Vol1 Anne de Green Gables - Lucy Maud Montgomery
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Capítulo I
A Surpresa de Rachel Lynde
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quanto aos riscos, bem, eles existem em quase tudo que uma criatura faz nesse
mundo. Existem riscos quando as pessoas têm seus próprios filhos, se isso é
para acontecer – nem sempre as crianças saem bem. E Nova Scotia é bem
perto da ilha. Não é como se estivéssemos trazendo o menino da Inglaterra ou
dos Estados Unidos. Ele não pode ser muito diferente de nós.
— Bem, eu espero que tudo isso dê certo – disse Mrs. Lynde, em um
tom que dificilmente escondia suas dolorosas dúvidas – Apenas não diga que
não lhe avisei, se ele atear fogo em Green Gables, ou colocar estricnina na água
do poço – eu soube de um caso, lá em New Brunswick, onde uma menina de
orfanato fez isso, e a família inteira morreu em terrível agonia. Apenas era uma
menina, ao invés de um menino.
— Bem, nós não estamos trazendo uma menina – afirmou Marilla, como
se envenenar águas de poço fosse uma coisa puramente feminina, e não algo a
ser temido no caso de um menino –, eu nunca sonharia em pegar uma menina
para criar. Surpreendo-me de Mrs. Spencer estar fazendo isso. Mas então, ela
não recuaria em adotar um orfanato inteiro se pusesse isso na cabeça.
Mrs. Lynde teria gostado de ficar até que Matthew chegasse com seu
órfão importado. Mas, refletindo que ainda se passaria ao menos duas horas
até sua chegada, ela concluiu que seria melhor ir até a casa de Robert Bell e
contar as novidades. Isso certamente causaria alvoroço, e Mrs. Lynde adorava
gerar inquietação. Então ela se foi, não sem o sentimento de alívio da parte de
Marilla, pois esta sentia seus próprios medos e dúvidas revividos sob a
influência pessimista de Mrs. Lynde.
— Bem, por todos os santos do céu! – exclamou Mrs. Lynde, quando
estava segura, caminhando fora da alameda – Realmente não parece que eu
esteja sonhando. Bem, sinto muito por esse pobre jovem, sem dúvida. Matthew
e Marilla não sabem nada sobre crianças e esperam que esse menino seja mais
sábio e firme do que seu próprio avô, se é que ele teve um avô, o que é
duvidoso. Parece-me esquisito, de algum modo, pensar em uma criança em
Green Gables. Nunca houve nenhuma, pois Matthew e Marilla já eram adultos
quando a nova casa foi construída – se é que algum dia eles foram crianças, o
que é difícil de acreditar quando olhamos para eles. Eu não queria estar na
pele desse órfão por nada. Meu Deus, tenho pena dele, isto é que é.
Assim disse Mrs. Lynde para os arbustos de rosas selvagens, do fundo
de seu coração. Mas se ela pudesse ver a criança que estava esperando
pacientemente na estação de Bright River naquele exato momento, sua
piedade teria sido ainda mais intensa e muito mais profunda.
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Capítulo II
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oficial, com seriedade –, mas há uma passageira que foi deixada aí para você;
uma menininha. Ela está sentada lá naquelas telhas. Perguntei a ela se queria
se sentar na sala de espera das senhoras, mas me informou seriamente que
preferia ficar do lado de fora. ‘Existe mais escopo[4] para a imaginação’, disse.
Ela é uma figura, eu deveria dizer.
— Eu não estou esperando uma menina – disse Matthew, pasmado —
Vim para buscar um menino. Ele deveria estar aqui. Mrs. Alexander Spencer
estava trazendo-o de Nova Scotia para nós.
O oficial da estação assobiou.
— Aposto que aconteceu algum engano. Mrs. Spencer desceu do trem
com aquela menina e me deixou tomando conta dela. Disse que você e sua
irmã estavam adotando-a de um orfanato e que logo estariam aqui para buscá-
la. Isto é tudo que eu sei – e não tenho nenhum outro órfão escondido aqui
pelas redondezas.
— Eu não entendo – balbuciou Matthew, debilmente, desejando que
Marilla estivesse ali para lidar com a situação.
— Bem, seria melhor perguntar à menina – disse o oficial,
cuidadosamente –, e ouso dizer que ela saberá explicar; ela tem uma língua
própria, isso é certo. Talvez eles estivessem sem nenhum menino do tipo que
vocês queriam.
O oficial caminhou alegremente para longe, estando já com fome, e o
pobre Matthew foi deixado para fazer aquilo que era para ele mais difícil do
que barbear um leão em sua caverna: caminhar até uma menina – uma menina
estranha – uma órfã – e perguntar-lhe por que ela não era um menino.
Matthew suspirou em sua alma enquanto dava volta, e foi em direção a ela,
arrastando os pés vagarosamente na plataforma.
A menina esteve observando-o desde que ele passara por ela, e seu
olhar estava sobre ele agora. Matthew não estava olhando para ela e mesmo
que o tivesse feito, não teria visto como ela era; mas um observador comum
teria visto o seguinte: uma criança de mais ou menos onze anos, trajando um
vestido cinza amarelado de chita, muito curto, apertado e feio. Ela usava um
chapéu marrom e desbotado e, debaixo deste, estendendo-se pelas costas,
estavam duas tranças de um cabelo espesso e decididamente ruivo. Seu rosto
era pequeno, branco e magro, e também muito sardento; a boca era grande e
os olhos também, e pareciam ser verdes sob um tipo de luz e humor, e cinza
em outros.
Até agora, é o que veria o observador comum; um bom observador
poderia ter visto que o queixo era pontudo e pronunciado, os olhos grandes
eram cheios de espírito e vivacidade, a boca tinha lábios finos e expressivos, e
a testa era larga e ampla. Resumindo, nosso extraordinário observador
perspicaz concluiria que nenhuma alma comum habitava o corpo desta
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coisas sobre eles, fantasiar que talvez a menina que senta ao seu lado fosse a
filha legítima de um conde, roubada de seus pais em sua infância por uma
babá cruel, que morreu antes de poder confessar. Eu costumava ficar acordada
durante as noites e inventar coisas como estas, pois não tinha tempo durante o
dia. Creio que seja este o motivo de eu ser tão magrinha; eu sou
assustadoramente magra, não sou? Não tenho muita carne nos meus ossos. Eu
amo imaginar que sou bonita e gordinha, com covinhas no cotovelo.
Com isso, a companheira de Matthew parou de falar, em parte por já
estar sem fôlego, e em parte porque haviam chegado à carroça. Ela não disse
mais nenhuma palavra até deixarem o vilarejo e dirigirem por uma encosta
íngreme: a parte da estrada a qual fora cavada tão profundamente no solo
macio que a margem estava muitos pés acima de suas cabeças, bordada por
cerejeiras silvestres em flor e pequenas bétulas brancas.
A menina levantou a mão e arrancou um ramo de flor de ameixeira que
raspava do lado da carroça.
— Não são lindas? Está vendo aquela árvore encostada na margem,
toda branca e rendada? Em que ela faz o senhor pensar? – ela perguntou.
— Bem, eu não sei – respondeu Matthew.
— Ora, uma noiva, é claro – toda de branco com um adorável véu
enevoado. Eu nunca vi uma, mas posso imaginar como ela se pareceria. Eu
mesma nunca almejei ser uma noiva. Sou tão sem graça, ninguém jamais vai
querer se casar comigo; a não ser que seja um missionário estrangeiro.
Suponho que um missionário não tenha tão altas aspirações. Mas espero que
um dia eu possa ter um vestido branco. Este é, para mim, o mais alto ideal de
alegria terrena. Eu simplesmente amo roupas bonitas. E nunca tive um vestido
bonito em toda a minha vida, pelo menos que eu me lembre – mas é claro que
existem coisas muito mais importantes para se almejar, não é mesmo? E então
posso imaginar que estou vestida lindamente. Esta manhã, quando fui embora
do orfanato, senti-me tão envergonhada por ter de usar este vestido de chita
velho e horrendo. Todos os órfãos têm de usá-lo, sabe. No inverno passado, um
mercador em Hopeton doou trezentas jardas de chita para o orfanato. Algumas
pessoas disseram que ele fez isso por não ter conseguido vender o tecido, mas
prefiro pensar que ele fez isso porque tem um coração gentil – o senhor não
pensaria assim? Quando entramos no trem, eu senti como se todas as pessoas
estivessem olhando pra mim, e sentindo pena. Mas então minha imaginação
começou a trabalhar, e eu fantasiei que estava usando o mais lindo vestido de
seda azul pálido – porque quando se está imaginando, sempre se pode
imaginar algo que valha a pena – e um grande chapéu todo florido, com
plumas balançando, e um relógio de ouro, luvas de pelica e botas. Alegrei-me
na hora, e aproveitei minha viagem até a ilha com toda a minha vontade. Não
fiquei nem um pouco enjoada quando estávamos no barco. Nem Mrs. Spencer,
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embora ela geralmente enjoe. Ela disse que nem teve tempo de ficar enjoada,
cuidando para que eu não caísse para fora do barco. Falou que nunca viu
alguém que fosse mais inquieta do que eu. Mas se isso a impediu de enjoar,
então foi uma bênção eu ter perambulado, não foi? Eu queria ver tudo o que
havia para ser visto naquele barco, pois não sei quando terei outra
oportunidade. Oh, tem muito mais cerejeiras florescendo! Esta ilha é a parte
mais florida do mundo. Eu simplesmente já amo este lugar, e estou tão feliz
que irei viver aqui. Sempre ouvi falar que a ilha de Prince Edward era o lugar
mais bonito de todos, e costumava sonhar que morava aqui, mas nunca pude
imaginar que viria de verdade. É tão agradável quando os sonhos se tornam
realidade, não é? Mas aquelas estradas vermelhas são tão engraçadas. Quando
entramos no trem em Charlottetown e começamos a passar rapidamente pelas
sendas vermelhas, perguntei a Mrs. Spencer o que fez com que elas ficassem
vermelhas. Ela me respondeu que não sabia, e que pelo amor de Deus não
fizesse mais nenhuma pergunta, pois eu já devia ter-lhe feito umas mil
perguntas. Suponho que fiz, sim; mas como descobrir as coisas se não fizer
perguntas? E o que faz as estradas ficarem vermelhas?
— Ora, eu não sei – disse Matthew.
— Bom, aí está uma coisa para esclarecer algum dia. Não é esplêndido
pensar em todas as coisas que existem para serem descobertas? Isso me faz
sentir alegria em estar viva; é um mundo tão interessante! Não seria a metade
interessante se soubéssemos tudo sobre todas as coisas, seria? Não haveria
nenhum escopo para imaginação então, haveria? Mas eu estou falando demais?
As pessoas estão sempre me dizendo que sim. O senhor preferiria que eu não
falasse? Se disser que sim, eu irei parar. Eu posso parar quando decido fazê-lo,
ainda que seja difícil.
Para sua própria surpresa, Matthew estava se divertindo. Tal qual a
maioria dos sujeitos calados, ele gostava de pessoas loquazes, quando estavam
dispostas a conduzir a conversa por si mesmas e não esperavam que ele
contribuísse a toda hora. Mas nunca imaginou que iria gostar da companhia de
uma menininha. As mulheres eram conscientemente más, mas as meninas
eram muito piores. Ele detestava o modo que elas tinham de passar
timidamente por ele, olhando de soslaio, como se suspeitassem que ele fosse
engoli-las em uma única bocada, se elas se aventurassem a dizer uma palavra.
Esse era o tipo de menina bem criada de Avonlea. Mas esta bruxinha sardenta
era diferente, e apesar de achar difícil para sua inteligência mais lenta
acompanhar a mente brilhante da garotinha, ele concluiu que “meio que
gostava de sua conversação”. Então disse, acanhado como sempre:
— Oh, pode falar o tanto que quiser. Eu não me importo.
— Oh, estou tão feliz. Eu sei que o senhor e eu vamos nos dar muito
bem. É um alívio falar quando se deseja, e não ter de ouvir alguém dizer que as
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Mas todo o tempo eu sei que ele é só este ruivo sem atrativos, e isso me corta o
coração. Esta será a minha tristeza por toda a vida. Li sobre uma menina, uma
vez em um romance, que tinha uma tristeza eterna, mas não era por seu
cabelo. Suas madeixas eram loiras como o ouro puro, com cachos que definiam
sua linda fronte de alabastro. O que isso significa? Eu nunca pude entender.
Pode me dizer?
— Ora, temo que não – disse Matthew, que já estava ficando um pouco
tonto. Sentiu-se como uma vez, em sua impetuosa juventude, quando outro
menino tinha convencido-o a subir num carrossel em um piquenique.
— Bem, o que quer que seja, deve ser algo bom porque ela era
divinamente bonita. Já imaginou como uma pessoa deve se sentir sendo
divinamente bonita?
— Ah não, nunca – confessou Matthew ingenuamente.
— Eu sim, frequentemente. O que o senhor preferiria ser se pudesse
escolher: divinamente bonito, impressionantemente inteligente ou
angelicamente bom?
— Bem, eu – eu realmente não sei.
— Nem eu. Nunca consigo decidir. Mas isso não faz muita diferença,
porque não parece que eu serei qualquer um deles algum dia. Certamente
nunca serei angelicamente boa. Mrs. Spencer disse – oh, Mr. Cuthbert! Oh, Mr.
Cuthbert!! Oh, Mr. Cuthbert!!!
Não foi isso o que Mrs. Spencer disse; nem a menina tinha caído da
carroça, nem Matthew tinha feito nada de surpreendente. Eles tinham
simplesmente dobrado a curva da estrada e se encontravam na “Avenida”.
A “Avenida”, assim chamada pelo povo de Newbridge,[5] era um trecho
de estrada de quatro ou cinco centenas de metros de comprimento, com
enormes macieiras completamente arqueadas cobrindo o caminho, plantadas
anos atrás por um velho fazendeiro excêntrico. Um longo mantô de flores de
perfume glacial estava suspenso. Abaixo dos ramos, o ar era cheio de uma
penumbra lilás e, à frente, havia o vislumbre do pôr do sol. O céu estava como
que pintado e brilhava feito uma grande janela rosada no final da nave de uma
catedral.
A beleza do lugar pareceu ter deixado a criança sem fala. Recostou-se
na carroça, as mãozinhas entrelaçadas à sua frente, sua extasiada face olhando
para o branco esplendor acima. Mesmo quando já haviam passado e estavam
descendo a longa ladeira até Newbridge, ela não se moveu nem falou mais.
Ainda com o rosto encantado, olhava para o pôr do sol à frente, com olhos de
quem teve visões marchando esplendidamente através daquele chão brilhante.
Ainda em silêncio, cruzaram a movimentada cidadezinha chamada
Newbridge, onde cães latiam para eles, menininhos assobiavam e rostos
curiosos apareciam nas janelas. Já tinham viajado mais três milhas, e a criança
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ainda não falava. Era evidente que ela podia ficar em silêncio tão
energicamente quanto podia falar.
— Acredito que você esteja bastante cansada e faminta – Matthew
ousou falar, enfim, considerando estas as únicas razões às quais ele podia
pensar para explicar sua longa visita ao mundo do silêncio – Mas não estamos
longe agora, somente mais uma milha.
Ela saiu de seu devaneio com um profundo suspiro e olhou para ele
com o olhar sonhador de uma alma fascinada que esteve muito longe,
conduzida pelas estrelas.
— Oh, Mr. Cuthbert, aquele local por onde passamos – o local todo
branco – o que era? – ela sussurrou.
— Ah, bem, você deve estar se referindo à Avenida – disse Matthew,
depois de uns minutos de profunda reflexão — É um lugar bonito.
— Bonito? Oh, bonito não me parece a palavra certa a ser utilizada.
Nem lindo, tampouco. Elas não vão longe o bastante. Oh, era maravilhoso –
maravilhoso. É a primeira coisa que já vi que não pode ser melhorada com a
imaginação. Simplesmente me satisfaz aqui – ela colocou uma mão no peito –,
faz sentir uma dor estranha e engraçada, mas ainda assim prazerosa. O senhor
já sentiu uma dor assim, Mr. Cuthbert?
— Bem, eu não consigo lembrar se já tive.
— Eu sinto, muitas vezes; todas as vezes que vejo alguma coisa que seja
magnificamente bonita. Mas as pessoas não deveriam chamar aquele local
adorável de Avenida. Não tem sentido um nome como este. Deveriam chamá-lo
– deixe-me ver – Caminho Branco de Deleites. Não é um ótimo nome
imaginário? Quando eu não gosto do nome de algum lugar ou pessoa, sempre
imagino um novo, e sempre penso neles dessa forma. Havia uma garota no
orfanato, cujo nome era Hepzibah Jenkins, mas eu sempre a imaginei como
Rosalia De Vere. Outras pessoas podem chamar aquele local de Avenida, mas
eu sempre direi Caminho Branco de Deleites. Temos mesmo somente uma
milha antes de chegar à casa? Estou feliz e triste ao mesmo tempo. Chateada
porque a viagem tem sido tão agradável, e eu sempre fico desanimada quando
coisas boas terminam. Alguma coisa muito melhor pode vir depois, mas nunca
terei certeza. E comigo frequentemente acontece de não ser agradável. Pelo
menos tem sido esta a minha experiência. Mas estou feliz de pensar em chegar
à casa. Veja, eu nunca tive um lar de verdade, desde que me lembro. Sinto
aquela dor gostosa de novo, só de pensar em realmente chegar a um lar
verdadeiro. Oh, aquilo não é lindo?
Eles tinham chegado ao topo de uma colina. Abaixo havia uma lagoa,
tão extensa e sinuosa que quase parecia um rio. Era dividida ao meio por uma
ponte que se estendia dali até sua extremidade inferior, onde um cinturão de
dunas de areia cor de âmbar circulava o Golfo azul escuro mais além. A água
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Capítulo III
A Surpresa de Marilla
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vida!
Alguma coisa como um relutante sorriso, um pouco enferrujado por
tanto tempo sem uso, suavizou a expressão dura de Marilla.
— Bem, não chore mais. Não colocaremos você para fora de casa à
noite. Você ficará aqui até que possamos investigar o que aconteceu. Qual é o
seu nome?
A menina hesitou por um momento.
— Poderia me chamar de Cordelia, por favor? – perguntou, com
ansiedade.
— Chamá-la de Cordelia? É este seu nome?
— Nã-ã-ão, não é exatamente o meu nome, mas eu adoraria me chamar
Cordelia. É um nome tão perfeitamente elegante.
— Eu não estou entendendo que diabos você quer dizer. Se não é
Cordelia o seu nome, qual é então?
— Anne Shirley – balbuciou, relutante, a proprietária do nome – mas,
oh, por favor, me chame de Cordelia. Se vou ficar aqui só por um tempo, não
pode ter tanta importância como vocês vão me chamar, não é? É que Anne é
um nome tão pouco romântico.
— Pouco romântico, que disparate! – disse a insensível Marilla – Anne é
um bom nome, simples e sensato. Não tem necessidade de se envergonhar
dele.
— Oh, não, não tenho vergonha – explicou Anne –, somente gosto mais
de Cordelia. Sempre imaginei que este era meu nome; bem, ao menos nestes
últimos anos. Quando eu era menor, costumava imaginar que me chamava
Geraldine. Agora gosto mais de Cordelia. Mas se vocês forem me chamar de
Anne, por favor, pronunciem claramente a letra “E”.
— E que diferença faz o modo como o nome é dito? – perguntou Marilla
com outro sorriso enferrujado, enquanto pegava a chaleira.
— Oh, faz muita diferença. Soa tão melhor. Quando a senhorita escuta
um nome pronunciado, não consegue vê-lo em sua mente, como se tivesse sido
impresso? Eu consigo, e A-n-n soa tão terrível, mas A-n-n-e parece tão mais
distinto. Se vocês me chamarem tão somente de Anne, dito com a letra “E”, eu
tentarei me reconciliar com o fato de não ser chamada de Cordelia.
— Muito bem então, Anne, pronunciado com um “E”, você pode nos
contar como esta confusão veio a acontecer? Nós mandamos um recado para
que Mrs. Spencer nos trouxesse um menino. Não havia meninos no orfanato?
— Oh sim, havia muitos deles. Mas Mrs. Spencer disse claramente que
vocês queriam uma menina em torno dos onze anos. Então a diretora
pensou que poderia ser eu. Não imaginam como fiquei feliz! Não pude nem
dormir na noite passada, de tanta alegria. Oh! – ela acrescentou de forma
repreensiva, virando-se para Matthew – por que não me disse na estação
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que vocês não me queriam, e não me deixou por lá mesmo? Se eu não tivesse
visto o Caminho Branco de Deleites e a Lagoa das Águas Brilhantes não seria
tão difícil deixar isso tudo para trás.
— O que diabos ela está dizendo? – perguntou Marilla, olhando para
Matthew.
— Ela – ela está se referindo a uma conversa que tivemos na estrada –
Matthew respondeu, apressadamente – Vou colocar a égua para dentro,
Marilla. Tenha o chá pronto quando eu voltar.
— Mrs. Spencer trouxe alguém mais além de você? – continuou Marilla,
quando Matthew saiu.
— Sim, trouxe Lily Jones para morar com ela. Lily tem somente cinco
anos e é muito bonita. Tem os cabelos castanhos como amêndoa. Se eu fosse
muito bonita e tivesse o cabelo castanho, vocês iriam ficar comigo?
— Não. Nós queremos um menino para ajudar Matthew na fazenda.
Uma menina não teria nenhuma serventia para nós. Tire seu chapéu. Vou
colocá-lo com sua bolsa na mesinha do corredor.
Anne tirou o chapéu obedientemente. Matthew voltou nesta mesma
hora, e eles sentaram para jantar. Mas Anne não conseguiu pensar em comida.
Em vão tentou mordiscar o pão com manteiga e deu algumas beliscadas na
conserva de maçã do pratinho de vidro posto à sua frente. Mas não fazia muito
esforço de qualquer maneira.
— Você não está comendo nada – disse Marilla severamente, olhando
para ela como se isso fosse um grave defeito. Anne suspirou.
— Não consigo. Estou nas profundezas do desespero. A senhorita
consegue comer quando está nas profundezas do desespero?
— Eu nunca estive em tal lugar, portanto não posso dizer – respondeu.
— Nunca esteve? Bem, e nunca tentou imaginar que estivesse?
— Não, nunca.
— Então creio que não possa entender como é. Certamente é um
sentimento muito desconfortável. Quando se tenta comer, um nó se forma na
sua garganta e não deixa engolir nada, nem mesmo se fosse um caramelo de
chocolate. Eu comi um caramelo uma vez, dois anos atrás, e foi simplesmente
delicioso. Desde então, sonho com frequência que tenho uma porção desses
doces, mas sempre acordo exatamente quando estou prestes a comê-los.
Espero que não se sinta ofendida por eu não poder saborear sua comida. Tudo
está extremamente gostoso, mas ainda assim não consigo comer.
— Creio que ela esteja cansada – falou Matthew, que não tinha dito uma
palavra desde que voltara do estábulo — Melhor colocá-la para dormir,
Marilla.
Marilla estava se perguntando onde deveria colocar Anne para
dormir. Ela havia preparado um sofá no cômodo contíguo à cozinha, para o
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Capítulo IV
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azul.
Os olhos de Anne, amantes da beleza, demoraram-se nessa visão,
captando vorazmente todas essas coisas. Ela já havia visto tantos lugares
desagradáveis em sua vida, pobre criança; porém, este local era mais adorável
do que qualquer um com o qual ela já tivesse sonhado.
Ela ficou ali ajoelhada, absorta a tudo, exceto para a beleza ao seu redor,
até que foi surpreendida por uma mão em seu ombro. Marilla havia entrado
sem que a pequena sonhadora tivesse percebido
— Está na hora de você se vestir – disse, bruscamente.
Marilla realmente não sabia como falar com a criança, e sua
desconfortável ignorância a tornava concisa e seca, mesmo quando não queria
ser.
Anne levantou e suspirou longamente.
— Oh, não é maravilhoso? – falou, apontando com as mãos de modo
abrangente para o mundo lá fora.
— É uma grande árvore e floresce grandiosamente, mas nunca dá
muitos frutos; sempre pequenos e cheios de bichos – respondeu Marilla.
— Oh, eu não me referia somente à árvore. Claro que ela é linda – sim, é
radiantemente adorável, ela floresce como promete – mas estava me referindo
a tudo, ao jardim e ao pomar, ao riacho e a floresta, ao grande e querido
mundo por inteiro. A senhorita não sente como se amasse o mundo numa
manhã como esta? Eu posso ouvir o riacho rindo durante todo o seu trajeto até
aqui. Já percebeu quão alegres são os riachos? Estão sempre às gargalhadas.
Eu já consegui ouvi-los, mesmo no inverno, embaixo do gelo. Estou tão
contente que tenha um riacho pertinho de Green Gables! Talvez a senhorita
pense que não faz a mínima diferença para mim, uma vez que vocês não vão
ficar comigo – mas faz. Sempre vou gostar de lembrar que existe um rio em
Green Gables, ainda que eu nunca mais torne a vê-lo. Se não tivesse esse
riacho, eu ficaria assombrada com a desconfortável sensação de que deveria
haver um. Não estou mais nas profundezas do desespero nesta manhã. Eu
nunca consigo ficar assim ao amanhecer. Não é esplêndido que existam as
manhãs? Mas me sinto muito triste. Agora mesmo estava imaginando que era
eu quem vocês queriam de verdade, e que, afinal, eu ficaria aqui para sempre.
Foi confortante enquanto durou. Mas o pior de imaginar as coisas é que chega
a hora em que é preciso parar de sonhar, e isso dói.
— É melhor que você se arrume e desça, e esqueça suas imaginações –
disse Marilla, oportunamente, assim que conseguiu ter a palavra –, pois o café
da manhã está esperando. Lave seu rosto e penteie o cabelo. Deixe a janela
aberta e arrume as cobertas de volta sobre o pé da cama. Seja tão diligente
quanto puder.
Evidentemente Anne podia ser rápida quando tinha algum propósito,
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nomear um gerânio?
— Bem, eu gosto que as coisas tenham nomes próprios, ainda que
sejam apenas flores. Isso faz com que se pareçam mais com as pessoas. Como
sabe se não está magoando o gerânio chamando-lhe somente de gerânio e
nada mais? A senhorita certamente não gostaria de ser chamada de ‘mulher’ e
nada mais, o tempo todo. Sim, vou chamá-lo de Bonny. Já batizei aquela
cerejeira que está do lado de fora da janela do meu quarto, esta manhã. Eu a
chamei de Rainha da Neve, porque estava tão branca. Óbvio que ela não vai
estar sempre florida, mas pode-se imaginar que está, não pode?
— Nunca, em toda a minha vida, eu vi ou ouvi nada como ela! –
resmungou Marilla, enquanto escapulia para o celeiro em busca de batatas – É
mesmo uma criaturinha interessante, como Matthew disse. Já posso sentir que
estou pensando que diabos ela irá dizer agora! Ela deve estar lançando seu
feitiço também sobre mim. Lançou sobre Matthew. Aquele olhar que ele me
deu quando saiu reiterou tudo o que falou ou insinuou na noite passada.
Queria que ele fosse como os outros homens e conversasse sobre as coisas. Se
assim fosse, eu poderia contestar e discutir com ele até chamá-lo à razão. Mas
o que fazer com um homem que somente lança olhares?
Anne tinha entrado em devaneio novamente, com o queixo apoiado nas
mãos e os olhos no céu, quando Marilla retornou de sua peregrinação ao
celeiro. Marilla a deixou ali até que o almoço antecipado estivesse na mesa.
— Suponho que poderei usar a égua e a carroça esta tarde, Matthew? –
disse Marilla.
Matthew concordou com a cabeça e olhou melancolicamente para Anne.
Marilla interceptou o olhar e disse, de maneira severa:
— Irei até White Sands para acertar as coisas. Levarei Anne comigo, e
Mrs. Spencer provavelmente fará os arranjos para mandá-la de volta à Nova
Scotia de uma vez. Deixarei seu chá arrumado e estarei em casa a tempo de
ordenhar as vacas.
Ainda assim Matthew não disse nada, e Marilla sentiu como se tivesse
gastado as palavras e o fôlego, em vão. Não havia nada mais provocante do que
um homem que não respondia – a não ser uma mulher que não o fizesse.
No horário esperado, Matthew atrelou a égua à carroça, e Marilla e
Anne partiram. Matthew abriu o portão do jardim para ambas, e enquanto
passavam vagarosamente, mencionou, parecendo não se dirigir a ninguém em
particular:
— O pequeno Jerry Buote, de Creek, esteve aqui hoje pela manhã, e eu
disse a ele que é provável que o contrate para o verão.
Marilla não respondeu, mas golpeou as costas da desafortunada égua
com o chicote. O gordo animal, que não estava acostumado a ser tratado desse
jeito, zuniu indignado pela alameda abaixo em uma marcha alarmante. Marilla
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olhou para trás uma vez, enquanto a carroça balançava, e viu aquele irritante
Matthew debruçado sobre o portão, contemplando-as melancolicamente.
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Capítulo V
A História de Anne
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comigo, assim disse Mrs. Thomas. Veja, ninguém me queria, desde essa época.
Parece ser o meu destino. Ambos, papai e mamãe, tinham vindo de lugares
distantes, e era sabido que não tinham parentes vivos. Finalmente, Mrs.
Thomas disse que ficaria comigo, apesar de ser muito pobre e ter um marido
que estava sempre embriagado. Ela me criou na mamadeira. Sabe me dizer se
pessoas criadas na mamadeira devem ser, por essa razão, melhores do que as
outras? Porque todas as vezes que eu era levada, Mrs. Thomas me perguntava,
repreensivamente, como eu poderia ser uma menina tão má quando ela tinha
me criado na mamadeira.
— Mr. e Mrs. Thomas se mudaram de Bolingbroke para Marysville, e
eu morei com eles até completar oito anos. Ajudei a cuidar das crianças dos
Thomas – eram quatro menores do que eu – e posso dizer que eles davam
muito trabalho. Então Mr. Thomas morreu, quando caiu embaixo de um
trem, e a mãe dele se ofereceu para cuidar de Mrs. Thomas e seus filhos, mas
não poderiam cuidar de mim. Mrs. Thomas estava em seu momento de
desespero, assim ela disse, e o que faria comigo? Então, Mrs. Hammond, que
vivia acima do rio, veio até a casa de Mrs. Thomas e disse que me acolheria,
vendo que eu tinha talento com crianças, e então subi o rio para viver com
ela, que morava em uma pequena clareira no bosque. Era um lugar muito
solitário. Tenho certeza de que não poderia viver ali se não tivesse
imaginação. Mr. Hammond trabalhava numa pequena serraria e Mrs.
Hammond tinha oito filhos. Ela teve gêmeos três vezes. Eu gosto de bebês
em moderação, mas gêmeos três vezes sucessivas é demais. Eu disse isso
categoricamente a Mrs. Hammond, quando o último par nasceu. Eu
costumava ficar extremamente cansada carregando aqueles bebês para todo
lado.
— Vivi acima do rio com Mrs. Hammond por dois anos, e então Mr.
Hammond morreu e Mrs. Hammond vendeu a casa. Ela dividiu os filhos entre
os parentes e foi morar nos Estados Unidos. E eu tive que ir para o orfanato em
Hopeton, pois ninguém ficaria comigo. Eles também não me queriam no
orfanato, disseram que estavam muito cheios – o que era verdade. Mas foram
obrigados a me acolher, e eu estava lá há quatro meses até que Mrs. Spencer
chegou.
Anne finalizou sua história com outro suspiro, de alívio desta vez.
Evidentemente não gostava de falar sobre suas experiências em um mundo
que não a desejava.
— Você já esteve em alguma escola? – perguntou Marilla, dirigindo a
égua alazã à estrada junto à costa.
— Não por muito tempo. Fui por alguns meses, no último ano em que
morei com Mrs. Thomas. Quando subi o rio, estávamos tão longe da escola que
eu não podia caminhar no inverno e havia férias no verão, portanto só poderia
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ir às aulas no outono e primavera. Mas claro que tive aulas enquanto estava no
orfanato. Eu sei ler muito bem, e sei muitas peças de poesia de cor – ‘A Batalha
de Hohenlinden’,[8] ‘Edimburgo Depois do Dilúvio’[9] e ‘Bingen do Reno’[10], e
uma grande parte de ‘A Dama do Lago’[11] e muito de ‘As Estações’[12], de James
Thompson. A senhorita não ama poesia, uma poesia que lhe dê arrepios? Há
uma peça no Quinto Livro de leitura – ‘A Ruína da Polônia’[13] – que é muito
emocionante. Claro que eu não estava no Quinto Livro – estava somente no
Quarto – mas as meninas maiores me emprestavam para que eu pudesse ler.
— Aquelas mulheres, Mrs. Thomas e Mrs. Hammond, elas eram boas
com você? – perguntou Marilla, olhando para Anne com o canto dos olhos.
— B-b-e-e-m-m – gaguejou Anne. Sua face delicada e expressiva
enrubesceu e um forte constrangimento se instalou em sua fronte – Bem,
elas desejavam ser – sei que tinham a intenção de ser tão boas e gentis
quanto lhes era possível. E quando as pessoas pretendem ser boas com você,
não pode se importar se elas não são tão boas – sempre. Elas tinham muito
com o que se preocupar naquele momento, sabe? Deve ser bem penoso ter
um marido que está sempre bêbado. E deve ser bem difícil ter gêmeos por
três vezes consecutivas, não acha? Mas tenho certeza de que elas tinham a
intenção de serem boas para mim.
