Sergio Costa Dois Atlanticos PDF
Sergio Costa Dois Atlanticos PDF
Sergio Costa Dois Atlanticos PDF
DOIS ATLÂNilCOS
ÏEORIA SOCIAL, ANTI.RACISl\4O, COSi/1OPOLITISII4O
UE^AG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINÀS GERÀIS
Reitor: Ronaldo T¿dêu Pena
Vice-Reitora: Heloisa Maria Murgel Starling
EDITORA UFMC
Diretor: rllander Melo Miranda
Vice-Diretora: Silvana Cóser
CONSELHO EDITORIAL
\ùfander Melo Miranda (presidetrte)
Carlos Antônio Leite Brandão
José Francisco Soares
Juarez Rocha Guimarães
Maria das Grâças San¡¿ Bárbara Belo Horizonte
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão Editora UFMG
Silvana Cóser 2006
l
I
Este livro ou parte dele não pode ser reproduziclo ¡xrr qualquer meio sem autorizrçào
escriu do Editor.
Costa, Sérgio
IlSlTm DoisAtlânticos:teoriasocial,anti-Íacismo,cosmopolitismo/
Sérgio Costa. - Belo Horizonte: Editor¿ UFMG,20O6. SUl\4Áil0
267 p. (Huronitas)
lnclui referências.
ISBNr 85-7041-942-7
PREFÁCIO
07
1. Teoria social. 2. Política transnacional. 3. .{ntiracismo.
I. Título. lI. Série.
INTRODUÇÃO
CDD:320.56
CDU:323.72
Ent¡e o Atlântico Norte e o Atlântico Negro
11
O ATLANTICO NEGRO
f,iü'
di; .
i&ü¿".
busca-se estabelecer uma igualdade real de oportunidades c^paz Esados unidos. Esse probrema abstrato apresenta desdobramentos
de neutralizar as conseqüências distributivas da discriminação microssociológicos óbvios. Afinal, é no âmbito das reiações
racial. No Brasil, vêm sendo recomendadas e, pelo menos cotidianas que os padrões identitários e de sociabiliclade conflitantes
desde 2001, implementadas -
as chamadas ações afirmativas, são negociados e apropriados. Cabe, portanro, pergunar: como
-
as quais, seguindo modelos adotados nos Estados Unidos, visam se dão efetivamente essas negociaçôes? Como se alteram e se
favorecer o recrutamento preferencial de afro-descendentes para reconsLituem as construçÕes identirárias no âmbito local?
posiçÕes e postos socialmente valorizados. O racismo, em sua
O debate brasileiro em tomo do racismo e do anti_racis,mo
dimensão sociocultural, vem sendo combatido em diversas frentes: avançou muito nos últimos anos. De forma geral, constata_se
introdução de conteúdos anti-racistas nos currículos escolares, uma polarização das discussöes em clois campos tratados como
assistência jurídica a vítimas de racismo, rigor na apuração e opostos: de um lado estão os estLldos raciais, corrente que vê
punição de crimes de racismo, etc. uma correlação direta entre o racismo e a raka de consciência
Cabe destacar aqui a valortzaçào de manifestações cultu- política por parte dos negros brasileiros, entendenclo que se
os
rais associadas à origem africana, tratadas em seu conjunto, na negros brasileiros assumissem søa identidade racial, o racismo e
linguagem cotidiana, como cultura negra. Os vínculos entre a os racistas seriam derrotados. Os críticos dos esrudos raciais, por
revivificação da cultura negra no Brasil com aquele espaço ima- sua vez, acreditam que, no Brasil, diferenremente dos Estados
ginado, chamado por Paul Gilroy (1993) de Blacþ Atlantic, s^o Unidos, desenvolveu-se uma cultura nacional integradora, da qual
evidentes. Já há aþm tempo, a cultura negrabrasileira tomou- os negros e o patrimônio cultural afro-brasileiro são parte consri-
se parte de um contexto cultural transnacional, que, ao mes¡no tutiva. Assim, ter-se-iam consriuído no Brasil modelos identirários
tempo, incorpora e inspira as manifestaçÕes que etllergem nas que não podem ser reduzidos ao par de opostos negro_branco,
fronteiras geográficas brasileiras. impondo-se a busca de fórmulas próprias para combater o r¿cismo
A discussão política da qual parte este livro confronta-nos com que reflitam a diversicìade brasileira.
questões teóricas diversas, algumas a[eitas à teoria da democracia, Tanto os defensores dos estudos raciais quanto seus críticos
outras mais próximas da sociologia. A legitimação cle aspirações parecem não levar adequadamente em conta uma propriedade
políticas conformadas fora das fronteiras do Estado-nação consti- fundamental do tema em tela, a saber, sua natureza transnacional.
tui o cerne do debate no âmbito da teoria democrática. Trata-se, ,A.ssim, os esrudos raciais preconizam a simples transposição das
portanto, de medidas para combater o racismo, cujo processo de políticas anti-racisras e dos modelos de identidade cultural a elas
concepção não se restringe ao território brasileiro. Essas políticas associados dos Estados Unidos para o Brasil, como se houvesse
sâo discutidas transnacionalmente; sua implementaçào, contudo, uma única linha universal que levasse ao combate do racismo,
é nacional. onde quer que ele se manifeste. Os críticos dos esrudos raciais,
As questões da ordem da sociologia são igualrnente por sua vez, tratam a alen nacional como único contexto no
abrangentes e afeitas a subcampos diversos da disciplina. Cabe qual a ação política rem lugar. A ambas as correntes faltam cate-
primeiramente discutir, remetendo aos t¡abalhos no campo da gorias que descrevam a mediação cultural e política entre fóruns
sociologia da globalização, cle que forma determinados padrões transnacionais e os contextos nacional e local.
de sociabilidade, constituídos historicamente, no âmbito local e São precisamente essas mediações que o presente livro busca
nacional, se transnacionaliz^m no bojo das redes de movimentos identificar e analisar. O ponto de partida é o esruclo crírico de
sociais. O que importa discutir, de maneira concreta, são os tentativas recentes de recuperar o conceito ,,cosmopolitismo".
mecanismos de tradução necessários para que medidas anti-mcistas Trata-se aqui de um debate tão fascinante quanto difícil, visto
implementadas nos Estados Unidos prestem-se ao combate do que o conceito abrange um conjunto mùito vasto e desigual de
r¿cismo no Brasil, sem que se achatem as diferenças diametrais programas teóricos e políticos.
nos padrões de convivência entre os grupos de cor no Brasil e nos
t2 13
Conforme Coulmas (1990), a pala-wa cosmopolites foi utiliza- Este ideal político difuso encontra coffespondência no debate
da pela primeira vez por Diógenes (412-323 a.C.). Desde entào, em torno dos caminhos que as ciências sociais devem percorrer
o sonho de um mundo sem guerras nem fronteiras teria se para se desfazerem de seu vínculo congênito com o modelo
transformado numa snostalgia da humanidade" que, a despeito societário europeu, traødo assim, no singular, dzda a subjacente
de refluxos, sempre retoma. Para o autor, o estoicismo foi que idealização teórica de urna modemização ocidental homogênea.
cunhou o conceito de cosmopolitismo "que passa a valer desde Ou seja, partpassuà renovação dos ideais políticos cosmopolitas,
o período helênico, os sécuios do império rornano e até nossos assiste-se hoje à busca de superação do nacianalßtnometdológïco
dias" (Coulmas, 1990: 11.3).1 Trata-se aqui de uma convicçã<¡ cos- que ainda domina as ciências sociais.
mopolita associada ao desejo de "viver em contextos abrangen- Trata-se de levar em conta o caráter pós-nacional dos processos
tes, sentindo-se como i¡mãos [e irmãs] numa única coletividade sociais contemporâneos, de modo a constatâr que as fronteiras
terrestre" (Coulmas, 1990: 115). Conrudo, a 'nosulgia humanan nacionais nem sempre dema¡cam uma unidade arnlitiø,adequada
do cosmopolitismo se pereniza apenas co¡no desiclerato, isto é, para a investigação sociológica nurna época em que os processos
como um horizonte de projeção de utopias, sem materialização soci;ais e culturais, bem como aa$o política, não encontram mais
concreta na história. nas fronteiras nacionais seu limite. As ciências sociais, contudo,
Quando se toma a traietória do cosmopolitismo, conforme adquiriram seu atual formato i¡rstitucional depois da Segunda
reconstruída por Coulmas, percebe-se um déficit comum a todas Guerra Mundial como ciências nacionais, refletindo, ajnda, a
as concepções de cosmopolitisrno historicamente formuladas, a hegemonia inconteste da teoñada modemização. Seguindo esses
saber, um certo etnocentrismo, isto é, a pressuposição de que moldes institucionais e teóricos, as ciências sociais passaram a
a rLrptura de fronteiras deve se dar sob a égide de uma "cultura estudar as diferentes sociedades nacionais a pattr de uma escala
determinada". Dessa forma, o cosmopolitismo estóico preconi- de modemidade, cujas graduações são definidas pelo nível de
zava o amâIgama dos diferentes povos como possibilidade de semelhança com as chamadas sociedades do Atlântico.Norte:
superação dos conflitos, acreditando, entretanto, que tal devesse quanto mais semelhantes, rnais modemas (Therbom, 2000: 50).,
se dar pela adesão dos "diferentes" à "forma de vida helênica", As categorias, indicadores e métodos constituídos sob essa lente
considerada pelos estóicos como uma "civilização mais alta" teórico-institucional, contudo, vão perdendo sua ptausibilidade
(Coulmas, 1990:137), Também o cosmopolitismo modemo, fun- analiuca, n¿ medida em que os processos sociais se desprendem
dado no humanismo renascentista e que assume contomos claros mais e mais dos limites nacionais e a pluralidade dos padrões de
no século XVIII através dos trabalhos de pensadores como David modemização se toma, empiricamente, iniludível (Tucker, Lppp;
Hume (1711-L776) e Immanuel Kant (1724-1804), se baseava na Spohn, 2006).
premissa de que a "a cíviização européia" atingira um estágio
Em face dessa hisrória institucional, o "cosmopolitismo epis-
de desenvolvimento do qual "outros povos" ainda estavam muito temológico" (Beck, 2004) busca superar o vínculo congênito
distantes (Mignolo, 2002).
