Estudos de Lit Comparada
Estudos de Lit Comparada
Estudos de Lit Comparada
Literatura Comparada
Chimica Francisco
http://lattes.cnpq.br/7943686245103765
Vitor Cei
http://lattes.cnpq.br/3944677310190316
Estudos de Literatura
Comparada
1ª Edição
Rio de Janeiro
Mares Editores
2017
Copyright © da editora, 2017.
Capa e Editoração
Mares Editores
CDD 801.95
CDU 82
2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário
Apresentação .................................................................................................. 9
- 10 -
Em “Rastros da Poética de Cesário Verde em Alberto Caeiro e
João Cabral, Maria Aparecida Barros de Oliveira Cruz” objetiva
investigar as marcas da poética de Cesário Verde em dois poetas:
Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa,
considerado o seu mestre, e João Cabral de Melo Neto, poeta
contemporâneo brasileiro, autor de obras consagradas como O Cão
sem Plumas e Educação pela pedra, por exemplo. Partindo do
pressuposto de que tanto Alberto Caeiro quanto João Cabral revelam
consciência de leitura em relação a Cesário Verde e outros poetas
modernos, investigam-se os indícios de tradução e traição praticados
por cada um. Tanto Caeiro quanto João Cabral se afastam da poesia de
tom confessional ao mesmo tempo em que optam por uma poética
pautada no mundo das coisas, na objetividade. Desta forma, praticam
a traição e a tradução conforme assinala o crítico João Alexandre
Barbosa (1986).
No capítulo “As possíveis influências de Kant na poética de
Cecília Meireles: um estudo sobre o belo e o sublime”, Alessandra
Zelinda Sousa Bessa estuda os poemas de Cecília Meireles segundo o
juízo de gosto kantiano e pontua onde acontecem afastamentos e
aproximações no entendimento acerca do belo e do sublime. Tais
comparações objetivam criar uma maior análise sobre o entendimento
de mundo da escritora, mostrando um novo olhar acerca dos seus
poemas e traduzir as percepções da filosofia de Immanuel Kant sob a
linguagem artística.
- 11 -
Em “O caminho do herói: o phármakon em Tristão e Isolda”,
Thamires dos Santos M. Fassura apresenta um estudo comparatista
que tem por objetivo discutir o caminho do herói através da estrutura
e dos efeitos do phármakon, conceito estudado por Derrida (1991)
para designar a escritura, que seria uma substância, cujo cerne abriga
dois contrários: remédio e veneno. Tomaremos como objeto de
análise a obra de Joseph Bédier, Tristão e Isolda (2006) e sua
adaptação cinematográfica homônima (2006) dirigida por Kevin
Reynolds. Buscando exemplificar as nuances do phármakon no
caminho do herói, utilizaremos A farmácia de Platão obra de Jacques
Derrida (1991) como suporte teórico principal para nossa análise.
Além de observar os conceitos propostos por Joseph Campbell, em
suas análises dos arquétipos míticos, que nos revela essa assimilação
de opostos como fonte interna, para o nascimento do herói.
No capítulo “Sobre o sublime no popular: a poesia em quadra
de Fernando Pessoa e Mario Quintana”, de Kelio Junior Santana
Borges, o pesquisador promove, a partir da obra de dois importantes
nomes da Literatura em Língua Portuguesa, algumas reflexões sobre a
presença do popular na lírica do século XX. Tem-se como objetivo
analisar de que modo Fernando Pessoa e Mario Quintana resgatam do
passado a trova popular, concedendo a ela um tratamento estilizado
e impondo-lhe novos valores, num processo de atualização em que
sob a máscara da simplicidade do passado, se perceba uma complexa
e intensa manifestação de consciência e de ideologias do momento
- 12 -
em que ambos os poetas vivenciaram em seus respectivos países,
período em que vigoravam as influências de uma poesia moderna
propagadas pelo movimento Modernista.
No capítulo intitulado “Teoria e ficção em Uno, nessuno e
centomila”, Andrea Quilian de Vargas propõe uma análise do diálogo
existente entre o romance Uno, nessuno e centomila e o ensaio crítico
L’Umorismo, a base teórica que mais claramente explica a produção
de Luigi Pirandello, que é o criador de uma vasta produção que
abrange textos ficcionais e ensaios críticos, não sendo raras as
ocasiões em que o autor mescla tipologias textuais distintas em uma
mesma obra.
Em “Eu sou um lobo! Um lobo? Chapeuzinho Vermelho, de
Jacob e Wilhelm Grimm (Irmãos Grimm); e Chapeuzinho Amarelo, de
Chico Buarque: Literatura Infantil, Recontos e Comparatismos”, Sílvio
Takeshi Tamura demonstra como, no imaginário popular, Chapeuzinho
Vermelhou ganhou inúmeras versões, interpretações e traduções pelo
mundo todo.
No artigo intitulado “Sirvo-me de Animais para Instruir os
Homens”. Fábulas: Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato e a Moral da
História, Sílvio Takeshi Tamura aborda a origem das fábulas e seus
maiores representantes ao longo da história. Esopo é considerado o
primeiro fabulista e acredita-se que ele tenha vivido entre os séculos
VII e V a.C. Outros, defendem que ele nem existiu, constituindo-se,
- 13 -
assim, como uma figura popular. Característica marcante em Esopo é
a oralidade, contando fábulas por meio da linguagem oral.
No século XVII, surge outro grande fabulista: Jean de La
Fontaine. Diferença marcante entre a estética literária de Esopo e La
Fontaine é o fato de o primeiro fundamentar-se na perspectiva oral,
estruturado em prosa. O segundo se baseava na grafia e sustentação
em versos. No início do século XX, Monteiro Lobato publica Fábulas,
inspirado em Esopo e La Fontaine. A disparidade entre as estórias de
Lobato e La Fontaine residia no reconto em prosa, acrescida dos
comentários da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo, sobretudo das
satíricas intervenções da boneca Emília.
Sílvio Takeshi Tamura
- 14 -
El Astronauta Paraguayo nas Cidades Invisíveis
Warleson Peres1
Introdução
Este capítulo pretende fazer uma leitura comparada entre duas
obras literárias: As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino e El astronauta
paraguayo, de Douglas Diegues. Pretende-se, através de um diálogo
entre elas, levar o “astronauta paraguayo” a transitar pelas “cidades
invisíveis”, extraindo uma possibilidade de leitura que as aproxime das
propostas, do próprio autor italiano, para um milênio, por ora já
iniciado.
Para nortear esse debate serão trazidos para a arena de
discussão: Néstor Garcia Canclini, através de seu livro: “Culturas
Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade” (2013),
Myriam Ávila com “Douglas Diegues por Myriam Ávila” (2012) e o
mesmo Ítalo Calvino, com a obra “Seis propostas para o próximo
milênio. Lições americanas”, de 1990.
O livro El astronauta paraguayo foi publicado em 2007 e trata-
se de um poema longo, dividido em vinte cantos, todos encabeçados
por títulos-sumários, e traz a ideia de errância, motivo épico por
1
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora sob a
orientação da Profa.Dra. Silvina Liliana Carrizo
- 15 -
excelência, aliada ao cenário latino-americano (ÁVILA, 2012, p. 41-2).
Utilizando o seu portunhol selvagem, Diegues nos leva a uma
experiência pela Triplefrontera – Brasil, Paraguai e Argentina – ao
permitir que se adentre em sua língua poética e no “caráter
descompromissado e lúdico da viagem” (ÁVILA, 2012, p. 43).
O livro As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, configura-se como
um império de imagens, construído através da narração do viajante
veneziano Marco Polo para o imperador dos tártaros Kublai Khan, ao
descrever as cidades que supostamente visitou. As Cidades Invisíveis
são divididas em temas: as cidades e a memória, as cidades e o desejo,
as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as tocas, as
cidades e os olhos, as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as
cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas.
A viagem se dá no imaginário, e através do símbolo “cidade” é
possível estabelecer relações com as formas de existência humanas. O
próprio autor nos revela: “Se meu livro Le cittá invisibili continua sendo
para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez
porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as
minhas reflexões, experiências e conjecturas” (CALVINO, 1990, p.87-
8).
As cidades invisíveis têm nomes de mulheres sedutoras, e “o
homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o
desejo de uma cidade” (CALVINO, 2003, p.12) e o astronauta
paraguayo não pode deixar de passar por essas selvas, por “La belleza
- 16 -
de las Selvas de la Tatú Ró ô de la Vida2 con sus millones de estrellas
que existem y nom existem mais” (Diegues, 2012, p.3).
Assim como Marco Polo chegou ao imperador sem saber uma
palavra, e isso não o impediu de relatar suas viagens, utilizando-se de
gestos e vocábulos soltos, até apreender o idioma local e iniciar as
detalhadas narrativas, o portunhol – hibridação do Português com o
Espanhol – vem chegando e ganhando relevância linguística e literária
nos últimos anos, principalmente pelo fenômeno da globalização e
fragilização das fronteiras territoriais.
O poeta brasileiro-paraguaio Douglas Diegues emergiu na
primeira década deste século, e desde 2002, nos apresenta uma nova
forma de poética e com características múltiplas: o portunhol
selvagem – que difere do portunhol fronteiriço, mas é influenciado por
sua experiência na fronteira Brasil/Paraguai.
O poeta assim define o Portunhol Selvagem:
2
O glossário anexo ao poema explica que tatu ró ô significa Vulva Karnuda
- 17 -
antropófagica liberdade de linguagem aberta ao
mundo y puede incorporar el portunhol, el guarani,
el guarañol, las 16 lenguas (ou mais) de las 16
culturas ancestraes vivas em território
paraguayensis y palabras del árabe, chinês, latim,
alemán, spanglish, francês, koreano etc […]
Resumindo sem concluziones precipitadas: el
portunhol selvagem es free (DIEGUES in TEIXEIRA,
2011, s/p).3
3
Entrevista a Rodrigo Teixeira em que faz referência à entrevista concedida a Álvaro
Costa e Silva em 10/08/2011. Disponível em:
http://www.overmundo.com.br/overblog/triplices-fronteiras-literarias. Acesso em:
24/07/15.
- 18 -
Nessa hibridação de línguas e culturas, Diegues vai construindo
estratégias para transitar pela modernidade. Assim, é possível
reconhecer elementos que vão ao encontro das Seis propostas para o
próximo milênio4 de Ítalo Calvino, e que fazem do poema El astronauta
paraguayo e da obra As cidades invisíveis, terrenos férteis de
características relacionadas à leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e
multiplicidade. Calvino em 1985, já enunciava: “O milênio que está
para findar-se viu o surgimento e a expansão de línguas ocidentais
modernas e as literaturas que exploraram suas possibilidades
expressivas, cognoscitivas e imaginativas” (CALVINO, 1990, p.13).
E como a língua sempre se reinventa e se ressignifica, o
portunhol selvagem é processo contemporâneo para compreensão
dessa hibridação que cria novas identificações; e quando essa língua
poética extravasa a comunicação oral e surge como material para
criação e publicação de obras literárias, ela ganha relevância no campo
literário deste milênio.
Desse modo, neste trabalho, almeja-se discutir a afinidade das
duas obras literárias, e apresentar uma leitura dialogal entre elas,
levando El astronauta paraguayo a percorrer As cidades invisíveis.
4
“Em 6 de junho de 1984, Calvino foi oficialmente convidado a fazer as Charles Eliot
Norton Poetry Lectures: um ciclo de seis conferências que se desenvolvem ao longo
de um ano acadêmico... na Universidade de Harvard”. (Esther Calvino In CALVINO,
1990, p.7 – introdução). Entretanto, o autor faleceu antes de escrever a sexta
conferência e por isso o livro traz as cinco propostas finalizadas.
- 19 -
Leveza
5
“O astronauta paraguaio aparecerá de repente voando em silêncio pelo escuro azul
de infinita beleza da vulva carnuda da vida”. Algumas traduções do portunhol
selvagem apresentadas ao longo desse trabalho serão feitas de forma livre pelo
autor do presente artigo para fins de melhor compreensão.
- 20 -
salvaje y su flor de xocolate endemoniada6.
[...]
Y flanando flotando fálico flamejante por la belleza
de
las selvas de la Tatú Ró ô de la Vida uma iluzión sem
iluziones entre Burakos Negros y Estrellas Kalientes
el astronautita siente um olor a flor de xocolate
endemoniada, um olor a néctar di cachorra, olor a
jambo
girl de los asfaltos selvagens7.
[...]
Soy el astronautita que vuela como un amor
insepulto
guaraní punk hispano paubrasil paraguayo. (p.3-4)
6
O astronauta paraguaio morto de amor como um idiota romântico alemão, mas
segue vivo, segue em movimento, segue enamorado da morena da minissaia
selvagem e sua flor de chocolate endemoniada.
7
E flanando flutuando fálico flamejante pela beleza das selvas da vulva carnuda da
vida uma ilusão sem ilusões em Buracos Negros e Estrelas Quentes o astronautinha
sente um olor a flor de chocolate endemoniada, um olor a néctar de cachorra, olor
a garoa jambo dos asfaltos selvagens.
- 21 -
O cameleiro que vê despontar no horizonte do
planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas
de radar, os sobressaltos das birutas brancas e
vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um
navio; sabe que é uma cidade, mas a imagina como
uma embarcação que pode afastá-lo do deserto,
um veleiro que esteja por zarpar, com o vento que
enche as suas velas ainda não completamente
soltas, ou um navio a vapor com caldeira que vibra
na carena de ferro, e imagina todos os portos, as
mercadorias ultramarinas que os guindastes
descarregam nos cais, as tabernas em que
tripulações de diferentes bandeiras quebram
garrafas na cabeça uma das outras, as janelas
térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que
se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma
da corcunda de um camelo, de uma sela bordada
de franjas refulgentes entre duas corcundas
malhadas que avançam balançando; sabe que é
uma cidade, mas a imagina como um camelo de
cuja albarda pendem odres e alforjes de fruta
cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e
vê-se ao comando de uma longa caravana que o
afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água
doce à sombra cerrada das palmeiras, rumo a
palácios de espessas paredes caiadas, de pátios
azulejados onde as bailarinas dançam descalças e
movem os braços para dentro e para fora do véu
(CALVINO, 2003, p.23-4).
- 22 -
liberdade e a possibilidade de navegar pelos mares através das
embarcações que podem de fato, lhe retirar do deserto.
As imagens do mundo inspiram os poetas e a partir do ângulo
que se olha, elas mudam e ganham inúmeras interpretações. Para
Calvino, a poesia do invisível, do imprevisível, tal como a poesia do
nada, nascem de um poeta que não duvida quanto ao caráter físico do
mundo. E assim, a leveza é criada quando se escreve, com os recursos
linguísticos próprios do poeta, independente da doutrina filosófica
que ele pretenda seguir (CALVINO, 1990, p. 23-4).
Diegues mantém o emprego da leveza ao seu poema:
8
O astronauta paraguaio segue voando contra os idiotas de sempre. Voando com
um Xico Sá inflável de verdade. Voando de luxo ao ritmo de cumbia quente das vilas.
Mas nem Teleshow nem Teleprêmio extra nem Telesorte nem Teletube podem ser
o chocolate da mínima feiticeira.
- 23 -
Inúmeras imagens vão dando fluidez ao poema e o astronauta
continua seu delírio sem o apoio da NASA para voar, mas é
impulsionado pelo amor sincero, e prêmio nenhum tem mais valor que
o sabor do chocolate, metáfora desse objeto de desejo do astronauta:
a mulher amada. Em Douglas Diegues, é possível perceber a hibridação
semântica, associações inusitadas em um ritmo acelerado de
invenções (ÁVILA, 2012, p.46).
Tal estratégia enquanto escritor corrobora da afirmação do
teórico “a leveza está associada à precisão e à determinação”
(CALVINO, 1990, p.30). Calvino ainda, apresenta exemplos de leveza a
partir de três acepções distintas:
- 24 -
selvagem es néctar del delírio de las lenguas mixturadas” (DIEGUES,
2012, p.25-6).
A segunda acepção pode ser exemplificada pelo trecho
introdutório do livro As Cidades Invisíveis, uma vez que Calvino narra
um processo psicológico com uma riqueza de detalhes que nos levam
a abstrair e viajar para dentro do sentimento do imperador.
- 25 -
triunfo sobre os soberanos adversários nos fez
herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos
relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia
discernir, através das muralhas e das torres
destinadas a desmoronar, a filigrana de um
desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos
cupins (CALVINO, 2003, p. 9-10).
- 26 -
– Não tem nome nem lugar. Repito a razão pela
qual quis descrevê-la: das inúmeras cidades
imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os
elementos se juntam sem um fio condutor, sem um
código interno, uma perspectiva, um discurso. É
uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser
imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais
inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que
esconde um desejo, ou então o seu oposto, um
medo. As cidades, como os sonhos, são construídas
por desejos e medos, ainda que o fio condutor de
seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam
absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que
todas as coisas escondam uma outra coisa
(CALVINO, 2003, p. 46).
- 27 -
Rapidez
- 28 -
grandes ciudades.
(DIEGUES, 2012, p. 7).
- 29 -
vulgar, es bizarro, es / hermoso, es imprevisible, es vitaminado, es vita
nueba” (DIEGUES, 2012, p.25). Na obra de Calvino também
encontramos essa necessidade de um crescimento interior:
- 30 -
Exatidão
- 31 -
mas em uma, duas e às vezes apenas três páginas. O autor revela
acerca dessa obra:
- 32 -
cimento, desmontam o ministério, o monumento,
as docas, a refinaria de petróleo, o hospital,
carregam os guinchos para seguir de praça em
praça o itinerário de todos os anos. Permanece a
meia Sofrônia dos tiros ao alvo e dos carrosséis,
com o grito suspenso do trenzinho da montanha-
russa de ponta-cabeça, e começa-se a contar
quantos meses, quantos dias se deverão esperar
até que a caravana retorne e a vida inteira
recomece (CALVINO, 2003, p. 63).
- 33 -
kachaka. El portunhol selvagem es remédio
refreskante.
El portunhol selvagem es Água Mineral Kaákupe.
Me
encanta Maria San Bomba hermosamente
despeinada.
El portunhol selvagem non es moderno nim
atrasado.
El portunhol selvagem enkurupiza hasta las
catchorras
funkeras. El portunhol selvagem non tem nada a
ver
com el ambiente folclórico. El portunhol selvagem
non
es Nokia ou Motorola. El portunhol selvagem
rompe el
hielo de russas brasileiras kurepas madrileñas y
siberianas.
El portunhol selvagem non es el kapo que te quiere
declarar loko. El portunhol selvagem es free y es
pago y
es vendido y non se vende. El portunhol selvagem
es mucho
mais y mucho menos que todo ló que necessitás
saber. El
portunhol selvagem no le jode al rollete en la
Terminale.
El portunhol selvagem es néctar del delírio de las
lenguas
Mixturadas. El portunhol selvagem vai bem com
xixi de
virgen el drink mais caliente del verano recifensis.
(DIEGUES, 2012, p.25-6).
- 34 -
composições populares” (ÁVILA, 2012, p. 24-5). Essa identificação com
a massa que transita pela fronteira e se reconhece nessa linguagem
híbrida que não representa um Estado-Nação específico, mas uma
nação de pessoas com características afins. Canclini (2013) aborda a
questão da hibridação na formação identitária:
- 35 -
estendidos sobre os canteiros, debruçava-se nos
balaústres dos terraços para abranger com os olhos
deslumbrados a extensão dos jardins do palácio
real iluminados por lanternas penduradas nos
cedros.
— Todavia — dizia —, sei que o meu império é feito
com a matéria dos cristais, e agrega as suas
moléculas seguindo um desenho perfeito. Em meio
à ebulição dos elementos, toma corpo um
diamante esplêndido e duríssimo, uma imensa
montanha lapidada e transparente. Por que as suas
impressões de viagem se detêm em aparências
ilusórias e não colhem esse processo irredutível?
Por que perder tempo com melancolias não
essenciais? Por que esconder do imperador a
grandeza de seu destino?
E Marco:
— Ao passo que mediante o seu gesto as cidades
erguem muralhas perfeitas, eu recolho as cinzas
das outras cidades possíveis que desaparecem para
ceder-lhe o lugar e que agora não poderão ser nem
reconstruídas nem recordadas. Somente
conhecendo o resíduo da infelicidade que
nenhuma pedra preciosa conseguirá ressarcir é que
se pode computar o número exato de quilates que
o diamante final deve conter, para não exceder o
cálculo do projeto inicial (CALVINO, 2003, p. 59).
Visibilidade
- 36 -
processos imaginativos para dar forma e visibilidade as suas imagens
através da expressão verbal. Ao final do século passado, o teórico
aponta uma questão: como se forma o imaginário de uma época em
que a literatura, já não mais se refere a uma autoridade ou tradição
que seria sua origem ou seu fim, mas visa antes à novidade, à
originalidade e à invenção? Ele revela ainda que esse processo
imaginativo liga-se a emissores terrestres como o inconsciente
individual ou coletivo. (CALVINO, 1990, p.104).
“De onde provem as imagens que “chovem” na fantasia?”
(CALVINO, 1990, p.104).
No caso do Portunhol Selvagem, o próprio autor afirma que a
origem de sua língua poética, inicia-se na infância, nas relações
familiares e se reforça nas relações sociais.
- 37 -
¡Que hermosa era la yiyi del mulatismo
afroguarango
nhembo caduveo fantasiando el Astronauta
Paraguayo
embambinandola com suo fálico flamejante
portunhol
roubado de las calles sujas de lasa descnocidas
fronteras
selvagens! (DIEGUES, 2012, p.6).
- 38 -
vai de acordo com as normas. Uma vez que as
cidades que existem se afastam da norma em
diferentes graus, basta prever as exceções à regra
e calcular as combinações mais prováveis.
— Eu também imaginei um modelo de cidade do
qual extraio todas as outras — respondeu Marco.
— É uma cidade feita só de exceções,
impedimentos, contradições, incongruências,
contrassensos. Se uma cidade assim é o que há de
mais improvável, diminuindo o número dos
elementos anormais aumenta a probabilidade de
que a cidade realmente exista. Portanto, basta
subtrair as exceções ao meu modelo e em qualquer
direção que eu vá sempre me encontrarei diante de
uma cidade que, apesar de sempre por causa das
exceções, existe. Mas não posso conduzir a minha
operação além de um certo limite: obteria cidades
verossímeis demais para serem verdadeiras
(CALVINO, 1990, p.69).
- 39 -
Multiplicidade
- 40 -
romance e não fica sem solução, já que consegue atingir seus
objetivos: apresentar suas reflexões e conjecturas a partir do
detalhamento de imagens deste símbolo que são as cidades.
Na obra As cidades invisíveis as imagens multiplicam-se aos
olhos do leitor que é levado a enxergar para além do visível, e inclusive
perceber, a partir das desconstruções das cidades, o que as ruínas
revelam – e elas têm muito a dizer. Tudo no livro de Calvino leva a
expansão de conhecimento acerca de si e do mundo, e as mínimas
coisas ganham significação.
É possível perceber a importância de se multiplicar detalhes,
buscando o contínuo inacabamento, de modo que as obras não se
encerrem em si mesmas, mas estejam abertas “a relações infinitas,
passadas e futuras, reais ou possíveis”. O teórico ainda explica: “Isso
ocorre mediante exploração do potencial semântico das palavras, de
toda a variedade de formas verbais e sintáticas, com suas conotações
e coloridos e efeitos o mais das vezes cômicos que seu relacionamento
comporta” (CALVINO, 1990, p.125).
As reflexões sobre a obra de Gadda despertam pontos para
pensar a multiplicidade nas obras em estudo. N’As cidades invisíveis,
Marco Polo descreve com riqueza de detalhes um cenário a partir do
tabuleiro de xadrez do grande Khan. Importante destacar que a partir
das descrições das cidades invisíveis é possível criar inúmeras relações.
- 41 -
se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma
camada do tronco que cresceu num ano de
estiagem. Observe como são dispostas as fibras.
Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto
tentou despontar num dia de primavera precoce,
mas a geada noturna obrigou-o a desistir. — Até
então o Grande Khan não se dera conta de que o
estrangeiro sabia se exprimir fluentemente em sua
língua, mas não foi isso que o surpreendeu. — Eis
um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de
uma larva; não de um caruncho, pois este, logo
depois de nascer, teria continuado a escavar, mas
de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela
qual a árvore foi escolhida para ser abatida… Esta
margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a
fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente…
A quantidade de coisas que se podia tirar de um
pedacinho de madeira lisa e vazia abismava
Kublai; Polo já começava a falar de bosques de
ébano, de balsas de troncos que desciam os rios,
dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas…
(CALVINO, 2003, p. 127-8). (grifo meu)
- 42 -
respire todavia delire todavia hable todavia suenhe
todavia
brille ternura en sus ojos todavía baile cumbia
todavía siga
flotando flanando fálico flamejante rupestre feo
original
belo verdadero indomable erotico selvagem turko
chino
alemán paraguayo brasileiro guarani.
