pautadas em relaes de parentesco. As mudanas por conta das encomendas
e dos acertos polticos com os rgos pblicos trouxeram transformaes no
processo produtivo dentro do galpo. Em contrapartida, as paneleiras de fundo de
quintal possuem uma posio perifrica nesse sistema. Izabel Gomes Campos,
diante das exigncias de mercado e da nova racionalidade burocrtica do galpo,
resume o sentimento da paneleira velha, aquela to distinguida nos documentos de
inventrio e registro como referncia de saber de tradio e da transmisso desse
fazer artesanal:
Ela [paneleira velha] faz to perfeitinha e no vende. Ela no
reclama por necessidade. Mas ela quer fazer as panelas de barro
at os ltimos dias da vida dela. Porque uma coisa que da
raiz dela. Aquilo tradio; a raiz dela. Ela no precisa mais.
Mas ela quer ter o direito de pegar o dinheiro daquela obra que
ela fez e est servindo ainda. Isso uma raiz dela. Vem de
tradio e acabou. Aqui tinha uma senhora que morava aqui
numa casinha de estuque tambm. Ela era cega e viveu 104

230
anos... Ela com os olhos fechados alisava uma panela que voc
ficava impressionada! A panela ficava lisinha... e porque ela ia
alisando as panelas e botando onde estava numa caixinha. E
ficava ali sentada no banquinho gritando: - Olha as panelas!
Ela no fabricava, mas no podia faltar panela para ela alisar;
mesmo ela no enxergando. E por ali ela ficava: - Voc est
fazendo panela?. Eu falava: Estou. - A se eu pudesse, a se
minha vista fosse boa! Eu estava fazendo panela. Mas a
senhora est alisando a panela? Mas eu queria fazer,
entendeu?513.

A pesquisa de campo apontou diferenas no processo de apropriao do


registro. Fao tais consideraes a partir das minhas observaes e das entrevistas
realizadas, bem como dos trabalhos etnogrficos j realizados, seja atravs do
levantamento mais instrumental feito atravs do Inventrio do IPHAN para a
instruo do processo de registro e feita sob coordenao de antroplogos, seja
atravs das pesquisas realizadas por antroplogas, em momento anterior, sobre o
processo de trabalho das paneleiras. Ao final deste trabalho, busca-se enfatizar a
importncia da continuidade das anlises dos processos de Registro do Patrimnio
Imaterial, como enfatizou o antroplogo Luiz Fernando Dias Duarte, em seu
parecer, propondo um sistema de referenciamento e de valorizao dessa natureza de
registro:
Proponho que o IPHAN se habilite a apresentar ao Conselho
Consultivo relatrios bienais que permitam ao Conselho avaliar
os rumos de seu trabalho. Deveriam fazer parte da pauta dessas
avaliaes bienais de carter meramente informativo, por um
lado, a ateno aos possveis e eventuais efeitos negativos do
Registro, do ponto de vista de apropriaes mercantis
descabidas da conotao de autenticidade, por exemplo.514

Tais acompanhamentos parecem-me constitutivos da natureza desse bem


cultural. Justifica-se no estudo de caso apresentado pela prpria dinmica dos atores
sociais, das disputas polticas e transformaes no modo de organizao social e
produtiva dos agentes. Como exemplo a ser considerado, pode-se citar o processo
eletivo da associao, em abril de 2008. Os resultados das escolhas polticas tero
efeitos nas redes de relaes sociais com os rgos pblicos e privados que
participam desse processo de mediao cultural.
513

Entrevista gravada em novembro de 2006, no contexto da oficina de Salvaguarda do IPHAN.


IPHAN. Ata da 37 Reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Cultural, em 15 de novembro de
2002.
514

231

No contexto de produo do inventrio do IPHAN, as tenses provocadas


pelo acordo assinado entre a Diretoria da APG e CESAN, em 2001, expuseram
questes da representao poltica dos grupos familiares que esto na Associao. O
fato de os prprios associados assumirem publicamente os conflitos decorrentes do
modo de organizao social produtiva na Associao forneceu ao IPHAN as bases
conceituais que priorizou uma certa modalidade de ao de salvaguarda: as
oficinas de associativismo. Inclusive, como a temtica no era de ordem prtica
para as paneleiras do galpo, mais interessadas na reforma de seu espao de
trabalho, poucas foram as que participaram.
Esta tese, portanto, pretendeu demonstrar que o patrimnio imaterial deve ser
melhor compreendido em seu sentido etnogrfico. Qual seria, portanto, o papel dos
antroplogos diante da patrimonializao de seus objetos de estudo? Seria o
patrimnio cultural imaterial uma nova categoria antropolgica? O objetivo foi
refletir sobre as suas implicaes e problemticas. Os usos e apropriaes desses
processos parecem se multiplicar para alm da definio normativa proposta pelas
agncias de preservao. No caso analisado sobre o primeiro registro, o prprio
desenvolver da pesquisa exige um desdobramento do trabalho de acompanhamento
dessas relaes do galpo com as secretarias, com o IPHAN, com o SEBRAE e
demais instituies parceiras. Por fim, retomo aqui as palavras de Marcel Mauss:
trata-se mais de propor objetos de investigao do que resolver um problema e dar
uma resposta definitiva.515.

515

MAUSS, M. Ensaio sobre a ddiva. In: Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify,

2003, p. 309.

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APNDICE I - GUIA REVISTA DO PATRIMNIO


HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL. ndice cumulativo
(1937-1990)
POR ASSUNTO
POR AUTOR
VELHO,
ANTROPOLOGIA

POR ASSUNTO
CULTURA
Gilberto. Antropologia SOCIEDADE

POR AUTOR
E

CULTURA
INDGENA
BRASIL

e Patrimnio Cultural.
Ref. 192.

ARQUEOLOGIA
AMAZNIA

ARQUEOLOGIA
BRASIL

1.

CRULS,
Gasto. Arqueologia
Amaznica. Ref. 81

LOREDO,
Wanda
M.
Conservao
arqueolgica. Ref.
272.
MENESES,
Ulpiano B. Para uma
poltica arqueolgica
da SPHAN. Ref.
269.
MORLEY,
Edna.
Fazer
arqueologia: regatar
memrias. - Ref. 271.
TORRES,
Heloisa
Alberto.
Contribuio para o
estudo da proteo ao
material arqueolgico
e
etnogrfico
no
Brasil. - Ref. 3.

CULTURA
POPULAR

AMARAL,
Mrcio
Tavares.
Informtica e cultura:
o
impacto
da
informatizao
da
sociedade. - Ref. 203
CASTRO,
Eduardo
Batalha
Viveiros
de.
Curt
Nimuendaju:
104
mitos indgenas nunca
publicados. -Ref. 227
IANNI,
Octavio.
Cultura
Popular. - Ref. 242;

CRULS,
ARQUEOLOGIA
ETNOGRAFIA
Gasto.
BELTRO,
Maria
da
Decorao

BRASIL

BRASIL
malocas
Conceio de Moraes
das
LEGISLAO
indgenas. -Ref. 69.
Coutinho;SOLA, Maria
Elisa;JUNQUEIRA,
Paulo; SILVA, Regina
Coeli Pinheiro da;
MENESES,Ulpiano
Bezerrade. Patrimnio
Arqueolgico. - Ref.
268

TORRES,
Helosa
Alberto.
Contribuio para o
estudo da proteo do
material arqueolgico
e
etnogrfico
no
Brasil. - Ref. 3.

BELTRO,
MAUREAU,
ARQUEOLOGIA
FUNDAO
Maria
da
Conceio
Xavier.
Tecelagem
PR BRASIL PROJETO
NACIONAL
de M. C.; LIMA, Tnia
manual no Tringulo
CENTRAL BAHIA.
MEMRIA
Andrade.
Projeto
Mineiro: uma poltica

250
Central Bahia: os
zoomorfos da Serra
Azul e da Serra de
Santo Incio. - Ref.
233

sistemtica
de
inventrio tecnolgico.
- Ref. 226.

SOARES,
ARTESANATO
IDENTIDADE
Llia.
Produo
de
BRASIL
CULTURAL
artesanato popular e
identidade cultural. Ref. 184.
MAUREAU,
Xabier.
Tecelagem
manual no Tringulo
Mineiro: uma poltica
sistemtica
de
inventrio tecnolgico.
-Ref. 226.

BENS
CULTURAIS

GUEDES,
Maria
Tarcila.
Inventrio
Nacional
dos Bens Imveis
Tombados:
instrumento para uma
proteo eficaz. - Ref.
255

POLTICA
CULTURAL

BENS
CULTURAIS
PRESERVAO

ANDRADE,
Rodrigo Mello Franco
de. Palestra proferida
por Rodrigo M. F. de
Andrade, em Ouro
Preto,
a
1/7/68
(comemorao
do
257 aniversrio da

PATRIMNIO
ARQUEOLGICO BRASIL:

SANTOS,
ngelo Oswaldo de
Arajo. Restaure-se o
patrimnio. - Ref. 246.
LOPES,
Regina Clara Simes.
A propsito da poltica
cultural. - Ref. 241.
MAGALHES,
Alosio.
Bens
Culturais: instrumento
para
um
desenvolvimento
harmonioso. Ref.
193.
MENESES,
Ulpiano Bezerra de.
Identidade Cultural e
Arqueologia. - Ref.
191
SOARES,
Llia
Gontijo.
Produo
de
artesanato popular e
identidade cultural. Ref. 184.
TOLEDO,
Benedito Lima de.
Bem
Cultural
e
Identidade Cultual. Ref. 190.
VELHO,
Gilberto. Antropologia
e Patrimnio Cultural.
- Ref. 192
BOSI, Vera.
Participao
e
pesquisa
na
preservao
do
patrimnio cultural. Ref. 260.
FALCO,
Joaquim de Arruda.
Poltica
de
preservao
e
democracia. Ref.
194.
BELTRO,
Maria da Conceio
de Moraes Coutinho;
SOLA, Maria Elisa;
JUNQUEIRA, Paulo;
SILVA, Regina Coeli
Pinheiro
da;
MENESES, Ulpiano

251
elevao de Ouro
Preto categoria de
Vila). - Ref. 156.
MAGALHES,
Alosio.
Bens
Culturais: instrumento
para
um
desenvolvimento
harmoniso. - Ref. 193.
TOLEDO,
Benedito Lima de.
Bem
Cultural
e
Identidade Cultural. Ref. 190.