entre as ciências sociais, as sociedades nacionais e o "modelo
A novidade da discussão sobre cosmopolitismo hoje consiste societário europeu", sugerindo, para tanto, alguns passos básicos,
precisamente no fato de que muitas contribuições renunciam à a saber:
hierarquização prévia das diferentes culturas, de sorte a fazer jus
ao "desafio da diversidade" (\IØagner, 19Ð). Não se trata, portanto,
a) seguindo a ambição universaüsta que ma¡ca as ciências
de estabelecer uma ordem mundial que siga os ideais "cosmopo. sociais desde seu nascimento, devem-se formular postulados
generalizáveis, sem, contudo, ígnorar visões contra-hegem&
litas" de um grupo determinado (gregos, cristãos, europeus, etc.),
nicas, experiênci¿s de minorias e transformações ocorridas
mas de promover a coexistência das diferenças, garantindo ao
fora das sociedades tratadas como moderûas-e' ocidentais;
mesmo tempo a preservação de di¡eitos e garantias individuais
(Pollock et al., 2OQ2; Delanty, 2006). b) acompanhando a tr-adição dos esrudos locais, devem-se
ú 15
considerar, adequadamente, os contextos concretos nos quais adscritivas
se dão as relações sociais. Não obstante, o interesse pelo - é,nacionais,
pós-coloniais
de gênero, étnicas, etc. para os estuclos
portanto, no entremeio dessas clemarcações, isto
particular deve se fazer acompanhar do esforço analógico é, no espaço de sentido entre âs Fronteiras, que se articula
e comparativo; a di_
ferença móvel, aberta e cosmopolita, op*içao às adscriçôes
c) deve-se levar em conta o papel das instiruiçÕes nacionais, de todas as ordens. "^
sem, contudo, tomar as instituições concretas criadas naquele Os discursos sobre o Adântico Negro e o Atlânrico Norre
conjunto de sociedades de industrializaçVo pioneira como condensam, metaforicamente, muitos dos dilemas vividos
tanto
formato absoluto e parâmetro normativo de avaliação das pelo cosmopolitismo político quanto pelas tentativas
de construir
transformações institucionais em todo o mundo. uma ciência pós-nacional. O projero cosmopolita, na metáfora
do
Este livro estuda, de forma mais amiúde, três concepções de Atlântico Norte' reproduz a imagem de uma sociedacre mundial
cosmopolitismo, todas elas muito influentes no debate contem- monocêntrica, mas que culmina, em seu dever ser, com a univer_
porâneo, a saber: o modelo desenvolvido porJürgen Habermas, saliz-a$o das "conquistas modemas,,. Essa é a perspectiva adotada
a teoria da modemização reflexiva de Ulrich Beck e Anthony tlnto porJ. Habermas quanro porAnthony Giddens e Ulrich Beck.
Giddens e as concepções pós-coloniais. O Atlântico Negro, por sua vez, pöe em evidência, a tensâo
entre
ideais universalistas e a história modema efetivamente conhecida,
O cosmopolitismo de que trata tlabermas visa, fundamentalmente,
inseparável do colonialismo e da escravidão. De algum
uma ordem mundial orientada pelo respeito aos direitos humanos. modo, as
ciências sociais contemporâneas encontram_se empenhadas na
O autor entende que os direitos humanos e o Estado de direito
tarefa, muito provavelmente t¡realnâveI,de reconstituir a unidade
constituem a resposta exitosa encontrada pela Europa nos séculos
desses dois Atlânticos, isto é, reconsiderar as muitas experiências
XVIII e XD( para os desafios modemos representados pelos modemas, fragmentadas, paniculares e diversas, como aquelas
processos de secularização e de individualização. Na medida em
simbolizadas pelo Atlântico Negro, sem aboli¡ de seu horizonte
que a globalizaçâo confronta as "outras" regiões do mundo com
narrativo e normativo, contudo, a possibilidade da ordem social
a condição modema, caberia, segundo o autor, buscar estender
fundada em di¡eitos comuns.
a fórmula européia dos direitos hurnanos por todo o globo.
Para além das metaforizações políticas, é possír.el que o leitor,
A visão cosmopolita desenhada por Ànthony Giddens e,
a esta altura, espere uma justificativa analítica para o interesse
principalmente, Ulrich Beck, baseia-se, igualmente, num modelo
deste livro nas três concepções de cosmopolirismo desucadas
centrífugo, depreendendo-se de experiências de sociedades anteriormente, quais sejam, aquela desenvolvida por Habermas, o
européias a categoria reflexividade. O processo de globalização, cosmopolitismo reflexivo de Giddens e Beck e as concepções pós_
por sua vez, promove a expansão da reflexividade para todas coloniais. Com efeito, a escolha teórica efetivada não é arbitrária
as partes do mundo, produzindo sujeitos "mais astutos", aptos e se justifica pela correspondência entre os focos de interesse das
a compreender os efeitos de suas próprias ações num mundo contribuições contempladas e as diferentes dimensões analíticas
interdependente. cobertas pelo presente liwo. Isso não implica, é certo, uma trans-
Para as abordagens pós-coloniais, em contrapartida, os ven- posição imediata das considerações dos autores estudados para
tos cosmopolitas não podem partir de um centro tlnico, nem o caso investigado. A relação entre teoria e empiria peÍnanece,
tampouco de vários centros. O cosmopolitismo pós-colonial ao longo do livro, tensa e difícil. Ou seja, o uso analíLico neste
encontra-se associado à busca de uma perspectiuL desçentrøda, livro das categorias cunhadas pelos dferentes autores é crítico,
a qual confere às experiências modemas "minoritárias" (Pollock parcial e seletivo.
et al., 2O02:6) uma importância especial. Todavia, não se trata Assim, para tratar das questÕes relacionadas aos problemas de
simplesmente'de considerar urna gama múltipla de visões de legitimaçâo do antiracismo transnacional, recoìrè':se às conside-
mundo, colocadas umas ao lado das outras' mas de conferir des- rações de Habermas sobre a globalização da democracia e dos
taque às experiências daqueles que vivem enffeas demarcações direitos humanos. O diagnóstico de Habermas sobre a dissociação
16 17
entre os processos globais de integração sistêmica e o carâter e transnacionais, buscando-se agrupar essas mediaçÕes, con_
nacional das arenas de formação da opinião e vontade política é
ceitualmente, através da proposição de uma categoria própria de
particularmente imporrante para a análíse aqui desenvolvida. Jít
análise, qual seja, contextos transnøcionaß de ação.
a solução teórica e política, apresentada pelo autor ao impasse
der¡ocrático por ele constatado, serve-nos pouco, na medida em Os Capítulos V, VI e VII são dedicados ao esrudo do racis_
que o caminho indicado por Habermas pressupÕe a supremacia mo e do anti-racismo no Brasil. Ainda que o Capírulo V trate da
européia na história de difusão dos direitos humanos, além de emergência das novas etnicidades e da politização da diferença,
a
uma sociedade mundial de cidadãos altruístas e distantes dos investigação empírica não está focaLizada na descrição de iatos
interesses políticos instrumentais. O caso estudado, como será recentes, frìas nos discursos científicos sobre o racismo e o anti-
visto, contraria ambas as premissas. racismo, tomados por seus extremos cronológicos, quais sejam,
os
As consideraçÕes de Ulrich Beck e Ànthony Giddens sobre a primórdios do discurso racista cientÍfico na virada para o'século
modemidade reflexiva, por sua vez, iluminam a análise sobre a )o( e a explosão da sociologia anti-racista clesde finais do século
maneira como diferenres modelos de sociabilidade e subjetividade )O(. Os discursos científicos, nas diferentes épocas, levam
ao paro.
se expandem transnacionalmente. Aqui interessa, sobretudo, a xismo as tensões sifuadas na zo|na de interseçào entre pretensÒes
atenção pioneira de ambos os autores pela dimensão subjetiva de validade que circulam transnacionalmente e os processos
locais
da globalização, entendid^ a partir da forma como os processos de- recepção e reinterpretação clestes. Assim, a reconstruçào do
generalizados de transformação afetam os indivíduos e como debarc científico na virada do século XD( para o século )O(, levacla
estes respondem a essas mudanças. A possibilidade de apro_ a cabo no Capírulo VI, mostra como a convicção importada
da
veitanrenro analítico das teses por eles defendidas é, conhrdo, Europa de que os brancos são naturalmente superiores peneFa
lirrri¡ada. Afìnal, arnb<¡s os autores estabelecenr, ø priori, que o os djferentes projetos de construção nacional na América l¿tina,
eixo central de análise dos processos de transformação global conferindo ainda ao racismo popular uma base de legitimação
deve ser a reflexivização dos sujeitos e das instituiçÕes modemas. modema, posto que, conforme os termos da época,científica.
Essa preferência teórica não pode ser aplicacla no caso estuclado. O
processo concreto de circulação dos dogmas do racismo
Afinal, nào é o distanciamento das rradições (moclemas), nem os científìco
nesse período evidencia que a reivindicada precedência
processos cle individualização reflexiva próprios a unìa suposra européia
nas questões vinculadas aos direitos humanos é clesprovida
segunda m<¡dernidade que se encontram no centro das clinâr¡ricas de
sustentação empírica.
investigadas. A crítica social nasce aqui cla relaçào clescle sern-
pre arnbivalente entre o chamado Atlântico Negro e instituiçÒes Já a reconstrução dos debates científicos recentes, desenvol_
basilares da modernidade, como, por exen"rplo, a ciência e <-r vida ao longo do Capítulo V]I, revela a inexistência de conceitos
Estacio nacional. aptos a traduzir as complexas mediações enre os contextos
de
ação locais, r¡acionais e transnacionais. Faløm também ao
Os estudos pós-coloniais, por sua vez, servem como ferra_ debate,
instrumentos analíticos que permitam estudar a reconfìguração
menta microssociológica para o estudo das múltiplas negociaçoes das
culturais e políticas observadas ao longo clo processo cle trans_ corìstruçÒes identitárias no âmbito das lutas anti-racistas.
como
nacionalização do anti-racismo. particularmente valioso para a mencionado, as posiçÕes oscilam entre o elogio da culturarucional
presente análise é o conceito de cultura prevalecente entre os mestiça e o apelo por mais identidøde racial. O presente livro
estudos pós-coloniais, o qual não se apóia na exi.stência prévia busca um posicionamento analítico e, de certo modo, político
de unidades e identidades ct_rlturais, mas na articuleçào c-ontirì- fora destes dois pólos apresentados como antinômicos, valendo_
gente de diferenças. se' Para tanto, das diversas reconstruções teóricas desenvolvidas
As concepçÒes de cosmopolitisnro de Habe'rm:¡.s, Gi<Jclens c
nos diferentes capítulos.
