Fingimento, Metapoeticidade e Estética No Autopsicografia
Fingimento, Metapoeticidade e Estética No Autopsicografia
Fingimento, Metapoeticidade e Estética No Autopsicografia
RESUMO:
O poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa, é dos mais conhecidos no universo poético da
língua portuguesa. Ao início de sua leitura, a primeira estrofe fisga, de imediato, o leitor porque ali
se esboça o mecanismo do ato de fingir, como instrumento da criação literária, num jogo de
repetições e arranjos muito envolvente. Talvez, por isso, é que, de modo geral, o leitor passa ao
largo da segunda e terceira estrofes, mas é exatamente nelas que se encontram as instâncias da
metapoeticidade, em que o poema dobra-se sobre si mesmo, para explicar-se como criação, e da
estética, em que a palavra alcança o leitor, aliviando-o de angústias. Destacar tais aspectos é o
objetivo desta leitura.
ABSTRACT:
The poem Autopsicografia, by Fernando Pessoa, is one of the most known in the poetical universe
of Portuguese language. At the beginning of its reading, first stanza grasps, immediately, the reader
because is sketched in it a feign act mechanism that is a literary creation instrument, fixed in a
seductive settling and repetition full play. Maybe, because of this, reader normally passes by second
and third stanzas paying a little attention, but exactly in them it is possible to find metapoetical
motion, in which the poem turns on itself to show its creative performance, as well to find aesthetics
condition, when the word reaches the reader, relieving his distress. This text aims at detaching such
aspects.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Acho que seria interessante destacar na estrofe, seis palavras fingidor, finge, fingir, dor,
completamente e deveras. Os significantes que se estruturam no étimo fing revelam curiosas
relações quando examinados de perto. Assim, temos:
Fingir – do latim fingere = modelar na argila, depois dar forma a qualquer substância
plástica, esculpir, donde dar feição a, afeiçoar, por extensão: reproduzir os traços de, representar,
imaginar, fingir, inventar. (Houaiss)
Fing – antepositivo, do verbo latino fingo, fingis, finxit, fictum; fingere, propriamente
modelar na argila (figulus,i, poteiro, oleiro) (Houaiss)
À pergunta, o que é o poeta?, o texto responde afirmando que ele é um fingidor, ou seja, é
aquele que imagina, representa, inventa. Mas se se atentar para as significações que foram sendo
incorporadas ao sentido originário de fingir, percebe-se que ganha força a ideia de que, ao
representar a realidade, o poeta acaba imaginando-a e essa significação estendida do étimo latino
evoca, admiravelmente, aquela que o termo cunhou como significado original (modelar a argila) e
que cai como uma luva para indicar a arte da representação do poeta. De fato, se ele é um
modelador da argila, se ele dá forma a qualquer substância plástica, ele é um escultor que dá feição
às coisas, inclusive a ele próprio, poeta, como alguém que toma a realidade para modelá-la, na
senda do imaginário.
Para esclarecer isso, tome-se a palavra de Wolfgang Iser em seu Os atos de fingir ou o que é
fictício no texto ficcional onde se vai verificar que a repetição da realidade, no texto ficcional, é um
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ato de fingir. Mas é bom esclarecer que o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida no
texto, pois essa tentativa teria como resultado apenas uma reapresentação da realidade. Entretanto, o
ato de fingir produz uma ação que faz aparecer o imaginário, esse sim, uma instância que, ao tornar
a realidade um signo, transgride os limites dessa realidade, ao transfigurá-la. E isso ocorre porque o
fingir tem sempre um objetivo que é repetir a realidade numa forma em que ela, paradoxalmente, se
irrealiza enquanto algo vivencial e sobrevive como outra coisa (como signo de outra coisa) e é aí
que está a transgressão que o imaginário produz em relação ao real conhecido.
Nesses termos, pode-se perceber, na concepção do texto, que o poeta é alguém que alcança o
paroxismo do fingimento quando faz aflorar um imaginário em que ele subverte e transgride a
realidade vivencial duas vezes: uma quando finge que sente a dor e outra quando finge que sua dor
mesma é fingida. Cria ele, assim, uma suprarrealidade, transfigurada nos extremos de seus limites.
Também o significante dor, outro elemento importante na primeira estrofe, aparece três vezes:
em duas delas na sua forma explícita (2º. e 3º. versos) e numa outra, disfarçadamente
(fingidamente) acasalada com o fingir: fingi + dor. Essa conjunção da dor com o fingir leva,
inclusive, a outras deduções, pois rompe com os limites da realidade de modo tão cabal que acaba
fazendo com que o fingimento até mesmo ultrapasse os predicados do imaginário para consolidar-se
como uma mentira. Assim, quando se diz que o poeta “finge tão completamente”, a palavra
completamente traz em seu bojo uma composição bastante singular. Primeiro, tem-se a idéia de
mente, ou seja, de intelecto, o que imanta o sentido de modo bastante interessante, pois aí aparece a
mente como a instância que modela todo o sistema de invenção. Em segundo lugar, pode-se
perceber a sugestão de mentira, decorrente da forma verbal mente, do verbo mentir. Pode-se
concluir, então, que o resultado de tudo isso é um fingimento ainda mais avassalador.
