Livro Perspectivas de Gênero
Livro Perspectivas de Gênero
Livro Perspectivas de Gênero
Organização
Ela Wiecko Volkmer de Castilho
João Akira Omoto
Marisa Viegas e Silva
Paulo Gilberto Cogo Leivas
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
ISBN 978-85-9527-039-8
ISBN (eletrônico) 978-85-9527-040-4
CDD 341.2726
Apresentação................................................................................................................9
Prefácio..........................................................................................................................13
Ótima leitura!
VALORIZAÇÃO FEMININA
Avanços e desafios de um movimento ainda em
construção no Brasil
Ó abre alas
Que eu quero passar!
(Chiquinha Gonzaga)
19
ocorreram, de forma espontânea ou integrando a agenda pública institucional,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
20
de gênero e discriminação étnico-racial do Ministério Público do Trabalho;
e o seminário sobre a questão de gênero e étnico-racial para as escolas
institucionais. 6.1 A transversalidade. 6.2 A I Conferência Nacional das
Procuradoras da República e as oficinas sobre perspectiva de gênero
e não discriminação étnico-racial no Ministério Público do Trabalho.
6.3 Seminário “Como pensar as questões de gênero e étnico-racial nas escolas
institucionais do Ministério Público?”. 7 As históricas Conferências Regionais
das Promotoras e Procuradoras de Justiça. 8 Perspectivas transformadoras:
Política Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Ministério
Público do Trabalho; e propostas e debates das conferências regionais para a
equidade de gênero no Ministério Público brasileiro. Considerações finais.
Introdução
As evidências nem sempre são confirmadas. Esperam-se de um corpo
institucional, de membras e membros do Ministério Público, formado
e informado para enfrentar as desigualdades e efetivar direitos indi-
viduais e sociais, a consciência e a combatividade necessárias a vali-
dar no espaço interno os direitos constitucionais pelos quais luta no
espaço externo.
21
que trata Boaventura de Sousa Santos (2010), e nas categorias meto-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
22
1 • Pelo olhar pioneiro: das Minas Gerais para o
Ministério Público do Brasil
Muitas são as mulheres, membras, que integram o Ministério Público
brasileiro. Esse retrato não é de hoje. Descortina-se há vários anos,
antes mesmo do novo perfil instituído com a Constituição de 1988. O
espelho reflete, mas não consegue enxergar para além das imagens apa-
rentes. A essência fica encoberta, esperando ser revelada. Esse levante
feminino começa em 2017.
1 Informação verbal fornecida por Maria Clara Costa Pinheiro Azevedo, em 2017.
23
posterior envio do Ofício Circular n. 1/2017-ENAMP, datado de 20 de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
24
Público, tendo recebido das mãos das tesistas o texto defendido e acla-
mado, em um encontro célere mas de grande significado para as bandei-
ras que passavam a ser levantadas, mais alto e com maior altivez.
25
Cármen Lúcia; a ministra do Supremo Tribunal Federal e presidente
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
26
as fantasias e, principalmente, as realidades femininas. Os sentidos são
despertados para uma nova realidade, agora possível e mais próxima!
3 • Os cenários reconhecidos
A pesquisa Cenários de Gênero, lançada em 21 de junho de 2018, reali-
zada pela Comissão de Planejamento Estratégico do Conselho Nacional
do Ministério Público, presidida pelo conselheiro Sebastião Vieira
Caixeta e conduzida pelos membros auxiliares Ana Lara Camargo de
Castro e Carlos Eduardo Almeida Martins de Andrade e por sua equipe,
faz o primeiro levantamento oficial da participação das promotoras e
procuradoras em cargos e funções de comando, decisão ou assesso-
ramento, reunindo, em detalhados gráficos, painéis quantitativos que
corroboram o diagnóstico empírico da desigualdade de gênero.
27
comando: nenhuma mulher como procuradora-geral ou corregedora-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
28
Nesse levante, projetam-se políticas de formação e de transformação
e emerge um movimento espontâneo de mulheres em busca de seus
espaços institucionais.
29
do Ministério Público, em São Paulo-SP, com 73 participantes. Essa
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
30
desígnios seguem no desenho de seu estatuto e na quantidade atual e
crescente de suas integrantes, que já totalizam o número de 500, espa-
lhadas em todas as unidades do Ministério Público brasileiro.
31
Outro ponto importante foi a participação exclusiva de mulheres como
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
6.1 • A transversalidade
Com a mudança na chefia da Procuradoria Geral da República, assume
a Diretoria-Geral da Escola Superior do Ministério Público da União o
32
procurador regional da República João Akira Omoto, iniciando a revolu-
ção no processo de formação do Ministério Público, imaginada por um
novo paradigma, inaugurado pela chefe da instituição, Raquel Dodge.
33
conhecimento; 2) comunicação, articulação interna e interinstitucio-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
35
Mentimeter, que preservava o anonimato, mas permitia a todas visuali-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
38
inserções diversificadas e adaptadas para a realidade das promotoras e
procuradoras de Justiça integrantes dos Ministérios Públicos dos Estados.
39
Franco; da Escola Nacional do Ministério Público, esta autora, promo-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
40
critérios, dificuldades e política de equidade; V - Carreira e outras jor-
nadas, gênero e família; VI - Empoderamento, lideranças e participação
político-institucional, igualdade de gênero e políticas de equidade.
41
o convite à cantora e grande artista Elza Soares, na roda de conversa,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
44
Essa a motivação que representou o elo entre as mulheres que estiveram
juntas nessas conferências, buscando a escuta institucional indispensá-
vel a permitir-lhes uma vida institucional digna, em equidade.
Considerações finais
O sol brilha, mesmo entre nuvens e tempestades. Percebem-se esse
processo de despertar para uma consciência e a mobilização para as
desigualdades de gênero e para as questões que nela se inserem, em
interseccionalidade, como esse brilho solar intenso que ultrapassa as
nuvens e o mau tempo para mostrar a sua luz, a sua força e o seu calor.
Refletir sobre esse desenrolar histórico é permitir aflorar uma grande sin-
tonia em torno de uma luta, que parecia adormecida para uma instituição
intitulada Ministério Público e a ele pertencente, defensora da democracia.
45
neutralidade positivista, tampouco a exclusiva racionalidade, sem subje-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
46
Chiquinha Gonzaga: abre alas, as mulheres do Ministério Público
querem, lutam e vão passar! Querem conquistar seus direitos e espa-
ços e seguirão... Avante sempre!
Referências
AZEVEDO, Maria Clara Costa Pinheiro de et al. Diagnóstico e perspectivas
da desigualdade de gênero nos espaços de poder do Ministério Público: “santo
de casa não faz milagre”? In: CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO
PÚBLICO, 22., 2017, Belo Horizonte. Teses aprovadas [...]. Belo Horizonte:
CONAMP; AMMP/MG, 2017. p. 629-639. Disponível em: http://www.
conamp.org.br/images/congressos_nacionais/xxii_congresso_publicacoes/
livro_de_teses_xxii_congresso_nacional_mp.pdf. Acesso em: 5 jun. 2019.
47
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Cenários de gênero.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
48
Goiânia-GO. CNMP, Brasília, 27 mar. 2019. Disponível em: http://www.cnmp.
mp.br/portal/images/noticias/2019/mar%C3%A7o/Edital_n%C2%BA_6_2019_
Regiao_Centro-Oeste_2.pdf. Acesso em: 5 jun. 2019.
49
Públicos?”. ESMPU, Brasília, set. 2018. Disponível em: http://escola.mpu.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
mp.br/integra/candidato/acao/visualizarArquivo/idArquivo/anexo16067/
download/1. Acesso em: 20 maio 2019.
50
DESAFIOS DA INCORPORAÇÃO TRANSVERSAL
DA PERSPECTIVA DE GÊNERO E ÉTNICO-RACIAL
NUMA ESCOLA DO SISTEMA DE JUSTIÇA
51
instruments, products and work goals, challenges that are more dense and
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Introdução
52
fato, a perspectiva de gênero nos seus diversos processos, instrumen-
tos, produtos e metas de trabalho. Desafios cuja superação se torna
ainda mais necessária se os propósitos considerarem as imbricações
entre desigualdades, tais como as de gênero, racial e de classes sociais,
entre outras. Tratamos especificamente das iniciativas da Escola
Superior do Ministério Público da União (ESMPU) nesse sentido, por
termos participado de atividades do planejamento de ações para trans-
versalizar a perspectiva de gênero e étnico-racial na instituição, pro-
movidas pela atual gestão, cujo documento base – o Plano de Ação –
ficou sob a responsabilidade da Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho,
Subprocuradora-Geral da República (CASTILHO, 2018).
53
tomarem para si ou questionarem, com confiança e conhecimento, a
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
54
de gênero e étnico-racial como meta institucional; e 3) designar um setor
ou pessoas focais para levar adiante o propósito da transversalização.
55
de trabalho sob uma perspectiva que não é a usual. E, especialmente,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
A partir desses nortes, foram ponderadas para este artigo algumas difi-
culdades e destacados três outros desafios. Buscou-se também propor
um rol de perguntas no intuito de contribuir com as equipes da ESMPU
e seu quadro de docentes nos esforços de adoção da estratégia.
2 • Interseccionalidades
As definições dos principais conceitos adotados no plano de ação da
ESMPU são aquelas que já têm expressão e lugar consolidados nos tra-
tados – e nos documentos a estes vinculados – e que encontram funda-
mentos igualmente pacíficos na Constituição e nas leis brasileiras. Não
se retomarão aqui as definições de gênero, equidade, transversalização
da perspectiva de gênero2, racismo etc., mas há um conceito ao qual é
57
necessário nos determos, porque está no centro dos outros três desafios
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
60
Desde a situação histórica em que a categoria foi proposta, a interseccio-
nalidade é uma das principais testemunhas da contribuição heurística
e social dos feminismos negro, de cor e do terceiro mundo, notadamente,
que colocaram em questão premissas teóricas e vieses do feminismo de
tradição iluminista e eurocentrado. É um conceito indissociável das con-
testações do feminismo negro estadunidense contra a universalização e
a naturalização das experiências parciais das mulheres brancas. Trata-se
também de um debate que envolve os aportes, na mesma linha de ques-
tionamento, mas abrindo as críticas a outras diferenças, intersecções e
opacidades, das pensadoras feministas latino-americanas, dos estudos
sobre identidades diaspóricas, deslocalizadas e híbridas, das perspecti-
vas críticas descoloniais e decoloniais (HIRATA, 2018; VIGOYA, 2016;
LUGONES, 2008; PISCITELLI, 2008; VELASCO, 2012)6.
61
luta para acabar com o sexismo, ou seja, pelo fim das relações basea-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
64
a totalidade das práticas sociais. Não é só em casa que se é oprimida,
nem só na fábrica que se é explorada. (HIRATA, 2018, p. 15).
65
de classe são interdependentes e indissociáveis” (HIRATA, 2018, p. 17).
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Prossegue a autora:
66
Do mesmo modo que gênero, a categoria analítica interseccionalidade
é indispensável para a compreensão sobre como se afetam mutua-
mente a dupla naturalização das diferenças e das desigualdades
(PISCITELLI, 2009)14.
67
Além dos fundamentos teóricos e jurídicos que respondem a esta per-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
69
também mais matizada a representação de classe social. Entretanto,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
70
Importa a construção de ações que possam romper limites vistos como
consumados e imutáveis, pois está aí uma grande barreira à equidade
se considerada em chave da tripla interseccionalidade (gênero, raça e
classe social). Note-se também a importância de serem reconhecidos os
conhecimentos das trabalhadoras e dos trabalhadores desses serviços.
71
4.1 • Perguntas orientadoras comuns aos processos de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
trabalho setoriais
A literatura sobre métodos de transversalização referenciada no plano
de ação permite concluir que o primeiro passo para iniciativas insti-
tucionais a favor da adoção interna, rotineira e transversal do enfoque
é “perguntar-se” (individual e coletivamente) o que a ação de que par-
ticipo e participamos (quando planejamos, executamos, monitoramos
ou avaliamos) pode provocar, distintamente, em relação a homens e
mulheres. Em outros termos, qual a repercussão, para as mulheres que
participam da instituição e de suas atividades e para as mulheres na
sociedade (em última instância), da ação, seus processos e produtos?
E, ainda, como pensar nessas consequências considerando especifica-
mente as mulheres que sofrem múltiplas discriminações e vivem várias
desigualdades imbricadas (as mulheres negras, as trabalhadoras que
recebem as menores remunerações, as mulheres indígenas e dos povos
tradicionais, as pessoas LGBTIQ, as mulheres em situação de rua, as
camponesas, as mulheres idosas)?
72
priorização de recursos para ações de redução de barreiras de gênero
e raça. Todas elas, e outras possíveis, reclamam por respostas que: a)
sejam atentas à representatividade das equipes que as formulam e res-
pondem; b) se originem das oitivas ampliadas; c) considerem os impac-
tos relativos à meta de promoção da equidade de gênero e raça.
73
lembrando desses quesitos para que todos os dados institucionais
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
74
Considerações finais
(Donna Haraway)
75
ESMPU não são gabinetes, são salas de aula, de treinamento e diálogo,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Referências
ABRAMO, Laís. Um olhar de gênero: visibilizando precarizações ao longo das
cadeias produtivas. In: ABRAMO, Laís; ABREU, Alice de Paiva (orgs.). Gênero
e trabalho na sociologia latino-americana. São Paulo: Alast, 1998. p. 39-61.
76
mp.br/transparencia/perspectiva-de-genero-e-etnico-racial/2018/plano_de_
acao_final_em_12-07-2018_1-1.pdf. Último acesso em: 20 jul. 2019.
77
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 75-101,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
jul./dez. 2008.
78
UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO E FEMINISTA
FRENTE AO SISTEMA DE JUSTIÇA É POSSÍVEL?
79
of the justice system. For feminist and gender epistemologies, corporealities,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
emotions, subjectivities are the demands and are taken into account by
those who formulate the laws and judge, that is, the subjectivities and the
conceptions of gender are present.
Introdução
Este artigo surge de inquietações de pesquisa, a partir dos estudos rea-
lizados no mestrado, doutorado e pós-doutorado, bem como na pós-
-graduação em História e na área de estudos de gênero do Programa de
Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, ambos programas
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)1.
Foi com base em pesquisa própria, mas também nos diálogos e apren-
dizagens com as pesquisas realizadas nos programas já citados, por
esta e por outras pesquisadoras, a partir das teorias feministas e de
gênero, que se percebeu a necessidade de articular o direito com esses
estudos e teorias. As propostas epistemológicas interdisciplinares e dos
estudos feministas e de gênero apresentam uma nova perspectiva para
os estudos das ciências, ao criticarem a suposta neutralidade, universa-
lidade e objetividade da ciência tradicional. A ciência jurídica se enqua-
dra como uma ciência que se entende neutra e imparcial.
80
As epistemologias feministas e de gênero, ao apresentarem uma nova
relação entre o sujeito e objeto e uma abordagem interdisciplinar das
temáticas, propõem que a contextualização e a experiência devem estar
presentes no processo científico, devendo ser consideradas na esco-
lha dos temas e na escrita das narrativas. Consideram-se também as
contribuições de cientistas como Sandra Harding, que, ao contestar o
modo de fazer ciência a partir das epistemologias feministas, afirma
que “la voz de la ciência es masculina y que la historia se há escrito
desde el punto de vista de los hombres (de los que pertenecen a la clase
o la raza dominantes)” (HARDING, 2002, p. 15).
81
o debate com outras áreas do saber, atentos para um debate interdis-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Mesmo com essas iniciativas, é possível afirmar que o debate dos estu-
dos de gênero atrelado ao campo jurídico ainda é pouco presente no
Brasil. Faz-se necessária a discussão em torno da não neutralidade
das decisões, das mais diferentes áreas jurídicas, realizadas por ope-
radores(as) do direito; das subjetividades dos julgadores(as) quando se
defrontam com o desempenho de papéis de gênero, como o trânsito de
homens e mulheres no espaço público; das práticas sexuais permitidas
e proibidas para homens e mulheres; da reiteração dos cuidados da
família e dos filhos pelas mulheres, entre outras questões. Também
é possível perceber a subjetividade dos julgadores em aplicar as leis
82
que abordem as questões de gênero carregadas de subjetividades e não
neutralidade, o que também é marcado por uma maioria de homens,
brancos e heterossexuais, que propõem e votam as leis em vigor.
83
por exemplo, são importantes para entender que os chamados direi-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
84
e que ganhariam maior evidência anos depois” (PEDRO; VEIGA, 2015,
p. 305). Além da perspectiva relacional do gênero, estamos também
pensando a categoria como uma prática discursiva e performativa que
conforma subjetividades no contexto das relações sociais, políticas e
culturais (BUTLER, 2003).
85
(DHOQUOIS, 2001, p. 176). Anne Marie Goetz (2008) afirma que a
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
5 “A falta de conexão entre o que foi alcançado nos níveis público e privado ilustra
uma condição essencial que faz com que estes não estejam presentes naqueles
esforços práticos que buscam promover a justiça de gênero e isso significa que
devem romper a divisão entre público e privado” (tradução nossa).
86
negativos – isto é, por meio de limitação, proibição, regulamentação,
controle e mesmo ‘proteção’ dos indivíduos relacionados àquela estru-
tura política, mediante uma ação contingente e retratável de escolha”
(BUTLER, 2003, p. 18).
87
são iguais perante a lei, nos termos da Constituição”. São esses novos
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
88
história está profundamente relacionada ao passado das ditaduras nos
países do Cone Sul (PEDRO, 2010). Também foram responsáveis por
denunciar as diversas formas de violências familiares e conjugais, que
eram práticas comuns em todas as classes sociais. Assim, a expressão
“em briga de marido e mulher não se mete a colher” passa a ser contes-
tada, como algo a ser interferido pelo Poder Público e modificado por
toda a sociedade. Também é importante o fato de que nesse período
foram denunciadas violências contra as mulheres em todas as classes
sociais, não se restringindo às classes populares.
89
Dessa forma, embora tenhamos leis específicas sobre temáticas que
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
90
fetos indesejados, devendo cuidá-los e protegê-los até o seu nascimento
com vida. Esses fetos são chamados de nascituros pela lei, e aumen-
tam a cada momento o número de legislações que visam protegê-los.
Podemos falar do Estatuto do Nascituro7, que, ao proteger os fetos,
retira direitos e autonomia das mulheres.
91
do Supremo Tribunal Federal, ouviu inúmeros depoimentos de espe-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
14 Art. 93, IX, da Constituição Federal, que dispõe acerca da publicidade dos jul-
gamentos e fundamentação das decisões judiciais.