(DIEGUES, 2012, p.10)
Considerações finais
O presente capítulo pretendeu promover um diálogo entre
duas obras literárias que ocupam lugares distintos no cenário
contemporâneo. Enquanto Calvino já é um cânone da literatura,
Diegues emerge da fronteira, longe dos grandes centros culturais, com
uma obra construída em uma língua poética inovadora, e que guarda
relações próximas com o portunhol, linguagem por muito tempo
estigmatizada, por não representar a oficialidade dos Estados-Nações.
As cidades invisíveis guardam muito das realidades humanas e
situações que seduzem os homens a conhecê-las. Desse modo, o
astronauta paraguayo poderia visitá-las e trazer a sua percepção
captada de cima, uma vez que flutua pelos céus ou voa na imaginação.
- 43 -
As discussões suscitadas e leituras comparadas permitem
concluir que as propostas feitas por Calvino para esse milênio, que já
se vivencia, foram encontradas em sua própria obra literária, bem
como na obra de Douglas Diegues.
As viagens de Marco Polo e do astronauta paraguayo
relacionam identificações reais e imaginárias, e promovem essa busca
incessante por conquistas, seja por descobertas de novas cidades que
poderemos habitar ou que já nos habitam.
- 44 -
Referências
- 45 -
http://www.overmundo.com.br/overblog/triplices-fronteiras-
literarias Acesso em 24 jul 2015.
- 46 -
Entre metamorfose presentes em Inocência de
Visconde de Taunay e Os Semelhantes de Ricardo
Guilherme Dicke
Introdução
A literatura é uma área do conhecimento, que nos possibilita a
conhecer sonhos, problemas e carências de uma sociedade através da
ficção, para Abdala Jr. A literatura é vista como um processo do
conhecimento. A crítica necessária, substantiva, capaz de contribuir
para dinamização do campo intelectual (2007, p.81). Possui língua
viva, pois os escritores discorrem sobre a sociedade da qual faz parte
ou não, muitas vezes sobre povos que não têm condições de
manifestar seus sonhos, desejos, problemas e (des) aventuras. Através
da ficção apresentam as classes sociais que vivem as margens da
sociedade conservadora. Vimos em Antônio Candido que (2000, p.
186);
- 47 -
sentimentos, representados ficcionalmente
conforme um princípio de organização adequado a
situação literária dada [...]
- 48 -
moderna, os ciganos, os índios. Diante disso Abdala Jr. (2007, p.68)
coloca que na vida cultural, discursos e práticas tendem à
administração da diferença – uma maneira de se exercer e justificar a
ordem hegemônica.
Podemos dizer que é através da literatura, que se encontra e
combinam a originalidade de cada ser, o espírito coletivo com todos
seus questionamentos e estilos de diferentes épocas. Assim entramos
em uma perspectiva comparatista, cuja função se enquadra à
Literatura Comparada, essa que tem por objetivo o estudo das
diferentes literaturas, estabelecendo relações entre obras, questões
sociais, políticas, históricas e problemas literários. BRUNEL (1995, ps.
141-142) traz as seguintes definições;
- 49 -
Quando falamos em literatura, mais precisamente do Mato
Grosso, Hilda Magalhães (2001), que discorre que a produção iniciou
no Século XX, a princípio a literatura local era conservadora uma
mistura de história e arte, devido ao isolamento, distância territorial,
a falta de comunicação e de transporte. No séc. XIX Visconde de
Taunay escreveu uma narrativa que teve como lócus enunciativo o
Estado, mas de acordo com a ensaísta Olga Maria Castrillon-Mendes,
ele representou uma nação “modelo”, devido sua aproximação com o
Imperador. Nesta narrativa Taunay realizou um trabalho
revolucionário na literatura, pois ultrapassava o simples sentido
estético para o período literário do momento. (MENDES, 2008, p.45);
In: Silva, Agnaldo Rodrigues (org) 2008.
- 50 -
posicionamento dos poetas mato-grossense e passaram fazer arte
com temas universais. Após a integração do Estado as demais regiões
e com destaque econômico, a literatura manifesta um olhar social para
esse panorama. Dando destaque aos conceitos filosóficos e situações-
limites do “esvaziamento do ser no mundo” sendo R.G. Dicke um autor
que deu ênfase a esse aspecto. Conforme (MACHADO, 2014, p. 85), “A
literatura feita em Mato Grosso, especificamente a obra ficcional do
prosador Ricardo Guilherme Dicke, tem entre seus atrativos uma visão
da terra que corrobora para entender o homem do tempo presente”.
Com relação à Dicke MACHADO ( 2014, p. 17) aborda que :
- 51 -
grossense, como se retratasse um retrato de paisagem perfeita, com
olhar detalhista de pintor que era. O enredo gira em torno dos
relacionamentos amorosos, a princípio era o casamento arranjado
pelo pai, depois o amor proibido, pois a moça era prometida ao
capataz.
Em Inocência quem faz o papel de viajante é Cirino o
protagonista da obra, este apresentava contraste de costumes, em
relação ao povo do sertão, pois era moço da cidade, entendedor dos
fármacos e fora autopromovido a médico. O Senhor Pereira, é um
pequeno produtor da região e pai de Inocência, moça de saúde frágil.
Fato que possibilita o encontro entre Inocência e Cirino, pois estava
acamada necessitando de cuidados medicinais, assim o Senhor Pereira
leva o médico aos aposentos da filha, antes lhe faz várias advertências,
a Cirino e pediu que mante-se distância da moça, porque já era
prometida a um capataz Manecão Doca. Porém durante as inúmeras
consultas médicas o casal apaixona-se.
Naqueles tempos havia muitos estudiosos que dedicavam à
natureza, para conhecê-la viviam viajando, o narrador nos apresenta
o Alemão Meyer, que pesquisava sobre borboletas, dentre as quais
seus estudos a Borboleta Azul tinha atenção especial.
Cirino fora convidado a hospedar na casa do senhor Pereira
para cuidar de Inocência e o Senhor Meyer também hospedou na casa,
eles são os personagens representantes da cultura moderna. Com
decorrer do tempo surgiram intrigas entre os moços hospedados com
- 52 -
os moradores da casa, pois os hospedados possuíam costumes
inovadores, pensamentos de liberdade. Já os moradores da casa
viviam em um ambiente estático, carregado de costumes tradicionais
do campo. Desconfiado de que algo errado estava acontecendo o pai
de Inocência decidiu apressar o casamento.
Desta forma ele e Manecão descobrem o romance de Cirino e
Inocência, pois ela renúncia de Inocência ao casamento arranjado,
cada um teve uma reação deferente, o pai desorientado agrediu a
filha, o noivo sente-se traído e cobra sua honra matando Cirino. De
acordo com o narrador depois de algum tempo Inocência também
morre. Assim encerra a narrativa em meio à tragédia do amor
proibido.
Essa obra foi publicada em 1872, período de colonização do
país, embora o autor tenha nascido no Rio de Janeiro, teve contato
com o sertão mato-grossense a partir das experiências que teve em
suas viagens de expedição por participar da guerra do Paraguai, o que
permite a descrição com alteridade e verossimilhança desse lócus
enunciativo, para MENDES (2008; p. 240) esse,
- 53 -
Taunay enquadrou a história de Inocência em
cenário e conjunto de costumes sertanejos onde
tudo é verossímil.
- 54 -
entre o meio rural e urbano, através, de Inocência e sua família
representantes do meio rural tradicional e o meio urbano é
representado pelos viajantes: Cirino, Meyer e seu ajudante.
O autor representa a linguagem do sertanejo do interior de
Mato Grosso, sendo caracterizado como romance regionalista, por
relatar detalhes dos costumes, crenças e vocábulos dos sertanejos, da
região, uma obra do romantismo em declínio, as vésperas do realismo.
Uma narrativa de fácil compreensão, escrita em parágrafos curtos e
linguagem de fácil entendimento, apresenta narrador em terceira
pessoa e onisciente, que tudo sabe, sem intervenção. Descreve a vida
mato-grossense, valorizando a cultura local, através da escrita elucida
a oralidade do povo sertanejo. Também relata a vida, experiências,
tragédias e sonhos de um povo, que pode ser comum a outros povos,
indo além das fronteiras, seja, da região ou do pais.
Inocência a protagonista que recebe o nome da obra, é uma
moça definida pelo narrador com “beleza deslumbrante” e tímida, que
diferente de seu irmão ela manteve sempre perto de seu pai, fora
criada sem mãe e submissa aos mandos do pai, recebeu educação para
ser uma boa dona de casa, aprendendo os afazeres domésticos, sendo
negado acesso a educação formal. Como personificação da borboleta
azul, também era linda, a borboleta azul representa transformação
que os seres humanos passam ao longo da vida física e social, na
psicanálise moderna é símbolo de renovação, ou seja, Inocência
- 55 -
perpassa por essas mudanças, mas não consegue sair do casulo que é
a casa dos pais, morrendo sufocada.
O pai de Inocência, Senhor Pereira era um pequeno
proprietário de terra, representante típico do meio rural com uma
personificação do homem rústico e tradicional, com valores típicos de
sua época e região. Ele trazia sua vida rural planejada dentro de seus
costumes e tudo caminhava em conformidade, até a chegada de
Cirino, em vez de levar a cura da filha, trouxe foi desordem.
O Alemão Meyer é o segundo a desestruturar a estabilidade
daquela família, que surge na narrativa junto com seu criado Juca, com
uma carta de recomendação do irmão mais velho de Pereira o Sr.
Chiquinho. Meyer com sua ingenuidade inicia o desiquilíbrio ao elogiar
Inocência, atraindo a ira e desconfiança do Senhor Pereira, fazendo
com que não desconfiasse do romance de sua filha com Cirino.
Com relação à outra narrativa, Os Semelhantes de Ricardo
Guilherme Dick, também toma como cenário o Mato Grosso, nas
proximidades da Capital Cuiabá, em uma região de garimpo, nesta
obra a mulher é apresentada com um diferencial, com relação à obra
de Inocência, pois traz a presença da mulher no mundo hostil do
garimpo, mulheres fortes, desbravadoras. Sendo característica do
autor essa, busca empreendida pelas personagens : mulheres fortes,
destemidas, com objetivos claros que, em meio a rota existencial,
param ouvirem a melodia da vida. (MACHADO, 2014, p.36).
- 56 -
A novela é apresentada em duas partes a primeira inicia com
Abadia assassinando seu companheiro e sócio de garimpagem, o
assassinado era o turco Salomão que encontrara um belo diamante do
tamanho de um caroço de café. Entre eles havia um acordo, que era a
divisão do que encontrassem, mas depois que Salomão encontrou a
pedra queria abandonar tudo e ir embora, iniciando os
desentendimentos, entre as discussões e xingos, veio o assassinato,
Abadia da um tiro em seu sócio e joga-o no rio tomando-o a pedra.
O protagonista recorra ao ditado popular que, “ladrão que
rouba ladrão tem cem anos de perdão”, como justificativo para seu
crime, mas mesmo assim, passou a viver atormentado por sua
consciência, representada pela Mãe lua, que soava sons todas as
noites “quem foi, foi, foi” e às vezes via o rosto redondo de Salomão.
As mulheres da região tinham o abito de lavar roupas no rio,
quando Ramonita e sua avó foram ao rio Aguaçú, lá encontraram a
caveira de Salomão, então conversam sobre várias lendas da região
deixando a moça impressionada com as histórias da avó.
Ali próximo ao garimpo havia a casa de Maria Ramona, onde
morava Umbelina, amada de abadia, ele dizia que ela exalava cheiro
de açúcar, antes da posse da pedra não tinha esperança de casar por
achar que sua amada era de elite, mas após tomar o diamante foi das
primeiras coisas que planejou. Então leva a pedra para vender.
Na estrada da guia encontra junto negro cego da carona para
Ramonita, que fugia por ser culpada aparentemente injustamente,
- 57 -
pela morte de uma criança recém nascida que encontrara nas margens
do rio. Após um acidente e a morte do burro que puxava a carroça,
resolvem parar para descanso. Foi quando Abadia admira o diamante
e Ramonita o vê, quando o preto adormece ela rouba a pedra e foge
sem deixar rastro. Ao acordar ele não encontra a pedra, desconfia do
velho cego e mata-o, deixando ao relento para os urubus junto do
cadáver do burro, próximo ao rio vermelho.
Ramonita se arrepende e volta para devolver a pedra, mas
encontra apenas a cena do crime e o mau cheiro, indignada decide a
não devolver mais. Um pouco adiante encontra Roseno, conta tudo o
que acontecera e mostra pedra, fala dos planos para juntos
construírem uma vida, usufruído do que o diamante lhes
proporcionaria. Mas Roseno a recrimina pela atitude de roubar e fala
para ela escolher entre ele e a pedra. Entusiasmada pela pedra ela
escolhe a pedra em meio às lágrimas seguindo sozinha para seu
destino.
A segunda parte da novela transcorre vinte anos. Abadia fica
no distrito da Guia mendigando, atormentado pelos crimes que
cometera e a perda do diamante. Ramonita assume uma posição de
protagonista, com o dinheiro torna proprietária de vários imóveis em
Cuiabá e de um prostibulo. O destino une Umbelina a mãe da criança
morta e Ramonita, as quais se tornam amigas. A patroa considerava a
amiga como uma irmã, que se tornaram companheira e sempre
presente. Em virtude disso, fez um testamento passando todos os seus
- 58 -
bens para Umbelina, esta ao tomar conhecimento do testamento à
ambição toma conta de seu coração.
Ao receber a visita de Roseno, Ramonita fica muito depressiva
e resolve tirar sua vida, toma uma dose de bebida com formicida.
Umbelina ambicionando a riqueza que iria herdar deixa-a agonizando
sem socorre até morrer. No dia do velório de Ramonita bebe muito e
se veste de noiva, neste momento Abadia chega, e encontra quem lhe
tinha causado tanto sofrimento em um caixão. Abadia aproxima do
cadáver e despede com um beijo cheio de ódio e vingança. Depois
conversa com sua amada que sempre o esperou de braços abertos,
voltam e anunciam que ele era dono de tudo. Assim a narrativa
encerra com Abadia rico, porém bêbado e atormentado pela sua
consciência que o acusava dos assassinatos.
Os personagens masculinos, como o protagonista Abadia é um
personagem atípico com relação à beleza de heróis Românticos, sofre
com a miséria e feridas do corpo e da alma, entrega alcoolismo, fica
mendigar, descorçoado após perder a pedra. Salomão era imigrante
turco e racista, o que causou ódio em Abadia, por romper com a
sociedade, pois o imigrante deseja retornar para sua terra, após ter
encontrado a pedra de diamante. Roseno mineiro é um personagem,
que o autor traz com boa índole não cedeu ao dinheiro, porém vivia
angustiado, pois seu irmão gêmeo sumiu misteriosamente, seu pai
dedicou à vida a procura-lo, esquecendo de Roseno.
- 59 -
Já com relação aos personagens femininos, temos como
antagonista Ramonita a princípio era uma personagem com boa
índole, de acordo com os conceitos sociais conservador, tinha laços
familiares, perdera os pais, mas morava com a avó. Umbelina era moça
do prostibulo que sonhava em casar com seu noivo Abadia. Parecia
boa, mas quando teve a oportunidade de adquirir a riqueza da amiga,
a inveja foi mais forte e a deixou morrer sem socorro.
A novela Os Semelhantes foi escrita por volta de 1970 em um
período de Ditadura militar. Em meio a muitas mudanças histórico-
político-social, como a literatura brasileira contemporânea em geral é
focada na vida humana, retratam a vida social e seus dilemas como: a
solidão, a violência, as questões políticas, os crimes impunes. Ricardo
Guilherme Dicke como filósofo dá destaque ao lado sombrio das
personalidades dos personagens.
O autor conduz ao questionamento da condição e existência
humana. Característica marcante do pós-modernismo, a prosa urbana
contemporânea, refletindo os problemas gerados pelo progresso, pelo
capitalismo selvagem: a solidão, a marginalização, a violência, a luta
sem pudor pelo desejo e ao conquistar, perdendo a razão de ser,
desencadeando no vazio da alma e ao mal do século que é a
depressão.
Segundo Birman essa frustação da sociedade moderna, trata
da turbulência de sujeito e seus desejos, a busca pele compreensão do
individualismo humano formulado pela teorização freudiana:
- 60 -
[...] a problemática da civilização se transformou
em questão crucial para a filosofia e das ciências
humanas. Assim, é sempre a questão da
modernidade que está em pauta para o discurso
freudiano quando este toma a civilização como
objeto de pesquisa e reflexão. (BIRMAN, 2009,
p.140).
- 61 -
discriminados como garimpeiros clandestinos e as prostitutas,
apresentando os sonhos de cada um.
Entre as duas obras escolhidas, temos quase cem anos de
diferença, Inocência escrita em 1872 e Os Semelhantes escrita por
volta de 1970, embora seja na mesma região, mostra meios sociais e
culturais diferentes. A primeira narra à vida pacata do campo, com
uma cultura aprisionada as tradições e felizes. Mas para sair da
monotonia ocorre o conflito de culturas, submergindo uma a outra, ao
encontrarem as duas culturas, representadas por Inocência e Cirino,
ambos morrem. Já a segunda da traz a vida hostil do garimpo do
sertão, composto por um povo sofrido, desprendido do romantismo,
que luta primeiramente pela sobrevivência. Na primeira a natureza é
bela, já a segunda o ambiente é agressivo, sempre lembrando a
solidão, o medo, aflição.
Na obra Inocência Visconde de Taunay mostra os imigrantes
presentes na região que vieram em busca de novidades como o
alemão Meyer, ou em busca de terra como o pai de Inocência, para
plantar e construir uma família modelo, diferente de Os semelhantes,
pois os imigrantes vinham em busca de riqueza, na maioria das vezes
sem famílias, como no caso do turco Salomão, que após encontrar a
pedra de diamante, queria retornar para sua cidade, ou construir uma
vida próspera em outro lugar como Ramonita queria.
Tanto a protagonista Inocência como a Ramonita,
desencadeiam angústias na alma, em virtude de circunstâncias
- 62 -
diferentes as angústias e solidão conduzem-nas a morte, a primeira
jovem obediente exemplo de moça para época, vivia com o pai e tinha
um padrinho o qual respeitava e esperava por proteção. A segunda
Ramonita perdera os pais no início da narrativa morava com a avó.
Despois da morte da criança sente obrigada a fugir, desligando dos
laços familiares, rouba o diamante e vai embora sozinha, deixando o
amor para trás, mudando totalmente o rumo de sua vida, passou a
viver rica e infeliz.
Com relação à personalidade da mulher, vemos características
bem diferentes, pois em Inocência era filha de fazendeiro, não
conhecia problemas financeiros, era tratada pelo pai como
“coitadinha”, de saúde frágil e sem voz ativa e submissa. Em toda obra
encontramos poucas mulheres, além da protagonista e Maria Conga
era uma escrava que cuidava dos afazeres domésticos. Já em Os
Semelhantes são várias mulheres que buscam pela sobrevivência, se
preciso abrem mão de tudo inclusive do amor, para ir à busca de vida
melhor, um enredo realista, que mostra que diante do instinto de
sobrevivência o ser humano pode apresentar ações ligadas à usura, à
inveja, ao ódio, à avareza, mas essas ações podem conduzir a morte
da alma ou do corpo,
- 63 -
rico. Nem amor, amizade, afeto são levados em
consideração quando agir para garantir a posse do
diamante está em jogo. Mulheres e homens
narrativos compõem um quadro, um espelho que
os fazem iguais aos homens reais por meio da
penúria de se descobrirem sem importância no
mundo das coisas. (MACHADO, 2014, p.36).
[...] uma menina como ela não sabe o que lhe fica
bem ou mal... Ninguém a vai é consultar. Mulheres
o que querem é casar [...] mulher é para viver muito
quietinha perto do tear, tratar dos filhos e cria-los
no temos de Deus; não é nem para parolar-se com
ela, nem a respeito dela. [...] Minha afilhada
continuou Cesário, deve levantar as mãos para os
céus. Achou um marido que a há de fazer feliz e
torna-la mãe de uma boa dúzia de filhos.
(TAUNAY,1998, p. 131)
- 64 -
As mulheres não tinham voz, eram criadas para casar e cuidar
dos afazeres domésticos e do marido. A presença de Cirino na vida de
Inocência mudou sua característica de inocente, ela se comportou
como uma borboleta que queria sair do casulo, enfrentando a decisão
do pai e não aceitou casar, apresentando iniciativas de revolução
femininas, desejo de mudar o que estava posto para ela, porém não
saiu de perto do pai, ela não sabia voar. Inocência queria que seu pai
aceitasse o romance dela com Cirino, não abandonando o mundo que
vivia, queria unir o mundo de Cirino com o seu, o urbano moderno com
o rural tradicional. Então ambos morrem.
Já em Os Semelhantes à mulher comanda seu destino,
Ramonita vivia presa em si e no só em seu quarto, até que em uma
noite vai ao rio Aguaçu, encontra uma criança recém-nascida na beira
do rio, ao pegar em seus braços resolve leva-la para casa então o bebe
morre. Ela passa a noite com a criança morta e assustada, pois tinha
medo de mortos. No outro dia quando resolve deixar à criança onde
encontrou, mas lá estava a mãe da criança com alguns ciganos que a
culpam pela morte, deixando um feroz cachorro a atacar.
Em meio às acusações e feridas causadas pelo cão, Ramonita
chega a ficar em dúvida se ela teria ou não assassinado mesmo a
criança. Foge da perseguição e da acusação, encontrado com Abadia
na estrada pegando carona. Encanta-se com o diamante na primeira
oportunidade que teve apossou do diamante e fugiu da presença do
“preto” no escuro da noite. Com relação a morte da criança, pode
- 65 -
estar representando a morte da inocência presente na personalidade
de Ramonita. E quando depara com o diamante, instaura o mal,
refletido na inveja e usura da protagonista aflora, rouba a pedra e vai
embora, ela sabia que o assassino mataria o velho cego, porém pensou
apenas em proteger-se fugiu imediatamente. E na estrada escura, ela
passava a travessia da vida, rompendo com laços de sentimentalismo
e familiares.
Diferente de Inocência, Ramonita não ficou esperando o
desenlace do destino, que poderia ser de perseguição ou de morte,
pela acusação de ter matado a criança, ela fugiu. Diferente de
Inocência, Ramonita pode ficar com seu amor, pois ele lhe deu a opção
para escolher entre ele e a pedra, e ela prefere o diamante e vai
embora sozinha, constrói sua riqueza e vive assim por vinte anos. Em
seu aniversário de quarenta anos, ao receber a visita de um homem
moreno, que tudo indica ser de Roseno, começa a nostalgia e angústia,
a ponto de não querer mais viver, toma uma bebida misturada com
veneno formicida.
Na obra Inocência, vemos que mulher e homem são diferentes,
a mulher apenas obedece, não tem voz ativa nem para decidir a
própria vida, o autor traz como sexo frágil. Em Os Semelhantes
verificamos outro cenário, de uma sociedade em que homens e
mulheres assemelham-se, com relação às personalidades colocadas
em cheque diante frente à riqueza, uma sociedade contaminada com
um pensamento individualista, imediatista que não pensa o futuro e
- 66 -
consequências das ações, reflexo do caos dos anos loucos, na
subjetividade.
Tanto Inocência como Ramonita morrem no final das
narrativas, porém a primeira não pode escolher seu destino, na solidão
e tristeza pela falta do amado ela morre. A segunda também morre
sem seu amado, mas por sua escolha, essa escolhe o dinheiro que não
supre a necessidade da alma deixando um enorme vazio e dor, desiste
de viver e suicida.
Considerações Finais
Após a realização desse trabalho percebemos que, embora as
narrativas sejam do mesmo Estado, são de meios sociais e culturais
diferentes, pois Visconde de Taunay traz a cultura do meio social do
campo, e R.G.Dicke trabalha com o meio do garimpo. Apresentam a
mesma paisagem, a mesma região. Na primeira o autor destaca a
beleza e a fragilidade da mulher, a protagonista era filha de fazendeiro,
não precisava lutar para sobrevivência, na segunda Dicke traz a
semelhança entre homem e mulher, um mundo hostil onde todos
lutam para sobrevir, e que diante das adversidades e prova da vida, se
embrutecem para defender seus próprios interesses, acabam
matando ou omitindo socorro como Ramonita e Umbelina, com
sentimento narcisista, pensam apenas no dinheiro e deixa que o outro
morra. Temos em Inocência uma mulher romântica que desejava viver
com seu amor, como a morte de seu amado Cirino, morre. Já em Os
- 67 -
Semelhantes temos Ramonita que também amava Roseno, mas
direciona seus objetivos a aquisição de dinheiro, perde o sentido da
vida preencher a vida com coisas materiais e não com sentimentos.
