Neuropsicologia Do Envelhecimento
Neuropsicologia Do Envelhecimento
Neuropsicologia Do Envelhecimento
Conceitos e teorias
sobre o envelhecimento
ANITA LIBERALESSO NERI
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QUADRO 1.1
representantes dessa tendncia sero apresentadas a teoria da dependncia aprendida (Baltes, 1997), a teoria da seletividade
socioemocional (Carstensen, 1991; Carstensen et al., 2011) e a teoria do controle (Heckhausen & Schulz, 1995; Heckhausen, Wroch, & Schulz, 2010). A quarta teoria (Diehl, 1999) focaliza os eventos crticos
do curso de vida e o papel que desempenham na subordinao do desenvolvimento do adulto e do idoso s estruturas micro
e macrossociais do ambiente sociocultural
mais prximo.
CONCEITOS E HISTRIA
Idosos
So indivduos assim denominados em um
dado contexto sociocultural, em virtude
das diferenas que exibem em aparncia,
fora, funcionalidade, produtividade e desempenho de papis sociais primrios em
Teoria Autor(es)
Clssicas
Desenvolvimento psicolgico ao longo da vida
Desenvolvimento ao longo da vida
Tarefas evolutivas
Atividade
Afastamento
Estaes da vida adulta
Transio
Psicossocial do desenvolvimento da personalidade ao longo da vida
Social-interacionista do desenvolvimento no curso de vida
Contemporneas
Desenvolvimento ao longo da vida (lifespan)
Dependncia comportamental ao longo da vida
Seletividade socioemocional ao longo da vida
Controle primrio e secundrio ao longo da vida
Eventos crticos ao longo da vida
Jung (1971)
Bhler (1935) e Khlen (1964)
Havighurst (1951)
Havighurst e Albrecht (1953)
Cummings e Henry (1961)
Levinson (1978)
Erikson (1959)
Neugarten (1969); Neugarten e
colaboradores (1965)
Baltes (1987); Baltes (1997)
M. M. Baltes (1996)
Carstensen (1991)
Heckhausen & Schulz (1995)
Diehl (1999)
Neuropsicologia do envelhecimento
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as e incapacidades dependentes da ao
conjunta da gentica, do comportamento e
do acesso a recursos cientficos, tecnolgicos e sociais podem acelerar a senescncia
e conduzir a estados finais de forte desorganizao e indiferenciao. Em contrapartida, sob condies timas de influncia da
gentica, do ambiente e dos comportamentos ao longo de toda a vida, os indivduos
podem envelhecer bem. Podem apresentar
as mudanas normativas da senescncia,
mas com pequenas perdas funcionais, poucas e controladas doenas crnicas e manuteno da atividade e da participao social.
Convencionou-se chamar esse desfecho positivo de velhice bem-sucedida, tima, ativa, saudvel ou produtiva, denominaes
Velhice
que encerram forte apelo ideolgico por fazerem referncia a um permanente ideal da
a ltima fase do ciclo vital e um produhumanidade, mesmo quando envelhecer
to da ao concorrente dos processos de
era experincia compartilhada por poucos,
desenvolvimento e envelhecimento. Bioloe envelhecer com sade e bem-estar, um
gicamente, o desenvolvimento inclui promilagre ou uma conquista pessoal.
cessos de crescimento ou maturao, orgaA trajetria do envelhecimento hunizao e diferenciao, tendo como pimano comporta expressiva variabilidade,
ce a capacidade de reproduzir a espcie. Ao
dependendo do nvel de desenvolvimento
contrrio, o envelhecimento biolgico um
biolgico e psicolgico atingido pelos indiprocesso gradual de declnio em estrutura,
vduos e pelas coortes em virtude da ao
funo, organizao e diferenciao, cujo
conjunta da gentica, dos recursos sociais,
ponto final a morte. O envelhecimeneconmicos, mdicos, tecnolgicos e psicoto biolgico definido como a diminuio
lgicos. Nos ltimos 50 anos, vrias denoprogressiva da capacidade de adaptao e
minaes foram criadas, com o objetivo de
de sobrevivncia (Neri, 2009).