Marilla não fez mais perguntas. Anne entrou em um silencioso
devaneio, fascinada pela estrada da costa e Marilla guiou a égua
distraidamente, enquanto ponderava profundamente. De repente, sentiu o
coração se agitar de compaixão pela criança. Que vida desamparada e mal
amada ela havia tido – uma vida de trabalho duro, pobreza e negligência.
Pois Marilla era perspicaz o suficiente para ler nas entrelinhas da história de
Anne e adivinhar a verdade. Não é de se estranhar que ela tenha ficado tão
maravilhada pela perspectiva de ter um lar. Era uma pena que ela tivesse de
ser mandada de volta. E se ela, Marilla, satisfizesse o inexplicável capricho
de Matthew e deixasse a menina ficar? Ele estava firme nessa ideia, e a
menina parecia uma boa criança, que poderia ser ensinada.
“Ela tem muito a dizer” – pensou Marilla – “mas pode ser treinada para
que não faça mais isso. E não há nada rude ou vulgar no que diz. É uma
garotinha refinada. E parece que seus pais eram boas pessoas.”
A estrada à beira-mar estava “repleta de mato, selvagem e solitária”. Do
lado direito, um bosque de pinheiros crescia densamente, seus espíritos
intactos por anos de contenda com os ventos do Golfo. À esquerda estavam as
íngremes falésias de arenito vermelho, tão perto da estrada em alguns trechos
que uma égua de menos firmeza do que aquela alazã poderia ter testado os
nervos das pessoas que carregava. Na base das falésias estavam montes de
rochas com a superfície desgastada ou pequenas enseadas arenosas
incrustadas nas pedras, como se fossem joias do oceano. Mais além estava o
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mar, cintilante e azul; e sobre o mar voavam as gaivotas, com suas asas
prateadas brilhando a luz do sol.
— O mar não é maravilhoso? – disse Anne, despertando de um longo
sonho com olhos abertos – Uma vez, quando morei em Marysville, Mr. Thomas
alugou uma carroça expressa e levou a todos nós para passarmos o dia na
praia, a dez milhas dali. Eu aproveitei cada momento daquele dia, mesmo
tendo que cuidar das crianças todo o tempo. Revivi aqueles momentos em
lindos sonhos por anos. Mas esta praia é muito melhor do que aquela. Não são
esplêndidas aquelas gaivotas? A senhorita gostaria de ser uma gaivota? Acho
que eu gostaria – isso é, se não pudesse ser uma menina. Não acha que seria
maravilhoso despertar com o nascer do sol e voar por cima da água e ir além,
naquele incrível céu azul o dia todo, e então à noite voar de volta ao seu ninho?
Oh, eu consigo me imaginar fazendo isso. Pode me dizer que casa enorme é
aquela ali em frente, por favor?
— Aquele é o Hotel de White Sands. Mr. Kirke é quem gerencia o lugar,
mas a temporada ainda não começou. Muitos americanos se hospedam ali no
verão. Eles consideram esta costa adequada.
— Temia que esta fosse a casa de Mrs. Spencer – disse Anne,
tristemente – Não quero chegar lá. De certo modo, parece que será o fim de
tudo.
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Capítulo VI
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talvez optemos por deixá-la com Mrs. Blewett, afinal. Ela certamente precisa mais
de você do que eu.
— Prefiro voltar para o orfanato a morar com ela! – exclamou Anne,
apaixonadamente – Ela se parece exatamente com um – com um saca-rolha.
Marilla reprimiu o sorriso, convicta de que Anne deveria ser reprovada
por tais palavras.
— Uma menininha como você deveria se envergonhar de falar desse
jeito sobre uma senhora respeitável e desconhecida! – ela ralhou, severamente
– Sente-se ali calmamente, segure sua língua e comporte-se como uma boa
menina.
— Eu tentarei fazer qualquer coisa que queira, se a senhorita decidir
ficar comigo – disse Anne, retornando silenciosamente para seu assento.
Quando estavam voltando a Green Gables naquela tarde, Matthew
encontrou- as na alameda. Marilla o enxergou de longe, perambulando por ali,
e adivinhou o motivo. Ela estava preparada para o alívio que notara em sua
face, quando ele viu que, ao menos, trazia Anne de volta com ela. Mas não falou
nada sobre o assunto até que estivessem no quintal atrás do celeiro,
ordenhando as vacas. Então contou brevemente a história de Anne e o
resultado de sua conversa com Mrs. Spencer.
— Eu não daria nem um cão àquela Mrs. Blewett! – disse Matthew, com
inusitado vigor.
— Eu não gostei do seu aspecto também – admitiu Marilla – mas era
isso ou ficarmos com ela, Matthew. E visto que você parece querer adotá-la,
suponho que eu esteja disposta – ou seja obrigada a estar. Tenho pensado
tanto sobre isso, que acabei por me acostumar com a ideia. Parece-me uma
espécie de dever. Eu nunca criei uma criança, especialmente uma menina, e
ouso dizer que farei uma terrível bagunça disso tudo, mas darei o melhor de
mim. No que me diz respeito, ela deve ficar.
O rosto tímido de Matthew brilhava com tamanha satisfação.
— Ora, eu esperava que você viesse a ver isso sob este prisma, Marilla.
Ela é uma menininha muito especial – ele comentou.
— Seria bem melhor que pudesse dizer que ela é uma menininha muito
útil – rebateu Marilla –, mas cuidarei para que assim seja. E preste atenção,
Matthew, não quero você interferindo nos meus métodos. Talvez uma velha
solteirona não saiba muito sobre como criar uma criança, mas aposto que sabe
mais do que um velho solteirão. Então espero que você deixe que eu lide com
ela. Quando eu falhar, então será a sua vez de se intrometer.
— Acalme-se, Marilla, pode fazer tudo à sua maneira – disse Matthew,
apaziguando a irmã –, apenas seja tão bondosa e gentil quanto puder ser, sem
mimá-la. Penso que ela é do tipo de menina com a qual poderá fazer qualquer
coisa, se tão somente permitir que ela a ame.
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Capítulo VII
Quando colocou Anne para dormir naquela noite, Marilla disse com
firmeza:
— Escute-me, Anne, percebi que quando você trocou de roupa ontem à
noite, deixou tudo espalhado pelo chão. Este é um hábito muito feio, e não
posso permitir que se repita. Tão logo tire qualquer peça de roupa, dobre-a
com organização e coloque em cima da cadeira. Não preciso de nenhuma
menina desorganizada aqui.
— Eu estava com a mente tão atormentada na noite passada, que não
pensei nas minhas roupas – respondeu Anne –, mas vou dobrá-las bem
direitinho esta noite. As pessoas do orfanato sempre nos pediam que
arrumássemos tudo antes de dormir. Mas na metade das vezes eu esquecia de
fazê-lo, tão grande era a pressa para deitar na cama e começar a imaginar as
coisas.
— Vai ter que lembrar melhor se quiser ficar aqui – aconselhou Marilla
–, aí está, assim está melhor. Agora, faça sua oração e venha para cama.
— Eu nunca fiz nenhuma oração – anunciou Anne.
Marilla pareceu horrorizada e pasma.
— Ora, Anne, o que quer dizer com isso? Nunca a ensinaram a fazer
orações? Deus sempre quer que as menininhas falem com Ele. Sabe quem é
Deus, Anne?
— Deus é um espírito, infinito, eterno e imutável. Em Seu ser estão:
sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e verdade – respondeu Anne, de
modo rápido e eloquente.
Marilla pareceu um pouco aliviada.
— Então sabe alguma coisa, graças a Deus! Não é uma completa pagã.
Onde aprendeu isso?
— Oh, na Escola Dominical do orfanato. Eles nos ensinaram todo o
catecismo. Eu gostei muito. Existe algo esplêndido sobre algumas destas
palavras. ‘Infinito, eterno e imutável.’ Não é grandioso? Tem certa vibração,
como o som de um grande órgão. Suponho que não posso chamar isso de
poesia, mas parece muito, não parece?
— Não estamos falando sobre poesia, Anne; estamos falando sobre
fazer suas preces. Por acaso não sabe que é uma coisa terrível não orar todas
as noites? Suspeito que seja uma menina muito perversa.
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Capítulo VIII
Por razões bem conhecidas para si própria, até àquela tarde Marilla não
contara a Anne que ela poderia ficar em Green Gables. Durante a manhã,
manteve a menina ocupada com várias atividades e observou-a com olhos
atentos enquanto realizava o trabalho. Ao meio-dia, havia concluído que Anne
tinha a tendência de sonhar durante a tarefa e esquecia-se completamente do
que estava fazendo, até que fosse severamente chamada de volta a terra por
uma advertência ou uma catástrofe.
Quando Anne terminou de lavar a louça do almoço, confrontou Marilla
repentinamente, com o ar e a expressão de quem estava desesperadamente
determinada a escutar o pior. Seu corpinho magro tremia da cabeça aos pés,
com a face corada e as pupilas dilatadas até que os olhos estivessem quase
pretos. Ela juntou as mãos fortemente e falou, em um tom suplicante:
— Oh, por favor, Miss Cuthbert, a senhorita não vai dizer se irá me
mandar de volta ou não? Eu tentei ser paciente durante toda a manhã, mas
realmente sinto que não posso suportar mais nenhum minuto. É um
sentimento terrível. Por favor, diga-me.
— Você nem escaldou o pano de pratos em água quente como eu disse
para fazer. Vá agora e faça isso antes de vir com mais perguntas, Anne –
respondeu Marilla, imóvel.
Anne foi e cuidou do pano de pratos. Então, voltou para perto de
Marilla, com os olhos fixos suplicantes e a mesma expressão anterior.
— Bem – começou Marilla, incapaz de encontrar mais desculpas para
adiar sua explicação –, creio que tenho mesmo que lhe dizer. Matthew e eu
decidimos ficar com você; isto é, se você tentar ser uma boa criança e se
mostrar agradecida. Menina, qual é o problema?
— Estou chorando – disse Anne, perplexa —, e não consigo entender
porquê. Estou tão contente quanto poderia estar. Oh, “contente” não me parece
ser a palavra certa. Eu estava alegre pelo Caminho Branco e pelas flores das
cerejeiras – mas isto! Oh, isto é algo além da alegria. Estou tão feliz! Eu tentarei
ser boazinha. Creio que será um trabalho árduo, pois Mrs. Thomas dizia
frequentemente que eu era desesperadamente má. Mesmo assim farei o meu
melhor. Mas pode me dizer por que eu estou chorando?
— Penso que seja porque está muito entusiasmada e agitada! – disse
Marilla, desaprovando – Sente-se naquela cadeira e tente se acalmar. Parece-
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me que chora e ri com muita facilidade. Sim, pode ficar aqui e tentaremos fazer
o melhor por você. Deve ir para a escola, mas como faltam somente duas
semanas até as férias, não é válido que comece antes de setembro.
— Como devo chamá-la? – perguntou Anne – Direi sempre Miss
Cuthbert? Posso chamá-la de tia Marilla?
— Não, me chame somente de Marilla. Não estou acostumada a ser
chamada de Miss Cuthbert e ficaria nervosa.
— A mim soa terrivelmente irreverente dizer apenas Marilla –
protestou Anne.
— Eu acho que não tem nada de desrespeitoso nisso, se você cuidar em
falar com educação. Todos em Avonlea, sejam jovens ou idosos, me chamam de
Marilla, exceto o ministro. Ele me chama de Miss Cuthbert, quando pensa
sobre isso.
— Eu adoraria chamá-la de tia Marilla – disse Anne, pensativa – eu
nunca tive uma tia, ou um parente qualquer, nem mesmo uma avó. Isso me
faria sentir que realmente pertenço à família. Posso chamá-la de tia Marilla?
— Não. Não sou sua tia, e não acredito em dar às pessoas nomes que
não lhe pertencem.
— Mas nós poderíamos imaginar que a senhorita é minha tia.
— Eu não poderia – disse Marilla categoricamente.
— Nunca imagina as coisas de maneira diferente daquilo que realmente
são? – perguntou Anne com os olhos arregalados.
— Não.
— Oh! – Anne suspirou longamente – Oh Miss – Marilla, você não sabe o
quanto perde!
— Eu não acredito em imaginar coisas de forma diferente daquilo que
são! – rebateu Marilla – Quando o Senhor nos põe em determinadas
circunstâncias, Ele não deseja que nós as imaginemos de outro jeito. E isso me
lembrou de uma coisa. Vá até a sala, Anne – esteja certa de que seus pés
estejam limpos e não permita que nenhuma mosca entre – e traga-me o cartão
ilustrado que está no aparador da lareira. Ele contém a Oração do Pai Nosso e
você vai devotar seu tempo livre desta tarde para aprendê-la de cor e salteado.
Não quero mais saber de nenhuma oração tal como a que ouvi na noite
passada.
— Suponho que estava muito estranha – disse Anne, se desculpando –,
mas veja, eu nunca tive nenhuma prática. Não poderia esperar que uma pessoa
fizesse uma linda oração em sua primeira tentativa, poderia? Eu inventei uma
esplêndida oração depois que fui para cama, justamente como prometi que
faria. Era quase tão longa quanto à do pastor, e muito poética. Mas acredita
que não pude me lembrar de nenhuma palavra, quando acordei de manhã? E
receio nunca mais poder elaborar uma tão boa. De certo modo, as coisas nunca
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são tão boas quando pensamos nelas pela segunda vez. Já tinha percebido
isso?
— Aqui está algo para você observar, Anne. Quando peço a você que
faça alguma coisa, quero que me obedeça de uma vez, e não fique aí, estática,
fazendo um discurso sobre isso. Somente vá e faça como ordenei.
Anne prontamente partiu para a sala através do corredor. Mas ela não
voltou. Depois de esperar por dez minutos, Marilla largou seu tricô e marchou
atrás dela com uma expressão de desagrado. Ela encontrou Anne em pé,
imóvel diante de uma pintura pendurada na parede do corredor entre duas
janelas, seus olhos deslumbrados como em um sonho. A luz branca e verde que
penetrava em meio às folhas da macieira e aos ramos da videira incidia sobre a
absorta figurinha com um brilho um tanto sobrenatural.
— Anne, no que está pensando?
Anne voltou a terra com um sobressalto.
— Naquilo – ela disse apontando para a pintura, uma gravura bastante
vívida intitulada ‘Cristo Abençoa as Criancinhas’ – e eu estava somente
imaginando que era uma delas; que eu era a garotinha de vestido azul,
escondida sozinha no canto, como se não pertencesse a ninguém, tal como eu.
Ela parece solitária e triste, não acha? Aposto que ela não tem mãe ou pai. Mas
ela deseja ser abençoada também, então se arrastou timidamente ao extremo
da multidão, esperando que ninguém a notasse – exceto Ele. Certamente sei
como ela se sentiu. Seu coração deve ter batido acelerado e suas mãos ficaram
frias, como as minhas ficaram quando eu perguntei a você se poderia ficar.
Tinha medo de que Ele não pudesse percebê-la. Mas parece que Ele a notou,
não parece? Estava tentando imaginar tudo isso – ela deslizava até estar ao
Seu lado; e então, Ele olharia para ela e colocaria Sua mão em seus cabelos e
oh, um arrepio de alegria correria sobre ela! Mas eu queria que o artista não O
houvesse pintado com esta imagem tão infeliz. Todas as Suas pinturas são
assim, já percebeu? Mas eu não acredito que Ele realmente tenha esta imagem
tão triste, ou as crianças teriam medo dEle.
—Anne – disse Marilla, perguntando-se porquê não havia interrompido
antes tal discurso – você não deve falar assim! É irreverência, certamente uma
irreverência.
Os olhos de Anne se espantaram.
— O que, sinto que sou tão reverente quanto poderia ser. Estou certa de
que não tinha a intenção de ser desrespeitosa.
— Bem, creio que não estava sendo; mas não me parece certo falar com
tanta familiaridade sobre tais assuntos. E outra coisa Anne, quando eu mandar
buscar algo, você tem que me trazer isto de uma vez e não ficar sonhando e
imaginando coisas diante de pinturas. Lembre-se disso. Pegue o cartão e venha
diretamente para a cozinha. Agora se sente naquele canto e aprenda esta prece
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de cor.
Anne apoiou o cartão contra o buquê de flores de macieira que tinha
trazido para decorar a mesa de jantar – Marilla tinha olhado de soslaio para
aquela decoração, mas não comentou nada –, apoiou seu queixo nas mãos e
começou a estudar silenciosa e intensamente por alguns minutos.
— Eu gostei disso! – ela disse, finalmente – É lindo. Já tinha ouvido
antes; vi o superintendente da Escola Dominical do orfanato rezar assim mais
de uma vez. Mas naquele tempo não gostei. Ele tinha uma voz tão falhada e
orava tão tristemente! Realmente senti que ele achava que rezar era uma
tarefa desagradável. Isto não é poesia, mas me faz sentir da mesma maneira.
‘Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Teu nome.’ É como a letra de
uma música. Oh, estou tão feliz que tenha me feito aprender esta oração, Miss
– Marilla.
— Bem, então se concentre e segure sua língua – respondeu Marilla,
seca.
Anne trouxe o vaso de flores de macieira perto o suficiente para dar um
beijo suave no botão rosado, então se pôs a ler diligentemente por mais alguns
momentos.
— Marilla – ela chamou presentemente – você acha que algum dia eu
terei uma “amiga do peito” aqui em Avonlea?
— Uma – que tipo de amiga?
— Uma amiga do peito; uma amiga íntima, sabe? Uma verdadeira alma
gêmea a quem poderei confiar a essência de meu espírito. Tenho sonhado em
encontrá-la durante toda a minha vida. Nunca acreditei realmente que teria
uma, mas tantos lindos sonhos têm se realizado de uma vez que, quem sabe,
este possa vir a se concretizar também. Acha que é possível?
— Diana Barry mora ali em Orchard Slope, e ela tem a sua idade. É uma
menina muito boazinha, e talvez possa ser uma boa amiga para você, quando
ela voltar para casa. Ela está visitando uma tia em Carmody agora. No entanto,
você terá que tomar cuidado com o modo como se comporta. Mrs. Barry é uma
mulher muito exigente e não permitirá que Diana brinque com qualquer
menina que não seja boa e gentil.
Anne olhou para Marilla por entre as flores, seus olhos radiantes com o
interesse.
— Como ela é? Seu cabelo não é ruivo, é? Oh, espero que não. É uma
coisa terrível ter cabelo vermelho, mas eu certamente não poderia suportar
isso em uma amiga do peito.
— Diana é uma menina muito bonita. Tem cabelos e olhos pretos e
bochechas rosadas. E ela é gentil e inteligente, o que é melhor do que ser
bonita.
Marilla era fã de moralidades assim como a Duquesa do Mundo das
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Pense que lugar mais encantador para viver – uma flor de maçã! Imagine como
seria dormir na flor com o vento soprando. Se eu não fosse uma menina,
gostaria de ser uma abelha e viver entre as flores.
— Ontem você queria ser uma gaivota – suspirou Marilla – acho que
você tem a mente muito inconstante. Eu pedi que memorizasse a oração e não
falasse. Mas parece que é impossível você parar de falar se tiver alguém que a
escute. Então, suba até seu quarto e estude.
— Oh, eu já sei quase toda, agora – falta só a última linha.
— Bem, não importa, faça o que pedi. Vá para o seu quarto e memorize
muito bem toda a oração, e fique lá até eu chamá-la para me ajudar a preparar
o chá.
— Posso levar as flores comigo, para me fazer companhia? – implorou
Anne.
— Não, não quero o quarto cheio de flores. Devia tê-las deixado na
árvore, para começo de conversa.
— Também pensei assim – disse Anne – creio que não deveria ter
encurtado suas adoráveis vidas apanhando-as; se eu fosse uma flor, não
gostaria de ser colhida. Mas a tentação foi tão irresistível. O que você faz
quando encontra uma tentação irresistível?
— Anne, ouviu quando lhe mandei ir para o seu quarto?
Anne suspirou e se retirou para o sótão, sentando na cadeira perto da
janela.
— Aí está; já sei a oração. Aprendi a última frase subindo as escadas.
Agora vou imaginar coisas dentro deste quarto, e então elas estarão
imaginadas para sempre. O piso está coberto com um tapete branco de veludo
com rosas, e nas janelas há cortinas de seda rosa. As paredes estão cobertas
por tapeçarias em brocado de ouro e prata. Os móveis são de mogno. Eu nunca
vi mogno, mas parece tão luxuoso. Isto é um sofá, cheio de belas almofadas de
seda, rosas e azuis, carmesim e dourado, e eu estou graciosamente reclinada
sobre elas. Posso ver meu reflexo naquele enorme e esplêndido espelho
pendurado na parede. Sou alta e soberba, usando um vestido de renda branca,
com uma cruz de pérolas no peito e pingentes de pérolas no cabelo. Meu nome
é Lady Cordelia Fitzgerald. Não, não é – não posso fazer isso parecer real.
Ela correu e se sentou em frente ao pequeno espelho e olhou para ele.
Ali, sua face pontilhada de sardas e seus solenes olhos cinzentos lhe
contemplaram de volta.
— Você não é nada mais do que Anne de Green Gables – pronunciou,
francamente – e eu a vejo exatamente como está agora, todas as vezes que
tenta imaginar que é Lady Cordelia. Mas é milhões de vezes melhor ser Anne
de Green Gables do que Anne de lugar nenhum, não é mesmo?
Anne se inclinou, beijou sua imagem amorosamente e olhou pela janela
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aberta.
— Boa tarde, querida Rainha da Neve. E boa tarde, queridas bétulas lá
no vale. E boa tarde, querida casa cinza sobre o monte. Pergunto-me se Diana
será minha amiga do peito. Espero que sim, e eu a amarei. Mas nunca
esquecerei completamente de Katie Maurice e Violetta. Elas se sentiriam tão
tristes se eu as esquecesse, e odeio ferir os sentimentos de alguém, mesmo de
uma garotinha da estante, ou de uma pequena menina do eco. Devo ser
cuidadosa e lembrar delas, e lhes mandar um beijinho todos os dias.
Anne soprou alguns beijos da ponta de seus dedos e passou-os pelas
flores da cerejeira; e então, com as mãos apoiadas no queixo, deixou sua
imaginação ser luxuosamente levada pelo mar de sonhos.
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Capítulo IX
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foi o comentário enfático de Mrs. Rachel Lynde. Ela era uma daquelas pessoas
encantadoras e populares que se orgulhavam de falar o que pensavam, sem
medo nem generosidade – Ela é terrivelmente magricela e desajeitada, Marilla.
Venha aqui criança, e deixe-me olhar para você. Por Deus, alguém já viu sardas
como estas? E o cabelo é tão vermelho quanto uma cenoura! Venha cá, menina,
estou dizendo.
Anne obedeceu, mas não exatamente como Mrs. Lynde esperava. Com
um salto, cruzou a cozinha e se deteve frente a Mrs. Lynde, com o rosto corado
de raiva, os lábios trêmulos e todo seu corpo magro tremendo dos pés à
cabeça.
— Eu odeio a senhora! – ela gritou com a voz embargada, batendo o pé
no chão – Odeio, odeio, odeio! – batendo fortemente o pé em cada afirmação
de ódio – Como ousa me chamar de magricela e desajeitada? Como ousa me
chamar de sardenta e cabelo de cenoura? A senhora é uma mulher rude, mal-
educada, insensível!
— Anne! – exclamou Marilla, consternada.
Mas Anne continuava encarando Mrs. Lynde destemidamente, com a
cabeça erguida, olhos em chamas e punhos cerrados, a apaixonada indignação
exalando dela por todos os poros.
— Como ousa dizer tais coisas sobre mim? – repetiu com veemência –
Gostaria de ter tais coisas ditas sobre a senhora? Gostaria que lhe dissessem
que é gorda e grosseira, e que provavelmente não tem uma fagulha sequer de
imaginação? Eu não me importo se ficar magoada quando digo isto! Espero
que fique. A senhora feriu os meus sentimentos mais do que jamais haviam
sido feridos, nem mesmo pelo marido bêbado de Mrs. Thomas. E eu nunca irei
perdoá-la por isso, nunca!
Anne bateu o pé mais uma vez.
— Alguém já viu tal temperamento? – perguntou Mrs. Lynde,
horrorizada.
— Anne, vá para o seu quarto e fique lá até que eu suba – disse Marilla,
recuperando a fala com certa dificuldade.
Rompendo em lágrimas, Anne correu para a porta do corredor,
batendo-a com tal força que até os parafusos da parede da varanda do lado de
fora chacoalharam, desaparecendo através do corredor e subindo as escadas
como um redemoinho. Outra batida acima informou que a porta do quarto do
sótão havia sido fechada com igual veemência.
— Bem, não invejo sua tarefa de educar aquilo, Marilla – disse Mrs.
Lynde, com indescritível solenidade.
Marilla nem sabia o que dizer para se desculpar quando abriu a boca,
mas o que realmente disse surpreendeu-a naquele momento e mesmo depois.
— Você não deveria ter criticado a aparência dela, Rachel.
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— Marilla Cuthbert, você não está querendo dizer que apoia a menina
e m tal tenebrosa disposição de temperamento como acabamos de presenciar,
está? – perguntou, indignada.
— Não – disse Marilla lentamente –, não estou tentando justificá-la. Ela
se comportou de maneira muito indisciplinada, e terei uma boa conversa com
ela sobre isso. Mas temos que lhe dar algum crédito. Ninguém nunca ensinou a
ela o que é certo. E você foi muito dura com ela, Rachel.
Marilla não pôde evitar pronunciar esta última frase, apesar de ter
ficado novamente surpresa consigo mesma por tê-lo feito. Mrs. Lynde
levantou-se com ar de dignidade ofendida.
— Bem, vejo que depois disso terei de ser muito cuidadosa com o que
falo, Marilla, visto que os delicados sentimentos de uma órfã, trazida só Deus
sabe de onde, têm de ser considerados antes de qualquer coisa. Oh, não, não
estou irritada, não se preocupe. Estou com muita pena de você para ter
qualquer espaço para raiva em meu coração. Você terá seus próprios
problemas com aquela criança. Mas se tomasse meu conselho, o que eu
suponho que não fará, apesar de eu ter criado dez filhos e enterrado dois –
você terá a tal ‘conversa’ que mencionou com um bom açoite de vara de bétula.
Penso que esta seria a linguagem mais efetiva para esse tipo de criança. Acho
que o temperamento dela combina com o cabelo. Bem, boa noite, Marilla.
Espero que você venha me ver frequentemente, como sempre faz. Mas não
pode esperar que eu volte a visitá-la outra vez por algum tempo, se estou
sujeita a ser atacada e insultada dessa forma. Isto é algo novo em minhas
vivências.
Enquanto Mrs. Lynde descia precipitadamente e se distanciava – se é
que uma mulher gorda, que sempre caminhara rebolando, seria capaz de fazê-
lo com rapidez –, Marilla dirigiu-se ao quartinho do lado leste do sótão com ar
muito solene.
Subindo as escadas, ponderava apreensivamente no que deveria fazer.
Não era pouca a consternação que sentia pela cena que acabara de ocorrer.
Que infelicidade Anne ter demonstrado tal comportamento logo diante de Mrs.
Lynde, dentre todas as pessoas! De repente, então, Marilla tornou-se cônscia
da desconfortável e repreensível convicção de que ela sentia mais humilhação
do que tristeza pela descoberta de tão sério defeito na personalidade de Anne.
E como ela deveria puni-la? A sedutora sugestão sobre as varadas – para a
eficiência da qual todos os filhos de Mrs. Lynde poderiam ter trazido um
testemunho inteligente – não apelava à Marilla. Ela não acreditava que poderia
bater em uma criança. Não, algum outro método de punição deveria ser
achado para trazer Anne a um entendimento apropriado sobre a enormidade
de sua ofensa.
Marilla encontrou Anne deitada com o rosto escondido na cama,
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que a perdoe.
— Nunca poderei fazer isso! – afirmou Anne, determinada e audaciosa
– Pode me punir como quiser, Marilla. Pode me prender em um calabouço
habitado por cobras e sapos e me alimentar somente com pão e água, e não
irei reclamar. Mas não posso pedir perdão a Mrs. Lynde.
— Não temos o hábito de trancar pessoas em calabouços escuros e
úmidos – disse Marilla secamente –, especialmente porque são escassos aqui
em Avonlea. Mas você deve e irá desculpar-se com Mrs. Lynde, e permanecerá
aqui no quarto até que diga que está disposta a fazer isso.
— Então terei que ficar aqui para sempre – concluiu, pesarosa – porque
não posso dizer a Mrs. Lynde que estou arrependida de ter dito aquelas coisas
a ela. Como poderia? Eu não estou arrependida. Arrependo-me de ter irritado
você, mas estou contente por ter dito a ela o que disse. Foi uma grande
satisfação. Não posso dizer que estou arrependida quando na verdade não
estou, posso? Não consigo nem imaginar que me arrependo.
— Talvez sua imaginação funcione melhor pela manhã – disse Marilla,
levantando-se para sair – Terá a noite para pensar sobre sua conduta e chegar
a uma melhor disposição de pensamento. Você disse que tentaria ser uma boa
menina se nós a deixássemos ficar em Green Gables, mas devo dizer que não
demonstrou isso nesta tarde.
Deixando este dardo cravado no turbulento coração de Anne, Marilla foi
para a cozinha com a mente severamente perturbada e a alma irritada. Ela
estava tão brava com Anne quanto consigo mesma, porque todas as vezes que
se lembrava da fisionomia estupefata de Rachel Lynde, seus lábios se
contorciam de gracejo e sentia a mais repreensível vontade de rir.
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Capítulo X
Marilla não disse nada a Matthew sobre o assunto àquela noite; porém,
quando Anne ainda demonstrara teimosia na manhã seguinte, uma explicação
teve que ser dada por sua ausência na mesa do café. Marilla relatou ao irmão
toda a história, exagerando nos detalhes para impressioná-lo com a devida
percepção da monstruosidade do comportamento de Anne.
— É boa coisa que Rachel Lynde tenha recebido uma lição; ela é uma
velha intrometida e fofoqueira – foi a consoladora réplica de Matthew.
— Matthew Cuthbert, estou espantada com você. Mesmo sabendo que a
conduta de Anne foi terrível, você ainda fica ao lado dela! Suponho que logo
dirá que ela não merece nenhum tipo de punição!
— Ora, não, não exatamente – disse Matthew, constrangido – creio que
ela tenha que ser punida, de leve. Mas não seja tão dura com ela, Marilla.
Lembre-se de que nunca teve alguém que a ensinasse o que é certo. Você vai –
vai lhe dar algo para comer, não vai?
— Quando você ouviu dizer que eu tenha deixado alguém morrer de
fome para que se comporte bem? – perguntou, com indignação – Ela fará as
refeições regularmente, e eu mesma a servirei lá em cima. Mas permanecerá
no quarto até que esteja disposta a pedir perdão a Mrs. Lynde, e ponto final,
Matthew.
O café da manhã, o almoço e o jantar foram refeições muito silenciosas,
pois Anne permaneceu obstinada. Após cada refeição, Marilla carregava uma
bandeja bem servida para o quarto do lado leste do sótão, e, mais tarde, trazia
a mesma bandeja praticamente intocada. Matthew ficou muito preocupado
depois da última vez que Marilla desceu. Será que Anne tinha comido alguma
coisa?
Quando Marilla saiu naquela noite para trazer as vacas do pasto dos
fundos, Matthew, que estava observando parado perto dos celeiros, escorregou
para dentro da casa com ares de gatuno, e arrastou-se até o andar de cima.
Comumente, Matthew gravitava apenas entre a cozinha e o quartinho no final
do corredor, onde dormia. Vez ou outra se aventurava desconfortavelmente na
saleta ou na sala de visitas, quando o ministro vinha para o chá. Mas ele nunca
mais tinha subido ao andar superior de sua própria casa desde a primavera na
qual ajudou Marilla a colar o papel de parede no quarto de hóspedes – há
quatro anos atrás.
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Ele andou pelo corredor na ponta dos pés e ficou parado durante
alguns minutos em frente à porta do quarto do lado leste, antes de criar
coragem suficiente para tocar a maçaneta e abrir para dar uma espiada lá
dentro.
Anne estava sentada na cadeira amarela ao lado da janela, olhando
tristemente para o jardim. Ela parecia muito pequena e infeliz, e o coração de
Matthew se comoveu. Ele fechou a porta suavemente e caminhou, pé por pé,
até ela.
— Anne – ele sussurrou, como se tivesse medo de ser ouvido – como
você está passando, Anne?
Anne deu um sorriso fraco.
— Muito bem. Estou sempre imaginando coisas, e isso ajuda a passar o
tempo. Claro, é um tanto solitário. Mas preciso me acostumar a isso.
Anne sorriu novamente, encarando com bravura os longos anos de
solitária reclusão que tinha diante de si.
Matthew se lembrou de que deveria dizer o que tinha a dizer sem perda
de tempo, temendo o retorno antecipado de Marilla.
— Ora, Anne, não acha melhor acabar logo com isso? – ele sussurrou –
Cedo ou tarde terá de fazê-lo, você sabe, pois Marilla é uma mulher
terrivelmente determinada – terrivelmente determinada, Anne. Faça logo, eu
lhe digo, e termine com isso de uma vez.
— Quer dizer que devo me desculpar com Mrs. Lynde?
— Sim, pedir desculpas; exatamente isso! – disse Matthew,
ansiosamente – Facilite as coisas, por assim dizer. Era aí que eu estava
tentando chegar.