ll.ck,
e dos esnrdos pós-coloniais são exarninadas,ropefüvamente, no.s Ca- Desse modo, o tema da legitimação das pretensões de validade
pítulos I, II e IIL No Capítulo IV, estudam-se, a partir das nìatrizes anti-racistas é tratado a partir da articulação entre os contextos
teóricas discutidas, as mediações entre os ânrbiros naci<>nais de açào transnacionais e a formação da opinião e da vontade
no
18
19
âmbito nacional. Ou seja, as reivindicações políticas
construídas
nas redes transnacionais de movirnentor ro.i"i"
quando peneûam as esfe¡as públicas nacionais,
só são legitimadas CAPíTULO
submetendo_se
às diferentes etapas dos processos nacionais
de formação das
decisôes políticas. por outro lado, a questão
sociológiåa mais
geral, relativa à mediação entre diferentes
modelos d""r*irbili:
dade, não seú respondida, como o fazem Anthony
Giddens e Ul¡ich
Beck, a partir da aposta, aþrîori, na expansão da
refle¡<ividade. É
preciso, aqui, aprofundar até o nível microssociológico,
A C0NSTTLAÇAO PóS.
mostrando
como os diferentes modelos de sociabilidade interagem
caso específico estudado, quais são as novas
ou, no
reconfiglrraçÕes das
NACIONAL I SIUS DILE,\,IAS
relações etno-raciais que emergem. Recorrendo,
criticamente, aos
estudos pós-coloniais procurar-se-á mostrar que a reconstrução
das identidades e dos padrÕes de convivênciä
social nao seiue
nem o caminho da racialuação vislumbraclo pelos esrudos Com o conceito,,constelação pós_nacional,,,
racäis Habermas busca
nem a afìrrnação da identidade mestiça, q.r.r.rn os inimigos descrever um conte)rto mundial, no qual
o Estado-nação percleu
dos estudos raciais. o que se observa é"o^ó
uma óomplexa ,l"goä^_ parte de sua capacidade de ação, .- i"".
do surgimento e,/ou do
ção das identificaçÕes etno-racias e a peÍnanente articuhção cle agravamento de situaçöes-problema que exrapolam
as fronteiras
novas diferenças culturais. As reflexões do autor sobre o ,.rrr" ãr"rrrrr.m
'acionais. o caráter
Este livro é uma tradução ligeiramente modificada ora de intervenção e resposta aos novos desafios
e resumida i*porto, p.t"
de minha tese de livre-docência defendida com êxito Realpolitik mundial as gueffas ,,humanirárias,,, o processo de
lunro ao
Departamento de política e ciências sociais da universidacle unifìcação europeu - 200L; Habermas, 2A04, veja,
Livre de Berlim, na Alemanha. Gosraria de agraclecer a toclas - _(Flabermas,
também, Matustik, 2006), ora de reflexão com interesse teórico
as instituições e pessoas que contribuíra.m para que o trabalho explícito (7996, }OOL>. Em ambos os casos, a direção episte_
pudesse ser concluído com êxito. Em particuiar, manifesto mológica seguida apresenta conexões evidentes com
minha o sistema
gratidão aos colegas do Insrituto cle Estudos latino-Americanos teórico desenvolvido pelo autor a panir de finais dos
anos 1970,
da universidade Livre de Berrim, especialmente a Marianne Braig, fundamentalmente, sua teoria de dois níveis da sociedade
apre_
Ligia Chiappini e a Renate Rort, aos ex-colegas de Depanamenõ sentada no clássico Teoria da øção cornunicatiua (19g1)
e sua
da universidade Federal de santa catarina, aos colegai clo centro teoria discursiva da democracia (1992).
Brasilei¡o de Análise e planejamento, em particular a Marcos Nobre As dificuldades impostas pela constelação pós-nacional
à plena
e a Omar Ribei¡o Thomaz, e também aos colegas do Grupo de vigência da democracia são tratartas por Habermas de
forma muito
Teoria Social da ANPOCS, especialmente, Myrian Sepúlveda S"r,r*, distinta, quando considerado unicamente
Céli Pinto, Josué Pereira da Silva, José Maurício Domingues e
o contexto europeu
ou quando levado em conta o conjunto da sociedade *rr.rãi"I.
Leonardo Avritzer. No âmbito pessoal e familiar, sou grato a Luta, Trata-se, na Europa, da possibilidade de ampliação
Gerda e Helmut, Uschi e Christoph, e aos meus fìlhos, yara å do processo
de formação dos Estados nacionäis, de sone a consdn¡ir_se
Iraê, pelo apoio e encorajamento irrestritos. uma
comunidade política unificada em tomo do sentrmento comu¡n
cle
À Sabine, esposa . .o*p".rh.i", de todas as horas, cabe muito pertença e de uma esfera pública continental.
euando se refere
mais que o agradecimento sincero e proñrndo. A ela, dedico este livro. ao contexto mundial, em contrapartida, o autor conta com pos_
a
sibilidade de exensão de algumas das conquist¿s
democúricas ao
conjunto das regiões da scrciedade mundial, sem que se articule,
contudo, algo como uma comuniclade g.lobal sober¿na. Apresenta-
Beiím, uerão de 2OO6.
se, neste capínrlo, inicialmente, 9 diqgnósûco cle Habermas
âcerca
dos desafios impostos pela globalização à democracia, passanclo,
20
em seguidâ, ao projeto habermasiano para a democracia pós- implementar as decisões tomadas pelos membros da comunidade
nacional na Europa e, por fim, às suas consideraçöes sobre u¡na política nacior¡al. Por outro lado, os organismos intergovernamentais
política cosmopolita de alcance amplo. ou nãegovemamentais transnaciorais com competênci^ para úalar
das siruaçÕes-problema que extrapolam os limites administrativos
nacionais não dispõem das mesmas possibilidades de legitimação
O ESTADO DEMOCRÁTiCO SOB A PRESSÃO DA conferidas às instituiçÕes nacionais.
22 )4,
da Europa e que, similarmente ao que se deu com o sujeito coletivo
esferas sociais, orientadas pela lógica comunicativa da
da nação, se forme, no âmbito clo continente, atgo como uma naSo linguagem
cotidiana. Recorde-se que, no âmbito das sociedad.,
de cidadãos conscienres de sua história comum, e partir cla qual se .r"iioäir,
essa articulação havia sido descrita pelo autor,
construirão os laços de pertença e a idenridade coletiva européia. primeiramente,
como o estabelecimento de fronteiras que protegiam
A formação dessa cultura política comum não se dará, conforme o mundo
: da vida racionalizada e pós-tradicional L ,,colonizaçao
o autor, automaticamente pela via sistêmica, a partir sistêmi_
cla integra_ I ca" (Habermas, 1981). posteriormente, em sua
ção econômica ou pela produção de uma carta magrâ européia obra, Habermas
descreveria a interaçâo entre essas diferentes esferas
desenhada na interconexão dos sistemas políticos nacionais. Isso I de forma
,i dinâmica e propriamente porítica. Trata-se de mostrar
se concretizará com o concurso de um espaço público poroso t como nas
democracias contemporâneas os impulsos normativos
apoiado em ONGs e meios de comunicação transnacionais e,
)
geraclos
I nas relações cotidlanas convertem_se, através
antes deles, num sistema educacional que habilite os cidadãos ao do di¡eito.ã" u_"
esfera pública porosa, em forças que aruam no
multilingùísmo. Um requisito adicional é a existência de medidas '; sentido de .do_
mesticat''a política e, em alguma medida, a economia (Habermas,
de política cultural que aglutinem em tomo de uma cultura po_ 1Ð2). Nessa construção teórica, o Estado nacional desempenhá
Ál
lítica comum as diferentes "forças de propulsão normativas que ,t um papel duplo. Enquanto Estado, ele oferece o contexto
partem dos diferentes centros nacionais dispersos" (Habermas, ¡ institu-
¡ cional para que a formação comunicativa da opiniâo e da
1998: L5Ð. vontade
I
'þ p"lítif tenha lugar. Enquanro nação, ele constrói a referência para
Quando, em contrapartida, trata das possibilidades da demo- * a reidentificação cukurar dos cidadãos arrancadoo p.lo
cracia no âmbito mundial, vale dizer, para alêm das fronteiras
iI processo
I de modemização de seus horizontes locais.
européias, Habermas postula que o projeto de uma democracia *
ì O projeto de Habermas pare promover a integração social
cosmopolita deve se apoiar nurna concepção normativamente t?ì.
e política pós-nacional consiste, fundamentalmente, em buscar
F
menos rrgida, na medida em que envolve a extensão para o con- .¡ "equivalentes funcionais', para aqueles elementos-chave em
junto da sociedade mundial de algumas das conquistas políticas I sua
teoria nacional da (Habermas, L996: l4I).Não se
obtidas pelas democracias maduras. -
ffata, portanto, - democracia
de uma teoria soci:rl pós-nacional, mas da indicação
É aificit discordar do diagnóstico de Habermas no que rtiz de estruturas e figuras que desempenherr\ no contexto pós_nacional,
respeito às implicações sociais e políticas da configuração pós- as funções que couberam e cabem no interior de um Estaclo
nacional e à necessidade de novas formas de integração societá- nacional democrático particular, à esfera pública, à sociedacle
na capazes de recosturar, numa chave progressista, referências civil, à nação, etc. Esse procedimento metodológico produz pelo
normativas e nexos vinculantes obliterados pelo vigor dos saltos menos duas inconsistências graves. A primeira dificuldaclã se
modemizantes recentes. Ao diagnóstico contundente e acurado refere ao conteKo europeu e à visão de que vêm se formanclo,
do autor, segue-se, no entanto, prescrições para a sociedade pós- no continente, equivalentesfüncionais para aquelas peças-chave
nacional pouco convincentes, evidenciando que a resposta de do modelo comunicativo da democracia, no ámbito nacional. A
Habermas aos problemas globais levantados é r¡ibutária de urna segunda difìculdade rtiz ¡s5psi¡6 à inexistência de equivalentes
teoria da sociedade e da democracia talhadas para as sociedades funcionais no contexto mundial para a democracia nacional, o
nacionais. Quando transportadas para a constelação pós-nacional, que leva o autor a identificar a democracia cosmopolita com um
as categorias utilizadas soarn estreitas e reducionistas, ofuscando projeto patemalista de relações norte-sul.
os processos efetivamente em curso. Trata-se, aqui, fundamental-
mente, de transpor para o contexto pós-nacional o entendimento
de que a democracia compreende um conjunto de instituições
e procedimentos que asseguram a coexistência e a articulação i::,:.
