Violencia Domestica Vol 1
Violencia Domestica Vol 1
Violencia Domestica Vol 1
Edição especial
COORDENAÇÃO
Lígia Vasconcelos
DESENVOLVIMENTO DO SITE
DIAGRAMAÇÃO
Ana Costa
REVISÃO
PATROCÍNIO:
2018
Nota do apoiador
Paula Duran1
“Apenas porque eles não batem em você não significa que não
é abuso.
Você não pensaria que é um crime olhar para o céu bem alto à
noite & dizer às estrelas que elas não têm nenhum brilho?
Adivinhe?
(LOVELACE, 2017)
1 Advogada militante desde 2004, especialista em Direito Processual Civil, com escritório
na cidade de Bragança Paulista, SP, e atua nas áreas cível, criminal e de direito de família.
E-mail: paula@cpadvogadas.com.br.
9
Na trama, o marido manipula sua mulher com sutileza
até convencê-la de que ela imagina coisas, de que tem lembranças
distorcidas das discussões e até a faz duvidar de sua própria
sensatez.
Trata-se de um abuso machista.
O gaslighting é uma violência sutil e manipuladora, praticada
na clandestinidade da relação íntima, através da qual o agressor
age de forma repetida para desgastar a autoestima e a confiança da
mulher, menosprezando suas opiniões e gostos, destruindo sua auto
imagem positiva, anulando seus desejos próprios e enchendo-a de
medo e dúvidas sobre si, seu valor, suas capacidades pessoais e até
sua sanidade.
“Você está paranoica”, “você é exagerada”, “você inventa
isso na sua cabeça”, “você não sabe o que está falando”, “você só diz
bobagens”, “você não serve mesmo pra nada”, “você deveria estar
agradecida a mim”, eles dizem. E repetem muitas e muitas vezes.
De forma bastante cruel, a vítima vai se deixando abusar, pois
não tem consciência de que está sendo violentada psicologicamente3,
e passa a podar seus próprios atos para não desapontar ou desagradar
o algoz.
A violência vem quase sempre disfarçada de bom mocismo,
vitimismo, opinião, conselho ou dica, ocasiões em que o agressor tem
como pretexto unicamente “fazer o bem”, “ajudar”. E, como em outras
formas de violência, o abusador oscila entre ataques e afetos.
Vale dizer que o gaslighting é difícil de ser compreendido.
Isso se dá porque não há uma agressão física ou um crime
3 Muitas vítimas só adquirem a consciência do abuso quando buscam ajuda para lidar
com as consequências dele, como, por exemplo, apatia, perda ou ganho de apetite,
depressão, síndrome do pânico, etc., ou quando a violência psicológica se faz acompanhar,
finalmente, pela violência física.
10
contra a honra propriamente dito4, mas há o ataque à dignidade da
mulher.
Muitas vezes, também, o agressor é extremamente gentil e
amistoso com os amigos e familiares, que então classificam as queixas
da vítima de “exagero”, “problemas de todo casal” ou fruto de
sensibilidade exacerbada.
Além disso, após tempos de abuso, a própria vítima
(convencida de que não tem valor algum) se isola de amigos e
familiares, o que agrava o cenário de devastação psicológica.
Perante as autoridades policiais e judiciais há também
dificuldade de caracterizar o abuso psicológico.
Primeiro, porque frequentemente não há provas físicas (cartas,
e-mails, mensagens, gravações de áudio e vídeo, por exemplo).
E, em segundo lugar, porque a vítima que busca ajuda já
chega fragilizada e, não raro, não recebe o acolhimento necessário
para narrar com segurança e detalhes todas as afrontas que sofreu ao
longo da relação.
A violência psicológica de gênero sofrida no ambiente
familiar encontra, então, os obstáculos e entraves que ainda precisam
ser superados fora do lar e a vítima há de ser extremamente corajosa
para prosseguir buscando justiça para si.
A Lei Maria da Penha foi instrumento fundamental para que
o debate sobre o gaslighting viesse à tona.
11
Já no início do diploma legal, o artigo 2º, que diz dos direitos
inerentes à pessoa humana da mulher, menciona, dentre eles, o de ter
asseguradas as oportunidades e facilidades para preservar sua saúde
mental.
Quando o art. 5º traz, por sua vez, a configuração da violência
doméstica e familiar, aponta qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que cause à mulher, dentre outros danos, sofrimento
psicológico.
Mais enfático, o art. 7º, em seu inciso II, ao enumerar as formas
de violência doméstica e familiar contra a mulher, aponta a violência
psicológica, definindo-a como
“qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que
lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
12
virgem no corpo social.
Principalmente no âmbito doméstico, frustrações de toda
a ordem vêm à tona e o machismo arraigado acaba por encontrar
naquela fêmea disponível uma presa fácil.
É preciso, pois, trabalhar os mecanismos da Lei Maria da
Penha também para sensibilizar a população através de campanhas e
programas de atendimento, formar os profissionais que atendem às
vítimas, não só no âmbito policial e judicial, mas também no âmbito
médico.
Desta forma, as vítimas poderão ser acompanhadas, auxiliadas
no processo de construção de seus dolorosos relatos, acreditadas,
acolhidas, e, sobretudo, poderão buscar retomar a liberdade
primordial que lhes foi roubada, ou seja, poderão se empoderar.
Empoderar significa fortalecer, dar condições para
o surgimento e a manutenção da autoconfiança, propiciar o
crescimento.
Desse contexto surge o empoderamento feminino, que deve
ser palavra de ordem em todos os recônditos.
Precisamente diante do gaslighting, o empoderamento
feminino é fundamental para que as mulheres em situação de
violência psicológica consigam se auto perceber nessa condição, para
que tenham conhecimento dos seus direitos, para que reúnam forças
para o enfrentamento desse caos, e para que, um dia, mulher alguma
seja emocionalmente violentada.
13
Referências Bibliográficas
14
PANORAMA HISTÓRICO E LEGAL SOBRE A
LEI N° 11.340/2006
Carol Paiva1
15
doméstica e familiar contra a mulher.
16
226, § 8°, estabelece que “O Estado assegurará a assistência à família na
pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”. Contudo, apenas em 2006, em
virtude da condenação imposta ao Brasil pela CIDH, foi-se criada a
Lei Maria da Penha.
2 Art. 5°. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150,
de 2015) I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade
ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
17
como unidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, ou seja, não importa o “local” em que a violência foi
praticada. Nesta situação, o vínculo entre agressor e vítima deverá
ser de natureza familiar3, o que inclui a parentalidade socioafetiva,
conforme entendimento de Maria Berenice Dias.
O inciso III traz a terceira hipótese de ambiência na qual
“qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. A corrente
mais ampla, defendida por Rogério Sanches afirma que a relação
íntima de afeto consiste em qualquer relação estreita entre agente
e vítima (ex.: camaradagem, confiança, amor etc). A corrente mais
restrita explica que relação íntima de afeto é dotada de conotação
sexual ou amorosa. Segundo esta corrente, a amizade não configuraria
hipótese de violência doméstica4.
5 Art. 7°. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a
violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida
como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza
a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou
18
violência doméstica e familiar contra a mulher: violência física (inciso
I), psicológica (II), sexual (III), patrimonial (IV) e moral (V).
Chamada pela doutrina de vis corporalis, a violência física é
entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal, como fraturas, fissuras, queimaduras, perturbações
fisiológicas (saúde corporal, provocações internas no organismo,
como vômitos) etc.
A violência psicológica consiste em qualquer conduta que
lhe cause dano emocional ou diminuição da autoestima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise desagradar
ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e
vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica
e à autodeterminação.
A violência doméstica sob a conotação sexual é entendida
como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou
a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força. Consiste também em conduta que a
induza a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sexualidade,
que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante
coação, chantagem, suborno ou manipulação, além de conduta que
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Pode caracterizar crime contra a liberdade sexual, como estupro, por
19
exemplo.
Ademais, a violência patrimonial é entendida como qualquer
conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades.
E, por fim, a violência moral que se materializa com qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Para o direito penal tradicional, quando se fala em violência
moral significa grave ameaça, ao passo que a violência comum é a
física. A violência moral no âmbito da Lei Maria da Penha tem alcance
diferente da Lei Penal Tradicional.
V. Considerações finais
Embora com legislação nacional própria tardia, a Lei Maria
da Penha representa um escudo de proteção às vítimas de violência
doméstica e familiar. Bastante difundida, a referida Lei estampa os
números absurdos de casos de violência contra a mulher.
Esses dados trazem uma conclusão importantíssima, muitas
vítimas ouvem falar da Lei Maria da Penha, mas não conhecem o seu
alcance. A principal mensagem que a pesquisa traz é o embasamento
mínimo para as vítimas e possíveis vítimas conhecerem e combaterem
a violência contra a mulher, bem como as hipóteses e mecanismos
legais que o ordenamento jurídico brasileiro traz.
20
Referências Bibliográficas
21
MARIA DA PENHA:
A LEI – RETRATO DO BRASIL (EIRO)
Jacqueline Galdino1
Resumo
No dito popular é muito comum ouvir que “Em briga de
marido e mulher, não se mete a colher” e até pouco tempo atrás era
exatamente assim que a violência doméstica era tratada pela sociedade,
com olhares distantes e sem maiores interferências. Todavia, no dia 7
de agosto de 2006, foi sancionada a Lei n°11.340 – Lei Maria da Penha
– que recebeu este nome graças à luta da farmacêutica cearense Maria
da Penha Maia Fernandes, que, mesmo após ter sido baleada por seu
ex marido enquanto dormia somado às outras barbáries continuou
com a sua luta incansável por justiça.
Hoje a lei supracitada é uma importante ferramenta no
combate à violência familiar e doméstica contra as mulheres, pois ela
não abrange somente a agressão física, mas também abusos sexuais,
patrimoniais, psicológicos e morais com um adendo de que não
precisa obrigatoriamente ser cônjuge, basta que haja algum tipo de
relação afetiva.
Em síntese, a lei que completa 12 anos de existência este ano
é, claramente, uma resposta do legislador à uma sociedade violenta
e machista que se apresenta até então, uniformizando a devida
punição àqueles que descumprem as medidas estabelecidas na Lei
Maria da Penha. O fato é que a violência contra a mulher é uma
realidade brutal e as estatísticas não mentem; reconhecer os avanços
22
que obtivemos é fundamental, mas a vigilância deverá ser constante
para não perdermos o pouco de progresso que temos.
Introdução
A Lei Maria da Penha, n°. 11.340 editada em 7 de agosto de 2006,
é, antes de mais nada, uma referência na proteção à violência contra a
mulher. Ao longo desses 12 anos ela se consolidou e foi aplicada em
diversos casos de violência doméstica, e não obrigatoriamente vinda
do companheiro afetivo. A violência cometida por um pai contra
uma filha ou mesmo de um filho contra o pai, já foram enquadradas
por essa Lei; transexuais, transgêneros e travestis também são
constantemente protegidos por essa Lei histórica.
A Lei Maria da Penha é o retrato cabal e minucioso de uma
sociedade violenta, patriarcal, machista e antípoda de alicerces
institucionais e direitos, elementos que balizam a franzina arquitetura
civilizatória brasileira. Ela revela o contexto social em que vivemos
e como tal sociedade é machista e espancadora de mulheres, vide
recente pesquisa realizada pelo Ministério Público de São Paulo
– MPSP2na qual, duas em cada três vítimas de feminicídio foram
mortas dentro de suas casas.
Em linhas gerais, a referida Lei, nos artigos 5° e 7°, estabelece
os requisitos que configuram a violência doméstica contra a mulher,
quais sejam: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial. É dizer: há punição ao agressor, mas, não
resolve o problema em sua origem, pois não fecha essa fonte de
25
protetivas de urgência e estabelece punição aos agressores, assim,
quem descumprir a decisão que estabelece a medida protetiva de
urgência ficará sujeito a detenção de 3 meses a 2 anos. Com essa
mudança o agressor poderá ser processado por mais um crime de
violência contra a mulher além daquele que levou a instituição da
medida protetiva.
Considerando também a baixa infraestrutura judiciária
disposta nos municípios, de rigor a vigilância constante para que a
aplicação da lei seja dada de forma igualitária em todo o país, pois
nessas pequenas cidades tem havido uma incidência exponencial da
violência contra a mulher3 sem contar o descaso do poder público
nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos4 no tocante à
criação de políticas públicas e afins.
Conclusão
Em outras palavras, ainda é perceptível traços culturais
machistas, de que o homem possui ampla liberdade e a mulher, não;
quando a mesma se insurge, é retraída e, na maioria dos casos agredida
em sua própria casa. No decorrer desses 12 anos de existência, a Lei
Maria da Penha constituiu uma base importante na luta das mulheres
brasileiras contra a violência doméstica, isso é fato e é louvável para
nós, mulheres.
A luta por um tratamento isonômico em relação aos homens
3 Tomazela, José Maria. Violência contra mulher no interior de São Paulo supera pelo
menos 3 vezes a da capital. 2017. Disponível em: <https://sao-paulo.estadao.com.br/
noticias/geral,violencia-contra-mulher-no-interior-de-sp-supera-pelo-menos-3-vezes-a-
da-capital,70001793898> Acesso em 12 de julho. 2018.
26
e por um Estado menos violento e assassino é uma batalha sem data
para acabar; os lares contaminados com essa mazela, têm exposto dia
a dia indivíduos criminosos e cruéis na sociedade.
Portanto, em tempos em que o óbvio precisa ser reiterado
ressaltar a importância da Lei Maria da Penha, principalmente por
abarcar minuciosamente o que é a realidade da violência doméstica
contra a mulher, se faz necessário, já que essa violência não se resume
apenas à agressões físicas, mas também as violências patrimoniais,
psicológicas e morais, que costumam deixar nas mulheres marcas
profundas e dolorosas tanto quanto as de uma agressão física.
27
Referências Bibliográficas
28
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA SOCIEDADE
ATUAL.
Amanda da Motta1
Resumo
O artigo trás uma reflexão da violência contra a mulher em
pleno século XXI, além de abordar os avanços que foram conquistados
pelas mulheres, os retrocessos que se vivem na atual sociedade,
os preconceitos as quais as mulheres ainda sofrem. E como essas
mulheres do século XXI vivem e convivem numa sociedade ainda tão
patriarcal, racista e machista como a brasileira, apesar da conquista
da Lei 11.340/2006. Uma reflexão feita a partir de pesquisa em leituras
de livros e de artigos virtuais, o que se será que devemos esperar para
o próximo século?.
Introdução
A realidade das mulheres brasileiras em pleno século XXI,
ainda é recheada de preconceitos e do machismo, que se vive no
dia dia em sociedade. Muitas mulheres ainda hoje são vistas como
propriedades de seus companheiros, maridos, amantes e namorados.
Em que pese às conquistas dos movimentos de mulheres e
movimentos feministas, ainda encontramos inúmeros exemplos que
apresentam a discriminação pela qual passa a mulher na sociedade
brasileira, notadamente, no âmbito familiar.
Neste ensejo, o estudo em questão tem como referência a vida
da mulher brasileira no lar, no trabalho e na vida social, para assim
29
fazermos um paralelo, sobre os dias atuais e o século passado, sobre o
que mudou o que continua igual, se houve avanços, quais os retrocessos
e o que falta para se alcançar a autonomia e o empoderamento da
mulher no Brasil. Tendo em vista que durante séculos prevaleceu
à cultura da discriminação da mulher nas questões afetas ao abuso
sexual e outros tipos de abusos, mas com ênfase ao sexual.
Por este motivo, o objetivo do presente trabalho é demonstrar
a existência ainda hoje da cegueira de gênero na sociedade
contemporânea, haja vista que a mulher mesmo enquanto vítima,
muitas vezes ainda é responsabilizada pela ocorrência do delito.
Sendo assim, não dá mais para tolerar que atos de violência,
discriminação e preconceito sejam reproduzidos numa sociedade
como a brasileira, muito menos eternizar as violências sofridas pelas
nossas mulheres, e permitir que ainda continuássemos a ser o quinto
País que mais mata e violenta suas mulheres.
Observa-se que apesar da existência de normas que
contemplem as perspectivas feministas, a sua aplicabilidade deixa
de cumprir o atendimento normativo, visto que as suas bases estão
construídas no projeto de poder gerando a discriminação contra as
mulheres, um poder vindo do homem para o homem.
É importante frisar que esta cultura patriarcal não é uma
exclusividade dos homens, mas também de mulheres que refletem
esse machismo da cultura onde vive.
2 Romy Medeiros da Fonseca – foi uma advogada e feminista brasileira. Também foi
autora da revisão em 1962 da situação da mulher casada no Código Civil Brasileiro.
Militou em várias organizações em defesa dos direitos das mulheres.
30
defendeu no Senado o projeto que deu origem ao “Estatuto da Mulher
Casada”, lei que alterou artigos do Código Civil então vigente, de
1916, mudanças que deram à mulher o direito de trabalhar fora de
casa sem pedir autorização do marido ou do pai e o direito à guarda
do filho, em caso de separação.
Ao longo das décadas, as mulheres obtiveram muitas
conquistas, como o aumento do número de postos no mercado de
trabalho, nos bancos acadêmicos, nas lideranças de empresas e no
poder público3.
Outro avanço conquistado pelas mulheres no Brasil foi à
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, que
além de ser uma Constituição cidadã e garantista, veio dar à mulher
a igualdade de gênero e vários direitos humanos, trazendo assim em
seu bojo um dos artigos mais importante que garantem às mulheres
direito à igualdade (artigo 5º, inciso I)4, e também artigos ratificando
os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário
(artigo 5º, parágrafos 2º e 3º da CRFB/1988)5.
3 Uma das conquistas mais importantes para a mulher no Brasil foi o direito ao voto, o
voto feminino foi concedido com o decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório, após
intensa campanha nacional, com essa vitória e a participação feminina nas eleições, a
mulher passou a conquistar cada vez mais o seu espaço no cenário político, principalmente
com o direito de poder escolher seus representantes.
A luta pelo voto feminino no Brasil iniciou-se em 1910, quando a professora Deolinda
Daltro fundou, no Rio de Janeiro, o Partido Republicano Feminino. Porém, manifestações
mais contundentes só ocorreram em 1919, quando a bióloga Bertha Lutz fundou a “Liga
pela Emancipação Intelectual da Mulher”.
31
Apesar de a Constituição brasileira ser uma constituição
cidadã, somente em 2006 o Estado Brasileiro criou a lei nº
11.340/2006, que ganhou o nome de Lei Maria da Penha, em
homenagem à Farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, após
ser internacionalmente responsabilizado por omissão e falta de
legislação específica que tratasse o assunto da violência doméstica e
familiar contra as mulheres.6
Não tem como se negar que as mulheres conquistaram direitos
e espaços políticos ao longo dos anos, e que também ocuparam
espaços sociais e econômicas que eram exclusivos aos homens.
O sistema patriarcal se estabelece como uma forma do
sexo masculino ter o poder em suas mãos, e garantir a opressão e
submissão das mulheres, as tornando seus objetos de satisfação
sexual, reprodutoras de seus herdeiros e de força de trabalho7.
As necessidades do gênero feminino não são consideradas
como igualmente humanas, sendo sempre tidas como especiais.
Neste diapasão, só têm importância algumas diferenças biológicas,
como a gestação e a amamentação, para as quais são criadas proteções
especiais. Sendo que muitas vezes essas diferenças que remetem
às mulheres como seres inferiores, o que ocasiona humilhações,
discriminações e violência.
Fica claro ainda, que na sociedade patriarcal, há constante
ameaça de agressões masculinas que assombram as mulheres e que
funcionam como mecanismo de sujeição destas aos homens8.
feministas que, na década de 1970-1980, assumiram as ruas do Brasil para protestar contra
as discriminações, desigualdades e todas as formas de violência contra as mulheres.
6 SOUZA, Mércia Cardoso de; BARACHO, Luiz Fernando. Lei Maria da Penha: Égide,
Evolução e Jurisprudência no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas
Serro. n. 11, p.81. jan – ago. 2015.
7 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 105.
32
Neste mesmo sentido, Sabadell afirma que o Direito é
essencialmente masculino, por se apresentar enquanto sistema que se
propõe a ser democrático racional e ativo e, na lógica por ele mesmo
constituída, proteger os interesses masculinos.9
A luta pelo reconhecimento de direitos vem sendo perseguido
a século pelas mulheres e precisa ser articulada em ações no âmbito
social, principalmente no sentido de unir e fortalecer as mulheres para
uma militância de lutas com a finalidade de alcançar o diálogo com a
sociedade, discutindo a violência de gênero, o racismo e defendendo
o empoderamento das mulheres, assim poderá ser obter a diminuição
da violência contra a mulher.
33
dizem: “apanhou, porque aprontou” ou mesmo “deve ter feito algo
para merecer este castigo” ou por vezes em depoimentos o agressor
declara “que não sabe por que bateu, mas a mulher sabe porque
apanhou”. Essas palavras são proferidas não só por homens, mas
pelas próprias mulheres que retratam o machismo da sociedade em
que vive, expressando uma cegueira de gênero.
Neste contexto, afirma Silvia Pimentel10 que:
“muito mais do que um desafio é um imperativo ético e
jurídico a superação da cegueira de gênero, que mina a efetividade
dos Direitos Humanos das mulheres. Cegueira, por parte da sociedade
enquanto um todo, cegueira dos profissionais de Direito e, inclusive,
ainda, cegueira de muitas mulheres”.
