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exemplares dos jornais brasileiros Brasil Mulher, Nós busca-se identificar as particularidades e as
Mulheres e Mulherio e dos chilenos Marea Alta e proximidades do feminismo no Brasil e no Chile, no
Puntada con Hilo, bem como edições da revista que diz respeito ao uso da comunicação no debate
FemPress – Red de Comunicación Alternativa de la sobre estas questões.
Mujer2. Ao recuperar fragmentos de veículos
alternativos publicados nos dois países do Cone Sul, 2. Movimento de mulheres e imprensa feminista
procura-se traçar algumas semelhanças e diferenças
no que diz respeito às reivindicações específicas das A ditadura militar no Brasil e no Chile, em que
mulheres, em especial as questões do campo da pesem as diferenças e particularidades dos dois países,
sexualidade e do direito ao corpo. representou um período de autoritarismo político,
De acordo com José A. Barros, a história violação dos direitos humanos e castração da
comparada: liberdade de expressão. Os reflexos da tomada de
poder pelos governos autoritários se traduziram em
[...] tanto impõe a escolha de um recorte práticas de tortura, assassinatos, censura, repressão
geminadode espaço e tempo que obrigará
armada, perseguições e outras práticas que marcaram
o historiador a atravessar duas ou mais
realidades sócio-econômicas, políticas ou o período compreendido entre os anos 1964-1985
culturais distintas, como de outro lado esta (Brasil) e 1973-1990 (Chile).
mesma História Comparada parece imprimir, Em meio a este contexto de repressão política,
através do seu próprio modo de observar a
surgem diversos movimentos sociais – de
realidade histórica, a necessidade a cada
instante atualizada de conciliar uma reflexão trabalhadores, estudantes, grupos de esquerda,
simultaneamente atenta às semelhanças e às organizações de mulheres, entre outros – que irão
diferenças, repensando as metodologias reivindicar a democracia e defender os interesses
associáveis a esta prática3.
coletivos dos grupos a que pertencem. No presente
artigo, interessa contextualizar a ação do movimento
Ao discutir o método da comparação, o referido feminista na luta pela democracia e na conquista dos
autor observa que o processo de análise não se dá de direitos das mulheres, bem como compreender o papel
modo 'intuitivo', mas com base em elementos e a presença de veículos de comunicação nos processos
observáveis em relação ao outro: “trata-se de iluminar de organização e visibilidade das causas feministas,
um objeto ou situação a partir do outro, mais nos dois países considerados. Para tanto, torna-se
conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta necessário situar, historicamente, o desenvolvimento
prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a do feminismo nos contextos brasileiro e chileno, bem
identificar semelhanças e diferenças entre duas como observar como estes movimentos inserem as
realidades, a perceber variações de um mesmo práticas de comunicação alternativa como estratégias
modelo”4. de resistência e como espaço de constituição das
A partir da questão chave que orienta este demandas em torno de suas causas e bandeiras.
trabalho – como os movimentos feministas no Brasil e
no Chile articularam as lutas políticas com as lutas 2.1. Feminismo e imprensa alternativa no Brasil
pelos direitos das mulheres, através da comunicação
alternativa? – serão observados o contexto em que se O feminismo no Brasil, caracterizado como de
desenvolve o feminismo nos referidos países, a “segunda onda”5, surge na década de 1970, em meio ao
presença e representatividade do debate em torno das período mais radical da ditadura militar, contando
causas específicas das mulheres e as variações com a participação de mulheres que passaram pela
discursivas presentes nas publicações. Desse modo, experiência do exílio. De acordo com Elizabeth
Foram consultadas todas as edições dos jornais brasileiros citados, disponibilizados no arquivo do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina, e
apenas algumas edições disponíveis dos jornais chilenos, recolhidos em visita ao Centro de Estudios de la Mujer (Santiago/Chile) em outubro de 2008.
3
BARROS, J. A. Op. Cit. p.02.