Enfim mesmo que com personalidades e tempos bem
diferentes, são obras que transcendem, pois ainda hoje temos
mulheres românticas e submissas como Inocência, em variados locais
do mundo, como também temos, mulheres como Ramonita que
decidem viver em função própria. Assim podemos encontrar várias
Inocências ou Ramonitas em diversos lugares do mundo, com
indecisões, angústias, inibidas ou destemidas, sonhadoras rompendo
as fronteiras do tempo e do espaço.
- 68 -
Referências
- 69 -
O gênero textual “Contos de Terror”: uma proposta de
análise de contos de autores iniciantes publicados em
blogs10
Considerações iniciais
Marcuschi (2008, p.154) afirma que “é impossível não se
comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível
não se comunicar verbalmente por algum texto”. Dessa forma, a
comunicação verbal só é possível através de algum gênero. Estamos
expostos a uma grande variedade de gêneros textuais que nos
permitem o trato sociointerativo da produção linguística.
Para o autor, quando dominamos um gênero textual, não
dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar
linguisticamente objetivos específicos em situações sociais
10
Artigo apresentado à disciplina “Teorias dos gêneros discursivos” do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), sob a
supervisão da professora doutora Francieli Matzembacher Pinton no 2º semestre de
2016 como trabalho final da disciplina.
11
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de concentração em
Estudos Linguísticos, linha de pesquisa Linguagem e Interação, pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS).
- 70 -
particulares. Os gêneros são um mecanismo de socialização, uma
inserção prática nas atividades comunicativas humanas.
Marcuschi (2008) ressalta que cada gênero sempre é
identificado na relação com seu suporte. O suporte diz respeito ao
modo de manifestação material dos discursos, bem como ao seu modo
de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela do
computador, etc. Para Travaglia (2007), o suporte é um critério ou
parâmetro que pode contribuir para a caracterização das categorias de
texto, sobretudo dos gêneros.
Dessa forma, se tomarmos a categoria de texto12 “conto”,
observaremos que é possível encontrar esse gênero tanto em suportes
convencionais13 (livros, livros didáticos, etc.) como em outros meios
que prestam serviços em função da atividade humana, como a
internet. A internet, conforme Marcuschi (2008),é um suporte que
alberga e conduz gêneros dos mais diversos formatos. Ela contém
todos os gêneros possíveis.
Tendo em vista o exposto acima, o objetivo deste capítulo é
fazer um levantamento dos elementos presentes na constituição do
gênero textual “contos de terror” em contos veiculados no suporte
blog, da internet, escritos por autores iniciantes e verificar, de acordo
12
Ao referir-se ao “gênero”, Travaglia (2007) utiliza o termo “Categoria de texto”; já
“Marcuschi” adota o termo “gênero discursivo”. Nesse artigo, o enfoque está nos
conceitos de Travaglia, porém, também será mantida a terminologia empregada por
Marcuschi ao citar sua teoria.
13
Categoria descrita por Marcuschi (2008, p. 178) como “típicos ou característicos,
produzidos para essa finalidade”.
- 71 -
com Travaglia (2007), a estrutura composicional em termos de: a)
conteúdo temático; b) estrutura composicional; c) objetivos e funções
sociocomunicativas; d) características da superfície linguística; e)
condições de produção. Para tanto, além da base de análise centrar-
se nos conceitos de Travaglia (2007), também nos apoiaremos em
reflexões feitas por Marcuschi (2008) acerca da questão dos gêneros e
suportes, Köche (2012) no que se refere às características do gênero
textual “conto” e Todorov (1975-1980) quanto ao “fantástico”. O
objetivo é verificar se esses critérios são recorrentes em todos os
contos e se é possível “padronizar” esse gênero nesse suporte.
Fundamentação teórica
Algumas considerações acerca dos gêneros, tipos e espécies textuais
Conforme Bakhtin (1979) citado por Marcuschi (2008, p. 155)
todas as atividades humanas estão relacionadas ao uso da língua, que
se efetiva através de enunciados (orais e escritos) “concretos e únicos,
que emanam dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade
humana”. Por esse motivo, o gênero não pode estar desvinculado de
sua realidade social e de sua relação com as atividades humanas. Eles
são entidades poderosas que, na produção textual, nos condicionam a
escolhas que não podem ser totalmente livres nem aleatórias, seja sob
o ponto de vista léxico, grau de formalidade ou natureza dos temas.
Conforme Marcuschi (2008), gênero e tipo não formam uma
visão dicotômica, pois eles são aspectos constitutivos do
- 72 -
funcionamento da língua em situações comunicativas diárias. Todos os
textos realizam um gênero e todos os gêneros realizam sequências
tipológicas diversificadas. Os gêneros são partes integrantes da
sociedade e estão à disposição toda a vez que desejamos produzir
alguma ação linguística em uma situação real.
O autor segue a linha bakhtiniana, na qual os gêneros não são
entidades formais, mas sim entidades comunicativas em que
predominam os aspectos relativos a funções, propósitos, ações e
conteúdos. Nesse sentido, pode-se dizer que a tipicidade de um gênero
vem de suas características funcionais e organização retórica. Para o
autor:
- 73 -
grande número de categorias de texto existentes em uma sociedade e
cultura, sejam elas tipos, gêneros ou espécies. Alguns conceitos
importantes do texto de Travaglia (2007) serão abordados a partir
deste momento.
1º) Categorias de texto: é um conjunto de textos com
características comuns, ou seja, uma classe de textos que têm uma
dada caracterização, constituída por um conjunto de características
comuns em termos de conteúdo, estrutura composicional, objetivos e
funções sociocomunicativas, características da superfície linguística,
condições de produção, etc., mas distintas de outras categorias de
textos, o que permite diferenciá-las. São exemplos de categorias de
textos: descrição, dissertação, narração, injunção, romance, novela,
conto, fábula, parábola, etc.
2º) “Tipelementos”: classes de categorias de texto de uma
dada natureza, a saber: o tipo, o gênero e a espécie.
a) O tipo: instaura um modo de interação, uma
maneira de interlocução. Por exemplo: texto descritivo,
dissertativo, injuntivo, narrativo, texto do mundo comentado e
do mundo narrado, texto lírico, épico/narrativo e dramático,
etc.
b) O gênero: se caracteriza por exercer uma função
sociocomunicativa específica. Estas nem sempre são fáceis de
explicitar. Os gêneros são compostos pelos tipos e pelas
espécies e eventualmente por outros gêneros. Alguns
- 74 -
exemplos de gêneros são: romance, conto, novela, piada,
editorial, artigo científico, conferência, entrevista, ata,
resolução, edital, atestado, certidão, prece, tese, resenha,
mandado, procuração, contrato, tragédia, comédia, farsa,
esquete, etc.
c) A espécie: se define e se caracteriza “apenas”
por aspectos formais de estrutura (inclusive superestrutura) e
da superfície linguística e/ou por aspectos de conteúdo.
Conforme Travaglia (2007), diversas categorias de textos
podem ter características comuns, por exemplo, as categorias de texto
que têm o tipo narrativo como necessariamente presente em sua
composição e como dominante: romance, conto, novela, fábula,
parábola, apólogo, mito, etc. Todos esses gêneros terão em comum
características de narração, porém sempre haverá características que
permitam distingui-los entre si.
- 75 -
critérios e parâmetros de todos os cinco grupos, mas de apenas alguns
deles. Na tipologia “narrativa”, definiremos os seguintes critérios:
a) O conteúdo temático: refere-se ao que pode ser dito
em uma dada categoria de texto, à natureza do que se espera
encontrar dito em dado tipo, gênero ou espécie de texto (ligado a um
tipo de informação).
Para Travaglia (2007, p.43) o tipo narrativo tem como conteúdo
temático os acontecimentos ou fatos organizados em episódios
(indicação e detalhamento – geralmente por meio de descrição – de
lugar, tempo, participantes /actantes /personagens + acontecimento:
ações, fatos ou fenômenos que ocorrem).
No caso da espécie história da narração, os episódios
aparecem encadeados entre si caminhando para um desfecho ou
resolução e um resultado. Por exemplo, os gêneros romance e conto
apresentam várias espécies que se definem e caracterizam tendo em
vista o conteúdo temático (históricos, psicológicos, regionalistas,
indianistas, fantásticos, de ficção científica, policiais, eróticos, etc). No
caso de nossa pesquisa, a espécie “contos fantásticos14”, uma das
características quanto ao conteúdo temático é, de acordo com
Travaglia (2007, p.46), o aparecimento de fatos mágicos ou estranhos
sem muita explicação dentro do senso comum e/ou científico.
14
Os “contos de terror” se enquadram na espécie “contos fantásticos” por
apresentarem características comuns a esses tipos de contos.
- 76 -
Conforme Köche (2012, p.100), os temas mais comuns
abordados nos contos fantásticos são metamorfoses, feitiçarias,
lobisomens, fantasmas, vampiros, o invisível, o sobrenatural, o
espectro animal e a morte. Esta última pode ser uma temática
bastante envolvente, uma vez que representa uma certeza e, ao
mesmo tempo, o desconhecido.
b) A estrutura composicional: conforme Travaglia (2007,
p.48), vários elementos podem ser considerados quando pensamos
em estrutura composicional. O primeiro critério a lembrar é a
superestrutura (fundamental na caracterização das categorias de
texto).
Os textos que têm o tipo narrativo e são da espécie história
(romance, conto, novela, etc.) encaixam-se na superestrutura geral,
proposta por Travaglia (1991) e apresentada no esquema abaixo:
- 77 -
Para o autor (2007, p.48), a complicação e a resolução são as
únicas partes ou categorias obrigatórias da superestrutura da
narrativa história. São recursivas, podendo aparecer várias vezes: a) a
introdução, a complicação, o clímax os comentários, os resultados,
quando há várias linhas ou cadeias de episódios; e b) a orientação, que
pode aparecer para cada novo episódio ou cadeia de episódios.
O autor citado afirma, ainda, que todas as partes ou categorias
da superestrutura que são opcionais podem ou não se realizar,
conforme o gênero e quando isto é sistemático faz parte da
caracterização do mesmo. Por exemplo: o gênero “piada” geralmente
só tem uma pequena orientação quando necessária para tipificar
minimamente os personagens e a situação, buscando-se estabelecer o
humor; já no gênero “romance”, que será construído de um grande
- 78 -
número de episódios e com diferentes núcleos de personagens, a
orientação vai aparecer recursivamente em muitos momentos – vários
clímax e resoluções intermediários ou secundários podem acontecer,
visando manter o interesse pela narrativa e estabelecer condições
para um acontecimento posterior.
A estrutura composicional apresentada por Travaglia (2007)
para os textos de tipologia narrativa é composta por:
1º) Personagens: algumas categorias de texto incluem outros
aspectos nesta superestrutura. Assim, alguns gêneros e espécies que
são “narrativas história” incluem personagens típicos ou prototípicos,
como o caso dos “contos de fadas”: reis, rainhas, príncipes, princesas,
fadas, bruxas, objetos e animais mágicos ou fantásticos.
2º) Sequências textuais: ainda conforme o autor, outro
elemento importante para a caracterização dos gêneros, na dimensão
da estrutura composicional, é a sua composição por tipos e espécies.
As “narrativas história” podem ser compostas pelos tipos descritivo,
dissertativo, injuntivo e narrativo, em conjugação. O narrativo é o
dominante e os outros aparecem subordinados a ele.Em
conformidade com o exposto acima, Köche (2012, p. 84) ressalta que,
no gênero textual “conto”, a sequência de base é narrativa, pois o
objetivo do texto é contar o que aconteceu. A sequência descritiva,
quando empregada, está a serviço da narração, uma vez que verbaliza
um processo de observação sobre o objeto descrito. Já a sequência
dissertativa, que busca construir uma opinião, quase não se faz
- 79 -
presente. O produtor vale-se dessa tipologia apenas quando o conto
se aproxima da fábula ou do apólogo.
3º) Dimensão: outro aspecto de estrutura composicional que
geralmente é utilizado na caracterização dos gêneros é a dimensão: o
tamanho médio dos textos daquele gênero. Travaglia (2007, p.57)
afirma que, “embora nunca se possa estabelecer e nunca se estabeleça
um tamanho exato para um gênero há um padrão esperado de
dimensão”. O autor lembra que alguns gêneros podem apresentar
dimensão muito variável, como os “contos de fadas”, que não têm a
dimensão como um critério válido em sua caracterização, pois há
contos de fadas curtos e outros bastante longos.
4º) Linguagem: igualmente importante, a linguagem é um
outro critério da estrutura composicional de um gênero. Grande parte
dos gêneros é composta exclusivamente pela língua, como é o caso
dos contos, do romance. Porém, de acordo com o autor, alguns
gêneros, como as histórias em quadrinhos e as tiras, são compostas
pela linguagem verbal (língua), geralmente dialogada, e pelas imagens
em desenhos, que representam outra forma de linguagem. Alguns
gêneros lançam mão de outros recursos, como cores (para exprimir
atmosferas, sentimentos, estados de espírito), gestos, expressões
fisionômicas, música, etc.
- 80 -
Objetivos e função sociocomunicativa:
Para Travaglia (2007, p.60), embora os gêneros sejam definidos
por sua função sociocomunicativa, os tipos também apresentam
objetivos. “Na narração, o objetivo é contar, dizer os fatos, os
acontecimentos, entendidos estes como os episódios, a ação em sua
ocorrência”.
15
Outros fatores são propostos por Travaglia (2007) quanto às características da
estrutura linguísticas, como os conectores, marcadores temporais, sequenciadores
ou encadeadores temporais, etc. Porém, não serão analisados em razão da extensão
do artigo.
- 81 -
autor, a perspectiva é de não comprometimento do
locutor/enunciador com o que diz. Por esse motivo, é comum o uso
dos tempos: pretérito imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito
(simples e composto) do indicativo, futuro do pretérito (simples e
composto).
Outras características quanto ao emprego dos verbos na
tipologia narrativa são: o prevalecimento de verbos dinâmicos (ações,
fatos, fenômenos, transformativos); aparecimento de verbos de
contar e assistir; e narrações caracterizadas pelo uso do “aspecto
perfectivo” para indicar pontualidade das ações.
Condições de produção
Nesse parâmetro, Travaglia (2007, p.71) inclui aspectos como:
“quem produz, para quem, quando, onde (geralmente um quadro
institucional, o suporte, o serviço, etc.)”
- 82 -
O autor (2007, p. 74) salienta ainda que, dentre as condições
de produção, parece interessante observar “aquilo que se tem
denominado nos estudo sobre gênero de suporte, definido de modo
geral como o espaço-objeto que porta o texto, em que o texto ganha
materialidade” e que alguns gêneros só existem em determinados
suporte, não em outros. A questão do suporte será tratada na próxima
seção.
16
Não é o objetivo do artigo aprofundar essa questão.
- 83 -
de fixação do gênero materializado como texto”. Entende-se assim o
suporte de um gênero como uma “superfície física em formato
específico que suporta, fixa e mostra um texto”. Nesse quesito, o
suporte deve ser algo real, e pode ter realidade virtual, como no caso
do suporte representado pela internet.
No caso de nosso objeto de estudo, o gênero textual “conto”,
observamos que é possível encontrar esse gênero tanto em suportes
convencionais17 (livros, livros didáticos, etc.) como em outros meios
que prestam serviços em função da atividade humana, como a
internet.
Marcuschi (2008, p. 199) coloca que a internet transmuta de
maneira bastante radical gêneros existentes e desenvolve alguns
realmente novos. Porém, não há como desvincular esses gêneros da
escrita, já que na internet a escrita continua essencial. Assim, a
comunicação mediada por computador abrange todos os formatos de
comunicação e os respectivos gêneros que emergem nesse contexto.
Entre os gêneros mais conhecidos, o autor cita os weblogs (blog;
diários virtuais) como um dos mais praticados.
17
Categoria descrita por Marcuschi (2008, p. 178) como “típicos ou característicos,
produzidos para essa finalidade”.
- 84 -
agendas, anotações, em geral muito praticados pelos adolescentes na
forma de diários participativos”. Esse gênero18, assim como e-mail,
chats, busca uma interação entre indivíduos reais, embora suas
relações sejam no geral virtuais. É um gênero que pode ser escrito em
duplas ou em “n-tuplos” de participantes que colaboram para
construir um texto sempre em evolução.
Barbosa e Serrano (2005) conceituam blog como um registro
eletrônico, que apresenta “um caráter dinâmico e de interação
possibilitados pela facilidade de acesso e de atualização”. Para as
autoras, o que distingue o blog de um site convencional é a facilidade
com que se podem fazer registros para a sua atualização. Isso o torna
muito mais dinâmico do que os sites, pois sua manutenção é mais
simples e apoiada pela organização automática das mensagens, ou
posts, pelo sistema, permitindo que novos textos sejam inseridos sem
a dificuldade de atualização de um site tradicional. Seus registros
aparecem em ordem cronológica inversa (o último lançamento
aparece sempre em primeiro lugar) e utiliza programas simples que
praticamente exigem apenas conhecimentos elementares de
informática por parte do usuário.
18
Marcuschi (2008) considera blog um gênero emergente na mídia virtual. Porém,
há trabalhos que contestam essa classificação, discutindo se estamos diante de um
gênero ou de uma plataforma que manifesta vários gêneros. Essa questão não será
aprofundada nesse artigo. Para maiores informações ver o trabalho de ANGELI, G. H.
“BLOG: um estudo sob a luz do conceito de gêneros textuais” (2011), endereço
eletrônico disponível nas referências bibliográficas.
- 85 -
Conforme Angeli (2011, p. 26), para compreender melhor o que
é um blog e o que significa sua presença na internet, é necessário
também conhecer seus principais elementos: o “blogueiro”, os posts e
os comentários.
Os “blogueiros” são os responsáveis pela criação, manutenção,
caracterização e atualização dos registros. Escrevem sobre os assuntos
que mais lhes agradam, podendo um blog versar sobre praticamente
qualquer coisa, dependendo unicamente do interesse do seu
responsável. Um blog pode ter um ou vários blogueiros, conhecidos
ou desconhecidos, conforme a sua função. São chamados posts os
registros publicados pelos blogueiros. Podem ser constituídos de
apenas imagens, textos e imagens, apenas textos, vídeos, áudios, etc.
Já os comentários são um espaço importante para a constituição dos
blogs, porque possibilitam a dinamicidade de interação, evitando que
se transformem em uma publicação estática de textos.
Quanto ao público-alvo que tem acesso aos blogs, conforme os
resultados de pesquisas apresentados por Angeli (2011, p. 27),
contata-se que, nos quesitos gênero e faixa etária, 59% são mulheres
com idades entre 18 e 34 anos, correspondendo a um público jovem e
adulto. Quanto à escolaridade, verifica-se uma pequena
predominância de visitantes de nível superior (55%). Por último, o
tema que mais gera interesse e acessos é entretenimento (68%),
seguido de tecnologia (17%), esportes (11%) e beleza e moda (1,5%),
- 86 -
já os blogs relacionados à educação têm uma audiência de 1%,
ocupando o quinto lugar na lista de interesses.
- 87 -
A segunda condição para a existência do fantástico, conforme
Todorov, refere-se à personagem: a hesitação vivenciada pelo leitor
pode ser experimentada também pela personagem, tornando-se um
dos temas da obra. Tanto o leitor quanto a personagem devem decidir
se o que percebem depende ou não da realidade, tal qual existe na
opinião comum. Essa hesitação, característica do fantástico, situa-se
no presente, ou seja, no momento em que acontecem os fatos. Nas
palavras do autor (1980, p.162), “Se nos limitarmos às explicações
naturais, é preciso aceitar o caso, as coincidências na organização da
vida; se queremos que tudo seja determinado, devemos também
admitir as causas sobrenaturais”.
A terceira condição faz alusão à postura do leitor para com a
narrativa. Para Todorov, citado por Köche (2012, p.98) “O leitor não
pode aceitar a interpretação alegórica nem a interpretação poética do
texto; deve interpretar literalmente o discurso figurado, pois é a
adoção dessa postura que origina frequentemente o sobrenatural”.
Assim, a alegoria19 implica a existência de, no mínimo, dois sentidos
para as mesmas palavras: o sentido literal e o figurado. Conforme
Todorov, esse duplo sentido aparece na obra explicitamente e não
depende da interpretação do leitor; já a poesia refere-se aos textos
que apresentam rimas, ritmo, figuras retóricas, etc.
19
O conceito de alegoria aqui é entendido como “uma representação figurativa que
transmite um significado outro que o da simples adição ao literal. É geralmente
tratada como uma figura da retórica”. Fonte:
http://www.dicionarioinformal.com.br/alegoria
- 88 -
Ainda para o autor já citado (1975, apud Köche, 2012, p.98), a
primeira e a terceira condições constituem verdadeiramente o
fantástico; e a segunda condição pode ou não se cumprir.
Outra característica dos contos fantásticos é apresentar
narrador em primeira pessoa. Para Todorov,
- 89 -
acontecimentos. Esse recurso é possível com o uso do pretérito
imperfeito do indicativo e da modalização.
O pretérito imperfeito do indicativo aponta um acontecimento
do passado que pode ter continuidade no presente. Porém, para
Todorov (1980), é pouco provável que isso ocorra. Já a modalização
consiste no emprego de certos elementos linguísticos que alteram a
relação entre o enunciador e o enunciado, causando a incerteza do
sujeito quanto à veracidade do que afirma, mantendo o leitor dividido
entre o mundo real e o sobrenatural. Entre os modalizadores,
destacam-se os advérbios (talvez, acaso, etc.), o modo verbal
subjuntivo, o verbo auxiliar modal e a oração principal cujo verbo
expressa modalidade. (Köche, 2012, p.100).
Conforme Köche (2012, p.100), o conto fantástico pertence ao
gênero do narrar, pois recria o real, constituindo um gênero da cultura
literária ficcional. Nele predomina a sequência tipológica narrativa de
curta duração, com um único episódio e número limitado de
personagens. Normalmente segue a estrutura dos demais contos:
apresentação, complicação, clímax e desfecho.
a) Apresentação: expõe um estado de equilíbrio.
Situa o leitor diante dos fatos narrados e mostra as
personagens e sua caracterização, bem como o espaço e o
tempo;
- 90 -
b) Complicação: inicia quando ocorre o
rompimento do equilíbrio inicial devido a um conflito que
conduz ao clímax da narrativa.
c) Clímax: é o ponto máximo de tensão da
narrativa, que leva ao desfecho;
d) Desfecho: acontece no momento em que se
restabelece o equilíbrio. Geralmente há uma solução para as
situações conflituosas, porém, em alguns contos, o final fica em
aberto para que o leitor imagine qual será o desfecho.
Metodologia
Para realizar a análise a seguir, foram selecionados, de blogs da
internet, três contos de terror, entitulados “O jardim”, “A boneca” e
“As flores da morte”. Os contos foram escolhidos por serem
publicados em blogs de livre divulgação e por serem escritos por
escritores iniciantes. Para a análise, os contos receberão,
respectivamente, a nomenclatura CONTO 1, CONTO 2 e CONTO3.
Escolhidos os contos, buscou-se analisar os seguintes critérios
estipulados por Travaglia (2007) quanto à estrutura composicional:
a) Conteúdo temático;
b) Estrutura composicional: presença (ou ausência)
dos elementos constituintes da “superestrutura” proposta por
Travaglia (2007) para os textos de tipologia narrativa,
personagens, sequências textuais, dimensão e linguagem;
- 91 -
c) Função sociocomunicativa;
d) Superfície linguística: emprego dos tempos
verbais;
e) Condições de produção.
- 92 -
Dialogal Dialogal
4 - Dimensão Texto curto Texto curto Texto muito
curto
5 - Linguagem Escrita narrada Escrita narrada e Escrita narrada
e dialogada dialogada
- 93 -
TABELA 5 - Condições de produção.