organizar a informao disponvel sobre o
O envelhecimento, ou senescncia,
envelhecimento e a velhice. A difuso dessas
um processo universal, determinado geneticategorias socialmente construdas tem-se
camente para os indivduos da espcie, moprestado difuso de informaes interestivo pelo qual tambm chamado de envesantes ao controle ideollhecimento normal. Esse
gico exercido pelo Estado,
processo tem incio logo
O envelhecimento, ou senescncia, um processo universal,
por instituies que regudepois da maturidade sedeterminado geneticamente para os
lam as aes de sade em
xual e acelera-se a partir
indivduos da espcie, motivo pelo
mbito mundial e regioda quinta dcada de vida,
qual tambm chamado de envenal, entre elas a Organizalhecimento normal.
marcado pela cessao ou
o Mundial da Sade, a
diminuio da possibiliOrganizao
Pan-americana
da Sade, pedade de reproduzir a espcie e por mudanlas profisses e pelas universidades.
as fisiolgicas e morfolgicas tpicas. Doen
Neuropsicologia do envelhecimento
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Neuropsicologia do envelhecimento
de; mente s fruto de corpo so ancoraram duas teorias sociolgicas sobre o envelhecimento: as teorias da atividade e do
afastamento. Essas teorias influenciaram
fortemente a organizao de movimentos
sociais de adultos e idosos, de programas
de ocupao do tempo livre, de propostas
de educao permanente, de universidades
da terceira idade e de cursos de preparao
para a aposentadoria.
Alm disso, contriburam para a criao de um novo termo para designar a velhice: terceira idade. Por ocasio do estabelecimento dos primeiros cursos para idosos,
na Universidade de Toulouse, Frana, acreditava-se que esse rtulo soaria mais agradvel aos ouvidos da clientela que se buscava do que velhice, talvez uma designao com pouco apelo para quem pretendia
atrair pessoas desse segmento etrio para
cursos livres na universidade. Era uma forma de a universidade responder emergente, mas j ntida, necessidade social do
custeio da sade e do bem-estar dos idosos. Mant-los saudveis e ativos por mais
tempo parecia uma soluo vivel, digna e
por que no? natural. A expresso terceira idade foi, ento, associada a uma nova
velhice, marcada pela atividade e pela produtividade na ocupao de um tempo livre
que se apresentava cada vez mais extenso.
As atividades de lazer, educao permanente e trabalho voluntrio tinham a dignific-las o trabalho realizado durante a segunda idade (vida adulta) em favor da primeira
idade (infncia e adolescncia).
A noo de terceira idade no somente ganhou o mundo, no rastro dos movimentos sociais e das universidades do tempo livre e da terceira idade; ganhou um lugar no processo de temporalizao da vida
humana. A ampla divulgao dos dados do
Estudo MacArthur sobre velhice bem-sucedida (Rowe & Kahn,1998) contribuiu para
confirmar os valores culturais tradicionais
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sobre o valor da atividade, do envolvimento social e de bons hbitos de vida na manuteno da sade. Estabeleceu-se como o
modelo biomdico de velhice bem-sucedida a ser seguido por adultos e idosos, grandes responsveis por escolhas no mbito da
preservao da prpria sade.
A partir dos anos de 1960, os avanos mdicos e tecnolgicos, a urbanizao,
a revoluo sexual, o feminismo e, mais recentemente, a globalizao da economia e
do conhecimento contextualizaram novas
e profundas mudanas nas formas de viver
a velhice. O alongamento do curso de vida
fez emergirem doenas da velhice que antes tinham pouca oportunidade de se manifestar e, por isso, pareciam eventos raros
e idiossincrsicos. As alteraes no perfil
epidemiolgico das populaes vm acarretando mudanas nos sistemas e nos custos da sade de vrios pases. Novas instituies, polticas e prticas sociais vm sendo criadas para atender s necessidades dos
idosos. As mudanas no perfil das famlias
determinadas pela expressiva e contnua diminuio das taxas de natalidade vm gerando crescente necessidade de profissionalizao dos servios de assistncia e de proteo aos idosos.
