"As Metamorfoses" de Murilo Mendes
"As Metamorfoses" de Murilo Mendes
"As Metamorfoses" de Murilo Mendes
RESUMO: Este artigo faz uma anlise de trs poemas do livro As Metamorfoses, de Murilo Mendes.
A obra, dividida em duas partes, coloca Murilo Mendes em um dilema: como, em tempos de
guerra, permanecer fiel ao sublime? As duas partes do livro respondem a pergunta sua maneira e
nossa anlise, escolhendo casualmente dois poemas da primeira (o inicial e o final) e um (interno)
da segunda parte, procura fixar-se na viso de homem que emerge desse dilema. Ao final, como
comprovao da unidade formal do livro, os trs poemas se fundem, saindo da casualidade, e tecem
uma integridade que, no importando de que ponto se olhe, equidista de um centro terrvel e
incompreensvel, de onde surgem guerras e tambm poemas.
PALAVRAS-CHAVE: Murilo Mendes; Guerra; Leitura cerrada; Sublime.
ABSTRACT: This paper is an analysis of three poems from the book As Metamorfoses, by Murilo
Mendes. The work is divided into two parts, which puts Murilo Mendes in a dilemma: how to
remain faithful to the sublime in wartime? Both parts of the book answer such question in their
own way, and our analysis of choosing by chance two poems from the first part (the beginning
and the end) and one (from the inside) of the second part seeks to set up the view of mankind
that arises from this dilemma. At the end, as an evidence of the formal unit of the book, the three
poems merge, out of chance, and design an integrity that, no matter from which stand point one
looks, is at the same distance of a terrible and incomprehensible center, from which arise wars and
also poems.
KEYWORDS: Close reading; Murilo Mendes; Poetry; Sublime; War.
Como dito antes, As Metamorfoses divide-se em dois livros de medidas e temas desiguais,
cujo primeiro homnimo ao ttulo, alm de ter por subttulo Livro Primeiro, seguido da
data de 1938. O primeiro poema desse primeiro livro O Emigrante:
1
Cf. MAN, P. Resistncia teoria. Trad. Teresa Louro Prez. Lisboa: Edies 70, 1989.
Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 8(2): p. 1226, Jun.Dez./2016. ISSN: 2177-3807.
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O Emigrante
A Henri Michaux
Recapitulei os fantasmas,
Corri de deserto em deserto,
Me expulsam da sombra do avio.
Tenho sede generosa,
Nenhuma fonte me basta.
Amigo! Irmo! Vou te levar
O trigo das terras do Egito,
At o trigo que no tenho.
Egito! Egito! Amontoei
Para dar um dia a outrem:
A sombra frtil de Deus
No me larga um s instante.
Levai-me o astro da febre:
Eu vos deixo minha sede,
Nada mais tenho de meu.
(MENDES, 1994, [doravante OC] p. 313)
Uma palavra sobre as dedicatrias: o livro todo dedicado ao meu amigo Wolfgang
Amadeus Mozart. notrio o telegrama que Murilo Mendes envia a Hitler em nome de
Mozart como protesto pela tomada de Salzburgo (OC, p. 25). Quanto ao primeiro poema,
dedicado ao poeta belga Henri Michaux. A explicao dada por Murilo Mendes para a
dedicatria contingente: quando entrava na Jos Olympio com as provas para publicao,
l estava Henri Michaux, que, imediatamente, ps-se a folhear o livro e, interessando-se pelo
que lia, recebeu a promessa de que um dos poemas lhe seria dedicado. A contrapartida veio em
forma de dedicatria a Murilo Mendes em um de seus livros, Peinture, em que diz: A Murilo
Mendes qui dun seul pome a emport mon admiration et ma sympathie2 (OC, p. 1227).
parte a contingncia da dedicatria, Henri Michaux foi um exilado. Primeiramente, foi um
viajante compulsrio, apesar de dar sempre mostras de odiar os lugares por onde passava.
Em seguida, tornou-se verdadeiramente exilado, quando fugiu da Frana colaboracionista
durante a Segunda Guerra. Alm desse sentido, a dedicatria pode ser vista como um ato
de generosidade convergente com o poema pois, como teremos oportunidade de ver,
uma estranha generosidade perpassa o poema at que, dialeticamente, transforme-se em
maldio. Ambas as dedicatrias esto permeadas pelo esprito da poca e pela guerra. O
poema que abre o livro s foi possvel como consequncia do horror militar e ideolgico
por que passava a Europa j em 1938. interessante pensar que sem a guerra a obra seria
desnecessria e que, com ela, a obra torna-se at hoje imprescindvel. Isso uma medida da
profundidade poltica de sua poesia, onde a eternidade e o infinito so representaes da fuga
2
A Murilo Mendes, que com um s poema conquistou minha admirao e minha simpatia.
