A Luz, o Tempo e o Movimento
A Luz, o Tempo e o Movimento
A Luz, o Tempo e o Movimento
Roberto Grosseteste
A luz, o tempo
e o movimento
Edição bilíngüe
Tradução:
Renato Romano
Apresentação:
Raphael De Paola
A luz, o tempo e o movimento, Roberto Grosseteste
© Editora Concreta, 2016
Títulos originais:
De luce seu de inchoatione formarum
De finitate motus et temporis
O texto latino dos dois opúsculos deste volume é o da edição de Die Philosophischen Werke
des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln (Münster i. W., Aschendorff, 1912).
Ficha Catalográfica
Grosseteste, Roberto, 1168?-1253
G8786a A luz, o tempo e o movimento [livro eletrônico] / tradução de Renato Romano,
apresentação de Raphael De Paola. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016.
136p. :p&b ; 16 x 23cm
ISBN 978-85-68962-21-3
CDD-509.4
www.editoraconcreta.com.br
C OL EÇ ÃO ESC OL Á S T IC A
F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da
dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história
da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,
a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas
demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a
partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica
que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-
zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da
materia prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como
Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha
ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho
metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias
esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios
dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen
Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-
menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno:
o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em
ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras
obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-
tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios
filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-
centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter
atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar
diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da
desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual
fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a
política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas,
mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora
Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico
confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior
deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas
pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande
maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-
vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est
diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens,
para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-
gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes
que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-
pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas
raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-
rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em
tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto
foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a
certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada
terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com
edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo
de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-
te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-
mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será
o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.
Sidney Silveira
Coordenador da Coleção Escolástica
Agradecimentos aos colaboradores
Sobre a luz 83
“
S
e minha vista alcança mais longe é porque subi no ombro de gigantes”.
O juízo a que alude Newton nesse aforismo é tão verdadeiro e tão ób-
vio, que só pode parecer novidade para um recém-chegado ao mundo
do saber: de que outro modo, senão através da transmissão de pessoa a pessoa,
poderia o conhecimento se propagar, acumular e evoluir?
Quem quer que se disponha a trabalhar em algo não o faz nunca no vazio,
sendo obrigado a se inserir, conscientemente ou não, em alguma tradição de
conhecimento. Na verdade, a frase de Newton faz tanto sentido como expres-
são da transmissão do saber, que ela mesma tem uma tradição e uma história:
ela nasce mais de cinco séculos antes de Newton com o monge cristão de
orientação platônica Bernardo de Chartres, ao qual João de Salisbury atribui,
em seu Metalogicon, o pensamento de “nos comparar a anões montados sobre
os ombros de gigantes”. Desde a sua origem, a própria expressão passou por
* Raphael D. M. De Paola doutorou-se pelo CBPF em 2001 na área de Teoria Quântica de Campos.
Interessando-se pela fundamentação filosófica dos conceitos e teorias físicas, retirou-se da pesquisa
na universidade para dedicar-se ao estudo autônomo a fim de entender melhor de que trata a Física.
Desde então lecionou oito anos no Ensino Médio e atualmente leciona no Departamento de Física
da PUC-Rio. Traduziu para o português O Enigma Quântico – Desvendando a chave oculta (2011), de
Wolfgang Smith, e Física e Realidade – Reflexões Metafísicas sobre a Ciência Natural (2013), de Carlos
Casanova, ambos publicados pela Vide Editorial, Campinas, SP.
14 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
tantas transformações que chegou a poder ser usada, se dermos crédito à es-
peculação de Robert Crease, do modo sarcástico com que Newton a brandiu
contra seu rival Robert Hooke: ao fazê-lo, Newton quereria mostrar-se inde-
pendente das idéias de Hooke aludindo à baixa estatura física deste. i
O reconhecimento da importância de pensadores passados sobre os das
gerações posteriores é parte integrante de qualquer tradição, e quem quer que
não respeite essa cadeia de transmissão corre grande risco de só pronunciar
desatinos – e é praticamente inevitável que isso ocorra quando alguém se mete
a falar daquilo que não estudou. Desde que Aristóteles estabeleceu como ab-
solutamente necessária a ambientação do filósofo nas “opiniões dos sábios”,
sedimentando com isso um dos fundamentos do método filosófico-científico,
o conhecimento do status quaestionis tornou-se imperioso em qualquer campo
da atividade humana. E, claro, aquilo que conhecemos modernamente como
“ciência” não poderia fugir a esta regra. Não poderia nem foge, mas dá a pa-
recer que sim, ao menos com relação a uma época em particular: a ciência
praticada no período medieval, sobretudo pelos escolásticos.
Não há um só historiador da ciência que negue a este período o seu lugar
próprio no encadeamento das idéias que vêm desde a Grécia antiga até os tempos
de Kepler, Galileu e Descartes. E isto não apenas ao ponto de enxergarem na Es-
colástica vagas inspirações de princípio e de método, ou ainda de especulações me-
tafísicas que fizessem pouco mais que preparar o ambiente intelectual para futuras
descobertas; no campo das próprias descobertas científicas, não é mais possível
negar que muitos resultados difundidos e aproveitados posteriormente – no perí-
odo conhecido como “período clássico” da ciência moderna – foram conquistas
dos escolásticos. Mas, com relação à ciência medieval, e ao período medieval como
um todo, verifica-se hoje uma situação no mínimo curiosa: apesar de estarmos na
época que se gaba de sua fome pelo saber, que prega o “respeito aos especialistas”
e a ida às “fontes autorizadas”, a opinião média do homem educado moderno está
nos antípodas do que dizem e sabem os estudiosos do assunto.
Ao falar daquilo que, genericamente, se convencionou chamar de “ciência”,
quem hoje em dia não sai do sistema de “ensino”, do fundamental à universidade,
acreditando piamente que o primeiro homem a usar sua inteligência de modo
científico tenha sido Galileu Galilei? Quem duvida que, entre os tempos de Eu-
iRobert P. Crease, The Great Equations: Breakthroughs in Science from Pythagoras to Heisenberg,
Nova York, W. W. Norton & Co., 2011, p. 82. Newton usa a expressão em carta a Hooke, cf. H.
W. Turnbull (ed.), The Correspondence of Isaac Newton: 1661-1675, Londres, publicado pela Royal
Society na University Press, 1959. p. 416.
Apresentação 15
ii A “lei da velocidade média” diz que um móvel que acelere uniformemente desde uma velocidade de,
digamos, 40 km/h, até a velocidade de 60 km/h, percorrerá a mesma distância que um outro móvel
que se movesse sempre a 50 km/h, considerando que ambos se movam por tempos iguais, obviamente.
iii Cf., p. ex., William A. Wallace, Causality and Scientific Explanation, Ann Arbor, The University
of Michigan Press, 1972, vol. 1, cap. 2.
16 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
iv Para uma introdução ao assunto, ver William A. Wallace, op. cit., e The Modeling of Nature.
Para um estudo em profundidade, ver, do mesmo autor, Galileo and His Sources e também Prelude
to Galileo.
v Escandalosamente, Platão e Aristóteles jamais são citados a esse respeito. Em alguns textos moder-
nos com enfoque propriamente filosófico, as especulações de Platão e Aristóteles sobre a matéria são
analisadas com profundidade, mas isso jamais ocorre em textos com enfoque mais “científico”, nos
quais os nomes deles sequer são mencionados. É óbvio que esse divórcio insanável entre filosofia e
ciência é obra não de ciência, mas de filosofia – uma má filosofia, evidentemente.
Apresentação 17
Grosseteste
vi O livro foi publicado em 1953, mas no prefácio à segunda edição, de 1961, Crombie atenua a alegação.
18 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
as suas descobertas –, a tese de que a ciência medieval não tenha dado nenhum
aporte à ciência moderna?
O principal motor, a principal causa eficiente não é nova: é o prossegui-
mento dos gigantescos esforços, originados nos séculos finais da Idade Média,
de substituição de uma autoridade moral por outra – do clero em favor daqui-
lo que Olavo de Carvalho chama de “intelectualidade palaciana” –, guinada
que deve sempre vir acompanhada de alguma demonstração de superioridade
intelectual, real ou imaginária. O grande beneficiário dessa megaoperação, que
se arrasta até os dias de hoje, viria a ser a formação e progressivo fortalecimen-
to do Estado moderno. A princípio, os Estados nacionais; nos tempos atuais,
o “Estado” global, a administração global, ampliada através dos organismos
e poderes que o implantam à força. Para este empreendimento, então como
hoje, sempre contribuíram semiconscientemente muitos homens de ciência: a
ocultação de fontes “inconvenientes”, um dos esportes preferidos de Galileu, é
justamente o instrumento utilizado hoje para negar o acesso do público mais
amplo às verdades que todo historiador da ciência já sabe há décadas.
Outro instrumento deste empreendimento é a imposição farsesca de debates
do tipo ciência x religião ou conhecimento x fé. Esses debates são apresentados
hoje em dia como se no final da Idade Média o julgamento científico sobre os
assuntos terrenos tivesse a urgência de ser transferido – trazendo a reboque a
autoridade dos julgamentos políticos e morais – das mãos daqueles que falavam
“das coisas do céu” para as mãos daqueles que pareciam falar apenas acerca “das
coisas da terra”. No formato asséptico em que os termos são colocados hoje, a
cosmovisão ocidental teria passado de uma visão “teocêntrica” para uma visão
“antropocêntrica”. Ora, nada pode estar mais distante dos fatos: é só abrir qual-
quer escrito de Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, por exemplo, e verificar
que, longe de eles deixarem de lado as questões “do céu” para se concentrarem
nas questões “da terra”, seu principal esforço era por ligar céus e terras, era atingir
um conhecimento mais adequado, no entender deles, das coisas “da terra”, que
possibilitasse ao mesmo tempo e por isso mesmo um melhor vislumbre “do céu”.
Na verdade, a ligação entre as coisas do céu e as da terra era tão orgânica
na cabeça dos homens de ciência da entrada da modernidade, que nunca falta-
ram duras acusações recíprocas de ateísmo entre eles, cada um querendo ver nas
idéias filosóficas e científicas dos outros um rumo inequívoco para o abandono
de Deus e para a instalação definitiva do império terreno da estupidez e da lou-
cura. Mas a ocultação da motivação religiosa por detrás dos esforços científicos
dos homens de ciência daquele período foi um truque tão bem sucedido, que
é com assombro que todo mundo recebe a notícia de que ainda hoje a maioria
Apresentação 21
dos cientistas tem alguma religião. Segundo pesquisa de Baruch Aba Shalev – no
livro 100 Years of Nobel Prizes –, cerca de 65% dos ganhadores de Prêmio No-
bel em ciência proclamam-se pertencentes a alguma ramificação religiosa cristã.
Ora, mas se é fácil ocultar que hoje a maioria dos cientistas que estão vivos e res-
pirando na nossa cara é composta de gente religiosa, quão mais fácil não é fingir
que os cientistas tenham sido ateus e materialistas desde sempre?
Contudo, não é mais possível vivermos de mitos e lendas sobre épocas
passadas e sobre a nossa própria e as suas origens: num tempo em que goza-
ções macabras como a “ideologia de gênero” e o “sócio-construtivismo” são
proclamadas do alto das cátedras universitárias como modalidades genuínas
de “conhecimento científico” e implementadas em todo o mundo à força de
pressões de organismos internacionais, chegou o momento de pararmos de
brincar de esconde-esconde e nos debruçarmos seriamente sobre as origens e
rumos que tomou a ciência, sob o risco de mergulharmos toda a sociedade no
irracionalismo que já tomou conta de intelectuais e de departamentos univer-
sitários inteiros – e, por conseguinte, de governos, nações e regimes políticos.
