Texto Africanas 29-03
Texto Africanas 29-03
Texto Africanas 29-03
Carlos Ervedosa
Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestios, que eram filhos do pais e se
tornavam homens, iniciam em Luanda o movimento cultural "Vamos descobrir
Angola!. Que tinham em mente? Estudar a terra que lhes fora bero, a terra que eles
tanto amavam e to mal conheciam. Eram ex-alunos do liceu que recitavam de cor
todos os rios, todas as serras, todas as estaes e apeadeiros das linhas frreas de
Portugal, mas que mal sabiam os afluentes do Cuanza que corria ao seu lado, as suas
serras de picos altaneiros, os seus povos de hbitos e linguas to diversas, que liam e
faziam redaces sobre a beleza da neve ou o encanto da Primavera que nunca
tinham presenciado, que desenhavam a pra, a ma ou a uva sentindo apenas na
boca gulosa o sabor familiar e apetecido da goiaba, da pitanga ou da gajaja, que inter-
pretavam as fbulas de La Fontaine mas ignoravam o fabulrio, os contos e as lendas
dos povos da sua terra, que sabiam com preciso todas as datas de todas as
faanhas dos monarcas europeus, mas nada sobre a rainha Nzinga ou o rei Ngola.
Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam
parte mas que to mal lhes haviam ensinado, comea a germinar uma literatura que
seria a expresso da sua maneira de sentir, o veculo das suas aspiraes, uma
literatura de combate pelo seu povo.
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faa toda a gente sentir,
faa toda a gente dizer:
- poesia de Angola!
Publicava este poeta, no ano de 1949, o seu melhor poema, Estrela pequenina, e
comeavam a aparecer as primeiras composies literrias marcadas, bem marcadas,
pelas condies ambientais, resultantes de um conhecimento perfeito do homem e da
terra, como nos mostra esse admirvel S Santo, criao de Viriato da Cruz:
Muari-ngana Santo
dim-dom
ual' o banda calaala
dim-dom
chaluto mu muzumbo
dim-dom
S Santo ...
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e o que sobra vai no mar. ..
Hum-hum
Mas deixa ...
Quando o s Santo morrer, Vamos chamar um kimbanda Para Ngombo nos dizer
Se a sua grande desgraa
Foi desamparo de Sandu
Ou se j prpria da Raa ...
L vai ...
descendo a calada
A mesma calada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mo
Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. At
eles havia chegado, ntido, o grito do Ipiranga das artes e letras brasileiras, e a lio
dos seus escritores mais representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro
Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado, foi bem assimilada.
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Mensagem sai hoje, para a rua, a cumprir a sua misso, levando em si, para vs, para
o Mundo, uma mo-cheia de esperana; um cacho de mocidade sedenta de Verdade,
de Justia e de Paz.
Assim, os novos poetas foram cantando, com voz prpria, a terra angolana e as suas
gentes.
Antnio Jacinto escreve ento alguns dos mais belos poemas do Movimento, com
temas que se inscrevem tanto no mundo urbano como no mundo rural. Deste, d-nos
o escritor, entre outros poemas, a Carta de um contratado, onde nos transmite a
angstia do homem do campo, saudoso, longe da terra e da sua amada, escolhendo o
poeta, com preciso, as palavras e as imagens, a forma em suma, que melhor poderia
servir o tema:
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A poesia tipicamente suburbana aparece-nos tambm, magistralmente, atravs de
outros poetas. Poemas de Viriato da Cruz, como S Santo, j aqui referenciado,
Sero de menino, Makezu e muitos outros que os antologiadores da poesia
angolana se sentem sempre na obrigao de selecionar popularizam-se facilmente,
como esse Namoro:
Mandei-lhe um carto
que o amigo Maninho tipografou:
Por ti sofre gente o meu corao
Num canto - SIM, noutro canto - NO
E ela o canto do NO dobrou.
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Andei barbado, sujo e descalo,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
_ No vi ... (ai, no viu ... ?) no viu Benjamim?
E perdido me deram no morro da Samba.
Para me distrair
levaram-me ao baile do s Janurio
mas ela l estava num canto a rir
contando o meu caso s moas mais lindas do Bairro Operrio.
Outro poeta, Mrio Antnio, em Linha Quatro aborda um dos temas que sempre lhe
foi dos mais gratos ao longo da sua vida e nos aparece amide na sua j volumosa e
importante obra literria: o amor. Quatro era o nmero do autocarro que servia uma
das zonas da periferia de Luanda - Kinaxixe, Bairro Operrio, Sambizanga, Tanque
d'gua - ocupada por gente humilde que todos os dias descia cidade, a caminho dos
seus modestos empregos:
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Se sentam juntos. As mos nas mos
Transmitem sonhos que se no dizem.)
No vamos ss.
Tambm na vida! Tambm na vida!
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Rua da Maianga
De um qualquer missionrio
Mas para ns somente
A Rua da Maianga.
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rapidamente a transfigurar, tomando uma fisionomia diferente, criada pelo seu
desenvolvimento e pelos costumes que lhe impunham os novos habitantes que a
invadiam.