94
as mulheres vítimas de violências, com a aplicação da Lei Maria da
Penha, por exemplo, e ainda tenha havido uma modificação na legisla-
ção penal, com a descriminalização das ofensas contra a moral sexual
(como a retirada dos crimes de adultério e sedução, por exemplo), há
uma forma diferente de julgar homens e mulheres que são autores/víti-
mas dos citados crimes. Muitas mulheres, quando são vítimas, têm os
seus comportamentos julgados, e não os comportamentos dos autores
das violências. Ainda se observa que as mulheres são protegidas pela
legislação quando se comportam como é esperado, com uma moral
conservadora, de acordo com os padrões morais de mãe e esposa. Caso
fujam desses padrões sociais, muitas vezes, não são merecedoras de
proteção legal. O que se chama à atenção é que, ainda que a proteção
legal para as mulheres seja para todas, esta só é acessível para as mulhe-
res que se comportam conforme valores e papéis morais e sociais espe-
rados. Pode parecer que essa é uma constatação aceitável para os jul-
gamentos do século passado, como, por exemplo, os comportamentos
analisados por historiadores como Marta de Abreu, Joana Maria Pedro
e Cristina Scheibe Wolff em suas pesquisas (ESTEVES, 1989; PEDRO,
1998; WOLFF, 1999), mas isso ainda se aplica em juízo até nos dias
de hoje. É o caso dos julgamentos de casos de violência sexual, como o
estupro, em que o comportamento da vítima é exposto como que para
95
misoginia no julgamento desta quando em busca de seus direitos. De
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Por esse motivo é que Roger Raupp Rios, ao analisar os votos dos minis-
tros e ministras do Supremo Tribunal Federal em relação à questão do
estupro e dos crimes hediondos, apontou a necessidade de se observa-
rem os julgados a partir de uma perspectiva feminista. Segundo Rios,
“o referido voto, lido nesta perspectiva, pode chamar a atenção dos
diversos operadores jurídicos para uma perspectiva virtualmente igno-
rada na jurisprudência nacional” (RIOS, 2002, p. 165).
96
Desta forma, ao buscarem o sistema de justiça ou o acesso a políticas
públicas locais, ao mesmo tempo em que se deve observar as especifici-
dades das mulheres, outros marcadores devem ser levados em considera-
ção. Por meio de uma ideia de Justiça de Gênero (GOETZ, 2008; SILVA,
2018) e de uma posição política inclusiva, é possível discutir a situação
de subordinação e opressão, percebendo as múltiplas vulnerabilidades.
97
inscritos na realidade histórica. Se pensarmos em termos de demo-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
98
(CEDAW) declarou que as mulheres efetivamente sofrem dificuldades
no acesso à justiça e determinou o respeito da justiciabilidade, em
que os Estados participantes devem assegurar que os operadores do
direito atuem de forma sensível às questões de gênero17. O objetivo é
garantir um julgamento justo e não discriminatório às mulheres víti-
mas de violência, por exemplo.
Referências
BORILLO, Daniel. Por una teoría queer del derecho de las personas y las
familias. Direito, Estado e Sociedade, n. 39, jul./dez. 2011, p. 27-51.
99
COSTA, Claudia de Lima Costa. O tráfico de gênero. Cadernos Pagu, São
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
100
GONZÁLEZ GARCÍA, Marta I.; PÉREZ SEDEÑO, Eulalia. Ciencia,
tecnología y género. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad,
n. 2, enero/abril 2002.
NICHNIG, Claudia Regina. Para ser digno há de ser livre: reconhecimento jurídico
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Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-
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NOBRE, Marcos et al. O que é pesquisa em direito? São Paulo: Quartier Latin, 2005.
OLIVEIRA, Melissa Barbieri de. Trans tornando o campo do direito: uma análise
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(Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas, Florianópolis, 2017.
101
OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Isto é contra a natureza? Decisões e
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
PEDRO, Joana Maria; VEIGA, Ana Maria. Gênero. In: COLLING, Ana Maria;
TEDESCHI, Losandro (orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados-MS:
UFGD, 2015. p. 304-307.
RIOS, Roger Raupp. Por uma perspectiva feminista no debate jurídico: anotações
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RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre:
Advogado, 2007.
102
sexo. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas, Florianópolis, 2005.
SILVA, Salete Maria da; WRIGHT, Sonia Jay. Uma reflexão feminista sobre
o conceito de justiça de gênero. Revista de Teorias da Justiça, da Decisão e da
Argumentação Jurídica, Brasília, v. 2, n. 1, p. 1-27, jan./jun. 2016.
103
PERSPECTIVA TRANSVERSAL DE GÊNERO
NO ENFRENTAMENTO DA CORRUPÇÃO
1 Apenas para melhor conceituar e não fugir do objeto do presente estudo, Luiz
Hanns (2017) propõe que existem três tipos de corrupção no Brasil: sistêmica,
endêmica e sindrômica. Por corrupção sistêmica, o autor entende o apodera-
mento do patrimônio público. A corrupção endêmica relaciona a corrupção do
cotidiano e a corrupção que envolve o patrimônio público. Por fim, corrupção
sindrômica está relacionada à má gestão, à burocracia e à corrupção. O autor
complementa uma perspectiva da corrupção com a outra: ela nunca é, apenas,
sindrômica, sistêmica ou endêmica.
105
Palavras-chave: Corrupção. Perspectiva de gênero. Igualdade de gênero.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Introdução
O presente artigo pretende contribuir para a constituição de uma base
de diálogo e análise sobre gênero e corrupção no cenário brasileiro.
Para tanto, define uma estrutura conceitual, visando lançar luz sobre
um assunto que ainda é muito novo na doutrina nacional.
106
Este estudo se debruçará especialmente no primeiro enfoque.
107
O artigo é dividido em quatro partes.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
108
atenção em importantes órgãos das Nações Unidas como também nos
órgãos internacionais de proteção de direitos humanos4.
109
A existência do chamado jeitinho (ou jeito) brasileiro demonstra, para
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
112
múltiplas formas. Posteriormente, passou-se a analisar a situação de
outros sujeitos historicamente discriminados de maneira múltipla. Por
fim, chega-se ao estágio de hoje, com um enfoque mais amplo, que
articula critérios como gênero, exclusão social, idade, foco na pobreza,
vulnerabilidade, migração, entre outros.
113
incorporação é o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
114
depois de quatro anos sem que houvesse decisão do Judiciário brasileiro,
o Center for Reproductive Rights (Centro por Direitos Reprodutivos) e a
Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos interpuseram denúncia inter-
nacional perante o Comitê CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher). O Comitê CEDAW
condenou o Brasil por não cumprir obrigações internacionais resultantes
de tratados de direitos humanos que o País ratificou, inclusive a CEDAW
e seu Protocolo Facultativo, bem como seu endosso às resoluções relati-
vas à prevenção da mortalidade materna. O comitê ressaltou “a existência
de uma discriminação de fato contra mulheres, especialmente mulheres
de setores vulneráveis da sociedade, como mulheres negras” e enfatizou
a ligação entre a discriminação de gênero e outros fatores que afetam as
mulheres, assentindo (apenas da defesa do Estado brasileiro, que alegou
que a discriminação não foi um fator decisivo para a morte da Alyne) que
a discriminação com base em sexo, raça e renda afetou ainda mais a falta
de acesso a serviços de saúde de qualidade, concluindo que a “[...] Sra.
da Silva Pimentel Teixeira foi discriminada em razão não somente de seu
sexo, mas também com base na sua condição enquanto mulher negra e
de seu status socioeconômico”12.
12 Cf. COMITÊ CEDAW. Alyne da Silva Pimentel vs. Brazil. Comunicação n. 17/2008.
Documento da ONU: CEDAW/C/49/D/17/2008, 2011, §§ 21; 7.7.
115
da concepção de universalidade de direitos humanos e igualdade o
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
13 O estudo foi elaborado com o intuito de produzir dados nacionais para a pro-
posta da Comissão de Estatística das Nações Unidas (CMIG) – United Nations
Statistical Commission –, que determinou, no âmbito da discussão sobre os
indicadores que irão monitorar as agendas dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) – também chamada de Agenda 2030 – e do Consenso de
Montevidéu sobre População e Desenvolvimento, os que servirão de parâmetro
na mensuração da desigualdade de gênero por países e regiões.
116
propostos, foram realizadas desagregações possíveis nas bases de
dados existentes de forma a refletir a realidade brasileira na qual as
desigualdades se estruturam em torno de desvantagens historica-
mente acumuladas. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2018, p. 12).
117
O que se percebe é que indivíduos podem ser vítimas diretas ou indi-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
118
No estudo do UNDP, reconhece-se ainda a existência de formas espe-
cíficas de corrupção baseadas no gênero, como o abuso de poder em
troca de favores sexuais. De acordo com o estudo, as mulheres repre-
sentam mais de 80% das vítimas de tráfico de seres humanos, trabalho
ou exploração sexual e casamentos forçados.
Uma revisão global recente preparada para a Unesco sobre violência base-
ada em gênero (School-related gender-based violence – SRGBV) revelou
que, apesar das diferentes conceituações de violência baseada em gênero
e dos métodos variados de coleta de dados, há alta incidência de assé-
18 Cf. WORLD BANK. World Development Report 2012: gender equality and
development. Washington, DC: World Bank, 2012. Disponível em: https://
openknowledge.worldbank.org/handle/10986/4391. Acesso em: 2 abr. 2019.
Especificamente sobre a realidade da América Latina, ver o relatório da UNDP:
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. UNDP’s Regional Bureau
119
Entre os múltiplos fatores que intensificam a desigualdade de gênero
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Além disso, os direitos civis das mulheres frequentemente não são pro-
tegidos, e elas são tratadas de forma desigual perante a lei. Em socieda-
des onde o sistema de aplicação da lei é corrupto, meninas, mulheres e
outras minorias são fortemente afetadas quando se trata de casamento,
divórcio, guarda de crianças, independência financeira, acesso à terra e
direitos de propriedade, violência doméstica, tráfico de pessoas, alega-
ções de adultério e estupro, entre outros.
Conclusão
A igualdade de gênero é necessária para um desenvolvimento sustentá-
vel e inclusivo, que não será alcançado até que direitos e oportunidades
iguais sejam garantidos. Enquanto existir corrupção, a desigualdade
continuará a minar a construção de sociedades sólidas e prósperas.
for Latin America and the Caribbean. Gender and corruption in Latin America: is
there a link? Working document. New York: UNDP, 2014. Disponível em: https://
www.undp.org/content/dam/rblac/docs/Research%20and%20Publications/
Democratic%20Governance/Gender_and_Corruption_in_Latin_America_Is_
There_a_Link_Final_10july.pdf. Acesso em: 4 abr. 2019.
120
A democracia e a justiça não prosperarão de forma eficaz, a menos que
haja uma abordagem integral para enfrentar a corrupção. Os direitos
humanos, a igualdade e o empoderamento das mulheres devem ser
enfatizados como elementos-chave na luta contra a corrupção. Uma
perspectiva de gênero e uma abordagem baseada em direitos são essen-
ciais para uma agenda de enfrentamento mais eficaz.
Referências
ABADE, Denise Neves. Direito internacional anticorrupção no Brasil. Revista
da Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão, Asunción, ano 7, n. 13,
p. 213-232, mar. 2019.
HANNS, Luiz. Qual das três corrupções decidiremos combater? Estadão, São
Paulo, 27 maio 2017. Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/
geral,qual-dastres-corrupcoes-decidiremos-combater,70001816141. Acesso
em: 14 ago. 2019.
ROSENN, Keith S. Brazil’s legal culture: the jeito revisited. Florida International
Law Journal, Miami, vol. I, p. 1-43, 1984.
122
UMA PROPOSTA DE ATUAÇÃO PARA O
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
A experiência do Ministério Público Federal
no Estado do Amazonas
Abstract: This article aims to demonstrate that the copping against obstetric
violence must assume that the humanization of care for parturient requires
123
the recognition of the protagonism of the woman in her parturition. For such
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Introdução
No Brasil, um grande número de mulheres é vítima de violência
durante o parto ou em situação de abortamento, no estado gravídico
ou puerperal, em estabelecimentos públicos e privados que deveriam se
dedicar à acolhida e ao atendimento integral e universal à saúde, con-
forme preconiza a normativa que rege o Sistema Único de Saúde (SUS).
124
Em alguns casos, contudo, a população logra identificar a violência e
busca assistência de entes que compõem os sistemas de saúde e de justiça.
Nessas hipóteses, para a constante e progressiva afirmação de direitos,
importante que as entidades provocadas estejam preparadas para ofertar
respostas oportunas e efetivas às demandas que lhes são apresentadas.
O presente artigo tem como objetivo propor uma reflexão sobre o papel
do Ministério Público Federal no enfrentamento à violência obstétrica
e, por via de consequência, na construção de políticas públicas volta-
das à garantia de um Sistema Único de Saúde que proporcione integral
observância ao direito à saúde e à dignidade das parturientes.
125
direitos da mulher vítima desta modalidade de violência1, necessário
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
128
O déficit de efetividade do farto regramento previsto pelo Ministério
da Saúde justifica-se pela dificuldade de ruptura com os padrões cul-
turais adquiridos conforme a exposição histórica trazida, os quais
ainda se encontram presentes no cotidiano dos diversos atores envol-
vidos na atenção à saúde e na defesa dos direitos da mulher. A pro-
gressividade característica dos direitos humanos (SARLET, 2006),
contudo, demanda contundente atuação do Poder Público para a
superação de tal realidade.
129
Ante a insuficiência das medidas normativas adotadas e a permanên-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
130
feminino, [...], como sendo explicações científicas e objetivas sobre
corpo e sexualidade.
Uma das expressões deste viés é a crença de que o corpo feminino é essen-
cialmente defeituoso, imprevisível e potencialmente perigoso, portanto
necessitado de correção e tutela, expressa nas intervenções. Tal crença
leva à superestimação dos benefícios da tecnologia, e a subestimação, ou mesmo
invisibilidade (cegueira), quanto aos efeitos adversos das intervenções.
131
da legislação penal vigente no País, a qual, por óbvio, é plenamente
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
132
com vistas à correção do déficit de efetividade das normas de humani-
zação da assistência ao parto no Sistema Único de Saúde.
133
de irregularidades que possuem potencial de afetar toda a coletividade
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
134
Organizada na sede do próprio Ministério Público Federal, a audiên-
cia pública ocorreu com a participação de um público de mais de 140
pessoas, composto por vítimas, profissionais da saúde e do direito e
representantes de órgãos governamentais. Em mais de quatro horas
de reunião, muitos foram os relatos de violência obstétrica feitos pelas
vítimas ou por pessoas que as representavam.
135
Universidade Federal do Amazonas, a Universidade do Estado do
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
136
obstétrica e prestam assistência de excelência para aquelas que bus-
cam seu amparo. Antes do termo de cooperação, a assistência jurídica
não era especializada e a instituição, assim como o Ministério Público
Federal, não tinha expertise para a exata compreensão dos danos sofri-
dos pela mulher como práticas de violência obstétrica.
Esta última, por ser mais complexa, merece explicação mais pormenorizada.
137
O Estado do Amazonas reconheceu, ao firmar o termo de coopera-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
138
A despeito dos mais de oitenta relatos de violência obstétrica registrados
em abril de 2019, apenas no Ministério Público Federal do Amazonas,
quase todas as maternidades de Manaus possuem o selo IHAC, o que
também foi objeto de questionamento no bojo da ação coletiva manejada.
Conclusão
A violência obstétrica é um complexo conceito que abarca diversas
formas de violência contra a mulher em estado gravídico ou puerpe-
ral que busca atendimento à saúde. Trata-se de prática reconhecida
internacionalmente e culturalmente assimilada ao cotidiano de pro-
fissionais e vítimas.
139
Para seu enfrentamento, portanto, a atuação na defesa de direitos deve
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
140
Certo é que, em uma época em que direitos humanos se encontram
sob ataques explícitos e contínuos, não podem os órgãos que com-
põem o sistema de justiça se omitirem na afirmação dos direitos e da
dignidade das mulheres, sob pena de assumirem papel de coautores
das violações que devem enfrentar.
Referências
AGUIAR, Janaína Marques. Violência institucional em maternidades públicas:
hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Tese
(Doutorado em Medicina Preventiva) – Faculdade de Medicina, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/5/5137/tde-21062010-175305/publico/JanainaMAguiar.pdf.
Acesso em: 6 maio 2019.
AGUIAR, Júlio César de. O direito como sistema de contingências sociais. Revista
da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 37, n. 2, p. 164-195, jul./dez. 2013.
Disponível em: https://doi.org/10.5216/rfd.v37i2.23681. Acesso em: 6 maio 2019.
141
http://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
142
em Medicina Preventiva) – Faculdade de Medicina, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1996. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/969898/mod_resource/content/1/Assist%C3%AAncia%20
ao%20parto%20e%20rela%C3%A7%C3%B5es%20de%20g%C3%AAnero.
pdf. Acesso em: 6 maio 2019.
143
LANSKY, Sônia et al. Pesquisa Nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
MAIA, Mônica Bara. Assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: MAIA, Mônica
Bara. Humanização do parto: política pública, comportamento organizacional e
ethos profissional. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. p. 19-49. Disponível em:
http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289.pdf. Acesso em:
6 maio 2019.
144
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). The world health report
1998 – life in the 21st century: a vision for all. Genebra: World Health
Organization, 1998. Disponível em: https://www.who.int/whr/1998/en/.
Acesso em: 6 maio 2019.
145
DO QUE PRECISAM AS PROMOTORAS E
PROCURADORAS DE JUSTIÇA DOS MINISTÉRIOS
PÚBLICOS ESTADUAIS DO BRASIL?
Uma amostra e análise comparativa da igualdade de
género nos Ministérios Públicos Estaduais do Brasil e
nos países da União Europeia
147
chegar à capital, a um cargo fixo? Será que comprometem a sua carreira em
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Abstract: The study entitled Cenários de Gênero carried out by the High
Council of the Public Prosecution Service analyzed the degree of representation
of women within its leadership positions, establishing that women only
occupied 39% of these positions of power; it stimulated the debate regarding
the obstacles that women face in order to access top positions in the Public
Prosecutor’s Office. It has been assessed that there is an incorrect perception
of the role women will play in these positions of power. This stigma does
not only represent an economic and social cost, but it is also psychologically
damaging to women, as it involves their downgrading, depreciation and –
in many cases – the silencing of their voices. Men are chosen for so-called
“positions of trust” more frequently, as they are predominantly selected for
the position of secretary-general, chief of staff and adviser, as well as being
the majority in higher councils, general prosecutors’ collegial bodies and
also in prosecutors’ offices at the federal level. It is essential to evaluate the
obstacles to women’s career progression in this area: how long do they take
to get to a stable position, to a capital city? Do they compromise their career
due to the maternity or to the displacement of their families? Is there or not
gender balance in the evaluation procedures when they enter the profession?