Mudanas nas formas de produo e
nas relaes de trabalho e o aumento dos
custos da velhice inativa vm determinando alteraes nos regimes de aposentadoria
e, em vrios pases, a extenso do perodo
produtivo pela postergao da idade para a
aposentadoria ou pela flexibilizao do processo de afastamento. Essas e outras mudanas, entre elas a melhoria das condies
de sade dos idosos jovens, puseram em xeque o conceito de terceira idade, que passou
a ser considerada uma fase de transio entre a vida adulta e a velhice, muito parecida com os anos mais tardios da vida adulta quanto a padres de sade, papis sociais
e atividade e bem diferente da velhice avan-
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QUADRO 1.2
Idade
0 a 15
15 a 25
25 a 45
45 a 65
65 e mais
Fonte: Bhler (1935).
Neuropsicologia do envelhecimento
QUADRO 1.3
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de. Como a de Erikson, sua teoria de estgios avana para a compreenso da vida em
toda a sua extenso. A influncia do paradigma de ciclos de vida evidente na temporalizao da vida humana proposta por
Jung: a vida dividida em duas metades, de
acordo com a meta predominante em cada
uma. Na primeira metade, que abrange a
infncia, a adolescncia e a vida adulta inicial, as metas so envolver-se com o mundo
externo e ser algum na sociedade. Os temas fundamentais so crescimento e cultivo das capacidades, ou seja, realizao e expanso do self.
Por volta dos 40 anos, que poca
marcavam o incio da meia-idade e a prxima transio para a velhice, o adulto d-se conta de que atingiu a segunda metade
da vida. Inicia-se um movimento de contrao com relao s metas perseguidas na
primeira metade. Emergem processos de
reviso de vida, busca de autoconhecimento e autoaceitao. Trata-se de uma contrao produtiva, na medida em que favorece
a adeso do adulto a metas de gradual diferenciao e integrao do self, bem como a
metas de conciliao entre os aspectos mais
Estaes da vida
Transio para a vida adulta
Entrada no mundo adulto
Transio dos 30 anos
Estabilidade
Transio para a meia-idade
Entrada na velhice
Fonte: Levinson (1978).
Tarefas evolutivas
Deixar a adolescncia, explorar possibilidades da vida adulta e fazer
escolhas preliminares.
Criar uma estrutura de vida, estabelecer vnculos, explorar as opes para
a vida adulta delineadas na adolescncia.
Trabalhar a estrutura de vida, avaliar escolhas e corrigir rumos.
Trabalhar, criar, produzir; seguir modelos.
Reviso de vida.
Redefinio de papis familiares e profissionais; atuar como modelo;
estabelecimento de nova e final estrutura de vida.
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crescimento fsico,
desempenho intelectual,
ajustamento emocional,
relacionamento social,
Neuropsicologia do envelhecimento
cos e capazes de gerar crescimento. A teoria do afastamento viu a tendncia ao afastamento ou desengajamento como produto
da socializao e, sem entrar no mrito do
crescimento do idoso, considerou-a como
requisito funcional da estabilidade social.
Cummings e Henry (1961) entendiam por
desengajamento o afastamento natural e
normal das pessoas que envelhecem dos papis sociais e das atividades da vida adulta.
Paralelamente, ocorreria aumento da preo
cupao com o self e declnio do envolvimento emocional com os outros.