Deixando para um outro momento a análise destes fatores que parecem
não pertencer intrinsecamente ao conteúdo do conhecimento científico ad-
quirido desde então, podemos fazer a pergunta de David Lindberg (em The
Beginnings of Western Science, p. 360): será que na ciência do século XVII ocor-
reu realmente uma mutação tão radical e profunda, com alcance, fôlego e in-
fluência suficientes, que a permita ser qualificada como “revolucionária”? É
possível identificar algum fator de mudança de mentalidade tão radical que
justifique situar as origens do pensamento científico exclusivamente no século
XVII, como se ali tivesse ocorrido uma espécie de abiogênese da razão científi-
ca? Lindberg apresenta duas hipóteses recorrentes no contexto dessa discussão
no meio acadêmico: uma espécie de “cura” do cisma entre física e matemática
que supostamente prevalecia até então, e a invenção e a colocação em prática
do “método experimental”. O problema, porém, como aponta Lindberg, é que
nenhuma dessas hipóteses sobrevive ao teste dos fatos históricos.
vii
Nos estudos sobre a filosofia de Platão, às vezes se enfatiza mais a participação, às vezes a imitação
das formas no mundo físico, dependendo de o enfoque ser mais o da imanência ou o da transcen-
dência. No entanto, esta não é uma questão em que faça sentido a adesão exclusiva a uma dessas
abordagens com a exclusão da outra, já que imanência e transcendência não são conceitos contrários,
mas complementares.
Apresentação 23
viii
Cf. Geoffrey E. R. Lloyd, Early Greek Science, Nova York, W. W. Norton and Co., 1974, p. 84.
ixCf. David C. Lindberg, The Beginnings of Western Science, 2ª ed., Chicago, University of Chicago
Press, 2007, p. 215.
24 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xii Apud Alistair C. Crombie, Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science, 1100-1700,
Oxford, Clarendon Press, 1953 (segunda edição em 1961), p. 94.
26 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xiiiO termo separatio ocorre em uma única obra de maneira inequívoca em Santo Tomás, no sentido
aqui aludido: no corpus do terceiro artigo da Questão 5 do livro Super Boetium De Trinitate, ou seja,
no comentário do Aquinate ao denso De Trinitate de Boécio. Ali, Santo Tomás nomeia em quatro
passagens o termo separatio em oposição a abstractio. O tema do sujeito da Metafísica em Tomás de
Aquino ainda hoje suscita acaloradas discussões no seio da escola. Cf. Santiago. R. M. Gelonch,
“Separatio” y objeto de la Metafísica en Tomás de Aquino, EUNSA, 2002.
xiv Cf. Álvaro Calderón, Umbrales de la filosofía, Mendoza, Argentina, edição do autor, 2011, p. 321.
28 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
servador cuidadoso pode perceber sem ajuda –, não é difícil constatar que, ao
colocar em pé de igualdade o movimento retilíneo uniforme com o estado de
repouso, o que a primeira lei de Newton (princípio de inércia de Galileu) está
admitindo é uma equiparação qualitativa entre essas duas situações, cabendo
então à segunda lei o papel de agente provocador de mudança. Mudança, no
contexto da mecânica newtoniana, seria aquilo que é abordado apenas na se-
gunda lei, não na primeira, a qual estabelece não mais que a definição do que
se quer dizer com o termo “repouso” ao longo da teoria.
Pode-se alegar que mesmo num movimento retilíneo uniforme existe alguma
mudança, a mudança de posição do corpo animado daquele movimento, e que,
portanto, a mecânica de Newton estaria, sim, falando de um movimento que pa-
rece prescindir de causa externa. O problema é que é você, o cientista, quem está
ao mesmo tempo vendo o movimento real do corpo e aplicando a teoria abstrata,
mas o fato é que a teoria mesma é “cega” a este movimento do corpo em relação
aos outros corpos, porque ela não traz em seu formalismo um algoritmo que “li-
gue” os corpos uns aos outros por meio de uma interação identificável fisicamente.
Há dois caminhos para “resolver” isto, mas são ambos externos à mera con-
sideração das três leis de Newton: ou supor que o movimento do corpo se dá
em relação ao espaço absoluto, um conceito que tem que ser imposto ad hoc
(somente para isso, ou seja: um conceito que cumpre somente esta função na te-
oria), ou supor, por meio de sua teoria da força da gravitação universal, que haja,
afinal de contas, interação entre os diferentes corpos. Mas aí, na presença dos
outros corpos, o movimento retilíneo uniforme já se torna impossível, porque
em situação praticamente nenhuma um corpo deixará de sofrer aceleração. Em
outras palavras, ou ficamos com o fato de que o movimento retilíneo uniforme
não existe nem na própria teoria, servindo apenas como uma espécie de medida
“do repouso”, daquilo que será perturbado, ou com o fato de que a teoria prevê
que o movimento retilíneo uniforme é um movimento em princípio real, sim,
mas que só existe se outra parte da teoria for irreal ou “desligada”.
Cabe aqui como parênteses um comentário que Einstein fez à sua própria
Teoria da Relatividade Geral, no artigo “Physik und Realität”. Sua teoria trata
a gravitação não como uma força, no sentido daquelas tratadas na segunda lei
de Newton, mas como um campo gerado por um corpo e sofrido por outros,
campo este que se transmite a velocidade finita através do espaço. Ele tentou as-
sim seguir os passos que deram Faraday e Maxwell para formalizar as interações
eletromagnéticas em termos de campos mais que de forças propagadas instanta-
neamente à distância, algo visto como defeituoso já desde a gravitação universal
de Newton quase duzentos anos antes. Ou seja, sua teoria sintetizava gravitação
32 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xv No final do século XIX, ainda antes da relatividade e da mecânica quântica, portanto, houve, sim,
especulações sobre como se daria o final do universo, época em que surgiu a hipótese da “morte térmica
do universo”, hoje em dia enquadrada no formato einsteiniano. Mas isso só foi possível devido à consi-
deração da nova teoria do calor, a termodinâmica, ciência não inteiramente domada pelos métodos da
física newtoniana, por mais que se alegue o contrário: a mecânica estatística, além de todo o ferramental
newtoniano, lança mão de conceitos que lhe são estranhos, como o de entropia, por exemplo.
34 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
a partir daquele momento, como se estivesse sendo afirmado que pudesse advir
a criação de todo um novo cosmos apenas a partir de uma flecha voando no ar.
Não, aquele é apenas o movimento de uma flecha determinada desde um arco
determinado até um alvo determinado, todos em ato, todos sendo atos ante-
riores ao movimento da flecha e constituindo, portanto, as condições sobre as
quais repousa a concepção e a realidade daquele movimento em particular. Todo
e qualquer movimento é o movimento de algo que ainda não é per-feito, ou
seja: está no modo do que pode vir a ser. No mundo físico, o movimento existe
porque aquele algo pode ser de outro modo, que ainda não é, e este componente
de potência é o que se denomina comumente como matéria. xvi
Por ser o espaço um conceito que convida quase imediatamente à matema-
tização, e sendo o tempo passível também de um entendimento quantitativo,
será que no movimento da flecha existe alguma quantidade que possa respon-
der à definição aristotélica de movimento? As aporias de Zenão resultam do
fato de que ele achava que bastava a matematização do espaço e do tempo sepa-
radamente: é claro que, tão logo se considere a posição da flecha num instante
atomista de tempo, a flecha parece ter ali uma posição bem definida. Parece
e tem, sem dúvida. O problema é que o “estar ali” da flecha em qualquer dos
pontos intermediários ao longo de seu trajeto não assume o mesmo caráter do
“estar ali” ainda no arco ou do “estar lá” já no alvo. Tanto no arco quanto no
alvo, a flecha não apenas “está”, mas também fica ali – a menos, evidentemente,
que algo lhe ocorra e modifique a situação; mas aí já é o caso de outro movi-
mento e não mais daquele no qual primeiro fixamos a atenção e o interesse. A
consideração deste último caso nos revelaria a existência de um novo movimen-
to, justamente porque será outro ato com novas potências enquanto tais-outras,
cada uma contendo todas as determinações que as farão ser parte do mundo
real e contribuirão para tornar aquele novo movimento um acontecimento real
e não apenas uma consideração interna da razão humana, um ens rationis.
Uma ressalva importante a ser levada em conta a respeito da matematização
dos aspectos quantificáveis do movimento é a afirmação taxativa de Aristóteles
de que “não existe movimento num instante”. É claro que não; no mínimo
porque sem transcurso de tempo não faz sentido falar de deslocamento. Mas
para Aristóteles a objeção se faz ainda mais forte, porque o tempo não é um
xviFizemos questão de colocar em destaque a expressão “no mundo físico” porque não estamos a
entrar no mérito dos movimentos cuja potência não radica na matéria, como os dos entes imateriais,
ou seja: as substâncias separadas da matéria. Adentrar tão árido terreno da metafísica escaparia ao
escopo desta apresentação.
Apresentação 35
xvii Cf. Carl B. Boyer, The History of the Calculus, Mineola (NY), Dover, 1959 (orig. 1949).
36 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xix Cf. os livros de Elisabeth Ströker, de Reuben Hersh e de James Franklin listados na bibliografia.
xx A respeito disso, tenhamos em vista a definição de S. Tomás de Aquino de que a essência das coisas
materiais (quidditas rei materialis) é o primeiro objeto da inteligência humana.
Apresentação 39
xxi Cf. Vincent E. Smith, The General Science of Nature, Milwaukee, The Bruce Pub. Co., 1958, p. 352.
Apresentação 41
xxii
Cf. Joseph W. Dauben, Georg Cantor: His Mathematics and Philosophy of the Infinite, Princeton,
Princeton Univ. Press, 1990, cap. 6.
42 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xxiii
Pierre Duhem, The Aim and Structure of Physical Theory, Princeton, Princeton University Press,
1991, p. 35.
46 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
crescente das aplicações do mecanicismo das leis de Newton fez muita gente inte-
ligente imaginar que seria viável, num futuro não tão remoto, reduzir a química à
física, a biologia à química e a psicologia à biologia. xxiv Ainda em 1963, ninguém
menos que Richard Feynman parece defender essa possibilidade. xxv O problema
é que quanto mais se conhece a respeito do mundo físico, mais distante parece a
possibilidade desta redução teórica. Quanto mais se estudam, em detalhe, cam-
pos de fenômenos em escalas de tamanho, tempo e energia diferentes, mais se
multiplicam as novas teorias físicas que os descrevem. O prêmio Nobel de física,
Anthony Leggett, afirma: não é que as teorias da química não venham jamais a
ser reduzidas à física das partículas elementares, mas isso não será possível nem
mesmo à física da matéria condensada, um ramo da física que estuda escalas de
tamanho muito mais próximas dos átomos que a química é capaz de fazer. xxvi
Sem negarmos a importância nem a necessidade do esforço de unificação
teórica, não podemos negar também que, no momento atual, parece que o mo-
vimento nesta direção tem sido frustrado. Ao ser apontado o hiato crescente das
descrições teóricas entre os diversos níveis, a tentação do reducionista é dizer que
a redução é difícil de ser feita por envolver, na passagem de um nível mais básico
para o superior, um grande número de “unidades básicas” ou partículas. Como
a transição envolve cálculos demasiado complexos, ele alega que se faz necessária
a postulação de propriedades “emergentes”, ou seja, propriedades ou qualidades
presentes no nível superior, mas não no inferior, em função das quais se descre-
vem as unidades deste nível superior. A própria vastidão da quantidade das “uni-
dades básicas” obriga a uma transição da descrição da quantidade em direção à
qualidade, de propriedades que estão mais próximas à categoria da quantidade a
outras que estão mais próximas à da qualidade. Ora, tudo isso faz muito sentido,
mas já foi dito por Santo Tomás de Aquino e outros escolásticos, e é exatamente
o contrário daquilo que apregoa o reducionismo mecanicista.
Na verdade, a falta de entendimento da doutrina aristotélica de matéria e
forma é a origem de desentendimentos completamente evitáveis. Por exemplo, o
grande historiador da química William R. Newman tem feito um trabalho pri-
moroso na recuperação das fontes alquímicas dos trabalhos de Boyle, Newton
e outros, mas fica claro, para quem lê suas obras, que ele não entendeu nem a
xxiv Alguns regimes políticos reduziram os homens a meros átomos soltos e realocáveis no espaço,
promovendo deslocamentos de populações inteiras como num gigantesco Lego de peças humanas.
xxv The Feynman Lectures on Physics, Addison-Wesley, 1963, cap. 3.
xxvi Em “On the Nature of Research in Condensed-State Physics”, in Foundations of Physics, Vol. 22,
n. 2, 1992.