CULTURA

CULTURA
BRASIL

COHN,
Gabriel. Concepo
oficial de cultura e
processo cultural. Ref. 237.

PATRIMNIO
CULTURAL

JAGUARIBE,
Hlio. A universidade
e a cultura brasileira.
- Ref. 229.

PATRIMNIO
CULTURAL

PRESERVAO

Bezerra
de.
Patrimnio
Arqueolgico. Ref.
268.
MENESES,
Ulpiano Bezerra de.
Para uma poltica
arqueolgica
da
SPHAN. Ref. 269.
MORLEY,
Edna.
Fazer
arqueologia: resgatar
memrias. Ref. 271.
SILVA,
Regina Coeli Pinheiro
da. Sobre a preservao
dos
stios
arqueolgicos
brasileiros. Ref. 270.
ARANTES,
Antnio
Augusto.
Documen-tos
histricos, documentos de cultura. Ref.
250.
AZEVEDO,
Paulo Ormindo de.
Por um inventrio do
Patrimnio
Cultural
Brasileiro. Ref 254.
LOPES,
Regina Clara Simes.
A propsito de poltica
cultural. Ref. 241.
MICELI,
Srgio.
SPHAN:
refrigrio da cultura
oficial. Ref. 249
SANTOS,
ngelo Oswaldo de
Arajo. Restaure-se o
patrimnio. Ref. 246.
VELHO,
Gilberto. Antropolo-gia
e Patrimnio Cultural.
Ref. 192.
(ver)
BARTH
LEMY, Jean. Nosso
patrimnio no ano
2000. Ref. 204.
BOSI, Vera.
Participa-o
e
pesquisa na preservao do patrimnio
cultural. Ref 260.
COSTA, Lygia
Martins. A defesa do
patrimnio
cultural
mvel. - Ref. 194.

252

CULTURA
FINANCIAMENTO

FRANCO,
Maria
Ignez
Mantovani.
Lei
Sarney: desafio
competncia.
-Ref.
243.
LIMA,
Luiz
Costa. O Estado e a
Cultura. - Ref. 239.

POLTICA
CULTURAL
BRASILEIRA

FONTES,
Lcia
Helena
de
Oliveira;
COELHO,
Maria das Graas
Spencer; REIS, Alice
Amaral dos; NEVES,
Lucia.
Maria
e
Preserva-o
desenvolvimento: as
duas faces de uma
moeda urbana. Ref.
225.
FRANCO,
Luiz Fernando P. N.
veia,
Cultura
na
saudade em lata: por
uma
crtica
da
economia de esprito.
Ref. 251.
LERNER,
Dina;
RABELO,
Snia; ALCNTARA,
all.
Dora;
et.
Tombamento. Ref.
252.
TELLES,
Augusto Carlos da
Silva.
Centros
Histricos:
notas
a
poltica
sobre
brasileira de preservao. Ref. 174.
TOLEDO,
Benedito Lima. Bem
Cultural e Identidade
Cultural. Ref. 190.
COHN,
Gabriel. Concepo
oficial de cultura e
processo cultural.
Ref. 237.
KONDER,
Leandro. O Estado e
os
problemas
da
poltica cultural no
Brasil de hoje. Ref.
238.
LIMA,
Luiz
Costa. O Estado e a
Cultura. Ref. 239.
LOPES,
Regina Clara Simes.
A propsito de poltica
cultural. Ref. 241.

253

Antroplogos/ arquelogos/ socilogos/ pensamento social


ANDRADE, Mrio de. A Capela de Santo Antnio. (1937); Mrio de. Uma carta do Padre Jesuno de Monte Carmelo. (1941)
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Palestra proferida por Rodrigo M. F. de Andrade, em Ouro Preto, a 1/7/68
(comemorao do 257 aniversrio da elevao de Ouro Preto categoria de Vila). (1969) Ref. 156.
ARANTES, Antnio A. Documentos histricos, documentos de cultura. (1987) Ref. n. 250. Arantes, A. A. A guerra dos
lugares: sobre fronteiras simblicas e liminaridades no espao urbano (1994); Arantes, A. A. (Org.) . Cidadania: Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1996. v. 1. 303 p.
BELTRO, Maria da Conceio & LARAIA, Roque de Barros. O mtodo arqueolgico e a interpretao etnolgica. (1969)
Ref. 160;
BELTRO, Maria da Conceio. Patrimnio Arqueolgico. Ref. 268.
BOSI, Vera. Participao e pesquisa na preservao do patrimnio cultural. RPHAN, n. 22, p. 138-144. (1987). Ref. 260.
CANDIDO, Antnio. Patrimnio interior. Ref. 247.
CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. Curt Nimuendaju: 104 mitos indgenas. (1986) Ref. 227
CASTRO, Maria Laura Viveiros de. Barraco de escola e barraco de ala: breve estudo dos bastidores do carnaval. (1984)
Ref. 214.
COHN, Gabriel. Concepo oficial de cultura e processo cultural. (1987) Ref. 237.
CRULS, Gasto. Decorao das Malocas Indgenas. (1941) Arqueologia Amaznica. (1942) Ref. 81.
FREYRE, Gilberto. Casas de residncia no Brasil. (1943) Ref. 91; Sugesto para o estudo da arte brasileira em relao....
(1937) Ref. 5.
FURTADO, Celso. Pronunciamento na 124a Reunio do Conselho Consultivo 245

254

GUIDO, Maria Christina. Portinari segundo Mrio. (1984) Ref. 199.


HOLANDA, Srgio Buarque de. Capelas antigas de So Paulo. (1941) Ref. 66
IANNI, Octavio. Cultura Popular. (1987) Ref. 242
LARAIA, Roque de Barros. & O mtodo arqueolgico e a interpretao etnolgica. (1969) Ref. 160.
LIMA, Tnia Andrade. Projeto Central Bahia: os zoomorfos.... Ref. 233.
LOPES, Raimundo. A natureza e os monumentos culturais. (1937) Ref. 10; Pesquisa etnolgica sobre a pesca brasileira no
Maranho. (1938) Ref. 31.
MAGALHES, Alosio. Bens Culturais: instrumento para um desenvolvimento harmonioso. (1984) Ref. 193.
MATTA, Roberto da. Casa, rua & outro mundo: reflexes sobre o espao e a sociabilidade. (1984) Ref. 172.
MAUREAU, Xabier. Tecelagem manual no Tringulo Mineiro: uma poltica sistemtica de inventrio tecnolgico. Ref. 226.
MENESES, Ulpiano B. Identidade cultural e arqueologia. (1984) Ref. 191; Patrimnio arqueolgico. Ref. 268; Para uma
poltica arqueolgica da SPHAN. Ref. 269.
MICELI, Srgio. SPHAN: refrigrio da cultura oficial. (1987) Ref. 249.
MORLEY, Edna. Fazer arqueologia: regatar memrias, Ref. 271.
NIMUENDAJU, Curt. A habitao dos Timbiras. (1944) Ref. 99.
PINTO, Edgar Roquette. Estilizao. (1937) Ref. 8.
RIBEIRO, Orlando. & CAPINAM, Maria Bernadete. A coroa de Xang no terreiro da Casa Branca. (1986) Ref 235.
SILVA, Regina Coeli. Patrimnio arqueolgico. Ref. 268; Sobre a preservao dos stios arqueolgicos brasileiros, (1987)

255

ref. 270
SOARES, Llia G. Produo de artesanato popular e identidade cultural. (1984) Ref. 184.
SOLA, Maria Elisa. Patrimnio arqueolgico. Ref. 268.
TOLEDO, Benedito Lima. Bem Cultural e Identidade Cultural. Ref. 190
TORRES, Helosa Alberto. Arte indgena na Amaznia. (1940)
TORRES, Helosa Alberto. Contribuio para o estudo da proteo do material arqueolgico e etnogrfico no Brasil. (1937)
Ref. 3
VELHO, Gilberto. Antropologia e Patrimnio Cultural, (1984) ref. 192; A grande cidade brasileira: sobre heterogeneidade e
diversidade culturais, (1986) ref. 224.

256

APNDICE II - LIST OF PARTICIPANTS of UNESCO Experts


Meeting on Inventorying Intangible Cultural Heritage. Paris, 17-18
March, 2005.

EXPERTS
CharlesSamsonAKIBODE
HamadyBOCOUM
ShubhaCHAUDHURI
AlanGOVENAR
LungtenGYATSO
SlimaneHACHI
MarcJACOBS
AkbarKHAKIMOV
ChrifKHAZNADAR
Philippe LA HAUSSE DE
LALOUVIERE

PASES
CapeVerde
Senegal
India
USA
Bhutan
Algeria
Belgium
Uzbekistan
France
Mauritius

Spain
Mexico
SouthAfrica
Nicaragua
Colombia
Haiti
Japan
BurkinaFaso
Vietnam
Colombia
Brazil
Bulgaria
Lithuania
Japan
ICTM,
Los
Angeles/USA
Lithuania
IrenaSELIUKAITE
Cambodia
HangSOTH
Mali
TrbaTOGOLA
Georgia
RusudanTSURTSUMIA
Panama
Arstides Burgos VILLARREAL
FrancescLLOPIBAYO
JessAntonioMACHUCA
ThaboMANETSI
RobertMARENCO
LuzAmparoMEDINA
ClaudeMETAYER
ShigeyukiMIYATA
OumarouNAO
KimDungNGUYEN
CesarPARRA
MarciaSANTANNA
MilaSANTOVA
VidaSATKAUSKIENE
NaokoSATO
AnthonySEEGER