Os autores consideram que a funcionalidade do afastamento dos idosos til
para eles e para a sociedade. Aos primeiros,
possibilita preparar-se para a morte e, segunda, abre espao para o envolvimento de
pessoas mais jovens e mais eficientes. O afastamento mutuamente consentido, uma vez
que os envolvidos compartilham aprendizagens sobre o dever de afastar-se dos idosos
e o direito dos no idosos de esperar que o
faam em benefcio da sociedade. natural
e espontneo, pois o declnio das interaes
sociais inerente ao envelhecimento.
A despeito do fato de ter sido desenvolvida com base em dados do Estudo de
Kansas City (Cummings & Henry, 1961), a
teoria do afastamento no se sustenta empiricamente, pois no h evidncias de que os
idosos o fazem voluntria e universalmente, tampouco se sabe se aqueles que no se
afastam tm algum tipo de problema ou
pertencem a uma elite de idosos bem-sucedidos. A teoria de defasagem estrutural (Riley, Johnson, & Foner, 1972), brevemente
comentada neste captulo, parece mais satisfatria para explicar o afastamento dos
idosos. No mbito das prticas sociais, o
afastamento gradual ou diferencial, em lugar do universal proposto pela teoria, vem
se afigurando como alternativa vlida em
vrios contextos nacionais e profissionais.
27
28
QUADRO 1.4 As oito fases do desenvolvimento humano, com as crises psicossociais, tarefas
evolutivas e qualidades do ego resultantes da resoluo das crises
Fases
Crise psicossocial
Fase beb
Confiana
desconfiana
Infncia inicial Autonomia
vergonha e dvida
Idade do
Iniciativa culpa
brinquedo
Idade escolar
Trabalho
inferioridade
Adolescncia
Identidade difuso
da identidade
Idade adulta
Intimidade
isolamento
Maturidade
Geratividade
estagnao
Velhice
Integridade do ego
desespero
Tarefas evolutivas
Qualidade do ego
Competncia
Fidelidade
Amor
Cuidado
Sabedoria
Teoria social-interacionista
da personalidade na velhice,
segundo Neugarten (1969) e
Neugarten et al., (1965)
O paradigma de curso de vida, em sociologia, tem, nos conceitos de interao social
e socializao, seus elementos-chave, que
foram assumidos por Neugarten (1969) e
seus colaboradores da escola de Chicago
para explicar o desenvolvimento. A autora criou a metfora do relgio social para
Neuropsicologia do envelhecimento
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descrever os mecanismos
de normalidade, ao pasAs pessoas tendem a viver as
sociais de temporalizaso que as idiossincrsimudanas normativas acompanhao do curso de vida incas so geralmente vividas por seu grupo de idade, gnero e
dividual e das coortes. Indas de forma solitria ou
condio social, o que lhes assegura
apoio social e senso de normalidade,
divduos e coortes intercomo eventos nicos. Por
ao passo que as idiossincrsicas so
nalizam esse relgio, que
serem esperadas e pergeralmente vividas de forma solitria
serve para regular o senmitirem socializao anou como eventos nicos.
so de normalidade, ajustecipatria ou ressocialitamento e pertencimento
zao, as transies nora uma coorte. O curso de vida constru
mativas no tm impacto emocional to
do pelas crenas sociais sobre como devem
grande quanto as transies idiossincrsiser as biografias individuais, por sequncias
cas (Neugarten et al., 1965). Para Neugarinstitucionalizadas de papis e posies soten et al., idosos bem adaptados so os que
ciais, por restries e permisses em relao
lidam bem com as mudanas associadas ao
aos desempenhos de papis etrios e de genvelhecimento e so capazes de criar nonero e pelas decises das pessoas. Esse curvos padres de vida, que lhes permitem ter
so tambm determinado por eventos de
forte envolvimento vital e grande satisfao
ordem privada, como, por exemplo, a ida(Neugarten, 1969).