4
BARROS, J. A. Op. Cit. p. 05.
5
Entre as fases do feminismo, considera-se a primeira onda (marcada pela conquista de direitos políticos) e a segunda onda (em que as lutas se voltam à conquista de
direitos civis e culturais). Esta última ganha força nos anos 1970, com diversas organizações de mulheres e lutas que envolvem o direito ao corpo. Esta é a classificação
usada por Joana Maria Pedro e outras pesquisadoras. Ver: PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). Revista Brasileira
de História. São Paulo, Anpuh, n.52, vol. 26, 2006. p. 249-272.
cinema. Para ela, “os veículos de comunicação se publicado em 1975, e Brasília Mulher, do Grupo
apresentam inseridos numa estratégia de educação do Brasília Mulher, de 1982.
movimento feminista, de recriação da identidade Em sua análise das origens da imprensa feminista
11
social da mulher e de resgate de nossa história.” brasileira, com os jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres,
Rosalina de Santa Cruz Leite15 (2003) assim descreve o
A necessidade de uma imprensa feminista contexto em que os jornais se desenvolveram:
própria colocou-se, assim, a partir da
consciência de que os meios tradicionais de
comunicação, esfera de atuação dos donos do Mulheres que se auto-organizam nas
poder, e até mesmo alguns setores da periferias, em busca da garantia de direitos
imprensa alternativa, ou ignoram a mulher, sociais, e as feministas preocupadas com a
ou reforçam os estereótipos discriminatórios emancipação feminina, a discriminação, a
a seu respeito, ou a manipulam enquanto sexualidade, o poder, reinventando uma nova
objeto de consumo-consumidora. Ou seja, forma de fazer política junto com a luta
negam a existência de um falar feminino e, reivindicativa das classes populares. Só assim
portanto, de uma mulher sujeito de sua fala e pode-se entender o papel desempenhado pelos
de seu desejo12. jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres nessa
conjuntura16.
11
Idem, p. 16
12
Idem, p. 14.
13
Maria Quitéria não pode ser pensada como jornal feminista. Este periódico surgiu para divulgar as atividades e objetivos do Movimento Feminino pela Anistia. Ver a este
respeito RAMOS, Andressa Maria Vilar. A liberdade permitida. Contradições, limites e conquistas do movimento pela anistia: 1975-1980. 2002. Dissertação (Mestrado em
História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 57.
14
Publicado em Paris por exiladas brasileiras.
15
LEITE, Rosalina de Santa Cruz. Brasil Mulher e Nós Mulheres: origens da imprensa feminista brasileira. Revista Estudos Feministas. CFH/CCE/UFSC. Vol. 11, n. 1,
2003. p. 234-241.
16
Idem, p. 238.
17
O BM informa uma tiragem inicial de 5.000 exemplares e, em março de 1979, anuncia tiragem de 10.000 exemplares. Ao longo de sua existência, foram publicadas 16 edições
regulares e mais quatro 'extras'.
18
CARDOSO, E. Op. Cit. p. 43.
31
Fempress, 1986, p. 33´.
32
GAVIOLA, E.; LARGO, E.; PALESTRA, S. Una historia necesaria. Mujeres en Chile: 1973-1990. Santiago de Chile, autoedición, 1994.
33
TORRES, Carmen. Comunicación alternativa en dictadura: el caso de Chile. In: PORTUGAL, Ana Maria; TORRES, Carmen (org.). Por todos los medios: comunicación y
género. Santiago: Isis Internacional; Ediciones de Las Mujeres, n. 23, diciembre 1996, p. 69.
34
TOBAR, Marcela Ríos; CATALÁN, Lorena Godoy; CAVIEDES, Elizabeth Guerrero. ¿Un nuevo silencio feminista? La transformación de un movimiento social en el Chile
posdictadura. Santiago de Chile: Centro de Estudios de la Mujer/Editorial Cuarto Propio, 2003, p. 44.