Apresentação 47
Ora, se há um algo que evolui, antes de tudo ele é algo, e que mais seria senão
um composto de matéria e forma? Ademais, ele evolui em direção a algo que
não é ele e, portanto, assumirá uma forma que ainda não possui; que é isso
senão a causa final? E o que seriam as condições, entes e mecanismos que dis-
parariam e dirigiriam o processo senão causas agentes e eficientes? Mecanismo
e evolução podem até existir – e, na verdade, é praticamente inevitável que
existam –, mas somente se estiverem integrados a algo que os transcenda.
A terminologia utilizada pelos próprios materialistas para explicar suas
teorias mecanicistas e evolucionistas está repleta das noções de “finalidade”,
“função”, “agência”, “propósito”, “projeto”, “inteligência”, “adequação” e até
“egoísmo”. Como diz o filósofo Olavo de Carvalho, trata-se não apenas de
uma concessão por parte deles ao baixo entendimento do público leigo, que
não alcançaria a teoria se esta fosse colocada em termos mais técnicos – os
quais eles jamais revelam, não é mesmo? –, mas é da própria natureza, tanto
das coisas como do intelecto, que somente nestes termos algo adquira inte-
ligibilidade. O sujeito passa horas explicando sua teoria utilizando palavras e
conceitos inteiramente normais e aceitáveis, tudo para no final ele dizer que
a explicação é falsa, mas a teoria é verdadeira? Abdicar da inteligibilidade das
coisas para parecer inteligente não é sinal de inteligência, mas quem hoje em
dia resiste a parecer inteligente exibindo enigmaticamente a própria estupidez?
Contudo, há sinais de que a comunidade científica esteja se recuperando,
ainda que lentamente, do divórcio quase obsceno entre filosofia e ciência. Já
é possível voltar a falar na noção de forma, mesmo que de modo acanhado e
com o nome de informação. John Archibald Wheeler, um dos maiores físicos da
segunda metade do século XX, cunhou a famosa frase “It from bit”, explicando
que “todo ‘it’ [algo] – toda partícula, todo campo de força, até o próprio contí-
nuo do espaço-tempo – deriva sua função, seu significado e sua existência mes-
ma dos ‘bits’ ”. Em breves palavras, a matéria só adquire inteligibilidade e ser em
função da forma, algo em perfeita conformidade com a Escolástica e com o bem
pensar de quem está acordado. E Seth Lloyd, que dirige o centro de computa-
ção quântica do MIT, diz que “terra, ar, fogo e água são todos feitos de energia,
mas as formas diferentes que eles assumem são determinadas pela informação.
Para fazer qualquer coisa, requer-se energia. Para especificar o que se vai fazer,
requer-se informação”. xxvii Eu sei que falar em matéria e forma os faria perder o
emprego, mas – cá entre nós – é disso que se trata, não é mesmo?
xxvii Em Programming the Universe, Nova York, Knopf, 2006, p. 22. Cf. também o excelente livro The
Information, de James Gleick.
Apresentação 49
operar se segue ao ser. Aliás, não me parece nem mesmo que a física moderna
o tenha feito, apesar de alegações em contrário vindas de todas as partes. Neste
sentido é também sugestiva a compreensão de Newton sobre a matéria, a qual
não parece diferir muito da de Aristóteles e da dos escolásticos, pelo menos
do modo como a expõe Ernan McMullin em Newton on Matter and Activity.
Por último, a respeito da constituição última da matéria, tanto a hipótese
cartesiana quanto a atomista, um pouco mais que a newtoniana e muito mais que
a aristotélica, são de fácil entendimento: a matéria ou é pura extensão privada de
quaisquer outras qualidades, ou é composta de corpos simples indivisíveis que se
movimentam e se entrechocam, dotados de poucas qualidades “primárias” como
extensão, tamanho, formato, pluralidade, impenetrabilidade, posição, repouso
ou movimento, e algumas outras que advirão no curso da matematização das suas
relações, como a massa, por exemplo. Em ambos os casos, essas poucas qualida-
des são tidas como responsáveis pela produção de todos os fenômenos, inclusive
as qualidades sensíveis chamadas pela filosofia da época de “secundárias”, tais
como cor, som, sabor, cheiro, textura e temperatura. Demócrito afirma não ver
necessidade de “postular” a existência destas últimas, mas apenas das primeiras, e
Galileu, em Il Saggiatore, chega ao radicalismo de dizer que, se não fosse a existên-
cia dos animais, não teríamos a necessidade sequer de discuti-las.
Ora, Aristóteles nunca negou que, de certo modo, os sensíveis não existissem
em ato na ausência dos sentidos, mas apenas em potência. xxviii Por exemplo, na
ausência de ouvidos, o que há não é propriamente som, mas apenas as condições
materiais para tanto, as ondas elásticas no meio. Afirmar isso, contudo, não é o
mesmo que, como sempre pretenderam os atomistas, eliminar completamente
da consideração todo o âmbito de fenômenos relativos à percepção; antes o
contrário, é reconhecer a radical irredutibilidade deles à consideração da mera
materialidade bruta. Seja como for, não há dúvida de que, eliminando-se do
xxviii De Anima, Livro III, cap. 2, 426a, 16 a 26: “Visto que o ato do sensível e da faculdade perceptiva
são um mesmo, embora o seu ser seja diferente, é necessário que a audição, entendida como ato, e o
som, e ainda o sabor e o gosto (e os outros de modo similar) pereçam e permaneçam em simultâneo;
já quanto aos mesmos, mas entendidos como potência, tal não é necessário. Os primeiros fisiólogos,
todavia, não diziam bem isto. Julgavam, pois, que não existiam branco nem negro sem a vista, e que
não existia o sabor sem o paladar; umas coisas diziam corretamente, outras não. Ora, a percepção
sensorial e o sensível dizem-se de duas maneiras: de umas coisas, em potência; de outras, em ato. No
caso das últimas, com efeito, acontece o que disseram; no caso das primeiras, já não. Eles pronuncia-
vam-se, de fato, de forma unívoca a respeito de coisas que não podem ser ditas de forma unívoca.”
É impossível, aqui, não nos lembrarmos da queixa de Einstein, proferida no contexto das discussões
sobre a mecânica quântica: “Prefiro acreditar que a lua está sempre lá, mesmo quando ninguém está
olhando.” Todavia, aqui introduz-se um terceiro elemento, ausente das preocupações de Aristóteles
no trecho acima: as teorias físico-matemáticas.
52 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
universo aquilo que sua teoria não é capaz de abranger, ele fica naturalmente
muito mais simples, o mundo passa a ser aquilo que seu método é capaz de
explicar. Não é difícil concordar com Paul Feyerabend e manifestar-nos aqui –
neste sentido! – contra o método.
Claro que, se até as formas sensíveis são ou relegadas ao mundo da men-
te, como se fossem puras produções arbitrárias do cérebro sem conexão com
o mundo material, ou simplesmente eliminadas de qualquer consideração,
como meras manifestações fantasmagóricas pairando acima do “mundo ver-
dadeiro da matéria bruta”, as velhas formas substanciais aristotélicas dos entes,
aquilo que faz com que uma laranja seja uma laranja – aquela laranja –, já ha-
viam caído em desuso muito antes. Os escolásticos também faziam um elenco
das qualidades corpóreas, praticamente as mesmas, só que com uma denomi-
nação que as dispunha na ordem do conhecer antes de tentar alcançar algu-
ma ordem do ser, como propunha a metafísica atomista. xxix Ao conjunto de
qualidades como o som, a cor, o sabor e o cheiro, eles chamavam de sensíveis
próprios, pois cada uma delas é própria de um sentido corporal distinto, não
havendo confusão entre o captado por um sentido e o captado pelos outros; e
ao conjunto de qualidades sem as quais parece impossível conceber a noção de
corpo, como extensão tridimensional, formato, tamanho e impenetrabilidade,
eles chamavam de sensíveis comuns.
A diferença de atitude entre a “nova filosofia” e a antiga está ancorada
em teorias diferentes da psicologia: enquanto para Aristóteles o campo dos
sensíveis comuns, que coincide em grande medida com o da substância quan-
tificada (com o ens quantum, objeto da matemática), é obtido a partir de uma
abstração da experiência sensível, para os atomistas o campo das qualidades
“secundárias” é um campo quase paralelo, sem conexão orgânica praticamente
nenhuma com o mundo das qualidades “primárias”: res extensa aqui, res cogi-
tans ali, vivendo em mundos paralelos e desarticulados, colados apenas pelo
pensamento. Deste modo, a quantidade, em vez de ser o primeiro acidente
que inere na matéria, é tomada como toda a essência da substância mate-
rial. Só é real aquilo que possa ser quantificado, tudo o mais são produtos
da mente. Claro que não é preciso ser um gênio da Escolástica para derrubar
uma teoria tão infantil. George Berkeley fez este trabalho simplesmente ao
apontar que sem o concurso das “qualidades secundárias” não teríamos sequer
acesso às “primárias”. Se primeiro não virmos e não tocarmos as coisas, como
será possível depois considerá-las meras quantidades? É evidente que, junto
xxix Cf. John Deely, Four Ages of Understanding, Toronto, University of Toronto Press, 2001.
Apresentação 53
xxx Mysticism and Logic, p. 180, Londres, Allen and Unwin, 1949.
xxxi Cf. Roberto Torretti, The Philosophy of Physics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999,
pp. 132-3.
54 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xxxiiAristóteles, Metafísica, M 1078 a36-b5: “As supremas causas do belo são: a ordem, a simetria
e o definido, e as matemáticas os dão a conhecer mais do que todas as outras ciências. E como essas
coisas – ou seja, a ordem e o definido – são manifestamente causas de muitas coisas, é evidente que as
matemáticas também falam de algum modo desse tipo de causa, justamente enquanto o belo é causa”.
Apresentação 55
nos anos sessenta: Thomas Kuhn era um homem que acreditava na ciência,
mas não na realidade, enquanto Paul Feyerabend, sendo um realista, acredita-
va na realidade, mas não na ciência. A raiz de tal confusão deve-se, em parte,
àquilo que se espera da ciência – se uma explicação ou uma descrição. Na
seção anterior vimos que a entrada em cena, no meio universitário medieval,
das obras científicas de Aristóteles propiciou a possibilidade de uma ciência
da natureza de cunho mais explicativo que somente descritivo. No entanto,
o movimento neste sentido não durou mais de cem anos, porque as segui-
das proibições do ensino das doutrinas aristotélicas obrigaram as pesquisas
a tomarem novamente teor mais especulativo e descritivo que propriamente
explicativo, e a atitude predominante dos homens de ciência do final do perí-
odo medieval passou a ser a do “nominalismo”, uma postura que voltaria com
força no século XX com as roupagens da filosofia formalista da matemática e
da filosofia positivista da ciência.
Porém, é neste ambiente de nominalismo que surge, na passagem do século
XVI para o XVII, um novo movimento em direção a uma física mais explica-
tiva. Ainda que, pelos motivos mais díspares e até opostos, como mostram os
exemplos de Kuhn e Feyerabend, a postura positivista nos tenha acostumado
a alegar que a ciência matematizante moderna não tem por ambição alcançar
a intimidade causal dos fenômenos, a verdade é que houve, principalmente a
partir de Kepler, uma tentativa de reinserir questões causais no seio da preo-
cupação científica. Enquanto a astronomia na Idade Média era predominan-
temente matemática, parecia realmente que ela só “salvava os fenômenos”, só
descrevia os acontecimentos sem explicá-los. Quando Kepler começa a dar
clareza aos conceitos de massa e de força, e à medida que eles vão sendo ma-
tematizados e passam a figurar na álgebra das “novas leis”, volta-se, segundo
Wallace, à possibilidade da articulação de uma ciência verdadeira. Neste caso,
mesmo os conceitos novos de massa e força tendo sido formulados de modo
quantitativo e postos em linguagem matemática, a articulação deles com os
conceitos de posição, tempo e velocidade alcança uma unidade até então desco-
nhecida em qualquer área da ciência: aliam-se a descrição matemática precisa
e a procura por causas físicas.
