A+Realidade+do+Artista Rothko
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A REALIDADE DO ARTISTA
Mark Rothko
A realidade do artista
Filosofias da arte
Traduo de
Fernanda Mira Barros
Cotovia
ndice
Agradecimentos
p. 10
11
O dilema do artista
48
56
60
63
69
77
Particularizao e generalizao
82
96
102
Impressionismo objectivo
108
Plasticidade
Diferentes tipos
Plasticidade e espao
117
127
O Espao
Diferentes tipos
Base filosfica
140
146
O Belo
Definio e avaliao
O belo: plstico e ilusrio
O belo e a sua criao
O belo e a sua apercepo
151
156
161
166
7
Naturalismo
170
Assunto e contedo
Assunto
Contedo. O contedo e a realidade do artista
Contedo e mito
Contedo e antiguidade
Antiguidade e continuidade plstica
175
181
186
193
197
O mito
O mito do Renascimento
O mito desde o Renascimento. Introduo
O mito e a sua representao na linguagem plstica
Sensualidade e mito
202
202
210
212
215
221
226
Arte moderna
A arte moderna como reavaliao da experincia artstica 233
A arte moderna e a sua relao com o escapismo
236
Primitivismo
Os primitivistas populares
Os primitivistas e a arte popular
241
246
Arte indgena
A procura de uma arte norte-americana
Regionalismo
Tradicionalismo norte-americano
Educao e tradio indgena
Arte popular
249
250
251
259
262
AGRADECIMENTOS
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INTRODUO
completa e talvez nunca chegassem a fazer as perguntas necessrias. A respeito da sua prpria obra, pelo menos, preocup-lo-ia
no levar as pessoas a percorrer caminhos errados, avanando s
cegas com os seus pedacinhos de conhecimento, quando, no fim
de contas, se cuidadosamente encarada, a sua pintura falava por
si mesma. Ele estava consciente deste perigo e, por isso, foi cauteloso quanto a discutir a sua obra, tendo concludo repetidamente que, quanto mais dizia, maiores os mal-entendidos que
gerava. No era seu desejo sabotar o processo pelo qual as pessoas
viriam a conhecer a sua obra, e julgo que ele percebeu quo complicado poderia isso ser isto , percebeu que as pessoas se afastariam depressa para o evitar. Pelo mesmo motivo, penso que ele
sabia quo gratificante pode o processo ser, se nele nos envolvermos completamente.
Foi, por conseguinte, com muitos sentimentos contraditrios
e com uma grande dose de introspeco que, tendo consultado a
minha irm, Kate, decidi trazer luz A Realidade do Artista.
Apresentar o livro ao pblico como desembainhar uma perfeita
espada de dois gumes. Por um lado, um tesouro para acadmicos e uma fonte de grande interesse para os admiradores de
Rothko. Por outro lado, como o livro data de relativamente cedo
na carreira do meu pai, est inacabado e no se reporta directamente sua pintura, potencialmente enganador. Para alm
disso, o estado incompleto do livro e o facto de a preparao do
meu pai no ser nem a de filsofo, nem a de historiador de arte,
faz dele um alvo fcil para ataques, pois aos argumentos que apresenta falta por vezes polidez, rigor, ou ambas as coisas.
Por fim, decidimos, a minha irm e eu, que estas preocupaes pouco importavam. Rothko hoje to clebre que a maioria
dos apreciadores de arte tero, no mnimo, passado pelos seus
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quadros, e poucos sero os que pegaro neste livro sem uma maior
familiaridade com a obra e com o modo como ela funciona.
Mesmo que algumas pessoas estejam interessadas em encontrar
aqui um guia rpido para as obras ainda misteriosas do meu pai,
o livro excessivamente denso para que esse tipo de explicao
fcil esteja mo. Assim, para sarem do livro mais instrudos, s
lhes resta, a esses leitores, debaterem-se com a filosofia de
Rothko, tanto como com as suas pinturas.
As preocupaes da famlia acerca da maneira como o
manuscrito incompleto apresenta o nosso pai como escritor ou
pensador talvez sejam legtimas a prosa no faz justia ao nvel
que ele atingiu nas suas poucas declaraes publicadas, e a clareza
do seu raciocnio nem sempre a ideal. No entanto, acredito que
no ser com um esprito crtico em relao a estes aspectos que o
livro ser (ou deveria ser) lido. No ser por esperarem as declaraes mais poderosas e recentes na filosofia da arte que os leitores o lero atentamente (embora, talvez, as suas conquistas nessa
rea excedam o mbito dos meus conhecimentos); em vez disso,
os leitores esto interessados nos pontos de vista dele por se sentirem compelidos pela maneira como o viram express-los atravs
da pintura. O verdadeiro valor de A Realidade do Artista no
est no rigor dos argumentos de Rothko, nem na maneira, consistente ou no, como procura vencer os seus debates; pelo contrrio, o tesouro aqui ser-nos oferecido um vislumbre raro da
maneira como um artista v o mundo, expresso pela palavra
escrita e em considervel detalhe.