“Miguel Enriquez”35 , durante a década de 1980 Uno, resumido en la frase “No hay feminismo
surgiram no Chile diversos grupos feministas: o sin democracia”, que significa, en otros
términos, que la única movilización posible
Movimiento de Emancipación de la Mujer Chilena para las mujeres, ahora, es el apoyo o el acto de
(MENCH), Mujeres de Chile (MUDECHI), Comité de la lucha opositora al gobierno autoritario;
Defensa de dos Derechos de la Mujer (CODEM), Mujeres que los problemas singulares de la
por la Vida, Movimiento de Mujeres Independientes discriminación de la mujer son secundarios a
esta prioridad y pueden ser tratados después o
(MMI), Mujeres por el Socialismo, Movimiento de sólo si no entorpecen dicha prioridad. Esta
Mujeres Pobladoras (MOMUPO) e Coordinador afirmación es sostenida por las mujeres
Político de Mujeres de Oposición. Além disso, as políticas. El segundo aserto, opuesto al
mulheres são as responsáveis pela Agrupación de anterior, invierte los términos y pasa a
afirmar que “No hay democracia sin
Familiares de Detenidos-Desaparecidos, organização feminismo”. Descartando las prioridades o
que teve um papel fundamental na luta pela contradicciones primarias o secundarias,
democracia. afirma la naturaleza constitutiva de toda
O feminismo de segunda onda que se desenvolve opresión que implica la dominación,
discriminación y subordinación de las
no Chile é assim herdeiro de uma tradição política de mujeres en el mundo privado y publico38.
esquerda, marcada por uma 'vocação opositora', em
que as lutas específicas das mulheres foram aos De acordo com Torres, assim como outros
poucos ganhando espaço. Conforme analisa Tobar, movimentos de mulheres na América Latina, “las
Catalán e Caviedes este chilenas organizadas buscan crear sus propios medios
de expresión, formando parte de lo que se llamó la
(…)es un feminismo que se plantea en
oposición al autoritarismo militar, pero corriente alternativa en comunicación”39. Segundo a
también a las formas tradicionales de hacer autora, as publicações das mulheres oscilam entre dois
política, al estatismo de los actores políticos y pólos: os temas políticos e os feministas: “las mujeres
al reduccionismo economicista que sesgaba de las organizaciones editoras de estos boletines o
los discursos de izquierda y que relegaba las
aspiraciones de igualdad de género a un lugar revistas son confrontadas al autoritarismo político y
secundario en la lucha para transformar la al autoritarismo de la sociedad chilena, dos elementos
sociedad36. 40
cotidianos bajo el régimen militar ”
Na análise de Torres, os grupos de mulheres
Juntamente com a luta contra a opressão causada existentes no Chile apresentam três objetivos:
pela ditadura, as mulheres irão somar o combate à “defensa de los derechos humanos, reivindicaciones de
opressão no espaço doméstico, através do slogan gênero y la apertura de espacios de expresión en la
criado por Julieta Kirkwood:37 “Democracia en el país prensa.”41 Das organizações cujo objetivo é a
y en la casa”. Contudo, o reconhecimento da dupla participação das mulheres na luta geral contra a
dimensão do autoritarismo contra o qual lutavam ditadura, Torres identifica os seguintes grupos e suas
implicou em conflitos na distinção entre 'feministas' e respectivas publicações: Agrupación de Familiares de
'políticas', ou seja, entre os limites e possibilidades do Detenidos Desaparecidos (¿Dónde están?), CODEM
feminismo autônomo e o ativismo feminista nos (Vamos Mujer e Tu voz mujer), MUDECHI (Boletín de
partidos políticos. A este respeito, Julieta Kirkwood Mujeres de Chile) e MEMCH'83 (La Boletina Chilena).
assim apresenta os dois posicionamentos presentes Entre as organizações que apresentam reivindicações
no debate entre 'feministas' e 'políticas': de gênero e demarcam uma consciência feminista,
destacam-se na análise da autora: Círculo de Estudios
35
Informações disponíveis no portal do Archivo Chile, do Centro Estúdios “Miguel Enriquez” (CEME): http://www.archivochile.com. Acesso em: 20 de agosto de 2008.