— Suponho que posso fazer isso por você – refletiu Anne –, mas seria
bem verdade dizer que sinto muito, pois estou arrependida agora. Ontem à
noite não estava, nem um pouco. Eu estava furiosa, e permaneci assim a noite
toda. Sei disso porque acordei três vezes e estava furiosa do mesmo jeito em
todas essas vezes. Mas nesta manhã estava tudo terminado. Não estava mais
irritada; e isso me deixou com uma assustadora sensação de fraqueza. Senti-
me tão envergonhada de meu comportamento, mas não podia simplesmente ir
até Mrs. Lynde e lhe dizer. Seria tão humilhante. Decidi que ficaria aqui
trancada para sempre, ao invés de fazer isso. Mas, ainda assim, eu faria
qualquer coisa por você, se realmente é isso o que quer que eu faça.
— Ora, claro que quero. É terrivelmente solitário lá embaixo sem você.
Somente vá e facilite as coisas, como uma boa menina.
— Muito bem – disse Anne resignadamente –, eu direi a Marilla que
estou arrependida assim que ela entrar.
— Está bem – está bem, Anne. Mas não diga nada sobre nossa conversa.
Ela vai pensar que estou metendo meu bedelho, e eu prometi não fazê-lo.
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com ela, como estava antes, nem triste também. Ela pode dar certo. Claro que
tem um modo muito esquisito de se expressar – um pouco – bem, bastante
forçado, sabe, mas pode ser que ela vença isso agora que irá viver entre
pessoas civilizadas. E ela tem o gênio forte, suponho, mas há um conforto
nisso: uma criança que tem personalidade, que se empolga e se acalma com
facilidade, provavelmente nunca será dissimulada ou enganosa. Deus me livre
de uma criança assim, isto é que é. Considerando tudo, começo a gostar dela.
Quando Marilla estava indo para casa, Anne saiu da perfumada
penumbra do pomar com um maço de narcisos brancos em mãos.
— Foi um belo pedido de perdão, não foi? – disse, orgulhosamente
enquanto caminhavam pela alameda de Lynde’s Hollow – Pensei que, já que eu
teria de fazer isso, deveria fazê-lo perfeitamente.
— Você fez perfeitamente, bem até demais – foi o comentário de
Marilla. Ela estava desalentada consigo mesma por ver-se inclinada a rir da
lembrança. Tinha também a desconfortável sensação de que deveria
repreender Anne por ter se desculpado bem demais, mas isso era ridículo! Fez
as pazes com sua consciência dizendo com severidade:
— Espero que você não venha a ter mais ocasiões para se desculpar
desta maneira. Espero que tente controlar seu temperamento agora, Anne.
— Isso não seria tão difícil se as pessoas não zombassem da minha
aparência – disse Anne, com um suspiro – outras coisas não me incomodam,
mas estou tão cansada de ser censurada pelo meu cabelo que isso me faz
ferver de dentro para fora! Você acredita mesmo que o tom do meu cabelo se
tornará castanho-avermelhado quando eu crescer?
— Você não deveria pensar tanto assim sobre a sua aparência, Anne.
Temo que você seja uma garotinha muito vaidosa.
— Como posso ser vaidosa quando sei que sou desajeitada? – protestou
Anne – Amo as coisas belas, e odeio olhar no espelho e ver algo que não é belo.
Isso me faz sentir tão infeliz – exatamente como sinto quando vejo coisas feias.
Eu tenho dó daquilo que não é bonito.
— É melhor ser bonito por dentro do que por fora – citou Marilla.
— Isso já me foi dito antes, mas tenho minhas dúvidas a respeito –
observou Anne, com descrença, cheirando seus narcisos – oh essas flores não
são delicadas? Mrs. Lynde foi muito amável em me permitir colhê-las. Não
tenho nenhum ressentimento de Mrs. Lynde agora. Pedir perdão e ser
perdoado dá a você uma adorável e confortável sensação, não é mesmo? As
estrelas não estão brilhantes esta noite? Se você pudesse viver em uma estrela,
qual delas escolheria? Eu escolheria aquela lá longe, enorme, adorável e
cintilante acima daquele morro escuro.
— Anne, segure a língua – disse Marilla, completamente fatigada de
tentar seguir o fluxo dos pensamentos da menina.
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Anne não disse mais nada até que entraram na própria alameda de
Green Gables. Uma brisa errante desceu até ambas, carregando o forte
perfume das samambaias recém molhadas pelo orvalho. Ao longe, entre as
sombras, uma luz alegre brilhava em meio às árvores, vinda da cozinha de
Green Gables. Anne repentinamente chegou mais perto de Marilla e
escorregou sua mãozinha na palma endurecida da mão desta.
— É maravilhoso estar indo para casa, e saber que é seu lar! – ela disse
– Eu já amo Green Gables, e nunca amei nenhum lugar antes. Nenhum lugar
jamais pareceu um lar. Oh Marilla, estou tão feliz. Eu poderia fazer uma oração
agora e não acharia nada difícil.
Alguma coisa calorosa e agradável encheu o coração de Marilla ao toque
daquela pequena mãozinha na sua; talvez a vibração maternal que nunca tinha
vivido. A doçura e a falta de costume incomodaram-na. Apressou-se em
restaurar seus sentimentos à calma habitual recorrendo a um ensinamento
moral.
— Se for uma boa menina sempre será feliz, Anne. E nunca deveria
achar difícil rezar.
— Repetir a oração de outra pessoa não é exatamente a mesma coisa
que orar – disse Anne, meditando –, mas imaginarei que estou em um vento
soprando no topo daquelas árvores. Quando estiver cansada das árvores,
imaginarei que estou aqui balançando gentilmente as samambaias; e então
voarei sobre o jardim de Mrs. Lynde e organizarei a coreografia das flores;
depois, faria uma descida rápida por sobre o campo de trevos, e então sopraria
sobre a Lagoa das Águas Brilhantes, quebrando-a em pequenas ondas
espumantes. Oh, existe tanto escopo para imaginação em um vento! Então, não
falarei mais nada por agora, Marilla.
— Graças a Deus por isso – suspirou Marilla, com alívio devoto.
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Capítulo XI
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algum para gastar com mangas bufantes. De qualquer forma, acho que são
ridículas. Prefiro mangas simples e sensatas.
— Mas eu preferiria parecer ridícula como são todas as demais, do
que simples e sensata sozinha – persistiu a pesarosa Anne.
— Certo que sim! Bem, pendure cuidadosamente os vestidos no seu
roupeiro, e sente-se para estudar a lição da Escola Dominical. Eu busquei a
lição trimestral com Mr. Bell, e você irá para a Escola amanhã – disse Marilla,
muito indignada, desaparecendo pelas escadas.
Anne apertou as mãos e olhou para os vestidos.
— Tinha esperança de que houvesse um branco com mangas bufantes –
murmurou, desconsolada – eu orei pedindo um, mas não confiei muito que isso
fosse acontecer. Não supus que Deus teria tempo para se incomodar a respeito
do vestido de uma pequena órfã, então eu sabia que teria que contar somente
com Marilla para isto. Bem, ao menos posso imaginar que um deles é de
musselina branca como a neve, com graciosos babados de renda e mangas três
vezes mais bufantes.
Na manhã seguinte, a advertência de uma forte dor de cabeça impediu
Marilla de acompanhar Anne à Escola Dominical.
— Você terá que descer e chamar por Mrs. Lynde, Anne – ela disse –
ela cuidará para que entre na classe certa. Agora, preste atenção, comporte-
se com modos adequados. Fique para o sermão final, e peça a Mrs. Lynde que
indique qual é o nosso banco. Aqui tem um centavo para a oferta. Não fique
encarando as pessoas e não se inquiete. Deverei esperar que me conte o
sermão quando voltar para casa.
Anne saiu impecável, trajando o apertado vestido de cetim preto e
branco, o qual, embora decente com relação ao comprimento, e que certamente
não dava espaço para a acusação de avareza, contribuía para enfatizar cada
canto e ângulo de sua magra figura. Seu chapéu novo era pequeno, achatado e
lustroso, e a extrema simplicidade havia desapontado-a sobremaneira,
permitindo que Anne secretamente sonhasse com laçarotes de fita e flores.
Entretanto, as últimas foram supridas antes que ela chegasse até a trilha
principal. Tendo-se encontrado no meio da alameda com um frenesi de
ranúnculos amarelos agitados pelo vento e gloriosas rosas silvestres, Anne,
pronta e liberalmente adornou seu chapéu com uma espessa coroa de flores.
Não importando o que as outras pessoas poderiam pensar do resultado, ela
estava satisfeita e caminhou alegremente pela trilha, mantendo a cabeça
avermelhada orgulhosamente erguida e decorada em rosa e amarelo.
Quando chegou à casa de Mrs. Lynde, descobriu que a senhora já tinha
saído. Sem se intimidar, Anne seguiu adiante sozinha para a igreja. No pórtico
desta, encontrou um grupo de meninas, quase todas alegremente vestidas de
branco, azul ou rosa, e todas fixando os olhos curiosos naquela estranha
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íntimo recôndito de seu coração durante anos, mas nunca expressara. Quase
pareceu que esse secreto pensamento crítico, nunca antes proferido, tinha
repentinamente tomado a forma visível e acusatória na pessoa daquela
franca e negligenciada criaturinha.
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Capítulo XII
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visitas chegaram. Ela era uma menininha muito bonita, com olhos e cabelos
pretos como os da mãe e as bochechas rosadas, e uma expressão alegre que
herdara do pai.
— Esta é minha garotinha, Diana – disse Mrs. Barry – Diana, leve Anne
até o jardim, e mostre a ela suas flores. Isso será melhor para você do que
cansar os olhos naquele livro. Ela lê demais – falou, voltando-se para Marilla,
enquanto as meninas saíam – e não posso impedi-la, pois o pai dela contribui
para isso e a encoraja. Ela está sempre debruçada em um livro. Estou
contente que exista agora a perspectiva de ter uma amiga para brincar; talvez
isso faça com que fique mais ao ar livre.
Lá fora, no jardim inundado pela suave luz do pôr do sol que
trespassava os antigos pinheiros escuros do lado oeste, estavam Anne e
Diana, entreolhando-se acanhadas sobre um arbusto de suntuosos lírios-
tigrinos.
O jardim dos Barry era uma vastidão sombreada de flores que teria
encantado o coração de Anne em um momento menos assustador de seu
destino. Era circundado por antigos salgueiros e altos pinheiros, abaixo dos
quais cresciam flores que amavam a sombra. Angulosas veredas bem
cuidadas, caprichosamente orladas com conchinhas de marisco, eram
interceptadas como que por fitas vermelhas úmidas de orvalho, e, por entre
os canteiros, pequenas flores antiquadas cresciam a esmo. Havia corações-
sangrentos rosados e esplêndidas peônias escarlates de tamanho grande;
narcisos brancos perfumados, e doces e espinhentas rosas escocesas;
aquilégias brancas, azuis e rosas, e saponárias coloridas de lilás; arbustos de
abrótano, caniço-malhado e hortelã; orquídeas cor de púrpura, narcisos
amarelos, e grande quantidade de trevos brancos com seus delicados e
aveludados vapores fragrantes e cruz de malta, que atirava suas setas
flamejantes sobre as flores de almíscar branco. Um jardim onde a luz do sol
se prolongava e as abelhas zumbiam, e os ventos, seduzidos ao ócio,
murmuravam e farfalhavam.
— Oh, Diana – disse Anne, por fim, juntando as mãos e falando quase
em um suspiro – oh, você acha que poderá gostar de mim um pouquinho, o
suficiente para ser minha amiga do peito?
Diana riu. Diana sempre ria antes de falar.
— Ora, creio que sim – ela respondeu francamente – estou muito
contente por você ter vindo morar em Green Gables. Será uma alegria ter
alguém para brincar. Não há outra menina que more nas redondezas e não
tenho irmãs grandes o bastante.
— Você jura ser minha amiga para sempre e sempre? – inquiriu Anne,
ansiosamente.
Diana pareceu chocada.
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Capítulo XIII
As Delícias da Antecipação
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claro que pode ir. Você é uma aluna da Escola Dominical, e não é certo negar
a autorização quando todas as outras meninas estarão lá.
— Mas – mas – balbuciou Anne – Diana disse que todos têm de levar
uma cesta com coisas para comer. Eu não sei cozinhar, como você bem sabe,
Marilla, e – e – não me importo muito de ir ao piquenique sem usar mangas
bufantes, mas eu sentiria uma humilhação horrorosa se não levasse uma
cesta. Isto tem me atormentando desde que Diana me falou.
— Bem, não precisa se atormentar mais, eu farei uma cesta para você.
— Oh, minha querida e boa Marilla, oh, você é tão boa para mim. Oh,
eu sou tão grata a você.
Continuando com seus “ohs”, Anne se jogou nos braços de Marilla e,
com empolgação, beijou sua pálida bochecha. Foi a primeira vez, em toda a
sua vida, que recebeu um beijo espontâneo de uma criança. Novamente
aquela súbita sensação de surpreendente ternura a comoveu. Ela ficou
secretamente contente com o carinhoso impulso de Anne, o que foi a
provável razão de ter dito bruscamente:
— Calma, calma, deixe para lá essa sua bobeira de ficar beijando.
Preferia vê-la fazendo estritamente o que lhe é dito. E quanto a cozinhar, eu
tenho a intenção de começar a lhe dar algumas aulas, um dia desses. Mas
você é tão desmiolada, Anne, que tenho esperado para ver se você se acalma
um pouco e aprende a ficar quieta antes de começar. É necessário manter a
cabeça centrada quando se está cozinhando, e não parar no meio das coisas
para deixar seus pensamentos vagarem sobre toda a criação. Agora, pegue
sua colcha de retalhos e termine de costurar um quadrado antes da hora do
chá.
— Eu não gosto de patchwork[18] – disse Anne, desanimada, pegando
sua caixa de costura e sentando-se com um suspiro diante de uma pequena
pilha de losangos vermelhos e brancos — eu acho bonitos alguns tipos de
costura, mas não há escopo para a imaginação em patchwork. É apenas um
ponto atrás do outro, que nunca parece chegar a lugar algum. Mas
obviamente eu prefiro ser Anne de Green Gables costurando patchwork, do
que ser Anne de qualquer outro lugar sem mais nada para fazer, exceto
brincar. Queria que o tempo costurando retalhos passasse tão rápido quanto
passa quando estou brincando com Diana. Oh, temos passado momentos tão
bons, Marilla. Tenho que prover grande parte da imaginação, mas sou muito
boa em fazer isso. Diana é simplesmente perfeita em todas as outras coisas.
Sabe aquela pequena porção de campo do outro lado do riacho, que fica
entre nossa fazenda e a de Mr. Barry? Pertence ao Mr. William Bell, e logo
virando a curva tem um pequeno cercado de bétulas brancas – o lugar mais
romântico de todos, Marilla. Diana e eu temos uma casa de brinquedos lá.
Nós a chamamos de Descanso Silvestre. Não é um nome poético? Posso lhe
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assegurar que levei um tempo para inventá-lo. Fiquei acordada quase uma
noite toda pensando. Então, quando já estava quase caindo de sono, veio
uma inspiração. Diana ficou extasiada quando ouviu. Nós mantemos nossa
casinha elegantemente arrumada. Você deve ir e ver, Marilla – você irá? Nós
temos grandes pedras, todas cobertas por musgo, para sentar, e tábuas de
madeira de árvore em árvore que usamos como prateleiras. E ali guardamos
toda nossa louça. Claro que estão todas quebradas, mas é a coisa mais fácil
do mundo imaginar que estão inteiras. Tem um pedaço de prato pintado
com um ramo de hera amarela e vermelha que é especialmente lindo. Nós o
guardamos na sala, onde temos o cristal das fadas também. O cristal é
adorável como um sonho. Diana o encontrou no matagal, atrás do galinheiro
deles. Tem muitos arco-íris – jovens arco-íris, que ainda não cresceram – e a
mãe de Diana disse a ela que, na verdade, é a parte quebrada de uma
lamparina que eles tinham. Mas eu gosto de imaginar que as fadas o
perderam numa noite, quando tiveram um baile para ir, então podemos
chamá-lo de cristal das fadas. Matthew irá fazer uma mesa para nós. Oh, nós
nomeamos de Charco do Salgueiro aquela pequena laguna redonda no
campo de Mr. Barry. Tirei esse nome do livro que Diana me emprestou.
Aquele foi um livro emocionante, Marilla. A heroína teve cinco namorados.
Eu ficaria bem satisfeita com um só, e você? Ela era muito bonita e passou
por grandes adversidades. Ela desmaiava facilmente. Eu adoraria poder
desmaiar, você não, Marilla? É tão romântico. Mas eu até que sou bem
saudável, mesmo sendo tão magrinha, embora eu acredite que esteja mais
gordinha. Você acha que engordei? Olho todas as manhãs para meus
cotovelos quando me levanto, para ver se vejo alguma covinha. Diana
mandou fazer um vestido com mangas na altura do cotovelo. Ela irá usá-lo
no piquenique. Oh, espero que o tempo esteja bom na próxima quarta-feira.
Não sei se poderei suportar o desapontamento se acontecer alguma coisa
que me impeça de ir ao piquenique. Suponho que sobreviverei, mas estou
certa de que seria uma tristeza por toda a vida. Não importaria se eu fosse a
cem piqueniques depois deste, nenhum me compensaria por ter perdido
este. Eles vão colocar botes na Lagoa das Águas Brilhantes – e sorvete, como
eu disse. Eu nunca provei sorvete. Diana tentou me explicar como é, mas
creio que sorvete é uma daquelas coisas que estão além da imaginação.
— Anne, você falou sem parar por dez minutos, contados no relógio! –
exclamou Marilla – Agora, somente por curiosidade, veja se consegue segurar
sua língua pela mesma duração de tempo.
Anne segurou a língua, como desejado. Mas pelo restante da semana
ela falou em piquenique, pensou em piquenique e sonhou com piquenique.
Choveu no sábado e ela entrou em um estado tão desvairado, por medo de
que continuasse chovendo até quarta-feira, que Marilla lhe deu mais um
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Capítulo XIV
A Confissão de Anne
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sobre o broche, mas Marilla ficou ainda mais firmemente convencida de que
ela sabia.
Ela relatou a história a Matthew na manhã seguinte. Ele ficou perplexo
e confuso; não podia perder a fé em Anne tão rapidamente, mas teve que
admitir que as circunstâncias estavam contra ela.
— Você tem certeza de que não caiu atrás da penteadeira? – foi a única
sugestão que ele pôde oferecer.
— Eu arrastei o móvel e tirei todas as gavetas, procurei por cada fenda
e cantinho! – foi a afirmativa de Marilla – O broche desapareceu, e a menina o
tomou e mentiu a respeito. Esta é a verdade evidente e repulsiva, Matthew
Cuthbert, e devemos enfrentá-la.
— Bem, ora, e o que você vai fazer? – Matthew perguntou com
desespero, se sentindo secretamente agradecido por ser a irmã quem teria
de lidar com a situação, e não ele. Não teve vontade de meter o bedelho desta
vez.
— Ela ficará no quarto até que confesse – respondeu,
impiedosamente, lembrando-se do sucesso deste método no caso anterior – e
então veremos. Talvez possamos encontrar o broche, se ela ao menos disser
para onde o carregou; mas, em qualquer que seja o caso, ela terá de ser
severamente punida, Matthew.
— Bem, ora, você terá que puni-la – disse Matthew, tomando o chapéu
–, eu não tenho nada a ver com isso, lembre-se. Você mesma me advertiu.
Marilla se sentiu abandonada. Não podia nem ir se aconselhar com
Mrs. Lynde. Ela subiu até o quarto do lado leste do sótão com o rosto muito
sério, e saiu de lá ainda mais séria. Imperturbável, Anne se recusava a
confessar. Persistia em afirmar que não havia pegado o broche. A menina
tinha chorado, evidentemente, e Marilla sentiu uma pontada de compaixão,
que reprimiu com dureza. À noite ela estava, como expressou, “moída”.
— Você vai ficar neste quarto até que confesse, Anne. Pode tomar a
sua resolução quanto a isso – disse, firmemente.
— Mas o piquenique é amanhã, Marilla! – gritou Anne – Você não irá
me impedir de ir, não é? Deixará que eu saia somente à tarde, não é? Então,
depois eu ficarei aqui alegremente, tanto quanto você quiser. Mas eu tenho
que ir ao piquenique.
— Você não vai ao piquenique ou a qualquer outro lugar até que
confesse, Anne.
— Oh Marilla – soluçou Anne.
Mas Marilla havia saído e fechado a porta.
A quarta-feira amanheceu tão límpida e radiante como se tivesse sido
feita expressamente para o piquenique. Pássaros cantavam em torno de
Green Gables; as açucenas brancas no jardim emanavam seu vapor
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— Matthew Cuthbert, estou surpresa com você! Penso que tenho sido
muito mole com ela. E ela parece não perceber quão má tem sido; essa é
minha maior preocupação. Se ela sentisse arrependimento de verdade, não
seria tão ruim. E você tampouco parece perceber; está todo tempo lhe dando
desculpas. Posso ver isso!
— Ora, ela é tão pequena – ele reiterou, com voz fraca – e deve existir
alguma tolerância, Marilla. Você sabe que ela nunca teve nenhuma educação.
— Bem, está tendo agora – retorquiu Marilla.
A resposta silenciou Matthew, mesmo que não o tenha convencido.
Aquele almoço foi uma refeição muito sombria. A única pessoa alegre por lá
era Jerry Buote, o empregado; e Marilla se ressentiu com sua animação como
se fosse um insulto pessoal.
Quando já tinha lavado a louça, amassado o pão e alimentado as
galinhas, Marilla se lembrou de que havia notado um pequeno furo em seu
melhor xale preto rendado, ao tirá-lo na segunda-feira à tarde quando
retornou da Sociedade Assistencial.
Decidiu remendá-lo. O xale estava em uma caixa no baú. Quando
Marilla o ergueu da caixa, a luz solar, cruzando as vinhas que cobriam
generosamente a janela, incidiu sobre algo preso ao xale: um objeto que
brilhava e reluzia em facetas de luz violeta. Marilla o agarrou, assustada. Era
o broche de ametistas, pendurado em uma franja da renda por seu
prendedor.
— Deus meu! – disse, vagamente – O que significa isso? Aqui está o
meu broche são e salvo, que eu pensava estar no fundo de Barry’s Pond. O
que aquela menina queria ao afirmar que o havia pegado e perdido? Confesso
que acho que Green Gables está enfeitiçada. Lembro-me agora que quando
tirei meu xale na segunda-feira à tarde, eu o deixei sobre a penteadeira por
um minuto. Suponho que o broche tenha se enganchado ao xale de alguma
forma. Pois bem!
Marilla dirigiu-se ao quarto do lado leste, com o broche na mão. Anne
havia se esgotado de tanto chorar, e agora estava sentada, abatida, ao lado da
janela.
— Anne Shirley – disse Marilla, solenemente – acabei de encontrar o
broche pendurado no meu xale de renda preta. Agora quero saber o que
significa toda aquela ladainha que você me contou nesta manhã.
— Ora, você disse que me manteria aqui até que eu confessasse –
respondeu Anne, exausta – então eu decidi confessar para que pudesse ir ao
piquenique. Inventei a confissão na noite passada, depois que fui para a
cama, e tornei-a o mais interessante que pude. Então repeti uma e outra vez
para não esquecer. Mas, afinal de contas, você não me permitiu ir ao
piquenique, então todo o meu trabalho foi inútil.
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Marilla teve que rir de si mesma, apesar de tudo. Mas sua consciência
feriu-a.
— Anne, não há outra como você! Mas eu estava errada; vejo isso
agora. Eu não deveria ter duvidado de sua palavra sabendo que você nunca
conta mentiras. Claro, não foi certo de sua parte confessar algo que não fez –
foi errado fazê-lo. Mas eu a conduzi a este erro. Então, se você me perdoar,
Anne, eu a perdoarei e nós estaremos resolvidas novamente. E agora,
arrume-se para o piquenique.
Anne saltou como um foguete.
— Oh, Marilla, não é tarde demais?
— Não, são apenas duas horas. Devem ter recém começado a se reunir,
e ainda falta uma hora para o chá. Lave o seu rosto e arrume o cabelo, e
coloque seu vestido listrado. Eu vou arrumar a cesta para que você leve. Há
bastante coisa pronta em casa. Chamarei Jerry para que encilhe a égua e a
conduza ao local do piquenique.
— Oh, Marilla! – exclamou Anne, voando para o lavatório – Há cinco
minutos atrás eu estava tão miserável que desejei nunca ter nascido, e agora
não trocaria de lugar com um anjo!
Naquela noite, uma Anne completamente exausta e feliz retornou a
Green Gables, em um estado de beatificação impossível de descrever.
— Oh, Marilla, tive a tarde mais perfeitamente formidável.
“Formidável” é uma nova palavra que aprendi hoje. Ouvi Mary Alice Bell
pronunciá-la. Não é expressiva? Tudo estava adorável. Tomamos um
esplêndido chá, e então Mr. Harmon Andrews nos levou a todos para um
passeio de bote na Lagoa das Águas Brilhantes – seis de cada vez. E Jane
Andrews quase caiu para fora do bote. Ela estava inclinada pegando
nenúfares, e se Mr. Andrews não a tivesse segurado a tempo pela faixa da
cintura, ela provavelmente teria caído e se afogado. Queria que tivesse sido
eu. Teria sido uma experiência tão romântica quase se afogar! Seria uma
história emocionante de contar. E então comemos sorvete. As palavras me
faltam para descrevê-lo. Asseguro que foi sublime, Marilla.
Naquela noite, Marilla relatou toda a história a Matthew, enquanto
costurava as meias.
— Estou disposta a confessar que me enganei – concluiu,
candidamente –, mas aprendi uma lição. Tenho que rir quando penso na
“confissão” de Anne, mesmo sabendo que não devia, pois foi realmente uma
mentira. Mas, de alguma forma, esta mentira não soa tão má quanto a outra
teria sido, e de certo modo eu fui a responsável. Aquela criança é difícil de
entender em alguns aspectos. Mas eu acredito que ela ainda se dará bem. E
outra coisa é certa: nenhuma casa onde ela estiver será enfadonha, jamais.
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CAPÍTULO XV
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primeiro da classe, posso afirmar a você. Ele ainda está no quarto livro,
embora já esteja com quase quatorze anos. O pai dele esteve enfermo
durante quatro anos e foi morar em Alberta para se recuperar, e Gilbert foi
com ele. Eles ficaram lá por três anos e Gil quase não frequentou a escola até
retornarem. Você não achará tão fácil ser a primeira da classe depois disso,
Anne.
— Estou contente. Não poderia me sentir realmente orgulhosa por ser
a primeira da classe acima de meninos e meninas de apenas nove ou dez
anos. Eu me distingui soletrando ‘ebulição’. Josie Pye era a primeira da classe,
mas veja, ela espiou no livro. Mr. Phillips não percebeu – estava olhando para
Prissy Andrews – mas eu vi. Eu somente lhe dei uma encarada congelante e
desdenhosa, e ela ficou vermelha como uma beterraba e soletrou essa
palavra errada.
— Aquelas meninas Pye são sempre traiçoeiras – disse Diana,
indignada, enquanto pulavam o cercado da estrada principal — Gertie Pye
colocou sua garrafa de leite no meu lugar ontem. Vê? Não estou falando com
ela agora.
Quando Mr. Phillips estava no fundo da sala ouvindo a lição de Latim
de Prissy Andrews, Diana sussurrou para Anne:
— Anne, aquele é Gilbert Blythe sentado na mesma direção que você,
do outro lado do corredor. Olhe e veja se ele não é bonito.
Anne olhou, portanto. Ela teve uma boa oportunidade de fazê-lo, pois
o tal Gilbert Blythe estava absorto em prender furtivamente, no encosto do
assento, a longa trança loira de Ruby Gillis, que estava sentada na frente dele.
Ele era um rapaz alto, com cabelos cacheados castanhos, olhos travessos da
mesma cor e a boca retorcida em um sorriso provocante. Com um gritinho,
Ruby Gillis, que se levantara para pegar um cálculo com o professor, caiu de
volta no assento, acreditando que o cabelo lhe havia sido arrancado pela raiz.
Todos olharam para ela, e Mr. Phillips a encarou com tanta severidade que
Ruby começou a chorar. Gilbert havia escondido o alfinete fora de vista e
estava estudando História com a fisionomia mais moderada do mundo; mas
quando a comoção já havia diminuído, ele olhou para Anne e piscou com um
inexprimível jeito cômico.
— Acho que seu Gilbert Blythe é bonito – confidenciou Anne para Diana
–, mas creio que seja muito ousado. Não é de bom tom piscar para uma
garota que ele nunca viu.
Mas não foi antes do turno da tarde que as coisas realmente
começaram a acontecer.
Mr. Phillips estava de volta ao fundo da sala, explicando um problema
de Álgebra para Prissy Andrews e os outros alunos estavam fazendo o que
queriam, comendo maçãs verdes, cochichando, desenhando figuras em suas
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lousas e fazendo os grilos correrem atados a fios para cima e para baixo do
corredor. Gilbert Blythe tentava fazer com que Anne Shirley olhasse para ele
e falhava completamente, pois, nesse momento, Anne estava totalmente
inconsciente não apenas da existência do próprio Gilbert Blythe, mas de
qualquer outro estudante na escola de Avonlea. Com o queixo apoiado nas
mãos e os olhos fixos no relance azul da Lagoa das Águas Brilhantes, que
vislumbrava da janela oeste, ela estava muito distante em um magnífico
mundo de sonhos, sem ver nem ouvir nada fora de suas maravilhosas visões.
Gilbert Blythe não estava acostumado a fracassar em chamar a
atenção de uma garota. Ela tinha que olhar para ele, essa menina Shirley de
cabelos vermelhos, queixinho pontudo e grandes olhos, que não eram como
os olhos de nenhuma outra menina na escola de Avonlea.
Ele se inclinou ao outro lado do corredor, pegou a ponta da longa
trança ruiva de Anne, estendeu-a no comprimento de um braço e disse em
um sussurro perfurante:
— Cenouras! Cenouras!
Então Anne o olhou com vingança!
E fez mais do que olhar. Pôs-se de pé, saltando como uma mola, suas
esplendorosas fantasias caídas em ruínas irrecuperáveis. Ela lançou um olhar
furioso para Gilbert, mas a centelha de ira em seus olhos foi rapidamente
apagada por lágrimas igualmente furiosas.
— Garoto mau e odioso! – exclamou, colérica – Como ousa?
E então – pah! Anne tinha quebrado a lousa na cabeça de Gilbert,
partindo-a – a lousa, não a cabeça – em dois pedaços.
A escola de Avonlea sempre desfrutava de uma cena, e esta era uma
especialmente agradável. Todos disseram “Oh” em horrorizado prazer. Diana
arfou. Ruby Gillis, que era inclinada a ser histérica, recomeçou a chorar.
Tommy Sloane deixou todos os seus grilos escaparem juntos enquanto
observava o quadro, boquiaberto.
Mr. Phillips desceu pelo o corredor e pôs a pesada mão sobre o ombro de
Anne.
— Anne Shirley, o que significa isso? – perguntou, irritado. Anne não
respondeu. Era pedir muito a uma pessoa de carne e osso, e esperar que ela
reconhecesse diante de toda a classe que havia sido chamada de “cenouras”.
Gilbert foi quem falou, resoluto:
— Foi tudo culpa minha, Mr. Phillips. Eu a provoquei.
Mr. Phillips não prestou nenhuma atenção em Gilbert.
— Lamento ao ver uma aluna minha mostrando este tipo de
comportamento e tal espírito de vingança – falou em tom solene, como se o
mero fato de ser sua aluna devesse exterminar todas as más tendências dos
corações de pequenos mortais imperfeitos – Anne, vá e fique em pé no
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— Por que está levando todas as suas coisas para casa, Anne? – Diana
quis saber, tão logo elas estavam no caminho de volta. Ela não tinha ousado
fazer esta pergunta antes.
— Não vou voltar mais para a escola – assegurou Anne. Diana ficou
boquiaberta e a encarou para ver se ela realmente falava a verdade.
— Marilla deixará você ficar em casa? – perguntou.
— Ela terá que deixar. Eu nunca mais irei à escola com aquele homem
novamente.
— Oh, Anne! – Diana parecia querer chorar – Acho que você está
sendo má. O que eu farei? Mr. Phillips me fará sentar com aquela horrível
Gertie Pye, sei que o fará, porque ela se senta sozinha agora. Por favor, volte
Anne.
— Eu faria quase qualquer coisa nesse mundo por você, Diana – disse
Anne, com tristeza –, deixaria que os meus membros fossem arrancados um a
um, se lhe servisse de algum bem. Mas isso eu não posso fazer; então, por
favor, não me peça que faça. Você aflige minha alma.
— Pense apenas em toda a diversão que você irá perder! – reclamou
Diana – Vamos construir a casa mais adorável lá embaixo, ao lado do riacho; e
vamos jogar bola na semana que vem e você nunca jogou bola, Anne. É
tremendamente divertido. E vamos aprender uma nova canção que Jane
Andrews está ensaiando agora; e Alice Andrews vai trazer um novo livro de
romance na semana que vem e todas nós vamos ler em voz alta, capitulo por
capítulo, ao lado do riacho. E você sabe que gosta tanto de ler em voz alta,
Anne.
Mas nada disso a comoveu nem um pouco. Sua decisão estava tomada.
