Entrevistas Preliminares
Entrevistas Preliminares
Entrevistas Preliminares
Entrevistas preliminares:
marcos orientadores do tratamento psicanalítico
Anna Barbara de Freitas Carneiro
Breno Ferreira Pena
Ione Maria Cardoso
Resumo
O presente estudo discorre sobre os pontos principais das entrevistas preliminares, chamadas
por Freud, em seu conjunto, de “tratamento de ensaio”. Procura marcar os pontos fundamentais
quanto às entrevistas preliminares nas suas funções de detectar os sintomas, fazer o diagnóstico
e trabalhar a transferência.
Palavras-chave
Entrevistas preliminares, Sintoma, Diagnóstico, Transferência, Resistência.
Freud ([1913] 1996) relatou ter o hábito o absolutamente necessário para que ele
de fazer um “tratamento de ensaio”, no continue no que está dizendo. Há razões
início do atendimento do paciente, antes diagnósticas para que isso seja feito, pois
da análise propriamente dita, para evitar esse é o momento em que a questão da
a sua interrupção após certo tempo, ligada estrutura está em jogo. Esse tempo de
à transferência. O primeiro objetivo seria diagnóstico faz com que seja possível
ligar o paciente ao tratamento e à pessoa distinguir as entrevistas preliminares da
do analista, e estabelecer o diagnóstico, análise propriamente dita.
em particular, a diferença entre neurose A associação livre mantém a identifi-
e psicose. cação das entrevistas preliminares com a
Lacan ([1955-1956] 1998) chamou de análise em um contínuo, e geralmente, se
“entrevistas preliminares” esse limiar, essa não houver contraindicação, o paciente
porta de entrada para a análise propria- passa para o divã.
mente dita, um tempo de trabalho prévio As entrevistas preliminares podem
antes de adentrar o discurso analítico. Esse ser divididas em dois tempos: o tempo de
preâmbulo é considerado por Lacan uma compreender e o momento de concluir,
condição absoluta, não havendo entrada a partir do qual o analista decidirá se
em análise sem as entrevistas preliminares irá acatar ou não aquela demanda de
(Quinet, 1991). análise.
Segundo Freud ([1913] 1996) esse
ensaio preliminar é, ele próprio, o início A função sintomal
de uma análise e deve se conformar às Na função sintomal deve-se promover
suas regras, especialmente a associação uma passagem da queixa denunciada pelo
livre, e não se explica nada mais do que sujeito para um sintoma analítico.
Quinet (1991, p. 20-21) afirma: Já para Lacan, é preciso que esse sin-
toma, que é um significado para o sujeito,
É preciso que essa queixa se transforme readquira sua dimensão de significante
numa demanda endereçada àquele ana- implicando o sujeito e o desejo. O sintoma
lista e que o sintoma passe do estatuto aparece como um significado do Outro – s
de resposta ao estatuto de questão para (A) –, é endereçado pela cadeia de signi-
o sujeito, para que este seja instigado a ficantes ao analista, que está no lugar do
decifrá-lo. Outro – (A).
Cabe ao analista transformar esse sin-
Portanto, cabe ao analista introduzir toma na questão que Lacan ([1960] 1998,
o desejo nessa dimensão sintomal. Essa p. 829) coloca da seguinte forma: “Que
função sintomal (“sinto-mal”) surge a queres”? (Che vuoi?), questão chamada
partir da demanda de análise, ou seja, o desejo. O analista deverá introduzir o
que levou o sujeito a procurar um analista. desejo na dimensão do sintoma, que deve
Lacan acredita que a demanda de aná- ser apresentado como uma questão.
lise não deve ser aceita em estado bruto, O sintoma também pode ser levado
mas deve ser questionada. Ele não acredita ao estatuto do enigma, para em seguida
em quem procura um analista para se desaparecer e se deslocar para outro tipo
conhecer melhor, considera que essa não de sintoma. A constituição do sintoma
é uma demanda de análise e costumava analítico é correlata ao estabelecimento
nem aceitar (Lacan apud Quinet, 1991). da transferência. Aí aparece o sujeito
Para Lacan (1976, apud Quinet 1991, suposto saber, pivô da transferência. A
p. 33.) a única demanda verdadeira é histerização ocorre no momento em que
aquela que se particularizará num sujeito o sintoma é transformado em enigma,
que se apresenta ao analista representado pois aí o sintoma representa o sujeito
por seu sintoma. A demanda de análise é dividido ( ).