de subjetiva e a noo de normalidade em
relao temporalidade do prprio desenvolvimento. A conjugao de eventos biolTEORIAS CONTEMPORNEAS
gicos e psicossociais o material a partir do
qual os indivduos e a sociedade criam conParadigma de desenvolvimento
ceitos de desenvolvimento normal e de fases
ao longo de toda a vida, segundo
do desenvolvimento. Em vez de se suceder a
Baltes (1987; 1997)
partir de uma determinao interna, de natureza biolgica ou psicolgica, o desenvolEsse paradigma considera mltiplos nveis e
vimento graduado e demarcado por evendimenses do desenvolvimento, visto como
tos de transio de natureza biolgica (p.
processo interacional, dinmico e contexex., a menarca e a menopausa) e sociolgitualizado. Integra a noo da existncia de
ca (p. ex., a entrada na escola e a aposentamudanas evolutivas de base ontogentidoria) que se associam a tarefas evolutivas
ca do paradigma de ciclos de vida com as
(Neugarten et al., 1965; Neugarten, 1969).
ideias dos paradigmas de curso de vida. ReAo quebrar a estabilidade do desenfletindo a influncia da viso de curso de
volvimento, os eventos de transio, ou
vida, o paradigma de desenvolvimento ao
marcadores, representam condies para
longo de toda a vida identifica trs classes
mudanas adaptativas. Transies normade influncias sobre o desenvolvimento:
tivas so aquelas que tm uma poca esperada de ocorrncia e esto de acordo com o
1. Influncias graduadas por idade, cuja
que reconhecido ou prescrito pela cultuatuao mais forte na infncia, quanra. As idiossincrsicas so mais raras e imdo identificada com a maturao, e no
previsveis. As pessoas tendem a viver as
envelhecimento ou senescncia.
mudanas normativas acompanhadas por
2. Influncias graduadas por histria,
seu grupo de idade, gnero e condio soaquelas que afetam de forma caractecial, o que lhes assegura apoio social e senso
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Neuropsicologia do envelhecimento
lizada com o apoio de outras pessoas, artefatos ou instituies. Na velhice, o modelo de seleo, otimizao e compensao
de Baltes e Baltes (1990) pode ser utilizado para explicar o paradoxo do bem-estar
subjetivo e da continuidade da funcionalidade, mesmo na presena de riscos e perdas de natureza biolgica e social (Fig. 1.1).
Recursos pessoais
Personalidade
Mecanismos de
autorregulao do self
Atitudes/valores
Motivos
Papis de gnero
Habilidades sociais
Inteligncia
Eventos crticos
durante a velhice
Prejuzos
acumulados ao longo
do desenvolvimento
falta de condies apropriadas do ambiente fsico (como escadas que impedem pessoas com problemas de mobilidade de ter
acesso a oportunidades de tratamento, lazer, informao e convivncia), de restries sociais impostas por motivos legais (p.
ex., o encarceramento, o confisco de bens e
a apreenso do passaporte de criminosos
de colarinho branco), de restries motivadas por disfunes sociais (como o controle de acesso a reas residenciais e segurana por traficantes de drogas), da presena de
pobreza e de desigualdade social (que privam as pessoas de controle sobre o acesso
a recursos sociais) e de restries de acesso
a trabalho, alimentos, abrigo e entes queridos impostas por inundaes, tempestades,
incndios, deslizamento de terra, greves, rebelies e ataques terroristas. A dependncia no condio que caracteriza exclusivamente certas fases do desenvolvimento,
Bem-estar
psicolgico
Seleo
Otimizao
Compensao
Perdas e riscos
relacionados ao
envelhecimento
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Recursos sociais
Rede de relaes
Suporte social
Atividade
Funcionalidade
Envolvimento
social
Figura 1.1 Envelhecimento bem-sucedido. Processos de seleo, otimizao e compensao como mediadores das
relaes entre perdas, riscos e prejuzos acumulados, recursos pessoais e sociais e a adaptao representada por
bem-estar psicolgico, atividade, funcionalidade e envolvimento social.
32
Neuropsicologia do envelhecimento
soas sobre os correlatos culturais mais prximos da dependncia, quais sejam, a solidariedade e a interdependncia.