Ela nunca voltaria à escola com Mr. Phillips novamente; e disse isso para
Marilla quando chegou em casa.
— Bobagem – Marilla falou.
— Não é bobagem nenhuma! – retrucou Anne, olhando solenemente
para Marilla, com olhos reprovadores – Você não entende, Marilla? Eu fui
insultada.
— Insultada! Que disparate! Você irá à escola amanhã como de
costume.
— Oh, não – Anne balançou a cabeça, gentilmente —, não voltarei,
Marilla. Vou aprender minhas lições em casa e serei uma boa menina, e vou
segurar minha língua todo o tempo, se possível. Mas não voltarei à escola, isso
eu asseguro.
Marilla viu na carinha de Anne algo como uma invencível teimosia.
Compreendeu que teria problemas em superá-la; porém resolveu,
sabiamente, não dizer nada mais naquele momento. “Vou consultar Rachel
sobre o assunto, esta tarde” – ela pensou. “É inútil tentar discutir com Anne
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Academy. Ele nunca teria conseguido esta vaga de professor por mais um ano
se o tio dele não fosse um dos integrantes do conselho diretor – aliás, o
integrante, pois ele leva os outros dois pelo nariz, isto é que é. Confesso que
não sei que rumo tomará a educação nesta ilha.
Mrs. Lynde assentiu com a cabeça, como dizendo que se somente ela
fosse a responsável pelo sistema de educação da Providência, as coisas
seriam muito melhor administradas.
Marilla aceitou o conselho de Mrs. Lynde e nenhuma outra palavra foi
dita a Anne sobre voltar à escola. Ela estudava em casa, realizava suas tarefas
e brincava com Diana nos frios crepúsculos purpúreos do outono; mas
quando cruzava com Gilbert Blythe na estrada ou o encontrava na Escola
Dominical, passava por ele com um gelado desprezo, sem deixar que
nenhuma partícula descongelasse pelos óbvios intentos do rapaz de
apaziguá-la. Nem mesmo os esforços de Diana como pacificadora surtiam
efeito. Anne tinha evidentemente decidido odiar Gilbert Blythe até o fim de
sua vida.
Tanto como odiava Gilbert, entretanto, ela adorava Diana, com todo o
amor de seu coraçãozinho passional, igualmente intenso em suas ternuras
como em seus ódios. Em um entardecer, ao voltar do pomar de maçãs, Marilla
a encontrou chorando amargamente, sentada sozinha na janela do lado leste,
à luz do crepúsculo.
— O que aconteceu agora, Anne? – perguntou.
— Trata-se de Diana – Anne chorava com toda vontade –, eu a adoro
tanto, Marilla. Não posso nem viver sem ela. Mas sei muito bem que, quando
crescermos, Diana se casará e irá embora, e me deixará. E oh, o que vou
fazer? Odeio o marido dela – odeio-o furiosamente. Tenho estado imaginando
tudo – a cerimônia e tudo mais –, Diana trajando um lindíssimo vestido
branco como a neve, com um véu, e parecendo linda e régia como uma
rainha; e eu como sua dama de honra, com um vestido adorável também, e
mangas bufantes, mas com o coração partido escondido atrás de uma
expressão sorridente. E então, logo irei me despedir dela, dizendo adeus-s-s-
s – aqui neste ponto, Anne rompeu em lágrimas e chorou com crescente
amargura.
Marilla virou-se rapidamente para esconder o rosto contorcido; mas
foi inútil. Desabou na cadeira mais próxima e caiu em uma gargalhada tão
vigorosa, ressoante e incomum que Matthew, cruzando o quintal lá fora,
deteve-se surpreso. Quando ele tinha ouvido Marilla rir daquele jeito antes?
— Bem, Anne Shirley – disse Marilla, assim que conseguiu falar –, se
você gosta de problemas, pelo amor de Deus, trate de que seja algo mais
conveniente. Não se pode negar que você tem imaginação, com toda a
certeza.
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Capítulo XVI
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pode fazer com que você se torne mais descuidada do que de costume – mas
pode chamar Diana para vir passar a tarde com você e tomar o chá aqui.
— Oh, Marilla! – Anne bateu palmas — Que maravilha! Depois de tudo,
creio que você é capaz de imaginar coisas, ou nunca teria adivinhado como
eu ansiava exatamente por isso. Será ótimo, e vai parecer tão adulto. Não há
temor algum que eu vá esquecer de pôr o chá para esquentar quando tiver
companhia. Oh, Marilla, posso usar o jogo de chá dos botões de rosa?
— Claro que não! O jogo de chá dos botões de rosa! Bem, e o que mais?
Sabe que nunca uso aquele jogo, a não ser para o ministro ou para as senhoras
da Sociedade Assistencial. Você vai servir no antigo jogo de chá marrom. Mas
poderá abrir o pequeno frasco amarelo de compota de cereja. Está na hora de
ser consumido – creio que já esteja bom. E pode cortar o bolo de frutas e servir
bolinhos e biscoitos.
— Posso me imaginar sentada na ponta da mesa e servindo o chá –
disse Anne, estática, fechando os olhos – e perguntando a Diana se aceita
açúcar! Sei que ela não gosta, mas claro que vou lhe perguntar, como se eu
não soubesse. E logo lhe rogarei que coma outro pedaço de bolo de frutas e
outra porção de compota. Oh, Marilla, é uma sensação maravilhosa somente
pensar no assunto. Posso levá-la ao quarto de hóspedes para que guarde seu
chapéu quando ela chegar? E depois levá-la à sala de visitas?
— Não. A saleta servirá para você e sua amiga. Mas há uma garrafa
pela metade de licor de framboesa que sobrou do encontro social da igreja,
na outra noite. Está na segunda prateleira do armário da saleta. E uns
biscoitos para comer durante a tarde, pois ouso dizer que Matthew vai
chegar atrasado para a hora do chá, visto que está transportando as batatas.
Anne voou pelo vale, passando pela Bolha da Dríade e subindo o
caminho dos pinheiros até Orchard Slope, a fim de chamar Diana para o chá.
Como resultado, pouco depois que Marilla partiu para Carmody, Diana chegou,
vestida com seu segundo melhor vestido e com o aspecto típico de quem foi
convidada para o chá. Em outros tempos, ela teria corrido até a porta da
cozinha sem bater, mas dessa vez bateu à porta da frente com cerimônia. E
quando Anne, também usando seu segundo melhor vestido, abriu a porta de
maneira igualmente cerimoniosa, as duas meninas apertaram as mãos como se
nunca tivessem se visto. Esta solenidade pouco natural durou até que Diana foi
levada para o quartinho do sótão para guardar seu chapéu e sentou-se por dez
minutos na saleta, em posição ereta.
— Como está a sua mãe? – inquiriu Anne polidamente, como se não
tivesse visto Mrs. Barry colhendo maçãs esta manhã, em boa saúde e humor.
— Ela está muito bem, obrigada. Suponho que Mr. Cuthbert esteja
embarcando as batatas para Lily Sands esta tarde, não é? – disse Diana, que
havia ido à casa de Mr. Harmon Andrews aquela manhã na carroça de
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Matthew.
— Sim. Nossa colheita de batatas está muito boa este ano. Espero que
a colheita de seu pai esteja boa também.
— Sim, está muito boa, obrigada. Já colheram muitas maçãs?
— Oh, mais do que nunca! – disse Anne, esquecendo-se dos bons modos
e pulando rapidamente – Vamos ao pomar colher algumas Delícias Vermelhas,
Diana. Marilla disse que podemos colher tudo que foi deixado nas árvores. Ela é
tão generosa. Disse que podemos comer bolo de frutas e compotas na hora do
chá. Não é de bom tom dizer a uma visita o que vai servir no chá, então não vou
contar o que ela permitiu que nós bebêssemos. Direi apenas que começa com L
e F e possui uma cor vermelha brilhante. Eu amo bebidas de cor vermelha
brilhante, você não? Elas são duas vezes mais saborosas do que as bebidas de
qualquer outra cor.
O pomar, com grandes galhos carregados de frutas, comprovou ser tão
delicioso que as meninas passaram ali a maior parte da tarde, sentadas em
um canto do gramado que fora poupado pela geada e onde vagava a suave luz
amornada do sol outonal, comendo maçãs e falando o tempo todo. Diana
tinha muito a contar para Anne sobre o que estava acontecendo na escola. Ela
teve que se sentar com Gertie Pye e odiou isso; Gertie rangia seu lápis o
tempo inteiro e isso fazia o sangue de Diana gelar. Ruby Gillis havia feito uma
simpatia para tirar todas as suas verrugas, em verdade, com uma pedra
mágica que lhe fora dada pela velha Mary Joe, de Creek. Ela teve que esfregar
a verruga com a pedra e então jogá-la sobre o ombro esquerdo em uma lua
nova, e as verrugas desapareceram. O nome de Charlie Sloane foi escrito
junto ao de Emma White na parede do pórtico e a menina tinha ficado
terrivelmente furiosa com isso. Sam Boulter tinha sido insolente com Mr.
Phillips em aula e o professor o havia açoitado, então o pai de Sam veio até a
escola e desafiou Mr. Phillips a tocar a mão em um de seus filhos outra vez.
Mattie Andrews tinha uma nova capa vermelha e um casaco azul com borlas,
e ela ficou com um ar tão convencido por causa disso que se tornou
absolutamente repugnante. Lizzie Wright não estava falando com Mamie
Wilson porque a irmã mais velha de Mamie havia feito a irmã mais velha de
Lizzie brigar com o namorado; e todos sentiam falta de Anne, e desejavam
que ela voltasse logo à classe; e Gilbert Blythe –
Mas Anne não queria ouvir nada sobre Gilbert Blythe. Ela saltou
rapidamente e disse que seria melhor irem para dentro para beberem o licor
de framboesa.
Anne procurou na segunda prateleira do armário da saleta, mas não
havia ali nenhuma garrafa de licor de framboesa. Em uma busca mais
detalhada, encontrou-a na prateleira superior. Anne pôs a garrafa em uma
bandeja e deixou-a sobre a mesa com um copo de vidro.
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— Por favor, sirva-se, Diana – disse, com polidez – Creio que não vou
provar agora. Não sinto qualquer vontade de beber depois de ter comido
todas aquelas maçãs.
Diana serviu um copo, olhou admirada para o vivo matiz de vermelho,
e então sorveu delicadamente.
— É um licor deliciosíssimo, Anne! Não sabia que licores eram tão
saborosos – elogiou.
— Estou realmente contente que você tenha gostado. Beba o quanto
quiser. Vou até a cozinha para acender o fogo. São tantas as
responsabilidades de uma pessoa quando se está tomando conta da casa, não
é mesmo?
Quando Anne voltou da cozinha, Diana estava bebendo seu segundo
copo cheio de licor; e ante a insistência da amiga, não ofereceu nenhuma
objeção particular em beber o terceiro. Os copos eram generosos e o licor de
framboesa era certamente muito bom.
— O melhor que já provei – disse Diana –, muito melhor do que o de
Mrs. Lynde, apesar de ela sempre fazer tanto alarde sobre o seu próprio. O
gosto não parece nem um pouco com o dela.
— Asseguro-lhe que o licor preparado por Marilla deve mesmo ser
melhor que o de Mrs. Lynde – afirmou Anne lealmente – Marilla é uma famosa
cozinheira. Ela está tentando me ensinar a cozinhar, mas posso dizer, Diana,
que é um trabalho árduo. Não há escopo para imaginação na culinária. Você
somente tem que seguir as regras. Na última vez que fiz um bolo, esqueci-me
de acrescentar a farinha. Estava pensando em uma história adorável sobre
você e eu, Diana. Imaginei que você estava desesperadamente enferma com
catapora e todos a abandonaram, mas eu fui bravamente para o lado de sua
cama e cuidei de você até que voltou à vida; então, eu peguei catapora e morri.
Fui enterrada debaixo daqueles álamos no cemitério, e você plantou uma
roseira ao lado da minha tumba e a regava com suas lágrimas. Você nunca,
nunca esqueceu a amiga de sua juventude que sacrificou a vida por você. Oh,
foi uma história tão emocionante, Diana. As lágrimas simplesmente rolavam
pelas minhas bochechas enquanto eu misturava os ingredientes do bolo. Mas
esqueci da farinha e o bolo foi um terrível fracasso. Você sabe, farinha é
essencial para bolos. Marilla ficou muito irritada e eu não a culpo. Sou uma dor
de cabeça para ela. Ela ficou extremamente mortificada sobre a calda do
pudim, na semana passada. Nós comemos pudim de ameixa no jantar de terça-
feira, e havia sobrado metade do pudim e um pouco de calda. Marilla disse que
havia o suficiente para outra refeição, e pediu-me que o cobrisse e guardasse
na estante da despensa. Eu tinha toda a intenção de fazê-lo, Diana, mas quando
estava levando, imaginei que era uma freira – claro que sou Protestante, mas
fingi que era Católica – que havia tomado o hábito para enterrar na clausura
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eu irei e cuidarei de você, pode confiar nisso. Nunca vou lhe abandonar. Mas
realmente quero que tome seu chá. O que está sentindo?
— Sinto-me tonta – respondeu Diana.
E em verdade, seu modo de andar demonstrava que estava mesmo
tonta. Anne, com lágrimas de desapontamento nos olhos, buscou o chapéu de
Diana e acompanhou-a até perto da cerca do jardim dos Barry. Então ela
voltou soluçando por todo o caminho até Green Gables, onde guardou
tristemente o restante do licor de framboesa de volta na despensa, e preparou
o chá para Matthew e Jerry, desempenhando sua tarefa sem nenhum
entusiasmo.
O próximo dia foi domingo, e como a chuva caiu torrencialmente desde o
amanhecer até o anoitecer, Anne não se afastou de Green Gables. Na segunda-
feira à tarde, Marilla a enviou até a casa de Mrs. Lynde com uma incumbência.
Em um curto espaço de tempo, Anne voltou voando pela alameda com lágrimas
rolando pelas bochechas. Entrou na cozinha e jogou-se de bruços no sofá, em
agonia.
— O que aconteceu de errado agora, Anne? – inquiriu Marilla, em
dúvida e consternação – Espero que não tenha se portado mal com Mrs.
Lynde outra vez.
Nenhuma resposta de Anne, salvo mais lágrimas e soluços!
— Anne Shirley, quando eu faço uma pergunta quero que seja
respondida. Sente-se direito neste minuto e diga por que está chorando.
Anne sentou-se, a tragédia personificada.
— Mrs. Lynde foi ver Mrs. Barry hoje e ela estava com um humor
terrível! – lamentou – Ela disse que eu fiz Diana se embriagar no sábado e que
a deixei ir para casa em uma condição vergonhosa. E disse que eu devo ser
uma menina completamente malvada e cruel, e que ela nunca mais permitirá
que Diana brinque comigo novamente. Oh Marilla, estou tomada pela
amargura.
Marilla a contemplava, assombrada.
— Embriagar Diana! – exclamou, assim que recobrou a voz – Ou você
ou Mrs. Barry estão loucas! O que diabos você deu a ela?
— Nada mais que licor de framboesa! – soluçou Anne – Nunca
imaginei que licor pudesse embriagar uma pessoa, Marilla, nem mesmo se
ela bebesse três copos cheios como Diana fez. Oh, isto me lembra tanto –
tanto o marido de Mrs. Thomas! Mas eu nunca quis embriagá-la.
— Embriagada, mas que disparate! – disse Marilla, marchando à
despensa da saleta.
Ali no armário havia uma garrafa que ela reconheceu como sendo
uma que continha um pouco de seu vinho de groselha feito em casa, três
anos atrás, e pelo qual era celebrada em Avonlea, ainda que alguns
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encontrá-la.
— Oh Marilla, pela sua expressão eu sei que foi inútil – concluiu,
tristemente – Mrs. Barry não vai me perdoar?
— Mrs. Barry, de fato! – respondeu Marilla, com rispidez – De todas as
pessoas irracionais que conheço, ela é a pior! Eu disse que tudo havia sido
um engano e que você não tinha culpa, mas ela simplesmente se negou a
acreditar. Esfregou-me na cara sobre meu vinho e como eu sempre disse que
não causava efeito em ninguém. E eu lhe disse claramente que não se pode
beber três copos cheios de vinho de groselha de uma vez, e que se eu tivesse
uma criança que fosse tão gulosa, iria curar sua bebedeira com uma bela
surra!
Marilla entrou depressa na cozinha, gravemente preocupada,
deixando atrás de si, no alpendre, uma pequena alma muito triste. Na mesma
hora, Anne saiu com a cabeça descoberta na fria noite outonal; muito
determinada e sem parar, ela tomou seu caminho através do campo de trevos,
cruzando logo em seguida a ponte de troncos e atravessando o bosque de
pinheiros, iluminada pela pálida lua pendente acima do bosque ocidental.
Mrs. Barry, vindo até a porta em resposta a uma tímida batida, encontrou a
suplicante menina de lábios pálidos e olhos ansiosos no degrau da porta.
Suas feições se endureceram. Mrs. Barry era uma mulher de fortes
preconceitos e desgostos, e sua ira era do tipo fria e brusca, a qual é sempre a
mais difícil de vencer. Para lhe fazer justiça, ela realmente acreditava que
Anne tinha embriagado Diana por pura e propensa maldade, e estava
honestamente ansiosa para preservar sua filhinha da contaminação que
significava uma maior intimidade com tal tipo de criança.
— O que você quer? – ela perguntou, com dureza.
Anne juntou as mãos.
— Oh, Mrs. Barry, por favor, me perdoe. Eu nunca quis intoxicar Diana.
Como eu poderia? Apenas imagine se a senhora fosse uma pobre menininha
órfã e que pessoas decentes a tivessem adotado, e tivesse somente uma amiga
do peito no mundo inteiro. Acha mesmo que eu iria intoxicá-la de propósito?
Eu pensei que fosse licor de framboesa. Estava firmemente convencida de que
era licor. Oh, por favor, não diga que Diana está proibida de brincar comigo de
novo. Se proibir, a senhora irá cobrir minha vida com uma negra nuvem de
pesar.
Este discurso, que teria suavizado o coração bondoso de Mrs. Lynde
em um piscar de olhos, não teve efeito em Mrs. Barry, exceto para irritá-la
ainda mais. Suspeitava das palavras grandes e dos gestos dramáticos de
Anne, e imaginava que a menina estava se divertindo com a sua cara. Isso ela
disse, fria e cruelmente:
— Não acredito que você seja companhia adequada para Diana. Será
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Capítulo XVII
Um Novo Interesse
Na tarde do dia seguinte, Anne, que estava sentada sobre seu patchwork
ao lado da janela da cozinha, de repente olhou para fora e viu Diana acenando
de maneira misteriosa lá da Bolha da Dríade. Em um instante, Anne já estava
fora de casa, voando pelo vale, com o assombro e a esperança lutando entre si
nos olhos expressivos. Mas a esperança se apagou quando viu o rosto aflito de
Diana.
— Sua mãe cedeu? – murmurou.
Diana sacudiu a cabeça tristemente.
— Não, e oh, Anne, ela disse que eu nunca mais vou brincar com você
novamente. Eu chorei e chorei, e falei que não foi culpa sua, mas tudo foi inútil.
Roguei-lhe que me deixasse vir aqui para me despedir de você. Ela disse que
eu poderia ficar somente por dez minutos, contados no relógio.
— Dez minutos não é tempo suficiente para dizer um adeus eterno –
disse Anne, chorosa – Oh Diana, você promete lealmente nunca me esquecer, a
amiga de sua infância, não importando quantas amigas queridas possa vir a
ter?
— Sim, certamente que sim – soluçou Diana – e nunca terei outra amiga
do peito; eu não quero ter. Não poderia amar outra amiga como amo você.
— Oh, Diana – gritou Anne, juntando as mãos – você me ama?
— Ora, é claro que amo. Você não sabia?
— Não – Anne suspirou longamente – sabia que você gostava de mim, é
claro, mas nunca imaginei que me amava. Ora, Diana, eu não achava possível
que alguém me amasse. Nunca ninguém me amou desde que eu me entendo
por gente. Oh, isto é maravilhoso! É um raio de luz que sempre iluminará o
escuro caminho que me separa de você, Diana. Oh, diga de novo.
— Eu a amo devotamente, Anne – repetiu Diana, firmemente – e
sempre amarei, pode estar segura disso.
— E eu sempre amarei você, Diana! – Anne estendeu a mão solenemente
– Nos anos vindouros, sua memória brilhará como uma estrela sobre minha
existência solitária, assim como diz aquela última história que lemos juntas.
Diana, dar-me-ia um cacho negro do vosso cabelo, para que seja meu tesouro
para todo o sempre?
— Você tem algo aí para cortá-lo? – questionou Diana, retornando às
praticidades e secando as lágrimas que haviam feito brotar as afetuosas
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palavras de Anne.
— Sim, afortunadamente tenho minha tesoura de costura no bolso –
disse Anne. Ela solenemente cortou um dos cachos de Diana – Desejo que seja
feliz, minha amiga amada. Daqui em diante seremos como estranhas, vivendo
lado a lado. Mas o meu coração sempre vos será fiel.
Anne se levantou e observou Diana até que ela estivesse fora de vista,
acenando tristemente a cada vez que a amiga olhava para trás. Então voltou
para casa, nem um pouco consolada naquele momento pela despedida
sentimental.
— Está tudo acabado – informou Anne a Marilla – nunca mais terei
outra amiga. Realmente estou pior do que jamais estive antes, pois não tenho
nem Katie Maurice nem Violetta agora. E mesmo que tivesse, não seria a
mesma coisa. Por alguma razão, amiguinhas imaginárias não satisfazem mais
depois que se conhece uma amiga real. Diana e eu tivemos uma despedida tão
afetuosa lá na nascente. Sempre guardarei esta memória sagrada. Usei a
linguagem mais tocante que pude pensar e disse ‘vos’ e ‘vossa’. Soa tão mais
sentimental falar assim do que simplesmente ‘você’. Diana me deu um cacho
de cabelo que vou guardar em uma pequena bolsinha, a qual vou costurar e
usar em volta do pescoço durante toda a vida. Por favor, assegure-se de que
seja enterrado comigo, pois não creio que eu vá viver por muito tempo. Talvez
quando me vir deitada, fria e morta diante dela, Mrs. Barry sinta remorso pelo
que fez e permita que Diana venha ao funeral.
— Não creio que você corra o risco de morrer de tristeza enquanto
puder falar, Anne – disse Marilla, insensível.
Na manhã seguinte, Anne surpreendeu Marilla ao descer do quarto com
sua bolsa de livros pendurada no braço e os lábios apertados em atitude
determinada.
— Vou voltar à escola – anunciou –, isso foi tudo o que restou em minha
vida, agora que minha amiga foi impiedosamente afastada de mim. Na escola
poderei olhar para ela e divagar sobre os dias passados.
— É melhor que você divague sobre suas lições e cálculos – disse
Marilla, escondendo a satisfação pelo rumo que a história havia tomado – e, se
está voltando à escola, espero não ouvir mais sobre lousas quebradas na
cabeça de ninguém e tais tipos de comportamento. Porte-se bem e faça apenas
o que o professor lhe pedir.
— Tentarei ser uma aluna modelo – assentiu Anne, tristemente – e não
haverá muita diversão, eu presumo. Mr. Phillips disse que Minnie Andrews era
uma aluna modelo, e não havia nenhuma fagulha de imaginação e vida nela.
Ela é entediante e lerda, e nunca parece estar contente. Mas me sinto tão
deprimida que talvez seja fácil agora. Hoje vou caminhar pela estrada
principal. Não poderia suportar passar sozinha pela Rota das Bétulas. Eu
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Capítulo XVIII
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estudou. Esse assunto está nublando toda minha vida. Sou uma completa
estúpida, Matthew!
— Bem, ora, não sei – disse Matthew, conciliador –, creio que você seja
boa em tudo. Mr. Phillips me disse na semana passada, no armazém do Blair,
em Carmody, que você é a menina mais inteligente da escola e que está
fazendo rápidos progressos. ‘Rápidos progressos’ foi exatamente a expressão
que ele usou. Há muitos que falam mal de Terry Phillips, e falam que ele não é
muito bom professor, mas creio que ele seja muito bom.
Matthew pensava que qualquer um que elogiasse Anne era “muito
bom”.
— Estou certa de que me sairia melhor em Geometria se ele somente
não mudasse as letras! – reclamou Anne – Aprendo os teoremas todos de
memória, e então ele escreve no quadro-negro com letras diferentes das que
estão nos livros e eu me confundo. Não creio que um professor deva utilizar
métodos tão maus, não acha? Estamos estudando Agricultura agora, e
finalmente descobri o que fez as estradas serem avermelhadas. É um grande
conforto. Pergunto-me se Marilla e Mrs. Lynde estão se divertindo. Mrs. Lynde
disse que o Canadá está indo para o brejo, a julgar pelo jeito que conduzem as
coisas em Ottawa, e que isso é uma terrível advertência para os eleitores. Ela
diz que se as mulheres pudessem votar veríamos rapidamente uma
abençoada mudança. Em quem você vota, Matthew?
— Nos Conservadores – disse Matthew, prontamente. Votar no partido
Conservador era parte da religião de Matthew.
— Então eu também sou Conservadora! – exclamou, decidida – Estou
contente porque Gil – porque alguns dos meninos da escola são Liberais.
Acredito que Mr. Phillips é Liberal também, pois o pai de Prissy Andrews é, e
Ruby Gillis diz que quando um homem está cortejando deve sempre concordar
com a mãe da moça na religião e com o pai na política. Isso é verdade,
Matthew?
— Ora, eu não sei – disse ele.
— Você já cortejou alguém, Matthew?
— Bem, ora, não, não sei se já fiz isso – disse Matthew, que certamente
nunca havia pensado em tal coisa em toda a sua vida.
Anne refletiu, com o queixo apoiado nas mãos.
— Deve ser algo interessante, não deve Matthew? Ruby Gillis diz que,
quando crescer, ela terá muitos pretendentes, todos loucos por ela; mas eu
penso que isso seria algo demasiadamente emocionante. Eu preferiria ter
somente um, com bom juízo. Mas Ruby Gillis sabe bastante sobre este
assunto porque tem muitas irmãs mais velhas, e Mrs. Lynde diz que as
meninas Gillis são muito assanhadas. Mr. Phillips vai quase todas as noites
para ver Prissy Andrews. Ele fala que é para ajudá-la com os estudos, mas
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Anne foi para a cama conforme havia dito, e dormiu tão longa e
profundamente que, quando despertou e desceu para a cozinha, a rosada tarde
de inverno já havia entrado. Marilla, que neste ínterim voltara para casa,
estava ali sentada tricotando.
— Oh, conseguiu ver o Primeiro Ministro? – Anne perguntou de uma
vez – Como ele era?
— Bem, ele certamente não foi escolhido para o posto de Primeiro
Ministro por sua aparência – disse Marilla – Com um nariz como aquele! Mas
ele sabe falar. Senti-me orgulhosa por ser Conservadora. Rachel Lynde, sendo
uma Liberal, claro que não gostou dele. Seu jantar está no forno, Anne. E pode
se servir de compota de ameixa que está na despensa. Creio que está com
fome. Matthew me contou tudo sobre a noite passada. Devo dizer que foi muita
sorte você saber o que fazer. Nem eu mesma saberia, pois nunca vi um caso de
difteria. Calma agora, não fale nada até que coma seu jantar. Pelo seu jeito sei
que tem muita coisa para contar, mas pode esperar.
Marilla tinha algo a contar para Anne, mas não falou nada naquele
instante, pois sabia que a subsequente agitação da menina haveria de arrancá-
la da esfera de assuntos tão materiais tais como apetite e jantar. Quando Anne
tinha terminado seu doce de ameixa em calda, Marilla começou a lhe contar,
dizendo o seguinte:
— Mrs. Barry esteve aqui esta tarde, Anne. Ela queria vê-la, mas eu não
quis acordá-la. Ela disse que você salvou a vida de Minnie May, e que sente
muito por ter agido como agiu naquele assunto do vinho de groselha. Disse
também que agora sabe que você não pretendia embriagar Diana, e espera que
você possa perdoá-la e ser uma boa amiga para Diana novamente. Se quiser,
pode ir esta noite até sua casa, pois Diana não pode sair por culpa de um
resfriado que pegou na noite passada. Agora, Anne, pelo amor de Deus, não
fique saltando no ar desta maneira!
A advertência pareceu desnecessária, tão exaltada e aérea era a
expressão e a atitude de Anne enquanto saltava sobre os pés, com o semblante
iluminado pelas chamas do espírito.
— Oh, Marilla, posso ir agora – antes de lavar os pratos? Eu os lavarei
quando voltar, mas não posso me amarrar a uma atividade tão pouco
romântica nesta hora tão emocionante!
— Sim, sim, corra – disse Marilla, com indulgência – Anne Shirley! Está
louca? Volte neste instante e ponha seu gorro! É como se eu falasse para o
vento! Ela está indo sem um gorro ou xale. Olhe para ela correndo pelo pomar
com os cabelos voando. Será um milagre se não achar a morte em uma gripe.
Anne voltou para casa dançando na luz púrpura do crepúsculo de
inverno cruzando os lugares cobertos de neve. Longe, ao sudoeste, sobre os
espaços brancos brilhantes e as silhuetas dos pinheiros nos vales estreitos,
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tivemos que jogar aquela fora. Mas fazer tudo isso foi uma diversão
esplêndida. Então, quando chegou a hora de vir para casa, Mrs. Barry me pediu
que voltasse quantas vezes pudesse, e Diana ficou em pé na janela, atirando
beijos durante todo o caminho pela Travessa dos Amantes. Asseguro-lhe,
Marilla, que tenho muita vontade de orar hoje, e que vou elaborar uma prece
especial em honra a tal ocasião.
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Capítulo XIX
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resvaladiça escadaria, escura sem nem um raio de luz”, Anne tremeu com
exuberante simpatia quando o coro cantou ‘Muito Acima das Gentis
Margaridas’, Anne olhou fixamente para o teto, como se houvessem mesmo
afrescos com anjos; quando Sam Sloane procedeu a explicar e ilustrar ‘Como
Sockery Preparou uma Galinha’,[23] Anne riu tanto que as pessoas sentadas ao
seu lado riram também, mais por simpatia a ela do que por divertimento,
pois a seleção era meio antiga mesmo em Avonlea; e quando Mr. Phillips
recitou a oração de Marco Antônio sobre o cadáver de César na entonação
mais inspiradora – olhando para Prissy Andrews ao final de cada sentença –,
Anne sentiu que poderia se amotinar se tão somente um cidadão de Roma
liderasse o caminho.
Somente um número do programa falhou em interessá-la. Quando
Gilbert Blythe recitou ‘Bingen do Reno’,[24] Anne pegou um livro da biblioteca
de Rhoda Murray e leu até que o menino tivesse terminado, e então se
sentou, rígida e imóvel, enquanto Diana aplaudiu até que suas mãos
ardessem.
Eram onze horas quando regressaram a casa, saciadas pela diversão,
mas ainda lhes restava o doce prazer de falar sobre o acontecido. Todos
pareciam dormir e a residência estava escura e silenciosa. Anne e Diana
caminharam na ponta dos pés até a sala de estar, um aposento longo e
estreito para o qual o quarto de hóspedes se abria. Estava agradavelmente
quente e apenas iluminada pelas brasas do fogo da lareira.
— Vamos trocar de roupa aqui mesmo. Está tão bom e aquecido –
disse Diana.
— Não está sendo uma noite maravilhosa? Seria esplêndido subir ao
palco e declamar uma poesia. Acha que um dia irão nos chamar para recitar,
Diana? – suspirou Anne, entusiasmada.
— Sim, é claro, algum dia. Sempre escolhem os alunos maiores para
participar. Gilbert Blythe faz isso frequentemente e ele é somente dois anos
mais velho do que nós. Oh, Anne, como pôde fingir que não o escutava?
Quando ele chegou à frase “Outra há, não uma irmã”, olhou diretamente para
você.
— Diana – disse Anne, com dignidade –, você é minha amiga do peito,
mas não posso permitir que nem mesmo você fale comigo sobre essa pessoa.
Está pronta para ir deitar? Façamos uma corrida para ver quem chegará
primeiro à cama.
A sugestão encantou Diana. As duas pequenas figuras vestidas de
branco voaram pelo longo aposento até a porta do quarto de hóspedes, e se
lançaram sobre a cama ao mesmo tempo. Então algo se moveu debaixo delas,
um som entrecortado e um grito foram ouvidos – e alguém disse, em tom
abafado:
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— Deus misericordioso!
Anne e Diana nunca saberiam explicar como saltaram da cama e
saíram do quarto. Elas somente perceberam que, depois de uma frenética
corrida, viram-se subindo as escadas na ponta dos pés e sentindo calafrios.
— Oh, quem era – o que era aquilo? – sussurrou Anne, com os dentes
batendo de frio e medo.
— Era a tia Josephine – disse Diana, engasgando com a risada – oh,
Anne, era a tia Josephine, mas não sei como ela chegou até ali. Oh, e sei que
ela ficará furiosa. Isto é terrível, terrível de verdade; mas você já viu algo
mais divertido, Anne?
— Quem é a tia Josephine?
— Ela é a tia do meu pai, que mora em Charlottetown. É
demasiadamente velha – deve ter uns setenta anos – e não creio que jamais
tenha sido uma menina. Nós esperávamos sua visita, mas não tão cedo. Ela é
muito cerimoniosa e refinada, e vai protestar sobre isso até cansar, sei que
vai. Bem, teremos que dormir com Minnie May – e você não imagina o quanto
ela chuta.