Is there gender parity on the jury panels regarding competitive examinations,
in major power spheres and decision-making fora? These and other questions
will be approached in this paper in order to contribute to paint a more detailed
picture of the current “gender scenario” of Brazil’s Public Prosecution Office
at state level, presenting suggestions on how to tackle the problems faced by
women in these contexts and comparing them with the results of a study on
gender balance in legal professions from the European Union.
Introdução
Coube-me a honra de poder intervir, como perita sénior de igualdade de
género, no painel da primeira de várias conferências regionais de pro-
motoras e procuradoras de Justiça dos Ministérios Públicos Estaduais
do Brasil em fevereiro de 2019, em colaboração com a União Europeia.
Essas conferências – que ainda decorrem – são de vital importância no
processo de diálogo entre o Brasil e a União Europeia sobre perspetivas
de igualdade de género no Ministério Público.
Este artigo tem como base a pesquisa preliminar que levei a cabo pela
União Europeia no âmbito do acompanhamento dessas conferências,
tendo utilizado excertos dos dados que analisei para primeira confe-
rência regional a título exemplificativo neste contexto. Também inclui
perspetivas da União Europeia sobre a representatividade das mulheres
nas carreiras jurídicas em geral, e no Ministério Público em particular.
1 • Abordagem geral
Mesmo com maior taxa de escolaridade, as mulheres continuam
sub-representadas nos cargos gerenciais do Ministério Público do
Brasil e nas esferas da vida pública (CONSELHO NACIONAL DO
150
MINISTÉRIO PÚBLICO, 2018, p. 5; COELHO, 2018). Nos cargos eleti-
vos do Ministério Público, a participação feminina é muito baixa, o que
também se reflete no âmbito municipal (CLAVERY, 2017).
151
Entre os vários subpontos deste objetivo de desenvolvimento sus-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
152
sugestões iniciais para mitigar os problemas vividos pelas mulheres nes-
tes contextos, não só no Brasil mas também na União Europeia.
3 Veja-se The gender pay gap in the EU, com informação estatística incluída, da
Comissão Europeia. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/policies/justice-
and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/gender-pay-gap-situation-
eu_en. Acesso em: 17 nov. 2018.
153
não tinham completado o tempo necessário para se aposentarem e
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
154
Diante destes problemas, foram apresentadas duas medidas para travar
esta má imagem no Judiciário: a diferenciação de funções profissionais,
a fim de permitir alguma possibilidade de diferenciação masculina na
França, e a possibilidade de movimentação na carreira para posições
mais altas no Judiciário, não só na França mas também na Holanda,
já que neste último país, o Judiciário tem-se mantido como área quase
exclusivamente escolhida por homens (97%), enquanto na França a
proporção de mulheres e homens a optar por esta via tem sido de 40%
de mulheres e 60% de homens.
155
profissional interno e externo, as respostas distribuíram-se entre
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
156
em concursos de remoção, a maioria das mulheres respondem em sen-
tido afirmativo, sendo metade das justificações relacionada com a falta de
estrutura de serviços (de saúde incluídos) ou o difícil acesso e a falta
de condições de educação para os filhos/as no local da promoção.
157
Quanto ao Ministério Público ser ou não um bom lugar para trabalhar,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
158
para procuradoras públicas (DIREÇÃO GERAL DAS POLÍTICAS
INTERNAS DA UNIÃO EUROPEIA, 2017, p. 26).
159
homens –, assim como a falta de apoio familiar e a existência de respon-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
160
Já a análise do estudo europeu salienta que, como as posições de pro-
motoria pública são maioritariamente alocadas na base do mérito
académico, as hipóteses de as mulheres obterem um lugar são exce-
lentes na União Europeia, sendo as mulheres, efetivamente, a maioria
entre juízes/as e procuradores/as (DIREÇÃO GERAL DAS POLÍTICAS
INTERNAS DA UNIÃO EUROPEIA, 2017, p. 25). Contudo, constata
também que, em quase todos os países analisados, quanto mais alta
a posição, mais baixa é a proporção de mulheres. De acordo com esta
análise, isto deve-se ao facto de existirem menos mulheres a exercer
funções como Juíza-Presidente, em posições em tribunais que não
sejam de primeira instância ou em tribunais supremos. Assim, o estudo
conclui que não se trata de uma questão geracional que pode ser resol-
vida com o decorrer do tempo, já que as estruturas de qualificação
informal para postos de carreira e os mecanismos de seleção benefi-
ciam os homens (DIREÇÃO GERAL DAS POLÍTICAS INTERNAS DA
UNIÃO EUROPEIA, 2017, p. 26).
161
suporte às vítimas de assédio, garantindo sigilo, segurança e apoio psico-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
162
superiores de mulheres face ao número de homens (DIREÇÃO GERAL
DAS POLÍTICAS INTERNAS DA UNIÃO EUROPEIA, 2017, p. 86-87).
164
o Direito está sempre em contínua reelaboração, porque é socialmente
construído. Assim, são as dinâmicas sociais que operam esta trans-
formação, que forçam a alteração dos seus mecanismos e que podem
impregnar os sistemas jurídicos de visões focadas nos direitos huma-
nos e na igualdade, sendo as teorias feministas do Direito um vital
contributo para esta luta (DUARTE, 2011, p. 10).
Referências
ARAÚJO, Luciana. Mulheres no Ministério Público: em debate a desigualdade
de gênero. Agência Patrícia Galvão, Notícias, São Paulo, 21 ago. 2017. Disponível
em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/politica/mulheres-no-
ministerio-publico-em-debate-desigualdade-de-genero/. Acesso em: 8 fev. 2019.
165
DUARTE, Madalena. Violência doméstica e a sua criminalização em Portugal:
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
166
ASSIMETRIAS DE GÊNERO NO
SISTEMA DE JUSTIÇA
Reflexões a partir da realidade das advogadas
167
escritórios de advocacia no início da carreira, ainda estão em minoria
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Abstract: Law has been, in the past, the preferred profession of the sons
of wealthier families in Brazil. The daughters of those families, in its turn,
were educated only for marriage. Gradually, since the beginning of the
twentieth century, women became less absent from public spaces, and in
the last decades, in Brazil, as in much of the world, legal courses have been
feminized. However, although women are now the majority of law school
students and law firms early in their careers, they are still the minority at
the highest positions and, more specifically, as associate of such offices.
Based on the study of the female presence in Law (BERTOLIN, 2017a), this
article analyzes data on the female presence in legal careers (BONELLI,
2013a, 2013b; CAMPOS, 2018; CASTILHO, 2016; CNJ, 2014), in order to
show how some of the issues that exposed gender inequality in Law have
also been pointed out in the Brazilian Public Prosecution Service and in the
Magistracy. Although it is not yet possible to present definitive conclusions,
these sources provide important hypotheses to be confirmed (or corrected)
about the relations between gender and the justice system.
168
Introdução
O presente artigo decorre da pesquisa de pós-doutoramento da autora,
realizada na Superintendência de Educação e Pesquisa da Fundação
Carlos Chagas, nos anos de 2015-2016, sob a supervisão da Professora
Doutora Maria Rosa Lombardi e publicada no livro Mulheres na Advocacia:
padrões masculinos de carreira ou teto de vidro (BERTOLIN, 2017a)1.
169
Isso não chega a causar estranhamento, já que a literatura relata que,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
170
Foi feita agora uma análise, só um parêntese. Foi feita agora uma pes-
quisa, já dei ciência à ministra Rosa, em todos os tribunais constitu-
cionais onde há mulheres, o número de vezes em que as mulheres são
aparteadas é 18 vezes maior do que entre os ministros… E a minis-
tra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: “como
é lá?”. Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então
nós não somos interrompidas.
Essa prática é tão comum que existe uma palavra, na língua inglesa,
para descrevê-la: manterrupting, que significa interrupção masculina.
171
(BERTOLIN, 2015; 2017a). Perceber a existência do teto de vidro
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
172
desempenhando a maior parte das tarefas que originalmente lhes
cabiam no espaço doméstico 4.
4 Segundo o IBGE (2018, p. 1), as mulheres gastam em média 18,1 horas por
semana com o trabalho doméstico não remunerado, enquanto os homens dis-
pendem em média 10,5 h. Isso acarreta àquelas, por exemplo, menos tempo para
descanso e lazer, além de inevitável desigualdade no mercado de trabalho.
5 Segundo o autor, “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela
dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social
funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a domina-
ção masculina sobre a qual se alicerça” (BOURDIEU, 2011, p. 18).
173
tende a ser utilizado pelas mulheres interessadas em ascender. Ele pode
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
174
mulheres em bancas de concurso, eventos institucionais, cursos,
palestras, encontros e seminários 6.
Vale lembrar que os cursos jurídicos hoje têm ampla maioria de discen-
175
entre juízes e desembargadores federais e estaduais: na primeira ins-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
tância, 36% eram mulheres e 64% eram homens; enquanto nos tribu-
nais, elas eram apenas 21,5% dos desembargadores; e nos tribunais
superiores, entre os ministros, menos numerosas ainda, representando
apenas 18,4% (CNJ, 2014).
[...]
[...]
176
em 21 de junho de 2018 e revelaram que os quatro ramos do Ministério
Público da União (Ministério Público Federal, Ministério Público Militar,
Ministério Público do Trabalho e Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios) e as 26 unidades dos Ministérios Públicos dos Estados eram
constituídos por 61% de homens e 39% de mulheres.
177
Segundo a teoria da identidade social, os seres humanos se identifi-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
178
prestígio social e que durante mais de 400 anos funcionou “perfeita-
mente” sem mulheres. (CAMPOS, 2018, p. 55).
179
e Varas de Família, áreas que exigem maior atenção aos vulneráveis e
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
180
nunca ter sofrido os efeitos da desigualdade de gênero, quando concursan-
das, na etapa das entrevistas pessoais, tiveram suas vidas pessoais e conju-
gais colocadas como critério seletivo, mesmo que de forma não assumida.
Disparadamente recorrentes foram os questionamentos sobre: para as
casadas, o que fariam com os maridos e/ou filhos caso fossem alo-
cadas no interior. Para as solteiras, se iriam sozinhas para comarcas
distantes e se namorariam alguém lá. Além disso, sobre a vida pessoal,
foram repetidamente narradas as perguntas sobre: se iriam aos clubes,
se usariam biquíni, que tipos de roupa usariam e se frequentariam fes-
tas. Até mesmo suas vidas sexuais foram trazidas à tona. Há também
o questionamento sobre a coragem de se mudar para o interior. E 90%
delas afirmaram taxativamente que estes tipos de questionamentos,
especialmente os de cunho pessoal, jamais são feitos para os candida-
tos homens. (Grifo nosso).
181
Consoante Ela Wiecko V. de Castilho (2016, p. 81-82),
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Essa parece ser uma das razões pelas quais as mulheres não costumam
se inscrever nos concursos para carreiras jurídicas públicas na mesma
proporção que os homens. Algumas iniciativas simples poderiam con-
tribuir para alterar a realidade, como um trabalho a ser realizado per-
manentemente, pelos cursos jurídicos e também pelas Escolas do MP e
da Magistratura, de conscientização de que essas carreiras são carreiras
para profissionais do Direito, de todos os gêneros.
Já faz uns cinco anos, pelo menos, que, pelas pesquisas que a gente
faz aqui, o número de Estagiárias e Juniores no Escritório, recém-
-formadas, mulheres, é sempre maior que o número de homens. Só
que, conforme vai ficando mais velho, não adianta, esse percentual
maior do começo vai perdendo e a gente continua, a partir de Pleno
e Sênior, com um número maior de homens em relação às mulheres.
182
Outra sócia ouvida (a Entrevistada 23 – E23), com 46 anos de idade
e há 26 no Escritório G, ofereceu melhores pistas sobre as razões por
que isso acontece:
5 • A ascensão na carreira
A condição de sócio é o maior indicador do sucesso de um(a) profissio-
nal da advocacia. O(A) sócio(a) participa da propriedade do escritório,
supervisiona o trabalho de outros(as) profissionais e recebe um percen-
tual sobre os seus lucros.
183
Segundo Bertolin (2017a, p. 154),
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
184
“Jurídico de Saias”, por iniciativa de Josie Jardim, que na ocasião
havia assumido a Diretoria Jurídica para a América Latina da General
Eletric. O grupo continua existindo e objetiva discutir a carreira jurí-
dica dentro das organizações, tendo em vista que as mulheres que
ingressam nos departamentos jurídicos ainda não dispõem de mode-
los femininos para se espelhar.
185
não concordavam. Era aniversário do filhinho dela e ela não voltou. No dia
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
seguinte ela voltou, foi falar com o menininho que estava lá brincando e ele
deu as costas e foi embora. Aí a mãe foi atrás e falou “o que houve?”. Ele falou
“você não veio para o meu aniversário. Eu não tenho mais mãe”. Aí ela pediu
demissão. Isso eu vi acontecer. Porque é inviável para uma mãe.... Porque
isso é cultural. É inviável para uma mãe ficar sem saber a que hora que volta
para casa porque está trabalhando. (Grifos nossos).
Eu acho que sim [as demandas familiares ainda recaem sobre a mulher]. Eu
acho que se os dois tiverem que caçar, o ninho fica desprotegido. (Grifo nosso).
186
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, havia 40 mulheres, “apon-
tando expressivos quase 30%”.
vale frisar que, na listagem de São Paulo, é possível saber a origem do/a
desembargador/a e, no estado, quase metade delas é proveniente da
OAB ou do MP (Ministério Público). Ou seja, entraram pelo Quinto
Constitucional. Se fôssemos mensurar o percentual de desembargado-
ras de carreira mesmo (que vieram da magistratura), o mesmo cairia
pela metade [...]. (CAMPOS, 2018, p. 60).
187
Em ambas as pesquisas, tanto entre as advogadas como entre as pro-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
188
por exemplo. Mas não é rotina. Aliás, até o Sócio tem que dar exemplo.
Então, há uma certa vontade de que todo mundo do Escritório, Sócios
e Associados, cheguem às 09h00, 09h30. O horário de saída nunca
tem. Ah, não tem. É a hora que acabar o trabalho naquele dia...
Dessa forma, quando uma mulher escolhe uma profissão tida como
masculina, ainda que possua todos os atributos e a qualificação neces-
sários para exercê-la, deve adaptar-se ao que é valorizado nessa car-
reira. Esse é um importante mecanismo de segregação, que é trans-
plantado para o ambiente de trabalho, objetivando manter o monopólio
masculino sobre a atividade profissional (CHIES, 2010, p. 526).
189
precisa ter uma estrutura montada, que é cara. Precisa ter uma babá
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
muito boa. Precisa ter um chofer muito bom. E não deixar que a educa-
ção da criança seja dada pela babá e pelo chofer. Principalmente quando
[o filho] é pequenininho. É uma realidade da vida... (Entrevistado 10,
75 anos, divorciado).
Agora meus filhos já vão para a escola. Mas ainda preciso da babá,
porque não tenho horário para sair, não tenho horário para entrar.
Ontem e anteontem eu estava em outro estado. Posso precisar ir a qual-
quer momento. Na próxima semana, irei para os Estados Unidos, fui
convidada para palestrar em um evento que vai haver lá, no Escritório.
Preciso de babá, sem babá não dá para trabalhar não. (E17, 38 anos,
casada e mãe de 2 filhos).
A minha mãe leva meus filhos para o dentista, busca na escola, até
hoje. Agora, quem supervisiona sou eu, quem sabe se a babá está
fazendo direito, se eles comeram bem, se eles fizeram lição, sou eu,
mas o segredo da minha tranquilidade é a babá. (E7, 41 anos, casada
e mãe de 3 filhos).
190
desesperada porque às vezes não tem ninguém para pedir para buscar e
precisa sair, enfim... (E9, 25 anos, solteira e sem filhos).
Sabe o que eu percebi? Várias advogadas que eram muito boas e tinham
uma ótima carreira a seguir aqui saíram do Escritório porque o marido
não era companheiro em casa, em termos de ajudar com os filhos. Não
é dinheiro, é uma questão de [apoio]... Elas comentavam, muitas delas
minhas amigas, que foram embora, comentavam assim: “-Se hoje eu tiver
que trabalhar até meia-noite, eu preciso arranjar uma babá extra ou pedir
para a minha mãe ficar com os meus filhos, porque ele não fica”. Na ver-
dade, o marido valoriza a mulher até um certo limite do que não prejudique o
conforto dele. Eu vi várias vezes isso e ainda vejo aqui no Escritório. Eu
vejo maridos ligando e falando: “-Você não vai voltar para casa agora, não
sei o que lá? Porque os filhos estão te chamando”. Ela fala: “– Mas eu
estou em um projeto e hoje eu preciso ficar até mais tarde”. O “cara” usa
Vale observar que a mesma sócia enfatizou que o fato de o marido trabalhar
em empresa e ganhar muito menos que ela o incomoda, embora ele tenha
um bom salário. Disse, na sua entrevista, que ele afirma, constantemente,
191
que, ainda que no futuro ela venha a parar de trabalhar, ele não vai parar,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Conclusão
A feminização das profissões não tem modificado a lógica com que elas
têm sido exercidas ao longo das décadas: uma lógica masculina, que se
tenta fazer crer que seja neutra. Isso tem ocorrido em diversas profissões
jurídicas, públicas e privadas, em maior ou menor grau, dependendo do
aspecto, e tem feito com que as mulheres se deparem, nesses espaços
tradicionalmente masculinos, com os mais diversos tipos de problemas.
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aux régimes d’inégalité. Sociologie du Travail, Paris, v. 51, n. 2, p. 199-217,
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sorg/deixem-a-carmen-lucia-e-todas-as-mulheres-falar/. Acesso em: 2 maio 2019.
197
IGUALDADE DE GÊNERO, CIDADANIA
E DIREITOS HUMANOS
Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself,
I am large, I contain multitudes.
Me contradigo?
Muito bem, me contradigo;
sou grande, contenho multitudes.
(Walt Whitman)
Deborah Duprat
Subprocuradora-Geral da República. Procuradora Federal dos
Direitos do Cidadão.