26
27
que a construção nacional na Europa, a despeito de sua indiscutível majs abstrata que ela seja. Ao mesmo tempo, uma tal .cultura
eficâcia namriva e da mobilização eficiente dos símbolos e dos política européia" não encontra-se mais circunscrita à Europa,
é
ícones culturais, rnas também bélicos cle nacionalidades bem possível que ela seja mais facilmente encontráver em cefios
-
homogêneas, - plano da integração
longe estava de representarr, no círculos, em São Paulo ou Maputo, que entre a extensa massa de
social e da constituição de vínculos voluntários de pertençã, uma jovens conservadores de direiu de Dresden ou N{anchester.
auto-evidência empírica. por conseqüência, tem-se que reconhecer ,4, segunda dificuldade política do projeto habermasiano
de
que a construçâo da identidade pós-nacional, se seguir o padrão da constifuiçâo de uma "rutÇãq" européia relaciona_se nâo mais com
formação dos Estados e naçöes na Europa, como quer Habermas, os problemas para sua implementação, mas, ao contrário, com
os
estará associada: riscos representados por seu eventual sucesso. Se, de fato, vi¡ a
a) a aþma forma de repressão das diferenças culturais que se constituir uma identidade cultural comum enfte os europeus,
sejam divergentes da identidade européia a ser construída parece inevi¡ável que passem a operar, dentro da ,,comunidade
a plausibilidade de implementação desse projeto político européia imaginada", os mecanismos inevitáveis de inclusão e
-nos dias atuais é seguramente discutível;
exclusão que marcam os gn¡pos vinculados por uma idenridade
comum. Conforme mostram autores tâo distintos como Gfüoy
b) à construção, no plano narrativo, de uma identidade (2000) ou Benhabib (I99Ð, a constiruição de identidades
colerivas
abrangente, mas fracamente ancoracla no seio societário. Ou sempre desemboca em algum tipo de essencialização da pertença
€1a, ao ganho de abstração no padrào iclentitário, corresponcle e em novas formas de chauvinismo e nacionalismo: "Mesmo em
uma perda equivalente de sua concretude normativa. condições muito civilizadas, os [apelos a] sinais de semelhança
A isso se sotna a evidência de que a Europa Ociclental, ape_ (sammeness) degeneraram literalmente em emblemas de uma
sar de todas as bameiras impostas à entracla de esrangeiros, se diferença supostamenre essencial e imurável" (Gilroy, 2000: 101).
transforma cada vez mais num continente de imigrantes, boa lsso implica que a constituição de uma identidade cultural euro-
parte deles conhecedores da história européia a parrir de uma péia e a decorrente formação de um povo europeu mesmo
perspectiva muito distinta daquele painel heróico traçado por que esclarecido e plural desejadas por Habermas se - dariam à
Habermas e que culmina com a vitória da democracia. Trata-se
-
custa de algum tipo de esmbelecimento de fronteiras simbólicas
dos descendentes das gerações escravizacias ou exploradas pelos par o reconhecimento de membros e não membros e da recusa
poderes coloniais europeus. para esses, as ,,glórias', do Estado- correspondente do igual valor no limite humano dos nâo
europeus o outro da relação- identitária. -
nação europeu apresentam-se diretamente associadâs à memória -
Do ponto de vista teórico, a quedtâo que interessa discuti¡ é
amarg da humilhação moral, da espoliação econômic¿ e da sub-
missão política. Com muita dificuldade, poder-se-ia convencer se, de fato, a integração social pós-nacional requer a afirmação
esses irnigrantes e seus descentes de que a exigência ou sugestão ou construção de uma identidade comum abrangente. Ou de
de assumir as virtudes históricas do Estado-nação europeu como outro modo, a proposta de que a consolidação e ampliação de
fundamento da pertença à pátria européia, na qual escolheram ou uma idenridade culrural inclusiva corìstituam a ma¡¡iz para uma
integraçâo social que, acompanhando os sakos de inregração
foram levados pelas circunstâncias a viver, não é uma afronta.
sistêmica assistidos no bojo da globalização, reconstrua nexos
Com efeito, o que caracteriza a constelação pós-nacional é normativos e vínculos de pertença societária, parece apoiar-se
precisamente a inexistência de uma superposição autornática entre
na premissa, ao que tudo indica equivocada, de que objetivos
os processos culturais e sociais e as fronteiras geográficas dentro políticos comuns só podem ser constiruídos por aqueles que, não
das quais eles for¿m tradicionalmente ordenados. Nos limites partilhando um mundo da vida comum, sintam-se.pelo menos
territoriais de um país ou cla Europa, convive uma multiplicidade igualmente pertencentes a urrvt mesma comunidade culrural.
de interpretações das diferentes trajetórias nacionais dificilmente
Com efeito, os esnldos empíricos sobre as ransformações
traduzíveis na imagem de uma identidade cultural européia, por
sociais que acompanharn o processo de integração econômica e
28 29
pclítica ûa Europa mosram que iá existem culturas transnacionais
setorializadas (de empresários, de fãs de tecbno ou bip_bop, etc.) pública, transportando p^ra dentro dela os pontos de visras, os
que, contl¡do, não convergem para a formação cle uma iclenticlacle argumentos e as posições condensadas no plano das relações
cultural ou de uma cultura política européia comum (ver, por cotidianas (Costa, 2O02a: capiulo 2; Avritzer, ZOOZ). No espaço
exemplo, Eder, 2000: 181). nacional, os diferentes argumentos e posições representadas na
sociedade civil circulam por umâ variedade de fóruns e arenas
comunicativas que, na ¡nedida em que reivindicam algum sentido
ESFERA PÚBLICA EUROPÉTAi'
político,a convergem para a esfera pública compartilhada e acessível
Na teoria discursiva, segundo os termos clesenvolviclos por ao coniunto dos cidadãos.
Habermas, a democracia moclerna aparece representacla coino Quando se extrapolam, entretanto, as fronteiras de um Esado_
uma dominação consentida, na qual as decisòes necessitanr ser nação específico, o que se nota é precisamente uma mukiplicidade
permanentemente fundamentadas e justificaclas, ciepenclenclo de redes e espaços comunicativos transrucionais, desconectados
sempre da anuência da comuniclade política pam (lue p()ssarn ser uns dos outros (Olesen, 2005; Doucet, 2005). No caso europeu,
irnplementadas. Nesse processo, a esfera públic:r se torna a arena como já referido, r¡ada indica que esses diferentes conrextos comu_
na qual se dá tanto o amálgama da vontade coletiva quanto a nicativos encontrem-se a caminho de convergir para um espaço
justificação das decisÕes políúcas previamenre acertadâs.
t t _r., público continental comum. Ao contrário, a crescente pluraüzàçåo
portanto' de uma caixa de ressonância das cJemandas sociais e culrural produzuma segmentação e descentralização crescente dos
de
órbita intermediária que conecta os centro.s de tolnacla de decisão flt¡xos comunicativos, não havendo indicações de que possam esur
política e o conjunto da socie<Jacle. Ao lado de eleições livres
do arcabouço institucional do lrstado democrático, a existência
e
lurgindo estrun¡ras c pazes de canaltzar essa multiplicidade de
fóruns comunicativos para uûra arena comum (Satahãm, 2005).
de uma esfera pública influente e porosa torna_se, dessa forma,
condiçâo necessária para conferir transparência Algo semelhante se verifica com a sociedade civil: nada indica que
proa"rro, um equivalente funcional a elas, no âmbito europeu, enconüe_se em
decisórios e dinamis¡no à vida cívica (Hãbermas, "o, 1992J. processo de formaçâo (Kaelble, 2004). No lugar de organizaçÕes
A constituição das esferas públicas contemporâneas foi ambém ou
de um "contorto de ação" (Re¡del, 1Ð2) que pudessem ser, analitica_
largamente esudada pelo autor, mostrando_ie que esse processo
mente, tratados como dimensão insti¡¡cional de um mundo da vida
é, em geral, concomitanre com o surgimento dàs Estadäs_naçao
europeu' o que se tem é uma multiplicidade de redes trar¡snacionais
modernos e com a formação das comunidades nacionais como
específicas que não apresentam a mesÍut densidade organizacional
um integrado lingüística e culturalmente (Habermas,
^público
1990, orig. 1961). O processo de construção insritucional do dos movimentos sociais, nos âmbitos nacionais (frciz,2O0I:96).
Estas não se caracterizam pelo esforço de envolvimento direto
Estado-nação tem correspondência, portanto, no plano cultural, de
à formação das esferas públicas nacircnais, no interior das quais uma ampla base de participantes, nem aludem à representação
são produzidos e reproduzidos os signos identitários que definem de um coletivo abstrato como uma sociedade civii européia.t
a nação (Cosra, 2e01,,2004; Avritzer; Cosø,20O4). Generalizando e sintetizando as observações sobre a unifiõação
européia reunidas até aqui, o que se pode afirmar é que, no lugar
O papel da sociedade civil no interior das esferas públicas
de uma identidade, uma esfera pública e uma sociedade civil ãu_
nacionais foi igualmente destacado por Habermas. Definida,
em ropéias, o que se tem são contextos transnacionais múltiplos em
consonância com Cohen e Arato (I9g9:49Ð, como a dimensão
que atores sociais, independentemente de suas origens nacionais,
instirucional do mundo da vida,,,cuja tarefa é a preservação e
se comunicam e intercambiam experiências diversas. Veri.fìca_se,
renovação das tradiçÕes, solidariedades e identidades,,, cãbe
à efetivamente, no cotidiano de imigrantes, de furistas, de empre_
sociedade civil, no modelo habermasiano de democra"i", ,r"rrr_
portat para a esfera pública demandas e expectativas normativas sários, dos adeptos de determinadas tendências estético-culrurais,
que dizem respeito ao conjunto da sociedaäe, em contraposição das comunidades científicas e dos movimentos sociais, a existên-
aos interesses particulares de grupos políticos e econômicos. cia de encontros comunicativos e mesmo de redes sistemáticas e
À duradouras de intercâmbio entre grupos sociais e indivíduos de
sociedade civil caberia, portanto, dinamizar e vitarizar a esfera
origens diversas. Esses diversos contextos comunicativos _ que,
30
31
diga-se, nâo implicarn un1 encontr() presencial entre os atores, a unìa corrente c.¿d¡ vez lnais influente no câlltpo clisciplinar
pode se tratar, aqui, de recles virtuais não conver¡1em para uma
- dinâmica das relaçÒes internacionais e que busca <.lesenhar ins-
esfera pública supranacional. E¡n sua clescentralizada, 'roclelos
titucionais par¿ urna de¡noc¡acia cosrnopolita, funclacla na iciéi:¡ <Ie
contudo, promovem crescentemente a integração socieuiria para uml goterTutnce uitbout gouemm.ent (Züm, 1Ð8, 172). São rnuitas
além das fronteiras nacionais.6 as críticas feitas a esses modelos que, confomre sintetiza Giesen
(2000), no lugar de criar uma orde¡n global clernocútica,
agravam as
assimetrias de poder nas relações intem:rcionais (Costa, 2003b). Irar¿
DEMOCRACIA E DiREITOS HUMANOS EM os objetivos do presente livro, interessa n.nis cle peno, conrl¡clo, o
ESCALA GLOBAT segundo problema colocado pelo moclelo cosnropolita proposro
por Habermas, uma vez que este apresenta, em vista cle nossos
Para além das razões político-institucionais, as diferentes objetivos, conseqúências teóricas mais extensas.