WendWENDLAND
AhmedYASSIN

WIPO,
Geneva/Switzerland
Kenya

257

OBSERVERS
NorikoAikawa
IgorBailen
YamelisLinares
NseirGhassan
JosLuisFernndezValoni
CarlosHerrera
CarlosCueto
FranoiseMedegan
AlejandraPadron
FeddoulKammah
NejjarA.N.
AydinSefaAkay
YatiGrissa
CorinneMagail
AnaZacarias
JavierDiaz
ErnstIten
NikiTselenti
AssiaAlakhras
SoobarahGowoothum
LenaVanelslander
BoughabaKumel
BaghliSidAhmed
G.Helgadttir
LissanEdith
D.BlondinDiop
R.Yebali
AbderrahmanAyoub
S.Whitaker
MerleSchnatenbach
GabrieleFasem
MariaWalcher
JacobJohn
AdrianaValads
MariaUbach
VeraLaccoeuille
Ameraswargalla
J.Thvenot
SvendPoulsenHansen
MaleneNielsen

Japan
Philippines
Venezuela
Syria
Argentina
Peru
Peru
Benin
Venezuela
United
Arab
Emirates
Morocco
Turkey
Indonesia
Monaco
Portugal
CostaRica
Switzerland
Greece
Palestine
Mauritius
Belgium
Algeria
Algeria
Iceland
Benin
Senegal
Tunisia
Tunisia
Brazil
Germany
Italy
Austria
India
Mexico
Andorra
StLucia
Australia
ICOM
Denmark
Denmark

258
SolveigVerheyleweghen
ChaficaHaddad
ClaudinedeKendamiel

N.Lagidz
NicoleFadel

Norway
Grenada
StVincentandthe
Grenadines
China
Dominican
Republic
Georgia
Djibouti

UNESCOSecretariat
MounirBouchenaki
RieksSmeets
EstelleBlaschke
FernandoBrugman
FranoiseGirard
MihoKobayashi
SabineKube
AnahitMinasyan
CesarMorenoTriana
ArianaMorris
DavidStehl
ReikoYoshida
SamiraZinini
EdgarMontiel
FumikoOhinata
NildaAnglarill
MontserratMartell
MohamedOuldKhattar

AssistantDirectorGeneralforCulture
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
IntangibleHeritageSection
CultureandDevelopmentSection
WorldHeritageCentre
UNESCOOfficeDakar
UNESCOOfficeHavana
UNESCOOfficeRabat

SuXu
CarlosSegura

259

APNDICE III - INVENTRIOS E REGISTROS DO PATRIMNIO


IMATERIAL
Fonte: http://www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/tramitao/tramitao.htm. Acessado em 02/05/2004

TRAMITAO DOS PROCESSOS DE REGISTRO DE BENS CULTURAIS DE


NATUREZA IMATERIAL
N do Nome
Proponente
Data de
Tramitao
Dossi
Abertura
07/05/2001 O processo foi
R - 02 Talian/Municpio Associao dos
remetido 12a SR
de Erechim/RS
Apresentadores de
RS, em 08/11/01
Programas de Rdio
para anlise,
Talian do Brasil solicitando
ASSAPRORATABRAS
providncias para
complementao
das informaes.
O processo foi
R - 03 Enciclopdia Ita Instituto Ita Cultural
07/11/01
encaminhado ao
Cultural de Artes
Deprot em 06/05/02,
Visuais/SP
onde est sendo
analisado,
aguardando uma
deciso final sobre o
arquivamento e/ou
andamento do
pedido.

R - 04 Crio de Nossa
Senhora de
Nazar/PA

17/12/01
Arquidiocese de
Belm/PA e Diretoria da
Festa do Crio

R - 05 Toque dos Sinos


de So Joo Del
Rei/MG

Secretaria de Estado da
Cultura de Minas Gerais

R - 06 Queijo do
Serro/MG

Secretaria do Estado da 12/11/01


Cultura de Minas Gerais
e Associao dos Amigos
do Serro

R - 08 Festival
Folclrico de
Parintins dos
Bumbas

Secretaria da Cultura,
Turismo e Desporto do
estado do Amazonas AM

12/11/01

23/09/02

O processo
encontra-se na 2a
SR, em fase final
de instruo.
O processo foi
encaminhado em
12/11/01 13a SR ,
onde ainda se
encontra para
instruo.
O processo foi
encaminhado 13a
SR, 12/11/01, para
complementao
da instruo
tcnica, a ser
realizada pelo
proponente,
SEC/Iepha-MG.
O pedido encontra-se
em anlise na
Gerncia de
Referncias

260
Culturais do DID e,
posteriormente, ser
encaminhado 1a SR
do Iphan, que ficar
encarregada da
superviso da
instruo tcnica do
processo pelo
proponente
SEC/AM

Garantido e
Caprichoso

R - 09 Obra do Poeta
Patativa do
Assar/CE

4a Superintendncia
17/10/02
Regional do IPHAN e
Instituto de Arquitetos do
Brasil/CE.

R - 10 Banda Cabaal
dos Irmos
Aniceto de
Crato/CE

4a Superintendncia
17/10/02
Regional do IPHAN e
Instituto de Arquitetos do
Brasil/CE.

R - 11 Festa do Pau da
Bandeira de
Santo Antnio,
Barbalha/CE

4a Superintendncia
17/10/02
Regional do IPHAN e
Instituto de Arquitetos do
Brasil/CE.

R - 12 Festa do Glorioso Irmandade do Glorioso


So Benedito de So Benedito da Cidade
Angra dos Reis - de Angra dos Reis/RJ
RJ

20/11/02

R - 13

17/12/02

Acaraj

Associao de Baianas de
Acaraj e Mingau do Estado
da Bahia, Centro de Estudos
Afro-Orientais da UFBA e
Terreiro Il Ax Op afonj

O dossi de
estudos foi
encaminhado 4a
SR em 09/12/02
para
complementao
da instruo
tcnica do
processo.
O dossi de
estudos foi
encaminhado 4a
SR em 09/12/02
para
complementao
da instruo
tcnica do
processo.
O dossi de
estudos foi
encaminhado 4a
SR em 09/12/02
para
complementao
da instruo
tcnica do
processo.
O dossi de
estudos foi
encaminhado 6a
SR em 28/11/02
para
complementao
da instruo
tcnica do
processo.
O pedido encontra-se
em anlise na Gerncia
de Referncias
Culturais do DID.

261
Fonte: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=12455&sigla=Instituc...
Acessado em 12/10/2006
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12456&retorno=paginaIphan
Acessado em 4/3/2008
INVENTRIOS
EM
ANDAMENTO
Povos Indgenas do
Alto Rio Negro em
Manaus/AM

INVENTRIOS
REALIZADOS

PROCESSOS DE
REGISTRO EM
ANDAMENTO

BENS
CULTURAIS
REGISTRADOS

Museu Aberto do
Descobrimento/BA

Complexo Cultural do
Bumba-meu-Boi do
Maranho

Ofcio das
Paneleiras de
Goiabeiras
Vitria/ES
Arte Kusiwa
Pintura corporal e
arte grfica
Wajpi/ AM
Crio de Nossa
Senhora de
Nazar
Belm/PA
Samba de Roda
do Recncavo
Baiano
Modo de fazer
Viola-de-Cocho
MS/MT
Ofcio de Baiana
de Acaraj
Salvador/BA
Jongo no Sudeste
RJ/SP

Ilha de Maraj/PA

Ofcio de Paneleiras Cantos Sagrados de


Milho Verde/MG
de Goiabeiras
Vitria/ES

Tacac/PA
(CNFCP)

Crio de Nossa
Senhora de Nazar
Belm/PA

Cuias de
Santarm/PA
(CNFCP)
Farinha de
Mandioca/PA
(CNFCP)
Natividade/TO

Ofcio de Baiana de Capoeira/RJ/BA


Acaraj
Salvador/BA
Sanduche Bauru/SP
Modo de fazer
Viola-de-Cocho
MS/MT
Jongo no Sudeste Mamulengo/RN/PE/PB
RJ/SP

Centro Histrico de
So Luiz /MA

Cermica
Candeal/MG
(CNFCP)
Complexo Cultural
do Bumba-meu-Boi
do Maranho

Rio de Contas/BA

Rotas da Alforria
Cachoeira e So
Flix/BA
Regio do Cariri/CE
Festas do Largo de
Salvador/BA
(CNFCP, com
recursos da
Petrobrs).
Feira de Caruaru/PE

Circo de Tradio
Familiar/Nacional

Feira de Caruaru/PE

Teatro Popular de
Bonecos Brasileiros
(Mamulengo)

Cachoeira de
Iauaret Lugar
Sagrado dos Povos
Indgenas dos Rios
Uaups e Papuri

Feira de So Joaquim,
em Salvador/BA

Feira de Caruaru

Empada ou Empado de Frevo/PE


Gois/GO
Alfenim de Gois/GO
Tambor de
Crioula do
Maranho

Cux/MA

Matrizes do
Samba no RJ:

262
partido alto,
samba de terreiro
e samba-enredo
Comunidades
Quilombolas de
Pernambuco/PE
Feiras do Distrito
Federal/DF
Congo de Nova
Almeida Serra/ES

Bom Retiro So
Paulo/SP
Festa do Divino
Maranhense no Rio
de Janeiro/RJ
(CNFCP, com
recursos da
Petrobrs)
Povo Guarani So
Miguel das
Misses/RS
Stio Histrico de
Porongos Pinheiro
Machado/RS
Viola Caipira do
Alto e Mdio So
Francisco/MG
Lapa/PR
Levantamento de
documentos sobre o
Estado de Sergipe
Cermica de Rio
Real/BA (CNFCP)
Queijos
Artesanais/MG
Toque dos
Sinos/MG
Comunidades
Impactadas pela
Usina Hidreltrica
de Irap Regio do
Mdio
Jequitinhonha/MG
(Realizado com
recursos da
CEMIG). O DPI

Linguagem dos Sinos


nas Cidades Histricas
Mineiras/MG
Queijos Artesanais de
Minas/MG
Festival Folclrico de
Parintins dos BoisBumbs Garantido e
Caprichoso/PA
Festa do Divino Esprito
Santo de Pirenpolis
Festa de So Sebastio,
do municpio Cachoeira
do Arari, da Ilha de
Maraj

Registro das Festas do


Rosrio
Ritual Ykwa do povo
indgena Enawen
Naw
Artesanato Tikuna AM

Farmacopia Popular do
Cerrado
Modo de Fazer Renda
Irlandesa
Lugares Sagrados dos
Povos indgenas
xinguanos/MT