TABELA 5 – CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
Conto 1 Conto 2 Conto 3
Quem produz Larissa Spézea ToyFreddy606 Rise above
Discussão e resultados
Após uma análise na qual se buscou observar as convergências
e divergências estilísticas e composicionais dos contos acima
nomeados, tendo os critérios de Travaglia (2007) como base, chegou-
se às seguintes conclusões:
1º Quanto ao conteúdo temático, apenas um conto não
apresenta a presença de elementos mágicos ou estranhos, sem muita
explicação dentro do senso comum e/ou científico. Nesse conto, as
personagens são pessoas comuns, e o assassino (personagem
principal) é movido a agir pelo sentimento de vingança, e não por
causas sobrenaturais;
2º Quanto à estrutura composicional, observou-se que todos
os contos apresentam a complicação e a resolução, que são as únicas
partes da “superestrutura” obrigatórias na narrativa história. Outras
partes aparecem de forma recorrente. Verificou-se também a
- 94 -
presença de personagens típicos ou prototípicos em dois contos, e a
prevalência da sequência narrativa sobre a descritiva e a dialogal. A
sequência descritiva, quando aparece, está a serviço da narrativa, mais
especificamente na orientação, para caracterizar o espaço, e também
na caracterização das personagens. O gênero conto é um gênero de
dimensão relativamente curta, portanto todos os contos são de
dimensão apropriada. E a linguagem de todos os contos é a escrita
narrada, com pequenos diálogos entre as narrações;
3º Os blogs consultados não apresentam informações a
respeito da função sociocomunicativa de seus conteúdos. Podemos
deduzir que o objetivo de todos os blogs seja o entretenimento para
leitores que se interessam pelo gênero, e que esses blogs atuam como
facilitadores a todos os usuários na publicação ou acesso aos
conteúdos, uma vez que apenas um dispõe de um conteúdo especial
para assinantes;
4º A superfície linguística dos contos analisados demonstra um
padrão, com a utilização de verbos no pretérito imperfeito do
indicativo para descrições e de pretérito perfeito do indicativo para
ações e desenvolvimento da trama. Apenas um conto apresentou uma
mistura de tempos presente e pretéritos do indicativo, revelando
desconhecimento das características do gênero. No entanto, é
possível sentir um clima de suspense que envolve o leitor.
5º Quanto às condições de produção, percebemos que,
dependendo do blog, algumas informações são disponibilizadas aos
- 95 -
usuários e outras não. Quem produz não necessariamente precisa
identificar-se ou usar seu nome real; já para quem e onde são
produzidos os contos são critérios-padrão que concernem ao gênero
analisado.
Por fim, constatou-se que os textos analisados, veiculados no
suporte blog na mídia virtual, não seguem um padrão específico,
apresentando pontos em comum e pontos divergentes também. Isso
se deve ao fato de, segundo Coutinho e Souza (2001) apud Köche,
2012 p. 83) o conto ser flexível, com infinitas possibilidades, não
obedecendo a regras fixas; é um gênero que se liga a cenas e episódios
de complexidade reduzida, ações isoladas, cortes de vida menores,
estudo de caracteres ou situações, acontecimentos cotidianos e
banais, mas representativos de ações ou personagens, conversações e
fantasias. Essa diversidade de possibilidades é abordada de forma
estética.
Considerações finais
Ao final desse trabalho, podemos concluir que não é possível
“padronizar” o gênero textual “Contos de terror” no suporte blog da
internet. Sendo o conto um gênero flexível, que não obedece à regras
fixas de produção, verificou-se que os escritores iniciantes escrevem
de forma livre e sem preocupação com a estrutura composicional ou
estilística nos textos. Apenas preocupam-se em seguir a temática do
gênero.
- 96 -
Também constatou-se que os blogs analisados apresentam
semelhanças e diferenças entre si quanto à disposição dos conteúdos
na página, à linguagem, ao perfil e papel dos usuários, à informações
sobre os blogueiros (responsáveis pelo blog) e à organização da página
de forma geral. Um ponto em comum é a facilidade na postagem e
acesso aos conteúdos.
Por fim, ficou claro que os quesitos conteúdo temático, função
e finalidade são praticamente indissociáveis nesse gênero textual, pois
estão vinculados ao interesse do blogueiro e ao objetivo do blog,
sendo definidos e selecionados em função desses. São textos escritos
predominantemente por e para uma faixa-etária jovem e interessada
em entretenimento, com o objetivo de narrar histórias ficcionais sem
preocupação em seguir fórmulas ou critérios estéticos e estilísticos.
- 97 -
Referências
- 98 -
Barbosa e MARQUESI, Sueli Cristina (org.). Língua Portuguesa
pesquisa e ensino – Vol. II. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2007b. p. 97-
117.
TODOROV, T. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes,
1980.
ANEXOS
CONTO 1: O JARDIM
09 de Junho de 1963. Nesse dia John jurou se vingar de sua esposa,
Sophie Wilkinson. O motivo da vingança? Traição. Ele havia descoberto, mas
ela não sabia. Então, ele levou sua esposa para passar um final de semana na
casa de seu avô, já falecido, George Wilkinson. John Wilkinson era um
homem calmo, mas jurou matar sua mulher, pois não aceitava a traição. Ao
chegarem a casa, que ficava no Mississipi e se localizava em um lugar mais
afastado de frente para um lago, ele mostrou a casa para sua mulher. A casa
era linda por fora, mas assustadora por dentro, pois foi ali mesmo na sala,
que George Wilkinson foi morto pelo próprio neto, Orlando irmão de John.
Orlando após matar o avô com dois tiros, um no peito e outro no abdômen,
se matou com um tiro na cabeça.
A casa era fria, escura, assustadora e silenciosa, as vezes dava medo
e outrora era perturbador. Sophie e John deixaram as malas em um canto do
quarto e caíram em um sono profundo. Logo pela manhã, eles acordaram
cedo, tomaram café e foram ao jardim, que ficava atrás da casa. Sophie
admirava o jardim, um belo jardim cheio de rosas.
Enquanto ela olhava para o jardim, John decidiu colocar seu plano de
vingança em ação. Ele pegou uma pá e aproximou-se de Sophie, chamando-
a. Ela estava de costas para ele, virou-se e ele lhe deu um tapa na cara com
as costas da mão, fazendo-a cair. Ao ver o marido com a pá na mão ela ficou
desesperada, já imaginando o motivo da reação dele. Ele deu um passo em
sua direção e o coração dela começou a bater mais forte. A cada passo dele
o coração dela batia mais rápido e mais forte. Quando ele finalmente chegou
ao lado de Sophie, ele colocou a pá no pescoço dela e falou :
- Adeus Sophie!
- 99 -
O olhar dela era de desespero. Com um golpe rápido e certeiro com
a pá, ele arrancou-lhe a cabeça que saiu rolando e foi parar no meio do
jardim. Depois de matar a própria esposa, John jogou o corpo dela no lago,
pegou uma pedra e jogou em cima do corpo de Sophie. Após o
acontecimento, John Wilkinson voltou a sua vida normal, mas com uma
diferença: vivendo na casa de seu avô.
Autora : Larissa Spézia
CONTO 2: A BONECA
No dia de seu aniversário Lúcia foi acordada por sua madrasta lhe
trazendo um grande pacote recebido pelos correios e endereçado a ela.
Animada com o embrulho a garota rapidamente desembrulhou o
pacote e ficou horrorizada com o seu conteúdo, pois dentro da caixa havia a
boneca mais repugnante que ela já havia visto.
A boneca era velha, completamente careca, com a pele rachada e
coberta de poeira. Mas, o pior de tudo era a boca do brinquedo que
apresentava dentes longos e afiados como se fossem as presas de um animal
Com um calafrio percorrendo seu corpo a criança atirou a boneca no
chão, em direção a um canto. No mesmo instante sua madrasta lhe chamou
a atenção, dizendo que alguém deveria ter tido trabalho para lhe enviar esta
boneca antiga, e por isto, ela deveria se sentir agradecida.
Lúcia tentou protestar , mas sua madrasta não quis ouvi-la e a forçou
a continuar com a boneca se recusando a jogar o brinquedo fora. Para não
contrariar sua madrasta, a criança enfiou a boneca em um armário embaixo
da escada, bem atrás de uma pilha de sapatos onde ela não precisaria olhar
para aquela coisa feia.
Passada algumas noites, Lúcia estava deitada na cama quando ouviu
um barulho: era um som estranho que ela não conseguia identificar... O
barulho cessou e depois continuou por alguns minutos. Agora ela conseguia
perceber que o som era como se algo caminhasse com pequenos passos.
Lúcia tremia em sua cama, incapaz de se mover. Ela dormia sempre
com a porta aberta para aproveitar a luz que vinha do corredor, pois morria
- 100 -
de medo do escuro. Logo pareceu que ouvira uma voz surrando para ela lá
do corredor:
- Lúcia, eu estou no quinto degrau.
A criança, completamente apavorada, cobriu sua cabeça com os
cobertores e ficou tremendo de medo, porém os sons pararam subitamente.
Naquela noite Lúcia não conseguiu mais dormir e ficou embaixo das
cobertas até o dia amanhecer, quando sua madrasta entrou no quarto para
acordá-la.
Lúcia contou o ocorrido para sua madrasta, que lhe explicou que
tudo isso deveria ter sido um pesadelo. Mesmo assim a criança implorou a
sua madrasta para que a deixasse jogar a velha boneca fora, mas ela insistiu
que o brinquedo tinha sido um presente e ela deveria guardá-la. A madrasta
dela ainda foi até o armário e lhe mostrou que o objeto estava no mesmo
lugar de sempre.
- 101 -
para aproveitar a luz do corredor. Mas, sua madrasta lhe disse que a luz do
quarto era muito forte e isso não lhe deixaria dormir.
Dessa forma, Lúcia concordou em dormir com as luzes apagadas e
com a porta fechada. Para não ficar completamente escuro ela abriu as
cortinas para tentar clarear um pouco seu quarto.
Assim que ela começou a cochilar passou a ouvir um barulho... e
então a voz veio, mais clara e alta do que das outras vezes:
- Lúciaaa eu estou no topo da escada....
Na escuridão de seu quarto ela viu a porta abrir lentamente...
Na manhã seguinte o corpo da garotinha foi encontrado na parte
debaixo das escadas. Eles imaginaram que ela teria ido até o banheiro
durante a noite, tropeçado e caído pela escada quebrando seu pescoço.
Ao lado da criança fora encontrada uma velha boneca, sua madrasta
então, pediu que ela fosse enterrada com o brinquedo.
- Ela amava tanto esta boneca... Agora elas podem ficar juntas para
sempre – disse a madrasta.
Autor: ToyFreddy606
- 102 -
dormindo acordou, e a mãe avisou pra ela que a mulher havia deixado o
buquê de rosas, sem saber do pedido da filha feito em oração.
Ela ficou com uma cara de espanto quando foi informada pela mãe
que quem havia trazido as rosas era a mãe da Berenice. A única coisa que a
moça conseguiu responder era que a mãe da Berenice estava morta há 10
anos.
A moça morreu naquela mesma noite. No hospital ninguém viu a tal
mulher entrando ou saindo.
- 103 -
Rastros da Poética de Cesário Verde em Alberto Caeiro
e João Cabral
20
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG com área de
concentração em Estudos Literários; nível: doutorado
- 104 -
De imediato, fica clara a aproximação entre esses dois poetas
que na maior parte do tempo se encontram em lados opostos. O leitor
assíduo de João Cabral sabe que ele não apreciava bem os poetas
portugueses e a razão é simples: muitos eram levados pelo excesso de
sentimento, pela emoção fácil e pela imaginação sem técnica. Em uma
entrevista à jornalista Alice Maria, chega a declarar: “[...] para mim, o
maior de todos [dos poetas portugueses] é o Cesário Verde. É aquele
poeta que eu sinto mais perto de mim, com quem mais me
identifico”21. Essa identificação diz respeito, principalmente, a um
traço típico da poética de Cesário Verde: seu apego ao mundo das
coisas. Neste ensaio, defendemos a hipótese de que Cesário Verde foi
fundamental para a formação poética de Alberto Caeiro e João Cabral.
Partimos do pressuposto de que o poeta se forma a partir das leituras
que empreende, bem como das escolhas que faz ao longo de sua
trajetória enquanto escritor. Da primeira ação resulta uma
“consciência de leitura”, que conforme João Alexandre Barbosa
(1986), é responsável pela constituição identitária do escritor,
mediante a permanência ou à ruptura dessa consciência. Nas palavras
da professora e pesquisadora Goiandira de F. Ortiz Camargo (2008, p.
100): “[...] entendemos o ato de leitura do poeta como produção,
reinvenção, apropriação criadora, o que implica também o
21
Entrevista a Alice Maria, Diário de Notícias, Lisboa, 20 jan. 1985.
- 105 -
comparecimento do mundo e suas circunstâncias, no resgate da
‘qualidade histórica’ que o poema deve ter”.
Para corroborar essa hipótese, inicialmente, demarcaremos os
principais traços da poesia de Cesário Verde. Para tanto vamos nos
ater aos poemas: “Contrariedades”; “Num bairro moderno”; “Noite
fechada” e, por fim, “Nós”. Na sequência, destacaremos quais
elementos foram incorporados por Alberto Caeiro e João Cabral, com
vistas à confirmação da hipótese da consciência de leitura como um
mecanismo fundamental para a formação dos poetas modernos.
- 106 -
(1887-1888)22. Apesar disso, esse poeta português, considerado o
precursor da modernidade em Portugal, revelou, desde cedo, uma
inquietação própria de quem não se dá por satisfeito com os caminhos
já percorridos e, ao seu modo, concebe uma poética pautada em
valores novos.
Diferentemente de seus contemporâneos, que construíram
poesia encharcada de intuitos revolucionários ou sociais, a chamada
poesia engagée, Cesário Verde faz poesia focada nas tensões sociais
do processo de urbanização de Portugal, sem, contudo, utilizar
linguagem panfletária. Em seus poemas, desfilam os trabalhadores das
mais diversas áreas; as mulheres aristocráticas, burguesas e operárias;
os comerciantes; os burgueses abastados e a fina aristocracia em
decadência. Além disso, sua poética é marcada pela convergência de
vários estilos. Segundo os estudiosos Benjamin Abdala Júnior e Maria
Aparecida Paschoalin (1982, p. 114):
22
Cesário Verde morre prematuramente, aos trinta e um anos de vida (1855-1886),
vítima da tuberculose.
- 107 -
Está claro que o poeta enxerga para além do seu tempo. Tanto
que produz uma poesia que destoa do gosto da época. Pode se dizer
que seu único livro, publicado postumamente, O Livro de Cesário
Verde (1901), é um caleidoscópio que aponta para vários temas caros
à poesia moderna, como: o homem comum imerso nas cidades; a
artesania do poema (metalinguagem), a ironia e a analogia, o
heroísmo moderno, dentre outros. E essa não afinidade com a
literatura que vigorava no período lhe provoca, ao mesmo tempo, um
certo desconforto e a consciência de que a poesia que faziam estava
manchada pelos interesses pessoais e pela visão medíocre de Arte. Em
“Contrariedades”, nos deparamos com versos célebres como:
- 108 -
sobre a real situação na qual se encontra a literatura do período: os
escritores colocam-se nas mãos dos leitores que parecem ditar as
regras; o texto em prosa, em especial o romance melodramático, tem
mais chance de cair nas graças do público do que um poema feito em
moldes modernos; os jornais fecham as portas aos autores
desconhecidos e distantes das tônicas vigentes; reinam a hipocrisia e
o puxa-saquismo e, por fim, a crítica utiliza-se ainda de métodos
ultrapassados.
Nesse cenário extremamente restrito, não há espaço para a
sinceridade, à originalidade e para o despojamento do poeta. Nem tão
pouco para a concepção de um novo estatuto da poesia, projeto que
o poeta persegue e que não chega a viabilizar-se. Interessante
destacar que essa confissão utiliza-se de moldes românticos, contudo,
subvertendo-os. O sujeito poético põe-se no texto a conta gotas,
dividindo o espaço com o dilema da outra personagem. Nesse balanço
entre a dor do poeta e a da engomadeira, nota-se a consciência
histórica do primeiro que não escamoteia os problemas do mundo
nem se refugia numa torre de marfim. Sua realidade é
contrabalançada com a realidade do outro e nesse jogo de
objetividade/subjetividade pesa o mundo histórico com suas tensões
e seus dilemas reais, o que confirma a asseveração feita por estudiosos
como Antonio José Saraiva e Oscar Lopes (2008, p. 926): “Ele é o poeta
cuja neurastenia se retrata e ironiza num quadro real, à vista de
dramas flagrantes dos vizinhos; que, perceptivelmente, deambula e
- 109 -
namora em Lisboa, ou examina o campo com o olhar objectivo do
administrador rural”.
Pode se dizer que Cesário Verde principia o processo de
dessubjetivação do sujeito. Isto é, na poética verdiana a subjetividade
do poeta é empurrada, aos poucos, para a margem, cedendo espaço
para o outro, o objeto. Em “Contrariedades”, é o jogo entre o eu e o
não-eu que equilibra todo o poema. É pela percepção da dor do outro
que o eu poético avalia a sua dor até chegar à conclusão de que a
situação na qual se encontra é pequena frente ao que o outro passa.
Essa visão social lançará o autor de “O Sentimento dum ocidental”
num campo da tradição que será amplamente explorado por seus
sucessores, dentre eles Alberto Caeiro e João Cabral, de tal forma que
este último vai levá-la à exaustão.
Outro tópico recorrente na poética de Cesário Verde e
incorporado como lição é a condição de deambulador, de observador
atento aos fatos e movimentos ao seu redor. Vários são os poemas nos
quais o eu poético coloca-se no papel de poeta-pintor, tal é sua
precisão e riqueza de detalhes. Nada lhe passa despercebido. Seu
olhar percorre todos os ângulos, apesar de limitar-se ao que é
observável ao olho humano. Em “Num bairro moderno”, por exemplo,
essa habilidade é posta à prova. O poema é constituído por vinte
estrofes regulares que funcionam como cenas capturadas pelo olhar
de um trabalhador adoentado que, às dez horas da manhã, dirige-se
ao trabalho. O bairro por onde passa é descrito como um ambiente
- 110 -
que já sofreu as intervenções do processo de urbanização, próprias das
grandes cidades do século XIX. As ruas são pavimentadas, as casas são
palacetes, não há sujeira, nem odores desagradáveis e nem mesmo
animais perdidos. Em outras palavras, o ambiente é requintado, um
reflexo dos moradores do lugar:
- 111 -
O criado que se dirige à vendedora de hortaliças não se coloca
no mesmo nível dos demais trabalhadores. Aliás, parece não ter
consciência de sua real condição de trabalhador e por isso a trata com
desdém e indiferença. Até sua localização, no alto da escada, é uma
indicação simbólica do quanto se sente superior aos seus pares.
Provavelmente consequência do ambiente que respira e da alienação
na qual está imerso. Esse incidente entre o criado e a vendedora é
flagrado pelo observador que parece ter ciência dos ângulos que
escolhe, bem como dos flashes que deseja eternizar ou mesmo
ampliar. Ao leitor fica a sensação de que o conjunto observado é muito
mais amplo do que o descrito. Por fim, a cumplicidade entre o sujeito
deambulador e os desvalidos é reforçada, tal como se percebe em
“Contrariedades” bem como em “Noite Fechada” e em tantos outros
poemas que poderiam aqui ser arrolados.
Essa relação de cumplicidade implícita entre o sujeito poético
e os excluídos é outro traço típico da poética de Cesário Verde. Em
“Noite Fechada”, o eu lírico recupera um passeio longo, feito ao lado
da amada, percorrendo ruas, vielas, travessas, cemitérios, igrejas e
cais, onde, guiado pela jovem sorridente, vê desmoronar seus sonhos
de romântico incurável:
- 112 -
No contraponto entre o eu e o não-eu, fica evidente um traço
fundamental. Enquanto ele se sente totalmente tocado por aquilo que
vê, ao ponto de sentir compaixão pelo próximo, ela encara tudo com
leveza, indiferença e riso:
- 113 -
deplorável do outro e das próprias coisas faz-lhe admirar o “plebeu
cambaleante”, talvez porque tenha encontrado um anestesiante,
ainda que provisório, para o problema que o aflige.
Além do desfile dessa massa humana que abarrota a cidade -
os heróis da poesia moderna, na percepção de Charles Baudelaire -
esse poema destaca-se por mais um detalhe. Ele expressa o desejo do
poeta de produzir uma obra que fosse moderna e original: “E eu que
busco a moderna e fina arte” (BAUDELAIRE, 2010, p. 58).
Esse projeto apresenta-se espalhado em toda a sua obra e
aponta para outra marca da poética verdiana. Cesário Verde não só
escreve poesia como também pensa em como fazê-la. Isto é, os
andaimes da construção do texto são problematizados por ele, assim
também como o papel que cabia ao leitor e ao escritor. Em vários
momentos de sua obra, revela que tinha consciência da recepção de
seus poemas. Para ele alguns leitores da época eram estúpidos e
pouco ousados, pois não aceitavam bem as novidades. Em “Nós”, por
exemplo, chega a afirmar:
- 114 -
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando ancorado em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão!
(VERDE, 2010, p. 98-99)
- 115 -
com a literatura romântica, por considerá-la a principal responsável
pela situação de marasmo e decadência na qual se encontrava a
sociedade portuguesa, à época. Segundo Helder Macedo (1975),
Cesário Verde incorpora bem a lição de Taine à poesia, que consiste
em tornar o real representado na obra de arte o próprio significante,
a partir de uma análise profunda dos fatos ou acontecimentos. Nessa
perspectiva, não há distinção entre a percepção objetiva e a subjetiva
do mundo:
- 116 -
Essa relação entre lírica e sociedade será talvez a lição mais
significativa deixada por Cesário Verde. Sua importância no cenário
literário se justifica pela quantidade de poetas modernos que se
construíram a partir da leitura de sua obra. Alberto Caeiro e João
Cabral não são os únicos a compor essa galeria, entretanto, para este
trabalho a investigação dos rastros em ambos ajudará a corroborar
essa hipótese. A pergunta que nos move inicialmente é: Alberto Caeiro
e João Cabral, frente à poética verdiana, praticam a tradução ou a
traição dessa consciência de leitura?
- 117 -
Essa importância toda dada a Alberto Caeiro justifica-se por
vários fatores. Para Zenith (2005), o universo de Pessoa pode ser
dividido em dois tempos: antes e depois de Caeiro. Mesmo tendo vida
efêmera- o poeta pastor é “morto” por Pessoa em 1915 -Caeiro entrou
para a tradição como o poeta “revelador da realidade”. Acreditamos
que Cesário Verde esteja inscrito nessa tradição literária recém-
fundada. Em outras palavras, Alberto Caeiro lê o poeta de
“Cristalizações”. O poema III é prova inconteste:
[...]
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
- 118 -
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para as arvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
(CAEIRO, 2005, p. 20)
- 119 -
acaba se tornando mais complexa. Ele põe, às claras, a realidade
latente que a maioria da população desconhecia ou não queria
perceber. Além disso, o poeta também as relaciona, analisa e informa
suas imbricações. Essas ações provocam-lhe profundo pesar, como já
afirmado: “E triste como esmagar flores em livros/ E pôr plantas em
jarros..”.. (CAEIRO, 205, p. 20).
No primeiro poema de O Guardador de Rebanhos, o eu poeta
revela nuances de sua poiesis. Sua escrita, tal como sua imaginação,
estão condicionadas ao ver e ao sentir:
- 120 -
interlocutor, possivelmente um poeta romântico, o embate se formula
a partir da ideia que cada um tem da natureza:
- 121 -
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
- 122 -
desajuste frente à tradição mais remota. Essa desfiliação é
argumentada nos versos seguintes:
- 123 -
consciência enquanto indício de uma leitura da tradição. Caso
contrário, não marcariam seu lugar no mundo literário. Esse anseio por
construir seu próprio caminho também se percebe em Caeiro:
- 125 -
Em uma entrevista anterior, dada em 1969, a Carlos Alberto
Tenório, jornalista de “O Globo” (MELO NETO, apud ATHAYDE, 1998),
Cabral corrobora a tese de que a leitura da tradição foi fundamental
para que escolhesse seu caminho e os poetas dos quais gostaria de se
aproximar ou se afastar. Contudo, é no contato com a poesia moderna
que o poeta pernambucano encontra sua verdadeira filiação. Dos
poetas portugueses declara manter distância, dado o lirismo
exacerbado recorrente neles. Todavia, há um escritor a quem ele se
filia de bom grado. Trata-se de Cesário Verde:
- 126 -
emoção pessoal. Dito de outro modo, o poeta, empregando o método
de Taine, que tanto apreciava, põe o objeto/a cena em evidência ao
mesmo tempo em que se afasta para melhor sondá-lo. O vocábulo
lavar e seus variantes, existentes na terceira estrofe, destacam traços
próprios da poiesis do poeta português e que João Cabral tanto
aprecia. Sua forma de construção, conforme já afirmado, não se pauta
no encobrimento da realidade, mas na sua apresentação sem
subterfúgios.
Aliás, o apreço à realidade vai se apresentar em vários poemas
de João Cabral, marcando sua preferência pela matéria concreta:
Do dia aberto
(branco guarda-sol)
Esses lúcidos fusos retiram o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)
que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido,
contra o açúcar podre.
(MELO NETO, 2007, p. 71)
- 127 -
do lirismo derramado, de tom confessional, ao mesmo tempo em que
reforça o valor da palavra poética- assumida como um compromisso
com a arte planejada nos mínimos detalhes- construída a partir do
labor intenso e cotidiano, daí a imagem recorrente do engenheiro, isto
é, do arquiteto das palavras:
- 128 -
desde que sempre dependente do fazer poético.
