Obra de Arte e Objeto Estético em Mikel Dufrenne
Obra de Arte e Objeto Estético em Mikel Dufrenne
Obra de Arte e Objeto Estético em Mikel Dufrenne
ISSN: 2526-7892
ARTIGO
Abstract: The objective of this essay is to present the analysis of the aesthetic phenomenon,
undertaken by the french philosopher Mikel Dufrenne in his Phénoménologie de l'expérience
esthétique. Although he acknowledges the impossibility of thinking about the aesthetic
experience without having at least implicitly the artist's gaze, it is through the view of the
spectator that the work of art becomes an aesthetic object. The spectator is the sine qua non
condition for the work of art to stop being a common object among common objects, and
become an aesthetic object. Only aesthetic perception can do justice to the work of art. In
this sense, that distinction will guide our essay: work of art and aesthetic object in the
aesthetic philosophy of Mikel Dufrenne.
*NOTAS INTRODUTÓRIAS
Ainda que Husserl não tenha elaborado no seio da fenomenologia uma reflexão
específica acerca do estético, ou ainda sobre o campo das manifestações artísticas, o
tema da experiência estética encontra no interior da fenomenologia, de forma
particular na recepção francesa, uma atenção especial. Entre os anos 1940 e 1945,
surgem em território francês L’imaginaire: Psychologie phénoménologique de l’imagination
(1940) de Sartre, seguido da Phénoménologie de la perception (1945) de Merleau-Ponty.
Dez anos depois, em 1953, mantendo um constante diálogo com estes dois autores
e afastando-se do caráter idealista da fenomenologia husserliana aparece, ainda no
cenário francês, uma terceira fenomenologia, a saber, Phénoménologie de l’expérience
esthétique, de Mikel Dufrenne (objeto de nosso estudo).
O lema é: “voltar às coisas mesmas”! Fiel pelo menos em parte ao projeto husserliano,
Dufrenne afirma que é preciso ir à realidade mesma das obras de arte e “apreender
aí a especificidade da experiência estética”3, ou seja, apreender na concretude
mesma das obras de arte sua consagração estética. É por isso que a experiência em
torno da qual a Phénoménologie de l’expérience esthétique se propõe refletir não será a do
artista, mas a do espectador4. Para Jacques Taminiaux, a escolha feita por Dufrenne
em descrever a experiência do espectador não é sem motivos.
Neste sentido, é pelo olhar do espectador que a obra de arte se torna um objeto
estético. O espectador é a condição sine qua non para que a obra de arte deixe de ser
um objeto comum dentre os demais objetos comuns para se transformar num
objeto estético. O objeto estético só pode ser definido como o correlato da
experiência estética. De acordo com Jdey e Dussert, o uso do termo correlato por
Dufrenne tem que ser lido num sentido de que há, na experiência, uma “igualdade
3
PINHO, Eunice. A estética de Dufrenne ou a procura da origem. In: Revista Filosófica de Coimbra
– nº. 6 (1994), p. 362.
4 De acordo com Figurelli, embora a Phénoménologie esteja circunscrita à experiência do
espectador, “existe uma intercomunicação entre a experiência do espectador e a experiência do
artista. Não é possível descrever a experiência do espectador sem ter presente, ao menos
implicitamente, a experiência do artista. Trata-se, porém, do artista que a obra de arte revela. É na
obra de arte, portanto, que se realiza o encontro entre espectador e artista” (FIGURELLI, 2004, p.
10).
5 TAMINIAUX, Jacques. Notes sur une phénoménologie de l'expérience esthétique. In: Revue
Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 55, n°45, 1957, p. 93-94.
entre sujeito e objeto”6, i.e. o sujeito é incapaz de reduzir o objeto, do mesmo modo em
que o objeto é incapaz de reduzir o sujeito. Só a percepção estética poderá fazer
justiça à obra de arte. Doravante será essa distinção que vai nortear nosso ensaio:
obra de arte e objeto estético na filosofia estética de Mikel Dufrenne.
6 Cf. DUSSERT, Jean-Baptiste; JDEY, Adnen (dirs.). Mikel Dufrenne et l’esthétique: Entre
phénoménologie et philosophie de la nature, Presses Universitaires de Rennes, 2016.
7 DUFRENNE, Mikel. The Phenomenology of Aesthetic Experience. Trans. Edward S. Casey;
Albert A. Anderson; Willis Domingo Leon Jacobson. Northwestern University Press, 1973, p. 45.
8 FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In: DUFRENNE, Mikel. Estética e
Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004, p. 10.
9 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
13 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004, p. 79.
14 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004, p. 79.
15 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.
16 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004, p. 80.
De acordo com Werle (2015), essa relação recíproca entre sujeito e objeto é possível
devido ao fato de que a percepção estética não se situa num plano exterior ao
objeto, não busca uma verdade sobre o objeto, mas sim a verdade do objeto. Em
clara oposição, não só a Husserl, mas também a Kant, a inter-relação sujeito e
objeto é possível em Dufrenne, a partir do desdobramento da noção do a priori,
“isto é, um conhecimento no sujeito e uma estrutura imanente no objeto. O a priori
não é mais pensado como uma condição lógica do conhecimento, mas
especialmente no objeto como um constituinte, ou seja, como sua forma e sua
essência”19. Por isso a ênfase na experiência do espectador. “O espectador não é
somente a testemunha que consagra a obra, ele é, à sua maneira, o executante que
a realiza”20. Isso não significa uma descaracterização do papel do artista frente à sua
criação. Ele é, antes de qualquer coisa, o primeiro espectador de sua obra. O
espectador, por meio da percepção estética, participa da criação.