O desaparecimento da antiga cidade, onde a sua populao fora durante largos anos
como que uma grande famlia, acompanhado da destruio dos lugares sagrados da
infncia passada, outro tema que nos aparece com grande frequncia. Hoje / A
cidade est cheia de forasteiros / De desconhecidos por todas as esquinas / De
atitudes vincadamente aburguesadas, lamentava-se Toms Jorge no seu poema
evocativo Infncia, que fechava de forma magnfica
(...)
Hoje
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meus olhos de poeta, desesperado,
cerrai-vos, cerrai-vos, - e chorai;
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Inseparveis
caminhando ainda para o nosso sonho.
Dentro da mesma linha de poesia social se incluem muitas outras criaes, como, por
exemplo, Mam negra, de Viriato da Cruz, Poema da alienao, de Antnio
Jacinto,. ou Muimbu ua Sabalu, de Mrio de Andrade, poema que a primeira
tentativa de utilizao integral do quimbundo na literatura angolana:
Aiu!
(...)
Mama, muene uond vutuka
Ah! Ngongo ietu iond biluka
Aiu
A mu tumisa ku S. Tom
Bandeira:
Somos um povo parte
Desprezado
Incompreendido,
Um povo que lutou e foi vencido.
(...)
A seguir,
A vermelho-vivo,
A vermelho-sangue,
Com tinta feita de negros corpos desfeitos
Em lutas que vamos travar,
A vermelho-vivo
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Cor do nosso sangue amassado
Como seria de esperar, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola acabou por
ser alvo da represso policial. A Mensagem terminou a sua publicao ao fim do
segundo nmero e o Movimento teve de se desmembrar. A maior parte desses jovens
acabaria por se reunir, mais tarde, no volta de um movimento cultural, mas j sob a
bandeira de um movimento poltico, o MPLA.
Pouco tempo de atividade lhes foi permitido. Publicaram-se apenas dois nmeros da
revista, realizou-se um concurso literrio e publicou-se uma pequena antologia. Mas
restou um punhado de poemas que circularam durante anos, clandestinamente, pelas
mos dos jovens angolanos, que os copiavam e declamavam nas suas reunies
privadas.
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Entretanto, em Dezembro de 1956, o MPLA distribua em Luanda o seu I Manifesto,
no qual se podia ler:
(...) o colonialismo portugus no cair sem luta. E por isso que o povo angolano s
se poder libertar pela guerra revolucionria. Ser apenas vitoriosa com a realizao
de uma frente unida de todas as foras anti-imperialistas de Angola, que no esteja
ligada cor, situao social, a credos religiosos e tendncias individuais; ser
vitoriosa graas formao de um vasto movimento popular de libertao de Angola.
Em 1966 Cochat Osrio publica novo livro, Biografia da Noite, de imediato apreendido
pela PIDE. Atravs das suas pginas, o poeta narra a longa noite da opresso e
anuncia o raiar da madrugada que chegaria a 25 de Abril de 1974.
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No apenas de hoje a necessidade de um jornal cultural em Angola.
Noutras pocas, outros homens realizaram a mesma tarefa. Porm, h vrios anos,
em virtude de circunstncias que no interessa agora referir, no existe em Angola
qualquer rgo cultural, especificamente cultural.
Durante dois anos, que foi o perodo de vida permitido ao novo jornal, publicaram-se
doze nmeros de bom nvel cultural, com uma colaborao que ia desde a cientfica,
normalmente a cargo de intelectuais progressistas portugueses residentes em Angola,
literria, esta exclusivamente preenchida peloss escritores locais. Uma nova fornada
de poetas, contistas, crticos, etnlogos e ilustradores se revelam nas pginas de
Cultura. Poetas como Arnaldo Santos, Costa Andrade, Joo Abel, Manuel Lima,
Henrique Guerra, Caobelo, Ernesto Lara Filha' contistas como Luandino Vieira, Mrio
Guerra, Hlder Neto, um ensasta como Adolfo Maria, um etnlogo como Henrique
Abranches, a maior parte deles espraiando-se pela poesia, conto ensaio, com grande
facilidade.
A Poesia tradicional dos povos de Angola uma realidade riqussima e viva, to rica
e viva que se passa bem do desinteresse de poetas e da de poetas e da pouca
considerao de crticos. Alm do mais, porque uma poesia socialmente
enquadrada e servindo fins sociais. Ela est presente em quase todas as
manifestaes da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente s
diferentes formas de literatura oral: canto, provrbio, adivinha.
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Poesia de Angola, termo que aceito para enquadrar as maniifestaes poticas de
indivduos europeus ou europeizados ql1e, elegendo Angola para motivo principal das
suas composies, no conseguiram contudo passar de aspectos exteriores,
paisagsticos ou de preconceito psicolgico.
Poesia angolana, produto cultural do homem angolano, tal qual ele - pelo menos
o que intelectualizado (e s este at agora tem sido capaz de expresso literria) -,
que atravs da sua formao europeia, no perdeu elementos culturais negros nem a
sua conscincia de homem com determinada posio.
ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 4 ed. Luanda: UEA, s/d (p.
81-105)
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