34
de discussão não é a violência sexual sofrida pela vítima, mas o seu
comportamento e sua moral sexual. Nestes casos, a mulher submetida
a uma segunda vitimização. A primeira é a agressão praticada pelo
agressor e a segunda decorre da forma como a vítima é tratada pelo
sistema de justiça”. (Sabadell,1999,Cerretti e Moretti, 2002).
35
Conclusão
Após um estudo analítico da desigualdade de gênero,
percebesse que a violência contra a mulher é um reflexo da relação de
poder, que foi construída de valores a ele vinculados para conceder
poder e glória a um só ser, “o homem”, que sempre se julgou maior
e superior. Colocando, ao longo dos séculos, a mulher como peça de
seu jogo - subordinada e obediente ao homem.
Reflita que a nossa história foi conduzida e contada sob
a perspectiva dos homens, o qual deteve o poder durante toda a
existência da humanidade e o horizonte da história feminista ainda é
recente, mas isso não quer dizer que não seja significativo, ao contrário,
é uma história de muitas lutas, batalhas, avanços, retrocessos, dor e
resistências.
Infelizmente é possível perceber que nenhum país atingiu a
equidade de gênero e por consequência, a igualdade de direitos. De
fato, muitos avanços aconteceram e o olhar para a mulher passou a
minimamente existir. Muitas vezes um olhar garantido através de
políticas públicas afirmativas, é o que traz o foco da política para as
mulheres e promove o debate trazendo a oportunidade de discussão,
garantindo o espaço desta luta histórica e gradativamente colocando
as mulheres em espaços que eram exclusivamente dos homens.
36
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da
mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania.
Sequência, Florianópolis, v. 18, n. 35, p. 42-49, 1997.
BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade:
hierarquias sociais e enfrentamento no contexto de Belo Horizonte. 2008.160f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós Graduação em
Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
BEAUVOUIR, Simone de. O Segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em
5 de outubro de 1988/ obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a
colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha
– 53 ed.,atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016. – (Coleção Saraiva de
Legislação);
CUNHA, Bárbara Madruga da. Violência contra a mulher, direito
e patriarcado: perspectivas de combate à violência de gênero. Artigo
Classificado em 7º lugar na XVI Jornada de Iniciação Científica de Direito
da UFPR 2014. Disponível em: <http://www.direito.ufpr.br/portal/wp-
content/uploads/2014/12/Artigo-B%C3%A1rbara-Cunha-classificado-em-
7%C2%BA-lugar.pdf.>. Acesso em: 05 nov.2016.
JESUS, Damásio de, Violência contra a mulher: aspectos criminais da
Lei nº 11.340/2006/Damásio de Jesus. – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva.
ESTUPRO: restabelecida pena de jovem absolvido por “beijo
roubado”. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/
Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Sexta-Turma-
cassa-decis%C3%A3o-que-considerou-estupro-como-se-fosse-beijo-
roubado>. Acesso em: 3 nov.2016.
FACIO, Alda. Hacia outra teoria crítica Del Derecho. In: Género y
Derecho. Santiago: LOM Ediciones, 1999, p. 27-30.
FERNANDES, Daniel. Lista aponta o Brasil como o quinto país mais
violento para mulheres e as capitais mais violentas. Disponível em: <https://
www.epdonline.com.br/noticias/lista-aponta-o-brasil-como-o-quinto-mais-
violento-para-mulheres-e-as-capitais-mais-violentas/1758>. Acesso em 9
nov. 2016.
FERREIRA, Olgamir Amancia. Desconstruir a cultura patriarcal,
desafio de homens e mulheres. Disponível em: < http://www.vermelho.org.
br/noticia/265903-1>. Acesso em: 06 nov.2016.
LISBOA, Teresa Kleba; OLIVEIRA, Catarina Nascimento de. Serviço
37
Social com Perspectiva de Gênero: o que a “cegueira ideológica” não permite
ver. Revista Feminismos. Universidade Federal da Bahia. Vol. 3, N.2 e 3,
p.105. Mai - Dez. 2015.
<https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-
mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/> publicado em 09/04/2016,
atualizado em 12/04/2016, acesso em 10 dezembro 2016.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: Novos
Paradigmas –São Paulo: Saraiva/2014. p.21.
NETTO, Helena Henkin Coelho; BORGES, Paulo César Corrêa. A
Mulher e o Direito Penal Brasileiro: entre a criminalização pelo gênero e
a ausência de tutela penal justificada pelo machismo. Revista de Estudos
Jurídicos – UNESP – a. 17, n. 25, 2013, p. 317.
OLSEN, Frances. El sexo delderecho. In: The Politics of Law. Nova
Iorque: David Kairys, 1990, p. 12.
PIMENTEL, Sílvia. A superação da cegueira de gênero: mais do que
um desafio – um imperativo, Revista Direitos Humanos, Número 02, Artigo,
p. 30, Junho 2009.
SABADELL, Ana Lucia, Manual de Sociologia Jurídica – Introdução
a uma leitura externa do direito, 6ª Edição, Revista, Atualizada e Ampliada
– São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013., p. 227.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 105.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Trad.
G.Lopes Loro. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, ano 2, v.16,p.5-22,
jul./dez.1990.
SILVIA, Lillian Ponchio e. Sistema Penal: Campo eficaz para a
proteção das mulheres?. In: BORGES, Paulo César Corrêa (Org). Sistema
Penal e Gênero: Tópicos para a emancipação feminina. São Paulo/SP: Cultura
Acadêmica, 2011, p. 12.
SOUZA, Mércia Cardoso de; BARACHO, Luiz Fernando. Lei Maria
da Penha: Égide, Evolução e Jurisprudência no Brasil. Revista Eletrônica do
Curso de Direito - PUC Minas Serro. n. 11, p.81. jan – ago. 2015.
TURMA do STJ condena por estupro jovem que beijou adolescente
à força. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-out-19/jovem-
beijou-adolescente-forca-condenado-estupro>. Acesso em 2 nov. 2016.
<http://www.tre-es.jus.br/imprensa/noticias-tre-es/2014/
Fevereiro/82-anos-da-conquista-do-voto-feminino-no-brasil> - Acesso em
10 nov. 2016.
38
Violência contra a mulher:
a pandemia brasileira
Resumo
O presente artigo visa demonstrar como a violência contra a
mulher, no contexto doméstico e familiar, mesmo após a promulgação
da Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), continua a assolar os
lares brasileiros, culminando com a morte de muitas - pela prática
do denominado “feminicídio”, considerado crime hediondo desde
2015 – a tornar o País alvo dos olhares de todo o mundo, pois é o
5º País mais perigoso do mundo para as mulheres, de acordo com a
Organização Mundial de Saúde2 (OMS).
O crescimento da violência demonstra que a penalização
por si só, sem o efetivo combate à violência, não é capaz de
solucionar o problema da violência contra a mulher, já considerado
uma “pandemia” pela ONU do Brasil34, requerendo discussões
4 Pelo menos 12 mulheres são mortas por dia, de acordo com os dados da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). BBC NEWS. País por país: o mapa que
mostra os trágicos números dos feminicídios na America Latina. Publicado em 06 de Dezembro
de 2016. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38076091. Acesso
em 24 de Julho de 2018.
39
aprofundadas sobre a temática, de forma a influenciar e promover a
independência da mulher, bem assim contribuir com a educação e o
trabalho, uma vez que a omissão nesse sentido coloca em risco não
só a mulher, mas, também, a própria família e toda a coletividade
feminina.
Por essa razão, são necessários o combate eficaz e a postura
mais rígida aos agentes, frente ao retrocesso causado pela violência.
Com isso, a postura ativa do Estado é de grande importância para
que os valores sociais sejam modelados na igualdade material e no
combate à violência como um todo.
Introdução
40
concentram apenas nas grandes capitais, esquecendo-se das cidades
do interior, o que dificulta que a vítima realize a denúncia e, apenas
quando há a morte da mulher, ela passa a integrar as estatísticas
de feminicídio. Ou seja, as estatísticas de denúncias e combates à
violência doméstica – antes da morte da mulher – são ignoradas por
inexistirem delegacias especializadas suficientes e acessíveis.
Ademais, importante considerar que, embora muitas mulheres
fazem mais de uma denúncia para combater o mal que sofrem, há
aquelas que, por medo de repressão, ignorância quanto aos seus
direitos e garantias ou dependência financeira, não voltam a fazê-la,
o que demonstra a falha do Poder Público em promover esforços no
combate à violência pela educação e pela promoção de emprego, já
que o desconhecimento dos direitos e a dependência financeira dos
seus agressores, por vezes, são causas da inércia das mulheres em dar
continuidade à denúncia.
41
das quais o Brasil faz parte e é signatário de tratados contra a
violência às mulheres, o colocaram no alvo de olhares do mundo
para que tomasse medidas satisfatórias e punisse os agressores.
Então, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Comitê
Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
(CLADEM- Brasil), peticionaram ao país para que medidas fossem
tomadas neste sentido e, em razão disso, após alguns anos, a Lei
Maria da Penha7, foi aprovada.
Dois anos antes da promulgação da Lei Maria da Penha, a Lei
nº 10.886/2004 modificou o Código Penal8, alterando-o para que em
seu artigo 129 fossem acrescidos os §§ 9º e 10, voltados ao combate da
violência doméstica:
Art. 129.
[...]
7 Conviveu durante 23 anos com o marido e agressor, Marco Antônio Heredia Viveros
– condenado a 19 anos de prisão e cumprindo apenas dois anos em regime fechado - que
tentou assassiná-la por duas vezes em 1983, a primeira deixando-a paraplégica por tiro
de arma de fogo enquanto dormia e a segunda por eletrocussão e afogamento durante o
banho. Hoje, ela é militante pelo fim da violência doméstica e familiar contra a mulher,
autora do livro “Sobrevivi...posso contar” (2010) e precursora do Instituto Maria da Penha
(IMP).
42
Porém, apesar dos esforços, por se tratar de mera contravenção
penal, a pena aplicada estabelece prisão simples e/ou multa (conforme
art. 1º da Parte Geral do Código Penal), tratando-se de competência
do Juizado Especial Criminal, haja vista que a pena é de até 2 anos.
Assim, tendo em vista que o artigo permite o pagamento
de multa, não raras as vezes, era o que ocorria. Os agressores eram
liberados mediante o pagamento da multa e, assim, voltavam ao
convívio com a vítima.
Em 2006, com a aprovação da Lei Maria da Penha, foram
criados mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
no que se refere às agressões físicas, morais, sexuais, materiais e
psicológicas.
Foram criadas as Delegacias Especiais da Mulher com o intuito
de proporcionar um ambiente seguro para a realização da denúncia
pela vítima ou por alguém que tenha conhecimento das agressões,
como também surgiram os Juizados de Violência Doméstica e
Familiar Contra Mulher, além do preparo dos atendentes pelo Disque
denúncia (180) quando o assunto for violência doméstica.
A Lei atende aos preceitos constitucionais presentes no §8º
do art. 226 da Constituição Federal9. Este §8º é também utilizado
como argumento para declarar a constitucionalidade da lei uma vez
que, após sua promulgação, houve quem entendesse que a Lei seria
uma forma de superproteção das mulheres, o que as desigualava em
relação aos homens, já que estes estariam protegidos apenas pelo
Código Penal.
Como consequência dessa discussão, muitos Juízes, à época,
negaram-se a aplicar a Lei Maria da Penha, fazendo com que surgisse
a controvérsia que, nas palavras de Luciana Russo10 (2009):
10 RUSSO, Luciana. Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
43
[...] surge [a controvérsia] quando uma lei ou ato normativo
federal é produzido e começa a ser questionado via controle difuso,
havendo uma proliferação de ações, muitas das quais declaram a
norma inconstitucional, afastando sua aplicação ao caso concreto.
11 BRASIL. STF. ADC 19: dispositivos da Lei Maria da Penha são constitucionais. Disponível
em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199845. Acesso
em 24 de Julho de 2018.
44
vigência da Lei, devido ao pouco conhecimento sobre ela ou, ainda,
ante o receio da denúncia, o que foi mudando nos anos seguintes à
lei, sendo aumentado ano a ano.
Importante salientar que essas denúncias não são
necessariamente realizadas apenas em face de agressor homem,
embora seja a maioria dos casos, mas também contra qualquer
agressor na relação doméstica e familiar, independente de qual o
sexo, parentesco ou forma da relação, conforme própria definição
legal.
Por este motivo, em relações homo afetivas violentas ou
violência cometida por ascendente ou descendente, a lei pode ser
aplicada.
Este tipo de violência é caracterizada por ter um “formato
circular”, conhecido como ciclos de violência, que começa com o
aumento da tensão por brigas, injúrias e ameaças, deixando a vítima
com sensação de perigo eminente. Parte para o ataque violento, sendo
físico ou psicológico, independente da frequência e intensidade.
Após, o agressor “arrependido” torna-se carinhoso, tratando aquele
caso como sendo isolado e que não se repetirá. Porém, é sabido que
muitas vezes volta a acontecer, levando por vezes à morte; Neste
caso, trata-se de feminicídio, que é o termo utilizado para a violência
contra mulheres, resultante em morte, por razão do gênero:
O assassinato de mulheres em contextos marcados pela
desigualdade de gênero recebeu uma designação própria: feminicídio.
No Brasil, é também um crime hediondo desde 2015. Nomear e definir
o problema é um passo importante, mas para coibir os assassinatos
femininos é fundamental conhecer suas características e, assim,
implementar ações efetivas de prevenção.12
45
Segundo Alice Bianchini13, em sua palestra “10 anos da Lei
Maria da Penha: O que aprendemos?”, a mulher, vítima de violência,
leva de 9 a 10 anos para sair desse contexto, pois, por depender
financeiramente – também emocionalmente - do agressor, permanece
na relação para que seus filhos não sucumbam ou, ainda, por medo
de novas agressões e ameaças contra sua vida. A autora também frisa
a permissividade com esse tipo de violência, já que outras, como a
violência contra os menores ou idosos, por exemplo, são de grande
reprovabilidade, consideradas inadmissíveis, em contraposto, contra
a mulher, é considerada natural, parte da sociedade ou, até mesmo,
justificada por alguns dos comportamentos dela, tornando a violência
plausível como forma de correção.
Conclusão
Ainda há muito o que se avançar pela efetiva melhoria na
situação das vítimas de violência doméstica e não há tempo para o
Estado postergar a tomada de medidas, pois continuarão a ocorrer as
mortes pelo gênero nas relações domésticas, familiares ou íntimas de
afeto. As mulheres, mesmo sendo a maioria da população, continuam
em situação desigual, pagando com suas vidas o alto preço da
violência.
13 BIANCHINI, Alice. Palestra “10 anos da Lei Maria da Penha: o que aprendemos?”, na
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Minas Gerais. Publicado em 29 de setembro de
2016. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=s8Y3Ofqh6rs&t=43s. Acesso em
23 de julho de 2018.
46
suas mortes – feminicídio - e o destroçamento de famílias.
Estes graves casos de violência poderiam ser evitados se
medidas fossem tomadas para o seu combate e prevenção, para que o
ambiente pacífico seja a realidade dos lares brasileiros.
Na Lei Maria da Penha, que busca ajudar as mulheres e suas
famílias, ainda devem ser criados mecanismos mais severos que,
efetivamente, devem ser cumpridos, capacitando aqueles que com
ela trabalham, de forma a deixar o ambiente seguro para a denúncia
e punir os responsáveis.
Ademais, a educação, quando efetiva, proporciona
independência e igualdade, e, tratando todos os cidadãos como iguais,
um não se sentiria no poder sobre o outro, com maior capacidade
crítica, podendo assim, efetivamente haver mudanças.
47
Referências Bibliográficas
BBC NEWS. País por país: o mapa que mostra os trágicos números
dos feminicídios na America Latina. Publicado em 06 de Dezembro de 2016.
Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38076091.
Acesso em 24 de Julho de 2018.
48
#InvisibilidadeMata. 2016. Disponível em http://agenciapatriciagalvao.org.
br/wp-content/uploads/2017/03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.pdf.
Acesso em 24 de Julho de 2018.
49
Entraves para a igualdade de gênero
Alice Bianchini1
Resumo
Pesquisas mostram que quanto maior a desigualdade entre
homens e mulheres em dada sociedade, maior é a violência de gênero.
Por ser a violência doméstica e familiar contra a mulher uma questão
arraigada, normalizada, estrutural e cultural, seu enfrentamento
exige mudanças sociais, alterações de forma de pensar, de agir e de
reagir frente ao fenômeno. Exige também que se possam conhecer os
principais entraves para a igualdade de gênero: 1) manutenção dos
papéis de gênero e de atitudes sexistas; 2) a desigualdade estrutural
entre homens e mulheres. É deles que o presente artigo trata.
Introdução
Permanece em nossa sociedade uma ideia ainda circulante
que sustenta a “natural” aptidão dos homens para o comando, para
o destino das coisas privadas e públicas, para as decisões relevantes
que envolvem o destino da nação e que dizem com a sociedade ou a
família, em razão de características consideradas a eles inerentes.
Pesquisa realizada em 27 países, no ano de 2017, mostra
que, no Brasil, 19% dos homens acham que a mulher é inferior
50
aos homens, contra 14% das mulheres2. E, o que é pior, quase
40% das meninas brasileiras de 6 a 14 anos discorda que são tão
inteligentes quanto os meninos e desistem de fazer atividades
por conta desse sentimento.3
São dois os principais pilares de tal estado de coisas:
manutenção dos papeis de gênero e de atitudes sexistas, de um lado e
desigualdade estrutural entre homens e mulheres, de outro. “Em razão dos
papeis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, os primeiros
se sentem superiores e por isso discriminam e exercem dominação sobre
as pessoas do sexo feminino com as quais têm vínculo familiar ou afetivo,
enquanto as segundas se veem como inferiores e por isso se submetem aos
desejos e aspirações de pais, parceiros, ex-parceiros, filhos.” (CARVALHO,
2015, p. 47)
A manutenção dos papeis de gênero (que prestigiam os
homens, em detrimento das mulheres) impulsionam a desigualdade
entre homens e mulheres, constituindo o pano de fundo para a
violência estrutural que vitimiza inúmeras mulheres no ambiente
doméstico e familiar. É por esse motivo que se afirma que a ideologia
patriarcal propicia um ambiente favorável à violência contra a mulher
no âmbito doméstico. “O sistema patriarcal e sua estrutura geram
formas de desigualdade e violação dos direitos humanos, sendo a violência
de gênero (violência contra as mulheres ou violência machista) a mais
extrema de todas.” (ESCOBAR CIRUJANO; QUINTEROS; SÁNCHEZ
GAMONAL; TANDÓN RECIO: 2011, p. 41)
Veja-se na sequencia o quanto a violência estrutural e os papeis
de gênero contribuem para dificultar a igualdade entre homens e
2 Ipsos – Feminismo e igualdade de gênero pelo mundo, 2017. Disponível em: http://
www.ipsos.com.br/img/upload/GlobalAdvisorFeminism2017.pdf. Acesso em 09-07-
2018.
51
mulheres.
52
realizaram atividades de cuidado de moradores do domicílio ou de
parentes, entre os homens a proporção foi de 21,0%.5
E, mais, além da sobrecarga de trabalho, a falta de
desenvolvimento dos papeis ditos femininos a contento, acarreta uma
carga de reprimenda por parte da sociedade e, frequentemente, da
própria mulher, “justificando” punição alheia ou própria. Ademais,
sua conduta moral e social deve ser ilibada. Às mulheres não é dada
uma terceira via: se não são consideradas santas, são vistas como
prostitutas, vagabundas, desqualificadas, desalmadas.
São os estereótipos de gênero os responsáveis por criar essa
representação social da mulher, como se verá a seguir.
53
masculinas e femininas assinaladas ao largo da história não houvessem
implementado a desigualdade, a misoginia ou a violência contra as mulheres.”
(ESCOBAR CIRUJANO; QUINTEROS; SÁNCHEZ GAMONAL;
TANDÓN RECIO: 2011, p. 41)
No entanto, “enquanto se considerar o homem como superior à
mulher e se valore naquele a dominação e agressividade, enquanto a submissão
e a humildade forem consideradas características tipicamente femininas, a
mulher será mais vulnerável e se seguirá considerando a violência contra
ela como uma afirmação de poder e controle do varão.” (MATUD: 2015, p.
205)
Em sentido inverso, o reconhecimento das mulheres como
iguais, o rechaçamento das demandas patriarcais (que dão aos
homens o status de seres dominantes e agressivos) libertará a
sociedade. (MATUD: 2015, p. 205)
Considerações finais
A prevenção da violência contra a mulher e a eliminação
da já existente requer que sejam realizados investimentos em uma
educação para a igualdade, o que significa dizer, como, aliás, vem
sendo alertado pelos movimentos feministas, que uma verdadeira
política pública passa ao largo da utilização pura e simples do direito
criminal (MATUD: 2015, p. 204). Não que ele seja dispensável, mas
sua utilização não pode buscar a solução para o problema. O direito
criminal, no campo da violência de gênero, há que ocupar o mesmo
destino que lhe é dado em relação a outros tipos de criminalidade:
a busca pela justiça no caso concreto, a partir da aplicação de uma
consequência legal (a pena) para quem praticou uma conduta
criminosa, sempre observando o princípio da proporcionalidade, por
meio do qual o grau de reprovação da conduta deve corresponder à
intensidade da sanção penal.
Por ser a violência doméstica e familiar contra a mulher
uma questão arraigada, normalizada, estrutural e cultural, seu
enfrentamento exige mudanças sociais, alterações de forma de pensar,
54
de agir e de reagir frente ao fenômeno. A prevenção, portanto, torna-
se mais complexa, mas não impossível.