A unificação dos conceitos de força e de massa na ação exercida entre corpos
terrestres acessíveis à experimentação e na ação entre corpos celestes acessíveis
somente à observação é obra completada por Newton. A ligação destes concei-
tos matematizados com os sentidos, apesar de problemática, existe, xxxiii e tem
xxxiv Santo Tomás de Aquino observa, na esteira de Aristóteles, o seguinte: a visão e a audição são os
sentidos externos que dão notícia da realidade com precisão maior que os demais, pelo seu alcance,
digamos, extra-corpóreo. Daí serem os sentidos que mais auxiliam as potências superiores da alma
humana, inteligência e vontade. Especificamente com relação à visão, trata-se do sentido que melhor
ajuda o intelecto a alcançar o seu objeto formal próprio: o inteligível, ao qual o ser humano chega
valendo-se dos sentidos. Cf. Tomás de Aquino, De Sensu et Sensato, I, 2, nº. 25
xxxv Cf. seu artigo “Einstein, Galileo and Aquinas. Three Views of Scientific Method”, Washington,
D.C., Compact Studies, The Thomist Press, 1963.
xxxvi Em The Metaphysical Foundations of Modern Physical Science, Londres, Kegan Paul, Trench,
Trubner & Co., 1925.
xxxvii Em The Crime of Galileo, Chicago, The University of Chicago Press, 1955.
Apresentação 57
xxxviii The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, Evanston, Northwestern Uni-
versity Press, 1970, p. 23.
xxxix Cf. Paul Schilpp (ed.), Albert Einstein, Philosopher-Scientist, Nova York, MJF, 1970 (orig. publ.
em 1949). p. 684.
58 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
sabem muita física, não há dúvida, mas não sabem o que é a física, pois perde-
ram o interesse na questão da definição mesma da ciência que praticam. Não
surpreende, portanto, que não saibam exatamente a que correspondem suas
teorias quando confrontadas com a realidade. Se procurarmos nas obras dos
mais eminentes cientistas dos últimos séculos por um esclarecimento do que
seja a física, encontraremos as mais diversas atitudes, desde a (supostamente)
de Kuhn, até a de Feyerabend. E se perguntarmos a uma comunidade de
físicos “a que, no mundo concreto, correspondem as teorias físicas e de que
modo o fazem”, também ouviremos as respostas mais desencontradas. Talvez
por causa da falta de entendimento desta questão, na reclamação de Einstein
quanto à classificação do cientista nas diversas escolas filosóficas, ele não se
lembre de citar justamente a posição aristotélica, a qual está aberta à pletórica
variedade do real e pode abarcar – porque as transcende – todas as atitudes
filosóficas mencionadas por ele.
A propriedade dos entes do mundo físico – a saber: a de serem sensíveis
– é de importância fundamental porque, uma vez abstraídas as noções mate-
máticas e formuladas as teses e proposições da ciência média, nos incumbe o
dever de retornar ao mundo concreto e verificar se as asserções quantitativas
atingidas pela mente do cientista correspondem, ou não, aos entes físicos,
e em que medida o fazem. Quando falo em retorno ao mundo concreto,
não me refiro simplesmente à verificação por experimentos, mas à verificação
pelas experiências cognitivas reais. Os experimentos científicos são atos ex-
tremamente complexos nos quais aparecem indissoluvelmente ligados tanto
os dados brutos fornecidos pelos equipamentos quanto as mais diversas teo-
rias físicas. Todo equipamento científico é desenhado tendo por pressuposto
alguma teoria físico-matemática, e é impossível a operação daquele sem o
conhecimento intencional desta. Um olho não treinado nunca saberá pelo
que procurar no equipamento. Mas, mesmo depois de uma teoria ser com-
provada por experimentos, a ninguém escapa que ainda lhe falta a ligação
com o mundo concreto, no qual vivem todos os seres humanos, inclusive
os próprios cientistas. Em síntese, estava certíssimo o filósofo basco Xavier
Zubiri, que privou da companhia de alguns dos maiores físicos da primeira
metade do século XX, xl ao escrever o seguinte: “El hombre es un animal de
realidades”. xli Mas que realidades? As formas alcançáveis pelo intelecto em
cooperação com os sentidos.
xl Cf. Jordi Corominas e Joan Albert Vicens, Xavier Zubiri: La Soledad Sonora, Madri, Taurus, 2006.
xli Xavier Zubiri, Sobre el Hombre e Inteligencia Sentiente – Inteligencia y Realidad.
Apresentação 59
xlii
No livro Philosophical Physics.
xliii
Cf. coletânea de artigos enfeixados em From a Realist Point of View e Causality and Scientific Ex-
planation, em dois volumes, no ano de 1972.
60 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
considerados de acordo com a teoria física. Ao mundo real, formado pelos ob-
jetos do primeiro tipo, Smith chama “mundo corpóreo”; ao segundo, “mundo
físico”, sobre o qual versam as teorias abstratas da física matemática, ou, nou-
tras palavras, o conjunto de objetos descritos pelas equações da física matemá-
tica. A pergunta “a que correspondem, no mundo real, as teorias físicas e de
que modo o fazem?” pode tomar, assim, o seguinte formato na terminologia
de Smith: “Estes dois mundos, o físico e o corpóreo, coincidem?”.
Podia parecer que sim, a julgar pelo sucesso que obteve a mecânica newto-
niana na descrição dos fenômenos. Mas, cunhando outro termo, Smith expli-
ca que isto se dá pelo fato de o objeto físico, neste caso, ser de tipo “subcor-
póreo”. Quando, na teoria, se substitui mentalmente uma bola de bilhar real,
concreta, que tem cor, textura e cheiro, por uma esfera de raio R e massa m
construída com material de coeficiente de elasticidade Y, a mecânica newto-
niana trata este objeto como o que de mais próximo corresponde aos atributos
quantitativos da noção de corpo. Por outro lado, evidentemente, não se trata
de um corpo, pois em nenhum lugar dessa descrição se faz alusão a qual-
quer dos atributos imediatamente sensíveis, captáveis pelos sentidos huma-
nos. Aliás, nem era essa a intenção dos cientistas da entrada da modernidade,
se lembrarmos da diferenciação que a eles tanto importava entre qualidades
primárias e secundárias. Ora, mesmo não sendo propriamente corpos, mesmo
tratando-se apenas dos atributos quantitativos mínimos da noção de corpo, o
fato é que os objetos do “mundo físico newtoniano” apresentam identificação
quase imediata com os corpos concretos. Isto acarreta a conseqüência de eles
apresentarem posição e velocidade bem definidas.
Tanto o espaço tridimensional abstrato tratado pela teoria “cola sem so-
bras” com o espaço concreto da experiência como a “bola de massa m” tem
com a bola concreta uma correspondência identificável e única em termos
espaço-temporais. É possível “rodar” as equações, olhar para o espaço abstra-
to representado na folha de papel, identificar ali uma posição, procurar sua
correspondente no espaço real e apontar o dedo para lá, dizendo: “A massa
m estará ali naquele ponto daqui a tantos segundos”. Talvez a realização mais
fantástica deste método tenha sido a descoberta do planeta Urano, previsto
matematicamente antes de sua identificação no céu.
O problema é que essa correspondência não é mais possível – pelo menos
não em geral – para os objetos tratados pela mecânica quântica. O espaço abs-
trato ainda “cola” com o espaço real, mas não os entes que os habitam, e por
isso Smith chama a estes últimos de “objetos transcorpóreos”. Não é possível
apontar o dedo para um lugar do espaço real e dizer: “A função de onda está
Apresentação 61
xliv Ver também as posições de Bernard Mullahy, Rodolfo Petrônio, Adam Schulman e Stanley Grove
na bibliografia.
xlv Concreção vem de cum+crescior, crescer junto.
xlvi Cf. Hippocrates Apostle em Mathematics as a Science of Quantities, Grinnel (Iowa), The Peri-
patetic Press, 1991.
xlvii Ela tende a isso, de acordo com James Franklin em Mathematics as the Science of Quantity and
Structure.
62 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
xlviii
O termo complexo, aqui, deve ser entendido do ponto de vista material, porque a noção de sim-
plicidade metafísica vai em sentido contrário à de simplicidade material.
66 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
Einstein achou que isso seria absurdo por quebrar o princípio da relatividade
do movimento presente na Mecânica de Newton, o qual estabelece que nenhu-
ma velocidade é passível de ser detectada de modo absoluto.
Para vislumbrar-se o desconforto de Einstein, convém trazer à baila a mo-
tivação por trás de seu pensamento e que o conduziu à formulação da teoria.
A Teoria da Relatividade apresenta como conteúdo epistemológico último a
relação entre as descrições de um mesmo fenômeno quando observado a partir
de dois pontos de vista. Tomemos um fenômeno qualquer, visto por duas pes-
soas: um sujeito, dentro de um trem que viaja em movimento retilíneo uni-
forme, solta uma bola. Tanto o sujeito que largou a bola, quanto um segundo
sujeito que esteja em repouso sobre a plataforma da estação, descrevem o mo-
vimento da bola. O que a teoria da relatividade faz é simplesmente relacionar
essas duas descrições. Em outras palavras, a pergunta a que ela responde é:
como aquilo que um observador descreve como espaço e tempo xlix se relaciona
com os análogos dessas mesmas grandezas descritas pelo outro observador?
Será que aquilo que um mede como um metro é o mesmo que o outro medirá
como um metro quando eles compararem suas medidas? E com relação a um
intervalo de um segundo? Examinando preliminarmente o caso acima, já no
nível qualitativo vemos que a forma da trajetória da bola é diferente quando
vista pelos dois observadores: quem está viajando junto com o trem observa a
bola caindo na vertical em linha reta, e quem está sobre a plataforma enxerga
a bola percorrendo um arco de parábola, tanto mais alongada quanto maior
for a velocidade do trem relativamente à plataforma da estação.
Até o final do século XIX, a concatenação das medidas de um mesmo fenô-
meno realizadas por observadores em diferentes referenciais inerciais teve por
critério aquilo que passaria a ficar conhecido como Transformações de Galileu.
Elas ditavam as regras de como se relacionam as medidas de tempo e espaço
feitas a partir de referenciais que possuem distintos estados de movimento iner-
cial – ou, para seguir mais de perto o espírito da Relatividade, no caso em que
um observador possui movimento em relação a outro. Todos os fenômenos
de origem mecânica pareciam obedecer às Leis de Newton, as quais supõem,
logicamente, as Transformações de Galileu. Estas assumem, de modo explícito,
que não haveria maneira de medir absolutamente velocidade alguma, apenas
acelerações, ou seja, taxas de mudança de velocidade. Porém, o estudo dos
fenômenos eletromagnéticos parecia privilegiar a medição de uma velocidade
em particular, a da luz, que aparece explicitamente nas equações do Eletromag-
liiAqui é necessário fazer uma advertência: os escolásticos do século de Grosseteste tinham a clara
noção de que infinito é um conceito que só pode ser aplicado com total propriedade a Deus, o qual
não é, nem pode ser, quantificável sob nenhum aspecto. Portanto, ao associar o conceito de infinito
à velocidade da luz, Grosseteste faz uso de uma analogia. Isto torna-se evidente se considerarmos o
seguinte: no segundo opúsculo do presente volume – o De finitate motus et temporis –, Grosseteste
defende, contra Aristóteles, a finitude do movimento e do tempo, e, a fortiori, a finitude da veloci-
dade da luz. Fugiria ao escopo desta apresentação esmiuçar o conceito de instante para os filósofos da
virada dos séculos XIII para o XIV, mas vale deixar consignado que o instante pode dizer-se partícipe
da infinitude, sem, contudo, ser a infinitude, de modo análogo a como o ente tem ser (habet esse),
mas não é o ser.
Apresentação 69
liii Cf. William A. Wallace, “Einstein, Galileo and Aquinas”. O mais ilustre seguidor de Grosseteste
foi Roger Bacon, que acabou inspirando os calculadores de Merton.
liv Cf. Michael Shallis, On Time, Nova York, Schocken Books, 1983, p. 41.
70 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
lv Cf. Kenneth L. Schmitz, Temporal Integrity, Eternity, and the Implicate Order, ed. David L. Schin-
dler, Londres, University Press of America, 1986.
74 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
lvi Cf. Olavo de Carvalho, “Da Tripla Intuição”, in Apostila do Instituto de Artes Liberais; Curso
Online de Filosofia, no endereço: <http://www.seminariodefilosofia.org>.
lvii Cf. o segundo opúsculo desta edição, p. 111.