Introdução
Com o advento da modernidade ocidental, as relações de gênero fica-
ram fora do âmbito da justiça. Desde os primeiros teóricos do contrato
social1, estabeleceu-se a diferença entre justiça e vida boa, que se tra-
1 O contrato social é tomado aqui como ponto de partida porque embrião dos
princípios fundamentais da sociedade política e porque, conceitualmente, pres-
supõe uma situação inicial de participantes livres e independentes.
199
duziu numa distinção entre o público e o doméstico. A esfera da justiça
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
A luta das mulheres, que se inicia na década de 1960, é, portanto, uma luta
que não pode ignorar os campos da justiça e do direito5. As reivindicações
2 Kant (La metafísica de las costumbres. Madrid: Tecnos, 1989. p. 315) fazia uma
distinção entre cidadãos ativos (aqueles que participam da elaboração do con-
trato social, têm direito ao voto e se caracterizam pela independência) e passivos
(aqui incluídas as mulheres, as crianças e adolescentes, os empregados, enfim,
todos aqueles que dependem de outros para sua subsistência; apenas a sua dou-
trina dos direitos pré-políticos concede alguns direitos a esses indivíduos).
3 BENHABIB, Seyla. El ser y el otro en la ética contemporánea – feminismo, comuni-
tarismo y posmodernismo. Barcelona: Gedisa, 2006. p. 178.
4 Bourdieu (A dominação masculina. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
p. 75) nos fala das “expectativas coletivas” que “estão inscritas na fisionomia do
ambiente familiar, sob a forma de oposição entre o universo público, masculino,
e os mundos privados, femininos, entre a praça pública (ou a rua, lugar de todos
os perigos) e a casa (já foi inúmeras vezes observado que, na publicidade ou nos
desenhos humorísticos, as mulheres estão, na maior parte do tempo, inseridas no
espaço doméstico, à diferença dos homens, que raramente se veem associados à
casa e são quase sempre representados em lugares exóticos), entre os lugares desti-
nados sobretudo aos homens, como os bares e os clubes do universo anglo-saxão,
que, com seus couros, seus móveis pesados, angulosos e de cor escura, remetem a
uma imagem de dureza e de rudeza viril, e os espaços ditos ‘femininos’, cujas cores
suaves, bibelôs e rendas ou fitas falam de fragilidade e de frivolidade”.
5 Há também uma luta que se dá no plano do conhecimento e que vai aproximar
as feministas do movimento por alguns chamado de pós-moderno. A obra que
analisa mais detidamente o tema é de Seyla Benhabib, identificada na nota 3.
200
começam pela igualdade de oportunidades, especialmente no acesso ao
mercado de trabalho e no direito ao voto, e incorporam, numa fase poste-
rior, uma gramática em que valor, fala, imagem, experiência e identidade
passam a ser o centro da luta política6. Posteriormente, agregam-se a estas
as reivindicações por participação. As feministas da atualidade entendem
que não é possível falar-se em justiça sem que estejam incorporadas, a um
só tempo, as dimensões culturais, econômicas e políticas.
1 • Dimensão cultural
As várias teorias do reconhecimento são orientadas para a emancipação
da dominação e têm uma ideia aproximativa comum: é preciso que
o sujeito se saiba respeitado em seu entorno sociocultural como um
202
ser ao mesmo tempo autônomo e individualizado12. A noção imedia-
tamente correlata à de reconhecimento é a de identidade, e esta, como
acima referido, foi o motor das lutas travadas a partir dos idos de 1960.
12 HONNETH, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social con-
flicts. Cambridge: Polity Press, 1995. p. 258. O próprio Honneth, além de vários
outros autores (Mead; Durkheim), veem nos escritos de Jena, do jovem Hegel, o
embrião das doutrinas do reconhecimento. Para Hegel, as relações de reconhe-
203
A luta das mulheres vem sendo não só uma luta por identidade mas
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
204
identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade
normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é
tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simples-
mente como a identidade. Paradoxalmente, são as outras identida-
des que são marcadas como tais. Numa sociedade em que impera
a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado
uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hege-
monia cultural estadunidense, “étnica” é a música ou a comida dos
outros países. É a sexualidade homossexual que é “sexualizada”, não
a heterossexual. A força homogeneizadora da identidade normal é
diretamente proporcional à sua invisibilidade.
205
A Constituição brasileira endossa as múltiplas reivindicações identitá-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
206
produzir os efeitos a que se propôs após o Supremo Tribunal Federal,
em 2012, afirmar a sua constitucionalidade e conferir interpretação
conforme à Constituição a alguns de seus dispositivos, para que a
ação penal fosse pública incondicionada, independentemente da
extensão da lesão sofrida pela vítima 27.
2 • Dimensão econômica
Essa dimensão insere-se nas políticas de redistribuição. Segundo
Fraser, ela tem por propósito impedir a existência de formas e níveis de
dependência capazes de negar a alguns os meios e as oportunidades de
27 ADC 19 e ADI 4424, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento conjunto em 9/2/2012.
28 ADPF 132 e ADI 4277, rel. Min. Ayres Britto, julgamento conjunto em 5/5/2011.
29 Sobre o tema, ver GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade, sexuali-
dade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1992.
30 FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento
e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 13, out. 2002.
207
ou estado civil (art. 7º, XXX). Esses mesmos direitos são garantidos às
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
208
No entanto, a Constituição falhou na reorganização da divisão do
trabalho e do tempo de lazer, ou seja, especialmente deixou de disci-
plinar o trabalho doméstico. Aliás, fez pior. Até muito recentemente,
dos 34 direitos garantidos às demais categorias profissionais, apenas
nove foram reservados às trabalhadoras domésticas34. Segundo dados
do IBGE de 2009, na categoria de trabalhador doméstico, 94% são
mulheres e 62% se declaram negras. O dado evidencia a persistência
da visão naturalizada de que as mulheres estão aptas apenas a exercer
atividades domésticas. Somam-se a esse estigma os pesos das práti-
cas do Brasil escravocrata, que reservam às negras essas atividades,
compreendidas como de pouca ou nenhuma qualificação técnica e
intelectual. Não é por outra razão que o espaço onde se desenvolve
o trabalho doméstico reproduz, em certa medida, a arquitetura da
escravidão. Tal como ocorria com a senzala e a casa-grande, o quarto
da empregada, além de lugar em geral com pouco espaço e pouca
ventilação, mantém a presteza servil, sem que a trabalhadora tenha
controle sobre a sua jornada de trabalho e suas horas de descanso.
Apenas em 2 de abril de 2013, foi promulgada a EC n. 72, estabe-
lecendo “a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores
domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”. Seguem sem
regulamentação alguma as tarefas domésticas suportadas, de ordiná-
sexo (art. 7º, inc. XXX, da CF 88), proibição que, em substância, é um desdobra-
mento do princípio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto
no inciso I do art. 5º da Constituição Federal [...]”.
34 O art. 7º da Constituição, depois de enumerar, em 34 incisos, os direitos
dos trabalhadores urbanos e rurais, dispõe, em seu parágrafo único, que às
empregadas domésticas se aplicam apenas os direitos de salário mínimo,
irredutibilidade de salário, décimo terceiro salário, repouso semanal remu-
nerado, férias anuais remuneradas, licença-gestante, licença-paternidade,
aviso prévio e aposentadoria.
35 Bourdieu (A dominação masculina. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
p. 75), a respeito das tarefas domésticas, diz que que elas “podem ser nobres
e difíceis quando realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptíveis,
fáceis e fúteis, quando são realizadas por mulheres, como nos faz lembrar a dife-
rença entre um cozinheiro e uma cozinheira, o costureiro e a costureira; basta
que os homens assumam tarefas reputadas femininas e as realizem fora da esfera
privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e transfiguradas”.
209
3 • Dimensão política
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
210
Catharine MacKinnon40, comentando um dos principais fundamentos do
caso Roe contra Wade41, diz que o direito à privacidade pressupõe uma
distinção entre questões públicas e privadas equivocada e perigosa para as
mulheres, por pressupor que elas são livres para tomar decisões por si pró-
prias no espaço privado. Os homens comumente as submetem sexualmente
na esfera privada, e esse domínio sexual privado reflete e ajuda a manter a
subordinação política e econômica das mulheres na comunidade pública.
40 MACKINNON, Catharine. Reflections on sex equality under law. The Yale Law
Journal, New Haven, v. 100, n. 5, p. 1281-1328, 1991. In: DWORKIN, Ronald.
Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p. 71-72.
41 410 US 113 (1973). A Suprema Corte norte-americana decidiu pela inconstitu-
cionalidade de várias leis que criminalizavam o aborto.
42 Sobre o tema, ver BENHABIB, Seyla. El ser y el otro en la ética contemporánea –
feminismo, comunitarismo y posmodernismo. Barcelona: Gedisa, 2006. p. 25.
43 NUSSBAUM, op. cit., p. 118.
211
de relação de subordinação. Não basta, como fez o nosso texto cons-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Não há por que temer esse debate público. Inadmissível é conviver com
espaços de opressão no plano das relações pessoais.
Conclusão
Não obstante as três dimensões da justiça tenham sido tratadas desta-
cadamente, é possível observar, a todo tempo, como elas se interpelam
entre si, o que significa dizer que a análise da questão sob uma única
perspectiva é necessariamente reducionista e suspeitamente falsa. As
políticas de redistribuição e de participação só serão efetivas se levarem
em conta a mulher concretamente situada e livre de pressuposições
essencialistas e biologizantes. A sua autonomia postula espaços livres
de opressão, inclusive sob a forma de dependência econômica, espaços
plurais e não dogmáticos.
HONNETH, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social
conflicts. Cambridge: Polity Press, 1995.
213
KANT, Immanuel. La metafísica de las costumbres. Madrid: Tecnos, 1989.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
214
LICENÇA PARENTAL
Uma necessidade para a simetria de gêneros no Brasil
Abstract: This study investigated the gender issues through both its
verification in the Brazilian macrosystem using the theoretical matrix basis of
Nancy Fraser, and in the justice system through a specific cut, that is, in the
Brazilian Public Prosecution Service. It has investigated the discrimination
often suffered by the female gender due to the maternity leave and to care
215
for the children. An inventory of normativity was carried out on the types of
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
maternity and paternity leave in the world: maternity leave, paternity leave
and parental leave, as well as the urgent need for parental leave in Brazil. At
the end, proposals were made on how to implement parental leave in Brazil,
specifically at the Public Prosecution Service of the Union, with a view both
to the evolution of gender symmetry and to the re-signification of the “natural
roles” imposed on the female gender and the reduction of their multiple days.
Introdução
O presente estudo tem como propósito investigar em transversalidade as
assimetrias do gênero feminino, de forma geral (sem contemplar as especi-
ficidades dos vários movimentos feministas, entre eles o feminismo negro1
e o feminismo LGBTQI – lesbian, gay, bisexual, transgender, queer and inter-
sex –, não por olvidar a importância destes, mas porque isso demandaria
outras pesquisas), com relação ao masculino – notadamente as sofridas
em virtude da maternidade e em decorrência dos cuidados para com os
filhos que ficam a cargo, em grande medida, da mulher – tanto no viés
do macrossistema2 da sociedade do Brasil quanto no viés do sistema de
justiça através de um recorte específico, ou seja, o Ministério Público bra-
sileiro (MP), tendo em vista que já há provas da existência de assimetrias
de gênero dentro da instituição advindas da pesquisa Cenários de Gênero,
realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)3.
216
A metodologia foi bibliográfica e estatística. Nesta, foram usadas as
seguintes bases de dados: Organização das Nações Unidas (ONU),
Organização Internacional do Trabalho (OIT), Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e o CNMP. Como marco teórico adotou-se
a chave de leitura de Fraser4, que usa como prova da situação de desvan-
tagem do gênero feminino parametrizações em três grandes angulações:
a presença (ou não) da representatividade feminina em todos os cargos de
poder, a existência (ou não) de boa redistribuição de remuneração entre
os gêneros e o reconhecimento (ou não) da própria discriminação sofrida
pelo gênero feminino, não como forma de vitimização, e sim como forma
de conscientização para promoção de mudanças e libertações.
217
Vejamos primeiro a questão da representação (lembrando que em 1932
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Estado da
Número Percentual de
Federação
total de Número de Número de representação
Legislatura:
deputados deputados deputadas do gênero
fev./2015 a
estaduais feminino
jan./2019
Acre 24 20 4 16,7%
Alagoas 27 25 2 7,4%
Amapá 24 16 8 33,3%
Amazonas 24 23 1 4,2%
Bahia 63 57 6 9,5%
Ceará 46 39 7 15,2%
Distrito
24 19 5 20,8%
Federal
Espírito
30 26 4 13,4%
Santo
Goiás 41 37 4 9,7%
Maranhão 42 36 6 14,3%
Mato Grosso 24 23 1 4,2%
Mato Grosso
24 21 3 12,5%
do Sul
Minas Gerais 77 71 6 7,8%
Pará 41 38 3 7,3%
Paraíba 36 33 3 8,3%
Paraná 54 51 3 5,5%
Pernambuco 49 44 5 10,2%
Piauí 30 26 4 13,3%
218
Estado da
Número Percentual de
Federação
total de Número de Número de representação
Legislatura:
deputados deputados deputadas do gênero
fev./2015 a
estaduais feminino
jan./2019
Rio de
70 62 8 11,4%
Janeiro
Rio Grande
24 22 2 8,3%
do Norte
Rio Grande
55 48 7 12,7%
do Sul
Rondônia 24 23 1 4,2%
Roraima 24 21 3 12,5%
Santa
40 37 3 7,5%
Catarina
São Paulo 94 84 10 16,6%
Sergipe 24 21 3 12,5%
Tocantins 24 21 3 12,5%
Total 1.059 954 105 9,9%
Casa do
Percentual de
Parlamento Total de Número Número de
representação
Eleições parlamentares de homens mulheres
feminina
2014
Câmara dos
513 458 55 10,7%
Deputados
Senado
81 72 11 13,6%
Federal
219
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Casa do
Percentual de
Parlamento Total de Número Número de
representação
Eleições parlamentares de homens mulheres
feminina
2018
Câmara dos
513 436 77 15%
Deputados
Senado
81 71 10 12,34%
Federal
220
Tabela 1 - Número médio de horas semanais dedicadas aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos das pessoas de 14 anos ou mais de idade,
na semana de referência, por sexo, com indicação do coeficiente de variação, segundo características selecionadas - 2016
Horas semanais dedicadas aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos
Pessoas de 14 anos ou mais de idade Pessoas ocupadas de 14 anos ou mais de idade
Características selecionadas Sexo Sexo
Total Total
Homens Mulheres Homens Mulheres
Média CV (%) Média CV (%) Média CV (%) Média CV (%) Média CV (%) Média CV (%)
Brasil 16,7 0,4 11,1 0,5 20,9 0,4 14,1 0,5 10,5 0,6 18,1 0,5
Norte 15,5 1,1 10,5 1,4 19,4 1,2 13,2 1,3 10,2 1,5 17,2 1,5
Nordeste 17,5 0,6 11,0 0,8 21,8 0,6 14,6 0,7 10,5 0,9 19,0 0,7
Sudeste 17,1 0,8 11,4 1,0 21,4 0,8 14,4 0,8 10,7 1,0 18,4 0,9
Sul 16,0 0,7 11,0 0,9 19,9 0,8 13,6 0,8 10,3 1,0 17,3 0,8
Centro-Oeste 15,0 1,2 10,0 1,6 18,9 1,3 12,9 1,3 9,6 1,7 16,7 1,3
Cor ou Raça
Branca 16,6 0,6 11,0 0,7 20,6 0,6 13,9 0,6 10,4 0,8 17,7 0,7
Preta e Parda 16,9 0,4 11,1 0,6 21,2 0,5 14,3 0,5 10,6 0,7 18,6 0,6
Grupos de idade
14 a 29 anos 13,9 0,7 9,5 0,9 17,3 0,7 12,6 0,9 9,6 0,9 15,8 1,1
30 a 49 anos 17,4 0,5 11,3 0,7 22,2 0,5 14,7 0,6 10,9 0,7 18,8 0,6
50 a 59 anos 18,2 0,6 11,4 0,9 23,2 0,6 14,5 0,7 10,5 0,9 19,2 0,8
60 anos ou mais 18,4 0,6 13,0 0,9 22,0 0,7 14,2 1,0 10,8 1,3 19,3 1,3
Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 2016, consolidado de quintas entrevistas.
Notas:
1. Calculado apenas para as pessoas que declararam ter feito atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos na semana de referência.
2. Exclusive as pessoas sem declaração das horas dedicadas às atividade de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos na semana de referência.
Fonte: Estatísticas de Gênero – Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. IBGE, 2016.
221
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Em 2015, segundo o IBGE10, as mulheres recebiam em média 72,7% do que
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
80
60
percentage
40
20
0
India Indonesia Brazil Pakistan Bangladesh Mexico Vietnam Philippines Egypt Turkey
(bar) Female Male Labor force participation Wage and salary workers Gender wage gap
Source: World Development Indicators and WDR 2013 statistical annex (for wage gaps, except Mexico’s, which comes from UN Statistics).
10 BRASIL, 2017.
11 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agen
cia-de-noticias/noticias/24267-mulheres-dedicam-quase-o-dobro-do-tempo-
dos-homens-em-tarefas-domesticas. Acesso em: 1º jun. 2019.
12 WORLD BANK, 2013, p. 17-21.
13 Disponível em: https://www.worldbank.org/content/dam/Worldbank/Event/
Gender/GenderAtWork_web2.pdf.
222
As mulheres têm, em média, o dobro da jornada dos homens (trabalho
fora de casa – remunerado – e dentro de casa – invisibilizado e não remu-
nerado) e, lamentavelmente, o trabalho da mulher fora de casa tem pior
remuneração do que o de homem.
Um dos motivos pelos quais isso acontece é porque apenas a mulher tira
licença à gestante no Brasil (de 120 ou 180 dias – art. 7º, inc. XVIII,
CF/1988), e a licença-paternidade é ínfima (de 5 a 20 dias – art. 10, § 1º,
ADCT), provocando inúmeras discriminações tanto na contratação quanto
na ascensão da mulher no mercado de trabalho. Isso também decorre do
fato de que, lamentavelmente, foi “naturalizado” que cabem à mulher todos
os cuidados para com a prole e a casa – e não ao homem. Esses dois motivos
(principais) fazem que seja o gênero feminino que tire licença à gestante e
seja por isto discriminado, tenha menos tempo disponível para o empre-
gador (e para si), não esteja disponível a fazer sobrelabor (o que comina na
sua menor remuneração), que seja a mulher a primeira a ser desempregada
ou tenha que se submeter ao subemprego14 ou ao labor informal15 como
forma de conseguir cuidar dessas duplas e triplas jornadas. Essa divisão
sexual injusta do tempo de trabalho agudiza, em termos de remuneração, a
menos-valia do trabalho da mulher e promove sua dependência, por vezes,
de companheiros violentos para conseguir cobrir as despesas da família.
