AGAMBEN O Fim Do Poema
AGAMBEN O Fim Do Poema
AGAMBEN O Fim Do Poema
(ITLIA)
o FIM DO POEMA
Meu propsito, que se encontra resumido no ttulo que o
leitor tem diante dos olhos, definir um instituto potico que
at agora permanece sem identidade: o fim do poema.
Devo, para tanto, partir de uma tese que, sem ser trivial,
parece-me todavia evidente, a saber, que a poesia no vive seno na tenso e no contraste (e, portanto, tambm na possvel
interferncia) entre o som e o sentido, entre a srie semitica e
a srie semntica. Isso quer dizer que tentarei precisar, em alguns aspectos tcnicos, a definio de Valry, que Jakobson
glosa nos seus estudos de potica: "Le pome, hsitation
prolongue entre le son et le sens". O que uma hesitao, se
a tolhemos de qualquer dimenso psicolgica?
A conscincia da importncia dessa oposio entre a
segmentao mtrica e a semntica levou alguns estudiosos a
enunciarem a tese (por mim compartilhada) de que a possibilidade do enjambement constitui o nico critrio que permite distinguir a poesia da prosa. Pois o que o enjambement seno a
oposio entre um limite mtrico e um limite sinttico, uma
pausa prosdica e uma pausa semntica? Portanto, ser chamado potico o discurso no qual essa oposio for, pelo menos virtualmente, possvel, e prosaico aquele no qual no puder haver
lugar para ela.
Os autores medievais parecem ter perfeita conscincia do
eminente valor dessa oposio, ainda que tenha sido necessrio esperar at Nicol Tibino (sculo XIV) para uma definio
precisa do enjambement: Multociens enim accidit quod, finita
consonantia, adhuc sensus oratonis non est finitus. 1
Todos os institutos da poesia participam dessa no-coinci"ia fine deI poema". In:. Giorgo Agamben. Categorie ital.iane. Sludi di poexs. Venezia:Marsilio,
1996, p. 113-119; texto originalmente
apresentado
no colquio em homenagem
a R.
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Somente nesta perspectiva possvel compreender o singular prestgio, na lrica provenal e stilnovstica, daquela instituio potica especialssima que a rima no-relacionada
[irrelata], que as Leys denominam rim'estrampa e Dante clavis. 4
Se a rima assinalava um antagonismo entre som e sentido em
virtude da no-correspondncia entre uma homofonia e uma significao, aqui a rima, faltando onde era esperada, deixa as
duas sries por um timo interferirem numa aparncia de coincidncia. Digo aparncia, j que, se verdade que o seio da arte
parece aqui romper o seu encerramento mtrico, acenando para
o seio do sentido, a rima no-relacionada remete porm a um
rhyme-fellow na estrofe seguinte, e portanto no faz mais que
deslocar a estrutura mtrica para um nvel metaestrfico. Por
isso, nas mos de Arnaut, ela se desenvolve quase que naturalmente como palavra-rima, a engendrar o admirvel mecanismo
da sextina. Pois a palavra-rima sobretudo um ponto de
indeterminabilidade
entre um elemento por excelncia
assemntico (a homofonia) e um elemento por excelncia semntico (a palavra). A sextina a forma potica que eleva a
rima no-relacionada
ao estatuto de supremo cnone
composicional e procura, por assim dizer, incorporar o elemento do som no prprio seio do sentido.
Mas devo agora enfrentar o tema anunciado e tentar definir essa prtica no coberta pelos estudos de mtrica e potica:
o fim do poema, como ltima estrutura formal perceptvel de
um texto potico. Existem pesquisas sobre os incipit da poesia
(ainda que talvez em quantidade ainda insuficiente), mas as
investigaes sobre os finais faltam quase de todo.
Vimos como o poema tenazmente se demora e se sustm na
tenso e no contraste entre o som e o sentido, entre a srie mtrica e a srie sinttica. Mas o que acontece no ponto em que o
poema finda? Evidentemente, a oposio entre um limite mtrico e um limite semntico j no possvel, aqui, de maneira
nenhuma: o que se d, sem discusso, pelo simples fato de que
no ltimo verso de um poema o enjambement no pensvel.
Simples, decerto, mas que, no obstante, implica uma conseq-
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NOTAS
1 "Com efeito, muitas vezes ocorre que, finda a consonncia,
o sentido da
orao ainda no chegou ao fim" [N. do T.).
esse respeito, deve-se saber que tal vocbulo [stantia: estncia, estrofe)
foi inventado to somente pela arte, de modo que aquilo que contivesse toda
a arte da cano se denominasse estncia, ou seja, manso ou abrigo com
capacidade para toda a arte. Assim como a cano o seio de todo o sentido,
a estncia recolhe no seu seio toda a arte; aquelas que vm em seqncia no
se podem arrogar nenhuma arte, devendo revestir-se com a mesma arte da
antecedente" [N. do T.).
2 "/\
[N. do T.].
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