CABRAL - Revista Abralic 5
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Que formas pode assumir uma cidade no imaginário e, por conseguinte, na obra de
um poeta? E se este poeta for o brasileiro João Cabral e a cidade, a espanhola
Sevilha? Para além de um signo geográfico, Sevilha será, sobretudo nos derradeiros
livros do pernambucano, uma língua e uma mulher – enigmas de esfinge.
desde o primeiro livro, Pedra do sono, de 1942. Neste livro inaugural, de corte
surrealista e pinceladas murilianas, Cabral faz imprimir em “Homenagem a Picasso”
a pedra fundamental de uma construção que tão-somente se planeja: “O esquadro
disfarça o eclipse / que os homens não querem ver. / Não há música aparentemente /
nos violinos fechados. / Apenas os recortes dos jornais diários / acenam para mim
como o juízo final.”
1 Jeanne Marie GAGNEBIN. A memória dos mortais: notas para uma definição de
cultura a partir de uma leitura da Odisséia. In: Cultura. Substantivo plural. Rio de
Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 114.
2 Para o estudo da relação entre os dois artistas, faz-se imprescindível a consulta ao
livro de Aguinaldo GONÇALVES, Transição e permanência: Miró / João Cabral: da
tela ao texto. São Paulo: Iluminuras, 1989.
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(...) mas é no caminho para esse fundo mítico que o homem de Cabral vive sua
imagem dramática: viagem nordestina, espanhola, universal. Eis aí a expansão mais
comovente da disciplinada arte do poeta. Seu limite mais distendido está,
ironicamente, no “fracasso” de não poder escapar a esse lance subjetivo, ainda que
vingado pela rigidez e pela simetria.4 [destaques meus]
outra, fêmea e viva, / desafio demente: em verso / dar a ver Sertão e Sevilha.” No
prefácio à Obra completa, Marly de Oliveira arremata a alta dimensão para o poeta e
diplomata João Cabral de Melo Neto do ar espanhol:
5 Marly de OLIVEIRA. João Cabral de Melo Neto: breve introdução a uma leitura de
sua obra. In: João Cabral de Melo Neto – Obra completa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995, p. 23.
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6 João Cabral de MELO NETO. In: 34 Letras. Rio de Janeiro, nº 3, p. 29-30, março
1989.
7 “Portanto, se, no primeiro grupo de poemas [Sevilha Andando], ele vê a cidade na mulher, que lhe assume
as qualidades já de muito exaltadas pelo poeta, no segundo [Andando Sevilha] a perspectiva é a da mulher na
cidade, completando-lhe aquelas qualidades.” ( João Alexandre BARBOSA. A lição de João
Cabral. João Cabral de Melo – Cadernos de Literatura Brasileira nº 1. Rio de Janeiro,
nº 1, p. 105, 1996) A despeito da precisa observação do estudioso da obra de Cabral, meu interesse
momentâneo tratará de ambos os livros como se fossem notas de uma mesma composição.
8 Outro poema intitula-se, simplesmente, “Mulher cidade”.
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essenciais e o resto ele constrói variações sobre aquilo. Se dando conta ou não se
dando conta. (p. 38-9)
Dentre as inúmeras entradas por onde pode o leitor penetrar o labirinto que
levará ao ponto de interseção do poeta com a musa-língua-cidade, ponto de cópula,
proponho recuperemos brevemente a força com que o artesão investe três verbos
muito recorrentes nos dois livros: habitar, andar, estar.
No já citado “Lições de Sevilha”, esta se faz carne na cama do poeta que, mais
teta que teto, a habita: “Tenho Sevilha em minha cama, / eis que Sevilha se fez carne,
/ eis-me habitando Sevilha / como é impossível de habitar-se.” – e ao habitá-la o
poeta, para permanecer num imaginário erotizante, redescobre o corpo feminino e
fertiliza a língua (lato sensu). Lembremo-nos, ainda, dos versos há pouco lidos:
“Quem fez Sevilha a fez para o homem, / sem estentóricas paisagens. / Para que o
homem nela habitasse”. Habitar Sevilha, a “Mulher cidade”, é possuir Sevilha, é, via
língua, “seviciá-la”.
10O poema pede uma leitura comparativa, bastante frutífera, com o poema concreto de
Bandeira “A onda”. No entanto, tal curso desviaria desnecessariamente o caminho até
aqui andado.
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Sevilha” lê-se: “Mal cantei teu ser e teu canto / enquanto te estive, dez anos. ///
Cantaste em mim e ainda tanto, / cantas em mim teus dois mil anos.” Com uma
ligeira “variação em torno de alguma coisa”, vai finalizar o livro primeiro, Sevilha
andando, com o poema “Presença de Sevilha”: “Cantei mal teu ser e teu canto /
enquanto te estive, dez anos; / cantaste em mim e ainda tanto, / cantas em mim agora
quando / ausente, de vez, de teus quantos, / tenho comigo um ser e estando / que é
toda Sevilha caminhando.” Sobre este último poema, corroboro as palavras de Ivo
Barbieri:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARBOSA, João Alexandre. “A lição de João Cabral”. In: João Cabral de Melo
Neto. Cadernos de Literatura Brasileira, nº 1. Rio de Janeiro: Instituto Moreira
Sales, 1996.
MELO NETO, João Cabral de. In: 34 Letras. Rio de Janeiro, nº 3, mar 1989.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. 2 ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
PAZ, Octavio. “Hablo de la ciudad”. In: Árbol adentro. 2 ed. Barcelona: Seix
Barral, 1990.