Apresentação 77
Bibliografia
1 Como se verá ao longo deste breve tratado, a luz é a primeira forma criada, a natureza existente mais
simples, a qual dá corporeidade à materia prima – concriada com ela por Deus. Em breves palavras:
segundo Grosseteste, a luz une-se imediatamente à materia prima no ato criador divino e com ela
compõe uma substância simples, corpórea e espacial, porém sem dimensões. [Nota do coordenador
da Coleção Escolástica; doravante, N. C.]
2 Trata-se da corporeidade em seu estado mais refinado, no qual, presumivelmente, a forma corpórea
que é a luz, expandindo-se, expande a matéria do universo. [N. C.]
3 As formas separadas da matéria às quais alude Grosseteste são os anjos, ou seja, as substâncias sem
composição de matéria em sua forma entitativa. [N. C.]
86 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
4 Com a expressão mundi machina, Grosseteste está a referir-se ao conjunto das coisas criadas – as
quais operam a partir das suas formas. Nos séculos seguintes, “máquina do mundo” foi a metáfora
que degenerou numa concepção mecanicista do universo dramaticamente empobrecedora em relação
à cosmovisão escolástica. [N. C.]
5 Aristóteles, Tratado sobre o Céu, I, 5-7. Ao fazer esta referência a Aristóteles logo no começo
do seu tratado, Grosseteste tem o intuito de mostrar que a multiplicação da luz e da materia prima
(que nela inere), ocorrida nos primeiros instantes do universo, não pode ter sido uma multiplicação
finita, pois uma seqüência finita de pontos não gera nenhuma dimensão. Em suma, um ponto de
luz hiperconcentrado multiplicou-se infinitas vezes, e, ao fazê-lo, multiplicou também a matéria que
trazia consigo. [N. C.]
6 O “simples” a que se refere Grosseteste não é, evidentemente, Deus – simplicidade absoluta inde-
componível e não multiplicável. A simplicidade de Deus não pode ser quantificada, daí a sua inco-
mensurabilidade. Não existe, pois, medida comum entre o Ser e os entes; entre o infinito e o finito;
entre o Criador e as criaturas. [N. C.]
7 A simplicidade da luz é entendida por Grosseteste de maneira estritamente geométrica, e não
metafísica. “Simples”, em seus tratados de cosmologia, é o que carece de dimensões, e não o que não
tem composição de nenhuma espécie. A ontologia da expansão da luz de Roberto Grosseteste guarda
notáveis analogias com a doutrina plotiniana do Uno como gerador de todas as coisas. Cf. Sebastián
R. C. Sierra, Plotino y Grosseteste: el neoplatonismo en la cosmología medieval. Apenas jamais esqueça-
mos que a luz é sempre entendida por Grosseteste como forma corporal, conceito que ele assimilara
de filósofos medievais árabes. [N. C.]
8 Como vimos, segundo Aristóteles é impossível que a multiplicação de um ser sem dimensão gere
um ser com dimensão – assim como o ponto pode ser multiplicado incontáveis vezes, sem que isso
gere uma linha. Isto ocorre porque a linha – ao contrário do que possamos ter aprendido na escola
– não é a soma de pontos; ponto e linha são dois entes essencialmente distintos e “inquantificáveis”
entre si. Em outras palavras, existe uma distância (matematicamente) “infinita” entre ambos.
Mas essa observação de Aristóteles deixa em aberto a alternativa de uma multiplicação infinita. Esta
sim, segundo Grosseteste, geraria um ente de uma nova dimensão, pois cobriria a distância infinita
entre as diferentes dimensões. Quando diz que “o produto da multiplicação infinita de algo excede
infinitamente aquilo de cuja multiplicação se produz” e que “existem infinitos que são maiores do
que outros infinitos, e infinitos que são menores”, Grosseteste antecipa em sete séculos a teoria dos
transfinitos de Georg Cantor. E utiliza até o mesmo exemplo que será dado pelo matemático russo:
o conjunto infinito dos números pares excede o conjunto infinito dos números ímpares, e assim
podemos concluir que existem (potencialmente) infinitas séries de infinitos (potenciais).
Ou seja, Grosseteste está evidenciando, por exemplos matemáticos, a “infinita” distância que existe
88 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
entre cada um dos números – isto é, a sua diferença essencial (qualitativa), que é inexplicável pela
mera análise quantitativa. Essa distância infinita só poderia ser materialmente “transposta” pela forma
simples corpórea, que é a luz. Ou seja, sem a luz, não há a possibilidade da tridimensionalidade, e a
luz é, portanto, instrumento principal da Criação. Em outros termos, a luz pode ser dita princípio
de “expansão”, levando às conseqüências que Grosseteste enumerará mais abaixo. Por fim, existe uma
óbvia analogia entre a unidade (no sentido pitagórico-platônico) e a luz; a unidade é o fundamento
de todos os números, a luz, de todos os corpos. [Nota do Editor; doravante, N. E.]
9 Vemos aqui uma ressonância do princípio platônico segundo o qual os números ideais, formas ar-
quetípicas de natureza metafísica, são a essência dos números matemáticos e não podem ser submeti-
dos a operações aritméticas, não obstante sejam a base destas últimas. Como assinala Giovanni Reale
nalguns de seus estudos sobre Platão, a essência do número ideal consiste numa delimitação específica
produzida pelo Uno sobre a Díade, a qual é uma multiplicidade indeterminada de grande e pequeno.
“O Dois, que é a primeira determinação do grande e do pequeno, é multiplicidade e escassez, de-
finida por obra do Uno como dobro e metade; de fato, o Dois implica o dobro e a metade, ou seja,
uma relação intrínseca entre uma quantidade que é dupla (Dois) e uma metade (Uno), e a primeira é
excedente de modo determinado”. Giovanni Reale, Para uma nova interpretação de Platão [Capítulo
Oitavo: Números Ideais, Idéia, Números Matemáticos como “intermediários” e estrutura hierárquica
da realidade]. A multiplicidade indeterminada platônica parece estar no horizonte de Grosseteste
quando, neste trecho de sua obra, o filósofo medieval alude a infinitos maiores e menores. [N. C.]
90 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
partes aliquotae. Numerus vero finitus numeri infiniti aliquota vel ali-
quot aliquotae esse non potest. Subtracto igitur numero de aggregatione
subdupla infinita non remanet proportio numeralis inter aggregationem
duplam infinitam et residuum de aggregatione subdupla infinita.
His ergo ita se habentibus manifestum est, quod lux multiplicatione
sua infinita extendit materiam in dimensiones finitas minores et dimen-
siones finitas maiores secundum quaslibet proportiones se habentes ad
invicem, numerales scilicet et non numerales. Si enim lux multiplicatione
sui infinita extendit materiam in dimensionem bicubitam, eadem infinita
multiplicatione duplicata extendit eam in dimensionem tetracubitam, et
eadem subduplicata extendit eam in dimensionem monocubitam; et sic
secundum ceteras proportiones numerales et non numerales.
Iste, ut reor, fuit intellectus philosophorum ponentium omnia compo-
ni ex atomis et dicentium, corpora ex superficiebus componi et superficies
ex lineis et lineas ex punctis. – Nec contradicit haec sententia ei, quae
ponit, magnitudinem solum ex magnitudinibus componi, quia tot modis
dicitur totum, quot modis dicitur pars. Aliter namque dicitur medietas
pars totius, quae bis sumpta reddit totum, et aliter est costa pars diametri,
quae non aliquotiens sumpta reddit diametrum, sed aliquotiens sumpta
exsuperatur a diametro. Et aliter dicitur angulus contingentiae pars anguli
recti, in quo est infinities, et tamen finite subtractus ab eo diminuit illum;
et aliter punctus pars lineae, in qua est infinities, et finite subtractus ab ea
non diminuit eam.
Rediens igitur ad sermonem meum dico, quod lux multiplicatione
sui infinita in omnem partem aequaliter facta materiam undique ae-
qualiter in formam sphaericam extendit, consequiturque de necessitate
Sobre a luz 91
alíquotas daquilo que se subtrai. Ora, um número finito não pode ser uma
alíquota ou algumas alíquotas de um número infinito. Logo, subtraído um
número da série infinita de subduplos, não permanece uma proporção numé-
rica entre a série infinita dos números duplicados e o restante da série infinita
dos subduplos.
Sendo assim, é evidente que a luz, por sua multiplicação infinita, estende a
matéria em dimensões finitas menores e em dimensões finitas maiores confor-
me qualquer proporção que tenha uma com a outra, ou seja, numérica e não
numérica. De fato, se a luz, pela multiplicação infinita de si mesma, estende a
matéria na dimensão de dois côvados, com a mesma multiplicação infinita du-
plicada ela estende a matéria na dimensão de quatro côvados, e, com a mesma
multiplicação infinita subduplicada, estende-a na dimensão de um côvado, e
assim por diante, segundo as demais proporções numéricas e não numéricas.10
Esse era o entendimento, creio eu, dos filósofos que sustentavam que tudo
é composto de átomos e diziam que os corpos são compostos de superfícies,
as superfícies de linhas, e as linhas de pontos. E essa opinião não contradiz a
de que a grandeza se compõe somente de grandezas,11 porque há tantas ma-
neiras de dizer “todo” quantas de dizer “parte”. Ora, chama-se metade a parte
do todo que, tomada duas vezes, recompõe o todo; de outro modo, o lado
é a parte da diagonal que, tomada não importa quantas vezes se queira, não
recompõe a diagonal, mas, tomada algumas vezes, é menor que a diagonal. E,
de um terceiro modo, chama-se ângulo de contingência uma parte do ângulo
reto, no qual está infinitas vezes contido e, no entanto, se for subtraído deste
finitamente, o diminui; e, de modo diverso, o ponto é parte da linha na qual
está contido infinitas vezes, e, subtraído desta finitamente, não a diminui.
Voltando, pois, ao meu assunto, afirmo que a luz, por meio da multipli-
cação infinita de si mesma, realizada de modo igual por toda parte, estende a
matéria de modo igual em todas as direções numa forma esférica,12 e, como
10 Vale sublinhar que, segundo Grosseteste, a luz primordial – fonte de toda a multiplicação pos-
terior havida no universo – permanece, porque, em razão de sua simplicidade, é ontologicamen-
te indivisível. Portanto, a multiplicação infinita da luz não implica divisão numérica nem específica.
Trata-se da mesmíssima luz, cuja natureza é difundir-se. Em síntese, a luz primordial multiplica-se
permanecendo a mesma. [N. C.]
11 Opinião de Aristóteles.
12 Por que Grosseteste insiste em que a luz tem de se multiplicar infinitas vezes? Além da necessidade
cosmológica, impõe-se uma necessidade geométrica. Uma vez que a luz é propagação, tal propagação
(como ele explica mais adiante) necessariamente se dá no formato de uma esfera, expandindo-se a
partir de um centro em todas as direções. A intersecção de uma esfera é um círculo, e o círculo, figura
perfeita, como Aristóteles no mesmo De Caelo já bem havia explicado, é uma linha sem princípio
92 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
nem fim, com infinitos pontos eqüidistantes de um mesmo centro. Portanto, a superfície de uma
esfera contém infinitos pontos equidistantes do centro, mas em todas as dimensões possíveis. Por isso
a luz deve “multiplicar-se infinitamente”. [N. E.]
13 Difusão primordial, expansão (ou rarefação) e condensação são os processos implicados na forma-
ção do universo a partir da luz, de acordo com Grosseteste. Quando, pois, ele usa o termo “rarefação”
– neste e noutros tratados – está a referir-se à expansão da luz, e por conseguinte à da matéria, que a
acompanha. [N. C.]
14 Do firmamento, primeira esfera celeste na doutrina de Grosseteste, emanou a energia luminosa cha-
mada por ele de “corpus spirituale” ou “spiritus corporalis” (“...et sic procedit a corpore primo lumen, quod
est corpus spirituale, siue mavis dicere spiritus corporalis”); a luz então condensou-se, ao ir da extremidade
ao centro, e deste processo geraram-se, como se verá adiante neste tratado, treze esferas. [N. C.]