Miss Josephine Barry não apareceu para o café na manhã seguinte.
Mrs. Barry sorriu gentilmente para as duas meninas.
— Tiveram uma boa noite? Tentei ficar acordada até que chegassem
em casa, pois queria avisá-las que a tia Josephine havia chegado e que vocês
deveriam ir dormir lá em cima, mas estava tão cansada que caí no sono.
Espero que não tenha perturbado sua tia, Diana.
Diana manteve reservado silêncio, mas ela e Anne trocaram sorrisos
furtivos de culpada diversão de um lado ao outro da mesa. Anne voltou
correndo para Green Gables depois do café da manhã e permaneceu em
agradável ignorância sobre o alvoroço que se havia armado na casa dos Barry
até o fim da tarde, quando foi à casa de Mrs. Lynde com uma mensagem de
Marilla.
— Então você e Diana quase mataram de susto a pobre velhota Miss
Barry na noite passada? – Mrs. Lynde perguntou severamente, mas com uma
piscadela de olho – Mrs. Barry esteve aqui há poucos minutos em seu
caminho para Carmody. Está realmente muito preocupada. A velha Miss
Barry estava em péssimo humor quando acordou nesta manhã, e o mau
humor de Josephine Barry não é brincadeira, posso assegurar. Ela não
dirigirá a palavra à Diana.
— Não foi culpa de Diana – disse Anne, com remorso –, foi minha. Eu
sugeri a corrida para ver quem chegava primeiro à cama.
— Eu sabia! Sabia que essa ideia vinha da sua cabeça! – exclamou Mrs.
Lynde, com a exaltação própria de quem sempre acerta tudo – Bem, tudo isso
causou um grande número de problemas, isto é que é. A velha Miss Barry
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veio para passar um mês, mas declara que não ficará nem um dia a mais e
está indo embora diretamente para a cidade amanhã, mesmo que seja
domingo. Teria ido hoje se tivesse alguém para levá-la. Ela havia prometido
pagar um trimestre de aulas de música para Diana, mas agora está
determinada a não fazer mais nada por uma menina tão levada. Oh, suponho
que tenham passado maus bocados esta manhã por lá. Os Barry devem estar
sentindo que as relações foram cortadas. A velha Miss Barry é rica e eles
gostariam de se manter em bons termos com ela. Claro, Mrs. Barry não me
disse isso com essas palavras, mas compreendo muito bem a natureza
humana, isto é que é.
— Sou uma menina muito desgraçada. Estou sempre causando
problemas e envolvendo meus melhores amigos – pessoas pelas quais eu
daria a vida – neles também. Pode me dizer por que isso acontece, Mrs.
Lynde?
— Porque você é uma criança muito insensata e impulsiva, isto é que
é. Nunca para e pensa; o que quer que venha à sua cabeça para falar ou fazer,
você diz e faz sem um instante de reflexão!
Anne protestou:
— Oh, mas isso é o melhor de tudo! Uma coisa tão empolgante surge
em sua mente, e você deve dizê-la. Se parar para pensar sobre isso, irá
estragar tudo. Nunca sentiu isso, Mrs. Lynde?
Não, Mrs. Lynde nunca tinha sentido. Ela meneou a cabeça
prudentemente.
— Você deve aprender a refletir um pouco, Anne, isto é que é. O
provérbio pelo qual deve reger a sua vida é esse: ‘Olhe antes de saltar’ –
especialmente nas camas dos quartos de hóspedes.
Mrs. Lynde riu confortavelmente de sua piada leve, mas Anne
permaneceu pensativa. Não viu nenhuma graça na situação, que aos seus
olhos parecia muito séria. Quando saiu da casa de Mrs. Lynde, tomou seu
rumo através dos velhos caminhos para Orchard Slope. Diana a encontrou na
porta da cozinha.
— Sua tia Josephine está muito irritada com o ocorrido, não está? –
sussurrou Anne.
— Sim – respondeu Diana, sufocando uma risadinha, com um olhar
apreensivo por cima do ombro para a porta fechada da sala –, ela tremia de
raiva, Anne. E oh, como ela brigou. Disse que eu era a menina mais mal-
educada que conhecia e que meus pais deviam sentir vergonha do modo
como me criaram. Ela disse que não ficará aqui e eu certamente não me
importo. Mas papai e mamãe se importam.
— Por que você não disse que foi tudo minha culpa?
— Não sou dedo-duro, sou? E nem sou mentirosa, Anne Shirley; e, de
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qualquer maneira, sou tão culpada quanto você – respondeu Diana, com
desdém.
— Bem, eu mesma direi a verdade a ela – replicou Anne, resoluta.
Diana estatelou os olhos.
— Anne Shirley, não faça isso! Ora – ela vai comê-la viva!
— Não me apavore mais do que já estou apavorada! Eu preferia entrar
na jaula de um leão. Mas tenho que fazer isso, Diana. Foi tudo minha culpa, e
eu preciso confessar. Felizmente, tenho prática em fazer confissões.
— Bem, ela está no quarto. Pode ir, se quiser. Eu não me atreveria e
não acredito que fará algum bem.
Com este encorajamento, Anne partiu para barbear o leão em sua toca –
isto é, encaminhou-se resolutamente à porta da sala de estar, e bateu
suavemente. Seguiu-se um cortante “Pode entrar”.
Miss Josephine Barry, magra, formal e rígida, tricotava rispidamente
junto ao fogo. Sua cólera não fora completamente abrandada, e os olhos
faiscavam por detrás dos óculos de armação dourada. Revirou-se em sua
cadeira, esperando ver Diana, e descobriu uma menina pálida, cujos grandes
olhos refletiam uma mescla de coragem desesperada e terror contraído.
— Quem é você? – indagou Miss Josephine Barry, sem cerimônia.
— Sou Anne, de Green Gables – disse a pequena e trêmula visitante,
juntando as mãos em seu gesto característico – e venho para fazer uma
confissão, se a senhorita me permite.
— Confessar o quê?
— Que foi minha culpa saltar sobre a senhorita na noite passada. Eu
tive a ideia. Diana nunca pensaria em tal coisa, estou certa que não. Diana é
uma menina muito educada, Miss Barry. Então a senhorita precisa ver o
quão injusto é culpá-la.
— Ah sim? De qualquer maneira, Diana também teve sua
responsabilidade no salto. Que modo de agir em uma casa respeitável!
— Mas nós somente fizemos isso por diversão. Penso que a senhorita
deva nos perdoar, Miss Barry, agora que nos desculpamos. E de qualquer
forma, por favor, perdoe Diana e permita que ela tenha as lições de música,
Miss Barry; eu sei muito bem o que significa pôr o coração em algo e não
consegui-lo. Se a senhorita deve ficar irritada com alguém, que seja comigo.
Estou acostumada a ter as pessoas irritadas comigo desde que eu era
pequena, e posso suportar isso muito melhor do que Diana.
Muito das faíscas haviam sumido dos olhos da velha dama nesse
momento, e sido substituídas por um brilho de divertido interesse. Mas ela
ainda disse, gravemente:
— Creio que não haja qualquer desculpa apenas em dizer que tudo foi
por diversão. As meninas nunca se entregavam a este tipo de brincadeiras
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quando eu era jovem. Não sabe o que é ser acordada de um sono profundo
por duas garotas grandes saltando em cima de você, depois de uma longa e
árdua viagem.
— Eu não sei o que é, mas posso imaginar – disse Anne, ansiosamente
– e tenho certeza de que foi algo muito perturbador. Mas veja, existe o nosso
lado da história também. A senhorita tem alguma imaginação, Miss Barry? Se
tiver, somente se coloque em nosso lugar. Nós não sabíamos que havia
alguém naquela cama, e a senhorita quase nos matou de susto. Sentimos algo
espantoso. E tampouco tivemos a oportunidade de dormir no quarto de
hóspedes, apesar de que nos havia sido prometido. Suponho que a senhorita
está acostumada a dormir em quartos maravilhosos. Mas somente imagine o
que teria sentido se fosse uma pequena menina órfã, que nunca teve uma
honra dessas.
Nesse momento, toda a faísca havia ido embora. Miss Barry estava na
verdade rindo com vontade – som este que fez com que Diana, esperando em
silenciosa ansiedade na cozinha, suspirasse aliviada.
— Temo que a minha imaginação esteja um pouco enferrujada. Faz
tanto tempo que não a uso! Ouso dizer que o seu clamor é tão apelativo
quanto o meu. Tudo depende da maneira que se vê. Sente-se aqui e conte-me
tudo sobre você.
— Sinto muito, senhorita, mas não posso. Gostaria de contar, pois a
senhorita me parece ser uma dama muito interessante, e até poderia ser uma
alma gêmea, apesar de não ter muito o aspecto de ser. Mas é meu dever
voltar para casa com Miss Marilla Cuthbert. Ela é uma dama muito gentil que
me adotou para me criar adequadamente. Ela tem feito seu melhor, mas é
uma tarefa muito árdua. Não deve culpá-la por eu ter pulado na sua cama.
Mas, antes de eu ir, a senhorita terá de me dizer se irá perdoar Diana e
permanecer em Avonlea por todo o tempo que planejava ficar.
— Eu acho que vou ficar, se você prometer vir e conversar comigo de
vez em quando – respondeu Miss Barry.
Naquela noite, Miss Barry deu a Diana um bracelete de prata e disse
aos adultos da casa que havia desfeito sua mala.
— Decidi ficar simplesmente para conhecer melhor aquela menina-
Anne. Ela me diverte, e nessa época da minha vida é uma raridade achar uma
pessoa que me divirta – falou, francamente.
O único comentário que Marilla dirigiu a Matthew quando soube da
história foi “Bem que eu lhe avisei”.
Quando Miss Barry partiu, disse:
— Lembre-se, menina-Anne, quando você for à cidade para me visitar,
vou colocá-la para dormir no mais vasto de todos os quarto de hóspedes.
— Miss Barry é uma alma gêmea, depois de tudo. Não parece ser
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quando se olha para ela, mas é. Não se pode ver em seguida, como no caso de
Matthew, mas com o tempo se consegue perceber. Almas gêmeas não são tão
escassas quanto eu pensei que fossem. E é esplêndido descobrir que existem
tantas delas no mundo – confidenciou Anne a Marilla.
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Capítulo XX
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ouvi-la falar dessa maneira! Tenho tido minhas dúvidas sobre sua
imaginação, e se esse é o resultado, não vou tolerar tais coisas. Você irá até a
casa dos Barry, e irá cruzar pelo bosque dos pinheiros, para servir de lição e
aviso. E nunca mais quero escutar nenhuma palavra sobre florestas
assombradas!
Anne podia implorar e chorar o quanto quisesse – e isso ela fez, pois
seu terror era real. Sua imaginação havia voado, convertendo o bosque em
um pavor mortal depois do anoitecer. Mas Marilla estava irredutível.
Acompanhou a encolhida descobridora de fantasmas até o riacho e ordenou
que ela cruzasse a ponte até os sombrios refúgios de damas gemendo e
homens sem cabeça.
— Oh, Marilla, como você pode ser tão cruel? Como você se sentiria se
uma criatura branca se apoderasse de mim e me levasse? – soluçou Anne.
— Prefiro correr o risco. Sabe que sempre cumpro o que digo. Vou
curá-la de imaginar fantasmas nos lugares. Agora vá – ordenou a insensível
Marilla.
Anne marchou. Quer dizer, cruzou a ponte aos tropeços e entrou
tremendo no horrível trajeto escuro à sua frente. Anne nunca se esqueceu
daquela caminhada. Arrependeu-se amargamente de ter dado vazão à sua
imaginação. Os duendes de sua fantasia bailavam em cada sombra à sua
volta, estendendo as mãos frias e esqueléticas para agarrar a aterrorizada
menina que os havia chamado à existência. Uma casca branca de bétula que o
vento levantou de um buraco no solo marrom do bosque fez seu coração
parar. O longo lamento de dois ramos que se roçavam trouxeram gotas de
suor em sua testa. O ruído dos morcegos na escuridão sobre ela eram asas de
criaturas sobrenaturais. Quando chegou ao campo de Mr. Bell, correu como
se um batalhão de coisas brancas a perseguissem, e chegou tão agitada e sem
fôlego à porta da cozinha dos Barry que mal pôde desengasgar e pedir o
molde do avental. Diana não estava, portanto não teve razão para ficar mais
tempo. A assustadora jornada de retorno teve de ser encarada. Anne voltou
para casa com os olhos fechados, preferindo correr o risco de despedaçar o
cérebro entre os ramos das árvores a ver coisas brancas. Quando ela
finalmente chegou, aos tropeços, à ponte de troncos, soltou um longo e
estremecido suspiro de alívio.
— Bem, e então, foi pega por alguma coisa? – perguntou Marilla, sem
simpatia.
— Oh, Mar–Marilla – balbuciou Anne, batendo os dentes –, fica-ca-ca-
rei cont-tente com lu-lu-gares co-co-co-muns depois disso.
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Capítulo XXI
— Oh, Deus, como diz Mrs. Lynde, “tudo são encontros e despedidas
neste mundo” – queixou-se Anne, colocando sua lousa e livros sobre a mesa
da cozinha no último dia de junho, e secando os olhos vermelhos com um
lenço úmido – Não foi sorte, Marilla, eu ter levado um lenço a mais para a
escola hoje? Tive o pressentimento de que iria precisar.
— Não achava que você gostasse tanto do Mr. Phillips, a ponto de
precisar de dois lenços para secar as lágrimas só por ele estar indo embora –
disse Marilla.
— Não creio que eu tenha chorado por realmente gostar dele – refletiu
Anne –, chorei somente porque todos os outros choraram. Ruby Gillis
começou. Ela sempre declarou que odiava Mr. Phillips, mas assim que ele
começou a proferir o discurso de despedida ela irrompeu em lágrimas. Nesse
momento todas as meninas começaram a chorar, uma depois da outra. Eu
tentei não chorar, Marilla. Tentei me lembrar do dia em que Mr. Phillips me
obrigou a sentar junto com Gil, isto é, com um menino; e o dia em que ele
escreveu meu nome no quadro negro sem o ‘e’ no final; e como ele disse que
eu era relapsa em geometria e riu da minha ortografia; e todas as vezes que
ele tinha sido vil e sarcástico; mas por alguma razão não consegui, Marilla,
tive que chorar também. Jane Andrews passou um mês falando no quão
alegre ficaria quando Mr. Phillips se fosse, e declarou que não derramaria
uma lágrima. Bem, ela foi a pior de todas e teve que pegar um lenço
emprestado de seu irmão – porque obviamente, ele não havia usado o dele,
visto que os meninos não choram. Ela não tinha trazido o seu próprio,
certamente não esperando ter de usá-lo. Oh, Marilla, foi muito doloroso. Mr.
Phillips começou seu discurso de despedida de uma maneira muito bonita, ‘é
chegado o tempo da nossa separação’. Foi muito comovente. E ele também
tinha lágrimas nos olhos, Marilla. Oh, eu me sinto terrivelmente arrependida
e cheia de remorso por todas as vezes que conversei em sala de aula e fiz
desenhos dele na minha lousa, e ri dele e de Prissy. Posso assegurar que
desejava ter sido uma aluna modelo como Minnie Andrews. Ela não tinha
nada do que se arrepender. As meninas choraram por todo o caminho até
suas casas. Carrie Sloane continuou repetindo ‘é chegado o tempo de nossa
separação’, e isso nos fazia começar tudo de novo, todas as vezes que
corríamos o risco de nos animar. Senti-me terrivelmente triste, Marilla. Mas
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uma pessoa não deve se sentir nas profundezas do desespero com dois
meses de férias à sua frente; deve, Marilla? Além disso, encontramos o novo
ministro e sua esposa, vindo da estação. Apesar de toda a tristeza que sentia
pela partida de Mr. Phillips, eu não poderia evitar me interessar pelo novo
ministro, poderia? Sua senhora é muito bonita. Não regiamente bonita, é
claro – suponho que seria um péssimo exemplo a esposa do ministro ser
pomposa. Mrs. Lynde diz que conheceu um ministro em Newbridge cuja
mulher não deu bom exemplo, pois sempre se vestia com muita
extravagância. A esposa do novo ministro usava um traje em musselina azul
com adoráveis mangas bufantes, e o chapéu adornado com rosas. Jane
Andrews disse que mangas bufantes eram muito mundanas para uma
mulher de pastor, mas eu não faria um comentário tão desagradável, Marilla,
pois sei muito bem o que é suspirar por mangas bufantes. Ademais, faz
pouco tempo que ela se casou, então podemos fazer algumas concessões,
não é? Eles se hospedarão na casa de Mrs. Lynde até que a residência
paroquial esteja pronta.
Se alguma outra razão moveu Marilla a visitar Mrs. Lynde naquela
noite, além de devolver a moldura de acolchoado que havia tomado
emprestado no último inverno, foi sem dúvida um cordial ponto fraco
partilhado pela maioria dos vizinhos. Mrs. Lynde recebeu de volta, naquela
noite, uma infinidade de coisas que havia emprestado – muitas das quais
nem imaginava ver novamente. Um novo ministro, e mais do que isso, um
ministro casado, era um legítimo objeto de curiosidade em um pequeno e
calmo povoado do interior, onde o sensacional era escasso e acontecia
somente em grandes espaços de tempo.
O velho Mr. Bentley, o ministro que Anne considerava que sofria de
falta de imaginação, havia sido pastor em Avonlea por dezoito anos. Era
viúvo quando chegou, e viúvo permaneceu, a despeito de fofoqueiras
regularmente casarem-no ora com essa, ora com aquela, ou com aquela
outra, durante cada ano de seu ministério. Em fevereiro passado havia
renunciado ao cargo e partiu em meio ao pesar de seu rebanho, cuja afeição
nasceu pelo longo contato com o velho ministro, apesar dele ser um orador
com algumas deficiências. Desde então a igreja de Avonlea havia desfrutado
de uma variada dissipação religiosa, ao ouvir os muitos candidatos e
“substitutos” que pregavam para fazer um teste, domingo atrás de domingo.
Estes se erguiam e eram derrubados sob o julgamento dos pais e mães de
Israel; mas uma certa menina ruiva, que ficava pacificamente sentada no
canto do antigo banco dos Cuthbert, também tinha suas opiniões a respeito
deles e as discutia amplamente com Matthew, pois Marilla tinha por
princípio não criticar os ministros de forma nenhuma.
— Creio que Mr. Smith não teria servido, Matthew – foi o resumo da
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opinião de Anne – Mrs. Lynde disse que o sermão dele foi pobre, mas eu acho
que seu pior defeito era o mesmo de Mr. Bentley: não tinha imaginação. E Mr.
Terry tinha muita, dava vazão aos seus pensamentos exatamente como eu fiz
no assunto da Floresta Assombrada. E Mrs. Lynde comentou que a teologia
dele não era profunda o bastante. Mr. Gresham era um homem muito bom e
muito religioso, mas contava uma série de histórias engraçadas e fazia as
pessoas rirem na igreja; ele era pouco digno, e um ministro deve ter certa
dignidade, não deve, Matthew? Pensei que Mr. Marshall era definitivamente
encantador, mas Mrs. Lynde me contou que ele não era casado, e nem estava
comprometido. Ela havia realizado uma investigação especial sobre ele, e
concluiu que não seria bom ter um jovem ministro solteiro em Avonlea,
porque ele poderia se casar com uma das moças da congregação e criar a
maior confusão. Mrs. Lynde é uma mulher que enxerga longe, não é? Estou
muito contente por terem chamado Mr. Allan. Gostei dele porque seu sermão
foi interessante e rezou como se sentisse a oração, e não só como se estivesse
rezando por ter o hábito de fazê-lo. Mrs. Lynde falou que ele não é perfeito,
mas falou também que não podemos esperar um ministro perfeito pela
bagatela de setecentos e cinquenta dólares ao ano; e, ademais, sua teologia é
segura, pois ela já o interrogou cuidadosamente em todos os pontos de
doutrina. Ela conhece a família de sua esposa e diz que são muito
respeitáveis, e que todas as mulheres muito boas donas de casa. Mrs. Lynde
disse que a profunda doutrina no homem, e o bom cuidado da casa, na
mulher, formam a combinação ideal para a família de um ministro.
O novo ministro e sua esposa eram um jovem casal, de feições
agradáveis, ainda em lua de mel, plenos de todo o bom e bonito entusiasmo
pelo trabalho de sua vida. Avonlea abriu seu coração para eles desde o início.
Velhos e jovens gostaram do rapaz franco e alegre que possuía altos ideais, e
da brilhante e gentil dama que assumira a direção da casa paroquial. Anne
rapidamente se encantou com Mrs. Allan e a adorou de todo coração.
Descobriu outra alma gêmea.
— Mrs. Allan é perfeitamente encantadora! – anunciou, num domingo
à tarde – Ela está tomando conta de nossa classe e é uma excelente
professora. Eu disse desde o começo que não achava justo o professor fazer
todas as perguntas, e você sabe, Marilla, que sempre pensei isso. Ela disse
que poderíamos fazer qualquer pergunta e eu fiz diversas. Sou boa em fazer
perguntas, Marilla.
— Acredito em você – foi o comentário enfático de Marilla.
— Ninguém mais fez perguntas, exceto Ruby Gillis, que questionou se
haveria algum piquenique da Escola Dominical neste verão. Não creio que
esta tenha sido uma pergunta apropriada, pois não havia nenhuma conexão
com a lição – que era sobre Daniel na cova dos leões –, mas Mrs. Allan
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língua fria, dois tipos de geleia, vermelha e amarela, chantilly, torta de limão,
torta de cereja, três tipos de biscoitos, bolo de frutas e a famosa compota de
ameixa amarela de Marilla, que ela sempre faz em especial para os
ministros. Haverá também pão-de-ló e bolo em camadas, e biscoitos, como
eu disse antes; pão novo e pão velho, caso o ministro seja dispéptico e não
possa comer pão assado recentemente. Mrs. Lynde disse que a maioria dos
ministros são dispépticos, mas não creio que Mr. Alan seja ministro há muito
tempo para que este fato tenha lhe causado uma péssima consequência
como essa. Tenho calafrios só de pensar no meu bolo. E se ele não ficar bom?
Sonhei na noite passada que era perseguida por um duende assustador, com
a cabeça em formato de bolo.
— Tudo sairá bem, decerto. Asseguro que o bolo feito por você, que
comemos no Descanso Silvestre há duas semanas atrás, estava
perfeitamente elegante – garantiu Diana, que era o tipo de amiga que
sempre tinha uma palavra de conforto.
— Sim, mas os bolos têm o terrível hábito de saírem errados
especialmente quando você deseja que eles saiam bem – suspirou Anne,
fazendo boiar um ramo particularmente encharcado de bálsamo –
Entretanto, creio que terei de confiar na Providência e ter o cuidado de
colocar farinha. Oh olhe, Diana, que lindo arco-íris! Você acha que a dríade
virá depois que nós sairmos daqui e o tomará para usar como echarpe?
— Você sabe que dríades não existem – falou Diana. Sua mãe havia
ficado furiosa com a descoberta da história da Floresta Assombrada. Como
resultado, a menina se absteve de futuros excessos imaginativos, e não
pensava ser prudente cultivar seu espírito de credulidade nem mesmo em
uma inofensiva dríade.
— Mas é tão fácil imaginar que elas existem! Todas as noites, antes de
ir para a cama, olho pela janela e fico pensando se a dríade realmente está
aqui, arrumando seus cachos, tendo a nascente como espelho. Algumas
vezes, procuro por suas pegadas no orvalho pela manhã. Oh, Diana, não
abandone sua fé na dríade!
A manhã de quarta-feira chegou. Anne se levantou ao amanhecer, pois
estava muito empolgada para dormir por mais tempo. Havia pegado um
forte resfriado por ter caminhado pelo riacho na noite anterior. Mas nada,
exceto uma pneumonia, diminuiria seu interesse pela culinária naquela
manhã. Depois do desjejum, começou a preparar o bolo. Quando finalmente
fechou a porta do forno, suspirou profundamente.
— Estou certa de que não esqueci nada desta vez, Marilla. Acha que
vai crescer? Suponha que o fermento talvez não seja bom. Usei aquele da
lata nova. E Mrs. Lynde diz que hoje em dia nunca se pode ter certeza de
estar comprando um bom fermento, pois tudo está adulterado. Ela diz
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também que o governo deveria levar a sério esse assunto, mas que nunca
veremos o dia que um governo Tory[27] fará isso. Marilla, e se o bolo não
crescer?
— Teremos o bastante de quitutes para comer – foi o modo
desapaixonado de Marilla tratar do assunto.
Entretanto, o bolo cresceu e saiu do forno leve e suave como uma
espuma dourada. Anne estava corada de tanta satisfação e fez a camada de
geleia vermelha e, em sua imaginação, viu Mrs. Allan comendo e
possivelmente pedindo outro pedaço do bolo!
— Certamente você irá utilizar o melhor jogo de chá, Marilla. Posso
decorar a mesa com samambaias e rosas silvestres?
— Acho tudo isso uma tolice! Em minha opinião, o mais importante é
a comida, e não esse disparate de decoração – bufou Marilla.
— Mrs. Barry decorou a mesa dela – disse Anne, que não estava
totalmente privada da inteligência da serpente – e o ministro fez um elogio
gracioso. Disse que era uma festa tanto para os olhos quanto para o paladar.
— Bem, faça como quiser – respondeu Marilla, que estava
determinada a não ser superada por Mrs. Barry nem por mais ninguém –,
mas preocupe-se em deixar espaço suficiente para os pratos e a comida.
Anne pôs-se a decorar de tal forma e com tal esmero que deixaria
Mrs. Barry bem para trás. Tendo uma abundância de rosas e samambaias e
um talento artístico próprio, decorou a mesa com tanta beleza que, quando
o ministro e sua esposa se sentaram, exclamaram em coro sobre sua
delicadeza.
— Isso é tudo coisa de Anne – disse Marilla, com austeridade; e a
menina sentiu que o sorriso aprovador de Mrs. Allan era felicidade demais
para este mundo.
Matthew estava lá, tendo sido induzido a participar do chá, só Deus e
Anne sabiam como. Ele entrou em tal estado de timidez e nervosismo que
Marilla teria desistido, em desespero; mas Anne o tomou pela mão de um
jeito tão exitoso, que estava agora sentado à mesa, em suas melhores roupas
e colarinho branco, conversando bastante interessado com o ministro. Não
disse uma palavra a Mrs. Allan, mas isso era pedir muito de sua pessoa.
Tudo estava indo muito bem, como o badalar dos sinos de um
casamento, até que chegou a hora de servir o bolo de Anne. Tendo já se
servido de uma boa quantidade dos outros tipos de guloseimas, Mrs. Allan
declinou o oferecimento. Mas Marilla, percebendo a face desapontada de
Anne, disse sorridente:
— A senhora deve provar um pedacinho deste bolo, Mrs. Allan. Anne
o preparou pensando na senhora.
— Nesse caso, vou experimentá-lo – sorriu Mrs. Allan, servindo-se de
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bolos. Você contará a verdade para Mrs. Allan, não contará, Marilla?
— Suponho que você mesma possa se levantar e contar a ela – disse
uma voz alegre.
Anne se levantou de um salto para encontrar Mrs. Allan em pé ao lado
de sua cama, observando-a com olhos sorridentes.
— Minha menina, não precisa chorar assim! – falou, genuinamente
preocupada com a fisionomia trágica de Anne – Ora, foi somente um erro
engraçado que qualquer um poderia ter cometido.
— Oh, não, um erro como este me deixa muito mal. E eu queria que o
bolo ficasse bom para a senhora, Mrs. Allan – disse Anne, desamparada.
— Eu sei, querida. E lhe asseguro que apreciei sua bondade e
solicitude do mesmo modo como se tivesse dado tudo certo. Agora, você não
deve mais chorar, mas vamos descer e você vai me mostrar seu canteiro de
flores. Miss Cuthbert me contou que você tem um cantinho todo seu. Quero
muito vê-lo, pois me interesso muito por flores.
Anne se deixou ser levada e confortada, refletindo que era mesmo
providencial que Mrs. Allan fosse uma alma gêmea. Nada mais foi dito sobre
o bolo de linimento, e quando os visitantes foram embora, Anne percebeu
que tinha desfrutado daquela tarde mais do que esperava, considerando o
terrível incidente. Apesar de tudo, suspirou profundamente.
— Marilla, não é maravilhoso pensar que amanhã é um novo dia,
ainda sem erros cometidos?
— Posso garantir que você irá cometer vários deles. Nunca vi
ninguém melhor do que você para isso, Anne – disse Marilla.
— Sim, sei muito bem disso – admitiu Anne, tristemente –, mas você
já percebeu algo encorajador sobre mim, Marilla? Nunca cometo o mesmo
erro duas vezes.
— Não sei se há muita vantagem, considerando que você está sempre
cometendo outros novos.
— Oh, não percebe, Marilla? Deve haver um limite de erros que uma
pessoa pode cometer, e quando chegar ao final, eles terão acabado. É um
pensamento muito reconfortante.
— Bem, é melhor que você vá jogar o bolo para os porcos. Não presta
para nenhum ser humano comer, nem mesmo Jerry Buote.
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Capítulo XXII
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chover no dia seguinte. O cicio das folhas de álamo em torno da casa deixou-a
preocupada, pois soava como pingos de chuva. O intenso e distante rugido do
Golfo, o qual tantas vezes escutara encantada, pois amava seu ritmo estranho,
sonoro e cativante, agora mais se assemelhava à profecia de tormenta e desastre
para a pequena donzela que tanto queria que o dia fosse belo. Anne pensou que
a manhã nunca chegaria.
Mas todas as coisas têm um fim, mesmo a noite anterior ao dia em
que se é convidada para tomar o chá na casa paroquial. O dia estava lindo, a
despeito das predições de Matthew, e o espírito de Anne foi às alturas.
— Oh Marilla, há algo em mim hoje que me faz simplesmente amar a
todos que vejo! – exclamou, enquanto lavava a louça do café da manhã – Não
sabe como me sinto bem! Não seria maravilhoso se essa sensação durasse?
Creio que eu poderia ser uma criança modelo se fosse convidada para tomar
o chá todos os dias. Mas oh, Marilla, é uma ocasião solene também. Sinto-me
tão ansiosa. E se eu não me comportar de maneira adequada? Você sabe que
eu nunca fui a um chá em uma casa paroquial antes, e não estou certa se
conheço todas as regras de etiqueta, apesar de estar estudando o que é
ensinado no Departamento de Etiqueta da Família desde que cheguei aqui.
Tenho tanto medo de fazer algo bobo, ou esquecer de fazer alguma coisa que
deveria fazer. Seria correto se servir de algo pela segunda vez, se você
quisesse muito?
— O problema com você, Anne, é que pensa demasiado em si mesma.
Deveria somente pensar em Mrs. Allan e no que seria melhor e mais
agradável para ela – disse Marilla, acertando pela primeira vez em sua vida
em um conciso e profundo conselho. Anne entendeu instantaneamente.
— Você está certa, Marilla. Tentarei não pensar em mim de forma
alguma.
Anne evidentemente concluiu sua visita sem nenhuma falta de
“etiqueta”, pois voltou para casa ao entardecer sob um glorioso céu salpicado
pelo rastro de nuvens rosa e açafrão, em um abençoado estado de ânimo; e,
alegremente, contou tudo sobre o chá, sentada na escadaria de pedra vermelha
na porta da cozinha, com sua cansada cabeça cacheada apoiada na coberta
xadrez sobre o colo de Marilla.
Um vento frio soprava sobre o campo de colheita a partir da borda
cheia de pinheiros das colinas ocidentais, assobiando por entre os álamos.
Acima do pomar brilhava uma estrela, e os vaga-lumes borboleteavam na
Travessa dos Amantes, cruzando entre as samambaias e os arbustos rasteiros.
Anne os observava enquanto falava e, de certo modo, sentiu que o vento, as
estrelas e os vaga-lumes estavam todos entrelaçados, juntos em um universo
indescritivelmente doce e encantador.
— Oh, Marilla, passei momentos fascinantes. Sinto que não tenho vivido
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em vão e sempre sentirei isso, mesmo que nunca mais seja convidada para o
chá na casa paroquial. Quando cheguei lá, Mrs. Allan me recebeu na porta. Ela
usava o mais adorável dos vestidos de organdi rosa-pálido, com dúzias de
babados e mangas até o cotovelo, se parecendo com um Serafim. Eu penso que
realmente gostaria de ser esposa de um ministro quando crescer, Marilla. Um
ministro não se importaria com meu cabelo ruivo, pois ele não estaria
pensando em coisas terrenas. Mas creio que eu deveria ser naturalmente
bondosa, e como nunca serei, então suponho que seja inútil pensar nisso.
Algumas pessoas são boas por natureza, sabe, e outras não são. Faço parte do
grupo das outras. Mrs. Lynde disse que estou cheia de pecado original. Não
importa o quanto eu tente ser boa, nunca poderei obter sucesso neste
empreendimento como aquelas pessoas que são naturalmente boas. É como a
Geometria. Mas você não acha que tentar bravamente deveria contar para
alguma coisa? Mrs. Allan é uma das pessoas de natureza boa. Eu a amo com
todo o meu coração! Você sabe que existem pessoas, como Matthew e Mrs.