E para tornar ainda mais aguda e mais transgressora a relação realidade/fingimento, o texto
faz outra articulação entre mentira e verdade, ao dizer que a dor fingida alcança um extremo para
além da mentira e esse extremo é a verdade, tal como se pode ver no significante deveras, composto
de de + veras, o que significa de verdade, verdadeiramente.
Pode-se, a partir das colocações feitas, afirmar que a primeira estrofe de Autopsicografia é de
feição metapoética, na medida em que procura desvelar os mecanismos da criação ficcional,
fazendo o poema voltar-se sobre si mesmo para explicar-se como construção e arranjo de
significações.
Além desses aspectos, pode-se ainda fazer uma outra inferência sugerida pelo texto. Trata-se
da significativa palavra fingidor, em que, como disse, se articulam as ideias de fingir e de dor. Essa
articulação dá a ver a singular representação de que fingir e dor são elementos tão aglutinados que
um participa, necessariamente, da essência do outro. Logo, a dedução é que o fingimento é algo
doloroso. Como já havia assinalado, o fingimento tanto pode alcançar o imaginário quanto a
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mentira, o que me autoriza concluir que o fingir tanto pode ser a verdade quanto a mentira, e, nesse
ponto, ele toca de forma significativa o princípio do conhecimento, naquela perspectiva colocada
por Nietzsche que vê o conhecimento como o resultado de um embate, uma luta que se trava entre
os instintos. Desse modo, para o filósofo, conhecer é o resultado de confrontos, de disputas, de
enfrentamentos o que, por si, sugere que conhecer é, sobretudo, alcançar uma dimensão que se faz
anteceder de dor, de sofrimento. Essa ideia conecta-se perfeitamente ao que o poeta explicita em
seu poema, quando afirma quão doloroso será o movimento de fingir, ou melhor, de saber fingir,
uma dor que verdadeiramente sente.
Tome-se, em seguida, a segunda estrofe:
O texto volta-se agora para a sua dimensão estética, na medida em que deixa clara uma
função que opera os mecanismos da sensibilidade do receptor. É o que se pode perceber nos dois
primeiros versos dessa segunda estrofe, onde se assinala o conforto que o leitor experimenta ao ler o
que o poeta escreveu: “E os que leem o que escreve, / Na dor lida sentem bem”. Tal conforto é
resultado de uma espécie de catarse que é promovida pela ação da estética e aqui me refiro aos
princípios agenciadores da estética tais como foram formulados por Schiller. Para o dramaturgo e
poeta alemão, a estética guarda uma grande proximidade com a questão do autoconhecimento, tal
como se pode ver nos seus escritos dirigidos a um seu mecenas, o príncipe dinamarquês Frederico
Cristiano de Augustenburg (1791). Tais escritos, denominados Cartas sobre a educação estética da
humanidade * , revelam uma práxis educativa e política que procura estabelecer a importância do
chamado “reino estético” (também denominado “terceiro caráter”), algo que estabelecia a ligação
ente o ser físico e o ser moral do homem. Essa dimensão torna Schiller um pensador que extrai da
estética uma função que vai muito além da simples indagação do belo, pois estabelece uma
dinâmica que se processa entre os dois movimentos essenciais do ser humano que são os seus
sentidos, vale dizer, sua sensibilidade, e sua razão. Pode-se ainda afirmar que tal processo revela
como é possível ao homem articular os impulsos, de um lado, e a vontade moral, de outro.
Mas a importância fundamental que Schiller confere à estética está, justamente, no
equilíbrio que a obra artística pode produzir no ser humano. Como o pensador alemão insiste em
dizer, a civilização especializada acabou por romper aquela primitiva unidade ingênua do homem, o
que teve como consequência uma fragmentação do sujeito que o levou a divorciar-se quase
* Essa publicação saiu, posteriormente, no Brasil, com o título de A educação estética do homem.
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inteiramente da natureza, sufocado pelas pressões da razão instrumental. Dessa forma, a esperança
que resta ao homem é poder recompor o equilíbrio entre natureza e mente humana, operação que
tem na estética um significativo aliado, ao acionar os mecanismos do gosto através das sensações.
Schiller, inclusive, entende que o gosto promove a atividade das faculdades superiores do espírito,
auxiliando a razão no equilíbrio com a sensibilidade. É aí que surge um elemento essencial na
compreensão do papel da estética na formação do ser. Trata-se da convicção de Schiller de que as
apresentações do gosto “suavizam ou reparam a violência que é feita à sensibilidade”.