263
disponibilizou a
metodologia.
Porto Nacional
(realizado pela
Fundao Cultural
do Estado de
Tocantins com
recursos dessa
Fundao)
Parque Nacional
Grande Serto:
Veredas/MG (em
parceria com a
Funatura)
Medicina
Tradicional/RJ
(realizado pela Rede
Fitovida, com
recursos prprios)

264

APNDICE IV - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS DO INVENTRIO DE


REFERNCIAS CULTURAIS DAS PANELEIRAS

Jornais do
Esprito
Santo

A Tribuna

A Gazeta

ANO/TTULO

1976
Ttulo

1980
Ttulo

1983
Ttulo

1985
Ttulo

1990
Ttulo

1
Artesanato:
As Panelas de
Barro No
Sero Feitas
(18/04/1976)
1
O Consciente
Ofcio de
Quem
Mantm Viva
a Arte
Regional
(21/09/1980)

Paneleiras:
est
morrendo o
maior
artesanato
capixaba
(12/10/1980)
1
Artesanato e
Panela de
Panela de
Barro:
Reminiscncia Barro
(25/05/1983)
de um
Passado que a
Indstria
ainda no
Apagou.
(28/08/1983)
1
A Tradio
das
Paneleiras de
Goiabeiras
Est
Morrendo
(16/04/1985)
1
PMV Estuda
Nova rea de

Notcia
Agora

Jornal
Calado
da Praia

Jornal do
Laboratrio
do Curso de
Comunicao
Social da
UFES

265

1991
Ttulo

1992
Ttulo

1993
Ttulo

1994
Ttulo

1995
Ttulo

1996
Ttulo

Argila para
Paneleiras.
(15/12/1990)
1
Trabalho das
Paneleiras
Est
Ameaado
(17/03/1991)
1
1
Urbanizao Panelas de
ameaa acabar Barro So
Atrao em
com smbolo
Braslia
da cultura
(02/07/1992)
capixaba.
(21/07/1992)
1
1
Paneleiras
Artesanato
das paneleiras Querem
Atuar em
vai estar em
rea de Joana
exposio
DArc
(29/07/1993)
(22/06/1993)
1
2
Cesan
Exposio
Procura
Mostra
Jazida de
Tradio de
Barro Para
400 Anos
Paneleiras
(08/07/1994)
(10/03/1994)
Joana DArc
Ganha
Estao de
Esgoto.
(06/03/1994)
1
Um Olhar
Feminino
Sobre as
Paneleiras
(3/07/1995)
1
1
E do Barro Se Panelas de
Fez a Panela. Barro no
Mapa:
(11/04/1996)
Pesquisadores
da
FUNARTE

266

1997
Ttulo

1998
Ttulo

1
Faz na Panela
de Barro:
Associao
garante
qualidade
(18/09/1998)

descobrem as
paneleiras e
preparam
catlogo de
exposio.
(11/03/1996)
3
Panela de
Barro de 2
Metros de
Dimetro
Pode Ir para o
Guiness
(13/05/1997)
Um Smbolo
da Cultura
Popular: A
Panela de
Barro
Suporte para
o Preparo da
Moqueca.
(31/07/1997)
Paneleiras
Podem Ir
Para o
Guiness
Book.
(01/08/1997)
3
Mos Hbeis
que Fazem a
Histria: As
panelas de
barro, um dos
smbolos da
cultura
capixaba.
(30/07/1998)
Panelas com
Rock na
Noite de
Goiabeiras.
(30/06/1998)
Festa das
Paneleiras
Atrai 25 Mil.
(03/08/1998)

267
1999
Ttulo

2000
Ttulo

1
Paneleiras de
Mo Cheia.
(25/07/1999)
2
Hoje Tem
Forr na Festa
das
Paneleiras.
(27/07/2000)

2
Tradio de
Me para
Filhos: a arte
que vem do
barro.
(27/07/2000)
Paneleiras
Esperam
Vender 25%
a Mais.
(26/11/2000)

Panelas
Capixabas.
(19/07/2000)

2001
Ttulo

3
Paneleiras
Vencem Briga
pelo Vale do
Mulemb.
(28/03/2001)
Moradores
Saem em
Defesa das
Paneleiras.
(13/03/2001)

Governo
Ignora
Prefeitura e
Manda Iniciar
Obras do
PRODESAN
em Vitria.
(03/10/2001)

10
Paneleiras
Recolhem
Assinaturas
em Feira.
(18/03/2001)
A Vingana
dos
Enfezados: a
nossa
moqueca
corre o risco
de perder o
cristal de seu
clice.
(18/03/2001)
Salvamos o
Mulemb.
(17/03/2001)

Panelas de
Barro
Ganham Selo
Oficial.
(10/08/2001)
Paneleiras
Discutiro a
Lei.

268

2002
Ttulo

3
Panela de
Barro Vira
Patrimnio
Histrico.
(10/01/2002)
Frank Aguiar
na Festa das
Paneleiras.
(07/08/2002)
Festa Com
Forr e 2 Mil
Panelas de
Barro.
(08/08/2002)

(13/03/2001)
Estao de
Esgoto
Assusta
Paneleiras:
Elas
Participam de
Reunio com
a CESAN
para Negociar
a Construo.
(04/03/2001)
Impasse
sobre Terreno
de Paneleiras
Continua.
(08/03/2001)
Paneleiras
Vo Justia.
(09/03/2001)
Paneleiras.
(25/06/2001)
PRODESAN
Embargado
no Vale do
Mulemb.
(23/10/2001)
4
Patrimnio
Imaterial.
(03/08/2002)

Panela de
Barro Vira
Patrimnio
Nacional.
(08/08/2002)
Paneleiras de
Viana
Querem
Divulgao.
(11/08/2002)
Panela de
Barro.
(15/02/2002)

1
Panela de
Barro
Tradio
Milenar no
Estado.
(03/2002)

269
2003

Ttulo

Festa das
Paneleiras
por Um
Fio. (30/07
a
15/09/2003)

2004
Ttulo

2005
Ttulo

1
Mos
Mestras:
Conhecer o
processo de
fabricao da
panela de
barro, alm
de comer
torta
capixaba,
uma boa dica
neste feriado.
(07/04/2004)

1
Goiabeiras
D um Show
Cultural: No
bairro
possvel
encontrar a
unio das
bandas de
congo, do
artesanato e
da
religiosidade.
(07/11/2004)
1
Festa das
Paneleiras
Est de
Volta em
Parceria
com a
Prefeitura
de Vitria.
(nov. dez
2005)

1
Impasse no
Futuro da
Tradio.
(05/2005)

270

Jornais
de
outros
estados

Jornal do Brasil (Rio de


Janeiro)

1976
Ttulo

1
Paneleiras, A Arte que
Nasce da Lama. (03/12/1976)

2000
Ttulo

Folha
da
Memria (Natal
Rio
Grande
do
Norte)

1
Patrimnio
Imaterial. Natal,
v.5. n.26, jul./ago.
2000

2001
Ttulo

Livros e
Outras
Publicaes No
Seriadas

1
Panela,
Caldeiro
e
Frigideira: O Ofcio
das Paneleiras de
Goiabeiras. N. 147,
2001. p. 123-8.
IHGES

1980

1994

Sub

II/

Assunto

IPHAN
Vitria, ES

1974

1978

Revista Tempo
Brasileiro
(Rio
de
Janeiro)

NEVES, Guilherme
dos
Santos.
Folclore
Brasileiro: Esprito Santo.
[s.l], MEC; FUNARTE,
1978.
NEVES, Guilherme
dos
Santos.
Folclore
Capixaba. [s. n. t.], 1980.
NEVES, Guilherme
dos Santos & PACHECO,
Renato Jos da Costa. ndice
do Folclore Capixaba. [s. l],
[s. ed.], 1994

Caldeiras
SAINTHILAIRE, Auguste de. de terracota em
Viagem ao Esprito Goiabeiras,
Santo e Rio Doce; Vitria, ES
De
Milton
Trad.
Amado, Pref. de Mrio
Guimares Ferri. Belo
Horizonte,
Itatiaia/USP, 1974. p.
55
Panelas
de barro do ES,
Congo, moqueca
capixaba.
Panelas
de barro do ES,
Congo, moqueca
capixaba.
Paneleiras
de Goiabeiras.

271
APNDICE V - QUADRO SOBRE O GRUPO DE
GENEALOGIA E GRUPO FAMILIAR A QUE PERTENCE

FAMLIAS
GOMES/

IDA ENDEREO
DE

ESCOLARIDADE

REFERNCIA:

OCUPAO GRAU DE
PARENTESCO

FERREIRA

Bernanci
Gomes
Ferreira

69

Rua
Desembargador
Cassiano
Castelo, n 243

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

(mudou-se
para o
quintal do
marido)
Rubens
Ferreira da
Conceio

Fale- Rua
Ensino Fundamental
cido Desembargador
Incompleto
Cassiano Castelo,
n 243

Rua Fernando
Ferrari, s/n

Ensino Fundamental
Incompleto

Rua Fernando
Ferrari, s/n

Ensino Fundamental
Incompleto

45

Municpio da
Serra

Ensino Mdio
Completo

44

Rua Jos Gomes


Loreto, n 157

Ensino Fundamental
Incompleto

Filha de Odete
Corra Gomes
(paneleira) e Alcides
Gomes (pescador).
Neta de Galdncia
da Vitria
(paneleira) e Jos
Prima de Zilda,
Gilda e Jaqueline
(por parte de pai).