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do espao e do tempo, no suas elaboraes tericas, como quem se dirige Terra Prometida
no porque a procura, mas porque carnalmente obrigado a fugir do Egito. A eternidade
no ausncia ideal de tempo, algo que poderia ser erroneamente abstrado do essencialismo
de Murilo Mendes e Ismael Nery; ao menos nas poesias que compem o livro aqui em vista,
a eternidade no existe enquanto momento no-dialtico: prova-o a experincia temporal
e fsica do pnico, a qual, na respirao ansiosa dos poemas (Prepara o vestido novo/ Para
receber a guerra/ Que cresce no bojo desta [OC, p. 370] e, no fim do poema, a inspirao
com falta de ar), nos flegos curtos das pequenas peas e dos versos, que vez ou outra escapam
para uma lufada estonteantemente longa de ar, , comprimida no tempo, do mesmo teor da
respirao no parto. Pois, tome-se a respirao de quem d a luz e a dilate em um longo dia e
se ter o ritmo e o regime pulmonar da angstia; dilate-a e a traduza na forma de palavras e
se ter a poesia em pnico, a gestao de imagens de catstrofe3. Seria possvel dizer, a partir
da poesia de Murilo Mendes, que a eternidade enfim encontrou seu pnico gerador.
Na primeira estrofe do poema h trs substantivos: a nuvem, o pssaro e a esttua, e
assim se sucedem: a nuvem andante4 que acolhe, o pssaro que sai da esttua de pedra.
Entre tais figuras, aquela que nasce antropomorfizada obviamente a esttua; ela, contudo,
a que no possui verbos, impotente e inativa. O emigrante, de quem se supe ser a voz
enunciativa, declara-se formado por essa trindade de nuvem, pssaro e pedra. Do mais etreo
ao mais pesado, do mais nmade ao mais sedentrio, o emigrante, vido por reconhecer-
se em algo ou algum e incapaz de faz-lo, amplia ento seu reconhecimento para todas as
coisas. O solitrio o poeta e o emigrante no so essencialmente distintos tem o amor
mais fcil, o amor na forma da Graa, j que s se pode amar aquilo que se intui no merecer.
Isso pode soar contraintuitivo em uma poca de meritocracia, mas no h ddiva em receber
o que se merece, sendo que crer no mrito, alm de ser cruelmente individualista, no leva
em conta o aspecto de que arrasta o prprio indivduo a trs perdas: primeiro e obviamente,
desprezo por aquele que no merece, quando para o cristianismo de Murilo Mendes este
deveria ser causa de amor; segundo, o que se recebe no nada alm do esperado, sendo
incapaz de surpreender; e, terceiro, predispe o indivduo que se cr na posse do mrito
irritabilidade, por um dio irrestrito ao acaso que o despreza5. Em outras palavras, ganhar
no vale nada e perder irrita, e o outro s pode ser meu indiferente ou meu inimigo. Como
poder ser visto no poema, o emigrante, tornado emigrante pelo outro, no devolve a
este outro simplesmente seu dio, embora uma parte febril de si possa passar ao outro pela
despossesso. Pelo contrrio, esse reconhecimento em todas as coisas no feito sem amor,
evitando a todo instante a culpabilidade.
3
Uma dessas imagens a do manequim. No exclusiva de Murilo Mendes, um personagem-imagem da poesia
surrealista de Oswald, por exemplo. Se se pensar no surrealismo enquanto movimento revolucionrio e de cunho
poltico, como de fato foi, a imagem do manequim pode ser vista ento como algo que desperta o estranhamento
poltico, um ndice para a exposio de um mundo oculto e irreal, o nosso, onde um manequim veste-se melhor
que um pobre. O terrvel dessa imagem seguidas vezes enunciada, dessa mquina intil que parece sugerir que o
homem, agora, no precisa mais assemelhar-se a um homem, o fato de ter se tornado naturalizada.
4
A nuvem andante no existia na primeira publicao; em seu lugar, estava nuvem em flor, nos dois versos
em que ocorre. Cf. OC, p. 1653.
5
Vale lembrar a frase inscrita entrada do campo de concentrao em Buchenwald: Jedem das Seine, ou,
traduzida a expresso: Cada um tem o que merece.