A Lei Maria da Penha, atenta a toda essa realidade, traz
inúmeros instrumentos extrapenais que, se bem manejados, podem
contribuir para a alteração do quadro de violência. Mas, infelizmente,
o que se vê é a falta de implementação, causada, é verdade, pela
deficiência de estrutura das instituições responsáveis por colocá-las
em prática, mas, principalmente, por falta de vontade dos envolvidos,
exatamente, por sua vez, por conta da inexistência de uma educação
para a igualdade entre os sexos, essa, sim, capaz de sensibilizar,
envolver e cooptar a sociedade, dentre a qual se encontram os
responsáveis pela execução de políticas públicas de enfrentamento
da violência.
Pesquisas sobre desigualdade de gênero e violência de gênero
mostram que há uma intrínseca relação entre elas, determinando uma
lógica perversa, no sentido de que, quanto maior uma, mais intensa
é a outra. Ou seja, a desigualdade de gênero é fator da violência de
gênero.
Tendo em vista o elevado índice de desigualdade entre
homens e mulheres no Brasil, atingindo a posição 90 dentre 144
países pesquisados6, não é de se estranhar que estejamos em 5o lugar
no ranking dos homicídios de mulheres7.
E, pior, considerando que os avanços em direção à equidade
de gênero em nosso país têm sido muito tímidos, levaremos 95 anos
para atingir a igualdade entre homens e mulheres8.
55
Uma notícia alvissareira: a consciência por parte da sociedade
acerca dos direitos femininos tem aumentado nos últimos anos.
Mesmo assim, entristece saber que 41% das brasileiras têm medo
de lutar por seus direitos e 45% delas não sentem que têm plena
igualdade com os homens e não se sentem livres para realizar seus
sonhos e aspirações.9
A apresentação desses dados desoladores não tem a intenção
de desanimar aqueles que buscam a igualdade, mas, sim, chamar a
atenção para a dura realidade, que pode (e deve) ser mudada, com
esforço, abnegação e compromisso com as causas sociais. O que não
se mede não se muda!
56
Referências Bibliográficas
57
Violência de gênero,
feminismo e mulheres negras
Introdução
Segundo a Organização das Nações Unidas, houve um
crescimento de 54% no número de homicídios de mulheres negras
no Brasil em dez anos (WAISELFISZ, 2015). De modo particular, a
violência de gênero no caso desse grupo, considerado o cenário
histórico-cultural e político em que está inserido, toma proporções
ainda mais graves, uma vez que são inúmeras as situações de violência
às quais está exposto, multiplicando-se o risco de vitimização por
formas conectadas de violência, originárias tanto da estrutura
patriarcal, quanto da estrutura racista.
58
Consequentemente, frequentemente violentadas pela
sociedade e pelo Estado, acabam por não sentirem-se seguras para
denunciar a violência, pois o racismo à brasileira não é apenas individual.
É estrutural e institucional, possuindo também mecanismos de
discriminação produzidos e operados pelas instituições públicas e
privadas. Isso por que, o racismo também é uma estrutura de poder
que delimita quem são os grupos sociais que estarão no topo da
pirâmide dos processos decisórios. E é exatamente aí que as mulheres
negras encontram-se sem opções de representação, pois estão na
base da pirâmide social brasileira, sendo a maioria de classes menos
favorecidas, com pouca escolaridade e em empregos pouco estáveis
(CAROLINE, 2012).
O longo período de escravidão no Brasil marcou de forma
definitiva o papel social e sexual das mulheres negras em decorrência
do tratamento como mercadorias que lhes era destinado. A dominação
e a apropriação sexual dessas mulheres significavam a afirmação
de superioridade do homem branco e, dessa forma, a violação
perpetrada por esses senhores contra mulheres negras resultou
na construção social de uma identidade nacional onde prevalece o
mito da democracia racial (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). Assim, o
objetivo geral deste artigo é demonstrar por que, dentre as mulheres,
as negras são as maiores vítimas da violência de gênero no Brasil,
conforme dados do Mapa da Violência de 2015.
59
proporcionalmente ao tamanho das respectivas populações, 66,7%
mais meninas e mulheres negras do que brancas (WAISELFISZ,
2015).
A vitimização de mulheres negras, ainda que não concretizada
em homicídio, cresceu 190,9% na década 2003-2013. Nesse cenário,
despontam alguns estados como Amapá, Pernambuco e Distrito
Federal, em que os índices ultrapassam 300% (WAISELFISZ, 2015).
Conforme o Mapa da Violência 2015, os homicídios ocorreram
em todos os estados e no Distrito Federal. Em sua maioria, refletem
o traço cultural do patriarcalismo da sociedade brasileira, pois 1.583
homicídios foram praticados por parceiros ou ex-parceiros da vítima,
enquanto 2.293 foram assassinadas por familiares. Embora a pesquisa
tenha acontecido anteriormente à Lei nº 13.104 de 9 de março de
2015, que alterou o Código Penal para prever o feminicídio como
circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o incluiu no rol
dos crimes hediondos, há dados do Sistema Único de Saúde relativos
ao ano de 2014 que mostram o registro de 85,9 mil atendimentos
a mulheres vítimas de violência que tiveram como agressor pais,
parceiros, ex-parceiros, filhos ou irmãos (WAISELFISZ, 2015).
Sabe-se que o fenômeno da violência de gênero é absolutamente
democrático, atravessando todas as classes sociais e grupos raciais. No
entanto, conforme enfatiza Sueli Carneiro (2003), se desprezarmos a
variável racial na temática violência de gênero, não aprofundaremos
a compreensão de fatores culturais racistas e preconceituosos
determinantes nas violações dos direitos humanos das mulheres
no Brasil, intimamente articulados com a visão segundo a qual há
seres humanos menos humanos do que outros e, portanto, se aceita
complacentemente que estes não sejam tratados como detentores de
direitos.
Dentre as formas de violência contra a mulher tipificadas
na Lei Maria da Penha, ao versar sobre violência psicológica, no
que tange às mulheres negras, é geradora de graves sequelas na
autoestima, advindas da desvalorização da imagem, derivada do
60
imaginário social. São vitimizadas, em duas ordens diferentes de
violência psicológica: uma oriunda da ideologia machista patriarcal,
que concebe as mulheres em geral como objetos de propriedade
masculina; a outra, de natureza racial, que institui a desvalorização
das negras em relação às brancas (CARNEIRO, 2013).
Em relação à violência sexual, a ainda presente ideia do
estupro colonial, responsável por um dos pilares da estruturantes
da decantada democracia racial que é a miscigenação, continua
legitimando formas particulares de violências vividas presentemente
por mulheres negras. Dentre as quais, destaca-se o turismo sexual e
o tráfico de mulheres brasileiras, temas que apresentam o corte racial
como um marcador fundamental (CARNEIRO, 2013). Angela Gilliam
(1996 apud CARNEIRO, 2003) define a violência sexual decorrente
do estupro colonial como a grande teoria do esperma da formação
colonial, através da qual o papel da mulher negra na formação da
cultura nacional é rejeitado, a desigualdade entre homem e mulher é
erotizada, e a violência sexual contra a mulher negra é romantizada. O
uso e abuso sexual das mulheres negras deu origem a um dos grandes
estereótipos que ainda as estigmatiza na sociedade brasileira: o de
mulheres sexualmente disponíveis, dotadas de uma superexcitação
genética. É uma continuação histórica em que, passando de mucama
à doméstica, mantém-se a tradição de uso e abuso sexual. Ressalta-se
que aqui entendem-se por negras todas as diferentes matizes com que
as pessoas se auto classificam ou são classificadas, provenientes dos
vários artifícios de negação à descendência negra, como parda, morena
jambo, morena clara, morena escura, mulata etc. (CARNEIRO, 2003).
61
sendo coagidas por equipes médicas, e muitas vezes também por
religiosos líderes de suas comunidades, a levarem adiante a gravidez
indesejada. Diante da ausência de suporte emocional e financeiro que
lhes garanta acesso às clínicas particulares, muitas não conseguem
realizar o aborto, mesmo tratando-se de hipóteses previstas na lei. A
resistência e a negligência do SUS estendem-se também à violência
obstétrica, pois corrobora-se o estereótipo racista da supermulher
negra, fisicamente mais forte e resistente, havendo muitas vezes
coação em relação a forma do parto (ARRAES, 2014).
Conclusão
Sueli Carneiro (2003) questiona de que forma é possível que o
racismo, a discriminação racial e a violência racial permaneçam como
tema periférico no discurso, na militância do movimento feminista e
nas políticas públicas sobre a questão da violência contra a mulher.
A autora atribui essa falha, de forma muito pertinente, à conspiração
de silêncio que envolve o tema do racismo em nossa sociedade e à
cumplicidade que todos partilham em relação ao mito da democracia
racial e tudo o que ele esconde.
Dos avanços em relação à vitimização das mulheres, é inegável
que a Lei Maria da Penha mostra-se como instrumento jurídico que
tem permitido a denúncia das violências no interior das relações
afetivas e maritais. No entanto, a violência de gênero e os crimes
de feminicídio vêm reproduzindo-se entre todas as faixas etárias
e grupos sociais, ainda que a partir de estudos como o Mapa da
Violência constate-se a maior vitimização das mulheres pertencentes
aos grupos de pele mais escura. A partir da investigação de aspectos
históricos que contribuíram, além dos aspectos sociais que ainda
contribuem para a maior vitimização dessas mulheres, avaliando
o fenômeno por raça/cor, gênero e classe, de forma interseccional,
poder-se-á tirar esses grupos da invisibilidade e negligência sob a
óptica das políticas públicas.
Ainda que, graças ao movimento feminista tenham ocorrido
62
avanços em relação à proteção das mulheres diante da violência,
as mulheres negras por muito tempo ficaram invisíveis dentro do
movimento. Enquanto mulheres brancas lutavam pelo direito de
voto e acesso aos estudos, negras batalhavam para ter sua existência
reconhecida. Somente a partir da década de 80 é que o feminismo
negro rompeu a invisibilidade em meio ao movimento feminista e
decorreram-se progressivas mudanças a fim de legitimar a agenda
dessas mulheres, para as quais é ainda mais difícil sentir segurança
para denunciar a violência diante das constantes violações de
seus direitos fundamentais alicerçadas no racismo institucional e
estrutural (BORGES, 2009). Há escassez de pesquisas que abstenham-
se da neutralidade da abordagem das questões de gênero e da
existência mítica da mulher universal, e que levem em consideração
a interseccionalidade no comprometimento da garantia dos Direitos
Humanos.
Diante dos dados apresentados, resta evidente que a violência
de gênero no Brasil tem cor, continua a crescer ainda que sob a
existência da Lei Maria da Penha, e que as condições que levam a
esse cenário têm raízes na forma como deu-se a construção social
da mulher negra em um território patriarcal, machista e falsamente
democrático onde espaços são limitados de forma nada sutil. Faz-
se necessário que mais políticas públicas específicas sejam colocadas
em prática, que o acesso à justiça seja facilitado e, principalmente,
que haja combate à masculinidade tóxica, por meio de uma insistente
desconstrução da cultura machista em que estamos inseridos. O
feminismo deve libertar mulheres, deve afrontar absolutamente todas
as formas de opressão a todos os grupos de mulheres. As operadoras
e os operadores do Direito devem estar atentos às particularidades
de cada grupo enquanto ferramentas essenciais da garantia no acesso
à Justiça.
63
Referências Bibliográficas
64
Dano Moral e Violência Doméstica: Ofensa
Presumida à Dignidade da Mulher
Introdução
A violência contra a mulher é um dos temas mais denunciados
e debatidos dos últimos anos, dada a tamanha discriminação de
gênero ainda existente em nossa sociedade.
Pelo dano moral decorrente deste tipo de violação, é
amplamente admitida a sua compensação, mediante o pagamento de
indenização a ser fixada pelo Juiz.
Questão interessante diz respeito à dispensabilidade da prova
específica acerca da ofensa aos direitos da personalidade, quando
comprovada a existência do ato violento.
A importância desta discussão está na possibilidade de se criar
um importante instrumento de combate da violência doméstica em
defesa da mulher, num contexto em que seus direitos fundamentais
estão sendo constantemente ofendidos.
65
Até pouco tempo, as mulheres eram tratadas como propriedade
de seus maridos, sem possuírem qualquer autonomia, liberdade ou
mesmo disposição sobre o próprio corpo, em diversos lugares do
mundo, inclusive no Brasil.
Apesar do grande avanço obtido pelas mulheres no que tange
aos seus direitos, é fato que existem resquícios muito fortes que
colocam a mulher em posição de submissão, seja quanto à diferença
salarial no mercado de trabalho, às exigências sociais ou às mais
diversas violências de gênero constantemente sofridas.
Com a constitucionalização dos direitos humanos no século
XIX, este tipo de violência passou a ser pesquisado com mais
profundidade por setores representativos da sociedade, acarretando
o seu reconhecimento como um problema central a ser combatido
pela sociedade contemporânea. Frutos, diga-se de passagem, da luta
de diversos movimentos femininos de todo o mundo.
No cenário brasileiro, o tema ganhou bastante repercussão
com a conhecida Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), que
nasceu da ratificação, pelo Brasil, da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a chamada
“Convenção de Belém do Pará”, ocorrida em novembro de 1995.
Esta lei ampliou as modalidades de violência doméstica e
familiar contra a mulher, não restringindo apenas às mais conhecidas,
quais sejam, as violências de natureza física, psíquica, moral, sexual
e patrimonial.
Contemplou, também, atos violentos ocorridos dentro de
qualquer relação interpessoal, tornando desnecessário, inclusive, que
o agressor compartilhe/tenha compartilhado residência com a vítima
ou tenha com ela algum tipo de relacionamento afetivo de qualquer
natureza.
Considerando os inúmeros danos causados à mulher
vítima de violência doméstica, sobretudo no que diz respeito a sua
dignidade e integridade psicológica, é inegável reconhecer-se a
responsabilidade civil do agressor em decorrência da sua conduta
66
violenta, principalmente quanto aos danos morais provocados.
Na seara cível, os requisitos para caracterização da
responsabilidade civil estão previstos nos artigos 186 e 927 do Código
Civil de 2002, quais sejam, a conduta humana ilícita, a culpa genérica,
o dano e o nexo de causalidade.
Com base nesses dispositivos, a violência doméstica,
comprovadamente uma violação à lei e, portanto, ilícita, obriga o
agressor a reparar todo o dano causado por seu ato, seja este dano de
natureza material – quando atingir o patrimônio corpóreo da vítima -,
estético – se causar alteração ou deformação visível no corpo – e moral
– por ofensa aos direitos da personalidade da vítima.
Entende-se por direitos da personalidade os atributos
essenciais da pessoa humana, ou seja, a sua própria dignidade, honra,
integridade física, integridade psíquica, entre outros, elencados no
Código Civil de 20022.
No entanto, estes direitos não estão restritos a este rol, já que a
Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III3, tutelou a dignidade
humana como um de seus fundamentos.
Assim, considerando que a violência doméstica por si já
ofende os direitos da personalidade da vítima, podem-se considerar
presumidos os danos morais dela decorrentes, dispensando-se,
assim, a prova objetiva do abalo moral alegado, por lesão a valores
fundamentais protegidos pela Constituição Federal de 1988.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça firmou esta tese,
sustentando que a fixação do dano moral mínimo, previsto no artigo
387, inciso IV, do Código de Processo Penal, decorrente de violência
2 Dos Direitos da Personalidade. Capítulo II do Código Civil Brasileiro (Lei n.º 10.406/2002).
3 CF. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;[...]
67
doméstica, não depende da prova do dano em si4.
Para tanto, é necessário apenas o cumprimento de dois
requisitos perante o Juízo Criminal: (i) a comprovação da ocorrência
do ato violento e (ii) o pedido expresso de indenização de ordem
moral.
Esta tese do STJ se justifica pelo fato do dano moral se referir
à ofensa aos direitos da personalidade da pessoa, decorrente do
próprio ato violento sofrido pela vítima.
Fixado o valor pelo Juiz da Vara Criminal e, restando
insatisfeita a vítima, é cabível a propositura de ação no Juízo Cível,
sede originária da responsabilidade civil.
Em sede de Juízo Cível, é possível requerer instrução
probatória mais apurada e específica, com vistas a uma condenação
em valor indenizatório mais condizente com o abalo sofrido, bem
assim com as condições econômicas da mulher e do agressor, com
todas as peculiaridades que o caso possa apresentar.
2. Conclusão
Instrumento de natureza civilista, a indenização por danos
morais foi inserida no âmbito penal com o objetivo de atenuar
parcialmente os males suportados pela vítima de violência doméstica,
em resposta ao desrespeito aos seus direitos fundamentais suportados
em decorrência da violência sofrida.
Por ser impossível conceber a violência doméstica sem que
tenha havido dano aos direitos da personalidade da vítima, a medida
urge como decorrência lógica a dispensabilidade da prova de efetivo
dano, bastando a comprovação da violência.
4 STJ NOTÍCIAS. Condenação por violência doméstica contra a mulher pode incluir dano moral
mínimo mesmo sem prova específica. Disponível em <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_
BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Condena%C3%A7%C3%A3o-
por-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica-contra-a-mulher-pode-incluir-dano-moral-
m%C3%ADnimo-mesmo-sem-prova-espec%C3%ADfica>. Acesso em 18.07.2018
68
Portanto, adotando-se este entendimento, aplica-se a moderna
doutrina civilista que defende que o dano moral decorre do fato em si,
no caso, a própria violência doméstica, sendo, assim, presumido.
Há também, com esta presunção, a criação de um importante
aliado no combate a este tipo de violência, que muito ofende a
dignidade feminina, representando, outrossim, reconhecimento e
respeito à dor de tantas mulheres que sofrem violência doméstica no
Brasil.
69
Referências Bibliográficas
70
Por que aplicar a Lei Maria da Penha quando
uma Transexual ou Travesti é vítima de violência
doméstica e/ou familiar?
Resumo
O Brasil é signatário de vários acordos internacionais de
direitos humanos que visam respeitar a não discriminação de
qualquer origem. A identidade de gênero é um item que tem guarida
constitucional, infraconstitucional e nas convenções internacionais. A
Jurisprudência brasileira vem promovendo a valoração dos direitos
fundamentais no que se refere à identidade de gênero, e concedendo
a aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais ou travestis vítimas
de violência doméstica e/ou familiar. Não há espaço, no Direito, para o
preconceito e a discriminação de gênero. Inegável é o reconhecimento
dos sujeitos de direitos, independentemente de sua identidade de
gênero.
Introdução
O Brasil é signatário de várias convenções internacionais de
direitos humanos. O Pacto de San Jose da Costa Rica é um deles.
No primeiro item do artigo 1º desta convenção, preceitua-se que os
Estados-partes se comprometem a respeitar os direitos e liberdades
71
reconhecidos no acordo internacional, bem como a garantir o livre e
pleno exercício deles a toda pessoa, sem discriminação alguma, seja
qual for o fundamento.
Nesse sentido, a preservação dos valores oriundos do respeito
à identidade de gênero das pessoas deve permanecer inabalável.
No Brasil, por lei, não é permitida a pena de morte, ressalvadas
algumas poucas exceções. Todavia, diariamente, a “pena de morte” é
aplicada às transexuais e travestis no Brasil; uma morte social, que os
exclui, literalmente, do convívio familiar pois, muitos são os casos de
abandono afetivo e material quando a jovem assume sua identidade
de gênero; exclui do mercado de trabalho e da vida em sociedade em
razão do grande preconceito e discriminação arraigados na Sociedade
e, ainda, sofrem violências física, moral e psicológica.
Depreende-se, assim, que, no Brasil, há uma pena de morte
social para as transexuais e travestis que, muitas vezes, alcançam,
inclusive, a morte física.
Um perfil vitimizado da comunidade LGBT vem sendo
traçado pelo Governo Federal, por intermédio da Secretaria de
Direitos Humanos, na medida em que apresentou, por intermédio de
três relatórios, os dados da violência homofóbica no Brasil3.
Foi constado que o perfil da população LGBT mais vitimizada
continua sendo o de jovens (54,9%), pretos e pardos (39,9%) do sexo
72
biológico masculino (73%), gays (24,5%) e travestis/transexuais
(17,8%)4. Uma demonstração inequívoca de como esse segmento
social precisa de uma maior atenção do poder público via políticas
públicas de inclusão e inserção na vida social e laboral.
Ainda referente ao Pacto de San José da Costa Rica, o seu
artigo 4º tem como título o Direito à vida e define que “toda pessoa tem
o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei
e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da
vida arbitrariamente”5.
Apesar texto expresso contido no artigo 4º do Pacto de San
José da Costa Rica, temos que a vida das travestis e transexuais são
privadas do exercício da liberdade de viver a plenitude da vida
laboral, social e familiar. Como viver sem o reconhecimento de sua
identidade de gênero? É o mesmo que definir um espaço periférico
para elas permanecerem. Como ter honra e dignidade (artigo 11,
Pacto de San José da Costa Rica), se o direito basilar para o convívio
social - pode-se dizer a identidade -, lhes é negado?
Não é possível falar em exercício da cidadania quando não há
respeito à identidade de gênero das pessoas. Para o exercício pleno
da dignidade humana, como fundamento da República Brasileira,
se faz necessário o respeito aos direitos fundamentais dos sujeitos
de direitos, caso contrário, perpetuar-se-á a exclusão social de
determinados segmentos, neste caso, da comunidade LGBT.