avaliações feitas por Habermas em relação às possibilidades de Esø segunda questã.o enfrentada pelo autor é cla ordem da
superação do déficit democrático no interior da União Européia, sociologia do poder e diz respeito às forças sociais que poderâo
de urn lado, e à viabilidade da construção de uma democracia promover a transição de uma ,,política de poder', (Macbtpolitikou
cosmopolita em tdo o mundo, de ouro, é fundamenada com base pouter politics) p ra uma "política intema mundial'cosmopolita".
no argumento da inexistência de uma cultura política comum. No intuito de encontrar, no plano mundial, o equivalente funcio_
nal à sociedade civil articulada, que lograra, em diversos contextos
Considerada essa limitação, a democracia cosmopolita deve
nacionais, impulsionar a construção e,/ou aprofunclamento da
ser pensada for¿ do projeto de um arcabouço de instiruiçôes que
democracia, Habermas evoca uma emergente sociedade mundial
se aglutinem na forma de um Estado mundial. Essa concepção da
de cidadãos (VeltbUrgeryesetlscbafi). Diferentemenre, conruclo, cla
ordem cosmopolita leva o autor a confrontar-se com pelo menos
sociedade civil nacional, concebida como um conjunto concrero
dois tipos de problernas.
de organizações de caráter nâo estatal e ancoradas no mundo
A primeira questão diz respeito à legitimação de uma arqui_ da vida, a sociedade mundial de cidadãos, aincia que não seja
tetura institucional descentr^lizada e que não rem a forma de explicitamente definida por Habermas, parece remeter ao con-
urn Estado. Trata-se aqui de insrâncias múltiplas de negociação junto heterogêneo de forças identificadas com uma ,,consciência
e discussão que deveriam estar abertas tanto para a participação cosmopolita". Assim concebida, a "sociedade munclial cle cicla-
de ONGs quanto para^ a promoção periódica de conferências dãos" não é mais um conceito sociológico, mas um guarda-chuva
temáticas globais, as quais funcionam como "encenaçÕes públi- moral arbitrário de aplicaçào ad boc, conforme as conveniências
cas" paÍa teûìas que, de outra maneira, não integrariama agenda e preferências políticas do momento. Desse modo, podem com-
política. As exigências e critérios de legitimação política, nesses por a Veltbürgergesellsc b art tanto cidadãos cosmopolitas quanro
casos, não podem ser aqueles que vigoram no âmbito do Estado govemos democráticos empurrados pelas virtudes cívicas de seus
nacional, uma vez que a ênfase democrática tem que se deslocar membros à ação cosmopolita (Habermas, 1Ð8: 168) ou aré nesmo
"da incorporação da vontade soberana em pessoas, atos eleitorais, a OTAN - Organtzaçào do Tratado do .A.tlântico Norre, quanc.lo,
grêmios e votos, às exigências procedurais próprias aos proces- como no caso da intervenção na ex-Iugoslávia, atuaria no sentido
sos de comunicação e decisão" (Habermas, 1998:766). Aqui, a de antecipar "uma situação cosmopolita" (Habermas, 2A0i.:3Ð.
concepção discursiva da democracia busca se ajustar à dinâmica Se a alusão a uma sociedade mundial de cidadãos apresen-
pós-nacional, redefinindo a idêia de legitimação, a qual passa a tasse, nas formulações recentes de Habermas, apenas o status
ser concebida e afeÅda, a pàrtt do grau de transparência e aces- de ferramenta político-ideológica na luta contra o unilateralismo
sibilidade das decisões políticas e nâo mais pela possibilidade de americano, seu interesse para nossos propósitos no presente
intervenção direta nos processos decisórios. Habermas alinha-se livro seria reduzido. Sua relevância, contudo, decorre do fato
de que assume o caúter de categoria norrnativa, como fonte de
32 33
Iegitimação prévia de todas as ações supostamente voltad^s p ra global. Esse risco é tanto mais grave e real quando se leva em
a construção de uma ordem cosmopolita. ,{qui, a identificação conta que, na formulação de seu modelo para a transição a uÍra
com as aspirações da "sociedade mundial de cidadãos" passa a ordem cosmopo[ta, Habermas atribui uma legitimação imanente
ser utilizada como justificattva para as ações transnacionais dos à sociedade mundial de cidadãos, diferentemente
de sua primeira
movimentos sociais, mas também para a quebra da soberania teoria da democracia, circunscrita à esfera nacional. Ati a legi_
de Estados e até para* as "intervenções militares humanitárias", timação política não está ampanda na sociedade civil mesria,
independentemente de sua legalidade, segundo os termos do mas no conjunto de procedimentos que permitem, arrt a
ouoor,
di¡eito intemacional positivo. que expectativas e problemas cristalizados nas esferas cotidianas
O ancoramento normativo da ordem cosmopolita nas expec- sejam trazidos à discussão peros atores da sociedade
civir. Agora,
tativas morais da Weltbúryeryesellscbafinão parece ser a solução contudo, como esses procedimentos não esÉo regulam"rrt do,
teórica adequada para responder ao desafio da construção da no plano transnacional, Habermas toma as própriãs aspirações
democracia pós-nacional, uma vez que reproduz e congela as normativas da sociedade mundial de cidadãos como fonte
ima-
assimetrias de poder entre as diferentes sociedades. Afìnal, a nente de legitimação (veja, a respeito, Giesen, 2000). De alguma
hegemonia dos atores sociais das sociedades do Atlântico Norte maneira, o autor aceita quem sabe até mesmo espera e lorce
na definição dos temas, do repertório de estratégias e das prio- para -
que a dimeruão étjco-normativa que falta à cuin¡ra polírica
-
da sociedade mundial encontre seu sucedâneo na forma ãe vida
ridades da "sociedade mundial de cidadãos", qualquer que seja
a definição utilizada, é inconreste: secularizada e destradicio nalizada,,ocidenul,.
Os problemas do modelo Fatados aqui, de forma absrata,
são
O discurso que u:¡ta de redes e nós não pode encobrir o fato de lglofundados a segut, a partir do esrudoda forma especíñca como
que, na cooperação ransnacional entre ONGS e mesmo nas ONGs Habermas fundamenta uma política mun.tial dos di¡eitos humanos,
transnacionais, a distribuiçào de influência, poder, de recursos, pedra angular de sua proposta para urna ordem cosmopolita.
de pessoal e temas apresentâ um claro desnível norte-sul (...).
Isso vale não apenas para pessoal e esru[uras de decisão, mas OS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM COSMOPOLITA
também para a escolha das campanhas que são feitas sob medida
para atender ao gosro do público de filanrropos da OCDE (Ro¡h, Ao estudar, ainda no começo dos anos 1990, as relaçòes en_
2001:9, ver, umbém, Rorh, 2005; Klein e¡ al.,2Cf]Ð. tre moral e direito no âmbito de um Esudo nacional particular,
Habermas busca reconciliar a tradição liberal e a tradição repu_
Ora, se a sociedade civil, na teoria discursiva da democracia, blicana, mosrando que os direitos humanos, entendidos
como
conforma a climensão insrirucional do mundo da vida, seu equi- igualdade universal das possibilidades subjerivas de ação,
tÀo cara
valente funcional, na ordem pós-nacional, a sociedade munclial aos liberais, e a soberania popular, figura lapidar do pensamento
de cidadãos, estará igualmente associada à reprodução de tradi- republicano, não devem ser tratados como coflcorrentes, rnas
como complementares. â,final, é no interior do processo
çÒes, identidades e solidariedades, que, em vista das assimetrias djscursivo
de poder existentes, não são representativírs do coniunto da socie- de formulação das regras de convivência, o qual garante que
os
clade mundial. Apóiam-se, ao contrário, nas experiências históricas destinatários do direito sejam também seus que tanto a
particulares e nas formas de seleção e percepção de um número ".rtor.r,
autonomia individual quanto a autonomia pública se concretiz?m.
muito reduzido de sociedädes civis nacionais. portanto, o risco A relação de reciprocidade enûe direitoJ humanos e soberania
sério e evidente que corre um projeto de democracia cosrnopo- popular reside, assim, no fato de que só a plena vigência
dos
lita assente na suposta "sociedade mundial de cicladãos" é o de direitos humanos pode garantir os requisitos cåmunicativos para
o
contribuir para disseminar mundo afor¿ as experiências, expec- exercício da soberania popular e para a emergênç.þ deum
direito
tativas normativas e formas de percepção política predominantes positivo democrático, sem o qual, por ,,ra v.z, as liberdades
naquelas sociedades que rêm maior poder para definir a agencla individuais não existem. þsß uerbix "a substância dos direitos
humanos encontra-se presente nos requisitos formais necessários
34
35
à institucionalização daquele tipo de formação discursiva da opi_
para as demais regiôes. É como se a história
nião e da vontade na qual a soberania popular ganha sua feição européia se
repetisse com atraso de décadas ou até séculos
legal" (Habe rmas, 1992: 1,J5). nas demais
regiões, permitindo que as respostas encontradas pelos
A transição de uma o¡dem política e legal centrada nos europeus
Esta_ aos problemas colocados por seu próprio pro..rró d"
dos nacionais para uma ordem cosmopolita pós-nacional exige, modernização pudessem ser recicladas nos diversos
contudo, segundo o autor, a rupfura, ao menos temporária, da contextos.