Desse modo, pode-se perceber, no poema de Pessoa, a convicção de que o texto artístico
pode aliviar o leitor da dor, a partir da constatação de que o leitor suaviza o seu desconforto quando
se dá conta de que as duas dores que acometem o poeta representam aquela que ele não tem.
Nesse ponto, explicita-se o fato de que o conforto resultante da ação estética é obtido pela
catarse, ou seja, pela purificação de incômodos emocionais ou afetos descontrolados. Aristóteles, na
Poética, pontua tais aspectos, ao dizer que a catarse, na tragédia, deriva da purificação dos
sentimentos do terror e da piedade. Pela afirmação, percebe-se que a função catártica está
intimamente relacionada com os sentimentos da paixão e da emoção e é aí que reside o efeito
pedagógico da tragédia. Podemos transferir, pois, tal raciocínio para o que representa a purificação
das emoções na obra de arte, de modo geral. Ela significa uma ação que propõe um equilíbrio, uma
vez que a purificação tal como foi proposta por Aristóteles tem o sentido de purgação e não de
expurgação, posto que expurgar é algo que promove uma purgação completa, ou seja, uma
purificação total que termina por retirar o que é maculado ou impróprio. E a ação estética,
intimamente associada à catarse, tem por objetivo a purgação, isto é , a purificação das paixões e
das emoções, a fim de restaurar o equilíbrio perdido.
E na segunda estrofe do poema, o que se tem é exatamente isso: a purificação da emoção do
leitor ao perceber que sua dor não existe.
Essas reflexões sobre a estética se completam na terceira e última estrofe do poema:
Nessa parte, a dimensão estética aparece de modo ainda mais caracterizado. Primeiro,
porque mostra o aspecto lúdico presente no texto. O lúdico, como se sabe, tem notável importância
para alcançar o prazer, um dos elementos do efeito estético. Em segundo lugar, porque, para além
de referir ao equilíbrio típico da ação estética, deixa entrevista a perspectiva de que tal equilíbrio é
resultado de um trabalho árduo no confronto entre razão e emoção.
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O aspecto lúdico está marcado na presença infantil, sugerida na metáfora do “comboio de
corda”, ou seja, do brinquedo de criança representado por um trenzinho de ferro que gira (que roda)
nas calhas de roda, isto é, nos trilhos, acionado por corda, ou, num outro sentido, puxado por um
cordame. No redimensionamento da metáfora, pode-se ver que o comboio de corda ultrapassa a
significação de brinquedo para alcançar a significação de coração, tal como o texto mesmo
explicita: “Esse comboio de corda / Que se chama o coração”.
Nesse momento, faz-se patente o confronto razão versus coração, ou seja, razão versus
emoção. E a ideia do confronto expõe-se na colocação de que o comboio de corda atua no sentido
de “entreter a razão”. Essa significação do entreter deixa à mostra um confronto que não se coloca
de forma truculenta, mas de forma sedutora, o que vai caracterizar, exatamente, a busca do
equilíbrio, marcado no jogo lúdico que o sentimento estabelece com a razão.
Quanto ao trabalho árduo que tal jogo realiza, diga-se que ele está indicado numa outra
figuração da linguagem. Note-se que o comboio de corda – o sentimento, a sensibilidade – gira nas
calhas de roda. Quer dizer, o significante calhas indica, com precisão, a ideia de trilhos, o que
caracteriza o aspecto de direção conduzida, de movimentação controlada. Assim, o sentimento, na
sua tarefa de entreter a razão, atua dentro de limites impostos pela razão, motivo por que a busca do
equilíbrio é tarefa de ininterrupta duração.
Desse modo, na articulação entre sensibilidade, imaginação (fingimento, imaginário) e
racionalidade (a poderosa presença da razão), o ato de fingir é essencial para promover o equilíbrio
entre a sensibilidade e a razão, uma vez que, com a invenção de uma realidade – a transfiguração ou
a recriação da realidade – alcança-se o terreno da estética, movimento que envolve o sujeito da
leitura, aliviando-o, enquanto ser humano, da angústia de uma fragmentação que a razão
instrumental vem, ininterruptamente, impondo a ele. Nesse sentido, pode-se dizer que o
“Autopsicografia” é um exemplo precioso de como a obra literária pode atuar no sentido de aliviar e
até de prevenir para a necessidade de conscientizarmo-nos quanto ao processo de
instrumentalização do sujeito que a civilização da técnica e do desenvolvimento impõe a todos nós.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. Trad. Heidrun krieger
Olinto e Luiz Costa Lima. In: LIMA, Luiz Costa (Org.), Teoria da literatura em suas fontes. 2ª. ed.
rev. e ampl., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 364-416.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Editora Escala, 2006. p.
192.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995.
SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: EPU, 1991.