94 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
seja impossível –, mas seu trajeto acontece pela multiplicação de si e pela in-
finita geração de luminosidade. Logo, a própria luminosidade, expandida do
primeiro corpo para o centro e reunida, congregou a massa existente debaixo
do primeiro corpo; e como o primeiro corpo já não pudesse ser diminuído,
pois que estava completamente realizado e invariável, e como não pudesse
existir um lugar vazio, era necessário que na própria congregação dessa massa
as partes mais externas se estendessem e espalhassem. Assim sobreveio nas
partes mais internas da dita massa uma maior densidade, e nas mais externas
aumentava a rarefação.15 E tamanha era a potência dessa luminosidade que
congregava e que, ao congregar, separava, que as próprias partes mais externas
da massa contida debaixo do primeiro corpo se sutilizaram e rarefizeram ao
máximo. E assim nas mesmas partes mais externas dessa massa começou a
fazer-se uma segunda esfera completa e não suscetível de impressão ulterior
alguma. E assim foi a completa realização e perfeição da segunda esfera: certa-
mente, a luminosidade origina-se da primeira esfera, e a luz, que na primeira
esfera é simples, na segunda é duplicada.16
Assim como a luminosidade gerada do primeiro corpo completou a segunda
esfera e deixou dentro da segunda esfera uma massa mais densa, assim também
a luminosidade gerada da segunda esfera fez a terceira esfera e, congregando,
deixou debaixo dessa terceira esfera uma massa ainda mais densa. E nessa ordem
prosseguiu esse congregar que separa, até se realizarem completamente as nove
esferas celestes e se concentrar dentro da nona e ínfima esfera a massa condensa-
da, que seria a matéria dos quatro elementos. Ora, a esfera ínfima, que é a esfera
da lua,17 gerando luminosidade também de si mesma, com a sua luminosidade
congregou a massa contida debaixo de si e, congregando-a, sutilizou e desa-
gregou-lhe as partes mais externas. Mas a potência dessa luminosidade não foi
tão grande, que, ao congregar, desagregasse ao máximo as partes mais externas
dessa massa. Por causa disso, em toda parte dessa massa restou uma imperfeição
e a possibilidade de congregar-se e desagregar-se. E a parte superior da massa,
15 Densidade no centro e expansão nas extremidades; eis aqui o modo próprio de difusão da luz – e, por
conseguinte, do universo –, na teoria de Grosseteste. [N. C.]
16 Novamente assinalamos a ressonância, em Grosseteste, da teoria plotiniana da proveniência do
Múltiplo a partir do Uno. Nesta perspectiva, todo o conjunto da realidade que observamos é fruto
do desenvolvimento dinâmico, e perene, de uma potência engendradora radical. De maneira análoga
ao que acontece com a luz em Grosseteste, o Uno de Plotino é simples, permanece sempre o mesmo
e engendra ininterruptamente o múltiplo. Cf. Plotino, Enéadas, V. [N. C.]
17 Das treze esferas implicadas na teoria de Grosseteste, nove são celestes, concêntricas e incorruptí-
veis, sendo a última delas, como se vê aqui, a lua. As quatro seguintes – infralunares – são mutáveis
e corruptíveis. [N. C.]
96 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
embora não desagregada ao máximo, feita porém fogo com sua desagregação,
permaneceu ainda matéria dos elementos. E este elemento, gerando luminosi-
dade de si e congregando a massa contida debaixo de si, desagregou-lhe as partes
mais externas, com desagregação porém menor que a do fogo, e assim produziu
o fogo. O fogo, no entanto, gerando luminosidade de si e congregando a mas-
sa contida embaixo, desagregou-lhe as partes mais externas, com desagregação
porém menor que a sua, e assim produziu o ar. O ar também, gerando de si um
corpo espiritual ou um espírito corporal, e congregando o que estava contido
dentro de si, e, ao congregar, desagregando-lhe as partes exteriores, produziu a
água e a terra. Mas, como na água ficou mais da força congregante do que da
força desagregante, a água, bem como a terra, ficou também com peso.18
Desse modo, pois, foram trazidas à existência as treze esferas deste mundo
sensível: nove celestes, inalteráveis, não passíveis de aumento nem de geração e
incorruptíveis, pois que completas; e quatro que subsistem de modo contrário,
alteráveis, passíveis de aumento e geração, e corruptíveis, pois que incompletas.
Ora, é evidente que todo corpo superior, em virtude da luminosidade proce-
dente dele, é a espécie e a perfeição do corpo subseqüente a ele. E, assim como
a unidade é potencialmente todo número subseqüente a ela, assim o primeiro
corpo, pela multiplicação de sua luminosidade, é todo corpo subseqüente a ele.
A Terra é, com efeito, todos os corpos superiores pela congregação, em si
mesma, das luminosidades superiores. Por isso os poetas chamam-na “Pan”, ou
seja, “todo”, e também lhe é dado o nome de Cibele, como se fosse cubile, de
cubo, isto é, solidez, porque ela é o mais compacto de todos os corpos, e ela é
Cibele, mãe de todos os deuses, porque, embora as luminosidades superiores es-
tejam congregadas nela, todavia não se originam nela por suas operações, mas é
possível de dentro dela conduzir para o ato e a operação a luminosidade de qual-
quer esfera que se queira; e assim de dentro dela será gerado, como de uma mãe,
qualquer dos deuses. Os corpos intermediários se comportam de dois modos.
Quanto aos corpos inferiores, se comportam como o primeiro céu em relação a
todos os restantes; e, quanto aos superiores, como a terra em relação a todos os
demais. E assim, de certo modo, em qualquer deles estão todos os outros.
A espécie e perfeição de todos os corpos é a luz: mas nos corpos superiores
ela é mais espiritual e simples, enquanto nos corpos inferiores é mais corpórea
e multiplicada. Mas nem todos os corpos são da mesma espécie, embora te-
nham sido produzidos pela luz simples ou multiplicada, bem como nem todos
18 Como se pode observar, para Grosseteste os quatro elementos (fogo, terra, ar e água) são fruto de
uma espécie de desagregação ontológica na menor esfera entre as nove incorruptíveis: a lua. [N. C.]
98 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
eiusdem speciei, cum tamen sint ab unitate maiori vel minori multiplica-
tione collecti.
Et in hoc sermone forte manifesta est intentio dicentium “omnia esse
unum ab unius lucis perfectione” et intentio dicentium “ea, quae sunt
multa, esse multa ab ipsius lucis diversa multiplicatione.”
Cum autem corpora inferiora participant formam superiorum corpo-
rum, corpus inferius participatione eiusdem formae cum superiore corpore
est receptivum motus ab eadem virtute motiva incorporali, a qua virtute
motiva movetur corpus superius. Quapropter virtus incorporalis intelligen-
tiae vel animae, quae movet sphaeram primam et supremam motu diurno,
movet omnes sphaeras caelestes inferiores eodem diurno motu. Sed quanto
inferiores fuerint, tanto debilius hunc motum recipiunt, quia quanto fuerit
sphaera inferior, tanto est in ea lux prima corporalis minus pura et debilior.
Licet autem elementa participent formam caeli primi, non tamen mo-
ventur a motore caeli primi motu diurno. Quamquam participant illa luce
prima, non tamen oboediunt virtuti motivae primae, cum habeant istam
lucem impuram, debilem, elongatam a puritate eius in corpore primo, et
cum, habeant etiam densitatem materiae, quae est principium resistentiae
et inoboedientiae. Putant tamen aliqui, quod sphaera ignis circumrotetur
motu diurno, et significationem ipsius ponunt circumrotationem come-
tarum, et dicunt etiam hunc motum derivari usque in aquas maris, ita ut
ex eo proueniat fluxus marium. Verumtamen omnes recte philosophantes
terram ab hoc motu dicunt esse immunem.
Eodem quoque modo sphaerae, quae sunt post sphaeram secundam,
quae fere secundum computationem in sursum facta nominatur octava,
quia participant formam illius, communicant omnes in motu suo, quem
habent proprium praeter motum diurnum.
Ipsae autem caelestes sphaerae, quia completae sunt, non receptibiles
rarefactionis aut condensationis, lux in eis non inclinat partes materiae
a centro, ut rarefaciat eas, vel ad centrum, ut condenset. Et propter hoc
ipsae sphaerae caelestes non sunt receptibiles motus sursum aut deorsum,
sed solummodo motus circularis a virtute motiua intellectiva, quae in sese
Sobre a luz 99
19 O conceito de participação, de matriz platônica com adaptações neoplatônicas, também está pre-
sente na cosmogonia de Grosseteste, como se vê nesta passagem. [N. C.]
20 Optamos por traduzir “motu diurno” por “movimento diuturno”, e não “diurno”, para sermos
fiéis à intenção de Grosseteste de aludir à ininterruptibilidade dos movimentos no universo, espinha
dorsal de sua teoria. [N. C.]
100 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
21 Parece-nos evidente que Grosseteste conhecia a Tetractys, ou seja, o triângulo equilátero perfeito,
que, para muitos pensadores pitagórico-platônicos, representava a força geradora na relação entre o
uno e o múltiplo: 1 + 2 + 3 + 4 = 10. [N. C.]
Parte II
Sobre a finitude do
movimento e do tempo
22 Ou seja, tinha potência para vir a ser, a qual não pode ter advindo do nada, pois ex nihilo nihil
fit. A potência para ser ou não ser, à qual alude Grosseteste no começo deste tratado, é própria dos
entes contingentes. [N. C.]
23 Para Aristóteles, não existe um momento “zero” antes do qual não teria havido movimento nem,
por conseguinte, tempo, sendo este, nas famosas palavras do Estagirita, a contagem do movimento
segundo um antes e um depois. É, pois, contra a tese da eternidade do movimento que Grosseteste
voltará as suas baterias neste opúsculo, afastando-se nisto de Santo Tomás de Aquino, que no livro De
æternitate mundi defende o seguinte: não repugna à razão pensar que o universo tenha existido desde
a eternidade, ou seja, que tenha sido criado por Deus fora do tempo, nem que tenha sido criado no
tempo. Para compreender-se de maneira devida a doutrina aristotélica da eternidade do movimento,
é necessário ter em conta a sua cosmologia, a qual pressupõe uma materia prima ingênita e esferas
celestes incorruptíveis. O Livro I da Física e o Livro I do Tratado Sobre o Céu são as obras do Estagirita
cuja leitura indicamos para a compreensão deste magno problema. [N. C.]
24 Sem dúvida, todo movimento supõe um trânsito da potência ao ato, e o que está em discussão
neste breve tratado de Grosseteste é se o movimento e o tempo são eternos, como supusera Aristó-
teles. Parece-nos escapar a Grosseteste, em sua crítica a Aristóteles, o fato de que, não sendo eterno
o movimento nem o tempo, a potência – no caso, a onipotência – que engendrou o primeiro movi-
mento não o fez por intermédio de um movimento. Noutras palavras, a criação dos entes ex nihilo
106 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
Para dizer numa só palavra: a causa pela qual algo que está em potência
não passa ao ato consiste no defeito de alguma condição da parte do agente
ou da parte do paciente.25 Tal condição precisa ser adquirida por movimento,
antes que da potência ativa se torne agente em ato. Assim, em tudo o que se
realiza no tempo, o seu realizar-se deve ser precedido necessariamente de outro
movimento não separado do subseqüente por um repouso.
E nesse raciocínio fica evidente que tudo o que se realiza é necessário que
seja reduzido a um movimento contínuo circular.
Mas esse raciocínio, que convence não ter havido um primeiro movi-
mento, também convence que não existiu movimento antes do movimento
infinito, de tal modo que houve num momento repouso sem movimento
intermediário.
Afirmo, todavia, que esse raciocínio de Aristóteles e dos filósofos é estrei-
to.26 Ora, quando se diz “um movimento num momento existiu primeiro,
depois de não ter existido”, é preciso fazer uma distinção, porquanto, se a
expressão “depois” significa ordem temporal, introduziu-se na frase uma con-
tradição, pois implica que o tempo precedeu o primeiro princípio de movi-
mento e, assim, que existiu um movimento antes do primeiro movimento, e
tempo antes do primeiro tempo, o que é impossível.27 E não é suficiente esta
pelo Próprio Ser (Deus) se dá sem qualquer movimento, porque todo movimento supõe um ponto de
partida e um termo final; ocorre que, no caso da Criação, não havia nenhum sujeito anterior ou in-
dependente de Deus que, por intermédio da ação divina, transitasse da potência ao ato, pelo simples
fato de que nada é anterior ao ser divino. Quando Santo Tomás, numa importante passagem de sua
obra, diz que “nada preexiste à criação” (“nihil est quod creationi praexistat”, cf. Tomás de Aquino, II,
Sent., d. 1, art. 2), está a deixar consignada a impossibilidade de que a ação engendradora do universo
se desse por movimentos, pois não havia nenhum sujeito do movimento – seja formal, seja material
– de que se valesse Deus ao criar. [N. C.]