Isso resume o paradoxo da intencionalidade: o ser ambíguo mas
irrefutável do fenômeno atesta que o sujeito como objetivado e
o objeto como fenômenos são, ao mesmo tempo, distintos e
correlativos, visto que o objeto existe tanto pelo sujeito, quanto
diante do sujeito21.
Sendo o objeto estético correlato à experiência estética, a obra de arte é presença que
espera sua consagração enquanto objeto estético; assim, ainda restrita à percepção
ordinária. Por estar restrita, num primeiro momento, à percepção ordinária, a obra
de arte guarda em si a possibilidade de não se tornar um objeto esteticamente
percebido. Por isso que, para Dufrenne, apenas a percepção estética do espectador
pode consagrar a obra de arte em sua possibilidade própria.
A obra de arte é o que resta do objeto estético quando não é
percebido – o objeto estético no estado do possível, aguardando
sua epifania [...] A diferença entre obra de arte e objeto estético
decorre do fato de que a obra de arte pode ser considerada como
uma coisa comum, isto é, como objeto de uma percepção e de
um pensamento que a distinguem de outras coisas sem lhe dar
tratamento especial. Mas a obra de arte pode, além disso, ser
objeto de uma percepção estética, o único tipo de percepção que
lhe faz justiça31.
uma parte do mundo, uma coisa entre as coisas; ele conduz o mundo em si como
o mundo o conduz, ele conhece o mundo no ato pelo qual ele é corpo e o mundo
se conhece nele”33. É importante lembrar que, ao acenarem para a ideia de presença,
Merleau-Ponty, e também Dufrenne, se referem a uma presença originária, não
somente a uma simples presença. Podemos encontrar esta presença originária na
consciência, no corpo e no mundo. Estes três elementos expressam, de forma
recíproca, a sua própria natureza. Desta forma, o ser da consciência não pode ser
constituído sem o corpo e sem o mundo, assim como o corpo não pode ser
constituído em sua essência sem o mundo e a consciência e, por fim, o mundo não
subsiste em sua essência sem a consciência e o corpo. Esta presença originária,
como sugere Junglos (2010), é a expressão máxima de um logos estético, um logos
operante que suscita um clamor, uma intencionalidade operante que sustenta a
historicidade de um mundo sensível, de carne. Assim, esta presença originária, além
de possuir um logos operante (estético e cultural), também se caracteriza por sua
abertura.
33 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004, p. 85.
34 FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In: DUFRENNE, Mikel. Estética e
Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004, p. 11.
35 PITA, António Pedro. Presença, representação e sentimento: Configuração da experiência
estética segundo Mikel Dufrenne. In: Revista Filosófica de Coimbra – n.° 7 – vol. 4 (1995), p. 149.
36 DUFRENNE, Mikel. The Phenomenology of Aesthetic Experience. Trans. Edward S. Casey;
Albert A. Anderson; Willis Domingo Leon Jacobson. Northwestern University Press, 1973, p. 378.
37 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004, p. 60.
objeto estético não se identificam. O campo do objeto é mais amplo”38: inclui não
só a obra de arte, mas também o objeto natural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUFRENNE, Mikel. The Phenomenology of Aesthetic Experience. Trans. Edward S.
Casey; Albert A. Anderson; Willis Domingo Leon Jacobson. Northwestern
University Press, 1973.
_______. Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004.
DUSSERT, Jean-Baptiste; JDEY, Adnen (dirs.). Mikel Dufrenne et l’esthétique:
Entre phénoménologie et philosophie de la nature, Presses Universitaires de
Rennes, 2016.
FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In: DUFRENNE, Mikel.
Estética e Filosofia. Tradução Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva,
2004.
_______. La notion d’a priorir chez Mikel Dufrenne. In: LASCAUX, Gilbert
(dir.). Vers une esthétique sans entrave: Mélanges offerts à Mikel Dufrenne, Paris,
UGE, coll. « 10-18 », 1975, p. 134.
HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: introdução à fenomenologia.
Tradução Maria Gorete Lopes e Sousa. Porto: RÉS, Editora, Ltda., s/d.
_______. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes
Buch. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 1950.
JUNGLOS, Márcio. Do logos estético ao logos cultural: implicações éticas da
fenomenologia do corpo próprio. UFSM, 2010 – Dissertação de mestrado.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PINHO, Eunice. A estética de Dufrenne ou a procura da origem. In: Revista
Filosófica de Coimbra – nº. 6 (1994), p. 362.
PITA, António Pedro. A intencionalidade e o mundo dos artistas Mikel Dufrenne
na fenomenologia francesa. In: Revista Filosófica de Coimbra – nº9 (1996).