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Por falar em amor, recapitular um vocbulo de sntese. O que dizer, porm, de
recapitular fantasmas? Aqui preciso optar por uma chave interpretativa. Creio que todo o
poema justifica tal opo, ao ponto do tema haver se tornado para mim algo do qual o poema
no pode ser dissociado: o topos do judeu errante6. Embora em 1938 a catstrofe judaica
estivesse sendo armada mas ainda no concretizada na forma da soluo final do estado
nazista, a perseguio contra os judeus era real e evidente. Mein Kampf (1925), por exemplo,
j contava mais de uma dcada de publicao. A demonizao dos judeus no era velada, mas
propagandeada. Isso por demais conhecido e mais bem tratado em outros lugares para que
me demore aqui. As Metamorfoses um livro que tem os olhos escancarados para a guerra,
e seus olhos j iniciam abertos na terrvel simpatia que sente pelos perseguidos.
Recapitular fantasmas dar mobilidade quelas esttuas de pedra. Para o judeu de
1938, recapitular a Histria tremer e preparar-se para fugir mais uma vez. Contudo, o
emigrante no recapitula fantasmas, e sim recapitula os fantasmas: eles so demasiado
frescos e vivos para serem genricos. Correr desertos algo que no poema tambm se
encontra no passado: Recapitulei os fantasmas/ Corri de deserto em deserto (OC, p. 313).
Em seguida, o presente se instaura na forma abrupta da expulso: Me expulsam da sombra
do avio (OC, p. 313). Essa expulso pela bomba do presente histrico no uma expulso
qualquer. Podemos pensar que o avio enquanto mquina de guerra algo sem precedentes,
e que o emigrante expulso pela sombra do bombardeio o que demonstra ainda uma
hesitao na culpabilidade, j que ser expulso pela sombra do bombardeio tambm um ato
volitivo, embora inevitvel. Alm do mais, tambm expulso das inovaes e do Estado,
que agora se voltam contra ele. Porm, mais interessante pensar que expulsar da sombra
do avio expulsar de todos os lugares, pr em perptua fuga, dar corda ao permanente
relgio da dispora. Pois esse ato de expulsar vem como uma desculpa para a expulso, um
daqueles conhecidos atos de autoridade que se comprazem em tornar a explicao suprflua,
que tm a violncia como verdadeiro fim de si mesmos.
O perseguido , em fuga, forado a definir-se. Define-se por aquilo que em essncia
individual, instintivo e necessrio: a sede. No entanto, sua sede classificada como generosa.
Fora da poesia, uma sede generosa seria compreendida como uma sede abundante, e tal
significado no de todo falso7. Porm, o outro sentido da palavra generosa, que sozinha
significa generosidade e que aqui, ironicamente, quando associada a algo deixa de significar
associao, decaindo o significado do coletivo abundncia pessoal e negativa, o outro sentido
prevalece, sem anular o primeiro: tenho, sim, abundncia de sede; mas, entre os instintos e
as necessidades, a sede a mais importante e a menos suspeita. Se a necessidade fosse outra,
e o poema dissesse: Tenho fome generosa, a ideia traria consigo uma noo de disputa e,
alm disso, tocaria em uma de nossas fibras j habituadas ao sofrimento alheio: a alegao de
fome. Poderia, alm disso, soar como um pedido de compaixo, mas a sede insofismvel,
6
Sobre o judasmo de Espinoza, diz Murilo Mendes: Traz o selo da raa alegrica, predestinada, perseguida
(OC, p. 1204).
7
H que se levar em conta que na primeira redao do poema a sede era insacivel (OC, p. 1653), e que foi,
como em vrias correes do autor, de sua inteno multiplicar o escopo dos significados.
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e o verso seguinte comprova dolorosamente que este no o caso: Tenho sede generosa,/
Nenhuma fonte me basta. Nesse momento, apesar de sermos testemunhas de sua expulso,
o emigrante coloca como causa de sua errncia a prpria sede, a sua insaciabilidade. Ao
mesmo tempo, define-se enquanto judeu: bebo dessa fonte, e terei sede novamente.