Aposentado
pelo curtume

Marido de
Bernanci
Filho de Ana
Ferreira da
Conceio (me
Ana)

Aposentado

Irmo de Bernanci

Nilson Corra
Gomes

71

Onadir Corra
Gomes

65

Ana Lcia
Gomes
Ferreira

48

Rubens
Gomes
Ferreira
Lailson
Gomes
Ferreira
Bernadete
Gomes
Ferreira
Larcio
Gomes
Ferreira

42

Bairro So
Benedito

Ensino Fundamental
Auxiliar de
Incompleto
servios gerais Filha de Bernanci

40

Ensino Fundamental Desempregado


Incompleto
(catador de
Filho de Bernanci
papel)

Inete Gomes
Ferreira

38

Rua
Desembargador
Cassiano Castelo,
n 243
Rua
Desembargador
Cassiano Castelo,
n 243
Rua
Desembargador
Cassiano Castelo,
n 243

Ensino Fundamental
Incompleto

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ensino Fundamental
Incompleto

Aposentado Irmo de Bernanci


Rua
Auxiliar de
Ensino Fundamental
Desembargador
Incompleto
servios gerais Filha de Bernanci
Cassiano Castelo,
(alisa e passa
n 243
faca)
Funcionrio da
CST
Filho de Bernanci
Paneleiro
(arteso)

Filho de Bernanci
(pai de dois filhos)

Jorge Gomes
Ferreira

32

Zilda Gomes
Campos

59

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira
Filha de Bernanci
(me de quatro
filhos)

Comercirio

Paneleira

Filho de Bernanci

(filha de Joo
Campos e de
Geralda Gomes
Campos. Neta de
dona Dudpaneleiras)

272
Prima de Bernanci
por parte de me
Cunhada de Izabel

Gilda Gomes
Campos

44

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ensino mdio
completo

Paneleira

Irm de Zilda
Prima de Bernanci
(me de uma filha)

Cssia
Cristina
Gomes
Campos
Jaqueline
Gomes
Campos

12

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ensino Fundamental
Incompleto

Estudante
(ajuda alisar,
passar faca)

Filha de Gilda
Sobrinha de Zilda

40

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira e
comerciaria.

Irm de Zilda
Prima de Bernanci
(me de dois filhos)

Vitor Afonso
Gomes Santos

15

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ester Gomes
Barboza

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Wagner
Gomes
Ricardo
Douglas
Corra
Campos

28

Rua Fernando
Ferrari n 1751

27

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Gean Corra
Campos

35

Rua Fernando
Ferrari n 1751

Ensino Fundamental
Incompleto

Estudante
(ajuda alisar,
passar faca)
Ensino Fundamental
Estudante
Incompleto
(ajuda alisar,
passar faca)
Ensino Fundamental Amassa barro,
Incompleto
escolhe, alisa e
queima panela.
Ensino Mdio
Eletricista.
Completo
Amassa barro,
escolhe, vira
panela. Faz
porco (cofre)
Ensino Mdio
Trabalha no
Completo
aeroporto

Filho de Jaqueline
Sobrinho de Zilda
Filha de Jaqueline
Sobrinho de Zilda
Sobrinho de Zilda

Sobrinho de Zilda.
Filho de Izabel
Corra Campos

Sobrinho de Zilda.
Filho de Izabel
Corra Campos.

273

IDA- ENDEREO ESCOLARIDADE OCUPAO GRAU DE


FAMLIAS
PARENTESNASCIMENTO/ DE
CO
ALVES
RODRIGUES
Lucia Florinda
Nascimento Corra

95

(mudou-se para o
quintal do marido.
Ao enviuvar voltou
para o quintal dos
pais).

Moacir Alves
Corra

Rua Rogrio do
Nascimento, n
5

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Ensino Fundamental
Incompleto

Pescador

Filha de Telvina
(paneleira) e
Rogrio do
Nascimento
(lenhador).
Neta de
Cndido e
Edvirges (por
parte de pai)
Cunhada de
Melchiadia

Falecido

Rua Leopoldo
Gomes Salles
(quintal dos
Alves Corra)

Lucila do
Nascimento
Corra

76

Morro Boa Vista

Ensino Fundamental
Incompleto

Egdia do
Nascimento
Corra

80

Rua 1, Bairro
Repblica

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Irm de Lucia

Guilhermina

82

Av. Fernando
Ferrari, n 2.330

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Irm de Lucia

Jos Alves
Corra

52

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Ensino Fundamental
Completo

Motorista

Filho de Lcia

Geci Alves
Corra
(mudou-se para
o quintal do
marido)

66

Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19

Ensino Fundamental
Incompleto

Gecildo Alves
Corra

64

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
80

Ensino Fundamental
Completo

Genildo Alves
Corra

62

Municpio da
Serra

Ensino Fundamental
Completo

Jenete Alves
Rodrigues

69

Rua Rogrio do
Nascimento,
n5

Ensino Fundamental
Incompleto

Nascimento
Gomes

(quintal dos Alves


Corra)

Marido de
Lucia
Filho de
Floripis Alves
(paneleira) e
Viriato Corra

Irm de Lucia
Paneleira
(queima na casa (marido de Lucila
era primo do
de Jenete)
marido de Jenete)

Filha de Lucia,
esposa de
Valter Corra
da Victria
(me de quatro
filhos)
Aposentado por Filho de Lucia
posto de
(marido de
gasolina
Marlene
Corra Alves paneleira)
Aposentado por
posto de
Filho de Lucia
gasolina
Paneleira

Paneleira

Filha de Lucia
(Sobrinha de
Melchiadia;
prima de
Mariente
e Evanilda)

274
Avelino Rodrigues
Neto

Jamilda Alves
Rodrigues Bento

Falecido

45

(mudou-se para o quintal


do marido)

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Ensino Fundamental
Incompleto

Pedreiro e
aposentou-se
pelo aeroporto

Rua Irminio
Coelho de
Souza, 26

Superior Completo

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Ensino Mdio
Completo

Paneleiro
(arteso)
tira panela da
fogueira e
escolhe o barro

Funcionria
Pblica

Marido de
Jenete Sobrinho do
marido de Iraci
e irmo do
marido de
Melchiadia

Filha de Jenete

Lcio Alves
Rodrigues

43

Avelino Alves
Rodrigues

42

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Ensino Fundamental
Incompleto

Cozinheiro da
CST

Luciene Alves
Rodrigues

39

Municpio da
Serra

Ensino Mdio
Completo

Manicura

Moacir Alves
Rodrigues

32

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Superior Incompleto

Dbora Alves
Rodrigues

31

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Ensino Mdio
Completo

Vira, alisa e
passa a faca.

Henrique Jos
Alves Rodrigues

28

Rua Rogrio do
Nascimento, n5

Superior Completo

Professor

Filho de
Jenete

Maria Emlia
Rodrigues
Bento.

16

Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 26

Ensino Mdio
Incompleto

Estudante

Filha de
Jamilda

Filho de
Jenete

Filho de
Jenete
Filha de Janete

Estudante
Filho de
universitrio
Jenete
(tira panela e
escolhe o barro)

Filha de Jenete

275

FAMLIA

BARBOZA
Maria da
Conceio
Gomes
Barboza

IDADE ENDEREO ESCOLARIDADE


78

Rua Jos Alves


n 111

Ensino
Fundamental
Incompleto

OCUPAO
Paneleira

(mudou-se para o
quintal do marido.
Hoje, na casa moram
02 filhos e 02 netos)

Jucilem
Barboza

Ipojucam
Barboza

falecido Rua Jos Alves


n 111

Ensino Fundamental Tirador de


Incompleto
barro, vira,
alisa e queima
panela.
Ensino Fundamental Auxiliar de
Incompleto
servios gerais

Rua Jos Alves


n 111

48

Rua Jos Alves


n 111

46

Municpio da
Serra

Ensino Fundamental Paneleiro


Incompleto
(arteso)
Tira as panelas
da fogueira.
(trabalha no quintal
dos Barboza)

43

Rua Jos Alves


n 111

Ensino Fundamental Paneleira


Filha de M. da
Incompleto
Aoita e
Conceio Barboza
queima panela. (solteira sem filhos)

44

Rua Jos Alves


n 111

36

Rua Jos Alves


n 111

Ensino Fundamental Limpa o


Incompleto
quintal e alisa
as panelas
(eventualmente
queima).
Ensino Fundamental Paneleira e
Incompleto
aux. de
servios gerais

46

Rua Jos Alves


n 111

Ensino Fundamental Paneleira e


Incompleto
trabalha na
creche

Rua Jos Alves


n 179

Ensino
Fundamental
Incompleto

(mora no quintal)

Ivonei
Barboza
(mora com
esposa e filhos
em outro
quintal)

Jucileida
Barboza
(mora com a me)

Jucilem
Barboza Filho
(mora com a me)

Jucila
Barboza
(mora no quintal)

Marli Barboza
(mora no quintal)

Ilza dos
Santos
Barboza
(permaneceu no
quintal e casa
dos pais)

Marido
de
Ma.
Conceio Barboza e
filho de Carolina
Salles (paneleira) e
Joo
dos
Santos
Barboza.
Primo de Elizete
Salles
Filho de Maria da
Conceio, esposo de
Marli.

55

(mora no quintal)

Ivanete
Barboza

Ensino Fundamental Vigilante


Incompleto
UFES.
(tirava marisco
e caranguejo
do mangue).

GRAU DE
PARENTESCO
Filha de Maria Corra
da Vitria e Manoel
Gomes Brando.
Neta de Galdncia da
Vitria e Jos e Ma.
Benedita (av
paterna)

70

Paneleira

Filha de Conceio
(separada com dois
filhos)
Filho de Maria da
Conceio Barboza

Filho de Ma. da
Conceio
(solteiro sem filhos)

Filha de M. da
Conceio Barboza
(viva com trs
filhos)
Nora de Conceio,
(esposa do Ipojucam
me de quatro filhos)
Filha de Carolina
Salles Santos
(paneleira) e Joo
Barboza dos Santos
Neta de Jardelina e
Leopoldo Gomes
Salles.
(Cunhada de Ma. da
Conceio; prima de
Elizete e Valdelicis
Salles)

276
Waldir
Chaves
Barboza

72

Cleberson dos
Santos
Barboza

30

Rua Jos Alves


n 179

45

Rua Jos Alves


n 179

Ensino Mdio
Completo

34

Rua Jos Alves


n 179

Ensino Mdio
Incompleto

Rua Jos Alves


n 179

Ensino Fundamental Ajudante de


incompleto
pedreiro. Alisa
panela, ajuda
na fogueira e
escolhe barro.
Varre o
quintal.
Ensino Mdio
Trabalha em
Completo
firma de
granito

Marido de Ilza
Barboza

Filho de Ilza Barboza


e Waldir

(mora com os
pais)

Snia dos
Santos
Ferreira
(mora no quintal dos
Barboza)

Rogria
Santos
(mora no quintal dos
Barboza)

Sobrinha de
Conceio e Ilza.
Auxiliar de
Filha
de Teresa
servios gerais.
Barboza (irm de Ilza)
(me de um filho)
Do lar
Sobrinha de Ilza e de
(ajuda a virar e Conceio. Filha de
a alisar)
Teresa Barboza
(me de uma filha)

Paneleira

277

FAMLIAS
ALVES CORRA

IDA ENDEREO
DE

Melchiadia
Alves Corra
da Vitria
Rodrigues
(mudou-se para o
quintal do marido
voltou para o quintal
dos pais)
Alceneu
Rodrigues

80

GRAU DE
PARENTESCO

ESCOLARIDADE

OCUPAO

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104.