(BARBOSA, 1986, p. 108).
- 129 -
linguagem, tendo como espelho a realidade. É nesse campo que João
Cabral se torna um poeta completo, uma vez que ele cumpre a
assertiva expressa por Bakhtin (2002, p. 103):
[...]
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:
[...]
Palavras que perderam
No uso todo o metal
E a areia que detém
A atenção que lê mal.
(MELO NETO, 2007, p. 189)
- 130 -
Todavia, essa perda não implica em ausência de historicidade
do poema, isso porque a “pedra” não é retirada do vazio, ela não se
localiza em lugar nenhum. Ao contrário, a realidade do poema está
imbricada na “história de leituras anteriores da poesia”. Essas histórias
se juntam à identidade do poeta. Por outra forma, na poética
cabralina, a circunstância social e histórica do poema se interpenetra
com a própria linguagem que o constrói. Por esse caminho o poeta
traduz Cesário Verde, Carlos Drummond de Andrade, Francis Ponge,
Mallarmé, Valéry e outros. Por ele também pratica a traição. Isto é, ele
se afasta propositalmente de muitos poetas, marcando seu território
na contramão do lirismo de um Manuel Bandeira, por exemplo.
Concluindo, a edificação de uma educação moldada pela
realidade remete a uma tradição iniciada por Cesário Verde, o poeta
do cotidiano, como afirma Moisés (2008). De Cesário Verde o poeta
engenheiro retoma vários elementos, como por exemplo, a presença
de um sujeito deambulador (O Rio (1953), Morte e Vida Severina
(1954-1955); a dessubjetivação do sujeito que vai ser ampliada até se
tornar uma nova forma de subjetivação (O Engenheiro (1942-1945),
Psicologia da Composição (1946-1947) e a perseguição de um projeto
poético pautado na objetividade e no rigor formal, sem deixar de lado
o trato com a palavra poética. Por tudo isso é possível afirmar que João
Cabral não só leu Cesário Verde como também soube dar continuidade
ao projeto poético ensaiado por aquele, tornando possível a
construção de uma poiesis marcada essencialmente pela arquitetura
- 131 -
do verso que se equilibra via linguagem. Pode se concluir, finalmente,
que a consciência de leitura em Cabral foi fundamental para que a sua
identidade enquanto poeta pudesse ser formada.
Ao fim deste, cabe mais um questionamento: se Alberto Caeiro
e João Cabral revelam rastros do poeta português, não seria de duvidar
a afirmação feita por João Cabral no sentido de negar-se como leitor
de Fernando Pessoa? Não haveria entre esses dois poetas mais
semelhanças do que Cabral desejou evidenciar?
- 132 -
Referências
______. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. São Paulo: Publifolha, 2008.
Introdução
Desde cedo, Cecília Meireles entrou em contato com a morte,
pois perdeu seus pais quando criança e familiarizou-se com as
dimensões profundas da vida. Com isso, a poeta desenvolveu um lado
extremamente reflexivo. “Tais aspectos influenciaram nas escolhas
filosófico-religiosas da autora”. (Marchioro, 2014, p.56) Com isso, ao
refletir acerca do belo, que está presente na natureza, ela demostra
um olhar refinado e detalhado sobre o mundo.
Observa-se em Cecília a manifestação do belo, pelo viés da
imaginação da poesia, o leitor vai absorvendo as imagens que
aparecem no corpo do poema e usa o lúdico para chegar até o belo.
Os esforços do eu-lírico são intensos ao tentar transmitir os sentidos
das palavras. Este, por sua vez, sentirá prazer ou desprazer e isso o
levará ao entendimento intuitivo do belo. Portanto, a beleza é uma
ação construída individualmente, onde o sujeito reconhece algo como
23
Mestranda em Literatura Comparada da Universidade Federal do Ceará-UFC.
- 134 -
belo através da faculdade da imaginação. Assim, segundo as palavras
de Kant:
- 135 -
Aqui a representação é referida inteiramente ao
sujeito e na verdade ao sentimento de vida, sob o
nome de sentimento de prazer ou desprazer, o que
funda uma faculdade de distinção e ajuizamento
inteiramente peculiar, que em nada contribui para
o conhecimento, mas somente mantém a
representação dada no sujeito em relação com a
inteira faculdade de representações, da qual o
ânimo tornar-se consciente no sentimento de seu
estado. (KANT, p.38, 2012)
- 136 -
gosto é um ato contemplativo e destituído de conceitos, visto que é
ato subjetivo e parte do sentimento de ânimo do sujeito.
As representações se envolvem de nobre lirismo, através de
comparações, metáforas e símbolos que partem do sensível para o
espiritual. Por conseguinte, fazem parte do processo de identificação
do Absoluto (divino) na obra de Cecília Meireles, o que nos liga ao
sublime de Kant.
Do ponto de vista literário “a imagem poética ilumina com tal
luz a consciência que é em vão procurar-lhe antecedentes
inconscientes. [...] a fenomenologia tem boas razões para tomar a
imagem poética em seu próprio ser, como uma conquista positiva da
palavra” (BACHELARD, 2006, p. 3).
Compreende-se que é patente nas poesias de Cecília Meireles
esse enigma direcionado ao belo e ao sublime kantiano, pois os
sentimentos se mostram vagos e interiorizados no sujeito. A poesia
desemboca em um “jogo de sombras”, visto que a complexidade das
suas obras é como um labirinto, onde não há uma só solução para o
que é proposto pela poesia-jogo de Cecília. Pode-se perceber isso no
poema que segue:
- 137 -
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
(MEIRELES, 2001)
- 138 -
Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
(MEIRELES, 2001)
- 139 -
“figura de contradição” (GIACOIA, 2006, p. 21), que surgiria da
admissão da possibilidade de intuição de um objeto, antes mesmo
desse objeto nos ser dado a um dos órgãos dos sentidos e unicamente
no intelecto, aventando a possibilidade de solução com o argumento
que se segue”
Nesse caminho se podem apontar o tempo e o espaço como
norteadores das possíveis primeiras sensações do belo e do sublime.
Vejamos a diferenciação entre intuição empírica e intuição a priori que
Kant faz:
- 140 -
Entretanto, “se uma determinação do sentimento de prazer ou
desprazer é denominado sensação, então esta expressão significa algo
totalmente diverso do que se denomino a representação de uma coisa
(pelos sentidos, como uma receptividade pertencente à faculdade do
conhecimento),sensação”. (KANT,p.42,2012)
Ao conhecer, com antecedência, a sensação o sujeito estará
condicionado a ter uma opinião antecipada acerca deste. Com isso, o
filósofo diz que os meios dos sentidos (olfato, paladar, audição, tato e
visão) são objetivos. “Leis necessárias que são válidas para todos os
casos e todas as inteligências” (DELBOS, 1969, p. 279)
Por outro lado, a sensação que deles é sentida, se mostra
subjetiva. Na voz de Kant vê-se, por exemplo, que “a cor verde dos
prados pertence à sensação objetiva, como percepção de um objeto
do sentido; o seu agrado, porém, pertence à sensação subjetiva”.
(KANT, p.42,2012).
E, por fim, a complacência no bom, que é mediada pela razão.
E, também, ligada ao interesse. O bom é influenciado por infinitos
conceitos. Nesse sentido é feita mediante a reflexão e na construção
de ideias. Conceituar o objeto apreciado e julgá-lo de acordo com seus
conhecimentos de mundo. “Pois o bom é o objeto da vontade (isto é,
de uma faculdade da apetição determinada pela razão)”.(
KANT,p.45,2012)
O próprio Platão também argumentava sobre o Mundo
Sensível (o mundo percebido pelos cinco sentidos). De acordo com
- 141 -
Silveira para “Platão [...] os conceitos éticos e estéticos, como de
Justiça, de Virtude e de Beleza, também são objetos do Mundo das
Idéias”. (2002, p.29)
Mas Kant vai além, pois funde dois princípios fundamentais do
pensamento filosófico moderno: o mecanicismo e o subjetivismo.
Nesse sentido cria uma substância racional de mundo que, por outro
lado, se resolve em puras relações. Com isso, a existência humana
também se divide em dois espaços: o mundo empírico, chamado de
fenomênico, sujeito às leis da mecânica; e o mundo da coisa em si, que
é racionalmente incognoscível. Fernandes (2007, p.87) completa:
- 142 -
uma possível compreensão de mundo onde há uma realidade
primordial, ou seja, o Absoluto” (MARCHIORO,2014, p.16)
Mas o desejo de Cecília pelo desprendimento dos vínculos
terrenos lhe dá um olhar mais amplo sobre o homem e sua existência.
Nessa perspectiva, Cecília tal como Kant possui uma proposta poética
voltada para a ascensão universalizante, visto que os poemas mostram
a desmaterialização do homem que vaga em dimensões do espírito na
busca de grandezas metafísicas.
Grosso modo, pode-se dizer que Immanuel Kant coloca o juízo
de gosto dentro de um contexto livre e desinteressado, evidenciando
um mundo poético, de tempos e espaços, que garante uma
temporalidade do desapego dos aspectos cronológicos e alcançando o
sentimento lírico de efemeridade de Cecília Meireles.
Nessa perspectiva, a primeira comparação possível que
podemos fazer acerca da filosofia Kantiana em Cecília Meireles, é a
observação do afastamento de qualquer identificação com a matéria
imediata, vista como limitadora.
Compreende-se que, nos textos poéticos de Cecília Meireles, o
assunto primordial é a fugacidade do tempo, tendo como causa basilar
o instinto que o eu-lírico possui de buscar a eternidade e o
transcendente. “Para evocar o passado em forma de imagem, é
preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor
ao inútil, é preciso querer sonhar”. (BERGSON, 1999, p.90)
- 143 -
E este “sonho” de poeta estende-se ao mencionado filósofo,
que observa a matéria como uma correspondência para um mundo
abstrato, onde é uma substância-tida a priori - que conduz o ser além
dele mesmo, ou seja, conserva um sentido figurado daquilo que o
pensamento quer realmente manifestar.
Assim o sentido “filosófico” de Cecília Meireles origina-se das
tentativas de buscar uma definição para os fenômenos da vida. E a
poetisa tem consciência da transitoriedade da existência. Para esta a
poesia se alcança como uma substância inconstante e
incompreensível: delicada matéria transcorrida pelo tempo.
Em O Motivo da rosa compreende tal pensamento:
- 144 -
Percebe-se que, nos versos anteriores, o eu lírico oferta à rosa
seus olhos – abrindo o campo da beleza – e perpetua o belo presente
na rosa por meio do poema. Com isso, depois do encontro com a
beleza, é invadido pela consciência das deformidades e limitações
deste mundo material e concede os versos do poema como condição
de superar os caminhos dolorosos do tempo. A voz poética mostra
compreender o breve percurso natural da vida.
Nota-se a influência da ideia do belo e do sublime Kantiano,
onde se visualiza a elevação dos valores individuais, a categoria
universal e o isolamento do mundo para proporcionar um estado
contemplativo das coisas.
Por mais afastado que esteja o ser de um poeta, ele tenta
repetir para si mesmo a criação, continuar, se possível, a exageração.
Então, a associação não é mais encontrada, suportada. É procurada,
desejada. É uma constituição poética, especificamente poética.
(BACHELARD, 1998, p. 257). Vejamos no Poema das súplicas essa
vontade de ser uno:
- 145 -
Para tanto, esta preconiza a suspensão do tempo. Como algo
que não existe começo nem fim. Mas só existe:
- 146 -
no sujeito que não se encontra na natureza, mas no espírito. Vejamos
nos versos:
- 147 -
lírico, sendo simbolizado pela música, mar, e encontrado no confronto
do eu-lírico consigo mesmo”. (MARCHIORO, 2014, p.80).
Assim, “do ponto de vista da conceituação filosófica, portanto,
há uma dupla abordagem que repõe o sublime entre o equilíbrio ideal
e um movimento que ultrapassa a razão, que toca o seu limite,
violentando-a: felicidade e infelicidade”. (SIMPSON, p.157). Vejamos
no poema Motivo:
- 148 -
Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: "um símbolo é muito
mais do que um simples signo: transporta para lá da significação,
depende da interpretação e, esta, de certa predisposição. Está
carregado de afectividade" (CHEVALIER, GHEERBRANR, s/d, p. 13).
Porém, compete ao ser humano a chave para decodificar o
mistério (disfarçado de símbolo), para acessar o divino (sublime). No
Poema da ternura Cecília deixa visível o sublime como algo não
humano:
Se tu fosses humano,
As minhas mãos
Viveriam tecendo
Carinhos e sedas,
Para te darem trajes prodigiosos
De lenda...
Se Tu fosses humano,
Os meus olhos andariam acesos,
Noite e dia,
E tão postos em Ti
Que brilharias todo,
Como quem se houvera coroado
Com o sol...
(MEIRELES, 2001)
- 149 -
Nesse contexto a sua poesia se volta a um estado de
contemplação tanto do belo como do sublime. “Assim, mediante o
conceito de “coisa-em-si”, Kant pretende resolver a aparente
antinomia, ou, “figura de contradição” (GIACOIA, 2006, p. 21), que
surgiria da admissão da possibilidade de intuição de um objeto, antes
mesmo desse objeto nos ser dado a um dos órgãos dos sentidos e
unicamente no intelecto, aventando a possibilidade de solução com o
argumento que se segue”
Assim, para diferenciarmos o belo do não belo, Kant diz que se
deve, antes, expor a capacidade de representação do objeto, que não
se evidencia a partir do olhar objetivo, mas pela faculdade da
imaginação do sujeito.
“O sublime religioso se situaria, assim, em função da humildade
da fé, em vez do medo angustiado. Kant o definiria também a partir de
um respeito por nossa destinação, pela ideia de humanidade, e que
deve ser buscado “somente em nós”, movimento do espírito como
possuído por uma finalidade subjetiva, quer seja do poder de conhecer
ou desejar”. (SIMPSON, 2012, p.157)
Com isso entende-se que para Kant “o juízo é, pois, constitutivo
do objeto e, ao mesmo tempo, permite a unidade da consciência; é
apreendendo o objeto que eu me apreendo como sujeito”. Essa
reinvenção é constante e fugaz, pois na busca do que queremos a
partir de nossa vontade o próprio sujeito se refaz e entende o seu
interior. Nos versos a seguir percebe-se esse fato:
- 150 -
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.
[...]
(MEIRELES, 2001)
- 151 -
Nesse sentido, o belo, em Kant e Cecília, sugere uma finalidade
sem a ideia de fim. Noutras palavras: a beleza alcança uma finalidade
que não procura. Já que o belo é visto como algo que não é
intencionado a acontecer, não há começo nem fim ou tempo
determinado. Portanto é algo sem rumo definido. Mas é uma
manifestação de um instante do qual permanece dentro daquele que
o percebe. A poesia de Cecília compreendia essa sensação de
mutabilidade e fragmentação do ser humano:
Tu tens um medo:
- 152 -
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
[...]
(MEIRELES,2001)
- 153 -
Mas, nesta aventura do sonho exposto à
correnteza,
Só recolho o gosto infinito das respostas que não
se encontram.
(MEIRELES,2001)
- 154 -
está ligado ao equilíbrio, ou seja, o entendimento harmônico com os
sentidos. Por sua vez o sublime causa uma inquietação dos sentidos,
pois estes percebem o objeto de maneira ampla e se deparam com o
divino. Mas tanto os belos como o sublime usam a habilidade
imaginativa e desapegada do mundo material.
Destarte, percebe-se que nos poemas cecilianos como: O
motivo da rosa, Poema das súplicas, Mar absoluto, Viagem e Motivo
há a noção de belo e sublime no pensamento kantiano, onde o belo se
dá a partir da apreciação que cada ser humano faz de algo: belo é a
apreciação da natureza exterior das coisas e o sublime a contemplação
da grandeza de um objeto que se percebe na natureza interior do
espírito do sujeito, onde o tempo e o espaço são os mediadores.
- 155 -
Referências
- 156 -
GOUVÊA, Leila V. B. Pensamento e "Lirismo Puro" na Poesia de Cecilia
Meireles. São Paulo: EDUSP, 2008.
- 157 -
LÔBO, Yolanda. Cecília Meireles. Editora Massangana. Recife: 2010.
- 158 -
O caminho do herói: o phármakon em Tristão e Isolda
Introdução
Cabe começar este capítulo com algumas indagações acerca do
herói: por que o herói, em quase todas as narrativas, nunca é
associado a uma figura paterna? Por que seu caminho é o do êxodo?
Por que tentando remediar os desacertos do mundo a sua volta, acaba
por deslocá-los ao invés de eliminá-los? Por que em seu processo de
busca, às vezes, deixa decair sua nobreza, mostrando um lado
condenável? Por que sua vida é também um percurso da morte? Todas
estas questões têm uma única resposta: o caminho do herói é o
caminho do phármakon.
A palavra acima, proposta por Derrida (1991) no livro A
farmácia de Platão, conceitua a estrutura e os efeitos da escritura,
que, destituída da presença do logos, segue em deslocamento
contínuo, no qual suas forças internas de remédio e magia ocultam sua
identidade, ou melhor, conferem-lhe uma não identidade, cujo efeito
é sempre o caminho de vida e morte. Todavia, aqui a utilizaremos
sobre outro prisma, não apenas para retratar a escritura como um
todo, mas para observá-la sob a representatividade do herói. Para
melhor exemplificar isto, abordaremos o livro Tristão e Isolda escrito
- 159 -
por Bédier (2006) e o filme homônimo dirigido por Kevin Reynolds
(2006), demonstrando como o caminho do herói é o caminho do
phármakon.
Bédier e Reynolds não são os criadores deste mito celta, na
verdade, este mito teve início em canções trovadorescas, passando
por releituras em poemas, ópera, enfim, foi (re)exposto e (re)moldado
por diversas linguagens, contendo pontos diferentes em cada versão.
Nesse sentido, nas obras literária e cinematográfica por nós
selecionadas são notórias as diferenças, todavia, elas não se devem
apenas pela diferença dos suportes, mas principalmente por se
tratarem de propostas diferentes. No livro de Bédier (2006), o herói
está num plano fantástico, no qual a magia interfere no desencadear
da história; já no filme de Reynolds (2006), o herói está num plano
mais realístico, há uma tentativa de determinar que aquela seja uma
“história real”, ou seja, de desconstruir o mito.
Entretanto, mesmo com uma simbologia diferente, o caminho
percorrido pelo herói é o mesmo. Tristão perde os pais, sai de sua
terra, serve ao rei Marc como bom vassalo, arrisca a vida, é curado por
Isolda, apaixona-se perdidamente por ela, a paixão é proibida, Isolda
fora conquistada pelo herói para que se tornasse rainha do rei Marc, o
herói trai seu rei e morre. Então, observaremos as diferentes
representações do herói no caminho do phármakon, no qual ciência e
magia revelarão que embora possam sanar uma doença, também
podem criar uma, pois, o percurso do phármakon resulta em dois
- 160 -
efeitos: um benéfico e outro maléfico, porém, segundo Derrida (1991),
nem mesmo a virtude benéfica o impede de ser doloroso, como um
filtro está destinado alterar a luz, ou seja, é fonte de deslocamento
ontológico de quem o percorre, pois neste caminho o herói é rei e
escravo ao mesmo tempo:
- 161 -
obra do destino fora raptado em seu país, e, depois entregue à sorte
do mar, acabou aportando nas Cornualhas, onde fora apresentado ao
seu tio materno ainda como um vagante desconhecido, e, enfim,
quando os laços sanguíneos são revelados descobre uma nova
representação paterna. Diferentemente do livro, na adaptação
cinematográfica do diretor Kevin Reynolds (2006), Tristão tem parte
de sua infância assistida por seus pais, todavia num dia em que as
tribos celtas decidem assinar um tratado para estabilizar a situação da
Grã-Bretanha, a Irlanda os ataca. Tristão sobrevive, mas seus pais
morrem. Então, lorde Marc o abriga em seu coração como a um filho.
Mesmo com versões diferentes sobre a perda de seus pais, é para
tentar remediá-la, que o órfão, mesmo sem o saber, inicia a busca pelo
phármakon. Sendo este inicialmente um processo de procura, o que
se dará é o deslocamento do herói, ele percorrerá o caminho de
desorientação, pois suas ações não serão para o simples cumprimento
da palavra do rei Marc, embora seja esse o seu desejo inicial.
Na obra A farmácia de Platão, Jacques Derrida (1991), ao
analisar a origem e estrutura da escritura, demonstra que ela é um
descaminho, pois “Começa-se por um repetir sem saber ─ por um mito
─ a definição de escritura: repetir sem saber” (DERRIDA, 1991, p.18).
Isto é, comparada ao discurso racional que tem por suporte um pai
presente, que o profere e lhe testifica a veracidade, a escritura segue
o caminho inverso, pois só existe na ausência do pai. Logo, não tem
origem e está desatrelada do presente, corre solta num tempo
- 162 -
múltiplo que se esvazia e se enche de diversos contextos a cada
deslocamento no espaço em que é repetida. Mas, para, além disso,
esse “repetir sem saber” é um processo de procura, de tentar
preencher a ausência de um pai, para recriá-lo, pois embora a escritura
tenha por especificidade a ausência do pai, ela também deseja quem
a reconheça. Quando em A farmácia de Platão, Derrida (1991) retoma
o mito do deus da escritura, o deus Theuth, demonstra que este ao se
dirigir ao deus dos deuses para apresentar sua técnica (escritura)
afirma que ela será o remédio para memória e instrução, mas o deus
dos deuses, como rei da fala, a condena, pois insiste que a escritura
não serve para memória e sim como uma recordação, assim estaria
longe do plano da experiência, cuja fala tem pertencimento. No
entanto, isto nos revela que a escritura também é uma forma de suprir
a ausência da fala (pai/lógos). Seria uma forma de recordá-la sem a sua
força presente, seria uma forma de representá-la. Com isto,
percebemos que a relação da escritura com a figura do pai se dá de
três formas: a perda do pai, a representação do pai perdido para
conferir valor a si e a supressão do pai.
Tristão, então, por ter perdido o pai por morte violenta, e,
mesmo tendo tido um pai adotivo, sofreu com a drástica ruptura
genealógica, perdendo o contato presente com pai e com isto a
memória dessa relação. Logo, o herói parte do que seria o descaminho,
a recordação criativa que é seu único meio de representar um pai. Ele
é um mito de busca pelo pai (discurso racional, lógos), ele procura uma
- 163 -
fala que lhe testifique seu valor: “A figura do pai, sabe-se, é também
aquela do bem (agathón). O lógos representa isto ao que ele é
devedor, o pai que é também um chefe, um capital e um bem. Ou
antes, o chefe, o capital, o bem” (DERRIDA, 1991, p.26). Na obra
literária, Tristão cresceu como filho de um escudeiro, quando na
verdade era rei do país de Loonnois, viveu em sua terra como servo
daquele que assassinara seu pai. E, depois nas Cornualhas, país em que
seu tio, ainda não reconhecido, reinava, Tristão é encontrado por seu
pai adotivo, Rohalt, que prova sua estirpe real e seu laço sanguíneo
com o rei das Cornualhas: “─ Rei Marc, este é Tristão de Loonnois,
vosso sobrinho, filho de vossa irmã Blanchefleur e do rei Rivalen. O
duque Morgan governa sua terra muito injustamente; é hora de ela
voltar ao seu herdeiro de direito” (BÉDIER, 2006, p.7). No filme, Tristão
sabe da sua linhagem, não é filho de um rei, e sim de um nobre, mas
além da perda do pai, perde também sua terra e torna-se vassalo do
rei Marc, que mesmo sem o laço sanguíneo o ama como a um filho.
A ligação entre o livro e o filme está no fato de Tristão desde
criança sofrer a intervenção do phármakon, perdendo ao mesmo
tempo um modo de discurso, um valor e a identidade. Por isto, tenta
encenar o pai, sobretudo, um que o valorizasse, na figura do rei Marc,
que representa o resgate de sua origem, que pode conferir a ele o
status de lógos, afinal o rei faz cumprir as leis e as dita, tendo por base
um discurso racional, no qual a honra e o dever demonstram sua
essência. Isto denota duas coisas: a primeira é que Tristão e o rei Marc
- 164 -
representam discursos diferentes, o primeiro está na ordem do
emocional e o segundo está na ordem do racional; e a segunda é que
estas instâncias distintas produzem efeitos contrários ao desejo do
herói. Infelizmente, suas tentativas de provar que o amor que sentia
pelo rei não era fundamentado no desejo de angariar riquezas, e de
tentar sempre cumprir as ordens deste como vassalo, o levam a um
caminho sem volta, cujo efeito a ele destinado é o oposto do que
desejava:
- 165 -
E, este descaminho do herói irá se desenrolar à medida em que
se afastar do pai, ultrapassando o limiar entre o conhecido e o
desconhecido, provando numa sucessão de eventos os efeitos do
phármakon. No livro o herói fará uma travessia, envolto por uma
atmosfera mágica, mostrando-se quase um deus. No filme também
será testado, mas numa atmosfera em que um desatino seu custará a
vida de um povo como escravo e a morte de seu rei. Mas em ambos o
herói trará sobre si um fim trágico, pois sendo o seu caminho o do
phármakon jamais terá um relacionamento simples na domesticidade
do lógos.