correlata à elaboração do sintoma enquan- Antes que se inicie a análise, o sinto-
to sintoma analítico. A analisabilidade, ma é considerado um signo (sinal): aquilo
que é função do sintoma, e não do sujeito, que representa alguma coisa para alguém.
deve ser buscada para que a análise se Quando esse sintoma se transforma em
inicie, com o objetivo de conseguir trans- questão, ele aparece como a própria
formar em sintoma analítico o sintoma do expressão da divisão do sujeito. Nesse
qual o sujeito se queixa. momento, o sintoma, ao ser endereçado
É preciso que a queixa apresentada se ao analista, é transformado em sintoma
transforme numa demanda endereçada ao analítico. Foi o que Lacan, (1976 apud
analista e que o sintoma passe da busca QUINET, 1991, p. 18) buscou esclarecer
de uma resposta junto ao analista para o com a formulação: “o analista completa o
modo de interrogação, em que o sujeito sintoma” – que corresponde ao discurso
vai buscar decodificar a mensagem cifrada da histérica.
do inconsciente. Com esse sintoma o sujeito se dirige
Durante as entrevistas preliminares, o ao analista com questões como: “O que
analista deverá procurar saber a que esse isso quer dizer?”; “O que isso significa?”.
sintoma está respondendo, que gozo esse Coloca o analista no lugar de um saber
sintoma vem demarcar, bordejar. Na visão sobre o gozo que está em causa, que vem
de Freud seria o mesmo que perguntar: mostrar a verdade escamoteada do sinto-
O que fez fracassar o recalque e brotar o ma. Manobra fadada ao fracasso, devido
retorno do recalcado para que fosse cons- à impotência do saber em dar conta da
tituído o sintoma? (Quinet, 1991). verdade do gozo.
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correlacionado. Dado que o analista será temente do obsessivo, ela não deve nada:
convocado a ocupar na transferência o é o Outro que lhe deve. Se o obsessivo
lugar do Outro do sujeito, a quem serão escamoteia a inconsistência do Outro,
dirigidas suas demandas, é importante de- supondo-lhe o gozo, para a histérica o
tectar nesse trabalho prévio a modalidade Outro não tem o falo. Ela tampouco o
da relação do sujeito com o Outro. possui, e assume, no entanto, a função de
faz de conta de ser o falo.
O obsessivo A histérica não é escrava. Ela des-
Para o obsessivo, o Outro goza, um gozo mascara o senhor fazendo greve. Mas está
terrível e mortificador. Esse Outro do sempre à procura de um senhor, não para
obsessivo é patente no pai da horda pri- se submeter a ele, mas para reinar, apon-
mitiva, um mito de obsessivo. É o Outro tando-lhe as faltas. A histérica estimula o
detentor de gozo que impede seu acesso desejo do outro e dele se furta como obje-
ao sujeito. Para esse Outro nada falta, por- to, o que confere a marca da insatisfação
tanto não deve desejar. O obsessivo anula a seu desejo.
o desejo do Outro e se instala nesse lugar,
marcando seu desejo pela impossibilidade. O desejo nos tipos clínicos
Trata-se de um Outro que comanda Os tipos clínicos se situam distintamente
e o vigia constantemente. Para não dei- quanto ao desejo, que é estruturado como
xar emergir o gozo do Outro, o obsessivo uma questão: “Quem sou eu?”.
anula seu desejo e tenta preencher todas Para o obsessivo, trata-se de uma
as lacunas com significantes para barrar questão sobre a existência: Estou vivo?