73
1. E assim “nasceu” a Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha6 nasceu com o intuito de proteger
as mulheres de toda forma de violência familiar e doméstica,
independentemente de orientação sexual ou gênero, possuindo
fundamento nos Princípios constitucionais da Igualdade, da
Dignidade da Pessoa Humana e da Liberdade Sexual.
A origem da Lei Maria da Penha é dolorosa. Maria da Penha
Maia Fernandes, que dá nome à Lei, vivia em Fortaleza, Ceará, e foi
uma das incontáveis vítimas da violência doméstica no Brasil. Mãe
de três filhas, era casada com um economista professor universitário,
que tentou matá-la por duas vezes, deixando-a paraplégica.
Durante todo o relacionamento, Maria da Penha sofreu
diversas e repetidas formas de violência e agressão, mas nunca reagiu
por medo de represálias a ela ou às suas filhas. Somente após sofrer
a segunda tentativa de assassinato pelo seu companheiro, tomou
coragem e decidiu fazer uma denúncia pública.
Inobstante as reiteradas denúncias das agressões sofridas,
nenhuma providência foi adotada pelo Estado. Em face da inércia da
Justiça, escreveu um livro, uniu-se ao movimento de mulheres e não
perdeu nenhuma oportunidade de manifestar sua indignação.
O réu, por sua vez, após 19 anos e 6 meses da ocorrência
dos fatos, embora condenado pelas agressões à Maria da Penha, foi
liberado após cumprir somente dois anos de prisão.
O desrespeito aos Tratados Internacionais firmados pelo Brasil
foi notório. A repercussão do caso foi de tal ordem que culminou com
promulgação da Lei n.º 11.340/06, sancionada em 07 de agosto de
2006, que entrou em vigor em 22 de setembro de 2006 (popularmente
conhecida como Lei Maria da Penha).
Esta lei, que levou o nome da figura mais conhecida e
emblemática na luta contra a violência doméstica e familiar, emergiu
74
para proteger o gênero feminino, considerada a parte mais vulnerável
da relação amorosa.
7 Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família,
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em
qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com
a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais
enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a
violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida
como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza
a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou
anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial,
entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial
ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação
ou injúria.
75
Beauvoir8 pergunta: o que é uma mulher? O que define a
feminilidade são suas estruturas anatômicas ou suas expressões na
representação social?
A autora francesa pondera que “Todo ser humano do sexo
feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar
dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade”9.
Maria Berenice Dias corrobora tal entendimento ao afirmar
estarem sob abrigo da Lei às lésbicas, travestis, transexuais
e transgêneros, porque possuem uma identidade de gênero
feminina10.
Conforme Alcir de Matos Gomes11, a distinção entre sexo e
gênero é significativa. Enquanto sexo está ligado à condição biológica
do homem e da mulher, gênero é uma construção social, que
identifica papéis sociais de natureza cultural e que levam à aquisição
da masculinidade e da feminilidade.
8 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1949] 1980.
9 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1949] 1980.
p. 7.
11 GOMES, Alcir de Matos. Discurso jurídico, mulher e ideologia: uma análise da “Lei Maria
da Penha”. São Paulo: Cristal Indústria Gráfica. 2012. p. 88.
76
Policial) no momento da confecção do boletim de ocorrência ou pelo
Poder Judiciário, está em reconhecer, ou não, que a transexual ou a
travesti são mulheres, independentemente de terem feito ou não a
cirurgia de redesignação sexual, calcados no respeito à identidade
de gênero dela, de como ela se apresenta e é representada em sua
individualidade no seio social. Diante disso, na relação afetiva também
se encontram vulneráveis, como as demais mulheres, pois a violência
doméstica e familiar é vivenciada no âmbito dos relacionamentos
afetivos dessas pessoas.
O Pacto de San Jose da Costa Rica, convenção em que o Brasil
é signatário, preceitua o compromisso de garantir o exercício dos
direitos individuais sem nenhum tipo de discriminação (artigo 1); o
respeito à vida (artigo 4), a honra e a dignidade das pessoas (artigo 11).
Na mesma seara segue a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), um marco na história mundial dos direitos humanos.
De acordo ela, todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos (artigo 1º); é conferida plena capacidade aos
seres humanos para usufruir dos direitos e liberdades da convenção
sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião
política ou de outra natureza (artigo 2º); é assegurada a igualdade
formal e a proteção contra qualquer espécie de discriminação (artigo
7º); e expressa que todo ser humano tem direito à proteção da lei
contra interferências e ataques à vida privada (artigo 12).12
Na mesma linha de preservação e garantia de direitos
fundamentais, há o tripé constituído na Carta Internacional dos
Direitos Humanos da ONU, quais sejam: i) O Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos; ii) a Declaração Universal dos Direitos
Humanos; e iii) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais
e Culturais.
Outrossim, a Constituição Brasileira vigente, em consonância
77
com os instrumentos internacional de proteção e efetivação dos direitos
humanos, traz consigo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
como fundamento republicano. A identidade sexual constitui liame ao
citado princípio, nesse sentido, recebe proteção constitucional. Logo,
respeitar a identidade de gênero é exercer cidadania, efetivar direitos
e garantir o cumprimento do mandamento da Carta Magna13.
Nesse mesmo entendimento, Girardi (2014, p. 37) pontua que
os afetos e desejos da pessoa, independente da orientação sexual,
diz respeito aos aspectos existenciais da mesma, tendo sua face
pública de tutela nos direitos fundamentais e sua vertente privada no
âmbito de um inerente direito da personalidade de cada um. O atual
momento que reconhece o exercício da sexualidade em si como um
direito fundamental, tutelado no cenário privado como um direito
de personalidade a produzir os mais diversos efeitos jurídicos,
demonstrou o enfoque para o dever de concretização dos direitos
constitucionais fundamentais também na vida privada e na órbita
das relações entre particulares.
No caso em análise, ao não aplicar a Lei Maria da Penha
aos transexuais e travestis, o Judiciário reflete o preconceito e
institucionaliza a discriminação, imensamente condenável por
nosso ordenamento pátrio, reforçando ainda, a imensa omissão a
desigualdade material.
A própria Lei Maria da Penha não faz nenhuma distinção,
protegendo, desta feita, a identidade de gênero nas relações
amorosas.
Assim, demonstra Maria Berenice Dias que “o parágrafo único
do art. 5º reitera que independem de orientação sexual todas as situações que
configuram violência doméstica e familiar”14.
A mesma doutrinadora, reforçando esse entendimento,
14 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O Preconceito & a Justiça. 3ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2006. p. 195.
78
declara em que:
“No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei
a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto
lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação
íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses
relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino
justificam especial proteção. No entanto, a lei não se limita a coibir e a
prevenir a violência doméstica contra a mulher independentemente de
sua identidade sexual. Seu alcance tem extensão muito maior. Como
a proteção é assegurada a fatos que ocorrem no ambiente doméstico,
isso quer dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidade
familiar. Violência doméstica, como diz o próprio nome, é violência
que acontece no seio de uma família.”
79
08/09/2011, DJe 15/09/2011.15”
16 TJGO. Autos n.º 201103873908, 1ª Vara Criminal, Juíza de Direito Ana Cláudia Veloso
Magalhães, j. 23/09/2011.
80
especial: ser mulher, compreendidas como tal as lésbicas, os
transgênicos, as transexuais e as travestis, que tenham identidade
com o sexo feminino. Ademais, não só as esposas, companheiras,
namoradas ou amantes estão no âmbito de abrangência do delito de
violência doméstica como sujeitos passivos; também as filhas e netas
do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que
mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo passivo da
ação delituosa.
E o Tribunal de Justiça de São Paulo18, outrossim, entendeu que,
sendo a pessoa biologicamente do sexo masculino, mas, socialmente,
do sexo feminino configurada está a violência de gênero, devendo
ser aplicada a Lei Maria da penha, através de uma interpretação
extensiva ao caso concreto.
O caso com o qual se deparou o Juiz Daniel Bomfim da Vara
de Proteção à Mulher da Comarca de Rio Branco/Acre19 foi a de uma
transexual vítima de agressão física perpetrada pelo seu namorado.
No dia seguinte, o advogado da vítima adentrou com uma ação
pedindo a aplicação das medidas protetivas de urgência da Lei Maria
da Penha, o que foi deferido pelo Magistrado que argumentou o
seguinte: “O fato da requerente ter em seus documentos de identificação o
sexo masculino não lhe retira a identidade sexual feminina, que é totalmente
subjetiva”.
E mais, a decisão também demonstra que é importante
reconhecer a vulnerabilidade da mulher na relação conjugal:
“Não se deve abandonar que o objetivo fundamental da Lei
n. 11.340/06 é a proteção da mulher que, por motivação de gênero,
encontra-se em estado de vulnerabilidade e de submissão perante o
poder controlador e dominador do homem.”
81
E continuou, in verbis:
“Do pedido da ofendida extrai-se que sua identidade sexual
não corresponde ao seu sexo biológico de nascimento, contido no
seu registro civil, isso não a impede de ser mulher como sujeito de
proteção da Lei Maria da Penha, uma vez que seu sexo social, ou seja,
a identidade que ela assume perante a sociedade, é a de mulher.”
Considerações finais
Diante do exposto, conclui-se pela aplicabilidade da Lei
Maria da Penha às pessoas transexuais, eis que referida Lei trata da
violência doméstica e familiar contra a mulher, baseada no gênero e,
20 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1949] 1980.
P. 09.
82
portanto, não há vedação à sua aplicação nos casos em que a vítima
for transexual do gênero feminino, pois independe do sexo biológico
ou orientação sexual desta há guarida no ordenamento infra e
constitucional.
O melhor resultado esperado é o reconhecimento dos direitos
fundamentais das transexuais femininas que, mesmo sem a cirurgia de
redesignação sexual, se apresentam socialmente como mulheres.
Portanto, a identidade, elemento fundamental da dignidade
humana, encontra respaldo e consonância com os princípios
constitucionais e os direitos de personalidade, ambos reconhecidos
pela Carta Magna e Código Civil brasileiro.
83
Referências Bibliográficas
84
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, [1949] 1980.
85
A FALÁCIA DO DÉBITO CONJUGAL E O CRIME DE
ESTUPRO
Resumo
O presente artigo tem por objetivo discutir a “lenda” do débito
conjugal e o crime de estupro diante da Lei nº 11.340/2006, conhecida
como a Lei Maria da Penha, que tem por objetivo proteger a mulher
da violência doméstica. Baseando-se em uma análise bibliográfica é
possível estudar a ideia do débito conjugal, e a presença do crime de
estupro nas relações maritais.
Introdução
A Lei Maria da Penha (11.340/2006) nasceu com o objetivo de
proteger as mulheres de violências oriundas de uma relação amorosa,
a chamada violência doméstica. A legislação visa proteger a mulher
das violências do companheiro, do pai, do irmão, do filho, de todo
homem que em razão de uma relação familiar ou amorosa submete a
mulher a qualquer tipo de sofrimento.
A lei não traz novas tipificações de crime, mas exemplifica os
crimes que passíveis de proteção pela referida lei. Entre eles está o
crime de estupro. O crime que viola a liberdade sexual está previsto
no artigo 213 do Código Penal, e não estipula quem pode ser o autor
do crime e quem pode ser a vítima. Diante da Lei Maria da Penha,
pressupõe que a violação sexual na relação marital tem como vítima
a mulher.
O débito conjugal
O machismo é um comportamento oriundo do patriarcado,
trata-se de um mecanismo de controle da mulher, com a premissa de
que o homem é superior à mulher, Drumont (1980) esclarece que o
machismo é uma representação simbólica que mistificou as relações
de exploração e submissão entre homem e mulher. É com essa ideia de
superioridade que o machismo e o patriarcado sempre consentiram
um nível de violência contra a mulher, sendo muitas delas justificadas
como direito do marido, pois, este se caracteriza como o sujeito ativo
da relação, sendo a mulher reduzida aos trabalhos domésticos e a
relação sexual objetivando apenas a reprodução.
De forma derivada do patriarcado e do machismo, nasce a
ideia de que a mulher é obrigada a se submeter a todos os desejos
do homem. Na relação patriarcal, a mulher em sua primeira fase da
via é submissa as vontades de seu pai, posteriormente aos anseios de
seu marido. O idealismo do patriarcado é o controle e a opressão da
mulher, e de forma mais firme, esse controle é ligado diretamente à
dominação sexual, dessa forma, o homem como parte ativa da relação
tem o poder sobre a mulher, inclusive nas relações sexuais.
Assim, nasce a crença antiga do “débito conjugal”, que
determina que durante o casamento há a obrigatoriedade da mulher
manter relações sexuais com o marido, e caso se negasse a saciar as
lascívias do cônjuge, este poderia cobrar posteriormente, criando-se,
assim, um crédito. A negativa da relação sexual criava uma dívida
que o homem poderia cobra, mesmo que fosse de forma forçada.
Segundo Berenice Dias (2012), isso ocorre em razão do
casamento ser identificado para legalizar as relações sexuais. “Era
um remédio contra a concupiscência – remedium concupiscentiae
87
– o que, segundo o dicionário, significa inclinação a gozar prazeres
sexuais.” (DIAS, 2012)
Assim, pressupõe que para a manutenção do matrimônio a
mulher deve suprir as necessidades sexuais do marido. Masson
(2014) explica que a mulher tinha do dever de atender as vontades
sexuais do marido, e caso não atendesse aos seus anseios, o cônjuge
poderia cobrar a prestação dessa dívida quando achasse adequado,
assim, criava-se o débito conjugal.
A legislação vigente prevê que o casamento deve ser mantido
perante a comunhão pela de vida, assim determinar o artigo 1.511
do Código Civil, para tanto, deverá haver I) fidelidade recíproca; II)
vida em comum, no domicílio conjugal; III) mútua assistência; IV)
sustento, guarda e educação dos filhos; V) respeito e consideração
mútuos. Em nenhuma dessas situações impõe a obrigatoriedade das
relações sexuais, de forma alguma, a legislação determina a mulher a
obrigação de manter relação sexual, nem mesmo o dever de fidelidade
traz essa obrigação, dessa forma é livre a negativa. Assim, não há
legalização do “débito conjugal”.
A sorte é que a lei não impõe débito conjugal. O casamento estabelece
comunhão plena de vida (CC 1.511) e faz surgir deveres de fidelidade, vida
em comum, mútua assistência, respeito e consideração (CC 1.566). Nenhuma
dessas expressões é uma maneira pudica de impor a prática sexual. Nem o
dever de fidelidade permite acreditar que existe o encargo da prática sexual.
Mas serve para gerar a presunção de paternidade dos filhos (CC 1.597), se
tanto. (DIAS, Maria Berenice, 2012)
88
O crime de estupro
Diante da falácia do débito conjugal as mulheres vêm sendo
abusadas sexualmente, e acabam por não denunciar a violência, por
entenderem que é sua obrigação saciar a vontade sexual do marido,
entendem que o sexo é algo natural do casamento, dessa forma o sexo
coercitivo dentro do casamento é naturalizado pela sociedade. Dantas-
Beger e Giffin (2005) trazem que as mulheres relatam situações onde
o parceiro insistia em transar mesmo sem ela querer. Essas situações
não são descritas como violência pelas vítimas. Todavia, o artigo 5º
da Lei nº 11.340/2006 prevê:
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência
doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
89
A prática sexual sem vontade é oriunda da ideia de que
a mulher é obrigada a se submeter sexualmente as vontades do
marido, também pode ser considerada como uma forma de evitar a
“violência”. Importante frisar que o artigo 213 do Código Penal, onde
está tipificado o crime de estupro, não exclui o marido como agente
ativo do crime. Ainda, o sexo coercitivo viola a liberdade da mulher,
direito garantido constitucionalmente.
Dessa forma, temos que, mesmo sendo durante o matrimônio
a conjunção carnal forçada configura crime de estupro. Crime este
que também é caracterizado como violência doméstica.
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras:
(...)
90
Conclusão
Diante da presença do machismo e do patriarcado na sociedade
brasileira, nasceu o mito do débito conjugal, que pressupõe direito do
marido cobrar uma dívida da esposa. Ou seja, na falácia do débito
conjugal a mulher que se negar a praticar atos sexuais com o esposo
adquire uma dívida, sendo esta passível de cobrança, inclusive de
forma forçada.
O casamento não pressupõe a obrigatoriedade de manter
relações sexuais, inclusive as obrigações estão descritas no artigo
1.511 do Código Civil, e não traz a ideia de obrigação sexual, nem
mesmo de maneira abstrata.
A negativa da mulher gera ao homem o direito de pedir o
divórcio, mas nunca gera um direito de cobrar essa relação como
se fosse uma dívida, o chamado débito conjugal tem o condão de
subsidiar um processo de divórcio, mas nunca de forçar a mulher a
ceder as práticas sexuais.
Assim, concluímos que inexiste a obrigatoriedade de manter
relação sexual durante o casamento, sendo que não incube a mulher
saciar as vontades do marido, e caso ocorra a negativa por parte da
esposa, não nasce uma dívida passível de execução, ainda mais, se
essa execução ocorre de forma forçada, o que caracteriza o crime de
estupro.
91
Referências Bibliográficas
92
Violência doméstica e a vulnerabilidade da
mulher
Fernanda Ataide1
“Eu era tão dependente dessa relação, eu gostava tanto dele, que
estava sujeita a tudo. Era como uma droga, eu sabia os efeitos colaterais,
mas existia um vício, o prazer de tê-lo ao meu lado falava mais alto.”
Paciente sigilosa
1 Mulher, mãe, esposa e feminista. Psicóloga, Pós Graduada pela FGV e empreendedora.
Tem mais de 12 anos de experiência em Recursos Humanos desenvolvida em empresas
start-up, multinacionais e nacionais. Também é psicóloga voluntária de uma Casa de
Amparo para crianças em processo de adoção. Dona da boutique mais sustentável e
charmosa do Brasil o Barata Brechó.
Após a maternidade, em parceria com uma coach nasceu, o projeto Ello Mulher para
transformar o universo feminino, trabalhar o autoconhecimento e ajudar as mulheres a se
encontrarem no mercado de trabalho.
93
homem/parceiro tem como características: a manipulação, é um
violentador, que também usa como ferramenta de “controle” a
dependência financeira, o desejo de serventia e as “falhas”2 da
parceira como objeto do seu jogo de manipulação.
Nesses casos, a mulher é acometida por um sentimento de
culpa, o que a leva a acreditar que todas as agressões físicas e ou
verbais, ocorreram porque ela não foi capaz de agradar ou atender
a demanda do companheiro, e que, se não foi capaz de agradá-lo,
consequentemente, sofrerá as agressões.
Não é incomum este pensamento, visto que ele é replicado por
demais mulheres do ciclo familiar da vítima. Ou seja, ainda fragilizada
com a violência, o comportamento do agressor é reforçado por demais
mulheres como um “direito” adquirido pelo descumprimento de
“deveres” que o agressor acha que a vítima deveria cumprir.
Na vida familiar, os filhos também são vítimas, apanham e
sofrem abusos psicológicos. São crianças que crescem em meio a
violência. Esses filhos são um laço eterno com o agressor, podendo
ser um dos motivos para que a vítima continue atrelada ao agressor.
Outros pontos que colaboraram para que essa mulher continue
nessas condições, são questões como: analfabetismo, desemprego,
dependência financeira e até mesmo o aspecto estético como
envelhecimento precoce da pele, causando-lhe insegurança. Essas
mulheres abriram mão de estudar, trabalhar e ou investir inclusive
na sua saúde mental.
Aqui, aparecem outras máximas, constantemente replicadas
pela sociedade - “Se é ruim com ele, imagina sem ele”; “não arrumo
mais ninguém”; ” a separada, com filhos, feia e sem dinheiro”,
demonstrando que a separação ainda é um preconceito social.
A dependência emocional e financeira por muitas vezes
fazem parte da manipulação do parceiro, essa mulher, sem escolha,
2 As “Falhas” encontradas por esse agressor geralmente são atitudes femininas que vão
em desencontro com a máxima. “recatada, pura, subserviente”.
94
desprendeu o seu tempo para o cuidado doméstico do lar e dos filho
e ao longo da vida. Infelizmente a reflexão sobre o relacionamento
no qual está inserida, chega (quando e se chega) após uma agressão
e a busca por ajuda é outro importante passo que precisa ser
ultrapassado.
Indo para um cenário econômico e geográfico mais
favorável, o status social é o grande álibi da relação. A mulher
agredida opta, mesmo que inconscientemente, sofrer a violência
ao ter que deixar todo conforto material que sua relação traz.
¨Ele faz questão de lhe contar que tem uma arma ou a exibe
para você?
¨Ele diz que se você não for dele não será de mais ninguém?
96
Referências Bibliográficas
97
Quando não posso falar por mim:
o feminicídio enquanto uma das manifestações
mais graves de violência contra a mulher
Resumo
O objetivo artigo é refletir sobre a questão do feminicídio
a partir de uma perspectiva histórica e de uma reflexão teórica,
ainda que de forma breve, da violência contra a mulher. Para isso,
será feita a análise antropológica do julgamento realizado pela 1ª
Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Rio Branco, Acre, sobre o
primeiro caso de aplicação do crime de feminicídio. Por fim, serão
feitas algumas reflexões para avançar na abordagem sobre a violência
contra a mulher, tomando como base a Lei Maria da Penha e a Lei do
Feminicídio, enquanto principais marcos jurídicos nacionais.