Âssim, os di¡eitos humanos, entendidos como a reação
relação entre direitos humanos e soberania popular, de sorte que européia
eos processos de individualizaçào e secularização
os di¡eitos humanos possam vigorar mesmo naquelas regiõLs, vividos nos
seculosXVlü e XD(, se colocam como resposta aos dilemas
nas quais não vigoram o Estado de direito e as condições cores_
vividos
por países que se encontram hoje em estágio correspondente
pondentes paraaformação democrática da opinião e da vontade de
desenvolvimento. Nas palavras do autor:
política. Assim, na medida em que não e:.iste um Estado consti_
tucional mundial, no interior do qual o conjunto de membros da
Hole as oafrasculturas e religiôes do mundo estão exposras
sociedade mundial pudesse se tomar suieito e destina¡ário de um aos
desafìos da modemidade societária de forma semelhante
direito cosmopolita, é necessário evocar uma política ofensiva àquela
que estcve a Europa, em seu devido tempo, quando
os direitos
pelos direitos humanos que faça com que os anseios difusos dos humanos e o Estado de direito democnáticå fo.a^m, de certa
forma,
"cidadãos mundiais" ganhem materialidade. inventados (Habermas, 1ÐB: 1g1, grifo acrescenødo).
Trauda nesses teffnos, a política transnacional pelos direitos
humanos adquire o caráter cle ,,antecipação (Voryriff) de uma Habermas mostra-se, em alguma medida, consciente do
risco
furura situaçâo cosmopolita que essa própria política ajuda a eurocentrista subjacente à sua justificação da expansão dos
promover" (Habermas, 2O0l: 36). O proragonismo conferido direitos humanos. O e><ercício da autocríticâ se restringe, contudo,
a reconhecer, na bistória européiarecente, o descentramento da
ao "Ocidente" na condução desta estratégia de expansão dos
concepção de direitos humanos, na medida em que, "só depois
direitos humanos é justificada pelo autor unto clo ponto cle vista
de duras lutas políticas, trabalhadores, mulheres, judeus, ciganos,
político-normativo quanto analítico-teórico. politicamente, o autor
homossexuais e exilados passaram a ser reconhecidos como
busca afastar-se da posição dos Estados Unidos que inrerpreta,
seres humanos com direito a t¡".tamento plenamente igualitário"
segundo ele, a expansão dos di¡eitos humanos como parte de (Habermas, 2001:179). Nessa autocrítica, Habermas
sua missão nacional como potência hegemônica.7 Diferentemenre não rompe
com a representação antinômica entre, de um lado, um centro
de tal justificação, Habermas fundamenta a açào ofensiva dos
da sociedade mundial, orâ tratado como Ocidente, orâ colno
países ocidentais em favor dos direitos humanos, a panir das
Europa e definido como precursor e difr:sor dos direitos humanos
expectativas morais da "sociedade mundial de cidadãos". Admite
e, de outro, o resto do mundo., receptor dos ideais universalistas
que se trata de um padrão paternalista de relações norte/sul, um
europeus.
patemalismo, conrudo, que se justifìca por sua inevirabilidade e
Essa forma de justi-ficar uma política rnunclial pelos direitos
que é autoconsciente de sua precariedade nolmativa e de sua
humanos apresenta, contudo, fragitidades diversas, as quais
transitoriedade.
dificultam a compreerìsão e legitimação dos arueios .orrrropálitæ
Do ponto de vista analítico, sua apologia do papel do'Ocidente" que essa política busca afirmar. Tr¿ta-se aqui, basicamente, de
na defesa dos direitos hurnanos é entendida como decorrente da três ordens ou níveis de objeções, a saber: nível das relações
condi$o moderna que atinge todas as regiôes da sociedade mundial. intemacionais, questÕes históricas e problemas da ordem da
Segundo esse raciocínio, o desenvolvimento da modemidade se teoria da democracia.
dá através de ciclos históricos que levam à expansão progressiva
Emrelação ao primeiro nível, o plano drs relaçÕes intemacion:ris,
de um conjunto de esûun¡ras sociais, de determinados padrões parece que a idéia de que os direitos humanos correspondem a uma
modemos de sociabilidade e de um corpo de valores da Europa "linguagern universal" ecpressiva das aspiraçÕes morais clos cidadãos
36
37
mundiais, além e acima das relaçöes de poder concretas no através de lobbies, subomo, cooptação, aliciamento e técnicas
interior da política mundial, deixa-nos analiticamente desar- variadas de propaganda põe a política em ação, para que estâ
mados para entender os paradoxos que cercam os diferentes construa os argumentos que legitimem a condução de mais uma
discursos sobre os direitos humanos e as tensÕes que acom- "guerra iusø".
panham as lutas por sua concretização nos diversos contexlos. A segunda ordem de objeçÕes a uma defesa apologérica dos
Em outras palavras: para que as promessas cosmopolitas conridas direitos humanos diz respeito à visão da história social modema
na política dos di¡eitos humanos sejam plausíveis não é necessário nela contida. Traø-se de uma teleologia da história que coloca
que se dilua as contradições intemas dessa política em pseudo' aquele conjunto de sociedades que se industrializou pioneira-
conceitos ecumênicos e, como se mostrou, vazios de qualquer mente como reservatório dos valores, instituições e formas de
conteúdo sociológico. Muito pelo contrário, as possibilidades vida que são, nurna escala imagirrária, mais avançadas. Essa visão
cosmopolitas nascem do esforço político e cognitivo de revelar ignora a interdependência e simultaneidade entre a modemiza-
as incompletudes e parcialidades contidas nos discursos univer- ção material e moral da Europa e as transformações materiais,
salistas, nesse caso particular, as diferengas de poder regionais, culturais e morais observadas em várlas regiões do mundo, no
de gênero, étnicas, etc. que rnarcam o surgimento da política âmbito das empreiødas colonial e escravocrata.
mundial dos di¡eitos humanos. Diante dessas constrições, nào A história da modernização das ex-colônþs não representa a
se pode deixar o destino da política cosrnopolita depender da repetição retardatât'n da modemização européia. À seu modo,
boa consciência de um "Ocidente judaico-greco-cristão" e de sua essas regiões estiveram confrontaclas com a condição modema
suposta "capacidade reflexiva" de "disunciar-se de suas próprias desde os tempos coloniais, e os desafios que enfrentam na
tradições", como espera Habermas (2001: 180 et seq.). Os di¡eitos concretização dos di¡eitos humanos an¡almente não podem ser
humanos devem servistos não como aiuda patemalista ao desen- compreendidos sem que se recupere o nexo histórico que as
volvimento, rrras como parte de um cirmpo conflitivo de disputas vincula à modemidade européia.
simbólicas e materiais. É na busca dos interesses diversos e das
Essas sociedades viveram e vivem seu próprio "descer¡tramento"
relações de poder ocultadas na intenção declarada de promover
das possibitidades de inclusão conricl-s nãs direitos humanos. Esse
o bem comum da humanidade que se podem interpelar os dis- processo não acontece a reboque da Europa, rrras em oposição ao
cursos universalistas e, por assim dizer, cobrar o cumprimento
domínio colonial europeu. Isto é, a história de desenvolvimento
das promessas que enunciam.
dos di¡eitos humanos na Europa, a parttr do século XVIII, refe-
De fato, quando se abstrai dos mecanismos de poder que re-se a uma seqüência particular de eventos ocorridos em um
operam na produção dos discursos sobre os direitos humanos, coniunto reduzido de sociedades determinadas, não representa
definindo-os como expressão das vi¡n¡des morais de seus emisso- uma lei histórica de transformação de aplicação universal. A
res, perdem-se os iflstrumentos analíticos que permitem captar as idéia de que história de construção dos di¡eitos humanos possa
tentâtivas de sua instrumentalização, como as chamadas "guerras reproduzir, nas demais regiões, a dinâmica observada na Europa
humanitárias" recentes sobejamente mostraram. Nesses casos, é equívoca.
desconsiderou-se, sistematicamente, o papel da máquina bética É indispensável ir além de qualquer antinomia essencialista
na política mundial e na produção dos discursos morais de apoio que separe a história de modemização do "Ocidente" (West) e do
às intervenções. O que se viu, contudo, é que a influência do "resto" (resr) do mundo (HaLl, 1997a). Têm-se, na verdade, histô
complexo industrial-militar nas relações intemacionais levou a rias de modemi¿ação entrelaçada s (entangled bìstoriÆ, Randeria,
que as "intervenções humanitárias", independentemente de sua 2mL,.2WÐ, no interior dqs quais os desenvolvimen¡os que levaram
real inevitabilidade, fossem apresentadas como inescapáveis. os países do hemisfério norte a adquirir uma posiçã_o-privilegþdam
Ficou evidente, em todos os casos, que a maquinaria de guerra defesa dos direiüos humanos, recenternent€, precisam servistos como
apresenta uma dinâmica sistêmica própria e imperativa: não circunstanciais e contingentes. Essa posiÉo não é necessariamente
espera razões políticas para ser acionada. Ao contrário, agindo definitiva isto é, não é ontológica, é histórica. Não representa,
-
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portanto, um lugar definido numa linha de evolução inelutável dos primeiros universalistas. cabe destacar que par¿ fundaclores
e imutável da modemidade, é, antes, o reflexo momentâneo de da doutrina moderna de ígualdade universai, como Kant ou
um conjunto de injunçÕes políticas particulares.s Hegel, não parecia óbvio que a humanidade, da qual rraravam
As luas pelos direitos humanos têm, desde seus primórdios, uma os di¡eitos humanos, pudesse incluir povos não europeus. Com
origem múltipla. Assim, no mesmo momento em que a efeito, esses autores estabelecem uma linha demarcatória entre
Europa "inventava" os direitos humanos e o Esado de direiO para o homem do iluminismo e aqueles que se constroem como seu
seus próprios cidadãos, os propulsores da globali?zLçào dos direitos oposto, os habitantes das demais regiÕes, defìnindo_se a partir de
humanos estavam, nas Américas, lutando contra a opressão colonial tal divisão quem efetivamente eram os destinarários dos direitos
européia. O mesmo se constata ao longo dos processos mais recentes humanos (Brunkhorsr, 2002; McCanhy, 2001). A brevíssima pbysis_
de emancipação colonial na África e na Ásia. É nessas regiões que cbe geograpbie (1988, orig. 1802) é particularmenre ilusrra[iva
dos
se encontravam os agentes da expansão do catálogo dos direitos paradoxos contidos nas primeiras visões da igualdade universal.