- 166 -
A travessia do limiar e o retorno: os efeitos do phármakon
O phármakon é o caminho do êxodo, pois conduz o herói para
fora de seu círculo social. Segundo Joseph Campbell (2007) em seu
livro O herói de mil faces sobre os arquétipos míticos, todo herói tem
um chamado, e, quando o aceita, é transportado para uma terra
desconhecida, na qual figuras e forças ambíguas tornar-se-ão parte de
seu novo caminho, e o farão conhecedor de si. E, em A farmácia de
Platão Derrida (1991) afirma que o phármakon incompatível com a
verdade leva os homens para fora de si. Os dois argumentos denotam
que o phármakon de certo modo é o caminho da autoaniquilação, em
que o herói abre mão de si. Mas tratando-se do herói de Tristão e
Isolda este descaminho da identidade, por vezes aparece de forma
dúbia, pois está sempre disposto entre o ir e o ficar. O herói desde o
início de sua jornada já está no plano do phármakon, mas também não
abre mão do lógos, pois tende sempre a se voltar para a figura do rei
Marc.
Diferentemente do lógos que parte do interior para o exterior,
do pai para o filho, de quem profere para o proferido, o phármakon
parte de fora para dentro. É considerado por Derrida como uma
substância artificial, não natural. Ele representaria, pois, na obra de
Bédier (2006), as formas ambíguas que perfazem a trilha do herói que
na maioria das vezes aparecem sobre o invólucro de uma força
benigna. Acolhidas como sendo uma espécie de solução para seu ser,
essas forças na verdade têm também um efeito destrutivo, pois a
- 167 -
desconstrução da identidade e sua contínua transformação é um
processo doloroso, no qual o phármakon, remédio e veneno ao
mesmo tempo, conferem ao herói força e fraqueza, o eleva ao status
de um deus e também o condena a uma forma terrena e trágica,
fazendo-o transitar entre dois mundos.
Na obra literária, Tristão, ao selar o pacto de vassalagem com
o rei Marc – “Ao rei Marc, deixarei meu corpo; sairei deste país,
embora ele me seja muito caro, e irei servir ao meu senhor Marc nas
Cornualhas”. (BÈDIER, 2006, p.8) –, cria para si o percurso diferente,
no qual forças mágicas irão operar. Por duas vezes se coloca em perigo,
tudo para provar seu valor, para tentar recriar em sua vida a
luminosidade do lógos. Todavia, sem o saber, sua trilha o conduzia
para o afastamento da figura paterna, pois “ciência e magia, passagem
entre vida e morte [..]” (DERRIDA, 1991, p.38), o apresentariam àquela
que conduziria seu destino. Quando Morholt, o gigante guerreiro da
Irlanda, fora subjugar o povo das Cornualhas, ameaçando-o a pagar
tributo humano, trezentos jovens que se tornariam escravo, dizia
“Então, belos senhores cornualheses, já que este partido vos parece o
mais nobre, sorteai vossos filhos e levá-los-ei! Mas eu não acreditava
que este país fosse habitado só por escravos”. (BÉDIER, 2006, p.10),
Tristão levantou-se e decidiu combatê-lo para libertar o povo e provar
ao rei seu valor. Ele e Morholt, cada um em seu barco, saem das
Cornualhas e rumam a uma ilha. Morholt amarra seu barco, e fica
perplexo quando percebe que Tristão não amarrou o seu, e então
- 168 -
pergunta qual o motivo disto, ao que Tristão responde: para quê se
apenas um de nós retornará. O herói vence a batalha, todavia ferido
pela lança envenenada de Morholt sofre com seus efeitos, sobretudo,
o fato da ferida exalar um cheiro pútrido que afasta até mesmo o seu
rei. Não encontrando cura pede que seu tio lhe prepare um barco:
“Quero que ele me leve para longe, sozinho. Para que terra? Não sei,
mas talvez para onde encontre quem me cure. E talvez um dia servir-
vos-ei ainda, bom tio, como vosso harpista, vosso caçador e vosso bom
vassalo” (BÉDIER, 2006, p.13). Observando essa síntese sobre a
travessia de Tristão, percebemos dois pontos importantes: o primeiro
é o fato de todos em sua volta e até mesmo o rei serem considerados
escravos por Morholt, isto denota o quanto o lógos é um caminho
fixado, no qual nem mesmo quem o profere (o rei) tem o poder de
mandá-lo para longe de si, para enfrentar a morte, afinal, o lógos é o
caminho da vida, “os entes-vivos, pai e filho, anunciam-se a nós,
relacionam-se mutuamente na domesticidade do lógos” (DERRIDA,
1991, p. 26), isto é, nele há uma relação de dependência; o segundo
ponto é o fato de que o caminho do phármakon é uma entrega à
morte, pois o “deus da linguagem segunda e da diferença lingüística,
Thot só pode se tornar o deus da fala criadora por substituição
metonímica, por deslocamento histórico e, por vezes, por subversão
violenta” (DERRIDA, 1991, p.34), todo esse processo é de morte, e
somente ele garante que o herói possa seguir para um mundo mais
amplo.
- 169 -
No filme, Tristão luta com Morholt, mas não sai das Cornualhas
para isso, na verdade o combate é uma resposta quase que tardia, pois
o guerreiro da Irlanda já levava os escravos. Quando o herói o
enfrenta, numa luta nada fácil, acaba ferido pela espada de Morholt
que tinha a lâmina envenenada. Os fatos são parecidos no livro e no
filme, todavia Tristão é posto em um barco, não por esperança de
encontrar uma cura, mas num rito fúnebre, pois fora dado como morto
por seus companheiros e sequer teve a oportunidade de se despedir
de seu rei. Este quando soube da morte de Tristão, perguntou-se se
teria o amado como um filho ou apenas o tinha usado para seus
propósitos. Entretanto, embora o herói do filme não tenha se apartado
de seu mundo para enfrentar sua primeira prova, ele também foi
entregue ao mar, ao destino.
Derrida afirma em sua análise que o deus da escritura também
é o deus da morte. O fato é que a escritura é em si um jogo de morte
e vida, no qual o poder está no simulacro, ou seja, uma casca que se
assemelha a uma referência viva do real, mas sua parte interna não
está no âmbito da realidade, não é aquilo a que se assemelha. Sempre
enfatizando o veneno que é o phármakon, “Ele fez um veneno passar
por um remédio” (DERRIDA, 1991, p.45), o autor nos faz refletir que,
embora o caminho do phármakon possa salvar, remediar uma doença,
ou uma situação, ele não é menos doloroso por isso. Assim, o herói
conhecerá a figura da deusa que cria, preserva e destrói a um só
tempo, conhecerá Isolda a mulher que será o seu todo na história.
- 170 -
Em terras inimigas o herói foi curado por Isolda, a bela dos
cabelos de ouro, filha do rei da Irlanda, pois ela detinha o
conhecimento sobre os filtros de cura: “Mesmo que esteja morto, e só
um phármakon pode deter tal poder sobre a morte, sem dúvida, mas
também em conluio com ela. O phármakon e a escritura são, pois,
sempre uma questão de vida ou de morte” (DERRIDA, 1991, p. 52).
Portanto, o herói tendo sentido o efeito de seu deslocamento
(phármakon) ficará à mercê de outro que o curasse, e quando sentir o
veneno deste que foi cura, procurará outro. Por fim, o que se tem,
quando se trata das virtudes do caminho do phármakon, é o espaço
vazio em que reverbera o movimento atroz do seu conflito. E, é este
simulacro onde os contrários se movem e trespassam um ao outro,
que o torna detentor de poder sobre a morte, capaz de trazer à vida o
morto. Então, tendo em vista que o que sempre se acha em sua
jornada é contrário do que se busca como afirma Derrida “seu desenho
é tal que, por uma indecisão sistemática, as partes e os partidos
trocam frequentemente seus respectivos lugares, imitam formas e
servem-se dos caminhos do adversário” (1991, p.55), o herói decerto
não encontrará bem a cura, e sim o fator entorpecente do caminho
phármakon, que manipulará ardilosamente seu destino.
Na adaptação cinematográfica, o herói se apaixona por quem
o curou, Isolda. Há um discurso que mostra o rompimento com o lógos
por parte de Isolda. Ela não quer obedecer ao pai casando-se com
Morholt, que ela descobrirá depois fora morto por Tristão, o homem
- 171 -
que ela curara e amava. Porém, por receio de que descobrissem seu
amante, diz que ele deve fugir, para não ser morto. E, então, Tristão
se vê obrigado a fugir, e sem o saber carrega no peito o nome falso,
que Isolda lhe ofertara como identidade. Quis ela remediar o problema
dos contrários, o fato dos dois pertencerem a países inimigos, achando
que isto aliviaria a condição de amantes errantes. Assim, nega sua
identidade. Na obra literária, o herói foge da Irlanda, exatamente pelo
contrário, por saber a identidade da princesa que lhe curou. Mas é
comum às duas artes o fato de Tristão retornar às Cornualhas, como
vindo do mundo dos mortos, ficando sob eterna desconfiança
daqueles que o invejavam:
- 172 -
se tratando desta obra o que percebemos é que o caminho do
phármakon, mesmo que quisesse, não poderia ser combatido, ele não
pode ser alterado, como se quem seguisse sua trilha dominasse o
percurso. Pois como atacar, aquilo que se oculta, que se faz outro, que
se faz o outro do lógos, mas que também é ele mesmo? Não há como,
principalmente se o phármakon estiver no interior de quem anda por
seus desfiladeiros, o caminho torna-se o próprio caminhante. Ora, se
por um lado o herói tentou criar um pai, e para tanto ofereceu seu
corpo para servir ao rei Marc, rogando à memória de seu tio seu valor
como cavaleiro, tendo voltado do mundo dos mortos, conseguira tocar
o coração de seu tio tão definitivamente, que este desejou que ele
fosse seu herdeiro. Por outro lado, a quase morte acabou por lhe
mostrar que essa relação nunca seria simples, sobretudo, com os olhos
agudos dos outros vassalos do rei acusando-lhe de usurpador
feiticeiro. Para sanar o problema, Tristão decide conquistar uma
esposa para o rei, para que ele tivesse um filho legitimo como
herdeiro. Ou seja, ele reconhece o seu não lugar, e que ele não pode
nunca ser um primeiro, sempre estaria a serviço do rei. Afinal, ele está
na instância do phármakon e este é secundário, pois como afirma
Derrida, ele é uma técnica, o rei está na instância da fala, do discurso
racional, todos seguem suas ordens, é um primeiro.
No entanto, o que deveria sanar os problemas, na verdade
tornar-se-á um novo, e, até pior. O herói tonará às terras inimigas, para
conquistar uma esposa para o rei Marc, mas por infelicidade do
- 173 -
destino, ela e ele já se conhecem, ela foi quem o curara. Na obra
literária Tristão retorna à Irlanda com seus vassalos para conquistar
Isolda para o rei, sabendo quem ela era. Como estava em terra inimiga
tinha de arranjar um jeito de conquistá-la sem que isso lhe custasse a
morte dos seus homens, então, ouvindo que a mão dela seria
concedida a quem matasse o dragão que assolava aquela terra, não
hesitou e partiu para o combate. Todavia, guardando a língua do
dragão em suas roupas para ter uma prova de que matara a fera,
sofreu com o veneno e novamente foi parar nas mãos de Isolda para
ser salvo. Isto ocorreu, porque um homem que Isolda sabia ser um
grande covarde havia aproveitado a situação, vendo o dragão morto e
nenhum guerreiro quis tomar os despojos para si. Ele queria tê-la por
esposa, mas ela não deixou se enganar, saíra na busca de algo que
revelasse a mentira do infame cavaleiro, e em sua busca encontrou
Tristão caído. Novamente curara o herói, entretanto nutria ódio pelo
seu nome antes de conhecê-lo, pois ele havia matado seu tio Morholt.
Contudo, o herói mostra-lhe que não havia motivos para esse ódio, já
que ele estava no direito de combate, então ela aceita que ele seja o
campeão, e indo ter com seu pai afirma que o verdadeiro salvador de
sua pátria fora Tristão, e seu pai aceita que o herói a leve para tonar-
se rainha das Cornualhas. Isolda quando descobre que na verdade não
seria o herói seu esposo, fica ressentida, mas aceita seu destino. E tudo
vai bem, até que os dois na viagem às Cornualhas bebem um filtro de
amor. No filme, o herói, irá conquistar a filha do rei em torneio para
- 174 -
que se cumpra um tradado de paz com a Irlanda e a união das tribos
celtas, e por crueldade do destino Tristão acaba conquistando a sua
amada para seu rei. Derrida, analisando a artificialidade do
phármakon, sustenta a ideia de que todo ser vivo comporta prazos de
vida definidos, assim também como uma doença, que em sua
naturalidade também possui uma durabilidade. Então, se
contrariamente se extirpa uma doença antes de seu prazo, dela
surgem outras doenças, assim o problema não é eliminado e sim
deslocado:
- 175 -
do plano de filho para vassalo e de vassalo para traidor do rei. Uma vez
curado no caminho do phármakon, por ele também ficara doente. Se
ele o trouxera à vida, com ele bebera a morte. O phármakon que antes
era o caminho, agora já se infiltrou no discurso do herói e ele não pode
mais ser outro, senão sob a encenação que o phármakon lhe permite.
Contudo, nesta nova perspectiva o herói terá de escolher preservar o
que lhe resta do lógos ou abrir mão do amor pelo rei para ficar com
Isolda. Assim, ele passará do herói de uma causa de um povo, para
tomar o aspecto dos romances de cavalaria, sempre tentando unir-se
a sua dama, tentando mantê-la num véu de pureza, tentando manter
seu amor numa idealização sagrada. Viverá dividido entre o amor e o
dever.
O filtro e a tragédia
O phármakon é um caminho, uma substância e uma identidade
para o herói, nas releituras aqui analisadas. Como caminho, implica
deslocamento; como substância, implica efeitos colaterais não
esperados; e como identidade, revela a desconstrução do sujeito em
relação a sua identidade de origem, que primeiro é social e
dependente. Assim, ele participa do que é visível e invisível, do corpo
e da alma. Quando na obra literária e na adaptação cinematográfica
Isolda entra na vida de Tristão, ela desencadeia uma transformação
espiritual e física no herói. Ela representa a entidade que está do outro
lado, que deveria ser o oposto, mas, na verdade, ela é o outro do herói.
- 176 -
Isolda tem conhecimento da alquimia, deseja afastar-se do pai, e, não
menos importante, pertence a uma terra inimiga. Na obra literária,
quando os dois bebem do filtro de amor achando que era vinho, a
camareira de Isolda, que deveria ter guardado a bebida que era para
selar a união de sua senhora com o rei Marc, diz: “Desgraçada! Maldito
seja o dia em que eu nasci e maldito seja o dia em que subi nesta nau!
Isolda, minha amiga, e vós, Tristão, foi a vossa morte que bebestes!”
(BÉDIER, 2006, p. 30). Este trecho retrata o phármakon como
substância que sai do controle, ela ao invés de trazer a cura, serve
apenas para confirmar a doença, isto é, Tristão e Isolda já estavam
apaixonados, a bebida só os fez reconhecer o sentimento:
- 177 -
agonias do amor, enfermidade que os médicos não podem curar,
feridas que só podem ser curadas por quem as provoca. O amor
representaria para eles o apego individual: se a Igreja, na época,
pregava e impunha condutas, cujo principal efeito era o sustento da
sociedade, o trovadorismo fazia o caminho contrário, colocava o
indivíduo no centro. Na obra literária, a poção contribui para que o
próprio amor seja visto como phármakon. Por sua força oculta, ele
surge de um encantamento, mas isto, além de carregar a simbologia
de sua força, é também um artifício para justificá-lo ante a religião
cristã que condenaria esse tipo de amor. No filme, não há poção,
exceto os remédios usados por Isolda para curar Tristão. Eles
apaixonam-se sem o artifício da magia. O que é comum, em ambas as
linguagens, é o efeito que o amor provocará na vida dos amantes, uma
oposição entre o lógos e o phármakon ocasionando a tragédia, pois o
herói, voltando à presença do rei, tentará manter os dois discursos.
Sobretudo, tentará mover o que em essência não possui identidade,
para o campo da identidade.
Quando Derrida lança mão deste conceito de phármakon, a
discussão gira em torno de esquemas binários: fala/escritura,
escritor/leitor, dentro/fora, remédio/veneno. Mas o fato é que o
phármakon ultrapassa estes limites, ele não pode ser definido nem
mesmo por pares opostos, pois “não tem nenhuma identidade ideal,
ele é aneidético, e primeiro porque ele não é monoeidético [..]”
(DERRIDA, 1991, p. 73). Mas ele nem sempre está em oposição, e, às
- 178 -
vezes, sob uma aparência maléfica, pode ter um efeito bom. O seu
lado nocivo existe apenas quando, por ingenuidade, tentamos
dominá-lo como um conceito simples, pois o seu sistema é complexo,
e, embora seja um elemento artificial, seus efeitos participam no ser
de quem os experimenta. Ele tem um poder de repetição, que pode
duplicar a causa do sofrimento; não é somente um remédio, ele
extirpa mal de um local, mas, irreversivelmente, multiplica a doença,
ou a torna mais forte na medida em que a desloca. O herói ao analisar
seu percurso confessa:
- 179 -
ações diversas que sempre mudam, nada nele é fixo, exceto o fato de
representar fatos que se encadeiam contra a experiência comum,
contra o lógos, capaz de suscitar no pai o temor, o terror e a
compaixão. Na obra, a força do phármakon em todas as formas e
simbologias representadas reside na tragédia. Aristóteles (2011)
afirmava que a tragédia transpunha os limites dos caracteres que
qualificam o homem em bom ou mal, para nos revelar os sintomas de
suas ações: infelicidade ou felicidade. Entretanto, nas releituras aqui
analisadas essa fronteira entre os sintomas inexiste: a felicidade do
herói também é sua tristeza, e sua tristeza é sua felicidade, uma não
existe sem a outra, o phármakon é sempre em causa e feito colhido
como mistura. Por estes atributos, o herói consegue enganar o lógos
até mesmo quando repete seu discurso. Isto se torna claro no capítulo
nove, intitulado “O grande pinheiro”, no qual Tristão e Isolda,
percebendo que o rei estava de tocaia na floresta tentando flagrá-los
em sua traição, criam um discurso em que a mentira passa por
verdade, eles deslocam sua culpa de tal maneira que o rei se sente
envergonhado pela suspeita. No capítulo doze, “O julgamento pelo
ferro em brasa”, os amantes usam o sistema de julgamento do lógos
para afirmar a inocência de Isolda. Neste julgamento Isolda deveria
jurar que não tinha amor que fosse reprovável pelo herói, e, colocar as
mãos no ferro em brasa, se saísse ferida seria culpada, caso contrário
inocente, então astuciosamente ela avisa a seu amigo para que ele sob
um disfarce de peregrino compareça ao local de seu julgamento, como
- 180 -
ela teria fazer a travessia da barca até a terra, usou a desculpa de que
não queria se sujar de lama, e então foi carregada pelo peregrino
(Tristão), e antes de colocar as mãos em brasa disse: “juro que jamais
homem algum nascido de mulher me teve em seus braços a não ser o
rei Marc, meu senhor, e o pobre peregrino [...]” (BÉDIER, 2006, p. 92).
No filme, quando o rei Marc começa a suspeitar que Isolda
tivesse outro, pede auxílio a Tristão, diz que só poderia confiar nele
para a importante missão, Tristão se compadecendo do rei, afirma que
ela não poderia ser fiel a outro, senão o rei. E decide, pois, afastar-se
de sua amada. Porém, tanto no filme (2006) de Kevin Reynolds, quanto
na obra (2006) de Bédier, mesmo depois de descobertos, o rei, de
certo modo, também lhes é condescendente, ele abre mão da
memória para creditar valor numa imagem captada, numa
representação de um filho. Derrida (1991) observa que quando
Sócrates afirma que a escritura (phármakon) é o filho miserável a
reconhece como aquela que se desvia do pai, mas também explicita a
compaixão por este filho órfão, esta é bem a posição do rei, e decerto
modo é igualmente a posição do herói, que embora queira abandonar
o pai entregando-se à paixão por Isolda, também decide se distanciar
da amada para manter o pai. O que só resulta num final:
desintegração, desmembramento e morte do sujeito. O phármakon é
o caminho da desorientação, pois nele não há devidademente a cópia
do vivo, ele tudo simula, jamais é visto como a repetição do lógos, no
máximo é a repetição morta do vivo, como observamos anteriormente
- 181 -
na passagem supracitada do livro, em que os amantes utilizam a forma
com que o rei (lógos) faz seu julgamento, para enganar: fazendo o
morto se passar por vivo, ou seja, nele há simulação do vivo, quando
na verdade está no plano da morte.
Morte. Talvez este seja o todo pelo qual o herói caminha, pois
seu amor por Isolda é a morte do dever. No final do filme (2006)
Tristão, observando que seu amor seria culpado pela queda do rei
Marc (lógos/pai), deixa Isolda no rio e retorna para junto do rei, pois
afirmava que se fosse embora com ela, seu amor seria manchado pelas
circunstâncias, e, perderia totalmente o afeto de seu rei. Retornando
para salvar o rei, Tristão é gravemente ferido, entretanto consegue
salvar o rei e seu reinado. Levado para as margens do rio, para dar seu
derradeiro pulsar, o rei Marc se despede e diz “tenho de ir sou o rei, o
dever me chama”, o que denota a força vital de seu discurso, ele
embora tivesse um tempo de vida na terra, não poderia deixar-se
arrastar pelo caminho do phármakon. Ele tinha de agir no presente
com a verdade e o cumprimento dela, o dever. É interessante observar
o cenário neste momento, por que o herói poderia ter morrido antes
de chegar às margens do rio, no entanto, enquanto as águas passam
numa correnteza forte é que de se dá a despedida. As águas do rio são
de certo modo como o herói, embora tenha um simulacro fixo seus
significados mudam, nunca é a mesma água. O herói tem seus
caracteres como lealdade, honra, força, um coração gentil, mas seus
significados estão sempre num movimento plural.
- 182 -
No livro o herói se afasta das Cornualhas e como escrevera
Bédier (2006, p.103): “Os amantes não podiam viver nem morrer um
sem o outro. Separados, não era vida, nem morte, mas a vida e a morte
ao mesmo tempo”. Tudo isto, para tentar manter o lógos, mas até
mesmo louco ele fica, para depois morrer longe de sua terra e sem a
Isolda, esta chega tarde para lhe curar a ferida que fixava o espírito na
ausência de um corpo. Ela deita-se sobre seu amigo morto e recebe o
conforto da morte. Os amantes sempre estiveram na instância da
morte, da desconstrução, pois segundo Derrida (1991) o phármakon é
o caminho do disfarce, da magia que dissimula a morte sob a aparência
do vivo, ele apresenta e abriga a morte. E esse encantamento sempre
cativa a forma do outro, do vivo, pois provoca em nós um efeito
catártico que só pode ser experimentado num momento de
desconstrução.
Considerações finais
Podemos concluir que a história de Tristão e Isolda em suas
inúmeras releituras, e, principalmente, nas duas aqui analisadas, nos
revelou que o herói está sempre no patamar de representações, ele é
sempre um simulacro, um significante liberado do lógos. Não procura
uma origem que lhe adote, entretanto, sempre se dispõe como servo
do, lógos, de um pai que lhe julgue o valor. Com isto, ele pode se
entregar a todas as atividades, simulando ao acaso e não sendo
verdadeiramente nada. Todavia, como significante, é tudo, pois nele,
- 183 -
embora represente a morte desde sua infância, circula o poder de
forças opostas que desempenha o papel fundamental da escritura:
remédio e veneno, um nunca sendo sem o outro, fazem o corpo e a
alma provarem seus efeitos, para torná-lo possível como suplemento
do rei, afinal, é ele quem luta pelo rei e quem lhe concede uma esposa,
embora depois a tome. Ele pode ir além dos limites do rei, que estão
para além do controle do presente do rei Marc.