25 A exceção – não considerada aqui por Grosseteste – está na onipotência ativa do ser divino, o qual
pode não fazer algo transitar da potência ao ato sem, contudo, apresentar defeito ou carência de ne-
nhuma espécie. Daí provém a tese de Santo Tomás, compartida por todos os notáveis autores de sua
escola, de que a criação não esgota as possibilidades operativas de Deus. Noutras palavras: se quisesse,
Deus poderia ter criado um universo diferente – e mais perfeito – do que o existente. Sendo assim,
este não é “o melhor dos mundos possíveis”, como imaginara Leibniz; pressupor isto é impor limites
ao ser e ao operar divinos. Deus faz perfeitamente tudo o que faz, mas pode fazer infinitas outras
coisas com grau intensivo de ser mais perfeito do que o universo atual. [N. C.]
26 “(...) ratiocinatio Aristotelis et philosophorum est diminuta”. Se considerarmos que o raciocínio de
Aristóteles, apesar de não ser concludente no tocante a esta questão, não pode ser de nenhuma ma-
neira considerado “estreito”, vemos tratar-se de uma frase de efeito de Grosseteste. Com ela, o bispo
inglês fez eco à desconfiança da escola franciscana com relação às doutrinas aristotélicas que causaram
grande impacto no Ocidente latino. No período em que escreveu Grosseteste, as polêmicas relativas
à recepção de Aristóteles por teólogos cristãos estavam longe de terminar. [N. C.]
27 O “depois” implicado nesta questão não é de natureza cronológica – nem, portanto, física ou
matemática. É um depois metafísico que tem o nada (nihil) como antes, razão pela qual não cabe
108 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
perpetuus et sine initio, aut fuit postquam non fuit, quia sub neutram
partem divisionis cadit mundus, vel tempus, vel motus, vel aliquid, cuius
esse est esse cum tempore, quia nullum horum est sine initio. Nec tamen
aliquod horum habet initium sub tempore; tamen apud imaginationem
ponentem, quod idem est esse sine initio et habere esse extensum per mo-
ram infinitam, est illa divisio necessaria. Si autem haec dictio “postquam”
significet ordinem temporis ad aeternitatem et fuit primo positum, quod
significet tempus et secundo aeternitatem, verum est, quod mundus et
tempus et motus fuerunt postquam non fuerint, et priusquam essent, fue-
runt in potentia, ut designetur prioritas aeternitatis ad tempus et “poten-
tia” non dicat potentiam causae materialis, sed solum potentiam causae
efficientis. Haec autem propositio: “Omne, quod de potentia priore exit
ad actum etc.” vera est, si significetur prioritas temporalis. Et sic tenet
probatio illius. Et si significetur prioritas aeternorum ad temporalia facta,
haec eadem supradicta ratiocinatio Aristotelis ostendit, quod non fuerunt
mobilia prius quiescentia tempore infinito et coeperunt moveri.
Quia autem primum motum oporteret praecedere alium motum,
quaestio est an acquiretur nova conditio motori aut mobili, aut remotio
impedimenti, per quam conditionem aut impedimenti remotionem de
movente et moto in potentia facerent moventem et motum in effectu.
Ratio autem Averrois, qua putat, quod intentio Aristotelis sit de perpetui-
tate motus unius continuantis motus ceteros est hoc, quod Aristoteles in
Sobre a finitude do movimento e do tempo 109
inferir um tempo antes do primeiro movimento apenas por conta da inserção do termo “depois” na
argumentação. Em breves palavras: antes do primeiro tempo e do primeiro movimento, os quais são
concomitantes, havia apenas o ser divino, imóvel por sua própria natureza e situado para além de
todo e qualquer tempo. Sendo assim, o “antes” pressuposto nesse “depois” não é numerável. Por isso,
nesta mesma passagem, Grosseteste relaciona esse “depois” à eternidade como a seu único anterior
filosoficamente aceitável. [N. C.]
28 Com a expressão moram infinitam, aqui traduzida por “atraso infinito”, Grosseteste tem em mente
a sua tese do infinito potencial, ancorada na teoria da relação matemática dos conjuntos infinitos.
Indicamos a leitura de dois trabalhos de Celina A. L. Mendonza: El comentario de Roberto Grosseteste
al libro VII de la ‘Física’ de Aristóteles e La infinitud del número según Roberto Grosseteste. A propósito,
este opúsculo de Grosseteste remete-nos a um consenso entre vários historiadores da filosofia: a
Universidade de Paris do século XIII concentrou os seus esforços na especulação metafísica, ao passo
que Oxford se orientou ao experimentalismo científico (num sentido próximo ao conceito que te-
mos hoje de “ciência”), o qual, naquela altura, acabou por desaguar no nominalismo e na crescente
problematização entre ser e conhecer. [N. C.]
110 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
septimo ostendit, quod in motis localiter necesse est esse primum motum
et primum motorem. Cuius ostensioni ibi coniungitur haec ratiocinatio:
convincitur primum motum moveri et primum motorem movere perpe-
tuo secundum dispositionem eandem, qua alterum nunc movet et alte-
rum nunc movetur; et est intentio secundum Averroem ostendere, quod
semper fuit et erit in dispositione, qua nunc est.
Secunda ratio Aristotelis de perpetuitate motus est haec: Si ponatur
motus simpliciter generatus et habens initium: ergo eius non-esse prae-
cessit eius esse; quia omne, quod habet initium, eius non-esse praecessit
eius esse; alioquin, cum non-esse alicuius initiati fuerit ab aeterno et sine
initio, et eius esse similiter fuit sine initio, quod est impossibile; ergo si
motus simpliciter est habens initium, eius esse et eius non-esse dividuntur
prioritate et posterioritate. Sed prius et posterius non sunt sine tempore.
Ergo cum prioritate non-esse motus fuit tempus. Sed tempus non fuit
sine motu. Ergo ante motum simpliciter fuit motus; quod est impossibile.
Dico, quod in hac ratiocinatione est deceptio propter hoc, quod in-
tellectus non distinguit inter prioritatem temporis et prioritatem, quae
Sobre a finitude do movimento e do tempo 111
este: o de que no sétimo [livro da Física], Aristóteles demonstra que nos movi-
mentos ocorridos localmente29 é necessário que haja um primeiro movimento
e um primeiro motor. A essa demonstração se combina o seguinte raciocínio:
prova-se que o primeiro movimento é movido e o primeiro motor move per-
petuamente segundo a mesma disposição pela qual um ora move e o outro
ora é movido; e a intenção é, segundo Averróis, demonstrar que [o primeiro
movimento] sempre existiu e existirá na disposição em que agora existe.
O segundo argumento de Aristóteles sobre a perpetuidade do movimento
é este: se se admite um movimento gerado simpliciter,30 e com início, o seu
não-ser precedeu o seu ser, porque em tudo o que tem início, o seu não-ser
precedeu o seu ser; caso contrário, visto que o não-ser de algo iniciado teria
existido desde a eternidade e sem início, também o seu ser seria igualmente
sem início, o que é impossível. Portanto, se o movimento simpliciter existe
tendo início, o seu ser e o seu não-ser se dividem segundo a anterioridade e
a posterioridade. Mas não há anterior e posterior sem tempo.31 Logo, com a
anterioridade do movimento do não-ser houve tempo. Mas não houve tempo
sem movimento. Logo, antes do movimento simpliciter houve movimento, o
que é impossível.
Afirmo que neste raciocínio há um engano, pelo seguinte: o intelecto
não distingue entre a anterioridade do tempo e a anterioridade que significa
29 “Tudo o que está em movimento é movido por algo”. Aristóteles, Física, VII, 1, 241b. Na
verdade, este princípio aristotélico – que na Escolástica ganhou a conhecida formulação “omne quod
movetur ab alio movetur” – refere-se não apenas ao movimento local, mas a todo e qualquer trânsito
da potência ao ato. No Livro VII da Física de Aristóteles, demonstra-se a impossibilidade de um
movimento infinito num tempo finito (VII, 1, 242b, 50) e também a necessidade de um primeiro
motor de todos os movimentos locais. Diz o Estagirita: “Se uma coisa é movida com movimento local
por outra que está em movimento, e esta que move é, por sua vez, movida por outra que não está em
movimento, e esta última por outra, e assim sucessivamente, terá de haver um primeiro movente,
porque não se pode proceder ao infinito” (Física, VII, 1, 242a, 50-55). [N. C.]
30 O termo simpliciter, em se tratando de filosofia escolástica, é de tradução problemática, porque
em boa parte dos casos não quer dizer “simplesmente”, como à primeira vista poderia parecer, mas
sim “em sentido absoluto”, em contraposição a secundum quid, cujo significado filosófico é “em certo
sentido”, “em dada perspectiva”, etc. Embora o uso do termo por Grosseteste não seja unívoco, quer
dizer, não aponte sempre para o conceito acima referido, optamos por manter a palavra latina no
corpo da tradução. [N. C.]
31 Grosseteste, em sua crítica a Aristóteles, entende que o Estagirita não concebe a sucessão não
cronométrica, ou seja, um trânsito da potência ao ato em que não esteja implicado o tempo. Para a
distinção entre sucessão cronométrica, sucessão evométrica e o “agora” eterno – o qual é medida de
todas as durações, sem ser medido por nenhuma delas –, indicamos o breve artigo do coordenador
desta Coleção Escolástica publicado no blogue Contra Impugnantes com o título Sobre a eternidade
do mundo – uma questão enfrentada por Tomás de Aquino, em <http://contraimpugnantes.blogspot.
com.br/2011/11/sobre-eternidade-do-mundo.html>. [N. C.]
112 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
32 Ao dizer que “o seu não-ser existiu na eternidade” (“eorum non-esse in aeternitate fuit”), Grosseteste
faz referência aos possíveis radicados na onipotência divina – idéias da mente divina que Deus não
trouxe ao ser, mas poderia ter trazido, se Lhe aprouvesse. [N. C.]
33 De maneira implícita, Grosseteste atribui a Aristóteles a não-consideração do instante eterno do
ser divino, ou seja, do agora permanente do Próprio Ser, sem o qual sequer poderia haver “agoras”
temporais. Por isso, logo em seguida ele afirma: “Existiu um instante primeiro e talvez existirá um
último no tempo”. O pressuposto da crítica de Grosseteste é a existência de um “supra-instante” não
limitado pelas propriedades do tempo. [N. C.]
34 Isto é, o Livro IV da Física de Aristóteles.
35 O movimento circular ao qual alude Grosseteste é inerente aos corpos celestes, na cosmologia
aristotélica. E mais: para Aristóteles, o movimento circular tem primazia sobre o movimento retilíneo
e sobre quaisquer outros movimentos, por ser infinito e eterno e nele não poder distinguir-se um
ponto de partida, um intermédio e um ponto final. [N. C.]