Introdução
A partir de 2015, a Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015 —
chamada Lei do Feminicídio — alterou o Código Penal brasileiro de
1940, incluindo o feminicídio como uma das formas qualificadas do
homicídio, conforme disposto no artigo 121. Além disso, ela incluiu
o feminicídio na lista de crimes hediondos, previsto no art. 1º da Lei
nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (PRADO, SANEMATSU, 2017). Essa
lei é resultado da pressão popular, que vem reagindo com veemência
98
aos casos de assassinatos de mulheres no país — segundo dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o 5º lugar
nesse ranking mundial (CNJ, 2016).
Os conceitos “femicídio” (femicide, em inglês, idioma original)
ou “feminicídio” (de origem castelhana) possuem distinções
linguísticas e políticas, são expressões usadas para denominar as
mortes violentas de mulheres em razão do gênero, seja decorrente
de uma violência doméstica ou quando provocada por menosprezo
ou discriminação da condição do sexo feminino. Tal conceito foi
utilizado pela primeira vez em 1970, mas foi por volta do ano 2000
que ele se disseminou pela América Latina, devido às várias mortes
de mulheres ocorridas no México ( BRASIL, 2016; SEGATO, 2006).
Essas mortes no México trouxeram a discussão sobre a
responsabilização do Estado pela morte dessas mulheres. A análise
da dimensão política dessas mortes foi liderada por Marcela Lagarde,
antropóloga e feminista mexicana. Para ela, o conceito de feminicídio
recebe novos empoderamentos em relação à mulher, em especial, o
de corresponsabilização de suas vidas por parte do Estado:
Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as
mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na
comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer.
Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas
funções. Por isso, o feminicídio é um crime de Estado (LAGARDE,
2004, p. 10, tradução livre).
Nos últimos anos, este conceito vem sendo formulado por
Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil, da
seguinte forma: “feminicídios são assassinatos cruéis e marcados
por impossibilidade de defesa da vítima, torturas, mutilações e
degradações do corpo e da memória. E, na maioria das vezes, não se
encerram com o assassinato” (ONU, 2016, p. 1).
99
Desenvolvimento
O protagonismo dos movimentos feministas
Um crime emblemático de morte violenta de mulher em razão
do gênero foi o caso de Doca Street e Ângela Diniz:
Em 30 de dezembro de 1976, na cidade de Búzios, no litoral
do Rio de Janeiro, Doca Street assassinou Ângela Diniz, colocando
fim a um relacionamento de quatro meses. Ambos pertenciam à elite
carioca, fato que aumentou a comoção social em torno do crime [...].
Em 1979, o acusado foi levado a julgamento pelo Tribunal do Júri.
A defesa baseou-se no argumento de legitima defesa da honra [...].
Os jurados acolheram o argumento e Doca foi condenado a uma
pena de 2 anos de reclusão, com direito a suspensão condicional da
pena. Inconformados, o Ministério Público e o assistente de acusação
recorreram da decisão. Contavam com o apoio do movimento
de mulheres, que realizou protestos e manifestações na frente do
Fórum durante o julgamento. Em novembro de 1981, Doca Street foi
novamente levado a júri [...], [mas desta vez] foi condenado à pena de
15 anos de reclusão (BRASIL, 2016, p. 25).
Esse crime foi um dos catalisadores das manifestações
feministas no início dos anos 1980, tornando-se depois a principal
bandeira de luta dos movimentos feministas e de mulheres no
Brasil. Essas manifestações públicas foram contra a impunidade dos
assassinos que, geralmente, eram beneficiados pelo argumento da
legítima defesa da honra.
A natureza passional atribuída ao comportamento violento
dos assassinos era outro elemento conservador de proteção da
família, levantado pelas defesas. Consequentemente, o crime era
tratado como de natureza íntima, encerrado no espaço privado.
Outra ação importante protagonizada por este movimento
ocorreu quando o caso da senhora Maria da Penha Maia Fernandes
(Caso 12.051) foi levado à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americano (OEA), em
20 de agosto de 1998 (DIAS, 2007).
100
Tal caso foi peticionado pela própria Maria da Penha3, vítima
de violência doméstica, em conjunto com o Centro pela Justiça e pelo
Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa
dos Direitos da Mulher (CLADEM), após o esgotamento dos recursos
na jurisdição brasileira — o processo movido contra o agressor,
seu ex-marido, estava parado há 15 anos na Justiça brasileira sem
proferir sentença definitiva (OEA, 2001). Por este caso, o Brasil foi
condenado no âmbito do sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos pela CIDH, em 2001, sendo-lhe impostas várias
recomendações em defesa dos direitos das mulheres (DIAS, 2007;
OEA, 2001).
Com essa condenação, ficou claro que a violação no caso de
Maria da Penha evidenciava o descaso e omissão da justiça brasileira
com relação à violência contra as mulheres, pois demonstrava
“um padrão discriminatório com respeito à tolerância da violência
doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial”
(OEA, 2001, p.1).
Com a pressão desses movimentos e devido à ratificação
de marcos jurídicos internacionais (Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir,
Erradicar a Violência contra a Mulher — Convenção de Belém do
Pará —, dentre outros) pelo Brasil, além de outros fatores históricos,
políticos, jurídicos, sociais e culturais, marcos jurídicos nacionais
surgem para combater essa situação estrutural no país, em especial,
a Lei 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha) e a Lei 13.104 de 2015 (Lei
do Feminicídio).
O julgamento do primeiro caso de aplicação da Lei de
Feminicídio no Acre
Este estudo de caso será fundamental para compreender como
3 Maria da Penha, em 1983, foi vítima de duas tentativas de homicídio por parte do eu então
marido e pai de suas filhas, em Fortaleza, CE. Considerada vítima emblemática da violência
doméstica, após lutar para que seu agressor fosse condenado (BRASIL, 2016). Hoje, ela é líder de
movimentos de defesa dos direitos das mulheres (OEA, 2001).
101
se comporta o Brasil, em especial a Justiça acriana, frente à efetividade
da Lei do Feminicídio.
No dia 6 de outubro de 2016, cerca de 8h20, inicia-se o
julgamento do primeiro caso de aplicação da Lei de Feminicídio no
Acre pelo tribunal do júri, que possui competência constitucional
para julgar os crimes dolosos contra a vida.
O julgamento em questão — que será narrado com um olhar
antropológico — envolve uma mulher de 29 anos (vítima) e seu
ex-companheiro, acusado de tê-la assassinado, crime que pode ser
resumido da seguinte forma — a partir do parágrafo abaixo.
Esse crime ocorreu no dia 29 de fevereiro de 2016, logo após
uma forte chuva que caiu na cidade. Nesse mesmo dia, a filha da vítima
havia chegado minutos antes do crime para levar um guarda-chuva
à mãe, sem mesmo ela ter pedido. Isso era uma prática costumeira,
toda vez que chovia, ela fazia isso de bom grado para com a mãe.
Quando não chovia, após a escola, passava no trabalho dela, apenas
para irem caminhando juntas de volta para casa.
Naquele dia, o caso ganhou repercussão midiática, ficando
conhecido como o assassinato de uma funcionária da Loja Ok
Magazine. A vítima, assassinada com uma facada no corpo — segundo
a perícia — na região que fica logo abaixo das costelas, foi capaz de
causar uma hemorragia, que lhe tirou a vida em questão de minutos.
Nem mesmo com a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (SAMU) — em menos de dez minutos — foi possível salvá-
la. Instantes após o crime, o SAMU passava justamente por aquele
local para atender outra ocorrência.
Por sorte, a filha não chegou a ver a execução de sua própria
mãe porque estava nos fundos da loja, esperando o expediente dela
terminar, eram quase 18h. Entretanto, não foi poupada de vê-la caída
no chão, ainda agonizando, minutos antes de morrer. No vídeo do
momento do crime, apresentado pelo promotor, é ela quem aparece
nas imagens de segurança correndo de dentro da loja até se debruçar
sobre a mãe caída no chão.
102
Por ironia do destino, esse seria seu último de trabalho, pois
no dia seguinte, já estaria de férias.
De forma sincronizada, assim como o SAMU, uma viatura da
Polícia Militar também passava pelo mesmo local. Ocasião em que as
pessoas que presenciavam aquela situação acenaram para a polícia e,
em seguida, conseguiram prender o acusado em flagrante.
Voltando ao julgamento, o espaço disponível ao público é
separado do local onde acontece a sessão do tribunal do júri por um
vidro blindado. Neste, ficam os integrantes oficiais que compõem a
sessão plenária (juíza, promotor, assistente de acusação, advogado
de defesa e o próprio réu) — sequer um ruído é possível escutar do
outro lado do vidro. Do lado de cá do vidro, o público presente é
composto por membros da família da vítima (mãe, filhas, irmãs,
sobrinhos e amigos), cerca de quinze integrantes do júri e membros
do Ministério Público, de um lado; do outro, integrantes das
Comissões de Diversidade e dos Direitos das Mulheres da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), outros movimentos de defesa dos
direitos da mulher, acadêmicos dos cursos de Direito de Rio Branco,
seguranças do Tribunal de Justiça e policiais. Esses dois ambientes,
que compõem a sala do tribunal do júri, ficam interligados apenas
pelo circuito de som.
Antes de iniciar o ritual judicial do tribunal do júri, quase todos
já estão a postos, com exceção da juíza e do acusado. Nesse momento,
muitas especulações surgem em meio ao público: uns querendo saber
quem era a juíza, outros procurando identificar cada um ali dentro.
Para quem não está acostumado a participar deste ritual do júri, a
maioria dos atores envolvidos parecem exercer a mesma função,
pois eles vestem becas de cor preta, salvo as testemunhas e o réu; na
verdade, o que os diferencia são as faixas utilizadas: promotor, faixa
vermelha (primeira instância) e branca (segunda instância); defensor
público, faixa verde; advogado, faixa preta (FIGUEIRA, 2008).
Entra a juíza numa toga preta, uma senhora de jeito meio
despojado. Ela não demonstra que está ali acompanhando mais um
103
caso de homicídio de grande repercussão midiática na capital. Pelo
semblante dela, parece que julgará um caso como outro qualquer,
desses que se revolvem nos Juizados Especiais de Rio Branco, cujas
lides (conflitos) julgadas são de menor complexidade. Talvez essa sua
leveza em conduzir esta sessão, ou até mesmo certa tranquilidade,
seja porque ela carregue sobre si a experiência de ter julgado muitas
causas como esta, ou similares.
A juíza, de fala tranquila, quase inaudível pelo sistema de som,
dá início ao júri popular e começa a sortear sete jurados ali presentes
para compor o denominado “Conselho de Sentença”, que irá julgar
o primeiro crime de feminicídio no Acre, com poder de condenar ou
absolver o réu.
Primeiro, ela se certifica de que haverá quórum suficiente
para esta audiência — são necessários o mínimo de sete jurados para
compor o conselho e quinze que estejam presentes, caso contrário,
este julgamento poderá ser adiado novamente. Após serem sorteados
pelos nomes, o Conselho de Sentença fica composto por quatro
homens e três mulheres. Esta formação, em regra, é feita por servidores
públicos que ficam durante um mês à disposição da Justiça. Nenhum
jovem está presente entre eles, pois todos são senhores e senhoras de
meia idade — acima de 40 anos.
Na sala, o promotor, sentando ao lado esquerdo da juíza —
de quem a vê — toma seu chimarrão, enquanto aguarda o início dos
depoimentos.
Após a primeira fala da juíza, eis que alguém surge — parecia
ser o acusado, pois ele estava escoltado por um policial de cada lado,
embora não estivesse algemado. Esta cena causa estranheza para
alguns ali, inclusive para mim, sobretudo, pelo fato de ele entrar
sorridente, conversando com os policiais que o escoltavam e com os
outros policiais que já estavam na sala, num clima descontraído. Mas,
com a mesma rapidez com que adentrava, ele foi retirado da sala —
somente com a entrada do verdadeiro acusado (do crime em questão)
compreendeu-se que o primeiro fora colocado na sala por engano.
104
Certamente, o local de julgamento dele era outro.
Entretanto, não há mais equívoco quando o réu entra na sala da
plenária, isso porque até mesmo o clima do lugar, antes descontraído,
muda para um ar mais pesado; o público, em especial os familiares,
fica totalmente em silêncio. Ao entrar na sala, algumas características
do acusado se sobressaltam: calvo, de porte franzino e magro, de
aproximadamente 1,70m, ou até menos. Ele entra algemado, vestido
com uma blusa branca meio amarelada, bermuda jeans e chinelos
Havaianas azul-marinho. Ele caminha pela sala de cabeça baixa,
segue acompanhado por um policial até uma cadeira de ferro que fica
de frente para o Conselho de Sentença e de costas para seu advogado,
que já está sentado atrás. Logo que senta, permanece de cabeça
baixa, algumas vezes respira fundo. O policial que o acompanha se
posiciona ao seu lado, sempre em pé.
Como uma espécie de ritual judiciário, todos se colocam de
pé, acompanhando o mesmo movimento da juíza. O acusado está
de frente para os jurados; somente neste momento o vejo levantar a
cabeça e olhar rapidamente os jurados com compõem o Conselho de
Sentença, sem fitar qualquer outro lugar, para logo abaixar a cabeça
— ele permanecerá de cabeça baixa durante todo o julgamento, não
sei se por estratégia de defesa ou por constrangimento. Depois, todos
se sentam.
Após as formalidades, o julgamento enfim começa com o
depoimento, no plenário do júri, do policial civil que havia prendido
o acusado em flagrante, minutos após o crime. Ele discorre sofre o
momento de perseguição ao suspeito até a sua prisão em flagrante.
O promotor e o assistente de acusação fazem algumas perguntas ao
policial.
Ele termina seu testemunho e sai da sala. Em seguida, o réu
é conduzido pelo policial que o acompanha para fora do plenário
do tribunal do júri — a pedido das testemunhas que se sentiriam
coagidas com a presença do acusado no momento de suas falas.
Neste momento, começam a ser ouvidas as cinco testemunhas
105
de defesa — fica evidente o constrangimento e embaraço delas na
plenária do júri. De forma ordenada, quando uma termina sua fala e
sai da sala, outra entra para dar voz ao sofrimento vivido pela vítima,
brutalmente assassinada, e por aqueles que eram próximos dela.
Essas testemunhas representam amigos de trabalho, filhas, irmãs e
amigos de infância da vítima.
Dentre os vários depoimentos, aquela que chama mais atenção
é a da testemunha ocular (quem de fato presenciou o evento). Ela diz,
diante da juíza:
Tinha acabado de chover, eu tentava ligar a minha moto
quando o vi andando de um lado para outro em frente à Loja Ok.
Vi quando ele chamou a vítima e vi quando ela saiu da loja, ainda
amarrando os cabelos. Ele a pegou pelos cabelos e foi esfaqueando
até a Loja Ipanema, que fica ao lado. Depois de esfaqueada, já caída
no chão, ela ainda levanta, vai em frente à loja que trabalha. Ele a
segue mais uma vez e a esfaqueia novamente. Depois disso, ele sai
correndo. Ela cai no chão e não levanta mais. Não houve conversa,
ele já foi atacando ela!4
O histórico do acusado é o modus operandi daquele que comete
violência contra a mulher em razão de gênero. Ele já tinha passagem
pela polícia por violência doméstica frente à outra mulher e uma
medida protetiva, em favor destas, baseada na Lei Maria da Penha
por contravenção por vias de fato, já prescrita.
As testemunhas o descrevem como uma pessoa fria, distante,
“Nunca olhava as pessoas nos olhos”, não gostava de tirar foto e nunca
participou das festas de família nem mesmo nas confraternizações
da Loja Ok Magazine. Segundo uma das testemunhas, ele foi sempre
grosseiro com a vítima. “Ele era muito suspeito! Ele era da Sobral, nós
somos da Estação [Experimental]”5, fala outra testemunha.
4 Esta falta foi transcrita pela autora deste artigo durante o acompanhamento da sessão
do tribunal do júri, no dia 6 de outubro de 2016.
106
Após as testemunhas serem inquiridas, o réu entra novamente
na sala, desta vez para ser ouvido pela juíza. Um policial tira as
algemas do réu, enquanto outros três policiais o cercam. O réu senta
em outra cadeira que está localizada no meio da plenária do tribunal
do júri, exatamente de frente para a juíza, que fica num plano mais
elevado, da mesma forma como os outros depoimentos ocorreram.
Já no final da sessão plenária, fala o promotor e o assistente
de acusação. Ambos pedem a condenação do réu com todas
as qualificadoras existentes (motivo torpe, uso de recurso que
impossibilitou a defesa da ofendida e feminicídio). O promotor
destaca que, dias antes do julgamento, o Estado, com propósito de
homenageá-la simbolicamente, instituiu o “Dia Municipal da Não
Violência contra a Mulher” a ser comemorado no dia 1º de março,
sancionada por meio da Lei nº 2.210, que possui o mesmo nome da
vítima, publicada no Diário Oficial do Estado (DOE), no dia 26 de
setembro de 2016.
O advogado de defesa toma à frente da plenária do tribunal
do júri — este havia assumido o caso há dois dias. Como o próprio
advogado do réu alega, não há o que defender. Isso porque existia
vídeo comprovando o crime, testemunha ocular e réu confesso. A
única coisa que ele poderia fazer era acompanhar e observar se todo
procedimento levou em consideração princípios basilares do Direito,
dentre eles, o da dignidade da pessoa humana. Qualquer outra tese
de defesa, além desta, seria impossível de se sustentar perante o
tribunal do júri — no entanto, não consegui enxergar em seu discurso
a “incorporação da defesa” do réu (FIGUEIRA, 2008).
A sessão plenária se encerra com a sentença proferida pela
juíza: “Condenado a 27(vinte sete anos) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, com regime fechado [...]” (ACRE, 2016, p. 4) — condenação
superior à média, que é de 22 anos.
107
Considerações finais
A etnografia aqui apresentada sobre o primeiro julgamento
pelo crime de feminicídio em Rio Branco, Acre, envolvendo morte
violenta de uma mulher, por razões de gênero, reforça a ideia de que
esse fenômeno é global.
Isso porque o assassinato é a manifestação mais grave de
violência contra a mulher (BRASIL, 2016), pois suas consequências
devastam tanto a vida da vítima, quanto a de outras mulheres: mães,
irmãs, filhas, amigas, ou seja, uma sociedade inteira — essa devastação
ficou evidente nas falas das testemunhas e nos olhares dos familiares
da vítima que estiveram presentes na sessão do tribunal do júri.
Isso porque várias dessas mortes ocorrem, ainda, com a
tolerância da própria sociedade e do Estado, que as acobertam por
meio de costumes e tradições, muitas vezes justificadas como práticas
pedagógicas, que estão “naturalizadas” no seio da sociedade: os
argumentos da “legítima defesa da honra” ou “crimes de natureza
privada” são apenas alguns dos exemplos dessa convivência social
e conivência da própria sociedade (PRADO, SANEMATSU, 2017,
SEGATO, 2006; WIGDOR; ARTAZO, 2015).
Nessa conjuntura, vale reforçar que muitos homens veem
essas mulheres como meros objetos sexuais ou descartáveis e, ainda,
justificam sua violência como sendo o exercício do direito tradicional
e da dominação patriarcal — “que atribui ao homem a punição das
mulheres [...]” (BRASIL, 2016, p. 14) em prol de um sentimento
conservador de proteção da família e do casamento.
Essa forma de dominação, segundo dados das “Diretrizes
nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de
gênero as mortes violentas de mulheres — Feminicídios” (2016)
apresentada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
e a partir do que foi observado durante o Tribunal do Júri em Rio
Branco, é uma das consequências que explicam a situação estrutural
de desigualdade que inferioriza as mulheres aos homens, capazes
de alimentar os sentimentos de controle e posse sobre os corpos
108
femininos e que dão causa à morte dessas mulheres.
O conceito de feminicídio, reformulado por Marcela Lagarde,
se assemelha à realidade brasileira e à acriana enquanto estratégia
política, por reforçar a responsabilidade da sociedade e do Estado
no cumprimento de suas obrigações na proteção das mulheres e, por
conseguinte, na promoção de seus direitos.
Essa corresponsabilidade reforça a desconstrução de falsos
conceitos, dentre eles, o de que não são crimes passionais nem de foro
íntimo (que se estabelecem em espaços privados, sem intervenção do
Estado), conforme ficou evidenciado no julgamento do primeiro caso
de aplicação da “Lei de Feminicídio” no Acre, cuja pena ao acusado
foi de mais de 27 anos de reclusão.
109
Referências Bibliográficas
110
Feminicídio: um crime hediondo e a faculdade
do julgador conceder de imediato a liberdade
provisória ao agressor
Resumo
Feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher
pela razão da simples condição de ser do sexo feminino2, isto é,
desprezando, desconsiderando, a dignidade da vítima enquanto
mulher. A violência contra a Mulher no Brasil tem se tornado um
problema gravíssimo e exige imediatas medidas de combate. Em 2015
o Brasil sancionou a Lei n.º 13.104/15, que introduz qualificadoras, ou
seja, aumenta a pena para autores de crimes de homicídio praticado
contra mulheres. A aplicação das qualificadoras eleva a pena mínima
deste crime de 6 para 12 anos e a máxima de 20 para 30 anos. Contudo,
em que pese o feminicídio não ser punido de forma genérica, como
um homicídio comum, de acordo com o art. 121 do Código Penal
Brasileiro, as condicionantes prescritas no art. 319 do Código de
Processo Penal podem ser aplicadas e, o réu, responder pelo crime
em liberdade.