Em ltima anlise, acreditamos, a minha irm e eu, que o
pblico tanto o acadmico, como o entusiasta tem o direito
de ver este livro. Se o meu pai o tivesse destrudo ou suprimido,
a nossa concluso talvez fosse outra mas, muito semelhana de
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como tratou as pinturas do comeo da sua carreira, ele no pareceu desaprovar o livro ou dar qualquer indicao de que, luz das
direces que depois tomou e das suas conquistas tardias, a sua
validade ou importncia estivesse comprometida. Ele guardou o
manuscrito como parte do seu legado, e eu tentei fazer o mesmo,
ao traz-lo a pblico numa edio o mais completa e fiel possvel.
Impe-se, portanto, uma breve histria do manuscrito. Em
geral, o meu pai no discutia a obra com a famlia, e eu no tenho
razes para acreditar que o seu comportamento fosse diferente
com A Realidade do Artista. Mas se foi, a Kate (que tinha dezanove anos data da sua morte) e eu (que tinha seis anos) no
temos quaisquer lembranas disso. Visto que a nossa me, Mary
Alice (Mell) Rothko, morreu seis meses depois dele, o que quer
que ela pudesse dizer a esse respeito no foi revelado, pelo menos
no a ns.
O manuscrito veio pela primeira vez superfcie no contexto
das feias disputas legais que se seguiram morte do meu pai. Em
pouco tempo, os processos legais confrontaram-nos, minha irm
e a mim, com os executores do patrimnio do meu pai e com a
Marlborough Gallery, que o representara durante a dcada precedente (na verdade, apenas a minha irm foi confrontada, visto
que eu era muito novo). Durante os primeiros meses do conflito,
comearam a chegar a Kate rumores segundo os quais o meu pai
escrevera um livro, e o alegado manuscrito depressa se tornou
num dos eixos do conflito entre os executores e Robert Goldwater, que concordara, no ano antes de o meu pai morrer, escrever
uma avaliao acadmica, biogrfica e, acima de tudo crtica, da
sua vida e obra. Tanto quanto a Kate sabe, nem Goldwater nem
os executores tinham alguma vez visto o livro e, como Goldwater
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faleceu cerca de um ano aps a morte do meu pai, o assunto passou a ser contestado talvez menos hostilmente. No fim, o manuscrito parece ter repousado durante quase duas dcadas numa
pasta de fole com a incua etiqueta: Papis Avulsos.
Como pudemos, a minha irm e eu, deixar um documento
to importante ao abandono tanto tempo (de facto, quase trs
dcadas e meia, data da publicao deste livro)? Para compreender preciso saber uma coisa sobre a relao ambivalente
que a Kate e eu tivemos com o patrimnio e o legado do meu pai.
Para comear, passmos os primeiros quinze anos a seguir o
imbrglio da sua morte em complicaes legais relacionadas com
o patrimnio. Durante esse perodo, eu estava na escola e a
minha irm concluiu o curso de medicina, ingressou numa psgraduao, casou, teve os primeiros dois dos seus trs filhos, e tornou-se na nova executora do patrimnio, depois dos primeiros
trs terem sido destitudos pelo tribunal. Nenhum de ns estava
numa posio que lhe permitisse ir procura, avaliar, ou at
mesmo pensar no manuscrito.
No desfecho dessa experincia, a minha irm estava no apenas exausta como, para dizer com franqueza, particularmente
magoada com o mundo da arte. E a minha prpria associao com
a obra do meu pai ainda no pendurara qualquer quadro seu
quando, a meio da dcada de 1980, o caso do patrimnio ficou
encerrado resumia-se a assinar uma data de formulrios e a
tentar perceber dossiers aparentemente interminveis, nos quais
o nmero de sub-clusulas ultrapassava em muito a quantidade
de informao partida inteligvel. Embrenharmo-nos nas incontveis caixas de papelada legal procura do Livro no nos parecia
uma tarefa particularmente apelativa.
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familiar. Uma fonte exterior, por muito bem informada e bem-intencionada que fosse, no traria a mesma espcie de cuidado a
este projecto que traz uma pessoa da famlia. Isto no quer dizer
que a ateno que essa pessoa traria seria de uma espcie pior
seria simplesmente diferente. Todavia, isto o mesmo que dizer
que, tendo por base a nossa prpria experincia com a obra do
meu pai, confiar em algum exterior famlia teria resultados
desastrosos. Alm disso, tendo por esta altura trabalhado de perto
com a obra artstica do meu pai durante uma dcada, conheo a
sua produo ao pormenor e sinto ter aprendido o suficiente
acerca dela para poder executar o projecto com cuidado, com profundidade crtica.