36 Cf. Roberto Grosseteste, “De sphaera”, I: “Intentio nostra in hoc tractatu est describere figuram
machinae mundanae et centrum (et situm) et figuras corporum eam constituentium et motus corporum
superiorum et figuras circulorum suorum.” Para entender a expressão “parte não esférica”, nesta passa-
gem do opúsculo de Grosseteste, aludimos ao tratado De sphaera, no qual, logo no início, ele diz-nos
que a astronomia descreve a “máquina do mundo”, o lugar do mundo, as figuras e os movimentos dos
114 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
mota movetur per se et non solum per accidens, eo quod partes eius per
se moventur, et quod moventur etiam localiter, sicut dicit Aristoteles. Sed
localiter moveri, sicut dicit Averroes, est duobus modis: movetur enim
localiter quia transit de uno loco ad alium, et hoc est mutare locum secun-
dum subiectum; vel quia aliter est nunc quam prius et posterius in eodem
loco, et hoc est mutare locum non secundum subiectum, sed formaliter;
et sic movetur caelum localiter et per se. Et in tali motu per se est sumere
initium; et initium est modus caeli essendi in loco suo, in quo fuit in sui
creatione, a quo modo essendi in loco suo continue post sui creationem
recessit et omnes modos essendi in eodem loco renovavit, et in fine cuius-
libet revolutionis rediit caelum ad locum primum. – Nec putet aliquis,
Sobre a finitude do movimento e do tempo 115
que a esfera inteira movida circularmente move-se per se, e não apenas per
accidens, pelo fato de que as suas partes se movem per se e porque se movem
também localmente, como diz Aristóteles. Mas o mover-se localmente, como
diz Averróis, se dá de dois modos: move-se localmente, porque transita de um
lugar para outro, e isto é mudar de lugar segundo o sujeito; ou porque agora
é diferentemente de como era antes e [será] depois no mesmo lugar, e isto
é mudar de lugar não segundo o sujeito, mas formalmente; e, desse modo,
move-se o céu localmente e per se. E em tal movimento per se está o ter início,
e o início é o modo de ser do céu no seu lugar, no qual esteve na sua criação,
do qual modo de ser no seu lugar continuamente se afastou após sua criação
e renovou todos os modos de ser no mesmo lugar, e ao fim de uma revolução
qualquer retornou o céu ao primeiro lugar.37 E não se pense que Aristóteles
corpos que o constituem e os movimentos dos corpos superiores, com as formas respectivas dos seus
círculos. Em resumo, a astronomia – última ciência do Quadrivium – descreve matematicamente o
mundo, aqui entendido como o universo inteiro dos entes compostos de matéria e forma. Resuma-
mos: a astronomia descreve as formas do mundo valendo-se da geometria; os seus tempos e movi-
mentos mediante a aritmética; e a harmonia do todo por meio da música. Como se vê, a astronomia
abarca, em certo sentido, as outras três ciências do Quadrivium, segundo Grosseteste. No que tange
especificamente ao movimento, é preciso ter em mente o seguinte princípio implicado na doutrina
de Grosseteste: todos os movimentos infracelestes, como por exemplo os que sucedem na Terra, são
dependentes dos movimentos cósmicos, ou seja, os das esferas celestes. Ocorre que nem tudo o que
– direta ou indiretamente – se move graças ao movimento das esferas celestes pode dizer-se, também,
esférico, o que é manifesto se porventura vislumbramos que as partes de uma esfera Y podem ser
geometricamente divisíveis a partir das distâncias entre o centro e qualquer ponto de sua superfície.
Cada uma dessas divisões não será esférica, embora todas participem da esfera. Valendo-nos de uma
analogia, podemos afirmar que os trânsitos nessas partes não esféricas, ainda que distantemente de-
pendentes dos movimentos das esferas celestes, localmente passam da potência ao ato a partir dos
movimentos que lhes são próprios (“motu sibi proprio”, nas palavras de Grosseteste). [N. C.]
37 É difícil acompanhar este argumento de Grosseteste, com um texto tão elíptico e compacto, que
pressupõe uma série de postulados de Aristóteles e dos astrônomos e geômetras antigos, os quais
faziam parte do horizonte de consciência dos escolásticos. No fundo, seu argumento aponta para
o seguinte: tem de haver uma “instância” ou configuração do céu que seja a primeira (e também a
última). Ele estar configurado de uma certa maneira e não de outra é o seu “início”. O céu não podia
estar configurado de todas as maneiras ao mesmo tempo, ou seria eterno em sentido simples (o que
só se atribui a Deus, ser perfeitíssimo). Em outros termos: sofremos a ilusão de que o círculo não
tem princípio, porque seu formato “acabado” nos induz a essa conclusão, fazendo-nos desconsiderar
o evento concreto que o configura.
S. Basílio, um dos grandes Padres da Igreja, séculos antes usará argumento semelhante em sua obra
Hexaemeron (Os Seis Dias da Criação): “Sem dúvida o círculo (isto é, a figura plana descrita por uma
única linha) ultrapassa a nossa percepção, e é impossível descobrirmos onde ele começa e onde ter-
mina; mas nós não devemos por isso crer que ele não tenha um começo. Embora não percebamos,
ele realmente começa em algum ponto onde o desenhista principiou a desenhá-lo a um certo raio
de distância do centro. Assim, ao verdes que as figuras que se movem em círculo sempre voltam ao
mesmo ponto, sem interromper por um único instante a regularidade do seu curso, não imaginais,
em vão, que o mundo não tem princípio nem fim.” (PG 29, 10 A-B). [N. E.]
116 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
quod Aristoteles non intendit hoc ibi probare, quia tempus et motus sunt
coaequaeva, quia dicit in complemento rationis suae haec verba: “quia igi-
tur non verum tempus erat vel erit, quando motus non erat aut non erit,
tanta dicta sint” – quia haec dixit supponendo perpetuitatem temporis et
eius infinitatem ex utraque parte.
Consimilibus rationibus eis, quae praedictae sunt, ostendit Aristoteles,
quod motus est incorruptibilis, et iste perpetuus ex parte post, et quod
non interrumpitur quiete, nec erit post motum quies in infinito tempore.
Si enim ponatur motus ultimus, post quem non erit alius, necesse est, ut
post motum adveniat conditio aut motori, aut moto, aut utrisque, propter
quam fiat de motore in actu non-motor in actu et de moto in actu non-
-motum in actu. – Et ista etiam conditio aut est motus, aut acquisita per
motum; et ita post motum ultimum erit motus, quod est impossibile.
Dico, quod in hac opinione est imaginatio temporis post omne tempus;
et haec imaginatio est falsa, si stabit caelum; et haec opinio solvitur ut supra.
Item: ultimum motum aut est corruptible aut non. Si est ens corrup-
tivum, aut est corruptor aut non. Quod si est, erit processus in infinitum.
Ergo oportet ponere ultimum motum incorruptibilem et motorem incor-
ruptibilem. Si ergo aliquando cessabit motus, quaeritur ratio, quare tunc
plus, quam prius.
Et manifestum est, quod istas quaestiones et opiniones non inducit
nisi imaginatio temporis post omne tempus et impotentia intelligendi ae-
ternitatem simplicem motoris primi secundum dispositionem unam se
habentis, mutabilia tamen temporaliter variantis.
Nec moveat aliquem, quod Aristoteles et alii philosophi probant Deum
esse incommutabilem et intemporalem et cetera talia, ut putet eum vel
alios philosophos simplicitatem aeternitatis perspicue intellexisse. Quare
scire debemus, quod multa per discursum rationis convincimus esse vera,
Sobre a finitude do movimento e do tempo 117
não pretende provar aqui que tempo e movimento são coevos, porque diz, no
complemento de seu argumento, as seguintes palavras: “que, pois, em verdade
não existia tempo nem existirá, já que não existia nem existirá movimento, tal
já foi dito”38 – porquanto ele o disse supondo a perpetuidade do tempo e a sua
infinitude, de ambas as partes.
Com razões semelhantes às mencionadas anteriormente, Aristóteles de-
monstra que o movimento é incorruptível, perpétuo quanto ao posterior, e
não é interrompido por repouso, nem haverá após o movimento um repouso
no tempo infinito. Ora, se supomos um último movimento, depois do qual
não haverá outro, é necessário que, após o movimento, sobrevenha uma con-
dição ao motor ou ao movido, ou a ambos, pela qual se faça do motor em ato
um não-motor em ato, e do movido em ato um não-movido em ato. E tam-
bém essa condição ou é movimento, ou adquirida por movimento; e assim,
após o último movimento, haverá movimento, o que é impossível.
Afirmo que essa opinião supõe a imagem de um tempo após todo tempo,
e tal imaginação é falsa,39 se ficar estável o céu [ao final dos tempos];40 e essa
opinião se resolve como antes.
E também, o último movimento ou é corruptível, ou não. Se é ente cor-
ruptivo, ou é corruptor, ou não. Se o for, haverá um processo ao infinito.
Logo, é preciso propor um último movimento incorruptível e um motor in-
corruptível. Se, portanto, o movimento cessar em algum momento, busca-se
a razão: por que então e não antes?
Ora, é patente que o que induz a essas questões e opiniões não é senão a
imaginação de [que há] tempo após todo o tempo e a incapacidade de enten-
der a eternidade simples do primeiro motor, que se mantém segundo uma só
disposição, mas que varia temporalmente as coisas mutáveis.
E que Aristóteles e outros filósofos provem que Deus é imutável e intem-
poral e outras coisas semelhantes não deve fazer ninguém pensar que ele ou
os outros filósofos compreenderam claramente a simplicidade da eternida-
de.41 Com isso devemos saber que, pelo discurso da razão, somos convencidos
tudo o que é passado foi alguma vez presente. Logo, nada no tempo é passado
que não fora presente; logo, algo foi presente antes que fosse passado. E, assim,
o passado é finito.
De modo semelhante é possível argumentar acerca do futuro: pois, embo-
ra aquele mestre não se refira ao futuro, alguns provam que o tempo é finito
quanto ao posterior da seguinte maneira: tudo foi criado por causa do ho-
mem; logo, o movimento do céu existe para que, por meio dele, haja contínua
geração e corrupção, na medida em que essas e outras mudanças auxiliam o
homem. Quando o homem, pois, não precisar mais dessas mudanças, não
haverá a causa pela qual o céu se move. O céu, portanto, ficará estável, e o
movimento e o tempo terão seu fim, quando cessar a geração humana.45
45 Grosseteste, além de cientista, foi teólogo, e nada mais congruente com a sua formação do que
encerrar este denso tratado acerca do movimento com uma pressuposição teológica: o movimento
dos céus cessará quando o homem não mais necessitar dele, sob nenhum aspecto, para viver. Em
suma, Grosseteste está a referir-se ao estado glorioso no qual os bem-aventurados não estarão sujeitos
a mutações de nenhuma natureza. [N. C.]
Posfácio
Um gigante do passado
e os anões do presente
SIDNEY SILVEIRA
A
concepção arquitetônica que os medievais tinham do saber contribuiu
sobremaneira para os grandes pensadores do período – quase sem ne-
nhuma exceção – serem polímatas. Roberto Grosseteste (1168?-1253)
não escapou a esta regra: notabilizou-se pela proficiência em diversas áreas do
conhecimento, como óptica, matemática, metafísica, direito, lógica, teologia,
geometria, medicina, física, oratória, astronomia, etc., sem jamais deixar de
lado as atividades eclesiásticas e acadêmicas que estiveram sob a sua responsa-
bilidade. Para dimensionarmos o labor intelectual de Grosseteste, a quem de
pleno direito cabe o nome de “cientista”, consideremos que alguns dos seus
importantes tratados foram escritos nos últimos dezoito anos de vida, ao lon-
go dos quais ele foi bispo de Lincoln, na Inglaterra, e principal expoente da
escola franciscana de Oxford.
Muito do que hoje se conhece como “metodologia de pesquisa científica”
se deve a insights saídos da pena de Grosseteste, cujo espírito detalhista nos le-
gou vários escritos importantes nesta área, como, por exemplo, trechos do seu
comentário aos Segundos Analíticos de Aristóteles – no qual gnosiologia e epis-
temologia integram-se numa teoria da ciência bastante singular, que, segundo
124 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento
i Cf. James McEvoy, “Man and Cosmos in the philosophy of Robert Grosseteste”, in Rev. Phil.
Louvain, 72, 1974.
ii Cf. Celina A. Lértora Mendoza, “Gnosiología y Teoria de la Ciencia em Roberto Grosseteste”,
in Revista española de filosofía medieval, 16, 2009, pp. 11-21, disponível em: <https://dialnet.unirioja.
es/descarga/articulo/3144512.pdf>.
iii Op. cit.
iv Cf. A. C. Crombie, “Robert Grosseteste on the Logic of Science”, in Actes du XIème Congrès Inter-
national de Philosophie, v. XII, Bruxelas, 1953, pp. 171-3. Veja-se: <https://www.pdcnet.org/scholar
pdf/show?id=wcp11_1953XII_0171_0173&pdfname=wcp11_1953XII_0171_0173.pdf&file_
type=pdf>.
Posfácio 125