Introdução
A violência doméstica e familiar sempre esteve presente na
sociedade brasileira, atinge todas as classes sociais e faz das mulheres
2 Conforme Artigo 121, §2º-A do Código Penal: Considera-se que há razões de condição de
sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo
ou discriminação à condição de mulher.
111
suas principais vítimas por serem consideradas a parte mais
vulnerável, frágil e, muitas vezes, dependente do agressor, tanto
emocional como economicamente.
Além disso, sem o amparo judicial rigoroso e especifico, por
reiteradas vezes a mulher se cala e aceita as agressões.
A partir de 2006, com a promulgação da Lei n.º 11.340,
popularmente conhecida com a Lei Maria da Penha, desenvolveu-se
uma nova sistemática de trabalho no combate à violência doméstica e
familiar. A legislação aborda três fundamentais eixos: a prevenção, a
assistência e a repressão.
O objetivo da Lei Maria da Penha está inserido em seu artigo
1º, qual seja, coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Contudo, com o passar do tempo, viu-se uma necessidade de
criar uma legislação mais rígida para combater as mortes oriundas
dessa violência, mortes de mulheres pela simples questão de gênero,
ocorrida quando uma mulher é morta puramente por ser mulher, o
que se conceitua como feminicídio.
A lei inova ao dispor sobre medidas protetivas de urgência, as
quais a mulher, em situação de violência doméstica, pode requerer.
Tais medidas requeridas pela vítima, de acordo com o artigo 22 da
Lei Maria da Penha, podem ser:
I - Suspensão de posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente;
II - Afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com
a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a)
aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas,
fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b)
contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim
de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes
112
menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço
similar;
V- prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Pela Lei Maria da Penha, se o agressor tentasse homicídio da
mulher, por exemplo, o Juiz poderia decretar medidas protetivas de
urgência, como proibir o acusado de manter contato com a vítima
e familiares, ordenando seu afastamento do lar. E, se considerado
culpado, a pena prevista partiria de seis anos de prisão, no caso de
um homicídio simples, podendo chegar a 20 anos.
Com a aprovação da Lei n.º 13.104/15, que tipifica o Feminicídio,
foi alterado significativamente o Código Penal Brasileiro e a Lei dos
crimes hediondos, prevendo-se a pena mínima ao acusado de 12 anos
de reclusão, podendo chegar até 30 anos.
Porém, as citadas medidas não têm sido suficientes para
combater a violência doméstica pois, no Brasil, ainda se registra um
número muito elevado de violências contra a mulher, inclusive, um
número significativo de mortes.
De acordo com pesquisa realizada através de dados fornecidos
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram
registrados 4.473 homicídios dolosos contra a mulher, havendo um
aumento de 6,5% em relação a 20163. Isso significa que uma mulher é
assassinada a cada duas horas no Brasil. Desse número de homicídios
contra a mulher, 946 foram registrados como Feminicídio.
Todavia, a falta de padronização e de registros ainda
atrapalham no monitoramento de feminicídio no país. Os dados
expõem não apenas uma preocupante escalada na violência contra
as mulheres, mas também uma patente sub-notificação nos casos de
feminicídio, revelado sistematicamente conforme os próprios dados
apresentados pelos Estados.
113
Três anos após a sanção da Lei do Feminicídio, há estados que
ainda não contabilizam os números. E outros, possuem apenas dados
parciais.
Portanto, o presente trabalho tem como objetivo descrever
sobre a evolução da legislação no combate à violência contra a
mulher, tratando do feminicídio, avaliando as condições de proteção
à mulher diante da violência manifestada contra o gênero feminino,
de forma geral, e a faculdade do julgador na aplicação da lei para
punição do agressor.
Desenvolvimento da Legislação
Com a alteração da legislação no Brasil e a inclusão do crime
de Feminicídio no Código Penal, quando um homem comete este
crime, responde de forma diferenciada do que está previsto para o
crime de homicídio.
A legislação comum prevê que a pena será aumentada de 1/3
até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou nos três meses
posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60
anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou descendente
da vítima.
Outrossim, o § 1º do artigo 121 do Código Penal prevê a figura
do homicídio privilegiado nos seguintes termos:
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de
relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou
juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
114
de natureza objetiva e, no caso do feminicídio, a qualificadora é
subjetiva. Logo, não há essa permissão legal.
O feminicídio é um crime de intensa repulsa, considerado,
portanto, hediondo. Quem é condenado por crime hediondo deverá
cumprir um período maior da pena no regime fechado para pedir a
progressão a outro regime de cumprimento de pena (semi-aberto ou
aberto). É exigido, ainda, o cumprimento de, no mínimo, 2/5 do total
da pena aplicada, se o apenado for primário, e 3/5, se reincidente.
No Brasil existem somente as penas sob regime fechado, aberto
e semiaberto. Não existe prisão perpétua para qualquer tipo de crime,
ainda que seja hediondo ou contra mulheres, e a regra constitucional
consiste na liberdade do ser humano.
Por sua vez, a Lei n.º 11.464/07, que dispõe sobre os Crimes
Hediondos, em seu artigo 2º, §3º, prevê:
“§ 3º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá
fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.
4 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
115
Assim, obedecendo o dispositivo constitucional, que tem
por inequívoco fundamento de validade o princípio da dignidade
da pessoa humana, erigido pela ordem constitucional brasileira em
sustentáculo da própria noção de Estado Democrático de Direito,
as leis esparsas devem seguir a garantia máxima de liberdade do
indivíduo, mas, respeitando o direito de todas as pessoas, seja vitima
ou réu.
Apesar de a Lei Maria da Penha ser reconhecida como uma
das melhores leis já promulgadas em todo o mundo, o que se percebe
através de estatísticas é, ainda, a elevada violência contra a mulher no
Brasil, em especial em algumas localidades.
Compreende-se, assim, que o Estado brasileiro não está
preparado tampouco estruturado para proteger as mulheres. Não é
possível que a morte violenta de mulheres pelo simples fato de serem
mulheres seja civilizada e naturalizada, ou seja, é preciso considerar
a violência e o feminicídio como incomuns, como expressões de
práticas cruéis, devendo ser coibidas com toda a força da lei.
Ainda, se faz necessário construir novos paradigmas para o
trabalho diário do operador do direito. O estudo, em especial, sobre o
Feminicído e suas causas, deverá ser utilizado no ambiente acadêmico,
nas instituições do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, assim
como o impacto na luta contra a impunidade deve ser avançado em
cada poder, pois todos possuem responsabilidades específicas para
garantir que as mulheres tenham acesso à justiça e que se faça justiça.
E, quando há o homicídio da mulher em razão do gênero, que seja
feita a justiça plena, aplicando a norma de forma mais severa e justa,
de acordo com o crime cometido, sendo, então, qualificado o réu/
indiciado como feminicida.
Conforme Diana Russel5, escritora inglesa e estudiosa da
5 RADFORD, Jill. RUSSELL, Diana E. H. (Eds.) (1992). «Femicide: The Politics of Woman
Killing» (PDF). New York: Twayne Publishers. 379 páginas. Consultado em 29 de
agosto de 2013. IN MENDONÇA, Jorge. Femicídio ou feminicídio. Disponível em https://
jorgeluizmendonca.jusbrasil.com.br/artigos/473171337/femicidio-ou-feminicidio. Acesso
116
temática, não é a mesma coisa falar sobre homicídio de mulheres e
feminicídio, ainda que as vitimas sejam as mesmas. O feminicídio
também não é simplesmente uma palavra para assimilar o sexo das
pessoas mortas. A figura do feminicídio dá um outro sentido, ou seja,
de que a morte das mulheres se circunscreveu na história particular
na qual elas vivenciaram.
O STF enfrentou diversos questionamentos no sentido até de
declarar ou não a inconstitucionalidade dessa lei, mas já decidiu que
é possível que haja uma proteção penal maior para o caso de crimes
cometidos contra a mulher por razões de gênero6.
Então é necessário que o operador de direito e os poderes
do Estado tenham um olhar especial para esse tipo de crime,
vislumbrando todo o contexto que foi vivenciado.
O que ocorre na pratica é que mulheres registram o Boletim
de Ocorrência, solicitam a medida protetiva e voltam para casa com
um papel como garantia, que, de fato, não garante total segurança. Se
acaso aquele homem se aproximar, ela liga para a polícia. Devido às
deficiências do aparato policial, muitas vezes, a chegada da polícia é
tardia, e ela já estará morta. Ou, ainda, ela enfrentará todo o processo
e não conseguirá ver resultado plausível da condenação do agressor,
seja pela demora dos julgamentos, pela absolvição ou, até mesmo,
pela prescrição dos processos.
Conclusão
Depois desse levantamento histórico e conceitual, é fácil
constatar que boa parte dos homicídios de mulheres ocorre no espaço
doméstico, cometido por seus parceiros íntimos ou conhecidos.
Nota-se que há leis eficientes que dão assistência às mulheres vítimas
de violência doméstica, mas, falta aparato do Estado e uma justiça
em 26 de julho de 2018.
117
sensibilizada, célere e eficaz.
Em que pese a lei do Feminicídio ser mais rígida, incluindo a
prática até mesmo no rol de crimes hediondos, há dispositivo legal
que assegura ao réu/indiciado o direito de aguardar o julgamento
em liberdade, o que enaltece, revigora e fortalece o papel do Juiz.
Deve o julgador usar da sensibilidade máxima, avaliar todo o
contexto vivenciado para, no caso concreto, avaliar se o réu/
indiciado cumpre todos os requisitos para caracterização ou não da
liberdade provisória, posto que, o fato dele ser réu primário, ter bons
antecedentes, residência fixa e profissão lícita, como determina o
Código de Processo Penal, não possibilita, por si só, esta liberdade.
Em contrapartida, proibir genericamente a liberdade
provisória é inconstitucional, pois afronta os princípios da presunção
de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa
humana.
Conclui-se, assim, que as mudanças que ocorreram na
legislação penal contribuíram para as novas realidades sociais na
qual o Judiciário se depara diariamente, com relação à violência
doméstica e familiar e aos crimes de feminicídio, mas, há uma
necessidade de outro olhar, utilizando-se de mecanismos legais e
necessários, contudo, se adequando devidamente ao caso, pois, do
contrário, a nova legislação tornar-se-á obsoleta, por permitir que o
réu/indiciado recorra em liberdade, normalmente como previsto no
crime de homicídio.
118
Referências Bibliográficas
119
As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da
Penha: natureza jurídica e aspectos práticos
Introdução
Uma das grandes inovações da Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340/2006) para o combate à violência doméstica foi a criação das
medidas protetivas de urgência. Em linhas gerais, a medida protetiva
é uma ordem judicial que determina proibições de conduta ao
agressor, ou que determina ações para resguardar a integridade física
e psicológica da mulher que se encontre em situação de violência
doméstica ou familiar.
Apesar da Lei Maria da Penha ser internacionalmente
considerada uma das melhores leis no combate à violência contra
a mulher, fato é que deixou muitas lacunas em aberto (DINIZ,
2012), quanto à sua aplicação prática, especialmente no que toca às
medidas protetivas de urgência. Por exemplo, não se especifica qual
é a natureza jurídica dessas medidas, procedimentos, prazos, nem os
meios de impugnação das decisões.
Dessa forma, a construção da interpretação desses elementos
fica à cargo dos juristas e aplicadores do Direito. O presente artigo tem
por finalidade discutir esses pontos considerados obscuros, a partir
de uma visão comprometida com a superação da desigualdade de
gênero e da efetivação da proteção integral da mulher, interpretação
essa em conformidade com o artigo 4º da lei em comento1.
121
protetivas de urgência independem da existência de crime e de
qualquer instauração de procedimento, seja de policial, seja judicial
(cível ou penal).
Nesse sentido, é importante lembrar que a Lei Maria da Penha
prevê várias formas de violência doméstica e familiar (art. 7º), que
não necessariamente constituem infrações previstas na legislação
penal. É o caso especialmente da violência psicológica, que muitas
vezes não encontra correspondência em algum crime específico,
mas é capaz de gerar danos profundos na vítima. Condicionar as
medidas protetivas à existência de um crime é excluir da esfera de
proteção mulheres que se encontram em situações violentas, porém
sem correspondência penal, como por exemplo, em casos de controle
das ações, diminuição da autoestima, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, dentre outras condutas
descritas pela própria Lei Maria da Penha.
Além disso, é importante lembrar que o intuito das medidas
protetivas de urgência é garantir a proteção da integridade física,
psicológica, sexual, moral e patrimonial da mulher, e não buscar
a condenação criminal do agressor. Condicionar a concessão das
medidas à realização de uma denúncia formal e instauração de
inquérito policial é ignorar o contexto no qual a violência ocorre, isto
é, no ambiente doméstico, familiar ou em relações íntimas de afeto2.
É ignorar a existência do ciclo da violência doméstica3, que leva
muitas mulheres a permanecerem ligadas com seu algoz. Não raro,
a mulher deseja apenas sair de uma situação violenta, mas sem que
isso implique em qualquer tipo de prejuízo para seu agressor. Diante
desse quadro, exigir que a vítima represente interesse na persecução
penal contra seu agressor, acaba, por vezes, fazendo-a desistir de
buscar sua devida proteção.
Felizmente, o entendimento de que as medidas protetivas
2 Art. 5 da LMP
3 Ciclo da violência
122
possuem natureza autônoma e de caráter satisfativo é o que vem
se consolidando no Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça já
firmou seu posicionamento neste sentido4, também pacificado pelo
Enunciado n. 004/2011 da Comissão Permanente de Combate à
Violência (COPEVID).5
123
protetivas deve acompanhar, mais uma vez, a natureza jurídica de
caráter satisfativo. Ou seja, deve perdurar enquanto existir situação
de risco, já que sua finalidade é justamente a proteção dos direitos
fundamentais da vítima. É essa a interpretação que entendemos mais
alinhada com o disposto pelo artigo 19, §3º e §4º da Lei Maria da
Penha.
Recursos
A natureza jurídica das medidas protetivas também irá
influenciar no tipo de recurso a ser adotado. A Lei Maria da Penha
também ficou omissa quanto ao meio processual para impugnação das
decisões, seja pela concessão ou negação do pedido de protetivas.
Neste caso, a doutrina tem adotado o entendimento de que o
recurso cabível observará se as protetivas concedidas são de natureza
cível ou penal. Sendo uma medida de natureza cível, os recursos
cabíveis deverão seguir o disposto pelo Código de Processo Civil,
de onde se infere que podem ser aplicados os recursos de agravo de
instrumento (contra decisão liminar), ou de apelação (contra decisão
terminativa).
Já no âmbito penal, teríamos a possibilidade de se interpor
recurso em sentido estrito, quando a decisão acerca da medida
protetiva recair em alguma das hipóteses previstas pelo artigo 581 do
Código de Processo Penal, por exemplo, no caso de um indeferimento
de pedido de prisão preventiva por descumprimento de protetiva6. O
recurso de apelação, por sua vez, caberia em caso de decisão definitiva,
como a extinção de medida protetiva de natureza penal. Por fim,
alguns remédios constitucionais, como habeas corpus e mandado de
segurança também vem sido utilizados para impugnar decisões que
versem sobre a concessão de medidas protetivas de urgência.
Na prática, ainda resta enorme insegurança jurídica, e se
124
observam decisões de toda ordem (DINIZ, 2012). Por isso, enquanto
não for pacificada a questão, entendemos pela aplicação do princípio
da fungibilidade, a fim de não se prejudicar os direitos das partes
envolvidas por excesso de formalismo, especialmente diante do
caótico cenário existente.
Conclusão
Concluímos que, apesar de a Lei Maria da Penha ter deixado
inúmeras lacunas quanto à sua aplicação prática, o exercício da
atividade interpretativa deve ser no sentido de conferir a proteção
integral da mulher que se encontre em situação de violência.
Assim, as medidas protetivas de urgência cumprem sua função ao
serem vistas como medidas de natureza autônoma, desvinculada
de qualquer procedimento principal (inquérito ou ação judicial),
de caráter satisfativo e pelo tempo que se fizerem necessárias. Já a
impugnação das decisões pertinentes às medidas protetivas deve se
dar por meio dos recursos previstos pela legislação processual penal e
civil, admitindo-se o princípio da fungibilidade enquanto não houver
pacificação a respeito.
125
Referências Bibliográficas
126
STALKING: APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS
DA LEI Nº 11.340/06
Introdução
Das diversas formas de violência que uma pessoa pode ser
submetida nos dias de hoje, merece destaque a psicológica, proveniente
de condutas não violentas fisicamente, mas com consequências até
mais opressoras do que as causadas por estas.
O Stalking traduz exatamente este tipo de violência. Deriva do
inglês (perseguir), e é utilizado para denominar a prática de alguém
que persegue, invade a privacidade, coage, e por vezes restringe a
liberdade de outra pessoa. O perseguidor é chamado de Stalker.
Atualmente esta conduta é tutelada pelo Direito por meio da
qualificação na Contravenção Penal de Perturbação da Tranqüilidade,
tipificada no artigo 65 do Decreto Lei nº 3688/41 (Lei das Contravenções
Penais).
Uma importante característica desta tipificação é a ausência
de qualquer caráter inibitório ao Stalker, bem como de proteção à
vítima e tem como previsão de pena de prisão simples, de quinze
dias a dois meses, ou multa.
Para além de uma defesa de alterações legislativas, pretende
o presente artigo trazer uma tímida discussão sobre a aplicabilidade
das Medidas Protetivas previstas na Lei Maria da Penha às vítimas
de Stalking.
1 Graduada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2012). Advogada. Pós
Graduada em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e Uninter. Coordenadora adjunta
do Grupo de Estudos Ciências Criminais e Direitos Humanos do IBCCRIM. Membro da
Comissão de Diversidade Sexual da OAB de São Caetano do Sul - SP. E-mail: fernanda@
darcieadvocacia.com.br
127
Stalking e Stalker
Verificamos uma constância desta prática após o final de um
relacionamento amoroso, em que uma das partes não concorda e tem
dificuldade em se conformar com a decisão da outra pessoa.
Ainda, a prática nos mostra que, na maioria dos casos,
tratando-se de um relacionamento heteroafetivo, a vítima é a mulher,
sendo que o homem não aceita a separação, e entendendo a sua ex
companheira como sua propriedade, não a deixa seguir sua vida
sozinha.
Neste caso não há dúvidas sobre a configuração de “violência
doméstica”, com a devida aplicação das Medidas Protetivas da Lei
Maria da Penha, uma vez que o crime é cometido no âmbito de uma
relação de afeto, seja atual ou passada.
Não obstante, nem todo Stalking se realiza nestas
circunstâncias, sendo muito comum a prática entre pessoas que são
apenas conhecidas. O Stalker pode ser uma pessoa que se apaixona
pela sua vítima e passa a ter grande dificuldade em entender que
não é correspondido. Interessante que, nesta modalidade, a vítima
não possui qualquer laço com o autor, mas este exterioriza por meio
de seus atos um relacionamento amoroso que existe somente em seu
pensamento.
As práticas do Stalker, como o nome já traduz, ocorrem
em um contexto de perseguição, e diversos atos podem ser nele
inseridos: acompanhar a vítima em seus trajetos entre casa, trabalho
e estudo; inúmeras ligações, mensagens e e-mails; publicação de fatos
e boatos nas redes sociais; envio de presentes indesejados; plantão
em locais como a saída de seu trabalho e sua residência; tentativas de
serenata; e qualquer outra forma de impor sua presença e atormentar
a vítima.
Em casos mais extremos, o Stalker sequer conhece suas vítimas.
É comum observar este comportamento em uma prática chamada
128
“candid” ou “voyeur”, onde o autor registra em fotografias ou
filmagens escondidas as suas vítimas e posteriormente compartilha
o conteúdo em sites e redes de pornografia. É o que se denomina de
“cyberstalking”.
A vítima, diante de todas essas condutas, sofre grave impacto
emocional, psicológico e social, uma vez que, diante da ausência de
proteção, deixa sua vida social de lado para se proteger dentro de sua
casa2.
Não obstante o forte impacto que tais práticas causam às
vítimas, seus familiares e amigos, com grave risco à própria vida de
todos, o comportamento não tem sido considerado grave, sendo que
na ausência de desdobramentos como lesão corporal, ameaça clara
e outros crimes tipificados, a Justiça Criminal se limita imputar ao
autor a Contravenção Penal de Perturbação da Tranqüilidade e isso
evidentemente demonstra a dificuldade em efetivar a proteção da
vítima.
Da aplicação das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria
da Penha
A Lei nº 11.340/06 visa a proteção, do ponto de vista penal
repressivo, mas também preventivo, da mulher vítima de violência
2 Ademir da Veiga identifica os seguintes efeitos do “stalking” na vida do ser humano: “Os
efeitos potenciais de stalking atingem a saúde mental e emocional da vítima infligindo-
lhe uma negação ou dúvida, ou seja, a vítima não acredita o que lhe está acontecendo. Em
seguida, ao perceber a gravidade do fato, a vítima é tomada de uma frustração, culpa,
vergonha, baixa autoestima, insegurança, choque e confusão, irritabilidade, medo e
ansiedade, depressão, raiva, isolamento, perda de interesse em continuar desenvolvendo
suas atividades corriqueiras, sentimentos suicidas, perda de confiança em sua própria
percepção, sentimento violento para com o stalker, habilidade diminuída ao executar seu
trabalho ou na escola, ou de realizar tarefas diárias. Isso tudo causa efeitos potenciais na
saúde psicológica da vítima de stalking como distúrbios do sono, problemas sexuais e
de intimidade, dificuldade de concentração, fadiga, fobias, ataques de pânico, problemas
gastrointestinais, flutuações no peso, automedicação e desordem pós-traumático (sic) do
stress.” (VEIGA, 2017)
129
doméstica, sendo que para a sua configuração é necessário que a
violência baseada em gênero ocorra no âmbito do espaço físico
doméstico, de uma relação familiar ou de uma relação íntima de
afeto.