humanos. Na Europa encontravam-se, à essa época, os poderes AIi, Kant desenha a imagem de uma humanidade dividida em
coloniais que oprimiam e difundiam o ódio entre povos e etrrias. hirerarquias biológicas, na quais o homem do iluminismo europeu
despontava como superior a todos os demais:
Quando se leva devidamente em conta a história colonial, a
descrição da modemidade como traietória linear, na qual os países
tecnologicamente mais avançados do Atlântico Norte representan¡ Nos países quentes o homem amadurece, em todas as suas
partes, mais cedo, não atinge, conrudo, a complerude das zonas
por desígnio ou por força dalógica intema de um ciclo evolutivo,
temperadas. A humanidade apresenta-se em sua maior comple-
umâ certa vanguarda moral do mundo contemporârìeo perde sua
tude na raça dos brancos. Os indígenas amarelos rêm um alento
plausibilidade empírica e política. Por isso, para que os di¡eitos limiado. Os negros encontram-se mais abaixo e mais abaixo
humanos possam funcionar cognitiva e noffnativamente como de todos encontra-se parte dos povos americanos (Kant, 19gg,
força propulsora de uma ordem cosmopolita cabe evitar qualquer orig. 1.802: 17).e
apologia da história européia, há que se reconstruk as múltiplas
histórias das lutas sociais pelo descentramento e expansão desses Essa fronteira seria aprofundada, como veremos no Capítuio
direitos, vividas nas diversas regiões do mundo. VI deste livro, a partir da segunda metade do sécuio XD(, pelo
Ao lado da história social, também a história das idéias nos racismo científìco. Em seu âmbito, as diferenças enffe os graus de
fornece argumentos para sustentar que o descentramento das desenvolvimento tecnológico e material das diversas populações
aspirações de reconhecimento contidas nos direitos humanos são congeladas e decodificadas na forma de categorias biológicas
não esteve restrito às fronteiras geográficas da Europa. Com i¡redutíveis entre os membros de diferentes grupos humanos.
efeito, o movimento concreto que caracterizou a recepção dos Aqui, cultura, raça e civilização são conceitos que se superpÒern:
ideais igualitaristas ern muitas sociedades periféricas produziu, a assumida superioridade da t'cultura européia,, serve ao mesmo
na verdade, a reinvenção e a reconstrução desses, à luz das tempo de comprovação empírica da superioridade biológica dos
constrições impostas pelo colonialismo e pela escravidão. Nes- brancos e de referência para que os diferentes graus de inépcia
ses contextos, as pretensões de validade universalistas revelam dos "não brancos" para a vida civilizada pudessem ser avaliados
suas ambigüidades de origem, levando, ora a novas formas de (ver, entre outros, Ventura, 1987).
exclusão, ora à produção de colpos doutrinários que buscam Quando tr¿nspostas para as Américas, onde negros, indígenas,
conciliar os ideais de igualdade com as hierarquias estamentais brancos e os chamados mestiços povoavam os limites geográficos
efetivamente existentes. dos Estados nacionais que iam se formando, as te,nsões entre
Trata-se da articulação complexa e paradoxal entre propostas idéias universais de inclusão e defìniçöes particùlarisras de ser
universais de reconhecimento e concepções restritivas de ser humano produzem resultados diversos.
humano inscritas em muitas das definições dos di¡eitos humanos
40 4t
Em países como os Estados Unidos, observa-se uûÌa corre- que estes assumem no co{po das estruturas do Estado de di¡eito
Iação direta entre a difusão do ideal de igualdade e a produção europeu, consolidadas no século XD(, Conforme entende o autor,
e posterior recrudescimento do dogma da desigualdade racial. a articulação entre direitos humanos e soberania popular na
Isto é, a construção ideológica da inferioridade do negro vai se forma de uma ordem constinlcional construída discursivamente
intensificando, na mesfira medida em que o ideal igualitarista se conforma o "tipo de legitimação ocidental", o qual "representa
enraíza, funcionando como válvula discursiva que garante um uma resposta encontrada pelo Ocidente aos desafios gerais
mínimo de verossimilhança à retórica universalista numa socie- enfrentados não mais apenas pela civilização ocidental,,
dade (pós-)escravocrata. Conforme as palavras de Myrdal (2000: (Habermas, 1.998: 192). Em outros terrnos, a contribuição do
91, grifos no original): "Ocidente" à construção de uma ordem cosmopolita, na qual
vigorassem plenamente os direitos humanos, reside na oferta de
O dogma racial foi talvez a única saída possível para um povo uma forma histórica concreta e exitosa o (tipo de legirimaçào
tão moralisticamenre igualiarista, quando este não pôde viver ocidentåI" para enfrentar o desafio de- construção de regras de
de acordo com suas crenças. Uma nação menos fervorosarnente convivência- justas em contextos secularizados e pós-tradicionais.
vinculada à democraci¡, poderia, quem sabe, viver em paz num A proposta tem o mérito de defìnir os di¡eitos humanos não por
sistema de castas, acrediøndo menos intensamente na inferiori- conteúdos prévios, mas como uma forma de negociação das
dade biológica do grupo subaltemo. A tþcæsidafu dolrrcconcetto
regras que regulam a vida comum trata-se, parafraseando
racial cortø[tonde, desse ponþ de ûista, à necæidafu de
outro momento de Habermas, de uma - concepção dos direitos
unø parte dos atnericanos de seu. pñprio crcdo naciorøl e de seus
ideais maß anaþados. Assim, o preconceito racial é uma função humanos como procedimento. Não obstante seu interesse como
do igualitarismo: o primeiro é a perversão do segundo. núcleo de uma teoria discursiva da democracia, no interior de
{ um Estado-nação específico, a idéia dos direitos humanos como
Enr outros contextos, surgem, nas novas nações indepen- procedimento, quando transposta para a política mundial, parece
dentes, corpos doutrinários distintos que buscam estender os perder sua consistência.
di¡eitos humanos a todos os grupos demográficos, rompendo Em primeiro lugar há que se considerar que'boa parte das
com as ambigüidades presentes em formulaçÕes como a de Kant. violações dos di¡eitos humanos observadas em muitas regiões
Não raro, contudo, a adesão à declaração universal dos direitos decorre não da inexistência de mecanismos democráticos de
humanos tem um sentido meramente formalista, sem qualquer processamento da opinião e da vontade, mas da falta de efeti-
conseqüência prâuca. Isso se verifica no caso br¿sileiro, dado vidade do direito. Nesses casos, a violação dos di¡eitos humanos
que a declaração é integracla à constituição brasiJeira, ainda que tem lugar não no plano constirucional, rnas na esfera das relações
o país seguisse escravocrata. sociais. Tr¿ta-se aqui da polícia comrpta que desrespeita os di¡eiros
De todos os modos, o que se observa é que a história da civis, da sociedade preconceituosã que, em suas práticas sociais,
difusão e recepção dos direitos humanos desautoriza a visão de discrirnina negros, mulherès ou homossexuais, protegendo-se em
que estes se expandem linearmente da Europa paru o resto do redes e mecanismos informais infensos à ação da lei. A oferø do
mundo. No contexto das sociedades coloniais e escravocr¿ltas, a tipo de "legitimação ocidental" nada dtz sobre essas violaçÕes
história de formulação dos di¡eitos humanos precisou ser reescriþ ilegais, mas sistemáticas e cotid.ianas, dos di¡eitos humanos.
e liberta de seu etnocentrismo para que tais direitos pudessem Uma dificuldade adicional da proposta diz respeito às
funcionar, efetivamente, como insúumento ideológico para forçar culturais para que o procedimento da negociação discursiva do
inclusão política e social de grande parte de suas populaçòes. di¡eito ganhe plena plausibilidade. Ora, a "legitimação ocidental",
Cabe, por último, destacar os inconvenientes da ordem cla nos terrnos propostos por Habermas, só pode funciohar naquelas
teoria democrática relacionados com a associação estabelecida por comunidades políticas habiruadas e habiliradas à discussão pública
Habermas entre os direitos humanos e a forma iurídica particular de seus conflitos e diferenças, para as quais o consenso nornntivo
em tomo do respeito aos direitos humanos, possivelmente, não
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representa um problema. A dificuldade principal do diálogcr por reconhecimento, respeitadas as formas particulares que
intercultural em tomo dos di¡eitos humanos co'siste precisameñte estas
assumem nos diferentes contextos culturais. No âmbito
em considerar adequadamente formas de autoridade, práticas da polírica
mundial, os di¡eitos humanos não representam nem um conjunto
sociais e aspirações morais que podem ser reconhecidas como
legítimas, mas que não podem nem devem ser decompostas predefinido de garantias legais, nem um padrão de legitimação
discursivamente. o desafio é precisamente construir p"oâ*.t ot política preestabelecido. os di¡eitos humanos têm a forma
de
interculturais que pemitam distinguir formas legítimaì, mas que metåforizaçâo polissêmica, expressiva de aspiraçÒes múltiplas
e
não são passíveis de inteçelação discursiva, de estruturas de difusas de respeito e reconhecimento. Não possuem um
corueúdo
poder meramente despóticas e opressoras. jurídico, político ou cultural imanente, prévio ao processo
político.