O caminho do phármakon, mesmo sendo contra a memória,
pois é um suplemento não ligado à experiência do pai, é o único que
pode ser trilhado pelo herói, uma vez que o caminho do rei tem um
limite de tempo e espaço; já o do herói está justamente da perda
destes. Segundo Derrida (1991), o phármakon é um produto artificial
que provoca em quem o ingere não verdadeiramente uma cura, mas
a proliferação da doença, e, mesmo quando traz algum benefício,
ainda provoca dor, mascara tudo, veste-se de outro, brinda a morte,
não tem em si identidade. Porém, é por tudo isso que o caminho do
phármakon é tão atrativo para o herói, e o único a ser trilhado, pois,
ele, apesar de ser um percurso de autoaniquilação, também nos faz
experimentar o que está fora. Ele, mesmo quando envolto num
sistema social, só existe para o indivíduo. Assim, Tristão bebera sua
morte inúmeras vezes, e vivia, quando não numa felicidade infeliz,
numa infeliz felicidade, pois phármakon fora para ele um caminho,
uma substância e sua (des)construção.
- 184 -
Referências
Filmografia
- 185 -
Sobre o sublime no popular: a poesia em quadra de
Fernando Pessoa e Mario Quintana
- 186 -
seus escritos vinculados à poesia moderna, influenciada pelas
tendências modernistas desenvolvidas em Portugal e no Brasil.
Mesmo compartilhando alguns pontos ideológicos em comum
pertencentes à modernidade e ao Modernismo, poucas relações
podem ser traçadas entre os escritos dos dois sem que se lance mão
de um aparato teórico bastante técnico e sofisticado. Entretanto a
poesia de Pessoa e de Quintana, em dois pontos, pelo menos,
apresenta certa confluência clara e facilmente percebida.
O primeiro desses pontos está ligado ao material básico com
que eles trabalham, isto é, ambos, apesar de pertencerem a diferentes
nações, têm a Língua Portuguesa como matéria prima de sua arte –
essa marca pode parecer simples, mas é de suma importância quando
se trata de poesia, isso porque a elaboração do verso parte de uma
estrutura rítmica e sonora que, em si, é um trabalho feito sobre as
características internas, intrínsecas à própria forma do idioma, é isso o
que explica Segismundo Spina: “Cada língua possui, portanto, não só
um ritmo particular, como também uma medida própria. Às vezes,
acontece que a extensão do verso acompanhe as fases evolutivas do
pensamento poético” (SPINA, 2002, p. 101). Os dois poetas −
escrevendo num mesmo idioma, ainda que a estrutura de seus versos
seja inovadora e individualizada − fazem com que essa estrutura
dialogue diretamente com o trajeto histórico poético dessa língua, isto
é, com a memória dos gêneros explorados e perpetuados pelo ritmo
do idioma.
- 187 -
O segundo ponto a ser estabelecido entre Pessoa e Quintana é
aquele sobre o qual aqui nos deteremos, fazendo dele o foco de nossa
discussão. Tanto o poeta português quanto o brasileiro, em momentos
específicos de suas produções, se dedicaram à composição de um
trabalho cuja fundamentação se encontra numa forma estrutural
poética marcada por uma essência popular. De certa forma, esse
segundo ponto de aproximação é uma consequência direta do
primeiro. Acreditamos que a exploração dessa vertente popular
decorre do fato de eles escreverem em Língua Portuguesa, isso porque
o gênero explorado por eles, em suas respectivas obras, é aquele que,
no passado, promoveu uma das mais ricas manifestações poéticas
nesse idioma, trata-se da quadra ou trova.
Tanto contra o livro de Pessoa quanto contra o de Quintana,
houve, por parte de certos críticos, uma manifestação desdenhosa,
postura fundamentada principalmente num ideal de lírica bem
distante daquele que esses dois trabalhos representavam. Entretanto,
numa atitude oposta a essa que tratou com descrédito as duas obras,
tencionamos observá-las a partir de outras perspectivas, tentando
perceber nelas traços de originalidade que derivam justamente
daquela ideologia estética que lhes concedeu tratamento ríspido e
desdenhoso.
O que chamamos acima de “estrutura poética de essência
popular” são poemas escritos em quadra, forma de estrofação em
desuso no mundo contemporâneo, mas que possui uma longa e
- 188 -
sublime história enquanto manifestação cultural nascida na oralidade,
além de ter sido amplamente explorada também nas cantigas escritas
por cancioneiros pertencentes aos séculos XII, XIII e XIV. Depois de seu
apogeu − período em que a quadra migrou da oralidade para a escrita,
sendo nesta amplamente explorada – o gênero foi caindo em desuso
graças, em especial, às novas ideologias e valores estéticos, cada vez
mais seletivos e aristocráticos, norteados por uma visão Clássica a
partir da qual era definido o cânone.
Mais do que uma forma em desuso, a quadra foi recebendo
valores negativos, sendo considerada inferior, ou ainda, uma forma de
pouca literatura, é o que pode ser exemplificado a partir da definição
encontrada no Pequeno dicionário de arte poética, em que Geir
Campos assim a define:
- 189 -
expressão “arte menor” passa a relacionar-se também ao valor
estético desse gênero. Interessante é perceber que, tendo sido Geir
Campos um poeta, suas palavras passam a possuir um valor duplo,
expressando tanto a opinião da crítica quanto a opinião dos próprios
escritores em relação à estrutura definida. É por esse motivo que
muito chama a atenção o fato de dois escritores modernos e
contemporâneos ao modernismo se “aventurarem” numa imersão no
popular, eles desconsideram as tendências e as linhas de força dos
movimentos em que se encontraram inseridos.
A nosso ver, essa atitude pode ser de dois modos
compreendida, no primeiro caso, podemos relacioná-la a um
movimento de oposição às linhas de força da lírica contemporânea –
neste ponto, os dois poetas se encontrariam na contramão do que era
seguido pelos seus párias. Outra possibilidade é entender tal postura
como uma maneira diferenciada e ideologicamente sofisticada de
aderir às tendências, sendo elas percebidas apenas em profundidade,
o que pode ter ocasionado inclusive as críticas negativas dirigidas às
em questão.
Em Quadras ao gosto popular, de Fernando Pessoa, e em
Espelho mágico, de Mario Quintana – obras cujos poemas são todos
escritos em quadras −, a estrofe formada por quatro versos é
resgatada do passado, mas não livre de alterações estruturais e
temáticas relacionadas especificamente ao estilo personalíssimo de
cada um dos poeta. Nosso objetivo, no decorrer deste trabalho, será o
- 190 -
de promover algumas reflexões críticas sobre essas alterações
engendradas por Pessoa e Quintana no interior da forma usada na
elaboração de suas respectivas obras. Discutiremos também o próprio
valor das quadras, enquanto manifestação de cultura popular, dentro
do campo literário e artístico contemporâneo.
24
- Esses posicionamentos críticos negativos podem ser representados de forma
metonímica pelas opiniões de Fernando Cabral Martins, no que diz respeito à obra
de Pessoa, e de Augusto Meyer, sobre as quadrilices de Quintana.
- 191 -
efetuada, ficam todos encobertos sob a cifra da
“qualidade estética” (SCHMIDT, 2006, p. 66, grifo
da autora).
- 192 -
a partir de uma consciência que não é a mesma do indivíduo de outras
épocas, um ser que considerava suas produções tão complexas e
representativas de sua condição, assim como o homem
contemporâneo considera o que por ele é produzido.
Contrária a essa visão redutora e preconceituosa contra o
popular, Maria Arminda Z. Nunes, em seu O cancioneiro popular em
Portugal, ao falar sobre as várias formas oriundas da oralidade, explica
que, dentre elas, se destaca a trova ou quadra porque: “Pela qualidade
estética, pelos assuntos múltiplos e até contrastantes nelas versados,
pelo número ainda, sobressaem as quadras, em que é de revelar um
notável poder de síntese – em quatro versos está, por vezes, contido
um imenso mundo” (NUNES, 1978, p. 93). O imenso mundo a que a
pesquisadora se refere não era primitivo ou inferior àqueles que o
vivenciavam, eles o tinham como fonte de tanto mistério como o é
este que nos cerca, mas era uma experiência vivenciada que conseguia
ser expressa em uma forma sintética como a trova, assim como
também sintética é a maneira com que nossas vivências se encontram
representadas num gênero como o haicai.
Se ela, a trova, hoje é uma forma em desuso, não é por sempre
ter sido um gênero inferior − pouca literatura −, mas por não conseguir
ser, de acordo o cânone, um arcabouço para a complexidade de
experiência do homem contemporâneo, o que antes fora. Em outros
tempos, “[c]onceitos de vida, sentimentos, crenças, usos e costumes
tradicionais, em grande parte dos casos já obliterados nas classes
- 193 -
evoluídas, tudo aí [nas quadras] se espelha” (NUNES, 1978, p. 94).
Num outro momento histórico, ela foi a porta-voz de um estar no
mundo que não deve ser dimensionado como primitivo se comparado
ao nosso, mas apenas diferente.
- 194 -
com uma coletividade, elo expresso em diferentes direções
semânticas, como é explicado por Santos: “Num feixe semântico
concorrente e, às vezes, contraditório, ‘popular’ designa o que vem do
povo, o que é relativo ao povo, o que é feito para o povo e, finalmente,
o que é amado pelo povo” (SANTOS, 2009, p. 14).
Ainda que a carga semântica do termo “popular” fosse
complexa e, em alguns pontos, contraditória, fica claro que o que era
definido por esse termo possuía uma realidade bem simples, o popular
surgia do meio coletivo – isto é, do povo – e se voltava para ele mesmo,
engendrando um circuito comunicativo menos complexo que o da
produção artística atual. Talvez justamente por essa menor
complexidade, esse gênero alcançasse uma amplitude inacreditável
para um momento em que os veículos de divulgação eram poucos e
lentos, apesar disso: “Essa difusão é, sem dúvida, proveniente do
contacto entre trabalhadores rurais que, vivendo em condições sócio-
económicas idênticas, pensam, sentem e reagem de maneira
semelhante” (NUNES, 1978, p. 16).
Bem diferentes das contingências artísticas da poesia moderna
ou contemporânea, essas elaborações era geradas seguindo uma
ordem mais sensitiva, por isso, estão corretas e as palavras de Nunes
quando diz que “[n]a maioria dos casos patenteiam aliciante singeleza
aliada a franca espontaneidade”(NUNES, 1978, p. 93). O caráter
espontâneo desses textos se encontra principalmente no tipo de
conhecimento que buscam registrar e do qual são resultado, as trovas
- 195 -
estão ligadas principalmente a uma relação direta do homem com o
mundo, ou melhor, do homem com os mistérios do mundo. Mais do
uma convenção, a forma era uma interpretação do mundo, é que
podemos deduzir do que é exposto por Segismundo Spina sobre a
métrica das elaborações primitivas, dentre as quais prefigura a
estrutura das quadras: “O número de versos é muitas vezes
determinado pelo valor mágico de um número particular da tribo.
Pudemos verificar também que os números 3 e 4, com seus múltiplos,
são os mais frequentes da numerologia mágica cósmica com relação
ao canto” (SPINA, 2002, p. 103).
Na retomada dessas estruturas populares, feita por inúmeros
poetas, acontece uma reorganização no que se refere ao valor de
alguns de seus elementos e, principalmente, no processo de
transmissão dessas novas formas. Em vez de dialogar com o povo, as
vozes líricas presentes nas atualizações parecem dialogar com o
cânone, com a crítica literária ou com ideologias de contextos
históricos em que se encontram inseridas, isso faz com que o caráter
popular nessas construções assuma novo valor.
É assim que entendemos o que ocorre nos livros de Pessoa e
Quintana. Aquela poesia, ainda que expressa em uma estrutura
popular, perde esse valor coletivo e prosaico pelo fato de ser resultado
de um ato criativo derivado de mentes eruditas ligadas a um contexto
cultural que não é mais o do passado. O arcabouço estrutural de
outrora − a quadra ou trova − torna-se significativo por representar um
- 196 -
elemento que representa a questão da alteridade, essa forma
transforma-se num espaço de possibilidade, uma brecha em que a
consciência criativa moderna desses dois poetas encontra ambiente
para dar continuidade ao processo de representação do eu e do outro,
sendo essa possibilidade plural de representação uma das forças
motrizes da lírica moderna.
- 197 -
Fernando Pessoa devido ao fato de a composição de sua obra, pelo
menos seu início, ser comprovadamente mais remota que a do livro
de Mario Quintana. É importante dizer que as principais informações
e aspectos analíticos e críticos sobre as quadras pessoanas aqui
retomadas terão como referência o trabalho de Anamarija
Marinovic25.
Diferentemente dos escritos mais conhecidos de Fernando
Pessoa, os poemas de Quadras ao gosto popular26 não figuram entre
aquilo que fora preparado pelo próprio poeta para ser publicado, eles
foram retirados de uma arca deixada pelo poeta, ela foi aberta
postumamente e ali se encontravam mais de 27 mil papéis com
escritos dele. Conforme foi revelado por Georg Rudolf Lind e Jacindo
Prado Coelho, em 1965, os poemas em quadra estavam em um
envelope em que estrava escrito Quadras, dentro dele as 65 folhas
manuscritas com as 325 trovas, até aquele momento, completamente
desconhecidas, textos que seriam publicados só mais tarde em 1979,
sob a organização dos dois estudiosos acima citados.
25
- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Trabalho de Seminário da cadeira:
Tópicos da Teoria Literária: Fernando Pessoa
26
-O título da obra, como não foi uma escolha do autor já que ela é póstuma, ficou
a cargo daqueles a quem coube a publicação das diferentes edições. Desse modo, há
pelo menos três diferentes títulos para o conjunto de poemas em quadras de
Fernando Pessoa. Anamarija Marinovic prefere a nomenclatura Quadras, coletânea
organizada por Luís Prista (1997), isso porque era essa a designação que o próprio
poeta concedeu a seus textos, conforme será explicado adiante.
- 198 -
Apesar da uniformidade estrutural e temática presente nos
textos, há uma separação temporal de mais de 20 anos entre as 8
trovas iniciais e as outras 317 do conjunto, isso porque as primeiras
foram compostas quando o poeta ainda era um adolescente pelos
anos de 1908/1909 − pouco depois de ele retornar a Portugal, após
morar e estudar certo tempo na África do Sul. O segundo conjunto de
trovas, é o maior e é aquele que daria continuidade ao projeto iniciado
na juventude, só seria escrito entre 1934-1935 – período final de sua
produção e também de sua vida.
Tendo como base estudos de importantes nomes da crítica
portuguesa, Anamarija Marinovic credita essa adesão pessoana às
quadras a uma possível influência oriunda de alguns companheiros
como Almeida Garret, António Nobre e Correia de Oliveira. Além disso,
essa imersão do jovem poeta numa aura popular é também
compreendida como uma tentativa de identificação entre ele e sua
nação, em especial, com sua língua, isso porque seus primeiros textos
foram escritos em inglês. Em uma das quadras, fica explícito o traço de
identificação com sua cultura portuguesa, o poeta canta de forma
orgulhosa a dádiva de seu povo em possuir uma língua que lhe
concede a prerrogativa de experienciar algo impossível em outro
idioma, isto é, expressar o sentimento de saudade.
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem,
Porque têm essa palavra
- 199 -
Para dizer que as têm (PESSOA, 2008, p. 101)
- 201 -
Não é raro encontrarem-se frases longas, em que
uma delas ocupe dois versos, ou frases
subordinadas. Neste aspecto vê-se que as quadras
de Fernando Pessoa foram escritas por um poeta
culto, e muito bem elaboradas, destinadas para
serem lidas e não declamadas ou cantadas, como
acontece com os poemas populares (MARINOVIC,
s/d, p. 7).
- 202 -
insere em seu poetar temas e concepções do mundo moderno,
características também rastreadas na escrita dos secularíssimos
heterônimos pessoanos. Dentre elas, analisaremos aqui aquela que
discute o fazer poético, abordagem que recebe, dentro do discurso
crítico específico, a alcunha de metapoesia. Nesse afã de engendrar a
elaboração de uma máscara poética popular, é na abordagem dessa
temática que mais se faz perceber um abismo, é aqui o ponto em que
o fingimento se frustra porque se faz perceptível como impossível e
incoerente. A teorização que a poesia faz sobre si, nesse processo de
autorreferenciação, não constitui uma realidade do passado, ela é
uma constante pertencente à poesia moderna e, principalmente,
modernista, sendo impensada em uma manifestação derivada de uma
cultura popular ou folclórica, sendo assim, representa mais um
distanciamento do que uma aproximação em relação às trovas.
A quadra a seguir é um exemplo de metapoesia em que o fazer
poético é explorado, a simplicidade da estrutura não denota
superficialidade na discussão do tema. Percebe-se que estão expostos
preceitos de íntima relação com as tendências em vigor na ideologia
artística do século XX.
- 203 -
Não só marcas modernas e modernistas percebidas na
construção e na temática fazem com que essa trova seja incoerente
com a cultura popular que ela tenta representar, pode-se perceber
que se faz presente nesses versos a sombra do fingimento poético
característico da poética de Fernando Pessoa. No seu caso específico,
podemos dizer que tornam-se metapoéticas todas as estrofes em que
se faz alusão aos atos de mentir, fingir, enganar, isso porque tais
termos possuem uma estreita relação com a concepção que Pessoa
tem do seu ofício de criador. De diferentes modos, a partir de vozes
diferenciadas e plurais, o que percebemos na escrita de Pessoa é esse
constante refletir sobre a criação poética, essa possibilidade de se
expressar as verdades, usando para isso o recurso da mentira, é o que
encontramos expresso em outra das quadras:
- 204 -
profundidade do ato criador e suas vicissitudes que se encontram ali
discutidas.
- 205 -
Como em sua maioria as quadras de Pessoa foram compostas
nos anos finais de sua vida, iremos relacioná-las às últimas produções
do poeta. O oposto se dá com aquelas elaboradas por Mario Quintana;
no caso do brasileiro, seus poemas de vertente popular vinculam-se a
uma fase ainda inicial de sua trajetória literária – consideramos inicial
por ter sido o terceiro livro dele, mesmo entre os primeiros exercícios
de escrita, esse trabalho já representa um momento mais complexo
do que os dois livros anteriores, sendo considerado por alguns
estudos27 uma fase de transição em especial do ponto de vista da
forma, porque quanto ao temático, já se pode encontrar ali o que se
define como a poética quintaneana.
27
-É assim que Vera Lúcia Cardoso Medeiros avalia o livro em “A poesia transitiva de
Mario Quintana”.
- 206 -
Se do ponto de vista da estrofação há uma homogeneidade
entre os textos − todos escritos em quadras − o mesmo não acontece
quanto à métrica. Os poemas apresentam tanto versos curtos de 3 ou
4 sílabas poéticas, quanto versos longos que chegam a possuir 14,
além de se estruturarem também em redondilhas maiores e versos
decassílabos. As quadras apresentam diferentes métricas em
construções que podem apresentar ora uma versificação isométrica,
ora não. Esse compromisso com aspectos formais, ainda que variados,
concede à obra uma marca muito bem analisada por Gilberto
Mendonça Telles em seu livro Retórica do silêncio, nele o poeta, em
sua vertente de crítico, afirma que:
- 207 -
É nítido, portanto, o aproveitamento de modelos
de composição tradicionais e de origem popular no
livro Espelho Mágico, e, assegurando unidade
entre forma e conteúdo, tais modelos tradicionais
de composição prestam-se ao estabelecimento de
um diálogo entre o eu lírico e o outro, entre a
poesia e o leitor, sinalizando uma possibilidade de
reversão do quadro de anulamento do ser e de
silenciamento da palavra que se nota na poesia
moderna (MEDEIROS, 2006, p. 40).
- 208 -
Na explanação feita por Friedrich sobre o que é a lírica
moderna, pode-se perceber uma suposta oposição em relação ao que
representa ou intenta a escrita de Mario Quintana. A leitura das
quadras de Espelho mágico nos transporta para um universo lírico em
que tanto podemos encontrar a presença do indivíduo Quintana,
quanto com ele podemos estabelecer uma ponte comunicativa, isso
construído por um discurso em que reina a simplicidade: “A mesma
simplicidade que encontramos ao longo de toda a sua obra poética, e
que constitui muito mais do que apenas um traço, ou uma
característica de sua poesia, mas pode mesmo ser compreendida
como um modo de fazer poético, programaticamente defendido pelo
escritor” (SCHMIDT, 2006, p. 67). Se o modo poético de Fernando
Pessoa se fundamenta no conceito estético de fingimento, o de
Quintana se realiza enquanto estética de leveza, de sutileza.
Quando ratificamos a simplicidade formal e temática da poesia
de Mario Quintana, não pode ser compreendido, porém, que ela não
traga em seu bojo as linhas de força da estética moderna e, em alguns
pontos, modernista. Na realidade, as marcas dos dois movimentos ali
se fazem presentes, contudo são apenas traduzidas, ou melhor,
mascaradas por artifícios estéticos peculiares a ponte de camuflar a
profundidade do estético e ideológico neles explorados.
Para exemplificar o que acabamos de afirmar, lançaremos mão
de uma intertextualidade entre Fernando Pessoa e Mario Quintana.
Como já foi exposto anteriormente, Pessoa sintetizou a sina e o ofício
- 209 -
do poeta em seu inigualável Autopsicografia, cujos versos citamos
acima. Toda a carga desse poema, sua densidade e complexidade
reflexiva podem ser conferidas em um quintanar28 pertencente ao
livro Caderno H, de 1973. Na promoção de uma paráfrase sobre o texto
pessoano, percebe-se o trabalho minucioso de Quintana em
reproduzir a carga ideológica do original, contudo concedendo-lhe um
tratamento diferenciado, uma forma de tradução com marcas de sutil
ironia e sublime humor, recursos utilizados para estruturar as bases de
seu modo poético. Em “Destino atroz”, nos deparamos com uma
consciência pessoana retomada em uma síntese reflexiva em verso de
estrutura mais narrativa do que expressiva, mas que, em tudo, reflete
a complexidade dos versos rimados do poema português, vejamos:
“Um poeta sofre três vezes: primeiro quando os sente, depois quando
os escreve e, por último, quando declamam os seus versos”
(QUINTANA, 2005, p. 280). A abordagem desse “destino atroz de
poeta” e de seu complexo ofício perpassa toda a produção de Mario
Quintana, tornando-se um dos lugares comuns de sua poética. Sob a
alcunha técnica de metapoesia, os campos crítico e teórico do universo
poético são explorados amplamente pelo poeta brasileiro, tão
recorrente se faz que a pesquisadora Solange Fiuza Cardoso Yokozawa,
num trabalho em que estuda o caráter autocrítico de Quintana, sobre
esse traço, afirma:
28
-Termo usado pelos quintalólogos para se referirem às peças poéticas de Mario
Quintana.
- 210 -
A atitude crítica é inerente à sua produção, onde
um olhar vigilante acompanha o desenvolvimento
das poesias e faz do autor o primeiro leitor de si
mesmo; um leitor que se antecipa à crítica
propriamente dita e não apenas se esclarece, mas
evidencia as suas contradições. Além da
autocrítica, faz também uma crítica da tradição
literária, do leitor e constrói uma vasta e
significativa reflexão teórica no interior de sua obra
(YOKOZAWA, 2008, p.71).
- 211 -
A mesma coisa cem mil vezes dita (QUINTANA,
2005, p. 211)
- 212 -
que se possa definir como singela, pelo contrário, denotam a erudição
da consciência criativa por trás delas. Está no manejo de toda essa
carga erudita o verdadeiro e original esplendor típico da poesia de
Quintana, em vez de uma mera exibição de conhecimento, o que se vê
uma forma de agregação – agregação nos termos nietzschianos,
quando essa palavra é entendida como sinônimo de aprimoramento.
De modo preciso, Yokozawa define de que modo essa tal agregação
acontece no interior do livro: “No decorrer do livro, a relação que o
poeta estabelece com as fontes anunciadas e outras não proclamadas,
enfim, com a tradição cultural ocidental, não é de apropriação passiva,
mas de transformação, reescritura, retomada com distanciamento
irônico, enfim, de crítica” (YOKOZAWA, 2008, p.71).
As análises de poemas pertencentes aos livros Quadras ao
gosto popular e Espelho mágico se justificaram pelo fato de, a partir
delas, se contestar o valor de “pouca literatura” que a eles já foi
relacionado. Deve-se dizer que a explanação promovida por nós
precisa ser considerada como rasteira e de perspectiva metonímica,
muitos outros pontos poderiam ser considerados e amplamente
estudados com o propósito de esmiuçar com maior rigor toda a
literariedade desses dois importantes trabalhos. Assumimos a
limitação de nossa análise, se não houvesse a limitação do espaço,
muito mais rica e abrangente ela seria, concorrendo mais
intensamente para o reconhecimento e para a ressignificação das duas
obras selecionadas para o estudo.