19 BEAUVOIR, 2009.
20 LORENTZ, 2019, p. 17-46.
21 GOFFMAN, 1981, p. 10-30 e seq.
22 CROCHIK, 1997, p. 11-20 e seq.
23 SIMONE DE BEAUVOIR..., 2019.
24 DAVIS, 2019, p. 236, 267.
225
obteve o direito de trabalhar fora de casa, ela manteve, no Brasil, o “dever”
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Isso tem sido propagado, mais recentemente, ora por agenda oculta,
como na capa de revista a seguir citada, de 18 de abril de 2016, ora por
agenda aberta, objetivando mulheres servis aos homens, donas de casa,
que têm de ser jovens e preocupadas com a beleza. Neste sentido, a
revista VEJA (18 abr. 2016), ao referir-se à então Primeira Dama, trouxe
o seguinte título apologético: “Bela, recatada e do lar”. Percebe-se tam-
bém que, de forma recorrente, há uma “naturalização” da exposição do
corpo nu da mulher e paralelamente um controle dos corpos femininos,
ou seja, sua objetificação, como foi exposto na Rede Globo, através do
26 WOOLF, 2013.
27 MONTEIRO, 2012.
227
corpo nu da “Mulata Globeleza” (seu nome era Valéria Valenssa) por quinze
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
28 LORENTZ, 2017.
29 Disponível em: http://time.com/5189945/whats-the-difference-between-the-
metoo-and-times-up-movements/. Acesso em: 13 mar. 2018. Oprah Winfrey,
líder do movimento Time’s Up, revela que pretende fortalecer leis contra assé-
dio. Entre os planos, está o fortalecimento de leis contra assédio e discri-
minação no trabalho, bem como a promoção de unidades de atendimento
para mulheres grávidas em agências e estúdios. O movimento já conseguiu
recolher US$ 16 milhões (R$ 51 milhões) em doação e acredita que precisa
continuar a manter os debates contra assédio para a criação de ambientes
saudáveis de trabalho.
30 BOURDIEU, 1981.
31 Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/11327-cnmp-
apresenta-dados-relativos-a-desigualdade-de-genero-no-ministerio-publico.
Acesso em: 1º ago. 2018.
228
feminino em franca desvantagem, notadamente no que se refere aos
órgãos de direção e chefia institucionais. Segue a pesquisa do CNMP:
CNMP 11%
229
Seguem os dados do CNMP33:
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
15%
85%
Mandatos Homens
17,8%
82,2%
Mandatos Homens
230
“Desde a sua criação no ano 2005, o Conselho Nacional do Ministério
Público teve 11 mandatos de mulheres versus 87 mandatos de homens,
na proporção de 11% (M) e 89% (H). Em número de mulheres, houve
7 mulheres versus 67 homens”36.
231
Cidadã” (Lei n. 11.770/2008 e também Lei n. 13.257/2016); em âmbito
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Fonte: ILO. Maternity and paternity at work: law and practice across the world, p. 1040.
232
paga, de forma alguma, pelo empregador, porque isto implicaria discri-
minação negativa contra a mulher. É o que determina a Convenção 103
(Proteção à Maternidade) da OIT, ratificada pelo Brasil. A licença tem
de ter no mínimo de 12 (doze) semanas e tem de ser paga pelo Estado,
ou seja, não pode ser custeada pelo empregador41. No Brasil, em alguns
casos, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) paga direta-
mente à mulher o valor da licença à gestante (domésticas, trabalhadora
avulsa e adotante), noutros, o empregador o adianta, porém compensa
esse montante com outros recolhimentos de INSS.
233
ser transferida do gênero feminino ao masculino, em âmbito celetista
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
234
No Brasil, conforme descrito, a divisão sexual injusta do tempo de
trabalho sobrecarrega demais o gênero feminino, causando desi-
gualdades econômicas muito grandes45. Também no microssistema
do Ministério Público brasileiro, a pesquisa do Conselho Nacional do
Ministério Público denominada Cenários de Gênero detectou, da
mesma forma, muitas assimetrias internas entre os gêneros, estando o
feminino em franca desvantagem e falta de simetria. Nesse contexto,
a licença parental seria um excelente instrumento para a democratiza-
ção e para a concessão de horizontalidade à sociedade patriarcal46 no
Brasil a fim de promover, de modo inclusivo, a libertação de ambos os
gêneros de estereótipos e de confinamentos em posições tidas como
“naturalizadas”47 na ordem social48, tornando a sociedade familiar
mais rica e heterogênea, além de não mais sobrecarregar exclusiva-
mente o gênero feminino com múltiplas jornadas.
Além disso, a adoção da licença parental tornaria mais efetivas duas das
Convenções no temário do combate à discriminação que fazem parte
do Core Labor Standard (CLS), ou Padrões Fundamentais Trabalhistas,
e que, segundo Lafer49 e Barzoto50, são convenções internacionais fun-
damentais que, por tamanha importância e grandeza, fazem parte da
Constituição da OIT, ou seja, a Convenção 100 (Igualdade de Remuneração
235
de 1952, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 58.820, de 14 de julho de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
1966. Essa licença também está em total harmonia com outras conven-
ções internacionais ratificadas pelo Brasil: a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 9 de
junho de 1994, concluída em Belém do Pará, promulgada pelo Decreto
n. 1.973, de 1º de agosto de 1996, e a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, da ONU,
promulgada no Brasil pelo Decreto n. 4.377, de 13 de setembro de 2002.
236
juízo dos direitos da mãe, mas com pagamento diferenciado, e na
Suécia57, onde sessenta dias são exclusivamente do pai, outros doze
meses podem ser livremente partilhados, e no total os pais podem
ausentar-se até dezoito meses do trabalho58.
Ressalte-se que esse anteprojeto não iria alterar o núcleo duro dos 120 dias
da licença à gestante, que é cláusula pétrea (art. 7º, XVIII, CF/1988) –
porque iria tratar da alteração (infraconstitucional) apenas e tão somente
dos 60 dias a mais inseridos pelo programa “Empresa Cidadã” (Leis n.
11.770/2008 e n. 13.257/2016) – e que, em âmbito federal, tem previsão
no art. 39, § 3º, da CF/1988; em âmbito estatutário, na Lei n. 8.112/1990
(art. 185, letra e, art. 196, art. 207) c/c Decreto Federal n. 6.690/2008;
trinta dias seguintes ao nascimento do filho/a, cinco dos quais gozados de modo
consecutivo imediatamente após o parto.
57 Na Suécia, o pai deve usar necessariamente pelo menos 60 dias da licença, sob
pena de esta ser cancelada, sendo o seu total de 480 dias, embora com fai-
xas diferentes de remuneração, a depender da extensão (MATOS; OLIVEIRA;
NATIVIDADE, 2016, p. 345-363).
58 MELO, 2016.
237
e, no âmbito do MPU, na LC n. 75/1993 (art. 287); portanto, seria um
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Conclusões
Apesar de a jusfundamentalidade brasileira (ou seja, a prevista tanto na
CF/1988 quanto nas normas internacionais ratificadas pelo Brasil já cita-
das) afiançar a igualdade de gêneros no Brasil, este estudo, usando
fontes de dados como ONU, OIT, IBGE e o CNMP (pesquisa estatís-
tica), além da bibliográfica, demonstrou que, tanto no macrossistema
da sociedade brasileira quanto no microssistema do MP (este pela
pesquisa Cenários de Gênero, do CNMP), o gênero feminino encon-
tra-se em situação de franca assimetria com relação masculino, na
sociedade em geral, pelas desigualdades remuneratórias, pela divisão
sexual (injusta) do tempo do trabalho, pela acumulação de “duplas” e
“triplas” jornadas, pela discriminação sofrida em virtude da licença à
gestante e decorrentes cuidados com filhos, etc., devido, lamentavel-
mente, no Brasil, aos “papéis fixos de gênero”, que ainda são aceitos
com ares de naturalidade pela sociedade. Vários desses problemas
repetem-se no âmbito do microssistema do MP, que, por óbvio, não
está infenso às questões do macrossistema, tanto que o gênero femi-
nino tem percentual pífio nos cargos de poder e nas hierarquias mais
altas das carreiras do Ministério Público.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto.
São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
BARROS, Alice Monteiro. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 2. ed. Rio Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CROCHIK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. 2. ed. São Paulo: Robe
Editorial, 1997.
239
DAVIS, Angela. Reflections on the black woman’s role in the community of
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
slaves. In: DAVIS, Angela. Uma autobiografia. São Paulo: Boitempo, 2019.
MELO, Ana Carolina Lima de. Licença parental: caminho para consolidação
da igualdade de gênero. Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, v.
IX, n.17, p. 103-124, jan./jun. 2016.
240
MIGUEL, Luiz Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política. São Paulo:
Boitempo, 2014.
WORLD BANK. Taking stock: stylized facts about gender at work. In:
WORLD BANK. Gender at work: a companion to the World Development
Report on Jobs. [S. l.: s. n.], 2013. Disponível em: https://www.worldbank.
org/content/dam/ Worldbank /Event/Gender/GenderAtWork_web2.pdf.
Acesso: 4 mar. 2018.
241
Outros sites consultados
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
OIT. Las mujeres siguen teniendo menos posibilidades que los hombres de
participar en el mercado de trabajo en gran parte del mundo. Disponível em: http://
www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_619550?lang=es.
Acesso em: 17 abr. 2019.
242
O GÊNERO E SUA CONSTRUÇÃO
NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Uma breve revisão de dados quantitativos e
qualitativos sobre o Poder Judiciário
243
the review of quantitative and qualitative studies about the judiciary and legal
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Introdução
A temática gênero não é nova nos estudos sociológicos brasileiros,
sendo objeto de relevante desenvolvimento desde a década de 1970,
com especial salto em diversidade e em volume de trabalhos a partir
dos anos 2000 (FRANÇA; FACCHINI, 2017). No campo da sociolo-
gia do trabalho pode-se observar impactos do gênero, por exemplo, na
remuneração e na ascensão profissional, sendo utilizada a expressão
teto de vidro para explicar as barreiras de gênero na trajetória profis-
sional (FRANÇA; FACCHINI, 2017, p. 319 e 320). Os estudos sobre
gênero e Direito podem ser incluídos na tendência recente de análise
da interação do gênero com outras dinâmicas sociais.
244
tendo sido realizadas entrevistas com profissionais jurídicos. Também
são feitas pesquisas quantitativas, focadas ou não em gênero, que ofere-
cem perspectivas relevantes, como a obra Corpo e Alma da Magistratura
Brasileira (VIANNA et al., 1997), que colheu e sistematizou informa-
ções sobre origens, formação e características da magistratura brasileira.
Uma tendência observada nesse estudo foi o crescimento constante do
ingresso de mulheres na magistratura no período analisado.
1 • O campo jurídico
245
dentro da ética específica do campo e com conhecimento técnico cor-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
246
porém, da relevância de outras profissões jurídicas, como procurado-
ria e advocacia, que compõem a dinâmica do campo jurídico.
247
Essa pesquisa também identificou a juvenilização da magistratura –
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
248
A diferenciação horizontal retraiu-se perante a diferenciação vertical,
havendo mais homens que se apresentam para cargos e ocupam as
posições do topo da hierarquia, mesmo tendo um número significa-
tivo de magistradas habilitadas a exercer funções de chefia, direção e
representação. (BOIGEOL, 2003, p. 411 apud BONELLI, 2010, p. 274).
249
e esclarecem movimentos recentes na dinâmica de ocupação feminina
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
no Poder Judiciário.
Na pesquisa realizada pelo CNJ em 2018, por sua vez, ponto relevante
é a indicação da queda de mulheres ingressando na magistratura – de
41% entre 2001-2010 para 37% de 2011 em diante (BRASIL, 2018a,
p. 9) –, indício de mudança na tendência de crescimento que se obser-
vava nas últimas décadas. Outro dado interessante é sobre a dedicação
dos magistrados à conclusão de cursos de pós-graduação e à atividade
docente – esta exercida por apenas 6% das magistradas, ante 16% dos
magistrados. Enquanto 50% das magistradas são professoras em esco-
las de magistratura e 28% em universidades de Direito privadas, com
os magistrados os números praticamente se invertem: 30% deles são
professores em escolas de magistratura e 44% em faculdades de Direito
privadas (BRASIL, 2018a, p. 29).
Para Scott, gênero não é estático, mas é construído nas relações sociais
de poder por meio das características e dos papéis que são atribuídos
aos sexos, diferenciando-os e criando associações entre sexo, caracte-
rísticas e valores. Nos termos da autora,
Esse é apenas um dos elementos por meio do qual se pode entrever inte-
ração entre gênero e exercício de profissão de poder. Outros exemplos
seriam quanto ao número de filhos e ao desenvolvimento acadêmico.
Esse tipo de percepção pode ser analisado de forma conjugada com estu-
dos sobre a divisão sexual do trabalho, que apontam serem as mulhe-
res, independentemente da profissão que exerçam, mais sobrecarrega-
das do que seus companheiros com o trabalho doméstico. Esse dado é
6 74% das mulheres magistradas têm filhos, ante 81% dos homens, segundo pes-
quisa do CNJ de 2018 (BRASIL, 2018, p. 8).
253
corroborado por percepções das próprias magistradas, como na entre-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
vista realizada por Barbalho (2008) com uma juíza, em que a entrevistada
deixa claro que a mulher tem que escolher entre ser mãe ou continuar
se dedicando aos estudos e à carreira acadêmica, enquanto seus com-
panheiros, mesmo também sendo magistrados, não têm que fazer essa
escolha (BARBALHO, 2008, p. 146). Por esse relato, pode-se perceber
que ter filhos afeta também a carreira acadêmica da mulher magistrada.
254
A afirmação da existência de desigualdade de gênero não significa que
em tudo haverá a atribuição negativa às características relacionadas ao
gênero feminino, ou que mulheres necessariamente sempre serão as
vítimas de algozes homens.
255
meu ofício com os requisitos que são exigidos: que é a imparcialidade,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Referências
ALMEIDA, Fernanda Andrade. A feminização do Poder Judiciário e os efeitos
do gênero na administração da justiça. In: Encontro Anual da ANPOCS, 41.,
GT13 – Gênero, trabalho e família, 2017, Caxambu-MG. Papers [...]. São
Paulo: ANPOCS, 2017.
258
(Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia) – Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos-SP, 2008.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução:
Christine Rufino Dabat; Maria Betânia Ávila. Texto original: Gender: a useful
259
category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York:
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
260
PERSPECTIVAS DA PARTICIPAÇÃO FEMININA NA
MAGISTRATURA BRASILEIRA
Dos obstáculos estruturais às possibilidades de
inovação institucional
261
pela Resolução CNJ n. 255/2018. Por fim, no campo das perspectivas futuras,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Abstract: The article deals with structural gender barriers that hinder women
magistrates’ career and which demand institutional solutions to have their
effect mitigated. In this path, trajectories of pioneer judges and data on female
participation in the Judiciary in the present moment are discussed, especially
considering its current structure and the possibilities brought by the CNJ
Resolution 255/2018. Lastly, in the field of future perspectives, the text focuses
on the creation of the Laboratory for Innovation in Sustainable Development
Goals (LIODS), presenting a way by which the magistracy can align itself in
compliance with SDG 5, achieve balance in representation of both sexes and
act as a reference in respect to gender equality and in the effective fulfillment of
the constitutional precepts of the dignity of the human person and citizenship.
Introdução
O tema da participação feminina na magistratura brasileira é daque-
les que mantêm a sua atualidade, seja pelo interesse científico que
262
desperta, seja pela oscilação permanente entre boas e más notícias.
Enquanto se mostra promissora a possibilidade de que a perspectiva
de gênero venha a conformar políticas públicas, por se tratar de desafio
abraçado pela Organização das Nações Unidas (HeForShe, ODS5), os
números são também reveladores de uma estagnação prolongada no
tempo, o que exige a articulação de medidas no plano institucional
capazes de gerar mudanças efetivas (ALVES; SALES, 2019).
263
No segmento relativo à trajetória passada, serão delineados inicialmente
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
264
Assim, na relação de interdependência do casal, os papéis reservados
às mulheres estavam concentrados no entorno da morada. Elas vigia-
vam e cuidavam das crianças e coletavam produtos da natureza. Eles
caçavam grandes animais e faziam a proteção do grupo contra os pre-
dadores. Seria uma distribuição de tarefas racional e, a princípio, de
natureza objetiva: mulheres grávidas ou amamentando se deslocam
com menor velocidade. A desigualdade se instala quando se passa
desses fatos da natureza às restrições de cunho ideológico (HÉRITIER
et al., 2011, p. 23), cultural.
265
antigas, construiu-se a partir da perspectiva masculina e sob esta
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Jane Reis e Renan Medeiros (2018) pontuam, nesse sentido, que as esfe-
ras pública e privada se relacionam de modo dinâmico, articulam-se
em uma relação de interdependência. Da perspectiva privada, tem-se a
violência doméstica contra a mulher e a criança como bom exemplo de
fatos que migraram do foco de interesse restrito da esfera privada para
o foco juridicamente relevante da esfera pública e passaram “a ser tra-
tados como problemas de justiça”. Da perspectiva pública, a obstrução
à inscrição de candidaturas femininas à magistratura e a sobrerrepre-
sentação masculina nos órgãos do sistema de justiça ilustram como as
266
Esse percurso histórico deixa claro que é a partir do espaço privado, hoje
e desde sempre, que têm sido elaboradas as estruturas de distribuição
de poder e se tem designado a mulher, em geral pelas mãos da própria
mulher, à submissão e o homem à dominação (BOBBIO, 1995a, p. 60).
267
jurisdição no interior a colocaria em face de processos inadequados a
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
268
Grande do Sul, graduou-se em 1951. Tinha vocação para a magistra-
tura e persistiu mesmo quando barrada sua inscrição em seu estado
natal. Candidatou-se em Santa Catarina e, em 1954, assumiu o cargo
de juíza substituta em Criciúma-SC. Por cerca de 20 anos foi a única
mulher a judicar naquele estado e, em 1975, sua primeira desembar-
gadora. Foi presidente do Tribunal Regional Eleitoral e do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina. Encerrou sua carreira em 1992 ao atin-
gir a idade-limite à aposentadoria e ainda é uma referência em Direito
Criminal, tendo, quando corregedora, levantado “questões cruciais que
levaram ao aprimoramento de leis, como a que garante melhores con-
dições para mulheres presas” (BERTONI, 2009).