Os versos seguintes tocam em um ponto crucial na figurao do judeu, e no apenas
no sculo XX, como a figura de Shylock o demonstra. Os versos dizem: Amigo! Irmo! Vou
te levar/ O trigo das terras do Egito/ At o trigo que no tenho./ Egito! Egito! Amontoei/
para dar um dia a outrem:/ A sombra frtil de Deus/ No me larga um s instante. O judeu
emigrante acumula em um lance especulativo: At o trigo que no tenho. No entanto,
esse acmulo no para si, seno para o amigo e para o irmo. Este duplo vocativo que
mais se aproxima (do amigo ao irmo) quanto menos proximidade h demonstra o drama
de seu apelo. Lembra, se a piada for permitida, algum a chamar pelo garom quanto mais
esse garom se afasta: a tentativa de identificao um fracasso total. Ao Egito, terra de que
expulso, explica as razes de sua riqueza, de sua fertilidade: a nica sombra de que no
expulso, a sombra que o acolhe como a nuvem andante ao pssaro: Deus. Vale lembrar
que o verbo amontoar atesta pela veracidade de seu discurso, j que no um verbo cuja
finalidade encontra-se em si mesmo: quem amontoa, o faz porque tem outro fim em mente,
no o amontoar por ele mesmo trata-se de um verbo provisrio. Em seguida, como ato
final da expulso: Levai-me o astro da febre:/ Eu vos deixo minha sede,/ Nada mais tenho
de meu. Para no incorrer na imposio de determinar o que seria o astro da febre como
diz Borges (2007, p. 95), dizer A para dizer B meramente artificial ensaio duas hipteses
no necessariamente autoexcludentes. Ambas somente so possveis graas correo feita
aps as duas primeiras publicaes, j que, antes, o verso dizia: Tirai-me o colar da febre
(OC, p. 1653), embora essa verso corrobore o sentido venal dessa febre. De todo modo, a
primeira, mais bvia, a de que tal imagem pudesse significar o ouro. A segunda hiptese,
mais sutil, orbita em torno das sombras presentes no poema. famosa a passagem mtica em
que Digenes est sentado ao lado de seu barril e interpelado pelo imperador Alexandre. Ao
ser indagado do que desejaria, o filsofo apenas pediu que o imperador parasse de lhe fazer
sombra: No me tires o que no me podes dar!, teria dito. Despossudo como o filsofo
cnico, o emigrante do poema toma atitude contrria: levai-me tambm o sol. De algum
modo, as duas interpretaes convergem sem se simplificarem: levem de mim o meu sol, que
tero, graas a ele, tambm a minha sede, uma sede generosa, que talvez comece a arder no
interior do outro.
Se a entrada ao primeiro livro tem afinidades evidentes com o sublime seja por meio
da simpatia pela dor alheia, seja pelo grandioso e doloroso de certas imagens (BURKE, 2013,
p. 66-67, 97) a sada no apresenta essas afinidades e, pelo contrrio, tem o carter claro
de uma invectiva:
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Canto Amigo
1
Eu te direi: poders te libertar do peso da vida,
Poders encontrar um amigo no fantasma que te habita,
Os homens podero amordaar os tiranos se quiserem se transformar
[num s.
Eu te direi: da prpria fraqueza emerge a fora,
E muitas vezes a renncia o esquema da vitria.
Se conhecesses o dom que vem do alto e que afastas!
Por que aumentas o terror que rodeia teu lar,
Por que em vez dos retratos de poetas
Que prolongam no tempo a corrente do amor e da fraternidade
Suspendes na tua casa fotografias de couraados e de fortalezas volantes?
Por que acreditas no julgamento dos chefes transitrios do homem?
Por que recusas po e brinquedo s crianas, dando-lhes granadas?
Que futuro preparas, homem amigo, para teus descendentes?
2
meus irmos, eu ando entre vs como o sobrevivente duma cidade
[arrasada.
Ouvi os ltimos acordes do meu canto de perdo e de ternura
Antes que os rdios extingam minha palavra com anncios de guerra.
meus irmos, eu sou o que no ri, o que no mistifica,
Eu sou o que vos deveria odiar e que vos ama,
Eu sou o que espera a vitria divina sobre as foras do mal
Que agem poderosamente dentro de mim e de vs.
(OC, p. 335-336)
O Pastor Pianista
8
Antonio Candido chega a dizer em sua anlise do mesmo poema: A plancie deserta, os pianos gritando ao luar,
as sombras sem pssaros, as rosas andejas so isso mesmo, permanecem tais, vinculados pelos nexos arbitrrios
da viso surreal (CANDIDO, 1985, p. 95).