Ensino
fundamental
incompleto

Paneleira

79

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104.

Ensino
fundamental
incompleto

Alcilene
Rodrigues

48

Ensino Mdio
Completo

Alceli Maria
Corra
Rodrigues

46

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104
Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104.

Adilson
Rodrigues

43

Ensino Mdio
Completo

Segurana.
Aoita panela.

Filho de Melchiadia

Adalberto
Rodrigues

41

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104
Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104

Ensino Mdio
Completo

Aposentado pelo
exrcito por
deficincia fsica

Filho de Melchiadia

Ademilson
Rodrigues

40

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
104

Ensino Mdio
Completo

Filho de Melchiadia
Paneleiro
(mora na casa da me)
(arteso)
Tirador de Panela.

Ronildo Alves
Corra

44

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino
Fundamental
Incompleto

Ronaldo Alves
Corra

48

Rua Leopoldo
Gomes
Salles,94

Ensino
Fundamental
Incompleto

Marinete Corra 53
Loureiro

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino
Fundamental
Incompleto

Paneleira

Berencia Corra 50
Nascimento

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino
Fundamental
Incompleto

Paneleira

Eonetes Alves
Corra

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino
Fundamental
Incompleto

Paneleira

55

Ensino Mdio
Completo

Filha de Viriato
Corra e Floripis
Alves. Neta de
Dulcilina
[Irm de Domingas
Eudxio, Antnio,
Oswaldo, Leocdio,
Geny, Moacir e
Maria]
Pintor
Marido de
(ajudava a alisar e Melchiadia.
tirar panela)
(Irmo do marido de
Jenete)
Do lar
(eventualmente
queima e alisa)
Paneleira
Aoita panela

Filha de Melchiadia
(mora na casa da me)
(tem uma filha)

Filha de Melchiadia
(mora na casa da me)
Me de uma filha

Paneleiro
(arteso)

(mora na casa da me)

(mora na casa da me)

Sobrinho de
Melchiadia;
Filho de Eudxio e
Donria.

Tirador de barro Sobrinho de


Melchiadia;
Paneleiro
Filho de Eudxio e
(arteso)
Donria.
Sobrinha de
Melchiadia;
Filha de Eudxio e
Donria.
Sobrinha de
Melchiadia;
Filha de Eudxio e
Donria.
(me de um filho)
Sobrinha de
Melchiadia;
Filha de Eudxio e
Donria.
(me de uma filha)

278
Jessilene Alves
Corra

37

Dborah Keila
Barboza Corra

37

Joslia Dias
Corra (Zlia)

43

Rosemary
Loureiro
Amorim
Rejane Corra
Loureiro

37

Marlene Corra
Alves

59

35

(mudou-se pra o
quintal do marido)

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino
Fundamental
Completo

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94

Ensino Mdio
Incompleto

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94
Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94
Rua Leopoldo
Gomes Salles,
94
Rua Leopoldo
Gomes Salles,
80

Ensino
Fundamental
Incompleto
Ensino
Fundamental
Completo
Ensino Mdio
Completo

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
80

Ensino
Fundamental
Incompleto

Ensino
Fundamental
Incompleto

Paneleira

Sobrinha de
Melchiadia;
Filha de Eudxio e
Donria.
(me de dois filhos)
Esposa de Ronildo
Os filhos Jos Renato
(21 anos) e Keli (19
anos) no fazem
panela. Ensino Mdio.
Esposa de Ronaldo
(me de quatro filhos)

Paneleira

Filha de Marinete
(me de duas filhas)

Paneleira

Filha de Marinete
(me de dois filhos)

Paneleira

Paneleira

Paneleira

Sobrinha de
Melchiadia e esposa
de Gecildo (nora de
Lcia)

Gecildo Alves
Corra

64

Geanne Corra
Campos

34

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
80

Ensino
Fundamental
Incompleto

Aldir Corra
Campos

71

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Ensino
Fundamental
Incompleto

Izabel Corra
Campos

61

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Ensino
Fundamental
Incompleto

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Ensino
Fundamental
Incompleto

Pescador

66

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Ensino
Fundamental
Incompleto

Pescador
Aposentado

Genivaldo Alves 63
Corra

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Ensino
Fundamental
Incompleto

Tirador de barro Sobrinho de


Melchiadia
e tinta
Pescador
Irmo de Izabel

Jonas Alves
Corra

53

Rua Leopoldo
Gomes Salles,
83

Anglica
Campos

31

(mudou-se para o quintal


do marido. Ao enviuvar
volta para o dos pais)

Otvio Alves
Corra

Cosme Alves
Corra

69

Ensino
Fundamental
Incompleto
Rua Leopoldo
Ensino
Gomes Salles, 83 Fundamental
Incompleto

Aposentado por
posto de gasolina
Comerciria

Paneleira

Paneleira

Aposentado

Aposentado da
Indstria por
invalidez
Desempregada

Filho de Lucia
(marido de Marlene
Corra Alves paneleira)
Filha de Izabel
(sobrinha de
Melchiadia)
nora de Marlene
Sobrinha de
Melchiadia;
Filha de Oswaldo;
Irm de Izabel
Sobrinha de Melchiadia
Filha de Oswaldo Alves
Corra e Ana Dolores da
Rosa Corra.

Sobrinho de
Melchiadia
Irmo de Izabel
Sobrinho de
Melchiadia
Irmo de Izabel

Sobrinho de
Melchiadia
Irmo de Izabel.
Filha de Izabel

279

FAMLIA
LUCIDATO

Laurinda Alves
Lucidato
(mudou-se para o
quintal do marido)
Aristide
Lucidato

IDADE

ENDEREO

Falecida

Rua Jos Alves,


n 107

Falecido

Rua Jos Alves,


n 107

ESCOLARIDADE

Ensino Fundamental
Incompleto

Ensino Fundamental
Incompleto

OCUPAO

GRAU DE
PARENTES
CO

Paneleira

Filha de
Dona
Agripina

Aposentado
pelo aeroporto

Marido de
Laurinda
Filho de
Isabel
Lucidato e
Lucidato
Filho de
Laurinda e
Aristide
Cunhado de
Laurinda e
marido de
Edite da
Vitria
Lucidato
Filho de
Laurinda e
Aristide

(irmo da me de
Domingas)
Antnio
Lucidato dos
Santos
Cacildo
Lucidato

76

Aroldo
Lucidato

70

Margarida
Lucidato
Ribeiro
(mudou-se para o
quintal do marido)

77

Adelaide
Lucidato dos
Santos
(Casa que morava
Laurinda - vendeu a
para o filho
Carlinhos)

68

85

47
Carlos Barboza
dos Santos

Lucilina
Lucidato de
Carvalho

65

Laureci
Lucidato da
Vitria

61

Laugrepnia
Lucidato

59

Ensino Fundamental
Incompleto

Aposentado

Ensino Fundamental
Incompleto

Pescador
Aposentado

Rua Jos Alves,


107

Ensino Fundamental
Incompleto

Pescador
Aposentado

Rua
Desembargador
Cassiano
Castela, 166

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Rua Jos Alves,


n107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Rua Jos Alves,


n 93

Ensino Fundamental
Incompleto

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Filha de
Laurinda e
Aristide

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Filha de
Laurinda e
Aristide

Rua Jos Alves,


n 107
Rua Jos Alves,
107

Paneleiro
(arteso)

Filha de
Laurinda e
Aritides

Filha de
Laurinda e
esposa de
Antnio
Carlos
Barboza

Neto de
Laurinda e
filho de
Adelaide e
Antnio
Carlos
Filha de
Laurinda e
Aristide

280
Jorge Alves

60

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Aposentado

Marido de
Laurgrepina

Lauriete da
Vitria Pinto

43

Rua Jos Gomes


Loureto, n 157

Ensino Fundamental
Incompleto

Marizete da
Vitria

35

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

filha de
Laureci
Esposa de
Lailson
Gomes
Ferreira
filha de
Laureci

Carlos Alberto
da Vitria

30

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleiro

filho de
Laureci

Luciete
Lucidato da
Vitria

37

Rua Jos Alves,


n 107

Ensino Mdio
Completo

Paneleira

filha de
Laureci

Valdinia da
Vitria
Lucidato

44

Rua Jos Alves,


107

Ensino Mdio
completo

Valda da
Vitria
Lucidato

47

Rua Jos Alves,


107

Ensino Fundamental
Incompleto

Valdir da
Vitria
Lucidato

52

Rua Jos Alves,


107

Ensino Fundamental
Incompleto

Wanessa Alves
Lucidato

25

Rua Leopoldo
Gomes Salles, n
44

Ensino Fundamental
Incompleto

Tnia Maria
Lucidato
Medina

43

Rua Jos Alves,


107 - Fundos,
casa 4

Ensino Fundamental
Completo

Genilda Ferreira
Lucidato

58

Rua Jos Alves,


107 Fundos

Sem escolaridade

Eliane Ferreira
Lucidato

34

Rua Jos Alves,


107 Fundos

Ensino Fundamental
Completo

Paneleira

Helosa Helena
Ferreira
Lucidato

36

Rua Jos Alves,


107 Fundos

Ensino Fundamental
Completo

Paneleira

Paneleira

Filha de
Cacildo
Lucidato e
Edite da
Vitria
Lucidato
(irm de
Iraci)
Filha de
Cacildo
Paneleira
Lucidato e
Edite da
Vitria
Lucidato
Filha de
Cacildo
Aposentado
pelo Aeroporto Lucidato e
Edite da
Vitria
Lucidato
Filha de
Clrio
Paneleira
Lucidato e
Eliana Alves
Lucidato
Filha de
Antnio com
Paneleira
Alvina
Paneleira

Paneleira

Casou-se
com Galdino
Lucidato
Filha de
Genilda com
Galdino
Lucidato
Filha de
Genilda com
Galdino
Lucidato

281
Jos Carlos
Ambrosio
(esquerdinha)
Nilcia
Alvarenga
Ambrsio

45

Rua Jos Alves,


107 Fundos.

Ensino Fundamental
Completo

Tirador de
barro e
segurana

44

Rua Jos Alves,


107, fundos.