36
TOBAR, M. R.; CATALÁN, L. G. e CAVIEDES, E. G. Op. Cit. p. 44.
37
A referência a Julieta Kirkwood é fundamental para compreender o feminismo chileno, tanto pelos seus escritos quanto pela sua militância política. De acordo com Alejandra
Castillo (2007, p. 43), Kirkwood define o feminismo como um projeto de transformação social, não como uma política de interesse de um grupo em particular: “En este sentido
indicará que el feminismo puede 'identificarse por la concurrencia de tres principios básicos: un principio de identidad, uno de oposición o definición de sus adversarios y un principio
totalizador o de formulación del proyecto global alternativo'.” (CASTILLO, Alejandra. Julieta Kirkwood: Políticas del nombre propio. Santiago de Chile: Palinodia, 2007)
38
KIRKWOOD, Julieta. Ser política en Chile: los nudos de la sabiduría feminista. 2ª ed. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 1990. p. 222.
39
TORRES, C. Op. Cit. p. 68
40
Idem, p. 78.
41
TORRES, C. Op. Cit., p. 71
de la Mujer (Boletín del Círculo de Estudios de la Mujer), En 1991 se crea Marea Alta, como un periódico
Frente de Liberación Femenina (Testimonio), Las de distribución mensual de información, sobre
temas relevantes para las mujeres y difusión
Domitilas (Palomita), MOMUPO (Inquietudes de la de sus actividades. Esta publicación se termina
lucha), Centro de Estudios de la Mujer (Rulpa en 1994, y parte de su equipo crea el periódico
Dungun), Casa de la mujer La Morada (Boletín de La Puntada con Hilo. En agosto de 1991, sale al
Morada) e Coordinadora de las Mujeres de la Zona aire Radio Tierra, proyecto de la Casa de la
Mujer La Morada, que e plantea como la
Oriente (Caracolas). E, segundo Torres, entre os primera radio feminista en el ámbito nacional,
grupos que compreendem seu estudo, criados a partir que hace una propuesta cultural desde el
da necessidade de publicar um veículo que trate feminismo, tanto en su programación como
especificamente das lutas das mulheres, incluem-se a administración. En 1992, se crea Conspirando,
revista latinoamericana de ecofeminismo,
Federación de Mujeres Socialistas (Fúria), Unidad de espiritualidad y teología44.
Comunicación Alternativa de las Mujeres (Mujer-
Fempress)42, Isis Internacional (Mujeres en Acción) e o Observa-se que, tanto no Brasil quanto no Chile, o
grupo de mulheres que publica Nos/otras. movimento feminista irá apostar na criação de espaços
Em meio a este contexto de mobilização e de expressão como meio de articulação e visibilidade
visibilidade do movimento feminista, que marcou os de suas causas, seja em um contexto de ditadura ou
anos 1980, o Chile vê surgir novos horizontes diante da abertura (ainda que gradual e limitada) em
políticos. Porém, diante do processo de tempos de democracia. Mesmo com condições de
democratização do país, no período pós-ditadura, o produção precárias, problemas de financiamento (que
que se verifica – à semelhança de outros cenários afetam a regularidade das publicações) e distribuição
latino-americanos – é a desarticulação dos reduzida, a imprensa feminista se configura como um
movimentos sociais. Este processo, denominado de meio de reflexão e luta política do movimento, que irá
'silêncio feminista', teve a desmobilização e a traduzir suas tensões, avanços e perspectivas, durante
institucionalização como principais características. e após a ditadura militar nos dois países.