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conveniente em torno do indizvel. Algumas pinturas de Salvador Dal figuram pianos
em desertos; a imagem de um piano com o vulto recortado contra a lua uma belssima
imagem onrica; a frase contra a lua evoca uma das mais belas passagens dos Cantos de
Maldoror, dolo mximo do surrealismo. Voltaremos a este ltimo aspecto em seguida. Vale
por agora dizer que o surrealismo presente no vale por uma explicao simplificadora ou
atenuadora das imagens propostas, pela atitude desinteressada de se assumir previamente a
falta de sentido. Ainda que haja falta de sentido, a obrigao do leitor a procura, para sentir
a perda quando no for mais capaz de encontr-lo.
O poema composto de trs estrofes, a primeira com seis versos, a segunda com trs,
a terceira com sete. A segunda e terceira estrofes se completam com mais continuidade do
que a primeira e a segunda, graas ao pronome anafrico, o qual faz da terceira estrofe uma
longa subordinada da segunda; no entanto, nas duas primeiras estrofes o tema o mesmo,
o piano est em foco; porm, quando o piano grita e transmite o antigo clamor do homem,
esse grito transfigurado e os pianos desaparecem, restando o homem. H, portanto, uma
continuidade temtica e conteudstica nas duas primeiras estrofes, uma continuidade sinttica
da segunda terceira que, de fato, poderiam ser unidas: porm, com isso, a viso do homem
estaria nublada por um progresso, por uma metamorfose natural demais do piano em grito
e posteriormente em humanidade. Pois preciso pr o homem em foco. O pastor pianista
quer falar sobre o homem, e mesmo o andar das mulheres o demonstra de modo paternal.
Minha hiptese de leitura9 a de que a definio do homem se faz sob uma constante sombra,
e que s pode ser feita pelos termos de um poderoso contraste e de uma poderosa ausncia.
A passagem de Lautramont a qual julgo uma das mais belas de toda literatura
evocada pelo Pastor Pianista a seguinte:
9
Obviamente, interessa pouco se Murilo Mendes pensou ou no em tal hiptese; creio que isso no seja
irrelevante mas, em um delicado processo dialtico, quando nos perguntamos se o autor pensou ou no em uma
leitura, o que enunciamos com isso no uma real curiosidade sobre os fatos, mas sim um espanto, um assombro,
que tanto do texto quanto da crtica: eu diria que se perguntar sobre a inteno de um autor a expresso tpica
de nosso espanto para com a crtica que, ao arrebanhar o efeito de assombro da arte para si, imediatamente
tanto admirada quanto posta sob suspeita.
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lebres, que desaparecem em um piscar de olhos; contra o ladro que foge a galope
em seu cavalo, aps ter cometido um crime; contra as serpentes, remexendo as
moitas, que lhes fazem tremer a pele e ranger os dentes; contra seus prprios
uivos, que lhes metem medo; contra os sapos, a quem partem com um golpe
seco de maxilar (por que se afastaram eles do brejo?) contra as rvores, cujas
folhas, suavemente embaladas, so outros tantos mistrios que no entendem,
que querem descobrir com seus olhos fixos, inteligentes; contra as aranhas,
suspensas entre suas longas patas, que sobem nas rvores para se salvar; contra
os corvos, que no acharam o que comer durante o dia, e que voltam para o
ninho com suas asas cansadas; contra os rochedos do litoral; contra os fogos que
surgem nos mastros de navios invisveis; contra o rumor surdo das ondas; contra
os grandes peixes que, nadando, mostram seu dorso negro, e depois afundam no
abismo; e contra o homem que os torna escravos (LAUTRAMONT, 2005, p.
81-82)10.
12
Sobre o aspecto da dissonncia no poema, ver Candido (1985, p. 93).
13
Omitir sempre uma palavra, recorrer a metforas ineptas e a perfrases evidentes, qui o modo mais enftico
de indic-la.
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de volta a uivos; o auge dialtico do refinamento: as costas eretas, os dedos esquelticos
do pianista pressionando a tecla de marfim, a qual faz rugir um grande, negro e corcunda
Steinway ( belo acima de tudo, no que tenha cauda, mas que esse possante animal tenha
trs patas).
Essa imagem pode ser brevemente associada cena dos Cadernos de Malte Laurids Brigge
de Rilke, na qual Beethoven posicionado com um piano em meio ao deserto tebano, e cuja
msica afasta a todos:
14
Flvio de Carvalho diz: Somente com a substituio dos deuses-animais por formas com atributos humanos
que o homem, repudiando os seus antigos companheiros, tornando-se racista, como atitude intermediria,
inicia-se numa morbidez narcisista, valorizando atravs dos milnios a sua forma fsica e a sua inteligncia
(CARVALHO, 1973, p. 74).
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Consideraes finais
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