Foi, por conseguinte, no contexto de pedidos recentes por
parte de acadmicos, assim como do interesse independente por
parte de uma editora, que decidi voltar a olhar para o manuscrito.
E, vejam s, reparei numa coisa diferente desta vez. Sem dvida,
a obra que encontrei estava incompleta e, em certas partes, era
frustrantemente obscura, mas era um livro, e um livro substancial. Foi claramente escrito para ser um volume, o seu contedo
dirigia-se a um pblico, e no consistia em meras divagaes de
um artista. Chegara o momento de ver a luz do dia e, embora eu
tenha respirado fundo antes de mergulhar nele, eu sabia ser a pessoa indicada para o trazer a pblico.
mos inferir que o corpo principal do livro foi escrito durante essa
interrupo.
Vou demorar um instante a explicar o que sabemos acerca da
datao do livro. A nica evidncia concreta de que dispomos est
no verso de uma pgina do manuscrito, no qual Rothko dactilografou o rascunho de uma carta datada de 23 de Maro de 1941.
No entanto, o seu mentor artstico, Milton Avery, menciona
numa carta que Rothko est a trabalhar num livro desde pelo
menos 1936 (ver Breslin). Embora no possamos saber se se trata
do mesmo livro, improvvel que tinha escrito duas grandes
obras perdidas.
Contudo, no estou tentado a acreditar que a maior parte do
livro tivesse sido escrita to cedo. Em primeiro lugar, uma outra
carta de Avery (tambm citada por Breslin), datada de Setembro
de 1941, menciona que Rothko abrandou com o livro, o que
sugere um perodo de actividade intensa imediatamente anterior
a essa altura. Alm disso, Rothko faz no manuscrito vrias referncias a acontecimentos posteriores, de entre os quais se destaca
a Feira Mundial de 1939 e os guerreiros da Alemanha (presumivelmente envolvidos na Segunda Guerra Mundial). Por fim,
temos de seguir uma pista dada pelo texto de Rothko e pelas prprias pinturas. Ele passa grandes trechos do livro a discutir o
papel dos processos inconscientes na produo da arte, e um bom
quarto do livro a falar do mito na arte e na sociedade. No pode
ser uma coincidncia que estes sejam precisamente os temas que
surgiram nas suas pinturas do comeo dos anos 1940. Apesar de
alguns ensaios includos em A Realidade do Artista poderem ter
sido comeados mais cedo, as pinturas de Rothko dizem-nos que
este livro, mais ou menos como o conhecemos, estava a ser escrito
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perceber que a histria deu a Rothko razo. Para perceb-lo completamente importante recordar que o meu pai manteve esta atitude de profunda desconfiana e de cautela em relao ao espectador muito depois do seu impressionante sucesso. E, no entanto,
apesar de recear o pblico, ele precisava desesperadamente que o
pblico trouxesse sentido s suas pinturas. Esta ambivalncia est
resumida na sua famosa afirmao de 1947, na revista Tigers
Eye: Uma pintura vive da companhia que lhe feita, expandindo-se e precipitando-se aos olhos do observador sensvel.
E morre pelo mesmo motivo. Atir-la para o mundo por isso um
acto arriscado e desprovido de sentimento. Apesar de esta afirmao ser anterior sua ascenso fama, o tpico comentrio
que mais tarde na sua carreira ele faria em privado, particularmente no contexto de exposies. Mesmo depois de ter sido o alvo
de uma adulao significativa, Rothko continuou a temer constantemente que a sua pintura fosse mal interpretada e, em ltima
anlise, violada por um pblico desatento.
Assim, embora um azedume colorisse sem dvida o que
escreveu nestes captulos, talvez o seu tom reflicta com clareza
quo profundamente pessoal era aquilo que exprimia nos seus
trabalhos. Rothko investe tanto de si mesmo naquilo que faz, e a
noo de real que exprime to vital e interior, que colocar as
suas pinturas no mundo, e deix-las merc de olhos pblicos,
uma empresa verdadeiramente arriscada. O seu rancor brota portanto de um sentimento de vulnerabilidade, que exacerbado por
uma negatividade externa, mas que existe independentemente de
qualquer reaco exterior.
Uma distino relacionada com isso, na qual Rothko insiste
repetidamente, a distino entre a capacidade tcnica do artista
e a sua capacidade de comunicar algo profundo de uma forma
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