Allan, que você pode amar de imediato, sem problemas. E existem outras,
como Mrs. Lynde, que tem que tentar bravamente até conseguir amá-las. Você
sabe que deve amá-las, pois elas são tão sábias e tão ativas na igreja. Mas deve
se lembrar disso todo o tempo, senão vai esquecer. Havia outra menina na casa
paroquial, da Escola Dominical de White Sands. Seu nome era Lauretta
Bradley, e ela era uma garotinha muito boazinha. Não exatamente uma alma
gêmea, sabe, mas ainda assim muito boazinha. Tivemos um chá bastante
elegante, e creio que respeitei bem todas as regras de etiqueta. Depois do chá,
Mrs. Allan tocou e cantou, e nos fez cantar também. Mrs. Allan disse que eu
tenho uma voz muito boa e que devo cantar no coral da Escola Dominical.
Consegue imaginar quão feliz eu fiquei por ao menos pensar nisso? Eu
desejava muitíssimo cantar no coral, como Diana, mas temia que fosse uma
honra a qual eu nunca devesse aspirar. Lauretta teve que ir para casa mais
cedo, porque terá um grande concerto no Hotel de White Sands esta noite e a
irmã dela irá recitar. Lauretta disse que os americanos realizam um concerto a
cada quinze dias em benefício do Hospital de Charlottetown, e sempre
convidam muitas pessoas de White Sands para participar. Ela disse que espera
que um dia a convidem também. Eu somente fitei-a, impressionada. Depois
que ela se foi, Mrs. Allan e eu tivemos uma conversa de coração-para-coração.
Contei tudo a ela – sobre Mrs. Thomas e os gêmeos, e sobre Katie Maurice e
Violetta, e minha chegada a Green Gables e meus problemas com Geometria. E
você acredita, Marilla, que ela não entendia Geometria também? Não imagina o
quanto isso me encorajou. Mrs. Lynde chegou à casa paroquial um pouco antes
de eu ir embora, e você não imagina, Marilla: os membros do conselho diretor
contrataram uma nova professora, e seu nome é Miss Muriel Stacy. Não é um
nome romântico? Mrs. Lynde disse que nunca tiveram uma professora em
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Avonlea antes, e ela acha que é uma inovação perigosa. Mas eu creio que será
esplêndido ter uma dama professora, e realmente não sei como vou viver essas
próximas duas semanas antes do início das aulas. Estou impaciente para
conhecê-la.
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Capítulo XXIII
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sem que uma ou mais de suas colegas de escola passassem para lhe trazer
flores e livros, e contar todos os acontecimentos do mundo da juventude de
Avonlea.
— Todos têm sido tão bons e gentis, Marilla – Anne suspirou, feliz, no
primeiro dia que pôde caminhar mancando – Não é agradável ficar deitada o
tempo todo, mas existe um lado bom nisso, Marilla. Você acaba descobrindo
quantos amigos tem. Ora, até mesmo o Superintendente Bell veio me ver, e
ele é realmente um bom homem. Não uma alma gêmea, é claro, mas ainda
assim gosto dele e estou terrivelmente arrependida de ter criticado suas
orações. Agora acredito que ele realmente sentia as preces, mas somente
adquiriu o hábito de rezar como se não sentisse. Poderia mudar este hábito
se pensasse um pouco no assunto. Dei a ele uma boa indireta. Contei o
quanto tentei tornar interessantes minhas orações particulares. E ele me
contou sobre o dia em que quebrou seu tornozelo quando era menino. Parece
estranho pensar no Superintendente Bell sendo um menino alguma vez.
Mesmo minha imaginação tem seus limites, pois eu não consigo imaginar
isto. Quando tento pensar em como ele era quando menino, imagino-o de
bigodes brancos e óculos, exatamente como o vejo na Escola Dominical,
somente menor. Agora, eis uma coisa fácil de imaginar: Mrs. Allan quando
criança. Ela esteve aqui quatorze vezes para me ver. Não é algo para se
orgulhar, Marilla? Sabendo que a esposa de um ministro tem tantas tarefas! E
ela é uma pessoa tão animada para fazer visitas. Nunca diz que é sua culpa, e
que espera que seja uma boa menina depois do ocorrido. Mrs. Lynde sempre
me diz isso quando vem aqui, e diz essas coisas de um jeito como se
desejasse que eu fosse uma boa menina, mas não realmente esperando que
eu me torne uma. Até mesmo Josie Pye veio me ver. Recebi-a o mais
educadamente que pude, pois acho que ela estava arrependida de ter me
desafiado a andar sobre o telhado. Se eu tivesse morrido, o peso do remorso
iria assombrá-la por toda a vida. Diana tem sido uma amiga leal. Ela vem
todos os dias para afofar meu único travesseiro. Mas, oh, vou ficar tão feliz
quando puder finalmente ir para a escola, pois tenho ouvido coisas
maravilhosas sobre a nova professora. As meninas todas concordam que ela é
perfeitamente doce. Diana disse que ela tem o cabelo claro, cacheado e
adorável, e olhos fascinantes. Veste-se com muita graça, e suas mangas
bufantes são as maiores vistas em Avonlea. Em algumas sextas-feiras ela
organiza recitais e todos têm que declamar uma poesia, ou tomar parte em
um diálogo. Oh, é tão glorioso pensar nisso! Josie Pye me contou que odeia
participar, mas isso se deve ao fato de ela não possuir nenhuma imaginação.
Diana, Ruby Gillis e Jane Andrews estão preparando um diálogo chamado
“Uma Visita Matinal” para a próxima sexta-feira. E nas sextas em que não há
recitais, Miss Stacy leva a todos para o bosque para um dia no campo, onde
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Capítulo XXIV
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uma escola como plateia diante de você, sem fôlego e suspensa nas suas
palavras. Sei que não serei capaz de lhe fazer gelar a espinha.
— Mrs. Lynde disse que o que fez a espinha dela gelar foi ver os
meninos escalando o topo daquelas árvores na colina de Mr. Bell, buscando
ninhos de corvo na sexta-feira passada! – exclamou Marilla – Admira-me
Miss Stacy encorajar tais atitudes!
— Mas queríamos o ninho para nossa aula de ciências naturais. Era
nossa tarde no campo. Essas aulas ao ar livre são esplêndidas, Marilla. E
Miss Stacy explica tudo tão lindamente. Temos que escrever redações em
nossas tardes no campo, e sou eu quem escreve as melhores.
— É muita vaidade sua falar desse jeito. É melhor que você deixe que
a professora diga isso.
— Mas ela disse, Marilla. E certamente não fico vaidosa por isso.
Como posso ficar, se ainda sou péssima em Geometria? Apesar de estar
realmente começando a entender um pouco. Miss Stacy torna tudo tão claro.
Mesmo assim, nunca serei realmente boa, e lhe asseguro que esta é uma
reflexão humilhante. Mas eu amo escrever redações. Na maioria das vezes,
Miss Stacy nos permite escolher os temas, mas na próxima semana vamos
escrever uma composição sobre uma pessoa notável. É difícil escolher entre
tantas pessoas interessantes que já viveram. Não deve ser esplêndido ser
uma pessoa extraordinária e ter redações escritas sobre você depois de sua
morte? Oh, eu adoraria ser notável. Acho que, quando eu crescer, vou
estudar para ser enfermeira e ir com a Cruz Vermelha para o campo de
batalha como uma mensageira de paz. Isto é, se eu não for como missionária
para o estrangeiro. Isso seria muito romântico, mas para ser uma pessoa ser
missionária, tem que ser bondosa por natureza, e isso seria uma pedra no
caminho. E nós temos aula de educação física todos os dias, também. Torna o
corpo gracioso e promove a boa digestão.
— Promove disparates! – disse Marilla, que honestamente pensava
que tudo não passava de uma bobagem.
Mas todas as tardes no campo, as poesias das sextas-feiras e as aulas
de educação física empalideceram diante do projeto que Miss Stacy trouxe
em novembro. Os estudantes da escola de Avonlea deveriam organizar um
concerto e preparar o salão para a Noite de Natal, com o louvável propósito
de levantar fundos para ajudar na compra de uma bandeira para a escola.
Todos os alunos abraçaram graciosamente o plano, e os preparativos para
este programa começaram imediatamente. E dentre todos os empolgados
artistas eleitos, nenhum estava tão emocionado quanto Anne Shirley, que se
lançou à tarefa de corpo e alma, ainda que a desaprovação de Marilla
tentasse atrapalhá-la. Esta considerava tudo isso a maior tolice.
— Serve somente para encher suas cabeças de baboseiras e tomar o
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tempo que deveria ser empregado nas aulas. Não aprovo a participação de
crianças em concertos e que fiquem correndo de um lado ao outro para
ensaiar. Torna-as fúteis, atrevidas e faz com que fiquem gostando de
perambular por aí – ela resmungou.
— Mas pense no valor do objetivo! Uma bandeira cultivará nosso
espírito de patriotismo, Marilla.
— Lorota! Há muito pouco patriotismo nas cabecinhas de vocês. Tudo
o que querem é diversão.
— Bem, quando podemos combinar patriotismo e diversão, não fica
tudo certo? Claro que é muito bom organizar um concerto. Cantaremos seis
canções em coro, e Diana cantará um solo. Estou participando de dois
esquetes – ‘A Sociedade para Supressão da Maledicência’ e ‘A Rainha das
Fadas’. Os meninos terão um diálogo também. E eu recitarei duas poesias,
Marilla. Eu tremo quando penso nisso, mas é um tipo emocionante de
tremor. E ao final teremos um painel – ‘Fé, Esperança e Caridade’. Diana,
Ruby e eu estaremos ali, todas trajadas de branco e cabelos ao vento. Eu
serei Esperança, com minhas mãos unidas – assim – e meus olhos erguidos
ao céu. Estou indo praticar minhas poesias no sótão. Não fique alarmada se
me escutar gemendo. Tenho que gemer dolorosamente em uma delas, e é
realmente difícil alcançar um bom gemido artístico, Marilla. Josie Pye está
emburrada, pois não conseguiu o papel que queria no quadro. Ela queria ser
a Rainha das Fadas. Teria sido ridículo, pois quem já ouviu falar de uma
Rainha Fada tão gorda quanto Josie Pye? Fadas têm de ser esguias. Jane
Andrews será a rainha e eu serei uma de suas damas de honra. Josie acha
que uma fada ruiva é tão ridícula quanto uma gorda, mas eu não me deixo
levar pelo que Josie diz. Usarei uma grinalda de rosas brancas no cabelo e
Ruby me emprestará sua sapatilha, pois não tenho nenhuma. É necessário
que as fadas usem sapatilhas, sabe? Você consegue imaginar uma fada
usando botas? Especialmente com saltos cor de bronze? Iremos decorar o
salão com abeto rasteiro e arbustos de pinheiro com rosas de papel crepom
pregadas. E vamos marchar de duas em duas depois que a plateia estiver
sentada, enquanto Emma White toca a marcha no órgão. Oh, Marilla, sei que
você não está tão entusiasmada quanto eu, mas não espera que sua Anne se
destaque?
— Tudo o que espero é que você se comporte. Ficarei tremendamente
contente quando toda essa confusão estiver acabada e você for capaz de se
acalmar. Você simplesmente não serve para nada nesses momentos, com sua
cabeça cheia de diálogos, gemidos e paineis. Quanto à sua língua, é incrível
como não se gasta.
Anne suspirou e se retirou para o jardim dos fundos, sobre o qual
brilhava uma jovem lua nova em meio aos desnudos galhos dos álamos em
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Capítulo XXV
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assegurar; mas ele estava certo de que as mangas de Anne não se pareciam
com as mangas que as outras usavam. Recordava o grupo de mocinhas que
tinha visto junto a ela esta noite – todas alegres em seus vestidos vermelhos,
azuis, rosas e brancos – e se perguntou por que Marilla sempre a vestia tão
modesta e sobriamente.
Obviamente, isto devia estar certo. Marilla sabia melhor e a estava
educando. Provavelmente havia algum motivo sensato e inescrutável. Mas
certamente não faria mal algum deixar a menina ter um vestido bonito – algo
do tipo que Diana Barry sempre usava. Matthew decidiu que daria um
vestido a ela; isto certamente não seria interpretado como meter o bedelho.
O Natal era somente daqui a quinze dias. Um lindo vestido novo seria
perfeito para dar de presente! Matthew guardou o cachimbo com um suspiro
de satisfação e foi dormir, enquanto Marilla abria todas as portas e janelas
para arejar a casa.
Na tarde seguinte, Matthew dirigiu-se a Carmody para comprar o
vestido, determinado a vencer a pior parte e acabar logo com o assunto. Ele
seguramente sentiu que não seria uma tarefa banal. Havia algumas coisas
que Matthew podia comprar e provar que era bom nos negócios, mas sabia
que quando fosse comprar um vestido de menina, estaria totalmente a mercê
dos vendedores.
Depois de muito cogitar, Matthew resolveu ir ao armazém de Samuel
Lawson, ao invés de ir ao de William Blair. Em realidade, os Cuthberts
sempre compravam no armazém de William Blair. Era quase um
compromisso com os Blair, tal qual comparecer na Igreja Presbiteriana e
votar nos Conservadores. Mas as duas filhas de William Blair frequentemente
atendiam os clientes ali, e Matthew tinha verdadeiro pavor delas. Ele podia
dar um jeito de lidar com as moças quando sabia exatamente o que queria e
podia apontar para o objeto. Mas nesse assunto, que pedia explicação e
consulta, Matthew sentiu que seria melhor se certificar de que teria um
homem atrás do balcão. Então iria ao armazém de Lawson, onde Samuel ou
seu filho o receberiam.
Mas ai dele! Matthew não sabia que Samuel, em sua recente expansão
dos negócios, havia contratado uma moça atendente; era a sobrinha de sua
esposa, e certamente uma lindíssima jovem, com um enorme penteado
pompadour, grandes olhos castanhos e vivazes e o mais amplo e
desconcertante sorriso. Estava vestida com muita elegância e usava
braceletes que reluziam, chacoalhavam e tilintavam com cada movimento de
suas mãos. Matthew se cobriu de vergonha ao encontrá-la ali; e aquelas
pulseiras arruinavam completamente seus nervos.
— O que posso fazer pelo senhor nesta tarde, Mr. Cuthbert? – Miss
Lucilla Harris inquiriu, vigorosa e gentilmente, espalmando as duas mãos no
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balcão.
— Você tem um – um – um – bem, ora, me diga, um ancinho de jardim?
– gaguejou Matthew.
Miss Harris pareceu surpresa – também, pudera: ouvir um homem
perguntar por um ancinho no meio de dezembro!
— Acredito que sobraram um ou dois – ela respondeu –, mas estão
guardados no depósito. Subirei para procurar.
Durante sua ausência, Matthew reuniu novamente o ânimo para um
novo esforço.
Quando Miss Harris retornou com o ancinho, perguntou gentilmente:
— Mais alguma coisa por hoje, Mr. Cuthbert?
Matthew tomou a coragem nas duas mãos e respondeu: — Ora, já que
a senhorita está sugerindo, eu poderia – tomar – isto é – dar uma olhada –
comprar algumas – algumas sementes de feno?
Miss Harris tinha ouvido falar que Mr. Cuthbert era estranho, mas
agora concluiu que ele era completamente louco.
— Vendemos sementes de feno somente na primavera. Não temos
nada em mãos agora – explicou, altivamente.
— Oh, certo, certo – é como a senhorita disse – gaguejou o infeliz
Matthew, tomando o ancinho e encaminhando-se para a porta. Chegando à
soleira, lembrou-se de que tinha esquecido de pagar pelo objeto, e voltou
miseravelmente. Enquanto Miss Harris estava contando o troco, reuniu todas
as suas forças para uma última tentativa desesperada.
— Bem – se não for muito incômodo – eu poderia ver – isto é – um
pouco – um pouco de açúcar?
— Refinado ou mascavo? – inquiriu Miss Harris, pacientemente.
— Oh – bem, ora – mascavo – decidiu, debilmente.
— Há um barril de açúcar mascavo ali. É o único tipo que temos –
respondeu a moça, apontando na direção do objeto e balançando as
pulseiras.
— Eu vou – vou levar nove quilos, então – finalizou, com gotas de
transpiração surgindo em sua testa.
Matthew já tinha percorrido meio caminho de volta para casa antes de
voltar a ser o mesmo homem. Havia sido uma experiência pavorosa, mas
merecida, ele pensou, por ter cometido a heresia de ir a um armazém
estranho. Quando chegou a Green Gables, escondeu o ancinho na peça das
ferramentas, mas o açúcar ele entregou a Marilla.
— Açúcar mascavo! – exclamou a irmã — O que pensou para trazer tanto
açúcar? Sabe que nunca uso, exceto para o mingau do empregado ou para fazer
bolo escuro de frutas. Jerry já se foi e fiz meu bolo há muito tempo. E esse açúcar
nem é de qualidade, é grosso e escuro! William Blair geralmente não vende
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lindo – um adorável tecido glória de cor marrom suave, com todo o brilho da
seda; a saia com delicados babados e franzidos; um corpete com pregas
dispostas na maneira mais elegante, com um pequeno ondulado de renda
transparente no colarinho. Mas as mangas – eram a coroação da majestade!
Longos punhos que vinham do pulso até o cotovelo, e acima duas lindas
mangas bufantes, divididas por uma fileira de franzidos e laços de fita
marrom.
— É um presente de Natal para você, Anne – disse Matthew, acanhado
– Ora – ora – Anne, não gostou? Calma, calma.
Fez essa pergunta porque os olhos de Anne de repente se encheram de
lágrimas.
— Gostar! Oh, Matthew! – Anne deixou o vestido sobre a cadeira e
juntou as mãos – Matthew, é perfeitamente elegante! Oh, nunca poderei lhe
agradecer o suficiente. Olhe essas mangas! Oh, para mim parece ser um lindo
sonho!
— Bem, bem, vamos tomar café da manhã – interrompeu Marilla —
Devo dizer, Anne, que não acho que você precise de outro vestido; mas como
Matthew comprou um, cuide muito bem dele. Mrs. Lynde deixou uma fita
para você pôr no cabelo. É marrom, para combinar com o vestido. Venha
agora e sente-se.
— Não sei como poderei comer o desjejum – disse Anne, sonhadora –,
parece um acontecimento tão trivial num momento emocionante como este.
Preferia me deleitar com a visão deste vestido. Estou tão contente que as
mangas bufantes ainda estejam na moda! Parece-me que nunca superaria se
saíssem de moda e eu não tivesse um vestido com elas. Nunca estaria
totalmente satisfeita. Foi muito amável da parte de Mrs. Lynde ter deixado o
laço também. Sinto que, sem dúvidas, devo ser uma boa menina. Em
momentos como este me arrependo de não ser uma criança modelo. Eu
sempre resolvo que serei no futuro. Mas de algum modo é difícil manter
nossas resoluções quando uma tentação irresistível aparece. Ainda assim,
farei um esforço extra depois disso.
Quando a refeição trivial tinha terminado, Diana apareceu, cruzando a
ponte esbranquiçada, uma alegre figurinha em seu casacão cor de carmim.
Anne correu ladeira abaixo para encontrá-la.
— Feliz Natal, Diana! E oh, é um Natal maravilhoso. Tenho algo
esplêndido para mostrar. Matthew me deu de presente o vestido mais
adorável do mundo, com umas mangas! Não poderia nem imaginar nada
melhor.
— Tenho algo mais para você – disse Diana, arquejante –, aqui, esta
caixa. Tia Josephine nos enviou uma grande caixa, com tantas coisas dentro; e
isto é para você. Eu deveria ter trazido ontem à noite, mas chegou tarde, e
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não me sinto muito bem para caminhar pela Floresta Assombrada agora.
Anne abriu a caixa e espiou. Primeiro encontrou um cartão com a
inscrição “Para a Menina-Anne, um Feliz Natal”; e então, um par de delicadas
sapatilhas infantis, com ponteira adornada com contas, laços de seda e uma
fivela brilhante.
— Oh! – exclamou Anne – Diana, é demais. Devo estar sonhando!
— Chamo isso de providencial. Você não vai mais precisar tomar
emprestada a sapatilha de Ruby agora, e é uma bênção, pois elas são dois
números maiores do que o seu pé, e seria muito estranho ouvir uma fada
arrastando os pés. Josie Pye ficaria encantada! Imagine, Rob Wright
acompanhou Gertie Pye até a casa dela anteontem à noite, depois do ensaio. Já
ouviu alguma vez algo igual?
Todos os estudantes de Avonlea se encontravam naquele dia ferventes
com tanta empolgação, pois o salão deveria ser decorado e realizariam um
último ensaio geral.
O concerto aconteceu ao entardecer e foi declarado um sucesso. O
pequeno salão estava cheio; todos os atores representaram muito bem, mas
Anne foi a estrela mais brilhante da ocasião, fato este que até mesmo a
invejosa Josie Pye não se atreveria a negar.
— Oh, não foi uma noite brilhante? – suspirou Anne, quando tudo
havia acabado e ela e Diana caminhavam debaixo do céu escuro e estrelado.
— Tudo saiu muito bem. Aposto que arrecadamos mais de dez dólares
– respondeu Diana, com praticidade – Imagine, Mr. Allan vai enviar um artigo
sobre o concerto para os jornais de Charlottetown!
— Oh, Diana, nós vamos mesmo ver os nossos nomes impressos? Isso
me dá um arrepio só de pensar. O seu solo foi perfeitamente elegante, Diana.
Senti-me mais orgulhosa do que você, quando lhe pediram que repetisse.
Disse a mim mesma: ‘Minha amiga do peito é esta que esta sendo honrada’.
— Bem, pois o seu recital quase trouxe a casa abaixo, Anne. Aquela
poesia triste foi simplesmente esplêndida.
— Oh, eu estava tão nervosa, Diana. Quando Mr. Allan falou meu nome,
realmente não posso dizer a você como fiz para subir naquela plataforma.
Senti como se milhões de olhos estivessem olhando para mim e através de
mim, e por um horrível instante tive a certeza de que não poderia começar.
Então, pensei nas minhas adoráveis mangas bufantes e tomei coragem. Eu
sabia que devia estar à altura daquelas mangas, Diana. Então comecei, e
minha voz parecia vir de tão longe! Senti-me exatamente como um papagaio.
Foi providencial ter ensaiado tanto essas poesias no sótão, ou nunca teria
sido capaz de finalizá-las. Foi bom o meu gemido?
— Sim, sem dúvida, seu gemido foi adorável – assegurou Diana.
— Vi a velha Mrs. Sloane secando as lágrimas quando me sentei. Foi
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Capítulo XXVI
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consequentemente, a irmã de Moody, Ella May, não falou com Anne Shirley
pelo restante do inverno. Com exceção destes atritos insignificantes, o
trabalho do pequeno reino de Miss Stacy correu de modo regular e suave.
As semanas de inverno passaram. Este inverno havia sido muito
ameno, com tão pouca neve que Anne e Diana puderam ir à escola quase
todos os dias pela Rota das Bétulas. No dia do aniversário de Anne, elas
vinham saltitando alegremente, mantendo olhos e ouvidos alertas em meio a
toda sua conversa, pois Miss Stacy lhes dissera que muito em breve deveriam
escrever uma composição sobre “uma caminhada invernal pela floresta”, e
lhes convinha observar tudo.
— Imagine, Diana, estou fazendo treze anos hoje! – comentou Anne,
em voz reverente – Custa-me muito acreditar que estou na adolescência.
Quando acordei esta manhã, me pareceu que tudo deve ser diferente. Faz um
mês que você tem treze anos, então creio que já não lhe parece ser uma
novidade como para mim. Torna a vida tão mais interessante. Daqui a dois
anos eu estarei realmente crescida. É um grande conforto saber que, enfim,
poderei usar palavras grandes sem que ninguém ache graça de mim.
— Ruby Gillis diz que pretende ter um namorado assim que completar
quinze anos – disse Diana.
— Ruby Gillis não pensa em mais nada que não seja rapazes – Anne
falou, desdenhosamente – e, no fundo, no fundo, sente-se lisonjeada quando
escrevem o nome dela na lousa com “atenção”, mesmo que finja estar brava.
Mas temo que este seja um comentário muito maldoso. Mrs. Allan diz que
nunca devemos fazer este tipo de comentário; mas frequentemente eles saem
mesmo sem pensar, não saem? Eu simplesmente não consigo falar de Josie
Pye sem falar mal dela, então nunca a menciono. Você já deve ter percebido
isso. Estou tentando me parecer o máximo que posso com Mrs. Allan, pois
acho que ela é perfeita. Mr. Allan acha isso também. Mrs. Lynde diz que ele
claramente venera o chão que ela pisa, e que não acha certo um ministro
depositar tanto afeto em um ser humano. Mas é que os ministros também são
humanos, e têm os pecados que lhes perseguem como qualquer outro ser
humano. Tive uma conversa muito interessante com Mrs. Allan sobre esses
pecados obstinados. São poucos os tópicos de conversação apropriados para
se falar aos domingos, e este é um deles. O pecado que me persegue é ficar
imaginando coisas demais e esquecer dos meus deveres. Estou me
esforçando bravamente para superá-lo, e agora que tenho realmente treze
anos creio que me sairei melhor.
— E daqui a quatro anos nós poderemos fazer o penteado alto nos
cabelos. Alice Bell tem somente dezesseis, e já penteia o cabelo assim, mas
acho isso ridículo. Esperarei até ter dezessete.
— Se eu tivesse o nariz torto de Alice, eu não me atreveria – mas olhe!
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Não vou terminar de dizer o que eu estava para dizer, por ser um comentário
extremamente maldoso. Além disso, estava comparando o nariz dela com o
meu próprio, e isso é vaidade. Temo que eu pense demais no meu nariz desde
que o elogiaram, muito tempo atrás. Realmente serve de conforto para mim.
Oh, Diana, olhe ali, um coelho. É algo para lembrarmos na nossa redação
sobre a floresta. Eu realmente acho que os bosques são tão bonitos no
inverno como são no verão. Ficam tão brancos e quietos, como se estivessem
dormindo e sonhando lindos sonhos.
— Não me preocupo em escrever essa redação quando chegar a hora.
Consigo escrever sobre os bosques, mas esta que temos de entregar na
segunda-feira é terrível. Que ideia essa de Miss Stacy, de nos fazer escrever
uma história de nossa própria cabeça!
— Ora, isso é fácil como um piscar de olhos – disse Anne.
— É fácil porque você tem uma imaginação – retorquiu Diana –, mas o
que faria se tivesse nascido sem uma? Suponho que você já tenha sua
redação pronta?
Anne assentiu, tentando não parecer virtuosa e complacente, e
falhando terrivelmente.
— Escrevi na segunda-feira passada, à noite. Chama-se ‘A Rival
Ciumenta; ou Juntos na Morte’. Eu li para Marilla e ela disse que era pura
bobagem. Então li para Matthew e ele disse que estava muito bom. Este é o
tipo de crítica que eu gosto. É uma história doce e triste. Eu chorava como
uma criança enquanto escrevia. Fala de duas donzelas chamadas Cordelia
Montmorency e Geraldine Seymour, que viviam no mesmo vilarejo e nutriam
devotada amizade uma pela outra. Cordelia era uma morena régia, com uma
grinalda de cabelos escuros como a meia-noite e olhos negros relampejantes.
Geraldine era uma magnífica loira, com o cabelo como fios de ouro e
aveludados olhos cor de púrpura.
— Nunca vi ninguém com olhos cor de púrpura – comentou Diana, em
dúvida.
— Tampouco eu. Só os imaginei. Queria algo que fosse fora do comum.
Geraldine tinha também uma tez pálida. Descobri finalmente o que é uma tez
pálida. Esta é uma das vantagens de ter treze anos. Você sabe muito mais do
que quando tinha somente doze.
— Bem, e o que aconteceu com Cordelia e Geraldine? – perguntou
Diana, que começava a se sentir interessada na história.
— Elas cresceram juntas, lado a lado, até que completaram dezesseis
anos. Então, Bertram DeVere chegou ao vilarejo e se apaixonou pela bela
Geraldine. Ele salvou sua vida quando o cavalo disparou com ela em uma
carroça, e ela desmaiou em seus braços e ele a carregou por três milhas até
sua casa; porque, você sabe, a carroça estava toda quebrada. Achei um pouco
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Capítulo XXVII
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sem pensar nem uma vez no horário e em seus deveres. Ela terá que acabar
de uma vez por todas com estas coisas! Não me interessa se Mrs. Allan diz
que ela é a criança mais brilhante e doce que conheceu. Ela pode ser
brilhante e doce, mas sua cabeça está cheia de besteiras e nunca se sabe
qual será sua próxima travessura. Tão logo sai de uma esquisitice, já entra
em outra. Mas ai está! Aqui estou eu repetindo as palavras de Rachel Lynde,
que me deixaram tão irritada! Fiquei realmente contente quando Mrs. Allan
elogiou Anne, pois se ela não tivesse feito isso, eu teria que dizer poucas e
boas para Rachel diante de todos. A menina tem muitos defeitos, Deus sabe
que tem, e estou longe de negar este fato. Mas eu a estou educando e não
Rachel Lynde, que iria achar falhas até mesmo no Anjo Gabriel, se este
vivesse em Avonlea. Mas ainda assim, Anne não tinha que ter saído, quando
pedi a ela que ficasse em casa esta tarde para cuidar das coisas. Devo dizer
que, com todas as suas falhas, nunca a considerei desobediente ou não
confiável antes, e estou muito triste por descobrir isso agora.
— Bem, ora, eu não sei – disse Matthew que, sendo paciente e sábio e,
sobretudo, estando faminto, considerou que seria melhor deixar que Marilla
desabafasse livremente, tendo aprendido por experiência que ela terminaria
com mais rapidez o trabalho que tivesse em mãos se não fosse interrompida
por argumentação desnecessária – mas talvez você a esteja julgando muito
rapidamente, Marilla. Não diga que ela não é confiável até que você esteja
certa de que ela a desobedeceu. Pode ser que haja alguma explicação; Anne
sempre encontra boas explicações.
— Ela não está aqui quando disse a ela para estar. Creio que achará
muito difícil explicar isto para minha inteira satisfação. Sabia que você iria
tomar o partido dela, Matthew. Mas eu a estou criando, e não você –
retorquiu Marilla.
Já estava escuro quando a refeição ficou pronta, e ainda nenhum sinal
de Anne correndo apressada sobre a ponte de troncos ou pela Travessa dos
Amantes, sem fôlego, arrependida por perceber suas tarefas negligenciadas.
Marilla lavou a louça e guardou tudo com severidade. Então, como precisava
de uma vela para iluminar o caminho até o porão, subiu ao quartinho do lado
leste do sótão para pegar a que sempre estava sobre a mesa de Anne. Quando
acendeu a vela, Marilla se virou e viu a própria Anne deitada na cama de
barriga para baixo, com o rosto enfiado nos travesseiros.
— Misericórdia! – exclamou, assustada – Estava dormindo, Anne?
— Não – foi a resposta abafada.
— Está doente, então? – Marilla indagou ansiosamente, se dirigindo
até a cama.
Anne se encolheu ainda mais nos travesseiros, como se desejasse se
esconder eternamente de quaisquer olhos mortais.
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— Não, mas, por favor, Marilla, vá embora e não olhe para mim. Estou
nas profundezas do desespero e não me importa mais quem fica em primeiro
na classe, ou quem escreve a melhor redação, ou quem canta no coro da
Escola Dominical. Pequenas coisas como esta são insignificantes agora, pois
creio que nunca mais poderei sair daqui. Minha carreira está terminada. Por
favor, Marilla, vá embora e não olhe para mim.
— Alguém um dia já ouviu algo assim? – quis saber a perplexa Marilla
– Anne Shirley, o que há de errado com você? O que fez? Levante agora e me
diga. Neste minuto, eu disse. Bem, o que é isto?
Anne escorregara para o chão em desesperada obediência.
— Olhe só o meu cabelo, Marilla! – ela suspirou.
Então, Marilla ergueu a vela e inspecionou com escrutínio o cabelo de
Anne, que caía em pesadas camadas pelas costas. Certamente tinha uma
aparência muito esquisita.
— Anne Shirley, o que fez com o seu cabelo? Por que está verde?
Até poderia ser chamado de verde, se existisse na Terra qualquer cor
como aquela – um estranho e apagado verde queimado, com mechas do ruivo
original aqui e ali para piorar o efeito medonho. Em toda a sua vida, Marilla
nunca tinha visto algo tão grotesco como o cabelo de Anne naquele
momento.
— Sim, está verde. Pensei que nada fosse pior do que ter o cabelo
vermelho. Mas agora sei que é dez vezes pior ter o cabelo verde. Oh, Marilla,
não sabe o quão miserável eu sou – lamentou Anne.
— O que eu não sei é como você entrou nesse aperto, mas pretendo
descobrir. Desça agora mesmo para a cozinha, pois está muito frio aqui, e
somente me diga o que fez. Estava esperando alguma esquisitice há algum
tempo. Você não se metia em nenhuma confusão há mais de dois meses, e eu
sabia que outra estava a caminho. Agora, me diga o que fez com o seu cabelo?
— Eu tingi.
— Tingiu? Tingiu o cabelo? Anne Shirley, não sabia que isso é uma
coisa imoral?
— Sim, eu sabia que era um pouco imoral – admitiu Anne –, mas
pensei que valia a pena ser imoral para dar fim a este cabelo ruivo. Algo tinha
que me custar, Marilla. Além disso, pretendia ser muito bondosa em outros
momentos, para reparar isto.
— Bem – disse Marilla, com sarcasmo –, se eu tivesse decidido que
valia a pena tingir meu cabelo, teria ao menos escolhido uma cor decente.
Não teria tingido de verde.