Tobar, Catalán e Caviedes descrevem este momento
de transformação do feminismo, pós-ditadura, 3. Vozes do movimento feminista pela imprensa
através de três etapas: uma primeira (final dos anos alternativa
1980 até 1993), marcada pela busca de unidade e
articulação em torno de uma identidade feminista; A perspectiva de comunicação alternativa adotada
segunda etapa (1994-1996), em que se intensificam as neste trabalho compreende o caráter contra-
diferenças entre distintas posições estratégicas e hegemônico das produções dos grupos e movimentos
opções políticas, que produziu distanciamentos sociais. De acordo com Grinberg,45“é alternativo todo
internos; e uma terceira etapa (1997 até a atualidade), meio que, num contexto caracterizado pela existência
em que se verifica uma crescente desarticulação e de setores privilegiados que detêm o poder político,
invisibilidade do feminismo enquanto ator coletivo e a econômico e cultural [...] implica uma opção frente ao
consolidação de espaços e estratégias micro-sociais 46
discurso dominante” . Para o referido autor, o
43
de ativismo . alternativo surge para gerar mensagens com
Em relação às novas formas organizativas que concepções diferentes ou opostas às difundidas pelos
emergem a partir dos anos 1990, as autoras destacam meios dominantes, apresentando uma diferença
o surgimento de meios de comunicação feministas: qualitativa em relação aos meios hegemônicos. A
42
Viviana Erazo, uma das colaboradoras da revista, em conversa realizada em Santiago/Chile em outubro de 2008, lembra que a Fempress nasceu do seminário "La
Comunicación Alternativa de la Mujer en América Latina", que aconteceu no México em 1982 e reuniu experiências de comunicação alternativa feminista de diversos países. A
Fempress representou a formação de uma rede do movimento feminista, que buscava fortalecer as lutas das mulheres. Nas edições consultadas da revista, destacam-se
informações sobre mobilizações do movimento de mulheres na América Latina e debates temáticos.
43
TOBAR, M. R.; CATALÁN, L. G. e CAVIEDES, E. G. Op. Cit. p. 61.
44
TOBAR, M. R.; CATALÁN, L. G. e CAVIEDES, E. G. Op. Cit. p. 76.
45
GRINBERG, Máximo Simpson. “Comunicação alternativa: dimensões, limites, possibilidades”. In: GRINBERG, Máximo Simpson (org.). A comunicação alternativa na
América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987.
46
Idem, p. 18.
ênfase, portanto, está no conteúdo: “sem discurso gerais: da Campanha da Anistia aos irmãos
alternativo não há meio alternativo” .
47 Villas-Boas49.
Sabe-se que há uma significativa produção de
mídia alternativa ao longo do período considerado Porém, ao longo de sua existência, o BM irá abrir
(anos 1960-90), que indica a representatividade que o um maior espaço para as questões específicas das
movimento feminista assumiu durante a ditadura mulheres, principalmente no que se refere às
militar, no Brasil e no Chile, na constituição de um reivindicações das mulheres trabalhadoras. Esta
discurso de resistência. Mas qual é o espaço para as mudança de postura é apresentada no seguinte
questões específicas das mulheres nas publicações editorial:
feministas? Como o movimento articula, nos dois
Percebemos que o jornal, embora dirigido
países, a luta pela democracia com a luta pelos direitos
para a mulher, não estava levantando seus
das mulheres? A partir de alguns fragmentos de problemas específicos: salários inferiores aos
jornal, busca-se lançar um olhar sobre estas questões, dos homens mesmo quando executam
observando os momentos e os enquadramentos do trabalho idêntico; dificuldades de acesso à
especialização profissional, com barreiras ao
discurso sobre o direito ao corpo no Brasil e no Chile.