Em seu aspecto preventivo, a Lei criou mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra o gênero feminino, como as
Medidas Protetivas de Urgência previstas em seu artigo 223.
Com o descumprimento destas medidas, prevê o artigo 20
desta Lei a possibilidade de decretação da Prisão Preventiva do
agressor, o que dá um caráter mais coercitivo para as medidas.
Quando o Stalking ocorre dentro deste contexto, não há
dúvidas sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e suas medidas
de proteção. A problemática surge naqueles casos em que não se
configura a relação de violência doméstica.
Com vistas a garantir a proteção destas vítimas, que
frequentemente são subjugadas por seus agressores, os quais,
por vezes interiorizam uma relação de afeto inexistente, e por isso
assumem uma postura possessiva e de pertencimento, defendemos a
aplicação das Medidas Protetivas de Urgência a todas elas.
130
Ora, uma vez que o agressor assume a posição de “amante”
para perseguir, importunar e amedrontar sua vítima, a proteção
estatal deve responder às suas investidas de forma proporcional aos
seus atos, cabendo a aplicação da normativa estudada nestes casos.
Os estudos jurisprudenciais sobre os casos ainda não nos
permitem aferir conclusões sobre os posicionamentos adotados,
tendo em vista que estão sob a proteção do Segredo de Justiça.
Com a prática, entretanto, temos obtido algumas decisões
favoráveis a este entendimento, e subsidiariamente, a aplicação de
medidas cautelares idênticas às previstas na Lei Maria da Penha,
o que coaduna com o caráter protetivo previsto no ordenamento
brasileiro.
No âmbito civil, comprovada a situação vivenciada pela vítima,
também é possível a condenação do Stalker em Danos Morais.
Conclusão
A complexidade desta situação é tamanha, uma vez que a
vítima não é a única pessoa que sofre, a violência atinge o seu núcleo
familiar, de amizade e trabalho.
Como visto, a sociedade e, por vezes a própria vítima, deixa de
dar a devida atenção a este sinais, encarando como mera perturbação
este grave crime, que carrega em sua essência riscos imensuráveis,
que devem ser combatidos em sua origem.
Em que pese a grandeza do tema não ter sido explorada em
sua totalidade neste trabalho, objetivou-se delinear os pontos mais
importantes para a compreensão da proposta. Assim, uma vez que
compreendemos que a vítima do Stalking, sendo ela mulher, encontra-
se em uma relação de afeto, ainda que criada de forma alucinada pela
mente do Stalker, é de se concluir pela possibilidade da aplicação
das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha para a
inibição das práticas.
131
Referências Bibliográficas
132
A CRIMINALIZAÇÃO DOS DESCUMPRIMENTOS DAS
MEDIDAS PROTETIVAS
A INCLUSÃO DO ARTIGO 24-A NA LEI 11.340/06 E SUA ADAPTAÇÃO
PERANTE OS PROCEDIMENTOS PROCESSUAIS PENAIS.
Resumo
O presente artigo trará as alterações ocorridas na Lei n.°
11.340/06, com a devida tipificação do descumprimento das medidas
protetivas de urgência imposta, bem como sua adequação aos
procedimentos processuais penais vigentes.
Introdução
Considerada uma legislação multidisciplinar, a Lei 11.340/06,
conhecida como Lei Maria da Penha, trouxe em seu bojo mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar praticada contra mulheres.
É evidente apresentar que a inserção deste mandamento jurídico é
um avanço nas questões relacionadas a proteção aos indivíduos que
se encontram em estado de vulnerabilidade, que neste caso, são as
mulheres, enaltecendo a necessidade de aplicação do fundamento
do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa
133
humana.
A referida lei, como dito, é multidisciplinar e não penal, haja
vista que as condutas delitivas praticadas contra às mulheres no
âmbito doméstico e familiar estão enquadradas no Código Penal. Em
algumas condutas criminosas, pode ser encontrado o aumento de
pena quando forem realizadas no âmbito doméstico familiar, é o caso
do artigo 121, §2°-A, I do Código Penal.2
Entretanto, a Lei 11.340/06 foi alterada, para que fosse incluído
o artigo 24-A, por meio da legislação n.° 13.641/18, acarretando
punição ao agente que descumprir medida protetiva de urgência,
conforme preconizado no artigo 18 e seguintes da primeira lei
mencionada.
Sendo assim, a narrativa passou a ser descrita:
Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
2 §2-A, art. 121 – Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o
crime envolve:
I – violência doméstica e familiar.
134
Acrescenta-se que foi necessária a inclusão do referido artigo,
haja vista que não havia tipificação efetiva para enquadrar o autor
que descumprisse a medida protetiva.
Por analogia, entendia-se, se fosse o caso, aplicação do artigo
330 do CP3, crime desobediência, o qual é considerado crime de menor
potencial ofensivo, e conforme previsão do artigo 69, § único da Lei
n.º 9.099/95, não se imporá prisão em flagrante ou arbitramento de
fiança, ao agente que se comprometer em comparecer em juízo.
Tal premissa é fundamentada pelo REsp 1.651.550 – DF, julgado
pelo o STJ4, o qual direciona que existem dentro da Lei n.º 11.340/06
medidas próprias que poderiam ser aplicadas ao descumprimento,
bem como a imposição de prisão preventiva ser decretada com
fundamento no artigo 313, III do Código de Processo Penal.
É notório ressaltar que muitas adaptações processuais penais
surgirão com a inclusão deste artigo, desde que não o compare a
crime de menor potencial ofensivo, bem como diante da aplicação
em juízo do instituto da fiança.
135
reprimenda imposta por tal descumprimento. De nada a lei penal foi
rigorosa, haja vista que havia apontado um patamar indicado por ser
crime de menor potencial ofensivo.
Ora, evidente direcionar os princípios penais diante de uma
tipificação, dentre eles intervenção mínima do direito penal, o qual
apenas deverá ser acionado quando necessário.
Bem como, não se trata de crime de menor potencial
ofensivo, mesmo diante da pena imposta, uma vez que devidamente
fundamentado no artigo 41 da Lei n.° 11.340/06, não se imporá a
aplicação dos preceitos da Lei 9.099/95 quando se referir aos crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Desta vista, não se aplicam também ao autor do delito, ora
discutido, a suspensão condicional do processo ou transação penal.
Sendo totalmente incabível, ainda, a aplicação de pagamento de cesta
básica ou outras prestações pecuniárias (art. 175).
5 Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de
pena que implique o pagamento isolado de multa.
136
Observe-se ainda que a autoridade policial poderá arbitrar
fiança nos crimes em que a pena privativa de liberdade máxima
não seja superior a 4 anos. Pela lógica, o crime de descumprimento
de medidas protetivas aqui se incluiria, e novamente a sensação de
impunidade poderia assolar na sociedade.
Mas não foi o caso, descrito em seu §2º, somente a autoridade
judicial poderá proceder com a aplicação de tal instituto, ficando
a este o cargo de analisar a manutenção da prisão ou aplicação de
medidas diversas da prisão.
Relevante mencionar que tal situação não se enquadra nos
artigos 323 e 324, ambos do Código de Processo Penal, nos casos
expressos de que não caberá fiança.
Considerações finais
Uma grande movimentação do Estado em impedir a
impunidade pelo descumprimento das medidas protetivas de
urgência, em razão dos crimes noticiados praticados contra vítimas
que possuíam tais medidas. Foi uma resposta dada, entretanto,
as legislações devem de adequar ao sistema penal constitucional
vigente.
A necessidade de manutenção da prisão em flagrante delito
pelo crime do artigo 24-A, convertida esta em preventiva, deverá se
coadunar com as determinações trazidas pelos artigos 311 e 312 do
137
Código de Processo Penal.
Prioridade em tipificar a conduta, haja vista que por nossos
Tribunais já haviam manifestado a atipicidade pelo descumprimento
da mesma, não sendo o caso a aplicação do artigo 330 Código Penal,
sendo apenas relevante, a inserção da aplicação do artigo 313, III do
Código de Processo Penal.
A lei deve ter um caráter pedagógico e não vingativo, mas
também deverá passar a sensação de punição para o autor que
descumprir a medida protetiva de urgência, sendo esta, um dos
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Lembrando que outras medidas também deverão estar em
conjunto com a lei para que ocorra a redução da violência contra as
mulheres, como por exemplo, a educação nas escolas para redução
do machismo e o tratamento psicológico do agressor, se aliarão para
o combate.
138
Referências Bibliográficas
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha. 4° ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015.
PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 19º ed. São Paulo: Atlas
Editora, 2015.
139
A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA VIOLÊNCIA
SEXUAL INFANTIL – AMBITO FAMILIAR
Enaile Calegari1
Karina Valentina2
140
patológicas no âmbito do abusador.
Dentre todas as parafilias, uma das mais frequentes e mais
perturbadoras do ponto de vista humano é a Pedofilia. Caracteriza-
se pela preferência em realizar, ativamente ou na fantasia mental,
práticas sexuais com crianças. Pode ser homossexual (pederastia)
ou heterossexual (pedofilia propriamente dita), sendo o agressor e a
vítima membros da mesma família, conhecidos ou pessoas estranhas
entre si. (Dalgalarrondo, 2008).
O abuso sexual e o estupro são fenômenos trágicos e dolorosos
que integram a vida diária da maioria das sociedades atuais (OMS,
2005). Por parte do agressor, pode ser uma forma de descarregar
a tensão, a agressividade ou o sadismo sobre uma vítima que não
pode lhe oferecer resistência. A maioria das vítimas são mulheres
adolescentes ou jovens, e os agressores, geralmente, homens
conhecidos das vítimas, às vezes parentes, mas sempre com alguma
relação de autoridade no relacionamento, seja por questões culturais
ou laços de parentesco.
Os direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, foram
ratificados, pela primeira vez, com o advento da Constituição Federal
(CF/88), acertando compromissos internacionais de proteção integral
e de segurança para o segmento infantil, protagonizados pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos (Nações Unidas, 1948)
e a Declaração dos Direitos da Criança aprovada pela Assembleia
das Nações Unidas em 1959, como destaca BIDARRA e SASSON
(2012).
O ECA (Estatuto da criança e adolescente – Lei 8.069 de 13
de julho de 1990), que é a externalização do compromisso com a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança aprovada pela
ONU, surgiu destinado a defender os direitos e interesses das crianças
e adolescentes, e dispõe no artigo 5º que:
[…] nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
141
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais.
144
Considerações finais
É certo e indubitável que a política de prevenção ainda é o meio
mais eficaz e esperado a fim de que expressões do modo de produção
vigente e das questões sociais sejam minimizadas e, preferivelmente,
exterminadas. Esse trabalho deve ocorrer desde as famílias, a
sociedade e o poder público, conforme previsão legal de dever agir
nesse sentido (CF/88). Mas quando a família não tem estrutura, a
sociedade é negligente e o Estado ineficaz, a criança fica vulnerável
a situações adversas. Assim, espera-se que, com o cumprimento
do Estatuto da Criança e do Adolescente e o fortalecimento dos
programas de assistência social, haja alteração desse cenário.
Assim, denota-se a necessidade de investimento, por parte
do poder público, em recursos financeiros e humanos, para que
ações semelhantes possam ser desenvolvidas por profissionais com
conhecimento técnico, e devidamente preparados para praticar as
atividades devidas em escolas, entidades de contra turno (terceiro
setor) e nas comunidades.
Sugere-se que, a fim de que essa medida apresente os
efeitos desejados com o público infantil, é imprescindível que haja
investimento na construção de material pedagógico próprio, para
a faixa etária em questão, através de cartilhas, vídeos, músicas,
jogos, dinâmicas, peças de teatro, entre outros instrumentos lúdicos.
Assim o conteúdo chega de maneira mais concreta ao universo de
entendimento da criança, conforme recomenda (BIDARRA; SASSON,
2012).
Destarte, a atuação do profissional perfaz o caminho de
buscar que as crianças e adolescente sejam tratados como indivíduos,
a fim de que tenham a consciência de que são sujeitos de direitos,
que necessitam de educação, de atendimentos básicos, de questões
que são inerentes a condição humana, porque, quando abusadas, em
questão de direitos, os mesmos já foram retirados dela.
145
Referências Bibliográficas
146
ORGANIZACION MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Estudio
multipais de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica. Genebra:
Organization Mundial de la salud, 2005.
147
Justiça pela paz, reconciliação familiar e
audiência de conciliação nos casos de violência
doméstica contra a mulher
Resumo
O presente artigo versa sobre a (des)necessidade de submissão
da mulher vítima de violência doméstica a terapias de reconciliação e
manutenção familiar, bem como à audiência de conciliação nas ações
de família (divórcio, guarda, alimentos, dissolução de união) em que
a outra parte for o agressor2.
Introdução
A violência doméstica muitas vezes é uma violência oculta,
silenciada e que permanece na sombra do convívio familiar por anos,
sem que a mulher consiga romper o ciclo estabelecido e imposto pelo
agressor (marido, companheiro, namorado, etc.).
A pressão sobre a mulher para manter-se em uma posição
de submissão pode vir de diversos setores, como da comunidade
próxima, da igreja, da família e, até mesmo, dela própria, por
entender, por vezes, que à mulher é incumbida a responsabilidade
pela preservação e estruturação da família.
2 Necessário enfatizar que não é escopo deste trabalho ressaltar os conceitos e diferenças
técnicas entre conciliação e mediação, de forma que as trataremos simplesmente como
espécies de métodos alternativos de solução de conflitos, fortemente estimulados pelo
Código de Processo Civil de 2015.
148
Agora vemos essa imposição, também, pelo Estado, através
do Poder Judiciário, com campanhas de justiça restaurativa nas varas
de família e de violência doméstica. Mas, qual é a reconstrução familiar
buscada nestas tentativas de mediação e a quem serve? Onde ela se
encaixa na busca da superação da violência contra a mulher?
Desenvolvimento
Em nossa cultura machista e patriarcal, a mulher é silenciada
e subjugada constantemente, de forma que, muitas vezes (e por
motivos diversos que não nos cabe aqui elencar), reluta em denunciar
as agressões sofridas no âmbito familiar e pôr fim ao relacionamento
abusivo. Passa por diversas tentativas de superação desta situação
e acredita no arrependimento e mudança do comportamento do
agressor. Sem sucesso, por vezes busca atendimento na Delegacia
da Mulher e, com muito custo, consegue chegar ao judiciário para
colocar fim ao relacionamento e definir divisão de bens, guarda e
pensão para os filhos.
Ocorre que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tem
recomendado aos Tribunais a aplicação da justiça restaurativa em
processos que envolvam violência doméstica e familiar contra a
mulher3. Apesar da recomendação expressamente falar no respeito
à vontade da vítima, tais tentativas parecem privilegiar a unidade
familiar, buscando sua manutenção em detrimento da integridade
psicológica da mulher e de sua decisão de se distanciar de uma
relação que lhe é desrespeitosa ou degradante4.
4 “É que atrás dessa imagem da família perfeita [pai, mãe e filhos abraçados e felizes],
historicamente construída e na origem de sua ideia, estão boa parte dos fundamentos que
ainda sustentam o discurso de homens que agridem suas mulheres física, psicológica,
moral e patrimonialmente. Esta constatação coloca-nos a responsabilidade de discutir a
149
Juntamente com o Projeto “Justiça pela paz em casa”, a
justiça restaurativa tem aberto espaço para uma técnica chamada
“constelação familiar”5, em que se teatraliza um problema, visando
sua superação6. É uma “terapia” de um dia que reconstitui a genealogia
dos antepassados, acreditando que as atitudes destes influenciam na
vivência das gerações posteriores, com um pressuposto familista. No
entanto, como aponta Carmen Hein de Campos,
A técnica tem sofrido inúmeras críticas de pesquisadores que
questionam a formação teórica dos consteladores e a ausência de
acompanhamento posterior de quem a ela se submete. Mas a crítica
família quando levantamos a necessidade de lutar pelo direito a uma vida sem violência
[...]” (PEREIRA, Diana Melo. Família não é lugar de violência: Mulheres construindo um
novo direito de família fundado no afeto. IN. O direito achado na rua. Vol. 05: Introdução
Crítica ao Direito das Mulheres. Brasília, 2012, p. 255-259.)
5 Como afirma Carmen Hein de Campos, “A campanha Justiça pela Paz em Casa, do
Conselho Nacional de Justiça, tem sido um guarda-chuva para propostas de desmonte
da Lei Maria da Penha, como as constelações familiares”. (CAMPOS, Carmen Hein de.
Desmonte da lei Maria da Penha. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/
noticia/2017/09/carmen-hein-de-campos-desmonte-da-lei-maria-da-penha-9899783.html.
Publicado em 15/09/2017. Acesso em 07/07/2018.)
150
mais forte é a de que o modelo proposto resgata padrões morais que
destoam dos atuais arranjos familiares, privilegiando a concepção
hierárquica familiar em que o pai é a liderança da família a quem
estão submetidas a esposa e as crianças. Na constelação, segundo o
seu criador, a mulher deve seguir o homem (em sua família, em seu
país, em sua cultura) e o homem deve servir ao feminino7.
Em 27 de setembro de 2017, a Câmara dos Deputados sediou
uma audiência pública sobre a questão, com diversas críticas
de legisladoras, representantes de ONGs e demais profissionais
às práticas de justiça restaurativa incentivada pelo CNJ. Estas
têm abarcado técnicas diversas de conciliação sem qualquer
regulamentação8 e sem ouvir o movimento feminista, graças ao qual
foi possível a criação da Lei Maria da Penha. Também em detrimento
deste movimento9, recentemente na Bahia, as varas de violência
7 Idem, ibidem.
151
doméstica foram renomeadas para Varas da Justiça Pela Paz em Casa.
Ocorre que a CEDAW (Comitê para a Eliminação de todas
as formas de Discriminação contra a Mulher) já recomendou
expressamente10 a não submissão da mulher vítima de violência a
qualquer tentativa de conciliação, que, além de afrontar eventual
medida protetiva concedida em favor da mulher, pode configurar
novo abuso psicológico e revitimização desta11. Nesse sentido, tais
medidas seriam mais um meio reprodutor de violência, mas, dessa
vez, pelo próprio Estado12.
Alguns teóricos e juízes já defendem (e a eles nos alinhamos)
que a mulher pode se recusar a participar de audiência de conciliação
quando sofreu violência doméstica cometida pela parte adversa13.
Desta forma, se homenageia e se cumpre o princípio da dignidade da
pessoa humana, além de seguir os preceitos da lei n.º 13.505 de 2017,
152
que afirma que a mulher não pode ser inquirida na frente do agressor,
salvaguardando-se sua integridade física, psíquica e emocional.
O grande problema destas técnicas de mediação e conciliação
de uma maneira geral, aplicadas nas relações de violência doméstica,
são que, nelas, a violência é tratada como parte de uma problemática
pessoal e familiar (muitas vezes também espiritual), e não como
um problema social baseado na desigualdade entre homens e
mulheres e no machismo culturalmente estabelecido, sem considerar
a necessidade de rompimento desta cultura social reprovável. Elas
visam tão somente a reconciliação familiar, ou seja, o micro, a ponta
da violência, sem olhar o macro e sem se preocupar com o resgate da
autoestima e autoconfiança da mulher.
Ademais, estas técnicas não conseguem monitorar a situação
em concreto após o procedimento, ou seja, verificar e acompanhar se
realmente houve um resultado prático positivo com sua aplicação,
em que a violência não mais voltou a ocorrer entre as partes ou entre
elas e eventuais futuros companheiros.
Ademais, a Lei Maria da Penha pressupõe uma desigualdade
de gênero entre homens e mulheres e, portanto, uma desigualdade de
condições. A mediação e conciliação, por sua vez, pressupõem uma
relação de equilíbrio entre as partes14, que é inatingível nos casos de
violência doméstica e familiar, em que impera uma clara situação de
poder e domínio.
Na mediação, as partes possuem o mesmo status, sendo
possível a escuta do outro e respeito ao sentimento deste. Havendo
a possibilidade de a conciliação ser realizada entre as partes em
qualquer fase processual, nada impede que eventual acordo aconteça,
intermediado pelos respectivos advogados, sem a necessidade de
aproximação física e de diálogo diretamente entre as partes.
A violência contra a mulher é um problema social que deve
153
ser combatido em sua essência, através de forte investimento em
políticas públicas, mas nunca expondo a vítima a um novo sofrimento,
retirando sua autonomia e liberdade de escolha, obrigando-a a novos
contatos com o agressor.
Conclusão
Diante de todo exposto, é importante ressaltar que não nos
colocamos de forma totalmente contrária à introdução de novas
técnicas de solução de conflitos no Judiciário15. Apenas defendemos
que estas medidas devem ser administradas com cautela e restrição
quando dos casos que envolvam uma violência contra a mulher como
pano de fundo da lide.
Como exposto, a mulher não pode ser pressionada nem
responsabilizada pela manutenção da família nuclear onde a
violência permeia. Ela precisa, de forma clara e expressa, concordar
em se submeter a tais métodos após ser advertida dos riscos, além de
ser isenta de eventuais penalidades no caso de não comparecimento,
como a multa prevista no artigo 334, §8º do Código de Processo
Civil.