esse gozo: ele pensa, duvida, calcula, Estou morto? Para a histérica, sobre o sexo:
conta incessantemente. Fica na posição Sou homem? Sou mulher? Mas ambos
de escravo, situando o Outro como mestre têm subjacente a questão: “O que é ser
e senhor, tentando demonstrar suas boas mulher?”. Essa questão se faz a partir da
intenções em seu trabalho, que lhe deveria outra mulher.
dar acesso ao gozo. Freud ([1905] 1996) baseia seu
Na clínica do obsessivo, encontramos diagnóstico de Dora na conotação de
a conjugação no Outro de dois significan- desprazer, mesmo repugnância, confe-
tes: o pai e a morte, articulando a Lei com rida ao gozo sexual. Essa conotação de
o assassinato do pai, na constituição da menos prazer da histérica e mais prazer
dívida simbólica. Isso fica evidente nos do obsessivo está na obra de Freud. A di-
impasses do obsessivo relativos à paterni- ferenciação pode ser feita a partir da mo-
dade, ao dinheiro, ao trabalho, à justiça, à dalidade de gozo vivenciado no primeiro
legalidade. Como é o fiador do Outro, seu encontro com o sexo e da vicissitude da
desejo é condicionado pelo contrabando. representação vinculada a essa experiên-
cia. Trata-se de um critério diagnóstico
A histérica determinado pela fantasia fundamental,
Para a histérica, o Outro é o Outro do de- que não deve ser desconsiderada nas
sejo, marcado pela falta e pela impotência entrevistas preliminares.
em alcançar o gozo. A histérica concede
ao Outro o lugar dominante na cena de A função transferencial
sedução de sua fantasia sexual, onde ela Lacan (1956-1956) nos diz que “no co-
está presente não como sujeito, mas como meço da psicanálise é a transferência”, e
objeto: “não fui eu, foi o Outro”. o seu suporte é o sujeito suposto saber. A
Isso aparece na clínica como uma emergência do sujeito sob transferência
reivindicação ao Outro, a quem, diferen- sinaliza a entrada em análise, e há o desejo
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é fazê-lo surgir como desejo do Outro, le- O analista introduz o paciente a uma
vando o desejo à categoria de enigma pela primeira localização de sua posição na
ligação do desejo com o saber. Não basta realidade que o analisando apresenta.
a demanda de se livrar de um sintoma: é O analisando fala de sua posição na sua
preciso que o sintoma apareça como algo realidade, inscrita na família, no casal, em
a ser decifrado, na dinâmica da transfe- uma relação amorosa, no trabalho.
rência através do sujeito suposto saber. O que importa ao analista, principal-
O amor de transferência quer saber. mente, se refere à relação que a pessoa
Porém, sua finalidade é o objeto causa de que faz uma consulta mantém com seus
desejo, o objeto a, que confere à transfe- sintomas. É sobre esse ponto que incidirá
rência seu aspecto real: de real do sexo. o que se chama “retificação subjetiva”. Isso
Freud (1912 apud Nasio, 1999, p. significa que o analista intervirá no nível
57) diz: da relação do Eu do sujeito com os seus
sintomas. Para isso, é essencial nas primei-
Concluímos que todas as relações de or- ras entrevistas discernir bem o motivo da
dem sentimental utilizáveis na vida, tais consulta, a razão pela qual a pessoa decidiu
como a simpatia, a amizade, a confiança, procurar um psicanalista.
etc., todas essas relações emanam dos O sentido, isto é, a relação do Eu
desejos verdadeiramente sexuais. [...] A com o sintoma, se decide na relação com
psicanálise nos mostra que pessoas que o primeiro gesto, com a primeira decisão
acreditamos respeitar, estimar podem de recorrer a um outro. É nesse nível que
continuar a ser, para nosso inconsciente, o analista intervém introduzindo essa
objetos sexuais. retificação subjetiva.