Na velhice, a dependncia aprendida tem grande chance de prosperar em ambientes que desestimulam e punem a independncia e reforam a dependncia, por
meio de prticas superprotetoras e infantilizadoras, consentidas e aceitas como as
mais corretas. Nesses ambientes, essas prticas se vinculam, por um lado, crena de
que cuidar com amor significa fazer em lugar do idoso, visto como ser essencialmente doente, mentalmente confuso e dependente. Por outro, vinculam-se a questes de
ordem prtica ou do cotidiano do cuidado no lar ou em instituies, onde as rotinas organizadas em funo das convenincias de horrio e da disponibilidade de pessoas e de recursos deixam estreita margem
de manobra para o ensaio de interaes em
que vigora o estmulo agncia e independncia pessoal. Nesses casos, a promoo de padres comportamentais de dependncia aprendida tem efeitos negativos sobre a competncia comportamental e sobre
a sade fsica e mental dos idosos.
Em resumo, os aspectos centrais da
microteoria desenvolvida por Margret Baltes e colaboradores sobre dependncia so
os seguintes:
A dinmica dependncia-autonomia altera-se ao longo do desenvolvimento, sob
a influncia de variveis maturacionais,
da senescncia, de doenas e incapacidades, de condies do macroambiente social, de valores e expectativas individuais
e culturais e de variveis microssociais. A
ocorrncia de eventos idiossincrsicos,
inesperados e incontrolveis, ao longo
do curso do desenvolvimento, pode afetar essa dinmica, por dispor novos elementos estruturadores das relaes entre
indivduos e grupos.
33
34
nomia, mas pode ser um elemento central manuteno e melhoria da qualidade de vida dos idosos.
Neuropsicologia do envelhecimento
35
mentos selecionados ao acaso. Tanto as anlises de corte transversal quanto as longitudinais mostraram que a velhice associou-se
com maior bem-estar, maior estabilidade e
maior complexidade emocional. Mais interessante ainda, a experincia emocional
foi preditiva de mortalidade. Independentemente de gnero, idade e raa, os idosos
com mais experincias emocionais positivas apresentaram probabilidade de sobrevivncia superior a 13 anos, em comparao
com aqueles que tinham experincias emocionais predominantemente negativas.
As formulaes da teoria de seletividade socioemocional e os dados empricos
gerados por ela ajudam a compreender as
preferncias sociais ao longo da vida. A teoria defende que os idosos moldam seu ambiente social de modo a maximizar seu potencial para sentir afetos positivos e para
minimizar os afetos negativos. Ao faz-lo
por meio de investimentos seletivos, os idosos investem na regulao do seu comportamento socioemocional e do seu ambiente.
Tais operaes representam o cumprimento de metas teis ao alcance de boa qualidade de vida na velhice. Corporificam o metamodelo de seleo, otimizao e compensao, sugerindo que uma adaptao
bem-sucedida na velhice significa viver bem
com os recursos disponveis, e no propriamente dispor de recursos fsicos, cognitivos
e sociais excepcionais.
36
Neuropsicologia do envelhecimento
QUADRO 1.5
Funcional
Verdico
Ilusrio
37
Ao eficaz na promoo do
controle a curto e longo prazo.
Ao eficaz, mas baseada
em crenas invlidas.
Disfuncional
Ao eficaz para promoo do controle a curto prazo, mas
que enfraquece o potencial para o controle a longo prazo.
Ao ineficaz baseada em crenas invlidas.
QUADRO 1.6
Funcional
Disfuncional
Autoatribuio de incapacidade.
Preocupao com metas inatingveis.
Atribuies pessimistas.
Superestimativa sobre as relaes
entre o comportamento e os resultados:
querer poder.
Superestimativa de metas inatingveis.
Autorrecriminao por ocorrncias
sobre as quais a pessoa no tem
controle.