— Mas eu não queria tingi-lo de verde, Marilla! – protestou, desanimada
– Se fosse para cometer uma imoralidade, pretendia que tivesse algum
propósito. Ele disse que o meu cabelo ficaria um lindíssimo preto lustroso –
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Capítulo XXVIII
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antes de Mrs. Lynde ter nascido. Faça os preparativos, Jane. É ridículo Elaine
estar falando, quando deveria estar morta.
Jane se ergueu para a ocasião. Não havia nenhum tecido de ouro para
a mortalha, mas um velho protetor de piano de crepe japonês amarelo foi o
excelente substituto. Um lírio branco não pôde ser encontrado, mas o efeito
de uma longa flor de íris azul, colocada em uma das mãos cruzadas de Anne,
era tudo que poderiam desejar.
— Agora ela está pronta – concluiu Jane – e devemos beijar seu rosto
tranquilo. Diana, você diz ‘Irmã, adeus para sempre’; e Ruby, você diz ‘Adeus,
doce irmã’, ambas o mais triste que puderem. Anne, pelo amor de Deus,
sorria um pouco. Você sabe que Elaine ‘jazia como se estivesse sorrindo’.
Assim está melhor. Agora, empurrem o bote.
O bote foi devidamente empurrado e, durante este processo, roçou na
ponta de uma velha estaca de amarrar barcos, que estava submersa. As
meninas esperaram o suficiente para ver o bote tomar a correnteza e rumar
para a ponte, antes de cruzarem os bosques pela estrada e até chegarem ao
promontório inferior onde, tal como Lancelot, Guinevere e o Rei, elas
deveriam estar prontas para receber a Donzela dos Lírios.
Por alguns minutos, Anne, vagarosamente deslizando pela correnteza
abaixo, desfrutou ao máximo do romance da situação. Então, algo nada
romântico aconteceu. O bote começou a encher de água. Em pouco tempo,
Elaine teve de se levantar, puxar a mortalha de ouro e a tapeçaria fúnebre e
contemplar, pasmada, uma grande abertura no fundo da barca, por onde
entrava literalmente uma torrente de água. Aquela estaca pontuda na
margem havia arrancado a quilha da embarcação! Anne não sabia o que tinha
acontecido, mas não levou muito tempo para entender que estava em perigo.
Nesse ritmo, o bote se encheria e afundaria antes de poder alcançar a outra
margem. Onde estavam os remos? Haviam ficado na margem!
Anne soltou um gritinho ofegante, que ninguém escutou; estava
branca até os lábios, mas não perdeu seu autocontrole. Havia uma chance –
uma única chance.
— Eu estava terrivelmente assustada – Anne contou a Mrs. Allan no
dia seguinte – e parecia que demoraram anos para o barco chegar até a
ponte, e a água subindo a todo o momento! Eu orei, Mrs. Allan, sinceramente,
mas não fechei meus olhos para orar, pois sabia que a única maneira de Deus
me salvar era eu fazer o bote flutuar até bem perto de um dos pilares da
ponte, para que eu subisse por ele. A senhora sabe que os pilares são
somente três troncos velhos de árvore, que possuem muitos nós e galhos. Era
apropriado orar, mas eu tinha que fazer minha parte observando e sabia
disso muito bem. Somente disse uma e outra vez: ‘Querido Deus, por favor,
apenas me carregue para perto daquele pilar e eu farei o resto’. Diante de tal
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amiga e soluçando de alívio e alegria – oh, Anne – nós pensamos – você tinha
– se afogado – e nos sentimos como assassinas – porque a forçamos – a ser –
Elaine. E Ruby está histérica – oh, Anne, como escapou?
— Eu me agarrei a um dos pilares – explicou a fatigada Anne – e
Gilbert Blythe aproximou-se com o bote de Mr. Andrews e me trouxe até a
margem.
— Oh, Anne, que esplêndido da parte dele! Ora, isto é tão romântico! –
disse Jane, enfim encontrando fôlego suficiente para falar – Certamente você
vai falar com ele depois disso.
— É claro que não vou! – respondeu Anne, abruptamente, com um
retorno momentâneo de seu antigo espírito – E nunca mais quero ouvir a
palavra ‘romântico’ de novo, Jane Andrews. Sinto muitíssimo que tenham
ficado tão assustadas, meninas. A culpa é toda minha. Estou certa de que
nasci sob uma estrela de má sorte. Tudo o que faço coloca a mim mesma ou
aos meus queridos amigos em confusão. Perdemos o bote de seu pai, Diana e
tenho o pressentimento de que não poderemos mais remar na lagoa.
O pressentimento de Anne provou ser mais certeiro do que são os
pressentimentos em geral. Grande foi a comoção na casa dos Barry e dos
Cuthbert quando os acontecimentos da tarde se tornaram conhecidos.
— Você nunca terá algum juízo, Anne? – reclamou Marilla.
— Oh, sim, acho que terei, Marilla! – respondeu Anne, otimista. Um
bom choro, proporcionado pela grata solidão do quartinho do lado leste do
sótão, tinha aliviado seus nervos e restaurado seu ânimo – Acho que as
perspectivas de me tornar sensata estão mais brilhantes do que nunca.
— Não vejo como podem estar – disse Marilla.
— Bem, tenho aprendido uma nova e válida lição todos os dias. Desde
que cheguei a Green Gables tenho cometido erros, e cada um deles tem
ajudado a me curar de alguma grande limitação. O caso do broche de
ametista me curou de ficar mexendo nas coisas que não me pertencem. O
erro da Floresta Assombrada me ensinou a não deixar minha imaginação
tomar conta de mim. O bolo de linimento me curou da falta de atenção ao
cozinhar. Tingir meu cabelo me curou da vaidade. Nunca penso sobre meu
cabelo ou meu nariz agora – pelo menos não tão frequentemente. E o erro de
hoje irá me curar de ser tão romântica. Cheguei à conclusão de que é inútil
tentar ser romântica em Avonlea. Provavelmente era mais fácil na cidade de
Camelot, cercada de torres, centenas de anos atrás, mas os romances não são
apreciados agora. Estou certa de que muito em breve verá em mim um
grande progresso nesse aspecto, Marilla.
— Espero que sim – comentou a cética Marilla.
Mas Matthew, que estava sentado em silêncio no seu canto, pôs a mão
no ombro de Anne quando Marilla havia saído.
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Capítulo XXIX
Anne estava trazendo as vacas do pasto dos fundos para casa, passando
pela Travessa dos Amantes. Era um fim de tarde de setembro, e todas as
aberturas e clarões no bosque estavam impregnados com a luz vermelha do
pôr do sol. Aqui e ali a alameda era salpicada pela luminosidade, mas em sua
maior parte já estava completamente sombreada embaixo dos bordos, e os
espaços sob os pinheiros estavam preenchidos por um claro lusco-fusco da cor
de violeta, como um vinho irreal. Os ventos balançavam a copa das árvores, e
não havia música mais doce no mundo do que aquela da brisa do entardecer
soprando nos pinheiros.
As vacas caminhavam placidamente pela alameda, e a sonhadora Anne
as seguia, repetindo em voz alta o canto de batalha de ‘Marmion’[35] – que
também tinha sido parte da disciplina de língua inglesa no inverno anterior, e
o qual Miss Stacy tinha feito com que memorizassem – e exultando nas
estrofes mais rápidas, no confronto de lanças em suas fantasias. Quando
chegou à estrofe:
“Os teimosos lanceiros ainda lutavam com excelência
no seu escuro bosque impenetrável”,
ela parou, em êxtase, e fechou os olhos para que pudesse imaginar
melhor a si mesma participando daquele círculo heroico. Quando voltou a
abri-los, foi para contemplar Diana cruzando a porteira que levava ao campo
dos Barry, parecendo tão solene que Anne instantaneamente adivinhou que
havia novidades a serem contadas. Mas ela não iria denunciar tão impaciente
curiosidade.
— Este entardecer não está exatamente como um sonho lilás, Diana?
Sinto-me tão feliz em estar viva. Pela manhã, sempre acho que as manhãs
são melhores, mas quando as tardes chegam, me parecem ainda mais
adoráveis.
— É mesmo uma bela tarde – disse Diana – mas oh, tenho uma tal
novidade, Anne. Adivinhe! Tem três chances para acertar.
— Charlotte Gillis vai se casar na igreja afinal, e Mrs. Allan quer que
nós façamos a decoração – gritou Anne.
— Não. O namorado de Charlotte não concorda com isso, pois nunca
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ninguém se casou na igreja e ele acha que ficaria parecido com um funeral. É
uma bobagem, pois seria uma grande diversão. Tente outra vez.
— A mãe de Jane vai deixá-la fazer uma festa de aniversário?
Diana meneou a cabeça, seus olhos negros dançando com o
divertimento.
— Não consigo pensar em mais nada – disse Anne, em desespero – a
não ser que Moody Spurgeon MacPherson tenha acompanhado você até sua
casa, ao saírem da reunião de oração na noite passada. Foi isso?
— Isso nem se cogita! – exclamou Diana, indignada — Eu não faria
nenhum alarde sobre uma coisa dessas, ainda que aquela criatura horrível
tivesse mesmo me acompanhado! Sabia que você não conseguiria adivinhar.
Mamãe recebeu hoje uma carta da tia Josephine, e ela quer que você e eu
viajemos para a cidade na próxima quinta-feira, para nos hospedarmos com
ela e visitarmos a Exposição. Aí está!
— Oh, Diana – murmurou Anne, tendo a necessidade de se apoiar em
uma das árvores para se sustentar sobre os pés – é verdade o que diz? Mas
receio que Marilla não me deixe ir. Ela dirá que não pode me encorajar a
ficar perambulando. Foi o que disse na semana passada, quando Jane me
convidou para ir com eles, em sua charrete de dois lugares, para o Concerto
Americano, no Hotel de White Sands. Eu queria ir, mas Marilla alegou que
era melhor eu ficar em casa estudando, e que Jane deveria fazer o mesmo.
Fiquei amargamente desapontada, Diana. Senti-me tão inconsolável que não
fiz minhas orações quando fui dormir. No entanto, me arrependi por não tê-
las feito, e levantei no meio da noite para orar.
— Vamos fazer o seguinte – sugeriu Diana – pediremos à minha mãe
para falar com Marilla. Assim será mais provável que ela a deixe ir; e se
deixar, teremos os melhores dias de nossas vidas, Anne! Nunca estive em
uma Exposição, e é tão insuportável ficar ouvindo as outras garotas falando
sobre suas viagens. Jane e Ruby já visitaram duas vezes, e irão de novo neste
ano.
— Não vou pensar nisto de jeito nenhum, até saber se poderei ir ou
não! – afirmou Anne, resolutamente — Se eu pensar e for decepcionada, isso
será mais do que eu posso suportar. Mas se eu puder ir, estou muito feliz
porque meu novo casaco estará pronto a tempo. Marilla não achava que eu
tivesse necessidade de um novo casaco. Disse que meu antigo serviria muito
bem para outro inverno, e que eu deveria ficar satisfeita em ter um novo
vestido. É um vestido muito bonito, Diana – azul marinho, e de muito bom
gosto. Marilla sempre faz meus vestidos à moda agora, porque diz que não
quer Matthew indo pedir a Mrs. Lynde para costurá-los. Estou tão contente!
É muito mais fácil ser boazinha se as suas roupas forem elegantes. Porém,
Matthew insistiu que eu deveria ter um novo casaco, então Marilla comprou
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uma adorável peça de casimira azul, e está sendo feito por uma costureira de
verdade em Carmody. É para ficar pronto no sábado à noite, e estou tentando
não me imaginar caminhando pelo corredor da igreja no domingo, com meu
novo vestido e gorro, pois temo não ser muito correto imaginar tais coisas.
Mas isso simplesmente desliza na minha mente, mesmo sem querer. Meu
gorro é tão lindo! Matthew comprou no dia em que estávamos em Carmody.
É um desses pequenos, de veludo azul, muito moderno, com cordões
dourados e franjas. Seu novo chapéu é muito elegante, Diana, e tão vistoso!
Quando vi você chegando à igreja no domingo passado, meu coração inflou
de orgulho ao pensar que você é minha amiga mais querida. Você acha que é
errado pensarmos tanto assim em roupas? Marilla diz que isso é muito
pecaminoso. Mas é um assunto tão interessante, não é?
Marilla concordou com a ida de Anne para a cidade, e foi acertado que
Mr. Barry deveria levá-las na terça-feira seguinte. Como Charlottetown
ficava a trinta milhas de Avonlea e Mr. Barry desejava voltar no mesmo dia,
era necessário sair muito cedo. Mas para Anne tudo era diversão, e estava
desperta antes mesmo do sol nascer na manhã de terça. Uma espiada pela
janela lhe assegurou que o dia seria bom, pois o céu estava todo prateado e
sem nuvens ao leste, atrás dos pinheiros da Floresta Assombrada. Por entre
as brechas das árvores, uma luz estava brilhando na janela oeste de Orchard
Slope: sinal de que Diana também já estava acordada.
Anne já estava vestida quando Matthew acendeu o fogo e tinha
aprontado o café da manhã quando Marilla desceu, mas ela própria estava
muito ansiosa para comer. Depois do desjejum, vestida com o elegante
casaco e o novo gorro, Anne apressou-se sobre a ponte e pelo bosque de
pinheiros até Orchard Slope. Mr. Barry e Diana a esperavam, e logo os três
estavam na estrada.
Foi uma longa jornada, mas Anne e Diana aproveitaram cada minuto.
Era delicioso sacudir pelas estradas úmidas sob a avermelhada luz matinal
que rastejava sobre os ceifados campos de colheita. O ar estava fresco e
puro, e brumas azuladas se elevavam ligeiras, ondulando esfumaçadas de
um lado ao outro dos vales e pairando sobre as encostas. Em alguns
momentos a estrada adentrava os bosques, onde os bordos estavam
começando a expor bandeiras escarlates; outras vezes cruzava rios sobre
pontes que faziam Anne estremecer com seu antigo e delicioso medo; outras
vezes virava ao longo da costa de um porto e passava por um pequeno
aglomerado de acinzentadas cabanas de pesca; e novamente subia a colina,
de onde podia ver as terras ascendentes e o nebuloso céu azul. Mas, por
onde quer que a charrete passasse, haviam muitas coisas interessantes para
se discutir. Era quase meio-dia quando chegaram à cidade e acharam seu
caminho para ‘Beechwood’. Era uma mansão muito antiga e bastante
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Clara Louise MacPherson ganhou um prêmio por sua pintura e Mrs. Lynde
recebeu o primeiro lugar pela manteiga e queijo feitos em casa. Então
Avonlea foi muito bem representada, não foi? Mrs. Lynde estava lá naquele
dia, e eu nunca soube de verdade o quanto gostava dela até ver seu rosto
familiar no meio de todos aqueles estranhos. Havia centenas de pessoas lá,
Marilla. Isso fez com que eu me sentisse terrivelmente insignificante. E Miss
Barry nos levou a arquibancada para ver uma corrida de cavalos. Mrs. Lynde
não participou; disse que corrida de cavalos era uma abominação e, sendo
religiosa, pensava que era seu dever sagrado dar um bom exemplo e se
manter afastada. Se bem que havia tanta gente por lá, que não acredito que a
ausência de Mrs. Lynde tenha sido notada. Porém, creio que não devo
assistir as corridas de cavalo com muita frequência, pois são mesmo muito
fascinantes. Diana ficou tão empolgada que quis apostar dez centavos
comigo que o cavalo vermelho iria ganhar. Não acreditei que ele iria ganhar,
mas me recusei a apostar, pois queria contar a Mrs. Allan todos os detalhes
do passeio e senti que certamente não seria bom contar isso a ela. Sempre é
errado fazer alguma coisa que não pode contar à esposa do ministro. Ser
amiga de uma pessoa assim é como ter uma consciência adicional. Fiquei
muito feliz por não ter apostado, pois o cavalo vermelho ganhou, e eu teria
perdido dez centavos. Então você vê que a virtude é sua própria
recompensa. Vimos um homem subir em um balão. Eu adoraria voar num
balão, Marilla; seria emocionante. E vimos um homem que estava vendendo
cartõezinhos da sorte. Você pagava dez centavos e um passarinho escolhia
um cartão para você. Miss Barry deu o dinheiro a cada uma de nós para que
nossa sorte fosse escolhida. A minha dizia que eu me casarei com um
homem moreno muito rico, e que cruzarei as águas para viver. Olhei
cuidadosamente para cada homem moreno que vi desde então, mas não
gostei de nenhum deles; e, de qualquer forma, ainda é muito cedo para
começar a procurar por ele. Oh, foi um dia para-nunca-ser-esquecido,
Marilla. Fiquei tão cansada que não pude dormir a noite. Miss Barry nos pôs
para dormir no quarto de hóspedes, de acordo com o prometido. Era um
aposento muito elegante, Marilla, mas de alguma maneira, dormir num
quarto de hóspedes não foi como eu pensava. Esta é a pior parte de crescer,
estou começando a entender. As coisas que você tanto desejava quando era
criança não lhe parecem ser tão maravilhosas – aliás, nem a metade disso –
quando as obtém.
Na quinta-feira as meninas tiveram um passeio no parque e, à noite,
Miss Barry as levou a um concerto na Academia de Música, onde uma
célebre prima donna[36] iria cantar. Para Anne, aquela noite foi uma
resplandecente visão do paraíso.
— Oh, Marilla, foi indescritível. Eu estava tão emocionada que não
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conseguia nem falar; então você poderá entender como foi. Simplesmente
fiquei sentada em silencioso arrebatamento. Madame Selitsky era
perfeitamente bela, e vestia cetim branco e diamantes. Mas quando ela
começou a cantar, não pensei em mais nada. Oh, não posso descrever como
me senti. Mas me pareceu que nunca mais seria difícil ser uma menina
boazinha. Eu me senti, naquela noite, do mesmo jeito que me sinto quando
olho para as estrelas. As lágrimas vieram aos meus olhos, mas, oh, eram
lágrimas de alegria. Fiquei tão triste quando tudo acabou, e disse a Miss
Barry que não sabia como conseguiria voltar à vida comum outra vez. Ela
disse que achava que poderia ajudar se fôssemos ao restaurante do outro
lado da rua para tomar sorvete. Aquilo soou tão prosaico, mas para minha
surpresa, descobri que era verdade. O sorvete estava delicioso, Marilla, e foi
muito agradável – e, de certo modo, dissipado – ficar sentada ali comendo às
onze horas da noite. Diana disse que acreditava ter nascido para a vida na
cidade. Miss Barry perguntou qual era a minha opinião, mas eu disse que
teria de pensar mais seriamente nisso antes de dizer o que eu realmente
pensava. Então fiquei pensando no assunto quando fui deitar. Esta é a
melhor hora para pensar nas coisas. E cheguei à conclusão, Marilla, de que
não nasci para a vida na cidade e estou contente com isso. É ótimo comer
sorvete em restaurantes radiosos às onze da noite, de vez em quando; mas,
para o dia a dia, eu preferia estar no meu quartinho do lado leste do sótão às
onze horas, dormindo profundamente; mas sabendo, mesmo no meu sono,
que as estrelas cintilam lá fora, e que o vento está soprando nos pinheiros
do outro lado do riacho. Contei tudo isso a Miss Barry, durante o café da
manhã, e ela riu. Miss Barry geralmente ri de qualquer coisa que eu digo,
mesmo quando são as coisas mais solenes. Não sei se gosto disso, Marilla,
pois não tencionava ser engraçada. Mas ela é uma dama muito hospitaleira e
nos tratou como rainhas.
Sexta-feira marcou o dia de ir embora, e Mr. Barry foi buscá-las.
— Bem, espero que tenham se divertido – disse Miss Barry, enquanto
lhes dizia adeus.
— Certamente nos divertimos – disse Diana.
— E você, Menina-Anne?
— Aproveitei cada minuto – disse Anne, abraçando impulsivamente a
velha senhora e beijando sua bochecha enrugada. Diana nunca se atreveria a
fazer tal coisa, e sentiu-se um tanto perplexa com a liberdade de Anne. Mas
Miss Barry gostou, e ficou em sua varanda olhando a charrete até perdê-la
de vista. Então, com um suspiro, entrou novamente em sua grande casa.
Pareceu muito solitária com a falta de todo aquele frescor da juventude.
Miss Barry era uma senhora um pouco egoísta, verdade seja dita, e nunca se
preocupara muito com ninguém, a não ser consigo mesma. Valorizava as
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Capítulo XXX
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— Ouso afirmar que irá muito bem. Miss Stacy diz que você é
brilhante e diligente – por nada no mundo Marilla contaria a Anne
exatamente o que Miss Stacy tinha dito sobre ela; isto teria alimentado sua
vaidade –, mas não precisa chegar ao extremo de se matar em cima dos
livros. Não há pressa. Não estará preparada para tentar a Admissão por um
ano e meio ainda. Mas é bom começar em tempo e estar completamente
fundamentada; foi o que Miss Stacy falou.
— Tomarei mais interesse do que nunca nos estudos – disse, Anne
alegremente – porque eu tenho um propósito na vida. Mr. Allan disse que
todos deveriam ter um propósito e persegui-lo fielmente. Só diz que devemos
primeiro ter certeza de que é um objetivo digno. Eu diria que querer ser uma
professora como Miss Stacy é um propósito digno, não é, Marilla? Acho que é
uma profissão muito nobre.
A classe para a Queen’s Academy foi organizada em seu devido tempo.
Gilbert Blythe, Anne Shirley, Ruby Gillis, Jane Andrews, Josie Pye, Charlie
Sloane e Moody Spurgeon MacPherson iriam participar. Diana Barry não,
pois seus pais não tinham a intenção de mandá-la para a Queen’s. Isto
pareceu pouco menos que uma calamidade para Anne. Nunca, desde a noite
em que Minnie May teve difteria, Diana e ela tinham ficado separadas para
nada. Na primeira tarde em que a classe da Queen’s permaneceu na escola
para as aulas extras e Anne viu Diana sair lentamente com as outras, e
caminhar sozinha para casa através da Rota das Bétulas e do Vale das
Violetas, nada pôde fazer, exceto permanecer sentada e reprimir o desejo de
correr impulsivamente atrás de sua amiga. Sentiu um nó em sua garganta, e
rapidamente se escondeu atrás das páginas erguidas da gramática de Latim,
para esconder as lágrimas em seus olhos. Anne não teria deixado Gilbert
Blythe ou Josie Pye verem aquelas lágrimas por nada nesse mundo.
— Mas, oh, Marilla, quando vi Diana ir embora sozinha, realmente
senti que provei a amargura da morte, como disse Mr. Allan no sermão de
domingo passado – falou, triste, naquela noite – pensei quão esplêndido teria
sido se tão somente Diana estivesse estudando para a Admissão também.
Mas não podemos ter coisas perfeitas neste mundo imperfeito, como diz Mrs.
Lynde. Ela não é uma pessoa muito alentadora às vezes, mas não há dúvidas
que diz grandes verdades. E eu acho que a classe para a Queen’s vai ser
extremamente interessante. Jane e Ruby irão estudar somente para serem
professoras. É a meta de suas ambições. Ruby diz que irá lecionar por
somente dois anos depois que terminar a escola, então ela pretende se casar.
Jane diz que devotará sua vida inteira ao magistério, e nunca, nunca se casar,
porque você recebe um salário para ensinar, mas não receberá nada de um
marido, que ainda por cima reclama quando pede dinheiro para os ovos e a
manteiga. Creio que Jane fala assim por sua triste experiência, pois Mrs.
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tarde.
Ao menos nem Gilbert nem mais ninguém, nem mesmo Diana,
suspeitariam do quão arrependida ela estava e o quanto desejava não ter
sido tão orgulhosa e desagradável. Decidiu “encobrir seus sentimentos em
um manto profundo de esquecimento”, e pode-se afirmar aqui e agora que ela
fez isso com tamanho sucesso que Gilbert, o qual, possivelmente, não estava
tão indiferente como parecia, não poderia se consolar com nenhuma crença
de que Anne percebera seu desdém retaliatório. O único pobre consolo que
tinha era que ela esnobava Charlie Sloane de maneira inclemente, contínua e
imerecidamente.
No mais, o inverno passou entre agradáveis deveres e estudos. Para
Anne, os dias transcorreram como contas no colar do ano. Ela estava feliz,
ansiosa, interessada, havia lições para aprender e honra para receber;
deliciosos livros para ler, novas peças para serem praticadas para o coro da
Escola Dominical; adoráveis tardes de sábado na casa paroquial com Mrs.
Allan; e então, mesmo antes de Anne perceber, a primavera havia chegado
novamente a Green Gables e todo o mundo florescia uma vez mais.
Então, os estudos se tornaram um bocadinho enfadonhos; a classe da
Queen’s foi deixada para trás na escola, e enquanto os outros se espalhavam
pelas alamedas verdes e bosques folhosos e atalhos nos campos, os alunos
olhavam ansiosos pela janela, e descobriam que os verbos de Latim e os
exercícios de Francês tinham de algum modo perdido o sabor e a animação
que possuíam nos congelantes meses de inverno. Mesmo Anne e Gilbert se
atrasaram e se tornaram indiferentes. A professora e os alunos estavam
igualmente contentes quando o semestre terminou e os alegres dias de férias
se estenderam, rosados, diante deles.
— Mas vocês fizeram um bom trabalho neste ano que passou – Miss
Stacy lhes disse na última noite – e merecem umas boas e alegres férias.
Divirtam-se o máximo que puderem ao ar livre e reúnam um bom estoque de
saúde, vitalidade e ambição, para carregá-los durante todo o ano que vem.
Será o cabo-de-guerra, vocês sabem – o último ano antes do Exame de
Admissão.
— A senhorita estará de volta no ano que vem, Miss Stacy? –
perguntou Josie Pye.
Josie nunca hesitava em fazer perguntas; neste momento, o restante da
classe sentiu-se agradecido a ela; nenhum deles teria ousado perguntar isto a
Miss Stacy, mas todos queriam saber, pois, durante um tempo, houve rumores
no colégio de que Miss Stacy não voltaria no ano seguinte – que haviam lhe
oferecido uma posição em uma grande escola de seu próprio distrito e que ela
tencionava aceitar. A classe da Queen’s ficou em atento suspense esperando por
sua resposta.
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Capítulo XXXI
Anne teve seu “bom” verão e desfrutou-o sem reservas. Ela e Diana
viveram totalmente ao ar livre, se divertindo com todas as delícias
proporcionadas pela Travessa dos Amantes, Bolha da Dríade, Charco do
Salgueiro e Ilha Victoria. Marilla não ofereceu nenhuma objeção às
perambulações ou desatinos de Anne. O médico de Spencervale, que tinha
vindo ver Minnie May na noite em que teve difteria, encontrou Anne na casa
de um paciente em uma tarde no início das férias, olhou intensamente para
ela, torceu a boca, balançou a cabeça e mandou uma mensagem a Marilla
Cuthbert por outra pessoa, dizendo:
“Mantenha aquela sua menina ruiva ao ar livre o verão inteiro e não
deixe que ela leia até que ganhe mais vida em seus passos”.
Esta mensagem assustou Marilla de maneira salutar. Ela leu na
mensagem a condenação de morte de Anne por inanição, a menos que a
sugestão fosse escrupulosamente obedecida. Como resultado, Anne teve o
verão dourado de sua vida no que se referia a liberdade e traquinagens. Ela
caminhou, remou, colheu frutinhas e sonhou, para a satisfação de seu
coração; e quando setembro chegou, tinha os olhos brilhantes e alertas, com
passos que teriam satisfeito o doutor de Spencervale, e um coração cheio de
ambição e entusiasmo novamente.
— Sinto que tenho ânimo para estudar com toda a força e vigor! –
declarou, quando trouxe seus livros do sótão – Oh, bons e velhos amigos,
estou contente de ver suas honestas faces novamente; sim, mesmo você,
Geometria. Tive um verão perfeitamente lindo, Marilla, e agora estou
exultando como um homem forte para correr a corrida, como Mr. Allan disse
domingo passado. Não são magníficos os sermões de Mr. Allan? Mrs. Lynde
diz que ele tem melhorado a cada dia, o que significa que alguma igreja da
cidade logo irá arrebatá-lo, e então seremos abandonados e teremos que nos
virar para achar algum outro pregador imaturo. Mas não vejo utilidade em
me preocupar antecipadamente com as coisas, você vê, Marilla? Acho que
seria melhor somente apreciar Mr. Alan enquanto o temos. Se eu fosse
homem, acho que seria um ministro. Eles podem ser uma influência para o
bem, se sua teologia for profunda; e deve ser emocionante pregar
esplêndidos sermões e comover o coração de seus ouvintes. Por que
mulheres não podem ser ministras, Marilla? Perguntei isto a Mrs. Lynde e
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ela ficou perplexa, e disse que seria uma coisa escandalosa. Contou-me que
nos Estados Unidos é permitida a ordenação de ministras, e ela acredita que
existam algumas, mas que dá graças a Deus que aqui no Canadá ainda não
chegamos neste estágio, e que espera que nunca chegue. Mas não entendo a
razão! Acho que mulheres seriam excelentes ministras. Quando há uma
reunião social a ser organizada, ou um chá para a igreja, ou qualquer outra
coisa para arrecadar dinheiro, as mulheres têm que se virar e fazer o
trabalho. Estou certa de que Mrs. Lynde pode orar tão bem quanto o
Superintendente Bell, e não tenho dúvidas de que pode pregar também, se
tiver um pouco de prática.
— Sim, acredito que ela possa – concordou Marilla, secamente –, ela
prega muitos sermões não oficiais. Ninguém tem oportunidade de fazer algo
errado em Avonlea sob a supervisão de Rachel.
— Marilla – disse Anne, em tom de confidência – quero lhe contar
uma coisa e perguntar o que você acha sobre isso. É algo que tem me
preocupado terrivelmente, especialmente nos domingos à tarde, que é o
momento em que penso sobre tais assuntos. Eu quero muito ser uma boa
garota; e quando estou com você, ou com Mrs. Allan, ou com Miss Stacy,
desejo isso mais do que nunca, e quero fazer somente o que agrada a vocês e
o que aprovam. Mas na maioria das vezes quando estou com Mrs. Lynde, eu
me sinto desesperadamente má, e é como se eu quisesse fazer exatamente o
que ela diz que não devo. Sinto-me irresistivelmente tentada. Agora, por que
você acha que eu me sinto assim? Acha que é porque eu sou muito má, e que
não posso me regenerar?
Por um instante, Marilla pareceu estar em dúvida. Então começou a
rir.
— Se você é, acho que também sou, Anne, pois Rachel frequentemente
me causa exatamente o mesmo efeito. Às vezes acho que ela teria mais
influência para o bem, usando suas palavras, se não ficasse atazanando os
outros para serem corretos. Deveria haver um mandamento especial contra
atazanar. Mas eu não deveria falar assim. Rachel é uma boa mulher cristã e
faz tudo por bem. Não há em Avonlea um coração mais nobre, e nunca se
esquiva de sua parte no trabalho.
— Estou contente em saber que você sente o mesmo – respondeu
Anne, decidida –, é tão encorajador! Não vou me preocupar tanto com isso,
agora. Mas ouso dizer que terei outras coisas para me preocupar. A todo o
momento chegam novas coisas – coisas que me deixam perplexa, sabe. Você
responde uma pergunta, e imediatamente surge outra. Há tantas coisas para
serem ponderadas e decididas quando se está crescendo. Fico ocupada o
tempo todo, ponderando e decidindo o que é certo. Crescer é uma coisa
muito séria, não é, Marilla? Mas quando tenho amigos tão bons quanto você
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Capítulo XXXII
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disse que isto seria cansativo e nos confundiria. Temos que sair para caminhar
e dormir cedo, e procurar não pensar nos exames, de modo algum! É um bom
conselho, mas creio que será bem difícil segui-lo. Prissy Andrews contou que
ficou acordada durante metade da noite para fazer uma revisão, em cada dia
de sua semana de Admissão, e eu estava determinada a ficar sentada
estudando pelo menos o mesmo tanto que ela ficou. Sua tia Josephine foi tão
gentil por ter me convidado para ficar em Beechwood enquanto eu estiver na
cidade!
— Você vai me escrever enquanto estiver lá, não vai?
— Escreverei na terça-feira à noite para contar como foi o primeiro dia
– prometeu Anne.
— Não arredarei o pé dos correios na quarta-feira – prometeu Diana.
Anne viajou para a cidade na segunda-feira seguinte e, na quarta-feira,
Diana estava nos correios para buscar sua carta, como haviam acertado.
“Querida Diana (escreveu Anne),
Aqui é noite de terça-feira, e estou escrevendo da biblioteca de
Beechwood. Noite passada eu estava horrivelmente solitária em meu quarto, e
queria tanto que você estivesse comigo. Não pude “estudar”, pois prometi a
Miss Stacy não fazê-lo, mas foi tão difícil me manter afastada dos livros como
costumava ser difícil evitar ler romances antes de estudar.
Esta manhã, Miss Stacy veio me acompanhar até Queen’s Academy, e
passamos para buscar Jane, Ruby e Josie no caminho. Ruby me pediu para
tocar em suas mãos, e estavam frias como o gelo. Josie me disse que eu parecia
não ter pregado o olho, e que não acreditava que eu era forte o suficiente para
suportar a rotina do curso de magistério, mesmo que eu conseguisse passar.
Mesmo agora há momentos e ocasiões em que percebo que não tenho logrado
avanços em meus esforços para gostar de Josie Pye!