269
essas dificuldades acrescentam que o acesso às cúpulas dos tribunais
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
270
em que lotada, e as promoções se dão por antiguidade e merecimento,
sem explicitação sobre os processos políticos que geram a formação das
listas. Postas em prática, essas normas se associam às estruturas de um
modelo familiar ainda patriarcal, pelo qual as juízas sentem que suas
vidas pessoais serão substancialmente afetadas pelos deslocamentos
horizontal (remoções) e vertical (promoções) dentro da carreira.
271
Estado e sociedade, de modo que os outputs de política pública muitas
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
vezes superavam os inputs da sociedade civil. Cai por terra, com isso,
a ideia de que os grupos de interesse simplesmente conformariam um
Estado neutro. Essa ferramenta permite, segundo Mackay e Waylen
(2014, p. 490), que “se teorize melhor a natureza generificada das insti-
tuições formais, a importância e como operam as informais e, por fim,
os resultados que podem advir da mudança institucional”.
A Resolução CNJ n. 255/2018, em seu art. 2º, convoca “os ramos e unida-
des do Poder Judiciário” a participarem desse processo de transposição
272
da igualdade formal em igualdade material, para que adotem “medidas
tendentes a assegurar a igualdade de gênero no ambiente institucional”,
bem assim que proponham “diretrizes e mecanismos que orientem os
órgãos judiciais a atuar para incentivar a participação de mulheres”:
(I) “nos cargos de chefia e assessoramento”; (II) “em bancas de con-
curso”; e (III) “como expositoras em eventos institucionais”.
273
referidos e o chamado teto de vidro, que retém as mulheres na base da
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
274
Inovação, no sentido empregado pelo LIODS, é a identificação e articula-
ção de novas políticas que desenham a fronteira do conhecimento para
que sejam atingidos determinados objetivos (MAZZUCATO; PENNA,
2016). Na síntese de Coutinho e Mouallem (2018), ela é uma chave
acionada pelo aparato jurídico, mas não surge em caráter espontâneo;
é consequência de um impulso dirigido e consciente para a construção
de políticas públicas que fazem “parte de uma empreitada de escopo
mais amplo e associada a um projeto de desenvolvimento econômico
no qual a inovação é reconhecida como elemento central”.
275
No item 5.5, a meta é: “Garantir a participação plena e efetiva das
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
276
foram realizadas oficinas que usaram a metodologia do LIODS; com
isso, abriu-se às magistradas a oportunidade de olhar, ouvir e falar de
si, por si e para todas e todos, sem as intermediações ou representações
que traduzem e filtram suas percepções e concepções pela ótica supos-
tamente universal e neutra, a masculina.
O LIODS, por sua vez, mostrou-se o canal que permitirá esse movi-
279
O LIODS foi uma iniciativa que ganhou corpo pela Portaria CNJ
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
280
que isso, impõe aos órgãos do sistema de justiça a sensibilidade política
de reconhecer a importância que têm na sinalização de um exemplo
de respeito à igualdade entre homens e mulheres, de efetividade no
cumprimento dos preceitos constitucionais de dignidade da pessoa
humana e de cidadania.
Referências
ALMEIDA, Maria Cândida. Mais mulheres no Judiciário: por uma questão de
justiça (procedimental). JOTA, Brasília, 25 mar. 2019. Disponível em: https://
www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/ajufe/mais-mulheres-no-judiciario-por-
uma-questao-de-justica-procedimental-25032019. Acesso em: 26 mar. 2019.
ALVES, Clara; SALES, Gabriela. Togadas e estagnadas. Folha de São Paulo, São
Paulo, 8 mar. 2019. Opinião. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
opiniao/2019/03/togadas-e-estagnadas.shtml.
BERTONI, Estêvão. A primeira juíza do Brasil tinha orgulho de vestir a toga. Folha
de São Paulo, São Paulo, 23 out. 2009. Cotidiano. Disponível em: http://www1.
folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2310200923.htm. Acesso em: 10 mar. 2017.
281
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
282
CORRÊA, Priscilla Pereira da Costa. O Judiciário brasileiro e objetivos de
desenvolvimento sustentável. JOTA, Brasília, 16 maio 2019. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/ajufe/o-judiciario-brasieiro-e-
objetivos-do-desenvolvimento-sustentavel-16052019. Acesso em: 16 maio 2019.
COSTA, Gizela Nunes da. Auri Moura Costa. THEMIS – Revista da ESMEC,
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283
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PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Nicole. La plus belle histoire des femmes. Paris: Éditions du Seuil, 2011.
284
VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES
IDOSAS E INTERSECCIONALIDADE
Análise documental da jurisprudência do TJDFT
285
Palavras-chave: Violência doméstica. Gênero. Interseccionalidade. Pessoa
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Abstract: This article analyses the case law of the Appeal Court of the Federal
District and Territories, regarding the incidence of the Maria da Penha Law
in cases involving family and domestic violence against elderly women
perpetrated by their sons. The documental study uses the methodology of
analysis of decisions and the critical analysis has the theorical reference on
sociological studies of gender relations, as well as the intersectionality theory,
specifically applied to elderly women. The study verified that 25% of the case
laws embrace the trend of absolute protection (presumed by the Law) and 75%
of the relative protection (requiring demonstration of concrete vulnerability).
In this last group, 46% of the total rejected the Law protection due to the lack
of concrete vulnerability, and 29% of the total have been recognized granted
protection. The article criticizes the relative protection of the case law trend,
considering the structural character of gender violence, independently of
circumstantial risk factors or intersectional vulnerabilities.
Introdução
A pesquisa científica feminista dos anos 1980 e 1990 contribuiu deci-
sivamente para dar visibilidade política à temática da violência contra
a mulher, fortalecendo a demanda por uma nova legislação com pers-
pectiva de gênero (BANDEIRA, 2014). A Lei Maria da Penha (LMP)
– Lei n. 11.340/2006 – inaugurou marco normativo paradigmático
no ordenamento jurídico brasileiro. Anteriormente trabalhada a par-
tir de soluções consensuais, com marcante incidência de institutos
286
despenalizadores da Lei n. 9.099/1995 e que pressupunham igual-
dade entre os envolvidos (mulher e agressor), essa temática teve seu
tratamento estruturalmente reformulado. O cerne da modificação
está em um tripé: políticas públicas de prevenção à violência contra a
mulher, estratégias processuais para a proteção à mulher em situação
de violência e o acento da relevância da responsabilização do agressor
(PASINATO, 2010). Trata-se de uma nova legislação que incorpora a
compreensão das complexidades das relações de gênero e possui uma
abordagem vitimocêntrica (ÁVILA, 2017).
287
e Territórios (TJDFT), com vistas à determinação do alcance que se
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
288
“as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas
inatas, derivadas de distinções naturais” (PISCITELLI, 2009, p. 119).
1 Sílvia Pimentel aponta que, mesmo antes desse período, no final do século
XVIII, Mary Wollstonecraft analisava comportamentos considerados femininos,
considerando-os fruto da ignorância e do preconceito; foi, assim, a primeira a
demonstrar que ninguém nasce mulher e lançou as bases ontológicas da teoria
dos gêneros (PIMENTEL, 2017, p. 4).
289
aspectos sociais que situavam a mulher em lugar inferior. Vale dizer, refu-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
290
termo, as quais residem, em síntese, I - na pretensão de compartimen-
talizar a vida e o caráter humanos apenas em duas esferas; e II - na
exclusão das diferenças internas (entre homens – e.g., masculinidades
violentas e não violentas – e entre mulheres). Em outras palavras, a ter-
ceira onda afasta-se da perspectiva binária entre masculino e feminino
como visões únicas e estanques e reconhece possibilidades de múlti-
plas masculinidades e feminilidades.
291
seu viés reducionista, ao ignorar as especificidades de outros segmentos
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
2 • Gênero e interseccionalidade
A rejeição ao feminismo mainstream é fruto da objeção ao foco tradicio-
nal das discussões de gênero, cuja atenção não se volta às diferenças
internas (entre mulheres). Como observa Nancy Fraser, esse feminismo
está centrado no empoderamento de mulheres de classe média alta,
incentivando-as à ascensão no âmbito corporativo; no entanto, o êxito
nessa empreitada depende do aproveitamento do trabalho mal remune-
rado de mulheres de classe baixa, tipicamente de raças negra ou parda,
e imigrantes (GUTTING; FRASER, 2015).
292
Hirata (2014, p. 62) sintetiza o conceito:
293
de discriminações, violências e exclusões” (PIMENTEL, 2017, p. 14); a
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
294
A situação vulnerável de pessoas idosas (homens e mulheres) é sis-
tematizável dentro da ideia de que a violência é resultado de uma
complexa gama de fatores, individuais, relacionais, sociais, culturais
e ambientais. Segundo Krug e colaboradores (2002, p. 131-133), como
relevantes fatores individuais por parte das pessoas idosas, podem ser
citadas a dificuldade de comunicação da violência, sobretudo em razão
de limitações físicas e/ou mentais (e.g. Alzheimer) ou a dependência
emocional do familiar ou cuidador; um fator relacional apreciável é o
denominado estresse do cuidador (carer stress); o isolamento, tanto sob
o aspecto social quanto no tocante ao acesso aos modernos meios de
comunicação, também é um incremento ao risco de violência; cultural-
mente, atingem a pessoa idosa os estigmas de dependência e de relativa
capacidade; finalmente, é prática comum a transferência da responsa-
bilidade pelo cuidado com pessoas idosas a terceiros ou estabelecimen-
tos especializados, ou, então, a divisão periódica do tempo de convívio,
com residência alternada pelos integrantes do núcleo familiar (o idoso
migra de casa em casa), o que não contribui para a criação de um
ambiente que valorize sua privacidade e individualidade.
295
preconceito (dentro do estereótipo da mulher como garantidora da união
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
296
A evolução da sensibilidade internacional a respeito do tema culminou
na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (CEDAW), aprovada pela Assembleia Geral da ONU
em 1979 e promulgada no Brasil por meio do Decreto n. 4.377/2002.
Embora esse documento constitua o primeiro grande marco normativo
internacional da proteção aos direitos da mulher, o tratamento especí-
fico da temática da violência de gênero foi introduzido somente com a
Resolução n. 19/19924, do Comitê da CEDAW. Essa recomendação, em
seu item 23, reconhece a relação direta entre a violência baseada no
gênero e a violência intrafamiliar5.
297
Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ensejou a condena-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADC n. 19. Relator: Min.
Marco Aurélio, 9 de fevereiro de 2012. DJe 28 abr. 2014.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADI n. 4.424. Relator: Min.
Marco Aurélio, 9 de fevereiro de 2012. DJe 31 jul. 2014.
298
omissão baseada no gênero. Há duas correntes jurisprudenciais: a de
presunção absoluta (ope legis) de necessidade de proteção à mulher e a
de presunção relativa, que exige demonstração concreta de vulnerabi-
lidade da mulher na relação com o agressor para justificar a aplicação
da Lei n. 11.340/2006.
299
Noutro sentido – e após o precedente acima referido –, colhem-se deci-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
300
Territórios (TJDFT), por meio da Metodologia de Análise de Decisões
(MAD) (FREITAS FILHO; LIMA, 2010, p. 1-17), dividindo-se a análise
em pesquisa exploratória (pesquisa do problema), recorte objetivo (seleção
conceitual do campo discursivo em que se localiza o problema detectado)
e recorte institucional (escolha dos órgãos decisórios a serem pesquisados).
301
permitem a seguinte sistematização da linha de entendimento adotado:
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
302
Belinati – j. 28.9.2017 – DJe 9 out. 2017; (2) TJDFT – C. Crim. – CC
n. 2015.00.2.031858-8 – rel. Souza e Avila – j. 14.12.2015 – DJe 18
dez. 2015. Em alguns casos, a incidência do diploma protetivo foi
reconhecida, presumindo-se a vulnerabilidade da mulher e a despei-
to da prática de delito, também, contra pessoa do sexo masculino:
(3) TJDFT – 3ª T. Crim. – Ap. n. 2017.03.1.007856-0 – rel. João Batista
Teixeira – j. 30.11.2017 – DJe 6 dez. 2017; (4) TJDFT – 2ª T. Crim. – Ap.
n. 2012.03.1.034068-9 – rel. Cesar Laboissiere Loyola – j. 19.12.2013 –
DJe 7 jan. 2014. Aplicando a LMP e considerando a potencialização da
vulnerabilidade, por se tratar de pessoa idosa (5):
303
dirigir veículo, dependente do réu para isso) para apropriar-se do veí-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
304
família, do sexo masculino. Nessas situações, afirmou-se que os fatos
não decorreram do gênero, pois a agressão foi dirigida de modo indis-
tinto, atingindo pessoa do sexo masculino (1):
305
oprimi-la por ser mulher. Ao contrário, a hipótese revela que os filhos
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
O caso versava fatos que se amoldariam, em tese, aos tipos dos arts. 102
e 106 do Estatuto do Idoso. Na hipótese, a autora do fato, filha, induziu
a mãe a assinar procurações, outorgando-lhe amplos poderes, e con-
traiu diversos empréstimos em nome desta. A vítima – pessoa idosa,
analfabeta e com históricos de AVC – negou ter assinado qualquer
306
documento dando poderes à filha para movimentar sua conta bancária
e contrair empréstimos, ressaltando temer que ela lhe fizesse algum
mal ou aos seus familiares.
307
que era curador desta e administrava sua aposentadoria. Noticiava-se
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
308
estrutura social. Não é uma expressão da biologia, nem uma dicotomia
fixa da vida ou no caráter humano. É um padrão em nossos arranjos
sociais, e as atividades do cotidiano são formatadas por esse padrão.
309
que seria de competência das Varas Criminais ou dos Juizados Especiais
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
310
Essa problemática, a respeito da presença de vulnerabilidade fundada
no gênero, na violência sofrida por mulheres idosas, foi identificada por
Brownell (2016, p. 3324) como consequência de a concepção embrionária
da violência contra a mulher ter sido pensada no contexto de uma mol-
dura convencional de intimate partner violence, portanto, restrita a parceiros
e destinada a mulheres mais jovens, em idade reprodutiva, característi-
cas próprias do feminismo mainstream. Todavia, a autora argumenta que
abusos contra mulheres idosas por parceiro íntimo não configuram um
problema significativo se comparados com a violência sofrida pelas mais
jovens (constituindo 1% a 2% dos casos); no entanto, quando essa perspec-
tiva é dilatada para abarcar não apenas parceiros, mas filhos, netos, cuida-
dores, entre outros, os casos de violência aumentam significativamente:
38% dos casos (BROWNELL, 2016, p. 3325). Esses dados se mostram em
consonância com os hauridos da experiência brasileira, indicativos de que,
para as mulheres idosas, o principal agressor é, justamente, o filho: 34,9%
dos casos (WAISELFISZ, 2015, p. 48). Vale dizer, em relação às mulheres
idosas, a maior parcela dos episódios de violência doméstica situa-se fora
da moldura convencional de parceiro íntimo.
Conclusão
A pesquisa realizada aponta que o entendimento do TJDFT, a res-
peito do alcance da expressão ação ou omissão baseada no gênero (LMP,
art. 5º), oscila entre a encampação da tese de proteção absoluta (vul-
nerabilidade pressuposta ope legis) e a proteção relativa (exigência de
sua demonstração concreta de vulnerabilidade). O acolhimento da tese
de proteção relativa permitiu que a proteção às mulheres idosas fosse
denegada em 46% dos casos totais. Essa divergência jurisprudencial é
gerada por uma interpretação jurídica equivocada e sem perspectiva
de gênero: em vez de se reconhecer que os incisos do art. 5º da LMP
exemplificam a violência baseada no gênero indicada no caput, passou-
-se a exigir que houvesse justificação concreta da violência baseada no
gênero em elementos circunstanciais.
312
presença dos elementos objetivos descritos na lei de regência: violência
contra a mulher dentro da relação de natureza doméstica, familiar ou
íntima de afeto (LMP, arts. 5º e 7º). Essa compreensão também facili-
taria uma abordagem interseccional dos casos envolvendo mulheres
idosas e seus filhos, obstando que especificidades do caso concreto se
convertam em fatores excludentes da proteção (e.g., abuso de álcool ou
drogas; questões patrimoniais, disciplinares dos filhos, e outras rela-
cionadas ao planejamento familiar; ou incidência de outra vulnerabi-
lidade). Tais especificidades circunstanciais devem ser compreendidas
como fatores de risco e não como motivadores, com a aplicação simul-
tânea dos sistemas normativos de proteção existentes (mulher e idosos).
Referências
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313
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315
FEMINIZAÇÃO DAS PROFISSÕES JURÍDICAS
Algumas notas sobre Portugal
Lígia Afonso
Docente na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universida-
de Fernando Pessoa. Mestre em Criminologia e Licenciada em Direito
pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Pesquisadora das
relações entre a criminologia e o estudo das questões de género nas
profissões jurídicas.
Abstract: There is now a trend towards the feminization of the legal professions,
suggesting the attainment of a more equalitarian position of women in these
professional segments. This paper analyses a set of statistical data about the
progressive integration of women in the legal professions, verifying that, in
Portugal, women are the majority in the legal profession and in the judiciary.
317
However, when the analysis of these statistical data is complemented by the
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
results of the research carried out in this field, we verify, hidden under the
numerical superiority of women, situations of actual inequality that reveal
horizontal and vertical segmentation dynamics that drag women to the
margins of the profession.
Introdução
Os estudos realizados no domínio das questões de género nas profis-
sões jurídicas têm vindo a permitir sedimentar um conjunto de conhe-
cimentos sobre o processo de integração das mulheres na advocacia e
na magistratura, destacando os particulares constrangimentos e opor-
tunidades que estas enfrentam ao longo do seu percurso profissional
(SCHULTZ; SHAW, 2003; BOIGEOL, 2013; KAMAU, 2013). Do ponto
de vista formal, estes estudos destacam-se pela diversidade de estra-
tégias utilizadas na abordagem dos conteúdos, encontrando-se relatos
de experiências pessoais dos investigadores (HERZ, 2013), narrativas
que documentam do ponto de vista histórico o processo de ingresso
das mulheres nas profissões jurídicas (OLGIATI, 2003), revisões da
literatura e estudos empíricos (SCHULTZ; SHAW, 2003, 2013) e tex-
tos sobre diferentes referenciais teóricos (SILIUS, 2003). É pertinente
referir que Ulrike Schultz e Gisela Shaw se destacam pelo estímulo
dado à realização de estudos comparativos (2003, 2013), os quais cons-
tituem uma oportunidade para confrontar os moldes de integração das
mulheres em profissões jurídicas, designadamente, na magistratura e
na advocacia, no seio de diferentes tradições jurídicas e culturais.