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Esposo de
Nilcia
Filha de
Maria Nilce
Lucidato e
Antnio
Alvarenga e
neta de Dona
Laurinda

282

FAMLIAS DA
VITRIA/

IDA
DE

ENDEREO

ESCOLARIDADE

OCUPAO

Rua Jos
Alves, n 82

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

FERNANDES

Domingas Corra 82
da Vitria
Fernandes
(IRACI)

Imperolino
Fernandes

Faleci Rua Jos Alves, Ensino Fundamental


do
n 82
Incompleto

GRAU DE
PARENTESCO

Filha de
Oswaldino
Corra da
Vitria e
Adelina
Rosa da
Vitria.
Neta de
Isabel
Lucidato e
Galdncia
da Vitria

Pescador e
Aerovirio

Marido de
Domingas

Paneleira e
Funcionria
Pblica

Filha de
Domingas

Eonetes Fernandes 58
dos Santos

Morro Boa
Vista

Ensino Fundamental
Incompleto

Evalilda Fernandes 43
Corra

Rua Leopoldo
Gomes Salles

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Filha de
Domingas

Eronildes Corra
Fernandes

41

Morro Boa
Vista

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Filha de
Domingas

Eolino Corra
Fernandes

61

Rua Jos Alves, Ensino Fundamental


107
Incompleto

Pescador

Eraldo Corra
Fernandes

39

Rua Jos Alves, Ensino Fundamental


n 82
Incompleto

Jos Carlos Corra


Fernandes

44

Rua Jos Alves, Ensino Fundamental


n 82
Incompleto

Trabalha como Filho de


auxiliar de
Domingas
servios gerais
Tirador de barro
Casqueiro
Filho de
Tirador de barro Domingas

45

Rua Jos Alves, Ensino Fundamental


n 82
Incompleto

Cabeleireiro

Filho de
Domingas

Morro Boa
Vista

Funcionrio
pblico municipal

Marido de
Eonetes

Pedro Corra
Fernandes

Jos Carlos
Ribeiro dos Santos 69

Ensino Mdio

Josenete Fernandes
dos Santos
37
Vasconcelos

Morro Boa
Vista

Fbio Fernandes
dos Santos

34

Flvio Fernandes
dos Santos

32

Rua Jos Alves,


82
Ensino Fundamental
Completo
Rua Jos Alves, Ensino Mdio
82
Completo

Ensino Mdio

(aposentado)
ajuda a queimar
e alisar
Paneleira
(auxiliar de
secretaria de
escola)
Queima e tira
tinta

Paneleiro
(arteso)

Filho de
Domingas

Filha de
Eonetes

Filho de
Eonetes
Filho de
Eonetes

283

Maria de Lourdes
Corra da Vitria

62

Rua Irmnio
Coelho de
Souza

Ensino Fundamental
Incompleto

Ensino Mdio
Profissionalizante
Completo em
Contabilidade
Ensino Fundamental
Completo

Elias Corra da
Vitria

52

Rua Irmnio
Coelho de
Souza

Valter Corra da
Vitria

71

Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19

Geci Aves Corra

66

Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19

Ensino Fundamental
Incompleto

Lauro Corra da
Vitria

39

Ensino Mdio
Completo

Cristiano Corra
da Vitria

36

Patrcia Corra da
Vitria

30

Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19
Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19
Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19
Rua Irmnio
Coelho de
Souza, 19

(mudou-se para o
quintal do marido)

Viviane Corra da
Vitria

27

Ensino Mdio
Completo
Ensino Mdio
Completo
Ensino Mdio
Completo

Costureira

Irm de
Domingas
Filha de
Oswaldino
Contador
Irmo de
Trabalha no
Domingas
aeroporto
Filho de
Oswaldino
Aposentado pelo Irmo de
aeroporto
Domingas e
marido de
Gecy
Esposa de
Paneleira
Valter
Cunhada de
Domingas
Filha de
Lcia
Nascimento
Filho de
Motorista
Valter e
Gecy
Trabalha no
Filho de
aeroporto
Valter e
Gecy
Comerciria
Filha de
Valter e
Gecy
Filha de
Auxiliar de
Servios Gerais. Valter e
Gecy

284

FAMLIAS
RIBEIRO/

IDA ENDEREO
DE

ESCOLARIDADE

OCUPAO

77

Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166

Ensino
Fundamental
Incompleto

Benjamin
Ribeiro

Fale
cido

Ensino Fundamental
Incompleto

Snia Ribeiro

49

Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166
Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166
Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166

Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166
Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166

Ensino Fundamental
Incompleto

Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166

Ensino Fundamental
Incompleto

Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166
Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166
Rua Des.
Cassiano
Castelo, 166

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

GRAU DE
PARENTESCO

LUCIDATO

Margarida
Lucidato
Ribeiro

Paneleira

Filha de Laurinda
(paneleira) e
Aristides Lucidato

(mudou-se para o
quintal do marido)

Marlbia
Ribeiro
Rodrigues

20

Sandra
Ribeiro

44

Leones
Ribeiro

47

Samarone
Ribeiro

42

Maria Serino
dos Santos

51

Ivone Ribeiro

48

Brbara
Peroba

25

Valdete
Molem

48

Mauro Ribeiro 51

Rua Marechal
Gonalves
Renere, n1
Rua Marechal
Gonalves
Renere, n1

Ensino Mdio
Completo
Ensino Mdio
Incompleto

Ensino Mdio
Completo

Ensino Fundamental
Incompleto

Pescador e tirava Marido de


barro no barreiro Margarida
Filha de Margarida
Paneleira
Diarista

Filha de Sonia e
neta de Margarida
Tem uma filha (Ana
Julia, de 2 anos)
filha de Margarida

Paneleira
filho de Margarida
Paneleiro
(arteso)
filho de Margarida
Tira barro,
escolhe, tira
panela da
fogueira, alisa.

Paneleira
Tira panela da
fogueira

Ensino Fundamental
Incompleto

Paneleira

Ensino Fundamental
Incompleto

Tira barro, faz


biscate

Esposa de
Samarone e nora de
Margarida
filha de Margarida

Filha de criao de
Margarida.

Filha de criao de
Margarida
Filho de Margarida

285

FAMLIAS
SALLES/ SANTOS

IDA ENDEREO
DE

ESCOLARIDADE

75

Rua Jos
Gomes
Loreto, n60

Ensino
Fundamental
Incompleto

Paneleira
Filha de Cludio
Catava ostra,
Gomes Salles
caranguejo e siri (pescador) e
Adelina Gomes
Salles

Joaquim dos
Santos

Fale
cido

Ensino Fundamental
Incompleto

Cludio dos
Santos

55

Rua Jos
Gomes Loreto,
n60
Rua Jos
Gomes Loreto,
n60
Rua Jos
Gomes Loreto,
n60

Cozinheiro
Marido de Elizete
aposentado pela
Ferrovia
Aposentado por Filho de Elizete
ESCELSA

Elizete Salles
dos Santos
(mudou-se para o
quintal do marido)

Guilherme dos 50
Santos

Maciel dos
Santos

47

Marcelino dos 46
Santos

Juliana

12

Alexandre

14

Brbara

20

Beatriz

15

Fabrcio

25

Hugo

14

Igor

12

Valdelcis
Salles de
Souza
(permaneceu no
quintal do pai)

61

Ensino Mdio
Completo

Ensino Mdio
Profissionalizante
Completo em
Contabilidade
Rua Jos
Ensino Mdio
Gomes Loreto, Profissionalizante
n60
Completo em
Mecnica
Rua Jos
Ensino Mdio
Gomes Loreto, Profissionalizante
n60
Completo em
Mecnica
Rua Jos
Ensino Fundamental
Gomes Loreto, Incompleto
n60
Rua Jos
Ensino Fundamental
Gomes Loreto, Incompleto
n60.

OCUPAO

Trabalha em
firma de
segurana

GRAU DE
PARENTESCO

Filho de Elizete

Trabalha na Vale Filho de Elizete


do Rio Doce
Alisa panela e
tira da fogueira
Trabalha nos
Filho de Elizete
Correios

Estudante

Neta de Elizete e
filha de Maciel

Estudante

Neto de Elizete e
filho de Maciel

Superior Completo

Professora

Neto de Elizete e
Filha de Claudio

Ensino Fundamental

Estudante

Neto de Elizete e
Filha de Claudio

Ensino fundamental
incompleto

Trabalha em
firma

Ensino Fundamental

Estudante

Neto de Elizete e
filho de
Guilherme
Neto de Elizete e
Filho de
Marcelino

Rua Jos
Ensino Fundamental
Gomes Loreto,
n60
Rua Argeo
Ensino Fundamental
Gomes Salles, Incompleto
n 74.

Estudante

Rua Jos
Gomes Loreto,
n60
Rua Jos
Gomes Loreto,
n60
Rua Jos
Gomes Loreto,
n60
Rua Jos
Gomes Loreto,
n60

Paneleira

Neto de Elizete e
Filho de
Marcelino
Prima de Elizete,
filha de Argeo
Gomes Salles e
Laurepina Penha
Salles.
Prima de Elizete

286

Jair Ferreira
de Souza

67

(pai) e D. Ilsa
Marido de
Valdelicis

Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.

Ensino Fundamental
Incompleto

Lucina Salles 41
de Souza

R. Argeo Gomes
Gomes, n 74.

Superior Completo

Dejair Salles
de Souza

40

Ensino Mdio
Completo

Comercirio

Filho de
Valdelicis

Araly Salles
de Souza

38

Ensino Mdio
Completo

Comercirio

Filha de
Valdelicis

Rosangela
Salles de
Souza
Dbora Salles
de Souza

37

Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.
Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.
Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.
Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.