Constituem, mais propriamente, uma moldura político_diicursiva
- Para que seja efetivamente intercultural, o diálogo em tomo
de uma política mundial dos direitos humanos deve-se abstrair fìexível e aberta o sufìciente para abrigar lutas emancipatórias
d"s experiências particulares de sua concretÞação histórica. As muito diversas e que só ganha.m pleno senrido nos termos da
dificuldades imposas pela modemidade ao conjunto da sociedade grarnática moral de uma cultura determinada.
mundial são inéditas, e a resposta a elas não pode repetir as Essa descrição, ainda que soe provavelmente muito irnprecisa
fórmulas encontradas na Europa do século XVI[,ìequer modelos
e frouxa, parece expressar o grau possível de formalizaçáo p^""
institucionais e legais específicos e adequados ãos desafios
pretensões de validade aptas a funcionar como instrumento
surgidos nos vários conrexros (Schubert, 199g). do
diálogo intercultur¿I, no âmbito de uma política mundial, marcada
As objeções não pretendem, obviamente, ocultar a eviclência por expectativas nomativas muito heterogêneas e relaçôes de
de que, para além das disputas em tomo de sua interpretação, há
poder fortemente assimétricas, não só entre os diferentes Estados
uma implementação desigual dos di¡eitos humanos nas diferentes
nacionais, como entre as respectivas sociedades civis.
regiões da sociedade mundial e que pode caber aos Estados e
atores sociais oriundos daquelas regiões, nas quais se obteve mais
avanços, um papel desucado na expansão do especuo geográfico
de vigência desses di¡eitos. Essa ação não pode ter, contudo, o CONCTUSÕES PARCIAIS E NOVOS DESAFIOS
objetivo de tra¡¡sferir formaros legais-instirucionais ne¡n a cultura
política que os alimenu de uma região a outra. Deve-se evitar ,{.s possibilidades de vigência da democracia, ranto no âmbito
a todo custo a tentação de transformar os progressos, circuns- da União Européia, quanto no âmbito mundial, encontram-se
tanciais e contingentes obtidos por determinadas sociedades na limiødas, conforme Habermas, pela insufìciente integração soclal
implementação dos direitos humanos numa hierarquia moral tr¿nsnacional, a qual não teria acompanhado os processos de irue_
entre formas de vida, como se se tr¿Þsse de culturas com graus
graçao sistêmica. A ênfase no déficit de integração social se explica
de desenvolvimento diversos. Afinal, o que a política dos direitos
pelo nexo estabelecido pelo autor entre legitimação democútica
humanos deve promover é o combate aos particularismos e não
e a possibilidade de fundamenação das normas em vigor. Nesses
às particularidades culrurais Çoas, !997). Trata-se, porranro, de
buscar superar a opressão de gênero, racial ou étnica, observada tennos, a democracia, no sentido enfático da teoria discursiva, só
em países como o Sudão, o Brasil ou a Turquia, sem pretender, pode prosperar entre cidadãos que, socializados no âmbito de
contudo, que as relaçÕes de gênero, raciais ou étnicas nesses um mundo da vida secularizado e destradicionalizado, estejam
países se tomem semelhantes àquelas vigentes em países como a habin¡ados e habiliudos a buscar, discursivamente, a fundamen-
Suécia, os Estados Unidos où Canadá, os quais lograram construir, tação racional das normas sociais. A democracia requer, ainda,
nas condições presentes, formas de regulação das relações sociais a preexistência de uma cultura política comurn, a qual fomece
mais próximas.aos anseios morais de seus habitantes. as condições de possibilidade da solidariedade entre esrranhos
Nesse sentido, a contribuição que pode ser prestada pelas e provê o ceme ético-político compartilhado,'base cognitiva e
açÕes transnacionais em flavor dos direitos humanos é eminen- motivacional da negociação discursiva em tomo das normas
temente político-ideológica e tem o sentido de fortalecer as lutas que devem regular a vida comum. A democracia pressupõe, por
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último, um conjunto de estruturas, instituiçoes e procedimentos, e da vontade admite-se, pelo menos temporariamente, uma
càpazes de assegurar a articulação adequada enüe as esferas - entre as "sociedades ocidentais" democráticas
relação patemalista
sociais e sistêmicas, nos terrnos de uma formação democrática e o "resto" do mundo. Assim, rìormas que definam garantlas mí-
da opinião e da vontade. Trata-se, aqui, de urrul sociedade civil nimas, como o respeito aos direitos humanos, deveriam vigorar
ativa, de uma esfera pública dinâmica e cte um sistema jurí<tico em todo o mundo, independentemente das possibilidades de sua
e um sistema político porosos e transparentes. validação nos contextos locais.
No caso europeu, Habermas mosûa-se o¡imista quanto às Para justificar o abrandamento do princípio discursivo da
possibilidades de superação do déficit de integração social e de
legitimação das normas, Habermas vale-se de um argumento
legitimidade democrática. Cabe, fundamenralmente, reconsrituir,
histórico-filosófico, segrndo o qual o processo de modemização
através, de um proieto político coordenado, as condiçoes
(europeu-)ocidental, o qual inclui a "invenção" do Estado de
de vigência, em toda a Europa, daqueles pré-requisitos cla
democracia no interior de cada Esudo-nação particular. Assim, direito e dos direitos humanos, representa um padrão universal
a extensão, por toda a União Européia, do processo de formação que pode (e deve) se repetir nas dernais regiões. Conforme
nacional, acontecido em cada Estado-naçào particular, deve salientado, esse tipo de argumento ignora as interpenetrações
permitir o surgimento de equivalentes funcionais, no plano e os processos simultâneos de transformação acontecidos nas
continental, para as cultur¿s políticas comuns, es esferas públicas diversas regiões do mundo, apresentando a democracia como
e as sociedades civis nacionais. Dessa forma, seriam recriadas uma forma de vida particular, desenvolvida numa ilha social, ora
as condições culturais e institucionais para que se reinstaurasse tratada como Europa, orafratzda como Ocidente.
a solidariedade entre estranhos em toda a Europa e para que o O ar¡tor vale-se ainda de uma figura retórica, a sociedade
processo de validação democútica das normas tenha lugar. munrlial de cidadãos que, sem definição elcrc:rlização sociológicas
Most¡ou-se que as formulaçöes de Habermas acerca da inte_ precisas, aglutina os esforços de transição de uma constelação
gração na Europa são equívocas porque desconsideram que a munclial dominada pela política de poder para uma situação
constelação pós-nacional é marcada precisamente pelo desacopla- mundial cosmopolita. Como se mostrou, a Vettbüryetgeselk-
mento entre fronteiras geográfìcas e fronteiras político-culturais. cbafr, qualquer que seia sua definição, reproduzirá a assimetria
Qualquer que seja a forma como se defina a cultura política de poder norte/sul.
européia, verificar-se-á que esta não se restringe às frontei¡as
geográficas européias e tampouco está presente em todos os Tanto o argumento como a figura retórica utilizados por
Haberrrus rompem com o projeto teórico da tradição crítica, uma
espaços sociais que geograficamente fazem parle da Europa.
Ademais, os estudos empíricos mostram que a integração soõiat vez que indicam a renúncia ao propósito de corstruir a perspectiva
em curso, no âmbito europeu, tem um caráter fragmentário e crítico-normativa a partir das aspiraçÕes de emancipação social
descentralizado. Nada indica que o projeto de uma identidade efetivamente existentes (Honneth, 1Ð2). Is¡a é, quando deduz
européia pudesse unificar, em de tomo de uma sociedade civil a sifuação cosmopolita de uma teleologia da história, Habermas
e uma esfera pública continental, os diferentes contextos comu_ transforma o próprio analisa social em lugar crítico, é o analista
nicativos transnacionais que vêm se constituindo. que decifra o sentido das transformaçÕes modemas e reconhece,
No plano mundial, diante da ausência de um núcleo ético_ no movimento da história, a saida emancipatória. O recurso
político comum à sociedade mundial, Habermas busca relaxar o à Weltbürgergesellscbøfi rño resolve o problema. Afinal, para
princípio da soberania popular, segundo o qual M uma congruên_ se evitar que esta seja definida como um met¿físico espírito
cia entre o contexto de legitimação e aplicação das normas. Isto é, cosmopolita em formação, M que se reconhecer que, em sua
na medida em que não se pode encontrar em todas as regiões da existência empírica, a sociedade mundial de cidadãos representa
sociedade mundial aquelas condiçoes necessárias para que as nomus os reclamos normativos de uma parcela muito poüèo significativa
possam ser negociadas e validadas discursivamente _ mundo da da sociedade mundial.
vida racionalizado, mecanismos de forinação d.iscursiva da opinião
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Longe, ainda, cle inclicar qualquer solução para o problema CAPíTULO tl
qu" u"- se desenhando, o presente capítulo buscou contribuir
para enunciar de maneira mais clara a questão que constitui o
tb¡"to ."n,tol da invesrigação apresentada neste livro e que, do
po.,to de vista cle uma teoriâ da democracíã, implica discutir
ts critérios para a validação de noffnas que devem ter vigência
para além clas fronteiras cle um Estad<¡nação específico' Habermas RISCO, RIFLEXIVIDADE,
nos oferece duas possibilidades: a primeira, limiuda ao contexto
europeu, implica a expansão das condições político-culrurais COSl\/1OPOLITISÀ,1O
<Je valiclacão clas normas clentro do Estado-nação' A segunda
prescincle da validação clas normas, ou de outra maneira, admite
que normas validaclas num contexto regional particular podem
ser transfericlars para outras partes. A primeira solução, além dos
Ulrich Beck e Anthony Giddens vêm logrando difundir suas
problemas teóricos que apresenta, é pouca adequada ao nosso
idéias para um público que cresce em tamanho e interesse,
caso empírico, qual seia a aliança anti-racista entre o Brasil e os
despertando igualmente a atençào de políticos e tomadores de
Estados Unidos. Afinal, não parece plausível que a história pós-
decisão. Comparecem também com regularidade nos suplemen-
colonial comum sirva de cimento para uma identidade e uma tos culturais dos principais jornais do mundo, atenuândo, com
cultura política compartilhada nas Américas' A segunda s,olugão suas categorias-metáfora, a angústia geral diante da opacidade da
é politiáamente desconfortável: implicaria reconhecer na história
sociedade mundial. A desenvoltura no trato com a sociedade da
dramârica e tzrdia de construção da igualdade imperfeiø e ina-
informação vale a ambos posição e reputação an-rbivalentes. De
cabada ent¡e brancos e negros nos Estados Unidos um modelo
um lado, eles se tomam a mztenaliza.so viva da condição humana
válido para combater o racismo no Brasil' O Capítulo rV retomará na modernidade tardía, conforme figurada em seus próprios
à buscã de uma solução menos obrusa para iustjficar a
extensão
forma de racismo ao escritos, e cuja marca particular é exatamente a auto-reflexão,
da norma universal clo combate a qualquer
nos Capítulos II entendida nos terrnos da sociedade que se vê confrontada com
contexto brasileiro. Antes, contudo, visitaremos
quais a idéia seus limites. Ao mesmo tempo, o prestígio público crescente de
e III dois outros campos teóricos, no interior dos
ambos é acompanhado com reserva pelos colegas de ofício.
de cosmopolitismo vem ganhando novas definições'
A força e a vulnerabilidade do t¡abalho recenre dos dois aurores
têm uma origem comum a rigor, se confundem. efeito, é a
mes¡na faculdade dos autores- em explorar o limite doComcânone cien-
tíffco, traduzindo em linguagem leiga, as experiências cotidianas e
os processos contemporâneos, que desperta a suspeita dos pares
e, simultaneamente, a admiração pública.
É verdade que, como notam Lash e Urry, ISeck e Giddens,
corporificam, no conjunto de sua obra, dois tipos muito distintos
de sociólogos:
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