Quando chegamos a Queen’s, havia um grande número de estudantes
vindos de todas as partes da Ilha. A primeira pessoa que vi foi Moody
Spurgeon, sentado nos degraus em frente ao prédio, murmurando para si
mesmo. Jane perguntou a ele que raios estava fazendo, e ele respondeu que
estava repetindo a tabuada de multiplicação uma e outra vez para acalmar
seus nervos, e que pelo amor de Deus não o interrompesse, porque se parasse
por um momento ficaria com medo e esqueceria tudo que sabia; mas a
tabuada mantinha todas as informações firmes em seus devidos lugares!
Quando fomos designados para nossas salas, Miss Stacy teve de nos
deixar. Jane e eu sentamos juntas e eu a invejei, pois estava tão composta. A
boa, tranquila e sensata Jane não precisava de nenhuma tabuada! Perguntava-
me se minha aparência estava tão horrível como eu me sentia e se alguém
mais na sala podia ouvir os batimentos tão evidentes do meu coração. Então
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que passou uma era desde que você foi para a cidade e oh, Anne, como você se
saiu?
— Muito bem, eu acho, em todas as matérias, menos Geometria. Não sei
se eu passei nessa prova ou não, e tenho um assustador, angustiante
pressentimento de que não passei. Oh, como é bom estar de volta! Green
Gables é o lugar mais querido, mais encantador lugar do mundo!
— Como foram os outros?
— As meninas dizem que têm certeza de que não passaram, mas acho
que foram muito bem. Josie diz que Geometria foi tão fácil, que uma criança de
dez anos poderia ter feito! Moody ainda pensa que falhou em História e Charlie
disse que foi mal em Álgebra. Mas nós realmente não sabemos nada sobre isso,
e não saberemos antes da lista de aprovados ser divulgada. Sairá daqui a
quinze dias. Imagine viver quinze dias em tal suspense! Queria poder dormir e
só acordar quando tudo isso tiver acabado.
Diana sabia que seria inútil perguntar a Anne como ela achava que
Gilbert Blythe tinha se saído, então somente comentou:
— Oh, todos irão passar. Não se preocupe.
— De qualquer modo, prefiro não ser aprovada, a ser e não estar no
topo da lista – Anne falou rapidamente, querendo dizer, em realidade – e Diana
sabia disso – que o sucesso seria incompleto e amargo se ela não ficasse à
frente de Gilbert Blythe.
Com essa finalidade em vista, Anne tinha esgotado cada um de seus
nervos durante os exames – assim como Gilbert. Eles tinham passado um pelo
outro, na rua, uma dúzia de vezes, sem nenhum sinal de que se conhecessem;
e, em todas essas vezes, Anne mantivera sua cabeça um pouco mais alta e
desejara, um pouco mais veementemente, ter feito as pazes com ele quando
pediu; e prometera, com um pouco mais de determinação, superá-lo nos
exames. Ela sabia que toda a juventude de Avonlea se perguntava qual dos dois
viria primeiro; sabia que Jimmy Glover e Ned Wright tinham feito uma aposta
sobre quem estaria no topo da lista, e que Josie Pye dissera que não tinha
nenhuma dúvida de que Gilbert seria o primeiro. E Anne sentia que sua
humilhação seria insuportável se falhasse.
Entretanto, ela tinha outro motivo mais nobre para desejar se sair bem.
Ela queria “estar no topo” por causa de Matthew e Marilla – especialmente
Matthew. Ele tinha declarado sua convicção de que ela “iria bater toda a Ilha”.
Aquilo, Anne sentiu, seria um desejo absurdo, mesmo nos sonhos mais
impossíveis. Mas ela esperava fervorosamente que estivesse pelo menos entre
os dez primeiros colocados, e então veria os gentis olhos castanhos de
Matthew brilharem de orgulho por sua realização. Aquela, ela sentiu, seria
certamente a doce recompensa por todo seu trabalho duro e paciente luta
contra as enfadonhas equações e conjugações.
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Capítulo XXXIII
O Concerto no Hotel
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arruma assim. Colocarei esta rosa branca atrás de sua orelha. Só havia uma
na minha roseira, e guardei-a para você.
— Devo colocar minhas contas de pérola? – perguntou Anne —
Matthew comprou para mim uma gargantilha, na cidade, semana passada, e
sei que ele gostaria de me ver com elas.
Diana franziu os lábios, inclinou criticamente a cabeça de negros
cabelos, e finalmente se pronunciou a favor das contas, as quais foram, em
seguida, amarradas ao redor da garganta branca e delgada de Anne.
— Existe algo tão distinto em você, Anne – disse Diana, com uma
admiração isenta de qualquer partícula de inveja — Tem um modo de
sustentar a cabeça com um ar tão especial. Suponho que seja sua silhueta.
Eu sou gorducha, simplesmente um bolinho de massa. Sempre tive receio de
chegar a ser, mas agora sei que sou assim. Então, suponho que apenas tenho
que me resignar.
— Mas você tem covinhas – retorquiu Anne, sorrindo afetuosamente
para o semblante bonito e vivaz que tinha perto de si —, covinhas adoráveis,
como pequenas mordidas no creme. Eu desisti da minha esperança de tê-las.
As covinhas dos meus sonhos nunca se tornarão realidade, mas tantos dos
meus sonhos se realizaram, que não devo reclamar. Estou pronta agora?
— Prontinha! – assegurou Diana, quando Marilla apareceu na porta, a
figura muito magra com mais cabelos grisalhos que outrora e não menos
ângulos, mas com o rosto certamente mais terno — Entre e veja nossa
oradora, Marilla. Não está adorável?
Marilla emitiu um som entre uma fungada e um grunhido.
— Ela me parece limpa e decente. Gosto deste penteado. Mas
suponho que irá arruinar o vestido viajando com ele até lá, no pó e no
orvalho, e parece muito fino para estas noites úmidas. De qualquer maneira,
o organdi é o tecido menos útil do mundo, e eu disse isso a Matthew quando
o comprou. Mas é inútil falar qualquer coisa para ele hoje em dia. Já foi o
tempo em que escutava meus conselhos, agora compra as coisas para Anne
mesmo sem necessidade, e os vendedores em Carmody sabem que podem
enganá-lo com qualquer coisa. Basta que lhe digam que é bonito e elegante,
para que Matthew ponha o dinheiro no balcão. Lembre-se de manter sua
saia longe das rodas, Anne, e vista o seu casaco quentinho.
Então Marilla desceu as escadas, pensando orgulhosamente no quão
adorável Anne estava,
“um raio de luar da testa à coroa”,
e lamentando não poder ir ao concerto para ouvir sua menina recitar.
— Pergunto-me se está mesmo muito úmido para meu vestido.
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energias. Tudo era tão estranho, tão brilhante, tão desconcertante – as filas
de damas em vestidos de gala, as fisionomias críticas, toda a atmosfera de
riqueza e cultura em torno dela. Isto tudo era muito diferente dos bancos
simples no Clube de Debates, cheios dos semblantes simpáticos e familiares
dos amigos e vizinhos. “Estas pessoas daqui”, ela pensou, “seriam juízes
implacáveis”. Talvez, tais quais a moça da renda branca, eles antecipassem
divertimento em seus “rústicos” esforços. Sentiu-se, então, miserável,
desesperançada e desamparadamente envergonhada. Seus joelhos tremeram,
seu coração se agitou, um horrível desfalecimento veio sobre ela; Anne não
poderia pronunciar uma palavra, e teria fugido da plataforma no momento
seguinte, apesar de sua humilhação – esta, ela pensou, deveria ser sua porção
se ela assim o fizesse.
Mas, de repente, ante seus assustados olhos dilatados, surgiu a
imagem de Gilbert Blythe no fundo do salão, inclinado, com a expressão
sorridente – sorriso este que, para Anne, pareceu ao mesmo tempo
triunfante e sarcástico. Em verdade não era nada disso. Gilbert estava
meramente sorrindo, apreciando a apresentação em geral; e, em particular,
pelo efeito produzido pela silhueta branca e delgada de Anne, e sua face
angelical contra o fundo de folhas de palmeira. Josie Pye, a quem ele tinha
acompanhado à programação, estava sentada ao lado dele, e seu rosto
certamente era triunfante e sarcástico. Mas Anne não viu Josie, e não teria se
importado se a tivesse visto. Ela inspirou profundamente e ergueu a cabeça,
sacudida pelo orgulho, coragem e determinação, como em um choque elétrico.
Não fracassaria diante de Gilbert Blythe – ele nunca teria motivos para rir
dela, nunca, nunca! O medo e o nervosismo desapareceram, e começou a
declamar, com a voz clara e doce alcançando o canto mais longínquo do
salão sem nenhum tremor ou falha. Seu autocontrole estava totalmente
recuperado e, como reação àquele terrível momento de fraqueza, declamou
como nunca tinha feito antes. Quando terminou houve uma explosão de
aplausos honestos. Anne, voltando para seu assento, ruborizada pela
timidez e deleite, viu sua mão ser vigorosamente sacudida pela corpulenta
dama em seda rosa.
— Minha querida, você foi esplêndida! – bufou — Chorei como um
bebê, realmente chorei. Aí está, estão pedindo bis, estão decididos a terem
você de volta!
— Oh, não posso ir – disse Anne, confusa — Mas ainda assim devo ir,
ou Matthew ficará desapontado. Ele disse que iriam pedir bis.
— Então não desaponte Matthew – concluiu a rosada senhora,
sorrindo.
Sorrindo corada, com os olhos límpidos, Anne voltou agilmente para
o palco e recitou uma amena e engraçada seleção, que cativou ainda mais
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Capítulo XXXIV
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você pudesse ter permanecido uma menininha, mesmo com todas as suas
excentricidades. Você está crescida agora, e está indo embora, e está tão alta e
chique e tão – tão inteiramente diferente nesse vestido – como se já não
pertencesse mais a Avonlea – e eu simplesmente me senti tão solitária ao
pensar que tudo acabou.
— Marilla! – Anne se sentou no colo dela, sobre o avental de algodão
listrado; tomou seu rosto enrugado nas mãos, e fitou seus olhos, séria e
carinhosa – Não estou nem um pouco mudada; não mesmo. Estou somente
podada e crescida. Meu eu verdadeiro, aqui dentro, ainda é o mesmo. Não
fará a mínima diferença o lugar para onde eu vou, ou o quanto minha
aparência mude; no meu coração serei sempre sua pequenina Anne, que
amará você e Matthew e a querida Green Gables mais e melhor, a cada dia de
sua vida.
Anne encostou sua bochecha jovem e fresca na bochecha descorada de
Marilla, e estendeu a mão para afagar o ombro de Matthew. Marilla teria
dado tudo que possuía para ter este poder de expressar seus sentimentos em
palavras, mas a natureza e o hábito decidiram o contrário, e ela pôde apenas
colocar os braços em torno da cintura de Anne e segurá-la carinhosamente
junto ao coração, desejando que ela nunca precisasse ir embora.
Matthew, com uma umidade suspeita nos olhos, se levantou e saiu
para o campo. Sob as estrelas da azulada noite de verão, cruzou o quintal,
agitado, até a porteira abaixo dos álamos.
— Bem, ora, acho que ela não foi muito mimada! – murmurou,
orgulhoso – Acho que ter metido meu bedelho uma vez ou outra não causou
muito prejuízo, afinal de contas. Ela é inteligente e bonita, e amável também,
o que é melhor do que todo o resto. Anne tem sido uma grande bênção para
nós, e nunca houve um engano mais afortunado do que este cometido por
Mrs. Spencer – se é que foi coisa da sorte. Não acredito que tenha sido nada
disso. Foi a Providência, pois creio que o Altíssimo viu que precisávamos
dela.
O dia da partida de Anne para a cidade finalmente chegou. Ela e
Matthew viajaram em uma bonita manhã de setembro, após uma chorosa
despedida com Diana e outra mais prática e sem lágrimas com Marilla – ao
menos da parte desta. Porém, quando Anne saiu, Diana secou as lágrimas e
foi a um piquenique na praia de White Sands com seus primos de Carmody,
onde conseguiu se divertir toleravelmente bem. Marilla, entretanto, lançou-
se ferozmente a realizar trabalhos inúteis e se manteve ocupada durante
todo o dia com o tipo mais amargo de dor no coração – uma dor que
queimava e atormentava, e não podia ser desfeita com lágrimas. Mas naquela
noite, quando foi se deitar, intensa e miseravelmente consciente de que o
quartinho do lado leste do sótão no final do corredor estava inabitado de
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vida juvenil e que sua quietude não era abalada por nenhuma respiração
suave, Marilla enterrou a face no travesseiro e chorou por sua menininha
com aflitos soluços que a surpreenderam, quando finalmente se tornou
calma o bastante para refletir no quão moralmente errado deve ser
demonstrar tal comportamento por causa de outra criatura pecadora.
Anne e os demais estudantes de Avonlea chegaram à cidade bem a
tempo de correr para a Queen’s Academy. Aquele primeiro dia transcorreu
agradavelmente em um redemoinho de emoções, encontrando os novos
estudantes, aprendendo a conhecer os professores de vista e sendo
agrupados e organizados nas salas de aula. Seguindo o conselho de Miss
Stacy, Anne tencionava cursar o Segundo Ano; e Gilbert Blythe escolheu fazer
o mesmo. Se conseguissem, isto significava tomar a licenciatura de
professora da Primeira Classe em um ano, ao invés de dois. Mas isto também
significava uma quantidade de trabalho maior e mais difícil. Jane, Ruby, Josie,
Charlie e Moody, não sendo perturbados pelo impulso da ambição, estavam
satisfeitos em cursar a Segunda Classe. Anne percebeu francamente a
angústia da solidão quando se encontrou na sala com outros cinquenta
estudantes, todos desconhecidos, exceto o rapaz alto de cabelos castanhos do
outro lado da sala; e, conhecendo-o como conhecia, isto não lhe servia de
muito consolo – refletiu, com pessimismo. Ainda assim, ela estava
inegavelmente contente por estarem na mesma classe; a antiga rivalidade
ainda poderia ser levada adiante, e Anne dificilmente saberia o que fazer se
isso não existisse.
“Não me sentiria cômoda sem isso” – pensou – “Gilbert parece
tremendamente determinado. Suponho que esteja decidindo, aqui e agora, a
ganhar a medalha. Que queixo esplêndido ele tem! Nunca tinha percebido
isso antes. Queria que Jane e Ruby também estivessem na Primeira Classe.
Suponho que não me sentirei mais como um gato em um sótão estranho
quando fizer amizades. Pergunto-me quais das meninas daqui serão minhas
amigas. É uma especulação realmente muito interessante. Está certo que
prometi a Diana que nenhuma garota da Queen’s, não importa o quanto eu
venha a gostar dela, chegará a ser tão querida quanto Diana é; mas tenho
‘segundas-melhores afeições’ o suficiente para conceder. Gosto da aparência
daquela moça com olhos castanhos e corpete carmim. Ela parece vivaz e
corada; ali, aquela bela pálida, olhando para a janela. Ela tem um cabelo
adorável, e parece como se soubesse uma coisa ou duas sobre sonhos.
Gostaria de conhecê-las, conhecê-las bem – bem o suficiente para andar de
braços dados, e chamá-las por seus apelidos. Mas neste momento eu não as
conheço, e nem elas a mim, e é provável que não queiram particularmente
me conhecer. Oh, como estou só!”
No entanto, Anne se sentiu ainda mais solitária quando se encontrou
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Capítulo XXXV
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Miss Stacy haviam alcançado seus postos na vasta arena do curso acadêmico.
Anne trabalhou duro e de modo inabalável. Sua rivalidade com Gilbert
era tão intensa quanto havia sido no tempo da escola de Avonlea, embora não
fosse do conhecimento de toda a classe; mas de alguma maneira, a
mordacidade se esvaíra. Anne não queria mais ganhar com o objetivo de
derrotar Gilbert, mas sim pela orgulhosa consciência de uma vitória bem
conquistada sobre um adversário digno. Valeria a pena vencer, mas ela não
mais pensava que a vida seria insuportável se não fosse a vencedora.
Apesar das aulas, os estudantes encontraram oportunidades para
bons momentos. Anne passava grande parte de suas horas livres em
Beechwood e, aos domingos, geralmente jantava lá e saía para a igreja com
Miss Barry. Esta, como Anne admitira, tinha envelhecido, mas seus olhos
negros não haviam perdido o brilho, nem o vigor de sua língua diminuíra o
mínimo sequer. Entretanto, ela jamais a afiava em Anne, que permanecia
sendo a principal favorita da crítica senhora.
— Esta Menina-Anne melhora todo o tempo! – ela disse – Canso-me
das outras meninas; há sempre uma mesmice irritante e contínua em todas
elas! Anne tem tantas tonalidades quanto um arco-íris, e cada nuance é a
mais bela enquanto dura. Não sei se permanece tão divertida como era
quando criança, mas ela faz com que eu a ame, e eu gosto das pessoas que me
fazem amá-las. Poupa-me de muitos incômodos ao me obrigar a amá-las.
Então, quase antes que percebessem, a primavera havia chegado; lá
em Avonlea, as flores de maio estavam despontando rosadas nos solos secos
e áridos onde as nevascas se demoravam; e as “brumas verdes” se estendiam
nos bosques e nos vales. Porém, em Charlottetown, os atormentados
estudantes da Queen’s Academy não pensavam e nem falavam em nada que
não fosse a respeito dos exames finais.
— Parece impossível que o semestre esteja quase acabando! – disse
Anne – Ora, no outono passado tudo parecia tão distante, com todo um
inverno de estudos e aulas. E aqui estamos, com os exames assomando,
iminentes, na próxima semana. Meninas, às vezes sinto como se essas provas
significassem tudo, mas quando olho para os brotos crescendo na
castanheira e a neblina azulada pairando no ar ao final da rua, elas não
parecem nem a metade importante.
Jane, Ruby e Josie, que tinham acabado de chegar, não partilhavam
desta visão das coisas. Para elas, a chegada dos exames era constantemente
muito importante, sem dúvida – muito mais importante do que os brotos de
castanheira ou as neblinas de maio. Estava tudo muito bem para Anne – que
ao menos estava certa de ser aprovada – ter seus momentos de menosprezar
os exames; mas quando todo o seu futuro dependia deles – como as meninas
realmente pensavam que o delas dependia –, não era possível encará-los tão
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filosoficamente.
— Perdi três quilos nas duas últimas semanas – suspirou Jane –, e é
inútil falar “não se preocupe”. Eu vou me preocupar. Preocupação ajuda em
algumas coisas; é como se você estivesse fazendo algo quando está se
preocupando. Vai ser terrível se eu falhar em obter minha licenciatura depois
de ter estudado na Queen’s durante o inverno inteiro e gastado tanto
dinheiro.
— Eu não me importo – retrucou Josie Pye –, se eu não passar neste
ano, estarei de volta no próximo. Meu pai pode arcar com as despesas e me
mandar de volta. Anne, Frank Stockley contou que o Professor Tremaine
disse que Gilbert Blythe certamente irá ganhar a medalha, e que é provável
que Emily Clay obtenha a bolsa Avery.
— Talvez isso faça com que eu me sinta mal amanhã, Josie – sorriu
Anne – mas agora, sinto honestamente que, contanto que eu saiba que as
violetas lilás estão nascendo sob o vale de Green Gables, e que as pequenas
samambaias estão apontando as cabeças na Travessa dos Amantes, não me
importa muito o fato de eu ganhar ou não a bolsa. Tenho feito meu melhor e
começo a entender o que significa “o prazer da luta”. Depois de lutar e vencer,
a melhor coisa é lutar e fracassar. Meninas, não vamos falar sobre os exames!
Olhem para a abóbada verde-clara no céu, acima daquelas casas, e imaginem
como deve estar sobre o bosque de faia púrpura-escura lá em Avonlea.
— O que você vai vestir para a cerimônia de graduação, Jane? –
perguntou a prática Ruby.
Jane e Josie responderam de prontidão e a tagarelice girou para o
redemoinho da moda. Mas Anne, com seus cotovelos apoiados no peitoril da
janela, suas bochechas suavemente encostadas nas mãos unidas e seus olhos
cheios de visões, olhava despreocupadamente por sobre os telhados das
casas e pináculos da cidade para aquela gloriosa abóbada de céu poente, e
tecia seus sonhos de um futuro provável com os fios dourados de seu próprio
otimismo juvenil. Todo o Além era seu, com suas rosadas possibilidades
espreitando nos anos futuros – cada ano uma rosa de promessa a ser tecida
em uma grinalda imortal.
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Capítulo XXXVI
A Glória e o Sonho
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Capítulo XXXVII
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escuridão ao lado da janela e orou, fitando as estrelas além das colinas – sem
lágrimas, somente aquela mesma dor entorpecente de tristeza que continuava
doendo – até cair no sono, exausta pelos tormentos e emoções do dia.
Mas no meio da noite despertou, com a calmaria e a escuridão ao seu
redor, e a lembrança do dia caiu sobre ela como uma onda de pesar. Pôde ver
Matthew sorrindo para ela como tinha feito quando se separaram na porteira,
naquele último entardecer – ela podia ouvir sua voz dizendo “Minha menina –
minha menina de quem eu tenho tanto orgulho”. Então as lágrimas vieram, e
Anne pôs para fora toda a dor de seu coração. Marilla ouviu o choro e rastejou
até o quarto para confortá-la.
— Calma, calma; não chore assim, querida. Isto não vai trazê-lo de
volta. E – e – não é certo chorar desse jeito. Eu sabia disso hoje, mas não pude
evitar. Ele sempre foi um irmão tão bondoso e querido para mim – mas Deus
sabe o que é melhor.
— Oh, me deixe chorar, Marilla! – soluçou Anne – As lágrimas não me
machucam tanto quanto aquela dor. Fique aqui comigo um pouquinho e me
abrace – assim. Eu não poderia pedir que Diana ficasse; ela é boa, amável e
gentil, mas essa dor não é dela; ela está do lado de fora e não poderia chegar
perto o bastante do meu coração para me ajudar. É uma dor só nossa, minha e
sua. Oh, Marilla, o que vamos fazer sem ele?
— Nós temos uma à outra, Anne. Não sei o que eu faria se você não
estivesse aqui, se você nunca tivesse vindo! Oh, Anne, sei que tenho sido um
tanto rígida e austera com você, talvez – mas, mesmo com tudo isso, você não
deve pensar que eu não a ame tanto quanto Matthew amou. Quero falar agora,
enquanto posso. Para mim, nunca foi fácil expressar as coisas que estão no
meu coração; mas em ocasiões como esta, fica um pouco mais fácil. Eu amo
você, e a estimo tanto quanto se fosse filha da minha própria carne e do meu
próprio sangue, e você tem sido minha alegria e conforto desde que chegou a
Green Gables.
Dois dias depois, carregaram Matthew Cuthbert pela porta da frente de
sua residência, para longe dos campos que tinha lavrado, dos pomares que
tinha amado e das árvores que tinha plantado; e então Avonlea retornou à
serenidade habitual, e mesmo Green Gables deslizou de volta a sua antiga
rotina; e o trabalho foi feito e as tarefas cumpridas com a mesma regularidade
de antes, ainda que sempre com a dolorosa sensação de “perda de todas as
coisas familiares”. Anne, para quem a dor do luto era novidade, achou quase
lamentável que fosse assim – que elas pudessem prosseguir, da forma como
eram antes, sem Matthew. Ela sentiu algo como vergonha e remorso quando
descobriu que o nascer do sol atrás dos pinheiros e os brotos rosados abrindo
no jardim lhe causaram a antiga invasão de contentamento quando os
contemplava; que as visitas de Diana eram agradáveis e que seus gracejos e
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— O Doutor Spencer veio aqui enquanto você estava fora – disse Marilla
– Ele falou que o especialista estará na cidade amanhã, e insiste que devo ir
examinar meus olhos. Suponho que seja melhor ir mesmo, e resolver isto.
Ficarei ainda mais agradecida se o homem puder me dar o grau exato das
lentes que serão adequadas aos meus olhos. Não vai se importar de ficar
sozinha em casa enquanto eu estiver fora, não é mesmo? Martin terá que me
levar, e amanhã é dia de passar roupa e fazer bolo.
— Vou ficar bem. Diana vem me fazer companhia. Vou me encarregar
de passar a roupa e cozinhar maravilhosamente; não precisa temer que eu
vá engomar os lenços ou condimentar o bolo com linimento.
Marilla riu.
— Que menina você era para cometer erros naqueles dias, Anne!
Estava sempre se metendo em confusão. Eu costumava pensar que você
estava possuída. Lembra-se de quando pintou seu cabelo?
— Sim, certamente. Jamais esquecerei disso! – sorriu Anne, tocando a
pesada trança que estava enrolada em torno de sua cabeça bem formada – Às
vezes acho graça, agora, quando penso na preocupação que eu tinha com meu
cabelo; mas não acho muita graça, porque naquela época era uma preocupação
existente de fato. Sofri terrivelmente por causa do meu cabelo e minhas
sardas. As sardas se foram de verdade, e as pessoas são gentis o bastante para
dizer que meu cabelo está da cor castanho-avermelhado agora – todas, exceto
Josie Pye. Ela me informou ontem que realmente acha que ele está mais ruivo
do que nunca, ou que, talvez, meu vestido preto o fizesse parecer mais ruivo; e
me perguntou se as pessoas ruivas conseguiam, algum dia, se acostumar com
seus cabelos. Marilla, estou quase decidida a desistir de tentar gostar de Josie
Pye. Tenho feito o que um dia chamei de esforços heroicos para gostar dela,
mas Josie Pye não quer que gostem dela.
— Josie é uma Pye – afirmou Marilla, mordaz –, então ela não pode
evitar ser desagradável. Suponho que pessoas daquele tipo tenham algum
propósito na sociedade, mas devo dizer que conheço tanto essa tal finalidade
quanto conheço a utilidade dos cardos. Josie vai lecionar?
— Não, ela vai voltar para a Queen’s no próximo ano, assim como
Moody Spurgeon e Charlie Sloane. Jane e Ruby vão dar aulas e as duas já têm
suas escolas – Jane em Newbridge, e Ruby em algum lugar no oeste.
— Gilbert Blythe vai lecionar também, não vai?
— Sim – por um curto período.
— Que rapaz bonito ele é! – comentou Marilla, distraidamente – Eu o vi
na igreja no último domingo, e me pareceu tão alto e varonil. Ele é
parecidíssimo com o pai quando tinha a mesma idade. John Blythe era um bom
rapaz. Costumávamos ser muito bons amigos, ele e eu. O povo dizia que ele era
meu namorado.
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Capítulo XXXVIII
A Curva na Estrada
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retorno para casa! Naquela ocasião ela estava cheia de esperança e alegria, e o
futuro parecia róseo de promessas. Anne sentiu como se tivesse vivido muitos
anos desde aquele instante, mas antes de ir para a cama havia um sorriso em
seus lábios e paz no coração. Havia encarado corajosamente o seu dever, e
encontrara nele um amigo – como o dever sempre é quando o encaramos com
franqueza.
Certa tarde, alguns dias depois, Marilla entrou com passos lentos pelo
jardim da frente, onde estivera conversando com um visitante – um homem a
quem Anne conhecia somente de vista como Mr. Sadler, de Carmody. Anne
perguntou a si mesma o que ele poderia ter dito para trazer aquele olhar ao
rosto de Marilla.
— O que Mr. Sadler queria, Marilla?
Ela se sentou ao lado da janela e olhou para Anne. Havia lágrimas em
seus olhos, desafiando a proibição do oftalmologista; e sua voz falhou quando
disse:
— Ele soube que eu vou vender Green Gables e está interessado em
comprá-la.
— Comprar! Comprar Green Gables? – perguntou Anne, achando que
não tinha escutado bem — Oh, Marilla, você não pretende vender Green
Gables!
— Anne, eu não sei o que mais o que se pode fazer. Tenho pensado
muito. Se a minha visão estivesse mais forte, eu poderia ficar aqui e
administrar as coisas, com um bom ajudante. Mas do jeito que estou, não
consigo! Eu posso vir a perder completamente a visão e, de qualquer maneira,
serei inútil para administrar tudo. Oh, nunca pensei que viveria para ver o dia
em que teria de vender minha casa. Mas as coisas só iriam de mal a pior, cada
vez mais, até que ninguém quisesse comprá-la. Cada centavo do nosso
dinheiro se foi com aquele banco; e tenho que pagar algumas notas
promissórias que Matthew emitiu no outono passado. Mrs. Lynde me
aconselhou a vender a fazenda e me hospedar em algum lugar – com ela, eu
suponho. Não vou vender por um preço alto, pois a fazenda é pequena, e a casa
e os celeiros são antigos. Mas creio que será o bastante para eu viver. Estou
grata por você estar provida com aquela bolsa de estudos, Anne. Lamento
porque você não terá um lar para recebê-la nas férias, mas suponho que você
irá se ajeitar de alguma forma.
Marilla desabou e chorou amargamente.
— Você não deve vender Green Gables – disse Anne, resolutamente.
— Oh, Anne, eu não queria ter de vendê-la! Mas veja por si mesma. Não
posso ficar aqui sozinha. Ficaria louca de aflição e solidão. E eu ficaria cega –
sei que ficaria.
— Você não terá que ficar aqui sozinha, Marilla. Eu estarei com você.
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— Nem um pouco. Terei êxito. Oh, não vou me exceder. Como diz a
‘esposa de Josiah Allen’,[42] serei mejum. Visto que não tenho vocação para os
sofisticados trabalhos manuais, terei bastante tempo livre nas longas noites de
inverno. Vou lecionar em Carmody, a senhora sabe.
— Não sei, acho que não. Creio que vai trabalhar aqui mesmo em
Avonlea. Os membros do conselho diretor decidiram dar a vaga na escola para
você.
— Mrs. Lynde! – gritou Anne, erguendo-se com a surpresa — Ora,
pensei que tinham prometido a escola para Gilbert Blythe!
— E tinham prometido mesmo. Mas tão logo Gilbert soube que você
tinha solicitado a vaga, foi procurá-los – tiveram uma reunião na escola na
noite passada, sabe – e disse a eles que retirava a candidatura, sugerindo
que aceitassem você. Ele alegou que vai lecionar em White Sands.
Evidentemente ele sabia o quanto você queria ficar com Marilla, e devo dizer
que acho que foi realmente gentil e atencioso da parte dele, isto é que é. Foi
um verdadeiro sacrifício, também, pois ele terá que pagar pela hospedagem
em White Sands, e todos sabem que ele tem que economizar para a
faculdade. Então os membros do conselho diretor decidiram aceitar a sua
candidatura, Anne. Fiquei morrendo de felicidade quando Thomas chegou
em casa e me contou.
— Não sei se posso aceitar isso – murmurou Anne – quero dizer, não
acho que devo deixar Gilbert fazer tal sacrifício por – por mim.
— Creio que você não possa mais impedi-lo, agora. Ele já assinou os
papeis com os diretores de White Sands; portanto, não faria nenhum bem a ele
se você recusasse. Você certamente tem que aceitar a escola! Vai se sair muito
bem, agora que não haverá mais nenhum Pye indo às aulas. Josie foi a última
da família – e que bela coisa ela era, isto é que é! Houve um Pye ou outro
estudando na escola de Avonlea pelos últimos vinte anos, e tenho para mim
que a missão deles na vida era recordar aos professores que a Terra não é o lar
para eles! Deus do céu! O que significam aquelas luzes brilhando e piscando lá
na janela dos Barry?
— Diana está sinalizando para que eu vá até lá – sorriu Anne –, nós
continuamos com o mesmo velho costume, a senhora sabe. Com licença um
instante, vou correr até Orchard Slope e ver o que ela quer.
Anne correu como um cervo pela ladeira dos trevos, e desapareceu nas
sombras dos pinheiros da Floresta Assombrada. Mrs. Lynde a contemplou com
indulgência.
— Ela ainda tem uma boa porção de menininha, em alguns aspectos.
— E ainda tem muito mais de mulher, em outros – retorquiu Marilla,
com um momentâneo retorno de sua velha rispidez.
Porém, a rispidez não era mais a característica marcante de Marilla,
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— Quem era aquele que vinha com você pela alameda, Anne?
— Gilbert Blythe – respondeu Anne, envergonhada ao perceber que
estava ruborizando – Encontrei com ele na colina dos Barry.
— Não sabia que você e Gilbert eram tão bons amigos, a ponto de
ficar meia hora em pé na porteira conversando com ele – provocou Marilla,
com um sorriso seco.
— Não éramos; temos sido bons adversários. Mas decidimos que será
mais sensato se formos amigos no futuro. Estivemos por meia hora ali
mesmo? Pareceu somente poucos minutos. Mas, veja, temos cinco anos de
conversas perdidas para pôr em dia, Marilla.
Anne se sentou junto a sua janela naquela noite, acompanhada por
uma alegre disposição. O vento soprava levemente nos ramos da cerejeira, e
o aroma de hortelã era transportado até o quarto. As estrelas cintilavam
acima dos pinheiros pontiagudos no vale, e a luz do quarto de Diana brilhava
à distância.
Os horizontes de Anne haviam se fechado desde aquela noite em que
se sentara ali, ao chegar da Queen’s Academy, mas ela sabia que se o
caminho colocado diante de seus pés deveria ser estreito, as flores de uma
calma felicidade nasceriam ao longo dele. A alegria do trabalho honesto, das
nobres aspirações e das agradáveis amizades deveria lhe pertencer; e nada
poderia apartá-la de seu direito de nascença à fantasia ou a um mundo ideal
de sonhos. E sempre haveria uma curva na estrada!
— “Deus está no céu, e tudo está de acordo com o mundo”[43] –
suspirou Anne, suavemente, suavemente.
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