Ensino Mdio
Completo

Comercirio

Filha de
Valdelicis

Ensino Mdio
Completo

Comercirio

Filha de
Valdelicis

Julio Csar
Salles de
Souza

24

Rua Argeo
Gomes Salles,
n 74.

Ensino Mdio
Completo

Comercirio

Filho de
Valdelicis

30

Aposentado
como Auxiliar
de Servios
Gerais
Comercirio

Filha de
Valdelicis

286

FAMLIAS GOMES/ FERREIRA

JOS

Dud

ALCIDES
GOMES

RUBENS
FERREIRA DA
CONCEIO

Odete
Corra
Gomes

Galdncia
da
Victria

Geralda
Gomes
Campos

JOO
CAMPOS

1943

1937

1939

1968

1964

1950

65

71

69

40

44

58

61

ONADIR
CORREA
GOMES

NILSON
CORRA
GOMES

Gilda
Zilda CNDIDO
Gomes CamposCAMPOS
Campos

Izabel
Corra
Campos

Bernanci
Gomes
Ferreira

Jaqueline
Gomes
Campos

1947

1976

1968

1964

1963

1970

1966

1960

1981

32

40

44

45

38

42

48

27

JORGE
GOMES
FERREIRA

LARCIO
GOMES
FERREIRA

LAILSON
GOMES
FERREIRA

RUBENS
Inete
GOMES
Gomes
FERREIRA Ferreira

Bernadete
Gomes
Ferreira

Ana Lcia
Gomes
Ferreira

DOUGLAS
CORRA
CAMPOS

1973
35

GEAN
CORRA
CAMPOS

287

FAMLIAS NASCIMENTO/ RODRIGUES

Edvirges

CNDIDO

VERIAT O
CORRA

MOACIR
ALVES
CORRA

WALT ER
CORRA DA
VICT RIA

IMPERIOLINO

AVELINO
RODRIGUES
NET O

Flori pes
Al ves

Melchiadi

Domingas

1956

1946

1944

1949

1942

52

62

64

59

66

GENILDO
JOS
ALVES
ALVES
CORRA CORRA

GESSILDO
ALVES
CORRA

Etelvi na do
Nasci mento

ROGRIO
NASCIMENT O

1930

1928

1926

1913

78

80

82

95

Lucila do
Nascimento
Corra

Egdia do
Nascimento
Corra

Guil hermina Lucia Flori nda


Nascimento
Nascimento
Corra
Gomes

1939
69

Marl ene Gecy Alves


Corra
Corra da
Alves
Vi ctri a

Janete
Alves
Rodrigues

1980

1976

1966

1965

1977

1969

1963

28

32

42

43

31

39

45

HENRIQUE
JOS ALVES
RODRIGUES

MOACIR
ALVES
RODRIGUES

AVELINO
ALVES
RODRIGUES

LCIO
ALVES
RODRIGUES

Dbora
Al ves
Rodri gues

1992
16

Mari a Eml ia
Rodri gues
Bento

LucieneJamil da Alves
Al ves
Rodrigues
Rodri gues Bento

288

FAMLIA SALLES/ BARBOZA

Maria
Benedita

Jardelina

LEOPOLDO
GOMES
SALLES

Maria
Corra da
Victria

MANOEL
GOMES
BRANDO

Carolina
Salles
Santos

JOO
BARBOSA
DOS SANTOS

Galdncia
da
Victria

JOS

1936

1938

1930

72

70

78

JUCILEN
BARBOSA

WALDIR
CHAVES
BARBOSA

1978
30

1974

1963

34

45

Rogria Snia dos


CLEBERSON Santos
Santos
DOS SANTOS
Ferreira
BARBOSA

Ilza dos
Santos
Barbosa

Maria da
Conceio
Barbosa

Teresa
Barbosa

1964

1962

1953

1962

1972

1965

1960

44

46

55

46

36

43

48

JUCILEN
BARBOSA
FILHO

IVONEI
BARBOSA

Jucila
Barbosa

Jucileida
Barbosa

Ivanete
Barbosa

IPOJUCAN Marli
BARBOSA Barbosa

289

FAMLIA ALVES CORRA

Floripes
Alves

Veriato
Corra

1928
1929

80

79

EUDXIO

ANTNIO

ALCENEU
RODRIGUES

1965

1968

1964

43

40

44

ADILSON ADEMILSON RONILDO


RODRIGUES RODRIGUES ALVES
CORRA

Ana Dolores LEOCDIO MOACIR Domingas


Corra
da Rosa
Corra

OSWALDO
ALVES
Donria
CORRA

1971

1965

1966

1971

1959

1955

1953

1955

1945

1942

1939

1947

1937

37

43

42

37

49

53

55

53

63

66

69

61

71

Marinete
Corra
Loureiro

Eonete
Alves
Corra

Jessilene Berencia
Dbora Keila RONALDO
Joslia
ALVES Dias Corra
Corra
Alves
Barbosa
CORRA
Corra Nascimento
Corra
(Zlia)

1974

1973

34

35

Rejane Rosemary
Corra Loureiro
Loureiro Amorim

JONAS GENIVALDO COSME OTVIO CNDIDO


ALVES ALVES CAMPOS
ALVES ALVES
CORRA CORRA CORRA CORRA

1967

1962

1960

41

46

48

Izabel Aldir
Corra Corra ADALBERTO Alceli Maria Alcilene
Corra
Rodrigues
Campos Campos RODRIGUES
Rodrigues

1974

1977

34

31

Geanne Anglica
Corra Campos
Campos

Melchiadi Alves
Corra da Victria
Rodrigues

1957
51

Elizabeth

Geny

Maria

290

FAMLIA LUCIDATO

Isabel
Lucidato

LUCIDATO

Agripina

1923
85

Edite da ARISTIDE
Victria LUCIDATO
Lucidato

CACILDO
LUCIDATO

Laurinda
Alves
Lucidato

1964

1961

1950

1938

44

47

58

70

Valdinia
da Victria
Lucidato

Valda da
Victria
Lucidato

Genilda
Ferreira
Lucidato

AROLDO
LUCIDATO

GALDINO
LUCIDATO

59

ANTNIO
LUCIDATO
DOS SANTOS

1974

1972

1965

34

36

43

Eliane Helosa Helena


Ferreira
Ferreira
Lucidato
Lucidato

1947

1943

1940

61

65

68

Laureci
Lucilina ANTONIO
Lucidato Lucidato de CARLOS
da Victria Carvalho BARBOSA

Adelaide
Lucidato
dos Santos

1949

1932

Alvina Laugrepnia
Lucidato

Tnia Maria
Lucidato
Medina

1978

1971

1965

1961

30

37

43

47

Luciete
CARLOS
Lauriete
ALBERTO DA Lucidato da Victria
da Victria
VICTRIA
Pinto

CARLOS
BARBOSA
DOS SANTOS

1931
77

BENJAMIN
RIBEIRO

1963

Maria
Margarida ANTNIO
Lucidato ALVARENGA Nilce
Lucidato
Ribeiro

1964

45

44

JOS
CARLOS
AMBRSIO

Nilca
Alvarenga
Ambrsio

291

FAMLIAS DA VITRIA/ FERNANDES

Isabel
Lucidato

Galdncia
da
Victria

Adelina
Rosa da
Victria

OSWALDINO
CORRA DA
VICTRIA

1956

1937

1942

1926

52

71

66

82

62

Domingas Corra
da Victria
Fernandes

Maria de
Lourdes Corra
da Victria

Gecy IMPERIOLINO
Alves FERNANDES
Corra

WALTER
ELIAS
CORRA DA CORRA DA
VICTRIA
VICTRIA

1969

1972

1981

1978

39

36

27

30

CRISTIANO Viviane
LAURO
CORRA DA CORRA DA Corra da
Victria
VICTRIA
VICTRIA

Patrcia
Corra da
Victria

1969

1964

1963

1941

1967

1965

1939

39

44

45

67

41

43

69

ERALDO JOS CARLOS


CORRA
CORRA
FERNANDES FERNANDES

PEDRO
EOLINO
CORRA
CORRA
FERNANDES FERNANDES

Eronildes
Corra
Fernandes

1950
58

Evanilda JOS CARLOS


Fernandes RIBEIRO DOS
SANTOS
Corra

Eonetes
Fernandes
dos Santos

1976

1974

1971

32

34

37

FLVIO
FERNANDES
DOS SANTOS

Josenete
FBIO
Fernandes dos
FERNANDES
DOS SANTOS Santos Vasconcelos

1946

292

FAMLIAS RIBEIRO/ LUCIDATO

Laurinda

1931
77

Margarida
Lucidato
Ribeiro

BENJAMIN
RIBEIRO

1966

1957

1961

1957

1983

1964

1960

1960

1959

42

51

47

51

25

44

48

48

49

SAMARONE
RIBEIRO

Maria
Serino dos
Santos

LEONES
RIBEIRO

MAURO
RIBEIRO

Brbara
Peroba

Sandra Ivone Valdete


Ribeiro Ribeiro Molem

Snia
Ribeiro

1988
20

Marlbia
Ribeiro
Rodrigues

293

FAMLIAS SALLES/ SANTOS

Laugrepina
Penha
Salles

ARGEO
GOMES
SALLES

CLUDIO
GOMES
SALLES

Adelina
Gomes
Salles

1941

1947

67

61

75

Valdelcis
Salles de
Souza

Elizete
Salles dos
Santos

JAIR
FERREIRA
DE SOUZA

JOAQUIM
DOS
SANTOS

1933

1953
1984

1968

1978

1971

1970

1967

1962

1961

1958

24

40

30

37

38

41

46

47

50

Dbora
Salles de
Souza

Rosngela
Sales de
Souza

Araly
Salles de
Souza

Lucinia
Salles de
Souza

MARCELINO
DOS
SANTOS

MACIEL
DOS
SANTOS

GUILHERME
DOS
SANTOS

JULIO CSAR DEJAIR


SALLES DE SALES DE
SOUZA
SOUZA

55

CLUDIO
DOS
SANTOS

1996

1994

1994

1996

1983

1993

12

14

14

12

25

15

1988
20

IGOR

HUGO

ALEXANDRE

Juliana

FABRCIO

Beatriz

Brbara

294

ANEXOS

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