38
formas de centrao do raciocnio e de subProcessos de reviso de vida e de redimisso ao poder do grupo caracteriza novas
mensionamento de metas que tm lugar na
estratgias de controle secundrio inverdico
velhice beneficiam-se da adoo de estrae, muitas vezes, disfunciotgias de controle secunnal (caso das crenas onidrio, que podem amorProcessos de reviso de vida e
potentes), cuja frequntecer os efeitos da avaliade redimensionamento de metas que
tm lugar na velhice beneficiam-se
cia reduzida pelo deseno de erros e fracassos e
da adoo de estratgias de controvolvimento do raciocnio
de encontrar sentido nas
le secundrio, que podem amortecer
abstrato e de formas mais
experincias de desenvolos efeitos da avaliao de erros e fracassos e de encontrar sentido nas exmaduras de exerccio da
vimento e nas perdas. A
perincias de desenvolvimento e nas
sociabilidade.
capacidade de criar um
perdas.
O otimismo exacerequilbrio timo entre esbado com relao s postratgias de controle prisibilidades do controle primrio a estratmrio e secundrio favorece o bem-estar
gia adaptativa mais comum na vida adulta
subjetivo e a continuidade do desenvolvie no incio da velhice, at mesmo porque a
mento em domnios selecionados na velhicultura supervaloriza a autonomia e o conce. Em 2010, Heckhausen e colaboradores
trole primrio. Com a idade, crescem as li(2010) caracterizaram a teoria de controle
mitaes fsicas e cognitivas, reais e preprimrio e secundrio como uma teoria de
sumidas. Crescem as ameaas ao controle
motivao relevante explicao dos proprimrio at um ponto em que se torna imcessos de autorregulao ao longo das idapossvel no lev-las em conta, sob pena de
des, em um artigo terico em que resenham
falncia do controle. Os muito idosos esto
dados de um programa de pesquisas que
mais sujeitos a enfrentar situaes de inconconfirmam os pressupostos de sua teoria.
trolabilidade na sade, nas capacidades, no
ambiente fsico e social e na famliado que
Eventos crticos do curso
os idosos jovens e os no idosos. Como resultado, predominam entre suas estratgias
de vida, segundo Diehl (1999)
de manejo tentativas de controle secundOs eventos de vida so acontecimentos que
rio envolvendo atribuio de novos signifideterminam e do sentido histrico ao curcados a situaes geradoras de estresse. Vaso da vida de grupos etrios e de indivduos.
lem-se tambm de atribuies causais fanNo mbito individual, os eventos de vida
tasiosas, mas que aliviam a ansiedade pelo
so marcadores que dizem respeito traerro. Ajustamento de metas (passei da idade
jetria individual de desenvolvimento e de
de querer ou fazer), comparao social com
envelhecimento. Ao discorrer sobre os prinpessoas que se encontram em situao pior
cpios do paradigma de desenvolvimento
(comparao social para baixo), atribuio
ao longo de toda a vida (Baltes, 1987; Balde deficincia e de outros atributos negates, 1997), este captulo descreveu as formas
tivos aos outros e desvalorizao de alvos
de atuao dos eventos normativos gradua
inatingveis (as uvas esto verdes) so oudos por idade e por histria e dos eventos
tros exemplos de estratgias de controle seno normativos sobre o desenvolvimento e
cundrio. Elas ajudam a adaptao quando
o envelhecimento.
promovem o controle primrio, salvaguarNa velhice, aumentam as chances de
dam a autoestima e contribuem para manocorrncia
de eventos incontrolveis, como
ter o bem-estar subjetivo.