ingresso a determinadas carreiras; falta de
No caso do Brasil, a primeira publicação feminista meios que possibilitem a mulher deixar o lar
(Brasil Mulher) levanta o debate sobre o conflito entre para o trabalho, como: inexistência de creches,
as questões políticas e as reivindicações das mulheres refeitórios nas fábricas, lavanderias coletivas;
sua responsabilidade total nas tarefas
logo na primeira edição: “É impossível desvincular a
domésticas, etc. É dentro desse quadro que se
luta pela emancipação da mulher de uma luta geral colocam as problemáticas centrais do jornal
48
pela libertação do ser humano” , diz o artigo “Da Brasil Mulher hoje50.
igualdade perdida”. E é com este destaque para temas
voltados à situação política, com forte teor marxista, O jornal reconhece que “além da participação nas
que o jornal tratará as questões das mulheres. lutas mais gerais, deveria organizar-se para
Tal postura do Brasil Mulher é alvo de críticas de conquistar uma posição mais justa na sociedade
outros grupos, assumidamente feministas, que brasileira”; no entanto, no que se refere à temática do
cobram um maior comprometimento do jornal com planejamento familiar, o BM apresenta algumas
as causas das mulheres. Na segunda edição do BM, é contradições em seu discurso, pois, ao fazer a crítica às
publicada a seguinte carta, reproduzida do jornal políticas controlistas, acaba se colocando em posição
Opinião: de contrariedade ao uso de métodos contraceptivos
como a pílula, como se percebe em algumas matérias.
É decepcionante, pois, que esse jornal - bem Ao longo de suas edições, o jornal publicou diversos
impresso e barato (Cr$ 2,00) - coloque a 51
textos sobre planejamento familiar e direito ao
mulher como mais uma engrenagem do 52
sistema sócio-econômico-político, em vez de aborto , que permitem entender como estes temas
procurar valorizá-la mais do que outros eram tratados no final da década de 1970.
órgãos de imprensa”. Para E.M., Brasil Mulher O Nós Mulheres, por sua vez, assume uma postura
“não é um jornal da mulher, conforme afirmou
de defesa dos interesses específicos das mulheres, com
a primeira frase de seu editorial de
apresentação, e conforme poderíamos supor enfoque voltado às mulheres trabalhadoras e de
pelo título. De suas 16 páginas, apenas 5 camadas populares. Ganham espaço no jornal
realmente tratam diretamente da mulher. principalmente as mobilizações das mulheres e os
Todas as outras páginas tratam de assuntos
47
Ibidem, p. 29.
48
Brasil Mulher, ano 1, n. 0, out. 1975, p. 3.
49
Brasil Mulher, ano 1, n. 1, dez. 1975, p. 13
50
Brasil Mulher, Ano 3, n. 10, dez. 1977, p. 02.
51
Sobre este tema, destacam-se os textos: “Pílulas... ora, pílulas” (Ano 1, n. 1, dez. 1975, p. 6 -7), que apresenta os problemas causados pelo uso do método; “Pílula: Solução ou
problema?” (Ano 1, n. 3, 1976), com críticas às políticas de controle de natalidade; “O planejamento familiar da miséria” (Ano 2, n, 7, jun. 1977, p. 7), que argumenta que o
problema da miséria não se resolve com pílulas; e “Mulher, patrimônio social do Estado” (Ano 3, n.12, maio 1978, p. 13), que critica o programa de prevenção à gravidez de alto
risco do governo, que estaria voltado para a distribuição de pílulas, sem assistência para as mulheres.
52
No que diz respeito ao aborto, a questão é tratada nos seguintes textos: “No Brasil, o aborto é proibido. Mas acontece” (Ano 3, n. 13, jul.1978, p. 3); e “Aborto: um direito de toda
mulher” (editorial, março 1980). O BM também publicou uma série de artigos sobre sexualidade, reprodução e métodos contraceptivos, intitulada “Nosso corpo”, em 1978.