Percentagem
Ano Total
de mulheres
1991 9.526 27,5
1992 9.804 29,0
1993 12.022 32,9
1994 12.581 35,0
1995 14.836 34,9
1996 13.809 38,6
1997 14.462 40,7
1998 16.440 42,0
1999 17.773 44,1
2000 18.629 45,7
2001 18.954 45,1
2002 18.425 46,7
2003 21.646 47,4
2004 22.418 48,3
322
partido dos recursos que têm disponíveis. Este padrão de segregação
das mulheres nas sociedades de advogados é confirmado em diversos
estudos internacionais que demonstram a persistência de uma distri-
buição desigual de homens e mulheres que assumem o papel de sócios
em sociedades de advogados (WHITE, 1967; BOWMAN, 1998; KAY;
BROCKMAN, 2000; HUNTER, 2003; MCGLYNN, 2003), e, mesmo
quando são usadas amostras homogéneas e variáveis de controlo (como,
por exemplo, a área de direito em que trabalham, a faculdade de direito
que frequentaram ou a situação familiar), o diferencial continua a favo-
recer os homens (NOONAN; CORCORAN; COURANT, 2008).
323
que têm avenças, em que, mais uma vez, o número de mulheres que
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
324
1.2 • Mulheres na magistratura
No que se refere à distribuição de homens e mulheres na magistratura
(Tabela 2), é possível constatar os avanços da integração das mulheres
nesta profissão. Apesar da diminuta representatividade das mulheres
durante a década de 1990 (25% em 1991 e 39% em 1999), deu-se um
progresso notável em termos da sua presença na magistratura, pois, ao
longo de um período de 26 anos, regista um crescimento de aproxima-
damente 74%. Esta tendência começou em 2004, quando a presença das
mulheres no judiciário começa a acompanhar a dos homens, e, alguns
anos mais tarde, mais especificamente de 2006 em diante, a represen-
tatividade das mulheres excede a dos homens, reproduzindo, assim,
a transformação que ocorreu na advocacia no mesmo ano (conforme
Tabela 1), representando em 2017 as mulheres 62% dos magistrados.
Percentagem
Ano Total
de mulheres
325
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Percentagem
Ano Total
de mulheres
2003 2.837 43,8
2004 3.032 47,5
2005 3.087 48,9
2006 3.176 50,2
2007 3.208 51,6
2008 3.271 53,2
2009 3.398 54,7
2010 3.431 56,4
2011 3.491 58,0
2012 3.580 58,7
2013 3.604 59,1
2014 3.498 59,7
2015 3.523 59,9
2016 3.498 60,1
2017 3.464 61,6
326
e Reino Unido (MCGLYNN, 2003), ilustrando o modo como a segmen-
tação vertical da magistratura tem uma tendência relativamente consis-
tente, independentemente do sistema jurídico em que opera.
Tribunais de Tribunais
1ª instância superiores
Ano Total % Total %
1991 1.612 29,8 384 2,3
1992 1.662 31,6 384 2,9
1993 1.693 33,4 412 2,9
1994 1.815 34,8 448 4,9
1995 1.894 37,4 410 3,7
1996 1.956 39,7 450 4,2
1997 2.019 42,3 479 5,4
1998 2.062 44,7 523 6,7
327
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Tribunais de Tribunais
1ª instância superiores
2011 2.885 63,5 606 32,0
2012 2.936 64,0 644 34,6
2013 2.986 64,1 618 35,1
2014 2.863 64,9 635 36,2
2015 2.903 64,8 620 36,9
2016 2.868 65,0 630 38,1
2017 2.823 66,5 641 39,8
328
a influenciar esta tendência, designadamente, a posição de destaque
e a visibilidade pública que alguns dos cargos na magistratura do
Ministério Público envolvem.
Magistradas
Magistradas
Ano do Ministério
judiciais
Público
Mulheres % Mulheres %
329
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Magistradas
Magistradas
Ano do Ministério
judiciais
Público
Mulheres % Mulheres %
330
(50%), Montenegro (50%) ou Suécia (50%), nos quais se encontra
uma distribuição equilibrada de homens e mulheres a trabalhar no
Supremo (CEPEJ, 2012). Posteriormente, em Portugal, em 2012, a pro-
porção de mulheres regista um aumento passando para 9%, e, mais
recentemente, em 2014, a proporção de magistradas no Supremo é
de 18% (CEPEJ, 2012; 2014; 2016). Não obstante a evolução positiva
que se tem registado em Portugal, em termos do número de juízas
em exercício de funções no Supremo, recorrendo aos dados dispo-
níveis no site do Supremo Tribunal de Justiça, em 2018, no conjunto
de sete secções em que este se organiza, continuavam a predominar
as secções exclusiva ou quase exclusivamente compostas por juízes
conselheiros de sexo masculino, e a função de presidente de secção
continua, igualmente, a ser exercida por homens (apenas uma das sete
secções é presidida por uma juíza conselheira).
331
Conclusão
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
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Diálogos, disputas e perspectivas
de equidade de gênero
Abstract: The Popular Legal Promoters Project and the Gender Center of the
Federal District and Territories Public Prosecution Office have been in place
since 2005. Throughout these years of partnership, hundreds of women have
had their lives transformed by popular feminist legal education. The Gender
Center was not unharmed by this experience of dialogic and interdisciplinary
339
education. The article brings interactions between popular legal prosecutors
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
and women prosecutors, reveals some of the still persistent gender disputes
and proposes challenges for partners regarding the shared desires for women’s
emancipation and gender balance in the Public Prosecution Service.
Introdução
O Projeto Promotoras Legais Populares (PLPs) tem início no Brasil após
a Constituição Federal de 1988. Desde a década de 1970, os movi-
mentos feministas e de mulheres interagiam com as lutas pela redemo-
cratização do País, reivindicando liberdade e igualdade em direitos. A
década de 1990 inicia-se com certo recuo dos movimentos, fragmen-
tados em organizações não governamentais. Não demorou muito para
que os movimentos feministas reativassem as lideranças, ao se darem
conta de que a igualdade de direitos entre mulheres e homens existia
apenas no âmbito formal. Como apontado por Teles (2015, p. 49), para
a garantia dos direitos, é necessário que as principais protagonistas, “as
mulheres populares”, se apropriem “dos significados dos direitos e dos
mecanismos para que sejam de fato aplicados”. Em 1995, em São Paulo,
aconteceu o “primeiro Curso de Promotoras Legais Populares, coor-
denado pelas instituições União de Mulheres de São Paulo e Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública” (PRADO, 2015, p. 59).
341
“alongamento” ou “releitura da própria Pedagogia do Oprimido”, de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
342
direitos humanos de/para mulheres. Também indica as disputas para
a implementação de políticas de igualdade de gênero/raça na estrutura
organizacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e
aponta alguns desafios.
343
promover advocacy dos direitos humanos, visando à transformação social
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
344
necessitam suplantar para alcançar a igualdade de direitos (BANDEIRA;
BITTENCOURT, 2005, p. 171-172; MARCONDES et al., 2018, p. 35-61).
345
tendência de interação com os movimentos sociais, especialmente com
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
346
pelos direitos humanos” (CANDAU, 2008, p. 46). Em tempos pós-
-modernos, a fruição dos direitos civis, políticos, econômicos e
culturais ainda não foi alcançada por todos os seres humanos.
Especialmente, as meninas e as mulheres continuam ainda mais vul-
neráveis à pobreza, à violência e à desigualdade socioeconômica.
348
iniciativas dos movimentos sociais, das redes interinstitucionais, dos
fóruns e observatórios de direitos humanos.
O próprio projeto das PLPs tem persistido com quase nenhum recurso
financeiro, e o apoio administrativo do MPDFT tem se resumido à
impressão de cartazes e de folhetos, à organização e divulgação das ins-
crições e à participação em algumas das oficinas, o que, de fato, é pouco.
349
Desafia o Núcleo de Gênero sensibilizar a instituição para que se
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Considerações finais
Fabiana Cristina Severi informa que o “projeto jurídico feminista bra-
sileiro” não se inicia nem se completa com a edição da Lei Maria da
Penha, mas tem nela seu eixo de referência (2018, p. 75). Ela nomeia
de “domesticação da Lei Maria da Penha” os mecanismos de enqua-
dramento dos sentidos da lei que resultem na redução do reconhe-
cimento dos direitos humanos das mulheres, na marginalização dos
efeitos democratizantes da lei sobre a sociedade e sobre as instituições
políticas e jurídicas ou na invisibilidade do papel do campo feminista.
Referências
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353
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PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
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SUPERIOR.FILOSOFIA.pdf. Acesso em: 3 fev. 2019.
354
SISTEMATIZAÇÃO DOS PARÂMETROS
INTERAMERICANOS RELATIVOS
À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
355
Abstract: This article aims to systematize the Inter-American standards
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Introdução
As notícias sobre violências cometidas por policiais e militares em
áreas de intervenção federal militar no Rio de Janeiro durante o ano
de 2018 – colhidas pelo “Circuito Favelas por Direitos”, liderado pela
Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – gera-
ram grande debate com relação aos métodos utilizados no Estado
do Rio de Janeiro no que se refere à segurança pública. De todas as
violências relatadas, provavelmente as que geraram maior polêmica
foram as relativas à violência de gênero:
1 Relato de moradora colhido no relatório Circuito de Favelas por Direitos. Ver DPU;
DPRJ. Relatório: Circuito de favelas por direitos 2018. Disponível em: http://siste
mas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/
Relatório_Final_Circuito_de_Favelas_por_Direitos_v9.pdf. p. 6.
356
tampouco há jurisprudência sobre o assunto ou uma elaboração sofis-
ticada de teses jurídicas na doutrina nacional.
2 CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceções preliminares, mérito,
reparações e custas. Sentença de 16 de fevereiro de 2017, par. 243.
357
1 • Instrumentos e normativas internacionais
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
3 A CEDAW foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979, mas
apenas foi ratificada no Brasil em 1984, entrando em vigor por meio do Decreto
n. 89.460, de 20 de março de 1984. Importante ressaltar que a CEDAW não traz
nenhuma referência explícita sobre violência contra a mulher, e a luta contra essa
forma de violência depende, principalmente, da Recomendação 19 do Comitê
CEDAW e da Declaração Universal sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher.
4 A partir da CEDAW, foi criado o Comitê CEDAW, responsável pelo monito-
ramento da implantação da própria convenção. Com relação aos Estados que
ratificaram a CEDAW – como é o caso do Brasil –, as recomendações do Comitê
CEDAW funcionam como fontes autorizadas de interpretação da convenção e,
ainda que meras recomendações e não sentenças judiciais, informam as obri-
gações internacionais e determinam responsabilidades internacionais. Na
Recomendação Geral n. 19, aprovada em 1992, na 11ª sessão do Comitê CEDAW,
o comitê interpreta o art. 1º da CEDAW, definindo violência contra a mulher
como “violência baseada no sexo, isto é, violência dirigida contra a mulher por-
que mulher ou que a afeta de modo desproporcional” (§ 6º). Na Recomendação
Geral n. 35, aprovada em julho de 2017, observamos importantes avanços a res-
peito da consideração da interseccionalidade de fatores na análise da violência
de gênero e da possibilidade de a violência contra a mulher ser considerada
tortura em determinadas circunstâncias.
5 A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra Mulher foi elaborada
durante a Convenção de Viena sobre Direitos Humanos em 1993 e aprovada pela
Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 48/104, em 1994. A decla-
ração, no art. 2º, reitera a definição dada pelo Comitê CEDAW e sistematiza
os tipos de violência contra a mulher. Como declaração, na técnica normativa
internacional, ela limita-se a enunciar aspirações dos Estados signatários e não
vincula comportamentos. Todavia, na medida em que foi votada por represen-
tantes de Estados, como o Brasil, pode ser considerada prova da existência de
opinio juris de direito costumeiro.
358
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará)6 é o mais relevante documento
sobre o tema. Em todos esses instrumentos internacionais, o perfil da
vítima que necessita de proteção especial são as mulheres7.
359
para efetivar os direitos previstos na CADH, assim como deve-se asse-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
360
Belém do Pará, a violência de gênero pode ser sistematizada em três
tipos: violência familiar ou doméstica; violência por outros membros
da comunidade; e violência perpetuada por agentes de Estado – esta
última aprofundaremos ao longo desse trabalho. Em todos os casos, ela
é considerada uma violação aos direitos humanos das mulheres, rom-
pendo com a inviabilização da violência em âmbito privado12.
361
acentuam a situação de discriminação e vulnerabilidade de algumas
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
362
os parâmetros relacionados à violência contra a mulher devem ser
enxergados através da lente da interseccionalidade.
Convém destacar que, quando o ato é praticado por agente estatal, o estu-
pro é especialmente grave, devido ao abuso de poder e à maior vulnerabi-
22 CORTE IDH. Caso Presídio Miguel Castro Castro vs. Perú. Mérito, reparações e
custas. Sentença de 25 de novembro de 2006, par. 306.
23 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 105
24 CORTE IDH. Caso J. Vs. Peru. Exceção preliminar, mérito, reparações e custas.
Sentença de 27 de novembro de 2013, par. 359.
25 CORTE IDH. Caso Presídio Miguel Castro Castro vs. Peru. Sentença de 25 de
novembro de 2006, par. 311; CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil.
Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 16 de feve-
reiro de 2017, par. 255.
26 CORTE IDH. Caso Presídio Miguel Castro Castro vs. Peru. Sentença de 25 de
novembro de 2006, par. 311; CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil.
363
Prevalece, também, o entendimento no Sistema Interamericano de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
364
tos um ato I) pelo qual são infligidos a uma pessoa penas e sofrimen-
tos físicos e mentais; II) cometido intencionalmente; III) praticado
por agentes públicos ou particulares, por instigação dos primeiros
ou com sua cumplicidade 32.
32 CIDH. Informe de Mérito n. 5/96, Caso 10.970, Raquel Martín de Mejía (Peru),
de 1º de março de 1996. CIDH, Informe de Mérito n. 53/01, Caso 11.565, Ana,
Beatriz e Celia González Pérez (México), de 4 de abril de 2001.
33 CORTE IDH. Caso Buenos Alves vs. Argentina. Exceção preliminar, mérito, repa-
rações e custas. Sentença de 11 de maio de 2007, par. 79.
34 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 124.
35 CORTE IDH. Caso Presídio Miguel Castro Castro vs. Peru. Mérito, reparações e
custas. Sentença de 25 de novembro de 2006, par. 311.
36 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 127.
365
determinadas circunstâncias (como é o caso do estupro), sendo neces-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
366
4 • A responsabilidade estatal em face de violência
contra a mulher
O entendimento amplamente sedimentado do SIPDH estabelece o dever
geral dos Estados de atuar com a devida diligência para prevenir, investigar,
sancionar e reparar violações de direitos humanos42 .
367
houver conhecimento de um risco real e imediato e; III) em vista de uma
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
368
de violência contra a mulher propicia um ambiente de impunidade, e
este promove a repetição dos fatos de violência e envia uma mensagem
à sociedade de que a violência contra as mulheres pode ser tolerada e
aceita, perpetuando entre elas o sentimento generalizado de insegu-
rança e desconfiança no sistema de administração da justiça49.
A falta de preparo dos operadores de justiça para realizar a oitiva das víti-
mas (minimizando a importância do testemunho da vítima e centrali-
zando a investigação no histórico sexual ou moral da mulher) reproduz
estes estigmas e padrões machistas, agravando as consequências do dano
causado e produzindo a revitimização da vítima nas instâncias judiciais52.
49 CORTE IDH. Caso Veliz Franco e outros vs. Guatemala. Exceções preliminares,
mérito, reparações e custas. Sentença de 19 de maio de 2014, par. 208.
50 CORTE IDH. Caso J. vs. Peru. Exceção preliminar, mérito, reparações e custas.
Sentença de 27 de novembro de 2013, par. 323.
51 CORTE IDH. Caso López Soto e outros vs. Venezuela. Mérito, reparações e custas.
Sentença de 26 de setembro de 2018, par. 200. Antes, Caso González e outras
(Campo Algodoeiro) vs. México. Exceção preliminar, reparações e custas. Sentença
de 16 de novembro de 2009, par. 401.
52 CIDH. Acesso à justiça para mulheres vítimas de violência sexual na
Mesoamérica. OEA Ser.L/V/II. Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 170.
369
acesso à justiça por mulheres violentadas, reiteradamente revitimizadas
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
53 CIDH. Informe de admissibilidade. Caso María Isabel Véliz Franco vs. Guatemala.
N. 92/06, Petição 95-04, de 21 de outubro de 2006, par. 52.
54 CIDH. Acesso à justiça para mulheres vítimas de violência sexual na
Mesoamérica. OEA Ser.L/V/II. Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 80.
55 CORTE IDH. Caso López Soto e outros vs. Venezuela. Mérito, reparações e custas.
Sentença de 26 de setembro de 2018, par. 224.
56 CIDH. Acesso à justiça para mulheres vítimas de violência sexual na
Mesoamérica. OEA Ser.L/V/II. Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 215-243.
370
é integral, compreendendo tanto o enfoque jurídico como a arti-
culação com setores de saúde e educação, devendo a reparação ter
caráter multidisciplinar. A Corte IDH destacou entre essas medidas
a necessidade de I) fornecer ambientes seguros para denúncia; II) ter
um sistema de medidas de proteção imediatas; III) fornecer assis-
tência jurídica gratuita; IV) prestar assistência médica e psicológica;
e V) implementar mecanismos de apoio social e material à mulher
vítima de violência 57. No caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, por
exemplo, a Corte IDH decidiu que o Estado deve oferecer gratuita-
mente tratamento psicológico e psiquiátrico em centros escolhidos
pelas vítimas58. Dessa forma, os aparatos estatais responsáveis pelo
atendimento da mulher nestes casos devem estar coordenados entre
si, para que efetivamente haja uma investigação adequada e pautada
no dever de devida diligência 59.