Neuropsicologia do envelhecimento
doenas, acidentes, morte de entes queridos e problemas que afetam os descendentes. Eles propem maiores desafios resilincia psicolgica dos idosos do que os eventos
controlveis, ou seja, tm papel proeminente na determinao das trajetrias de envelhecimento e de adaptao dos idosos, pelo
fato de obrigarem as pessoas a fazer esforos
extraordinrios de adaptao, por competirem com outras demandas ou porque os
idosos no tm os recursos necessrios para
enfrent-los de imediato. Problemas de sade e perda de independncia e de autonomia no prprio idoso, no parceiro conjugal e em amigos so fonte de estresse. A experincia de declnio remete diminuio
do horizonte temporal, certeza de que a
morte est prxima e ao medo da dependncia. A experincia de eventos relacionados ao declnio e morte pode gerar ou
agravar estados de ansiedade e depresso
ou pode afetar relacionamentos familiares
e sociais; tambm representa oportunidade para aprendizado e crescimento pessoal.
Pobreza, isolamento social e discriminao
por idade expem os idosos a situaes estressantes. No Brasil, tais situaes so representadas por problemas com moradia,
transporte e segurana, que podem ser vividos como aborrecimentos constantes, mas
que tambm tm grande chance de serem
vividos como eventos inesperados e incontrolveis. Nesses casos, a perplexidade e o
sofrimento psquico dos idosos tendem a
ser enormes e podem potencializar os efeitos de doenas crnicas, dor, incapacidades
e depresso.
A microteoria com a qual este captulo
concludo focaliza especificamente o papel dos eventos no normativos incontrolveis, ou eventos crticos, em virtude de seu
forte potencial de influenciar o curso do
envelhecimento (Diehl, 1999). Um aspecto novo nessa microteoria a noo de que
a probabilidade de ocorrncia de eventos
39
de alta e baixa controlabilidade varia fortemente em funo do status socioeconmico e da posio social do indivduo, que
so dependentes de variveis macrossociais.
Metaforicamente, essas variveis determinam se as pessoas escolhem ou so selecionadas por eventos crticos e, por afetarem
o desenvolvimento de recursos psicolgicos e sociais, influenciam seu enfrentamento. Outro aspecto novo da microteoria a
integrao da noo de participao proativa ou reativa do indivduo nas aes que
organizam seu desenvolvimento. Em terceiro lugar, ela integra a noo de que o comportamento no somente controlado por
presses externas ou por dficits de sade,
como tambm por um sistema de motivao intrnseca que inclui senso de autoeficcia, senso de competncia e senso de autonomia. O controle proativo do desenvolvimento exercido quando o indivduo se
envolve em aes com o objetivo de otimizar o prprio desenvolvimento e seus produtos. O controle reativo exercido quando ele enfrenta eventos crticos ou quando
responde discrepncia percebida entre o
status real e o status socialmente desejvel
de desenvolvimento. O sistema de motivao intrnseca atua como instncia iniciadora e reguladora das aes abertas ou encobertas de autojulgamento, autoavaliao,
autorreforamento e autopunio (Bandura, 1986).
Eventos crticos no so ocorrncias
isoladas, mas processos que se desdobram
no tempo, tm alta salincia emocional, desafiam o ajustamento preexistente entre a
pessoa e o ambiente e conduzem a comportamentos de enfrentamento que tm como
objetivo restabelecer o ajustamento entre a
pessoa e o ambiente. Eles ocorrem na presena de antecedentes representados pela experincia prvia da pessoa com eventos crticos, pelo grau de sucesso de suas iniciativas
de enfrentamento e pelas experincias de so-
40
CONSIDERAES FINAIS
O cenrio atual das teorias psicolgicas sobre o envelhecimento reflete o desenvolvimento dos paradigmas de curso de vida
na sociologia e de desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span) na psicologia.
A emergncia desses paradigmas se deu no
mesmo contexto intelectual em que se criaram novas metodologias e novos conceitos
para explicar processos complexos do desenvolvimento individual na velhice, ocorrendo em contextos de complexas mudanas demogrficas e culturais que deram visibilidade ao idoso no cenrio poltico e
cientfico. As teorias clssicas de estgio e os
dados derivados de pesquisas longitudinais
e de corte transversal afiliadas ao paradigma de ciclo de vida em biologia e em psicologia pavimentaram o caminho que con-
Neuropsicologia do envelhecimento
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