Mesmo depois da redemocratização daquele país, Legislar en favor del aborto, es legislar en
este debate a respeito da sexualidade e do direito ao favor de la vida de las mujeres. En Chile, se
corpo continua pendente, sendo prolongado ao longo presume la ocurrencia de 150 mil abortos
anuales. Todos bajo la presión de la ilegalidad,
dos anos 1990. A ditadura de Pinochet acabou com
muchos en condiciones inhumanas. (…) Al
ações de planejamento familiar: desestimulou o uso reconocer los Derechos Reproductivos de las
de contraceptivos, ordenou nos consultórios que se mujeres, al despenalizar el aborto, la sociedad
retirassem os DIUs das mulheres e derrubou a lei do estaría admitiendo nuestro derecho al placer
y 'devolviendo' el cuerpo femenino a quien
Aborto Terapêutico, que existiu até 1989. A questão
pertenece, nosotras. (…) Si se respetaran los
do aborto se insere na pauta feminista a partir deste Derechos Reproductivos, las mujeres
momento, quando o aborto passa a ser clandestino no decidiríamos, sin riesgo y con apoyo… por
Chile, não havendo nenhum permissivo legal para ahora, abortamos en silencio, escondidas,
atemorizadas, culpabilizadas algunas,
esta prática (situação esta que se mantém até hoje). Os
ayudándonos, solidarias, apoyándonos,
textos que seguem, do jornal Marea Alta, indicam a otras59.
importância deste debate:
Pode-se dizer, diante destes discursos produzidos
Aborto – debatir sin caretas: Divorcio y
pelo movimento feminista no Chile, que o principal
aborto están entre los temas que han tenido
mayores obstáculos para ser debatidos. Muy inimigo a ser combatido, durante e após a ditadura
distintos uno del otro pero ligados ambos a la militar, foi o conservadorismo da sociedade, que - em
vivencia cotidiana de las mujeres y la familia, sintonia com a ação da igreja Católica - pregava uma
están atravesados por implicaciones
determinada concepção de família em que não havia
sociales, éticas, valóricas y religiosas que
complejizan su tratamiento. (…) El divorcio espaço para questões como divórcio, aborto, liberdade
ya ha sido discutido suficientemente y existe sexual e direito ao corpo. É neste contexto que as
consenso - pese a algunos reparos – en la páginas da imprensa feminista ocupam uma
urgencia de legislar al respecto. El aborto
importância fundamental (ainda que não se possa
sigue siendo un problema pendiente57.
indicar concretamente seu alcance e influência), na
“Hablemos de aborto terapéutico” - Se trata medida em que fazem ecoar um discurso de resistência
de que el aborto sea una opción posible. Y no que contrasta com os valores hegemônicos,
de que las mujeres aborten 'como si sacaran
produzindo outras percepções e subjetividades das
una muela'. Es verdad que la ciencia médica ha
superado problemas que en el pasado fueran mulheres enquanto sujeitos capazes de decidir e agir
causa de interrupción provocada del embarazo. no meio social.
Sin embargo, han surgido otras, por ejemplo el
SIDA y la ancefalia, que aumenta,
4. Considerações Finais
presumiblemente por los pesticidas. No se
habla de aborto a destajo, ni se aborto en vez de
anticoncepción. Se habla de una ley que dé la Em uma abordagem comparativa entre o Brasil e o
oportunidad de conservar la vida a Chile, no que diz respeito às lutas das mulheres em
mujeres (generalmente pobres), que mueren
tempos de ditadura, observa-se que nos dois países as
por abortos ilegales mal hechos58.
reivindicações específicas, principalmente as voltadas
Também a revista feminista chilena Puntada con ao direito ao corpo e à sexualidade, se deram em um
Hilo, que publica matérias sobre comportamento, contexto marcado por embates com setores
sexualidade e informações sobre eventos e conservadores, cujo discurso se baseava na
56
KIRKWOOD, Julieta. Ser política en Chile: las feministas y los partidos. FLACSO: Santiago de Chile, 1986, p. 49.
57
Marea Alta, April 1994, p. 06.
58
Marea Alta, Diciembre 1993.
59
Puntada con Hilo, Año 2, n. 13, noviembre 1995.