57 CORTE IDH. Caso López Soto e outros vs. Venezuela. Mérito, reparações e custas.
Sentença de 26 de setembro de 2018, par. 222.
58 CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceção preliminar, mérito, repara-
ções e custas. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Ponto Resolutivo n. 12 e par. 296.
59 CIDH. Acesso à justiça para mulheres vítimas de violência sexual na
Mesoamérica. OEA. Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 101 e 102.
60 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 194.
61 CIDH. Acesso à justiça para mulheres vítimas de violência sexual na
Mesoamérica. OEA Ser.L/V/II. Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 87.
62 Ibidem.
371
Estado o dever de não se limitar às provas obtidas pelo exame médico,
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Na sentença do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, a Corte IDH determi-
nou que o Estado deve estabelecer mecanismos necessários para que, em
casos de violência sexual decorrentes de intervenção policial em que se
suspeita da autoria de policiais, deleguem-se as investigações a um órgão
independente e diferente da força pública envolvida no incidente64.
63 CORTE IDH. Caso Villagrán Morales e outros (Niños de la Calle) vs. Guatemala.
Mérito. Sentença de 19 de novembro de 1999, par. 230; CIDH. Acesso à jus-
tiça para mulheres vítimas de violência sexual na Mesoamérica. OEA Ser.L/V/II.
Doc. 63, 9 de dezembro de 2011, par. 84.
64 CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceção preliminar, mérito,
reparações e custas. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Ponto Resolutivo n. 16.
65 CIDH. Estandartes jurídicos vinculados à igualdade de gênero e aos direitos das
mulheres no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Desenvolvimento e
aplicação. Atualização de 2011-2014. OEA Ser.L/V/II.143. Doc. 60, 3 de novem-
bro de 2015, p. 26-27.
66 Ibidem
67 CORTE IDH. Caso González e outras (Campo Algodoeiro) vs. México. Exceção pre-
liminar, reparações e custas. Sentença de 16 de novembro de 2009, par. 455.
372
de atuarem em seus processos68. Os Estados devem garantir que todos os
mecanismos de fato e de direito capazes de impedir o acesso à justiça pela
vítima sejam removidos e, também, que sejam asseguradas segurança e pri-
vacidade ao seu testemunho, bem como ao de seus familiares69.
No mesmo sentido, nas decisões referentes aos casos Fernández Ortega vs.
México e Rosendo Cantú vs. México, a Corte IDH determinou que a inves-
tigação penal deve ser realizada de modo que: I) a declaração da vítima
seja realizada em um ambiente cômodo e seguro, que lhe garanta priva-
68 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 192.
69 CORTE IDH. Caso Carpio Nicolle y otros vs. Guatemala. Mérito, reparação e cus-
tas. Sentença de 22 de novembro de 2004, par. 134.
70 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega y otros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 100.
71 CORTE IDH. Caso J. vs Peru. Exceção preliminar, mérito, reparações e custas.
Sentença de 27 de novembro de 2013, par. 323.
72 CORTE IDH. Caso Espinoza Gonzáles vs. Peru. Exceção preliminar, mérito, repa-
rações e custas. sentença de 20 de novembro de 2014, par. 150.
73 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 104.
373
seja reduzir as consequências da violação; IV) se realize imediatamente
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
74 CORTE IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceção preliminar,
mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010, par. 194; CORTE
IDH. Caso Rosendo Cantú y otra vs. México. Exceção preliminar, mérito, repara-
ções e custas. Sentença de 31 de agosto de 2010, par. 178.
75 CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceção preliminar, mérito,
reparações e custas. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Ponto Resolutivo n. 18.
76 SECRETARIA PERMANENTE DA COMISSÃO INTERAMERICANO DE
MULHERES (CIM). “Relatório sobre o andamento da implementação do meca-
nismo de acompanhamento da implementação da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ‘Convenção de
Belém do Pará’”. N. 02-007.09, 2009. Capítulo 4.
77 O artigo 8, inciso h, da Convenção de Belém do Pará dispõe: “Os Estados
Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas específicas, inclusive
programas destinados a: [...] assegurar a pesquisa e coleta de estatísticas e
outras informações relevantes concernentes às causas, consequências e fre-
quência da violência contra a mulher, a fim de avaliar a eficiência das medidas
tomadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem
como formular e implementar as mudanças necessárias”.
78 CIDH. Acceso a la justicia para mujeres víctimas de violencia en las Américas.
OEA/Ser.L/V/II. Doc. 68, 20 de janeiro de 2007, par. 42.
374
Seguindo esse entendimento, a CIDH publicou relatório utilizan-
do-se de parâmetros estatísticos trazidos pelo Comitê CEDAW.
No relatório Acceso a la Información, Violência contra las Mujeres y
Administración de Justicia, a CIDH destaca a necessidade de compilar
estatísticas judiciais referentes à violência contra a mulher, para que
se possa avaliar a eficácia de leis e políticas públicas destinadas à
proteção da mulher. O relatório também chama a atenção para a
recomendação do Comitê79 que determina que os Estados utilizem-
-se de dados sobre casos reportados, processados e julgados, assim
como de sanções impostas aos perpetradores e das medidas de repa-
ração outorgadas para elaborar políticas públicas que promovam o
acesso das mulheres à justiça80.
Referências
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brasileira a parâmetros internacionais de proteção à mulher. In: OLIVEIRA,
Adriana Vidal de; BERNARDES, Marcia Nina; COSTA, Rodrigo de Souza.
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377
A INFLUÊNCIA DA FORMAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL
BRASILEIRA NAS MAZELAS DO SISTEMA DE
JUSTIÇA PÁTRIO E A EDUCAÇÃO JURÍDICA COMO
POSSÍVEL INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO
(Manoel de Barros)
Sumário: Introdução. 1 Quem somos nós? 1.1 Somos portugueses. 1.2 Somos
índios. 1.3 Somos negros. 2 E as mulheres? 3 O que o Direito tem a ver com
isso? 4 É possível sonhar? Considerações finais.
Introdução
Conta-se por aí que o maestro Tom Jobim costumava dizer que o
Brasil não é para principiantes. Inegável. Nosso país ensolarado ao
sul do Equador é bem mais complexo do que aparenta sua fachada
festiva. Multicultural, carrega consigo as mazelas da colonização e
do regime escravocrata. O presente artigo almeja a análise de alguns
desses elementos históricos considerados decisivos para moldar
mores discriminatórios, os quais persistem nos tempos atuais e
se tornaram formas distorcidas de perceber as relações sociais. O
texto ilustra a fundamental participação das mulheres no processo
de construção da nação e, ainda, enfrenta heranças socioculturais
atadas à atividade jurídica, sustentando sempre a necessidade de res-
gate da própria história como meio de superação. O artigo também
argumenta que, por canais da lei e da justiça, podem ser detectadas
380
duas realidades, por vezes antagônicas: renitência dos profissionais
visando a conservação do status quo e possibilidade da utilização
do ensino do Direito como instrumento de transformação social.
Finalmente, nessa perspectiva, o artigo considera a propositura de
revisão no currículo dos cursos de Direito para inclusão da educação
para as relações de gênero.
381
mas também profunda inter-relação de diferentes etnicidades. A relação
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
384
2012). Entretanto, estigma profundo atou-se à figura dos indígenas, sem
que se perceba que a simples ideia da indolência é mera distorção da
resistência em se curvar ao estilo de vida imposto pelo colonizador.
385
Todavia, até hoje o Brasil é profundamente marcado por seu passado
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
386
em encarar sua própria trajetória e, nesse sentido, a negação é, ao mesmo
tempo, estratégia governamental para evitar ampla consciência pública e
tentativa de seguir adiante sem a aflitiva constatação da realidade. Para ela,
muitas pessoas acreditam que a superação vem da ignorância, que nos per-
mite seguir em frente, porque reflexão e debate resultariam em armadilhas
e aprisionamento. Entretanto, historiadores e psicólogos costumam sugerir
o oposto, que, quando as pessoas têm histórias traumáticas, as tentativas
de ignorá-las são inúteis e destrutivas, porque não se pode superar trauma
por meio de negação ou ocultação; ele precisa ser processado.
2 • E as mulheres?
Este capítulo segue nas trilhas do legado escravocrata, porém, lida mais
388
2012). Tanto desbravadores aventureiros quanto senhores de escravos
se beneficiaram dessa atividade procriativa de homens polígamos.
389
As inúmeras contribuições se detectam na gastronomia, na medicina
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
390
original do colonizador e continuaram explorando e se multiplicando
em uma fronteira móvel (FREYRE, 2013).
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homens em diferentes posições de poder tiveram a oportunidade de
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
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Lutz, de origem intelectual e econômica privilegiada, foi capaz de anga-
riar apoio político para, em 21 de fevereiro de 1932, obter a extensão do
direito ao voto para as mulheres. Lutz optou pela tática de jamais negar
o papel secundário da mulher na vida pública, reforçando valores de
maternidade e domesticidade (SOIHET, 2006, p. 44, 49 e 101-102). O
segundo, liderado pela imprensa alternativa, engajou-se na arena polí-
tica, introduziu os primeiros debates públicos sobre desigualdade de
gênero e dominação masculina. Esse grupo remonta a 1873, quando
Francisca Senhorinha Motta Diniz fundou o jornal O Sexo Feminino,
destinado a expor a causa da mulher. O terceiro, malcomportado, era o
mais radical e se identifica com as lutas de classe e, mais tarde, com o
regime comunista. Remonta a 1920, quando a União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas lançou o primeiro manifesto concla-
mando trabalhadoras a se unirem em torno do ideal da emancipação
da mulher (PINTO, 2003, p. 28-36).
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A terceira onda surge na redemocratização, a partir de 1970, marcada
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
Assim é que a história não deixa dúvida da ativa participação das mulhe-
res na edificação da cultura, liberdade política e leis desse País. Cada
mulher individualmente corajosa, ou grupo de mulheres, contribuiu
com diferentes táticas, estratégias e armas disponíveis no seu tempo e
contexto e foi capaz de ajudar a forjar o futuro. Não obstante a persis-
tente violência a que eram submetidas, não se pode dizer que a trajetória
das mulheres brasileiras tenha sido de passiva submissão e silêncio, e
que quaisquer mudanças socioculturais tenham se dado por gentileza ou
vontade despretensiosa do sexo oposto. A negação da importância das
mulheres no nosso processo de design social e a incompreensão do legado
escravocrata e patriarcal permitem que tais categorias, profundamente
arraigadas e readaptadas à modernidade, persistam como poderosos ins-
trumentos de sustentação de privilégios de gênero.
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carrega certo modo de perceber a vida social que borra a linha divisória
entre o público e o privado, entre o formal – os protocolos oficiais – e o
informal – as ligações íntimas. Como já explicado, a colonização portu-
guesa se diferencia da espanhola exatamente pela visão diversa acerca
da rigidez de regras. Enquanto os espanhóis raramente se identifica-
vam com a terra e os nativos e simplesmente se impunham sobre eles,
a dominação portuguesa era menos obediente à Coroa, mais suscetível
às leis da natureza (HOLANDA, 2012). Assim é que, desde o começo, a
colonização portuguesa foi marcada por certo traço de informalidade,
de deixar as coisas acontecerem naturalmente. Essa característica de
informalidade se desenvolveu e enraizou na nossa cultura após o feu-
dalismo escravocrata latifundiário por meio da supremacia dos víncu-
los familiares e de círculo íntimo, dos quais derivam a extrema dificul-
dade do povo brasileiro em separar público e privado.
Holanda explica que, com a ascensão dos centros urbanos, após a che-
gada da Corte em 1808, os filhos de fazendeiros começaram a ocu-
par posições na política e nas profissões liberais e a demandar status.
Transportados para as cidades, trouxeram a mentalidade, os preconcei-
tos e o estilo de vida das plantations (HOLANDA, 2012). Freyre tem idên-
tica percepção da comunidade jurídica, observando que os filhos dos
fazendeiros se tornaram advogados, juízes e médicos (FREYRE, 2013).
Cowling descreve o papel dos advogados e do sistema de justiça nas
ações de liberdade e aponta, da mesma forma, que esses profissionais
395
poderiam, em distintos momentos, prestar serviços aos donos de escra-
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
vos ou aos escravos, e não raro eles mesmos possuíam escravos. Não se
viam como defensores da liberdade em si, mas exercendo papel profis-
sional. Advogados e juízes estavam cientes das amplas mudanças que
ocorriam no mundo, mas não deixavam de estar entrelaçados ao tecido
social e político do Brasil Império (COWLING, 2013, p. 62 e 74).
4 • É possível sonhar?
O presente capítulo explora a possibilidade da lei e da prática jurídica
como instrumentos de transformação e propõe reflexão sobre o sistema
de ensino jurídico no Brasil. Como explicado antes, o Direito apresenta
características do período colonial, e os educadores apontam a descone-
xão do ensino jurídico com a concretude e a dificuldade das universida-
des em formar profissionais capazes de perceber a real dimensão social
do problema com o qual terão de lidar. Os professores criticam a imobi-
lização e o isolamento dos cursos de Direito e acreditam que poderiam
ser aperfeiçoados, em especial no senso crítico, a partir da Sociologia, da
Filosofia e da Economia, as quais deveriam ser integradas ao currículo, sem
397
tratamento hierárquico (ALMEIDA; SOUZA; CAMARGO, 2013, p. 21-22).
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
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Gráfico 2 • Distribuição de graduados em cursos de Direito,
de 2001 a 2012
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e estabelecer relações com diferentes áreas do conhecimento, como
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
É certo que, no que tange aos estudos de gênero, após a edição da Lei n.
11.340/2006 (Lei Maria da Penha), houve campo para a estruturação da
educação para relações de gênero no Brasil, inclusive tendo sido possível
constatar enormes avanços quanto à capacitação de profissionais dos sis-
temas de segurança pública e justiça. Todavia, não há perspectiva para
ensino formal nos cursos de Direito. Em teoria, um currículo dedicado
400
exclusivamente à educação para as relações de gênero no Brasil poderia
contemplar o seguinte: (1) História – colonização, patriarcado e escravi-
dão; desenvolvimento e conquistas dos movimentos sociais, de mulheres
e feministas; (2) Sociologia e Antropologia – sexo biológico, identidade e
expressão de gênero, orientação sexual, estereótipos de gênero (de sexo,
sexuais ou de papéis), violências e interseccionalidades (classe, etnia,
religião, cor, práticas culturais, deficiência, entre outras); (3) Direito
Internacional das Mulheres – convenções, recomendações, declarações
e jurisprudência dos sistemas de cooperação internacional (Organização
das Nações Unidas e Organização dos Estados Americanos); (4) Direito
– violência de gênero (em sentido amplo) e, especificamente, violência
doméstica e familiar e feminicídio. Em disciplina exclusivamente dedi-
cada a Direito das Mulheres, a abordagem seria mais ampla, com as
possibilidades antes destacadas, e, em módulo dentro de disciplina de
Direitos Humanos, teria de ser otimizada.
401
vão operar a máquina da justiça, propor políticas públicas ou redigir
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
leis. Marcus entende, porém, que esse conhecimento deve vir dos
bancos acadêmicos, uma vez que, após ingressarem no mercado de
trabalho, os profissionais já terão absorvido ampla consciência social
que tende a discriminar as mulheres ou, pelo menos, minimizar a
promoção da igualdade plena. Ela argumenta que o ensino jurídico no
mundo, com raras exceções, é reflexo do patriarcado e propõe a inser-
ção, no programa acadêmico, da “pergunta da mulher” em quaisquer
disciplinas: “o que acontece com a inserção da mulher no mercado
de trabalho? Quais as expectativas sobre a mulher para o Direito de
Família? Quais as implicações de ser mulher para o Direito Penal?”.
Essa linha de questionamento e raciocínio permitiria aos estudan-
tes entender o modo pelo qual o patriarcado acarretou diferenças no
tratamento a homens e mulheres (MARCUS, 2014, p. 509-512). E ela
também sustenta que o Brasil seria terreno fértil para tal experiência
de aprendizagem, em razão da sua história dolorosa e por ser o país
no mundo com maior número de cursos de Direito, o que estabelece-
ria exemplo para outras nações.
Considerações finais
Este artigo tratou da associação entre história e ensino jurídico no
Brasil. O País carrega marcas do seu passado de escravidão e patriar-
cado que não podem ser simplesmente apagadas da memória. Não obs-
tante os sucessivos avanços civilizatórios, é certo que esse legado pro-
fundamente enraizado não desaparecerá como mágica. O Brasil, apesar
da aparência festiva, é formado de sociedade complexa, na qual os pri-
vilégios de gênero e de cor permanecem ativos, e a justiça social, alme-
jada pelo Constituinte de 1988, ainda segue longe de ser alcançada. Por
mais traumática que seja a história do País, não há melhor forma de
superação que o amplo e público debate. E os cursos de Direito deve-
riam ser o palco em que essa realidade histórica seria desnudada sem
temor. A educação para as relações de gênero poderia ajudar a compor
esse quadro, promovendo consciência e desmascarando a alegada neu-
tralidade da justiça. Por enquanto, é apenas exercício de imaginação,
mas foi de tanto sonhar que muitas aspirações se tornaram existência
– retas que, em devaneio, fizeram-se curvas rumo à utopia.
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Referências
ALMEIDA, Frederico de; SOUZA, André Lucas Delgado; CAMARGO, Sarah
Bria de. Direito e realidade: desafios para o ensino jurídico. In: GHIRARDI,
José Garcez; FEFERBAUM, Marina (orgs.). O ensino do Direito em debate:
reflexões a partir do 1º Seminário Ensino Jurídico e Formação Docente. São
Paulo: Direito GV, 2013. p. 19-32.
FREYRE, Gilberto. The masters and the slaves. New York: Borzoi Book, 1964.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Roots of Brazil. Notre Dame: University of Notre
Dame Press, 2012. Kindle edition.
403
MARCUS, Isabel. Entrevista. [Entrevista cedida a] Ana Lara Camargo de Castro.
PERSPECTIVAS DE GÊNERO E O SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO
PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2003.
SOIHET, Rachel. O feminismo tático de Bertha Lutz. Santa Cruz do Sul: Mulheres/
EDUNISC, 2006.
404
“We have to talk about liberating minds
as well as liberating society.”
Angela Davis
“Temos que falar sobre libertar mentes
tanto quanto libertar a sociedade.”
Angela Davis
Obra composta em Philosopher e ITC Berkeley Oldstyle Std
e impressa em papel offset 90 g/m2 pela
Gráfica e Editora Ideal Ltda. – Brasília-DF
ideal@idealgrafica.com.br
3.000 exemplares