Durante as primeiras entrevistas,
Portanto, a transferência tem a deve-se distinguir bem o motivo pelo
vertente da colocação em ato da rea- qual o paciente nos procura. Qual é a
lidade sexual do inconsciente. Se na demanda implícita presente na análise?
transferência há a comparecimento da Pode ser o desejo de se curar de um sin-
realidade do inconsciente enquanto toma, a demanda de se mostrar, revelar
sexual, é por causa desse objeto mara- o que ele mesmo é, se conhecer melhor,
vilhoso – agalma, a essência do desejo, ou pode ser a demanda de se qualificar
o maravilhoso saber escondido. como analista.
O analista faz de conta que tem o Na retificação subjetiva há a res-
agalma, provocando a torção dos termos ponsabilização do sujeito na escolha de
do que era o discurso histérico e fazendo sua neurose, introduzindo-se a dimensão
com que o analisando entre no discurso ética, da ética da psicanálise, que é a ética
analítico propriamente dito, onde o sujeito do desejo – como resposta à patologia do
passa a produzir os significantes mestres ato que a neurose tenta solucionar esca-
(S 1) do seu assujeitamento ao Outro moteando-a.
(Quinet, 1991). A retificação subjetiva corresponde
ao primeiro reviramento dialético opera-
A retificação subjetiva do por Freud. Ela consiste em perguntar:
Uma das fases no desenrolar temporal “Qual é a sua participação nisso de que
de um tratamento é a que Ida Macalpine você se queixa?”.
(1972) e Lacan (1966 apud Nasio, 1999, A partir das intervenções de Freud,
p. 12) chamaram de “fase de retificação podemos inferir duas vertentes da reti-
subjetiva”, que ocorre nas entrevistas ficação subjetiva segundo o tipo clínico.
preliminares. Com o neurótico obsessivo, ela está no
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Conclusão
Nem todo paciente que procura um ana-
lista é analisável. Só é analisável quem é
capaz de transferência, isto é, capaz de Referências
desenvolver com o analista uma neurose
BUENO, C. M. O.; SANTOS, R. N. Entrevistas
dita “de transferência”. E para que um preliminares e transferência: sua importância para
tratamento analítico continue e termine, a o atendimento clínico. Disponível em: <http://
condição é que o analisando seja ou tenha www.institutoexpansaosistemica.com.br/f/userfi-
sido neurótico (Nasio, 1999, p. 31). les/file/Artigo%20Romualdo.pdf>. Acesso em:
03 fev. 2016.
Por outro lado, Quinet (1991, p.
16) enfatiza que o que está em questão CLÉRAMBAULT, G. de. Les Psychoses
nas entrevistas preliminares não é se o Hallucinatoires Chroniques. Analise et
sujeito é analisável, se tem um eu fraco Psychogenie. Ann. Méd. Psychol., I, 1924, p. 183-185.
ou forte para suportar as agruras do
DAMOURETTE, J.; PICHON, E. Des mots à la
processo analítico. Ele enfatiza que a
pensée. Grammaire. Paris: Artrey, 1930.
analisabilidade seria função do sintoma,
e não do sujeito e deve ser buscada para FORBES, J.; FERRETI, C. Entrevistas preliminares
que a análise se inicie, transformando e função diagnóstica nas neuroses e nas psicoses.
em sintoma analítico o sintoma do qual Disponível em: <http://www.jorgeforbes.com.br/
br/artigos/entrevistas-preliminares-funcao-diag-
o sujeito se queixa.
nostica.html>. Acesso em: 03 fev. 2016.
Finalizando, dar início a uma psica-
nálise, a partir da demanda de alguém, FRAZÃO, F. As entrevistas preliminares e o
depende de o psicanalista aceitar aquele diagnóstico diferencial em psicanálise. Disponível
sujeito que o procura como analisando. em: <http://www.psicanalise.ufc.br/hot-site/pdf/
Trabalhos/28.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2016.
Daí a importância das entrevistas preli-
minares, que têm sua função diagnóstica, FREUD, S. Fetichismo (1927). In: ______. O fu-
sintomal e transferencial, o que correspon- turo de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros
de ao que Freud denominou “tratamento trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução
de ensaio”. j de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
p. 155-160. (Edição standard brasileira das obras Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 807-842.
psicológicas completas de Sigmund Freud, 21). (Campo Freudiano no Brasil).