Além disso, se a intenção dos Tribunais, ao implementarem
técnicas como a da constelação familiar, é propor uma cultura de
paz, não deveriam se eximir de promover estudos sobre a efetividade
dessas novas práticas a médio e longo prazo, a fim de comprovar
que são eficazes na superação da cultura patriarcal machista e
na não reiteração da violência. Por enquanto, nos parece que tais
práticas são revitimizadoras e devolvem à mulher exclusivamente a
responsabilidade pela paz em casa.
154
Referências Bibliográficas
155
DIÓGENES, Juliana. Justiça usa psicodrama em ações familiares. O
Estado de São Paulo [São Paulo, SP]. 16 de Abril de 2018. Disponível em
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,justica-usa-psicodrama-em-
acoes-familiares,70002269984. Acesso em 16/07/2018.
156
O Combate a Revitimização em casos de Violência
Doméstica
Resumo
Exposição da mudança trazida pela Lei 13.505/2017 à Lei
Maria da Penha, a definição do que seria a ‘revitimização’ e como a
mudança de paradigma comportamental poderá auxiliar na obtenção
de resultados mais eficazes para as vítimas.
Segundo dados do Instituto Maria da Penha a cada 7,2
segundos uma mulher é vítima de violência física no país. Em 2015
a Central de Atendimentos à Mulheres, o famoso 180, promoveu 1
atendimento a cada 42 segundos, ou seja, 749.024 mulheres vítimas
de violência doméstica foram atendidas em 2015.
De acordo com levantamento feito pelo site G1, em 2017, os
crimes de feminicídio aumentaram 6,5% em relação a 2016, o que
implica 4.473 homicídios dolosos, sendo 946 feminicídios registrados
em 2017.
Números alarmantes e que demonstram que a mulher no
Brasil não tem segurança nem mesmo dentro de sua própria casa.
157
A violência doméstica é algo que atinge não apenas a vítima,
mas a coletividade feminina do seu entorno, deixando desestabilizada
toda a família que a cerca.
Não raro encontra-se alguem pra produzir a máxima: “em
briga de marido e mulher, ninguém enfia a colher”. Em uma vã
tentativa de empurrar pra baixo do tapete as marcas roxas deixadas
pelo agressor.
Porém, engana-se quem pensa que em briga de marido e
mulher, ninguém enfia a colher. Muito pelo contrário!
A mulher agredida deverá procurar ajuda e amparo dos
órgãos públicos para que as agressões cessem, seja para que o agressor
aprende que isto não se faz, seja para que a ofendida seja separada
em definitivo dele.
Ademais, durante muitos anos, as mulheres eram vítimas duas
vezes, primeiro dentro de casa, depois dentro dos órgãos públicos
por meio da chamada violência institucional.
Era comum policiais masculinos se recusarem a registrar a
ocorrência do ato criminoso sob a alegação esfarrapada de que em
‘briga de marido e mulher, ninguém enfia a colher’. Simplesmente
se negavam a dar o devido atendimento às mulheres vítimas de
violência doméstica.
Ou quando era obrigada a contar o ocorrido para toda a
delegacia, depois para o IML inteiro, depois para o Promotor e
Justiça, para o Juiz e muitas vezes até mesmo para o escrevente do
cartório – impondo-lhe o sofrimento de reviver a dor da agressão de
forma contínua.
Procurando modificar esse comportamento, a Lei nº 13.505, de
8 de novembro de 2017, foi promulgada para reformular a Lei Maria
da Penha, determinando um atendimento mais humanitário e efetivo
às mulheres expostas à violência doméstica, acrescentando os artigos
10-A, 12-A e 12-B a Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, dos
quais merecem destacar:
158
“Art. 10-A. É direito da mulher em situação de
violência doméstica e familiar o atendimento policial e
pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores
- preferencialmente do sexo feminino - previamente
capacitados.
159
normalmente em ambientes frios, hostis e perante pessoas estranhas,
sendo obrigada a contar diversas vezes o ocorrido, revivendo o
trauma sofrido.
Esse reviver, muitas vezes, impede a vítima de prosseguir
com o processo judicial ou de expor de forma clara e objetiva o que
aconteceu, todas as vezes que é inquirida, levando alguns ouvintes
despreparados a duvidar de sua história.
Traduzindo: ‘revitimização’ é o sofrimento continuado que a
vítima padece ao ser obrigada a repetir os fatos ao contá-los a quem
deve analisá-los, processá-los e julgá-los.
Para evitar que a ‘revitimização’ ocorra, o Poder Público deverá
adotar medidas salutares para que a vítima seja ouvida o mínimo
de vezes possíveis, preferencialmente, uma única vez. Promovendo
gravações em vídeo ou áudio do depoimento, anotações eficazes e
completas de tudo que foi declinado por ela e por suas testemunhas.
Tais gravações e anotações servirão para consulta das
autoridades competentes, devendo ser guardados e mantidos em
locais sigilosos, se necessários.
Por outro lado, o ambiente em que ela será ouvida deverá
ser acolhedor, evitando espaços abertos, onde terceiros não poderão
ouvir sua história e seu sofrimento.
E aqueles comentários totalmente despropositados, que
insinuam que a vítima teve ‘culpa’ pelo fato ocorrido, não poderão
mais serem feitos. Está vedado, proibido, ao agente público praticar
atos de machismos contra as mulheres em situação de violência
doméstica.
Tais atos, por si só, já são uma ‘revitimização’ imposta à
vítima.
No passado era muito comum a mulher ir à delegacia em
busca de um suporte e sair de lá mais humilhada do que entrou, tendo
ouvido do delegado e outros homens que ela ‘deixou o bife queimar’
por isto ‘mereceu levar uma bifa do marido’, ou que a ‘roupa que ela
160
usava era a causa do estupro’ que ela tinha sofrido.
Hoje não se aceita mais tal comportamento, a violência
institucional perpetrada contra a vítima deve e precisa ser
encerrada.
Não é justo ter um diploma legal tão apto a garantir a defesa
dos direitos da mulher em situação de violência doméstica e, ao
mesmo tempo, permitir que o Estado, através de seus agentes,
perpetue tais atos.
Esta alteração na Lei Maria da Penha objetiva dar um basta
nisto tudo! Chega de achar que a mulher é a culpada pelo fato do
homem não saber agir com educação e respeitá-la, pelo fato do
homem não ter autocontrole de suas emoções.
“...A prevenção da ‘revitimização’ requer o atendimento humanizado
e integral, no qual a fala da mulher é valorizada e respeitada.”3
A própria Lei Maria da Penha, em seu artigo 26, inciso
II, determina que cabe ao Ministério Público fiscalizar os
estabelecimentos públicos de atendimento à mulher em situação de
violência doméstica.
Pois bem, usando este comando de forma ampla, entende-
se que, caso a mulher venha a ser vítima também da ‘revitimização’,
seja na delegacia, seja na realização do exame de corpo delito, seja
onde for, poderá requerer ao Ministério Público que apure a ausência
do cumprimento da Lei nº 13.505/2017, quando lhe foi negado
atendimento humanitário e condizente com sua dor.
A mulher vítima de violência doméstica - sejam gritos, tapas,
socos, violência sexual etc. - precisa ter consciência de que ela não
tem culpa nenhuma. Não é ela quem deu motivos para sofrer tais
barbáries, mas sim, a pessoa que um dia escolheu amar e ter ao
lado.
161
Calar sua voz, não parará a agressão, ao contrário, fará com
que o agressor se sinta mais forte e cada vez mais hostil.
A Lei Maria da Penha existe para dar voz à sua dor e ajudá-la
a superar tamanha tristeza, sair desse local comum de agressões e
violência, seja ela de que tipo for.
Lembre-se: sozinha somos um grão de areia, juntas podemos
ser uma rocha em defesa dos direitos das mulheres.
162
Referências Bibliográficas
163
A IMPORTÂNCIA DA ADVOCACIA FEMINISTA
FAMILISTA PARA O EFETIVO ENFRENTAMENTO À
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.
Mariana Regis.1
Resumo
O presente artigo se destina a provocar uma reflexão crítica,
por meio da sondagem intelectual de estratégias de confrontação
ao machismo no sistema de Justiça, especialmente no campo das
Famílias. Revela o papel da advogada familista no fortalecimento das
mulheres que deixam seus lares sexistas com a necessária articulação
com profissionais da Psicologia para garantir o amplo sistema de
proteção da sua vida. Restou evidenciada a necessidade de integrar
pensamento e prática feminista no trabalho cotidiano das advogadas,
sobretudo no tocante à interpretação de novos institutos do Direito
das Famílias, como alienação parental e guarda compartilhada, que
vêm se revelando instrumentos de manutenção da violência contra a
mulher e também no combate à litigância abusiva.
Palavras–chave: Advocacia Feminista. Advocacia Familista.
Violência Contra a Mulher. Pensamento Crítico.
164
De que forma podemos contribuir efetivamente para a luta
anti-machista e antirracista, enquanto advogadas familistas? A
palavra, nosso instrumento de luta diário, tem mesmo esse poder
revolucionário, capaz de promover uma transformação do Judiciário
pelo Feminismo?
Bell Hooks, ativista negra feminista afirma em sua obra
“Ensinando a Transgredir - A Educação Como Prática Para a
Liberdade” que: a palavra, quando ganha dimensão coletiva e se
dedica a tocar em feridas como o machismo e o racismo, deve ser
considerada verdadeira prática subversiva.
Portanto, a palavra de uma advogada deve ser encarada como
potente instrumento de luta na garantia dos direitos das mulheres.
A palavra e a escuta, naturalmente. A representação jurídica
de uma mulher que sofreu violência doméstica requer capacitação
técnica constante, mas também o desenvolvimento de uma escuta
qualificada, capaz de identificar opressão sexista e violência
psicológica em situações invisibilizadas social e juridicamente.
165
mulheres.
Especialmente na Bahia, foi aprovada pelo Tribunal de Justiça
a Resolução 47, que, desrespeitando a citada lei federal, estabelece
em seu artigo 3°: “Na área cível, a competência da Vara de Violência
Doméstica abrange apenas o processo e a execução de Medidas
Protetivas de Urgência, definidas nos arts. 22 a 24 da Lei Federal n°
11.340/06 (Lei Maria da Penha)”.
Negar a concessão dos alimentos provisórios pela Vara
especializada, deslocando a questão para a Vara das Famílias, significa
não somente afastar o espírito protetivo da lei Maria da Penha, mas
também submeter a mulher à nova agressão, com o prolongamento
de seu sofrimento físico, material, e também psicológico.
Uma mulher que não consegue se sustentar dignamente,
nem aos seus filhos, não consegue deixar o ciclo da violência. Se
ela é obrigada a seguir compartilhando a guarda sem considerar os
aspectos especiais do caso, idem.
Juízas(es) das Varas de Família não comumente realizam
formação em violência de gênero, tal qual ocorre com as juízas da Vara
especializada. A possibilidade deste elemento não ser considerado
devidamente na análise do seu caso é grande quando ocorre este
deslocamento de competência. Patente, portanto, a importância das
advogadas familistas no fortalecimento destas mulheres.
É evidente o Estado não cessa/combate a violência se não
garante à mulher vitimada o respeito às garantias mínimas processuais
no enfrentamento ao seu agressor.
166
Quantas não desistem após a negativa do órgão, que deveria
acolhê-la?
A realidade é que muitas mulheres terminam por renunciar
aos seus direitos por se encontrarem totalmente vulneráveis. O
período do divórcio/separação é naturalmente delicado. Quando
há incidência de violência doméstica, a situação ganha contornos
de extrema complexidade, especialmente em razão do abuso
emocional.
A violência psicológica pode ser a mais difícil de detectar, mas
é preciso que seja reconhecida. Importante trazer sua definição pela
Lei Maria da Penha, para que observemos o quanto está presente na
maioria das causas litigiosas que acompanhamos:
“Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.”
Da litigância abusiva
Além da desproteção legal por conta do desrespeito à
competência híbrida da Justiça especializada, homens abusivos vêm
empreendendo manobras para enfraquecer as suas ex-companheiras,
por exemplo, por meio do não pagamento ou atraso da pensão
adequada aos filhos, fazendo com que a mãe fique sobrecarregada
financeira, e emocionalmente.
A manipulação do Judiciário para que estas mulheres
desistam ou não defendam bem os seus direitos é feita também por
meio de propagação de inverdades, para que o processo se torne
mais demorado. Assim, conseguem desestabilizar a mulher, obtendo
167
o que querem.
Estas táticas processuais utilizadas sucessivamente a fim de
aterrorizar, controlar, assediar, intimidar, coagir e empobrecer as suas
exs-parceiras, sem que suas alegações tenham suporte na realidade
consistem em litigância abusiva.³
Infelizmente, nos últimos anos, especialmente no campo
das famílias, pedidos de reversão de guarda e as falsas acusações
de alienação parental têm sido um instrumento perverso à serviço
destes sujeitos.
Por isso, é importante atentarmos urgentemente para o fato
de que existe uma íntima relação entre a violência de gênero e as
falsas acusações de alienação parental contra mulheres, bem como a
recusa ou pagamento a menor de pensão aos filhos e injusta partilha
de bens.
As advogadas familistas devem assumir o compromisso com
o combate sistemático e efetivo à litigância abusiva, denunciando o
uso do aparato estatal, por meio de demorados processos judiciais,
como uma das formas de manutenção do poder sobre a vida das
mulheres, por parte dos agressores, após a dissolução da união.
168
Da necessidade de uma produção científica que examine a
experiência no campo das famílias partindo de uma perspectiva
feminista.
Além da alienação parental, há outros institutos recentes, como
a guarda compartilhada e os alimentos compensatórios, marcados
por lacunas. Onde há lacuna, há risco para mulheres. Portanto,
somos nós, advogadas feministas que devemos nos debruçar sobre
a atividade interpretativa destas leis, garantindo que as mesmas não
sejam manipuladas para oprimir e silenciar mulheres, reforçando
estereótipos de gênero – como vem ocorrendo.
A teoria que vai oferecer uma interpretação destes novos
institutos deve nascer da experiência concreta, do contato com as
demandas cotidianas da mulher que se separa e tem filhos, que sofreu
violência doméstica.
Enquanto trabalharmos para resolver as questões destas
mulheres, se nos engajamos em um processo de teorização, estaremos
mais capazes e fortalecidas para defendê-las.
Por isso, a nossa articulação em rede é essencial para que
possamos trocar experiências, materiais, jurisprudência, fortalecendo
a nossa atuação frente a um Judiciário institucionalmente machista.
Considerações finais:
O programa feminista deve ser partilhado em todos os
espaços, desde o momento do atendimento/acolhimento da cliente
em escritório, passando pela produção escrita até as sustentações em
audiências.
Somente com o engajamento na reflexão crítica e na prática
feminista das advogadas no campo do Direito das Famílias será
possível uma transformação efetiva do Judiciário pelo Feminismo,
garantindo às mulheres uma vida mais justa e igualitária.
169
Referências Bibliográficas
170
E AGORA JOSÉ?1
Introdução
Há um velho ditado popular que diz: “em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher”.
Essa assertiva realmente vigorou durante anos em nosso
país, com a preponderância dos homens sobre as mulheres, os
quais, muitas vezes, se achavam “donos” delas e entendiam que elas
deveriam sempre se submeterem aos seus “caprichos”, devendo-
lhes obediência. Contudo, com a evolução da nossa sociedade e dos
direitos humanos em geral, essa situação foi mudando de figura e as
mulheres passaram a se impor nas relações pessoais, lutando pelos
seus direitos.
Prova maior dessa evolução veio no ano de 2006 com a edição
de uma lei visando proteger de forma ampla e irrestrita a mulher em
todos os sentidos, quer seja de ordem física, moral e emocional, como
veremos adiante.
171
Lei Maria da Penha e as sanções aplicadas aos infratores
A Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, popularmente
conhecida como Lei Maria da Penha, recebeu esse nome em
homenagem à luta de uma cearense, que vivia em cárcere privado por
imposição de seu companheiro, foi por ele baleada enquanto dormia
em 1983, o que lhe causou uma lesão que a deixou paraplégica, além
das demais violências perpetradas pelo mesmo e das tentativas de
assassinato imputadas por ele.
Neste ano de 2018, a Lei Maria da Penha completa 12 anos e,
durante sua vigência, já sofreu algumas alterações em seu texto, todas
visando sua melhor adequação à realidade das mulheres vítimas de
violência doméstica em nosso país, principalmente no que concerne
à eficácia das sanções impostas aos infratores.
É nítido que a referida Lei trouxe inúmeros benefícios às
mulheres por meio de medidas protetivas mais eficazes, aumentando,
inclusive, a quantidade de Delegacias especializadas ao atendimento
de mulheres vítimas.
As sanções previstas e aplicadas àqueles que infringirem a Lei
encontram-se previstas no seu artigo 223, podendo ser aplicadas em
3 Lei n.º 11.340/2006. Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor,
em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre
outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão
competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento
do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas
condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas,
fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida,
seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de
determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de
atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais
ou provisórios. § 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras
previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias
o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2o Na hipótese
de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput
e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao
respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas
172
conjunto ou separadamente.
Da mesma forma, a Lei Maria da Penha prevê, em seu artigo
174, as penas que não podem ser aplicadas pelo juiz, quais sejam,
o pagamento de cesta básica, a prestação pecuniária e a multa
isolada.
Evidente que a criação da Lei Maria da Penha foi um grande
progresso social, tendo em vista que as medidas protetivas se
tornaram mais eficazes diante do agressor, a mulher passou a ter um
local apropriado para realizar a denúncia (seja na própria Delegacia
da Mulher ou por meio do Disque Denúncia - 180) e, ainda, nos casos
mais graves, poderá a mulher ser conduzida a um local protegido e
mantida afastada do seu agressor.
Contudo, em muitos casos, os agressores são condenados,
cumprem as medidas impostas pelo Juiz, porém, passado algum
tempo, voltam a cometer os mesmos crimes contra as mulheres,
deixando, assim, a lei em descredito entre as vítimas, que passam a
não confiar na eficácia da norma.
Visando inibir essa reincidência e solucionar o mal pela raiz,
com a reeducação do agressor contumaz, a Prefeitura do Município
de Santo André, juntamente com o Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo e a Secretaria de Administração Penitenciária, no ano de
2015 lançou um projeto inovador, nomeado de “E agora José?”5.
4 Lei n.º 11.340/2006. Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem
como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
5 BRASIL. Santo André inicia projeto socioeducativo para autores de violência doméstica.
Prefeitura do Município de Santo André. 12 de março de 2015. [Santo André, SP].
173
O referido Projeto é um trabalho socioeducativo realizado
com homens autores de violência doméstica contra mulheres, tendo
como principal objetivo a conscientização dos agressores de que
homens e mulheres possuem os mesmos direitos, que não há uma
predominância deles sobre elas e de que as atitudes contrárias a isso
não devem se repetir, estimulando-os, por meio de dinâmicas de
grupo, à reflexão das atitudes que os levaram a cometer esse tipo de
crime.
Nos encontros promovidos pelo Projeto que contam com a
participação dos agressores, busca-se questioná-los sobre os papéis
sociais de gênero que têm legitimado as desigualdades sociais e a
violência contra as mulheres, visando reeducar as suas atitudes
e conduzindo-os à sua responsabilização na violência praticada,
fazendo-os compreender que não devem cometer os mesmos atos
novamente.
Importante frisar que o Projeto possui caráter socioeducativo
e reflexivo, conduzido por uma equipe de profissionais facilitadores
que integram o grupo, porém, em momento algum, substitui, por
si só, as ações policias, jurídicas, médicas e psicológicas de atenção
à violência, sendo apenas um complemento para a ressocialização
e conscientização dos agressores, visando, por meio dos encontros
promovidos, proporcionar a potencialidade das pessoas e do
grupo.
Os agressores participantes garantem que, após se
submeterem aos encontros promovidos pelo referido Projeto, tiveram
grande aprendizado, que os levaram, inclusive, à uma mudança de
comportamento e de atitude em relação às mulheres, compreendendo
que suas atitudes estavam erradas e modificando-as a partir de então,
não voltando a cometer novas agressões.
Disponível em http://www.metodista.br/rronline/noticias/cidades/programa-201ce-
agora-jose-201d-reeduca-homens-autores-de-violencia-domestica-em-santo-andre-2.
Acesso em 30 de julho de 2018.
174
Nota-se que as sanções previstas na Lei aplicadas pelos
Magistrados aos autores da violência doméstica são importantes e
essenciais, porém, atuando na origem do problema, a probabilidade
de sucesso é maior, favorecendo até mesmo a proposta de erradicação
da violência contra a mulher.
Conclusão
Portanto, com o advento da Lei Maria da Penha, cai por terra
aquele velho ditado no início mencionado, pois, em briga de marido
e mulher, “se mete a colher”, haja vista que, nos dias atuais, não se
pode mais admitir que exista esta desigualdade preconizada entre os
sexos, tampouco a submissão da mulher à violência praticada por seu
parceiro, devendo não somente a Lei ser aplicada na íntegra com suas
sanções, como também ampliar projetos como o “E agora José?” para,
assim, conscientizar os agressores, fazendo-os mudar suas atitudes e,
finalmente, acabar de uma vez por todas com essa violência sofrida
há anos pelas mulheres.
175
Referências Bibliográficas
176
177