- 213 -
Ainda algumas palavras
Na lírica moderna, em todo seu traço de hermetismo e de
incomunicabilidade, não há ingenuidade por parte do poeta. Ainda
que possam parecer singelas e populares, as quadras dos dois poetas
aqui estudados foram geradas em contexto dentro do qual nenhuma
manifestação pode ser subestimada, elas constituem parte de um
plano ideológico maior, do qual constituem apenas uma possibilidade
de realização engendrada pela mente criativa do poeta.
É na figura dele que se encontra a conexão para o universo
misterioso da poesia contemporânea. Neste caso, podemos relacionar
a problemática aqui abordada com a crise da subjetividade lírica
testemunhada no mundo atual. A retomada de elementos populares
e o desapego a valores canônicos que isso representa foi uma das
bases do Romantismo, mas, ainda que queiramos relacionar a esse
movimento as duas obras por nós estudadas, isso incorre num erro
grave de interpretação.
Rosenfeld e Guinsburg (1978) afirmam que, no Romantismo,
instaura-se um modo de ver as coisas a partir de um prisma irracional
e anárquico, isso porque se processa de modo destemperado e sem
disciplina, forma de percepção observável tanto no campo de uma
cosmovisão quanto nos modos de sua manifestação.
Não é assim que compreendemos a proposta de Fernando
Pessoa e Mario Quinta no diálogo com o popular. No caso deles,
- 214 -
distanciados das ideologias e percepções existências românticas, a
consciência da criação e do sujeito envolvido nessa criação têm outro
valor.
- 215 -
Nesse projeto de retomada do elemento popular, dessa
suposta voz ou cosmovisão coletiva, tanto a obra de Fernando Pessoa
quanto a de Mario Quintana podem ser entendidas como espaços
abertos pela linguagem, frestas em que a subjetividade lírica se
estende no desejo de fazer-se outra, de construir-se como outro. Não
estando presa a uma arte que se quer reflexo da realidade, nessa
poesia não há incoerências, apenas criação.
Essa possibilidade de compreensão nos faz perceber que pouco
populares realmente são as poesias encontradas nos dois livros,
demostrando que as críticas a eles dirigidas podem ser realmente
equivocadas. Além disso, é possível dizer também que Quadras ao
gosto popular e Espelho mágico não exatamente estavam na
contramão da ideologia de seu tempo, mas que essas ideologias
encontravam-se sublimadas, sob a égide de uma suposta máscara
popular.
- 216 -
Referências
- 217 -
ROSENFELD, Anatol. GUINSBURG, Jacó. Um encerramento. In:
GUINSBURG, Jacó. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva,
1978.
- 218 -
Teoria e ficção em Uno, nessuno e centomila
29
Verismo é o movimento literário italiano fundado pelo siciliano Giovanni Verga, na
segunda metade do século XIX, que tinha como base o Naturalismo do escritor
francês Émile Zola.
- 219 -
definição da palavra umorismo, difícil em função das inúmeras
interpretações e definições do termo utilizadas desde a antiguidade.
Para esclarecer o ponto, Pirandello cita Alessandro d’Ancona como um
dos críticos que confessa a dificuldade de definição da palavra
humorismo. Em Studi di critica e storia letteraria (D’ANCONA, 1880)
d’Ancona afirma:
- 220 -
a imagem desarmônica e a imagem “esperada”. A essa impressão
inicial Pirandello denomina advertimento do contrário: há algo na
figura da velha senhora que destoa das generalizações, tão caras aos
seres humanos.
Em Advertência sobre os escrúpulos da fantasia, ensaio
publicado pela primeira vez em 22 de junho de 1921 no jornal romano
L’Idea nazionale, e incluído nas edições posteriores de O falecido
Mattia Pascal, Pirandello afirma que há, na história natural, um mundo
repleto de animais estudados pela zoologia. Dentre esses animais está
o homem, que não é um quadrúpede, mas um bípede, e que não tem
cauda, como o macaco ou o burro. A esse homem, segundo Pirandello,
não pode acontecer nenhuma desgraça, como perder uma perna ou
um olho, pois:
- 221 -
As generalizações pretendidas pelo zoólogo, entendido de
forma genérica, no excerto, como o ser humano, não passam de
construções ilusórias, tendo em vista que, de acordo com Pirandello,
- 222 -
Retomando o exemplo da velha senhora, Pirandello explica que
ela se veste daquela forma para agradar ao marido, anos mais jovem.
A partir do instante em que tomamos consciência dos reais motivos
que levam a mulher a se vestir e se comportar de maneira ridícula, o
riso cômico se transforma em algo que vai além da comicidade. Aí está
a grande diferença entre o cômico e o humorístico: o primeiro ri, o
segundo se compadece. A esse compadecimento pela triste vida da
velha senhora Pirandello denomina sentimento do contrário. O riso, a
partir da reflexão crítica sobre o fato, perde completamente o sentido.
O cômico, por outro lado, jamais ultrapassa a barreira da primeira
impressão, não faz brotar o sentimento do contrário, limitando-se à
superficialidade de uma aparência risível.
Portanto o umorismo, nos termos de Pirandello, é a atividade
reflexiva do artista que busca enxergar além daquilo que está visível
aos olhos. Destarte, ultrapassa a superficialidade da aparência para
descobrir, a partir da suposta comicidade, feiúra ou loucura das
pessoas comuns, submetidas compulsoriamente a seu cotidiano
enfadonho, os dramas que carregam.
Em Uno, nessuno e centomila, um dos mais importantes
romances de Pirandello, há um claro diálogo entre a teoria
(L’Umorismo) e a ficção. Iniciada provavelmente em 1909, a
elaboração do romance, o último de Pirandello, foi bastante longa e
laboriosa. O tema de Vitangelo Moscarda, o protagonista, foi
esboçado em uma pequena novela intitulada Stefano Giogli uno e due
- 223 -
(1909), a qual narra o drama de uma personagem que não se
reconhece na imagem dele mesmo “construída” pela esposa. A
primeira edição de Uno, nessuno e centomila surge dezesseis anos
depois do esboço inicial (entre os meses de dezembro de 1925 e junho
de 1926) na Fiera Letteraria, revista semanal fundada em Milão, em
1925, que publicava textos de literatura, arte e ciência. A primeira
publicação do romance em volume ocorreu pela editora Bemporad,
algum tempo depois, com poucas alterações. Dentre as modificações
efetuadas está a exclusão do longo subtítulo da versão em fascículos
(Considerazioni di Vitangelo Moscarda, generali sulla vita degli uomini
e particolari sulla propria, in otto libri), o qual reporta explicitamente
ao conhecido romance A vida e opiniões de Tristram Shandy, de
Laurence Sterne, indicado várias vezes como modelo por Pirandello
em L’Umorismo.
Um, nenhum e cem mil é articulado em oito livros, subdivididos
em pequenos capítulos que podem ser lidos isoladamente. Cada um
dos capítulos tem um título, estratégia que torna evidente tanto a
decomposição do tecido narrativo quanto a desestruturação da
personagem protagonista: Vitangelo Moscarda, sujeito que descobre,
já no primeiro capítulo do livro I, que seu nariz “caía” para a direita. A
triste notícia foi dada por Dida, a esposa do jovem e ocioso banqueiro
que, durante vinte e oito anos, acreditou que seu nariz, se não era
belo, pelo menos era decente. Além disso, Dida acrescentou que,
dentre outras imperfeições, as sobrancelhas do marido pareciam dois
- 224 -
acentos circunflexos, a perna direita era um pouco mais arqueada que
a esquerda e as orelhas não eram bem grudadas. A irritação inicial de
Moscarda ao admitir todos aqueles defeitos, nunca antes percebidos,
foi substituída por um abatimento e um desconforto profundos:
- 225 -
surpreendidas em nós mesmos, percepções,
raciocínios, estados de consciência, que estão
verdadeiramente além dos limites de nossa
existência normal e consciente (PIRANDELLO,
2009, p. 168).
- 226 -
No segundo capítulo do primeiro livro de Um, nenhum e cem
mil, o título E o seu nariz? é uma provocação dirigida ao leitor e a um
amigo que Moscarda encontra durante uma caminhada pelas ruas de
Richieri. Ao perguntar se o rapaz já havia observado que seu nariz
pende para a direita, Moscarda se surpreende com a resposta
afirmativa: o amigo já havia notado sua deformidade. Quantas e
quantas vezes, questiona-se o banqueiro, ele não havia falado mal do
nariz de alguém, sendo que os outros o conheciam como “um
Moscarda de nariz torto”? (PIRANDELLO, 2010, p. 23) Para provocar e
vingar-se do amigo, nosso protagonista pergunta se ele sabe que tem
uma cova que divide seu queixo ao meio de forma desigual. “Eu? Que
nada! - exclamou o amigo. – Sei que tenho uma covinha, mas não
como você diz”. (PIRANDELLO, 2010, p. 24). Convidado por Moscarda
para irem ao barbeiro esclarecer a questão, o amigo vê que, de fato,
há uma assimetria em seu rosto nunca antes percebida por ele. Entre
uma provocação e outra, Vitangelo Moscarda conclui que
- 227 -
O desconsolo e a perplexidade do protagonista, provocados
pela descoberta de que sua percepção sobre si mesmo era equivocada
e ilusória, conduzem-no por um caminho sem volta de reflexões e de
tentativas de autoconhecimento. Há um trecho em L’Umorismo que
resume o problema existencial de Moscarda. Vejamos o que escreve
Pirandello:
- 228 -
A partir do terceiro capítulo do primeiro livro, intitulado Uma
bela maneira de estar só, a vida de Vitangelo Moscarda muda
completamente, a presença da esposa o incomoda e ele só tem um
desejo: estar só e mirar-se no espelho, ficar na companhia de si
mesmo, sem nenhum estranho por perto. Podemos entender o desejo
de isolamento de Moscarda como uma angustiada tentativa de livrar-
se da obrigação do “mentir social”, citada por Pirandello em
L’Umorismo. Assim escreve o escritor siciliano no referido ensaio:
- 229 -
terminologia empregada pelo próprio Moscarda, na companhia do
“estranho inseparável de mim” (PIRANDELLO, 2010, p. 29). E tem
início, destarte, sua fixação desesperada em conhecer aquele
desconhecido que vivia nele, mas que lhe escapava, pois somente os
outros o viam vivendo, tarefa impossível para ele mesmo:
- 230 -
devastadoras: jamais conseguiria enxergar-se como os outros o
faziam; estava condenado a carregar aquele corpo visível para os
outros, todavia invisível para ele mesmo; cada um poderia dar àquele
corpo a realidade que quisesse; aquele corpo não era nada.
A partir do segundo livro de Um, nenhum e cem mil, as
incessantes reflexões do protagonista provocam o total esmagamento
do eu, efetuado por intermédio da destruição completa da imagem de
Vitangelo Moscarda, o jovem rico e ocioso, casado com Dida. Ademais,
ocorre o abandono das relações de verossimilhança com o mundo
exterior ao texto narrativo. O fim do suporte mimético se dá em
função da progressiva loucura de Moscarda, ou, usando outros
termos, sua tentativa fracassada de encontrar a verdadeira essência
de si mesmo.
Segundo o professor e crítico literário Wladimir Krysinski (1988,
p. 48), nas reflexões de Moscarda se reconhece o peso do social, do
outro e dos outros. Paradoxalmente, a intersubjetividade do sujeito é
colocada em xeque pela superficialidade do olhar do outro, pois a
visão externa não equivale à percepção do próprio indivíduo sobre si
mesmo. A crença em ser “alguém”, um indivíduo único, é contradita
pelas imagens e os inúmeros sentidos que os outros constroem. No
caso de Moscarda, a busca de significados para si mesmo resulta em
uma série de certezas negativas: não é para Dida e para os outros o
que é para ele mesmo; nem mesmo sabe quem ele é.
- 231 -
Leonardo Sciascia (1953, p. 20) afirma que a obra de Pirandello
estava quase completa antes da guerra, mas é justamente o primeiro
grande conflito mundial o fato que modifica o comportamento da
crítica em relação a ele. Pirandello é efetivamente descoberto depois
de vinte e cinco anos de trabalho. Mas por que tanto atraso?-
questiona Sciascia. A resposta é simples: é a guerra que cria condições
efetivas para compreender Pirandello e suas personagens; são os
homens que voltam atônitos dos campos de batalha que alertam para
a completa dissolução da identidade, a trágica fragmentação do eu, o
perplexo jogo de espelhos em torno da individualidade perdida. O
horror do qual foram os protagonistas aflorava nas suas consciências.
- 232 -
estreita provincianidade e de visualização, mesmo que de forma
incipiente, daquilo que acontecia do lado de fora de suas fronteiras
geográficas e sociais. Mas é, sobretudo, aquilo que ocorre no coração
do homem que transforma a obra de Pirandello em instrumento eficaz
para compreender os mecanismos da vida em uma Europa antes
cômoda, tranquila e equilibrada, todavia convulsiva depois da grande
guerra. A perplexidade de quem viu ou viveu o horror, o massacre, a
morte, a instabilidade e a dúvida em relação à própria identidade está
refletida nos textos de Pirandello e, de forma especial, em Vitangelo
Moscarda, um sujeito atônito diante da inconsistência da própria
identidade e da incomensurável distância entre o ideal (as projeções
generalizantes acerca do homem) e o real (um caleidoscópio de
imagens distorcidas).
Pirandello afirma que o humorismo não se limita ao contraste
entre o ideal e o particular, mas que enxerga na idealização algo a ser
decomposto. É justamente essa a estratégia de Moscarda: a
desintegração completa de todas as imagens, os ideais e os conceitos
que a alteridade e ele mesmo haviam construído. É possível afirmar
que o protagonista de Um, nenhum e cem mil atingiu radicalmente seu
objetivo: abandonou a casa, a família, as roupas e a identidade. Nem
mesmo do nome fazia questão, pois não era mais Vitangelo Moscarda
e não havia necessidade de sê-lo no hospício onde foi morar.
Antes disso, no primeiro capítulo do livro VII, uma personagem
antes citada superficialmente por Moscarda adquire um importante
- 233 -
papel no desenrolar da trama. Trata-se de Anna Rosa, uma amiga de
Dida, a ex-esposa de Moscarda. Ao receber um convite da moça para
ir até a sua casa, o protagonista do romance estava certo que a única
intenção era promover a reaproximação do casal. Moscarda
comparece ao encontro, mas um tanto desconfiado. A cisma se devia
ao fato de que, em algumas ocasiões, Moscarda a surpreendera
esboçando um sorriso nos lábios ao fitá-lo. Ao chegar à casa de Anna
Rosa, foi comunicado que ela se encontrava na Abadia Grande, uma
espécie de mosteiro, e foi para lá. A moça o recebeu, convidou-o a
segui-la e, minutos depois, ouviu-se um estrondo. Anna Rosa cai,
ferida acidentalmente no pé por um tiro do revólver que ela mesma
trazia na bolsa. A notícia se espalhou rapidamente pela cidade:
Moscarda saiu da Abadia com Anna Rosa nos braços. A ex-esposa, a
partir daquele fato, só conseguia acreditar que seu Gengê era
apaixonado pela amiga. Dessa forma, Vitangelo Moscarda se viu, pelo
olhar dos outros, apaixonado por Anna Rosa. Aturdido, mas
conformado, reflete:
- 234 -
chegam a nos convencer de que a verdade que eles
nos atribuem é mais verdadeira que a sua própria
realidade, caso vocês não se agarrem com força à
realidade que vocês mesmos se deram por conta
própria (PIRANDELLO, 2010, p. 178).
- 235 -
esse motivo atirou. A ausência de uma explicação mais exata para a
inesperada atitude de Anna Rosa não é de todo estranha, pois faz
parte da estratégia literária de Pirandello deixar que o leitor, em alguns
casos, permaneça na dolorosa escuridão das perguntas sem respostas.
A importância dos episódios que envolvem a personagem Anna Rosa
não está no desfecho, mas na confirmação de que o ser humano é
movido por paixões nem sempre compreensíveis, sendo inúteis os
esforços para compreender tudo racional e logicamente. Em
L’Umorismo, Pirandello defende a ideia de que a lógica
- 236 -
Usando outros termos, a lógica, ao tentar abstrair o sentimento
das ideias, pretende fixar aquilo que é móvel, dar valor absoluto àquilo
que é relativo. Todavia, não há lógica capaz de explicar o sentimento,
a visão individualizada do sujeito sobre o mundo e a loucura que
advém da tentativa de encontrar uma única verdade, uma única
resposta. Essa busca desenfreada pelas respostas e a tentativa de
livrar-se das máscaras são o estopim da loucura de Vitangelo
Moscarda. Sua transformação, no decorrer da narrativa, é bastante
clara, especialmente se levarmos em conta que o início de todo o
processo de dissolução do eu da personagem foi a descoberta do nariz
torto, defeito físico completamente sem importância ao final da longa
trajetória existencial percorrida por ele.
30
Moscarda se refere ao dia em que compareceu ao tribunal para o julgamento de
Anna Rosa em decorrência do tiro disparado contra ele.
- 237 -
realmente ainda lhe pertencesse (PIRANDELLO,
2010. p. 206).
- 238 -
a terra debaixo deles? A realidade, digo eu, somos
nós que criamos: e é indispensável que seja assim.
Mas o problema é firmar-se em uma única
realidade: nela se pode acabar sufocando,
atrofiando, morrendo. É necessário variar, mudar
continuamente, continuamente mudar e variar a
nossa ilusão (VICENTINI, 1970, p. 239).
31
Disponível em:
http://www.classicitaliani.it/pirandel/critica/Bonghi_poetica_Pirandello.htm.
Acesso em 20 ago 2016.
- 239 -
L’Esclusa, o primeiro romance de Pirandello, publicado em
1901, registra o paradoxo de um “efeito sem causa” e uma “causa sem
efeito”, como afirma Giorgio Patrizi ( 1996, p. 39), em função da
expulsão de casa da protagonista Marta Ajala por um adultério
inexistente e de um perdão, em seguida, apesar da culpa. Tal
estratégia narrativa contrasta com as bases do Verismo, levando-se
em conta que as leis de causa e efeito subvertidas em A excluída eram
a mola propulsora das narrativas veristas.
A excluída foi escrito no período em que Pirandello estava sob
forte influência do Verismo, cuja base estava no apego aos fatos, à
causalidade e à intenção dos escritores em retratar fiel e
objetivamente a realidade siciliana da época. Não obstante a
influência verista, Pirandello inicia sua carreira de romancista
colocando em xeque a realidade e a veracidade dos fatos por
intermédio de uma obra que sugere a coexistência de perspectivas
distintas em relação a um mesmo acontecimento. O “fato”, dessa
forma, passa a ser entendido como algo relativo e sujeito a indagações,
possíveis somente por intermédio da atividade reflexiva do autor que
pretende ir além daquilo que parece.
É o fato em si, independente das prováveis consequências, que
interessa a Pirandello. Todavia, o interesse é pela possibilidade de
revertê-lo, questioná-lo. No caso de L’Esclusa, a história parece
simples: Marta Ajala é surpreendida pelo marido Roque Pentágora
enquanto lia a carta de Gregório Alvignani, seu admirador. Em função
- 240 -
disso, é considerada adúltera, é expulsa de casa e vê sua família
arruinada. Todavia, a protagonista jamais tivera qualquer
envolvimento afetivo com Alvignani além de um interesse
exclusivamente intelectual. Agradava-lhe trocar correspondências
com um homem culto que a desafiava intelectualmente. Após a
expulsão, entretanto, Marta se vê em uma situação bastante difícil e
se envolve, de fato, com o jovem advogado. Algum tempo depois, é
convidada pelo marido a retornar a casa. Em L’Esclusa, portanto, o
“fato” ( o adultério) só ocorreu, inicialmente, na mente de Roque
Pentágora e de toda a cidade, mas não era verdadeiro. Dessa forma,
Pirandello desestabiliza as certezas veristas e atenta para a existência
de múltiplas perspectivas sobre um mesmo “fato”, estritamente
relacionadas às vivências de cada um. A atividade reflexiva umoristica
é, para ele, o olhar do artista sobre essas múltiplas possibilidades de
interpretar o mundo. A tarefa do escritor umorista é desmascarar as
falsas verdades ou os engodos que envolvem a existência, mesmo que
esse complexo processo inicie com a simples descoberta de um nariz
torto.
Muitos dirão que esse “fato” (o defeito no nariz) é algo risível
e sem importância. Entretanto, são esses pequenos e insignificantes
detalhes que, caso sejam submetidos à atividade reflexiva umoristica
proposta por Pirandello, podem desencadear um doloroso e ineficaz
processo de busca pelo autoconhecimento. Em Um, nenhum e cem
mil, a questão vai além do defeito físico, mas abrange a certeza da
- 241 -
incerteza, o saber que nada se sabe. Um dos maiores umoristas,
segundo Pirandello, foi Copérnico, que com sua teoria heliocêntrica,
não somente desmontou a máquina do universo, mas a orgulhosa
imagem que o homem tinha dele mesmo. Nesse sentido, o umorismo
não acredita em heróis, mas seres errantes que vagam pelo mundo,
ora rindo, ora sendo motivo de graça, sempre desorientados, mas
constantemente esperançosos de, algum dia, encontrar alguma
certeza sobre qualquer coisa.
- 242 -
Referências
______. Um, nenhum e cem mil. Trad. Mauricio Santana Dias. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.
- 243 -
Eu sou um lobo! Um lobo? Chapeuzinho Vermelho, de
Jacob e Wilhelm Grimm (Irmãos Grimm); e
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque: Literatura
Infantil, Recontos e Comparatismos
- 244 -
com premiações literárias importantes, reconhecidos mundialmente
pela qualidade de suas publicações.
Este capítulo tem por objetivo fazer algumas reflexões sobre o
par literário: Chapeuzinho Vermelho, dos Irmãos Grimm, e
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Hollanda. Inicialmente,
fez-se mister apresentar os autores envolvidos, para se entender o
contexto histórico, social e cultural de ambas as produções. A
princípio, o texto discorre brevemente sobre a vida dos escritores,
incluindo o ilustrador de um dos exemplares, visto que pelo gênero
literário infantil, as imagens fazem parte da obra.
Peculiaridade marcante na literatura infantil é a multiplicidade
textual: as composições apresentam tanto textos quanto ilustrações.
Portanto, as imagens são constituintes do texto; e vice-versa. Assim,
muitos pesquisadores defendem a ideia de que o ilustrador assumiria
a posição de coautor, conquanto que participa diretamente da
estruturação literária.
Em seguida, discorrem-se algumas discussões sobre os
aspectos didáticos, estéticos e literários dos contos infantis dos Grimm
e de Buarque de Hollanda. Algumas versões são apresentadas,
exemplificando situações de como Chapeuzinho Vermelho fora
reescrito ao longo da história, em várias perspectivas e enfoques. A
linguagem também é contextualizada a partir da estrutura narrativa:
Chapeuzinho Vermelho é narrado em prosa, e Chapeuzinho Amarelo
em poética.
- 245 -
Ao longo do capítulo, igualmente são abordados os recursos de
linguagem utilizados em ambos os contos. Chapeuzinho Amarelo, em
relação à Chapeuzinho Vermelho, demonstra feição mais complexa,
concernente a trocadilhos, metáforas e inversões palavras.
- 246 -
comportamento nacionalista dos Grimm, bem visto no teor de suas
escritas (CANTON, 2006, p. 9).
Jacob e Wilhelm eram os primeiros filhos de uma família de
classe média. Philipp Grimm – pai dos Grimm – era um advogado bem
sucedido e faleceu quando o primogênito, Jacob, tinha apenas onze
anos de idade. A partir da perda do progenitor, a família entrou em
situação financeira delicada, tendo que assumir os dois irmãos mais
velhos a responsabilidade do sustento do lar. Os Grimm foram criados
em regime rigoroso de educação religiosa, da Igreja Calvinista
Reformada; estudaram no Ginásio Friedricks, dedicavam-se com
afinco aos estudos e destacavam-se entre alunos (CANTON, 2006, p.
9).
Os Grimm ingressaram na faculdade de Direito por influência
do pai, porém não concluíram o curso. Posteriormente, iniciaram os
estudos nas áreas da literatura e filologia, campos em que mais tarde
se tornariam professores. Em 1837, os Grimm foram expulsos da
Universidade de Göttingen, acompanhado de outros cinco docentes,
acusados de contrariarem o rei da Alemanha, Ernst Augustus I,
protestando contra a abolição da Constituição Liberal do Estado de
Hannover e o direito à liberdade civil. Nesta eventualidade, estes
revoltosos ficaram conhecidos como “Os Sete de Göttingen”
(CANTON, 2006, p. 12). Wilhelm Grimm morreu em 16 de dezembro
de 1859; e Jacob Grimm, em 20 de setembro de 1863, quatro anos
- 247 -
depois. Ambos estão enterrados no cemitério de St Matthaus Kircholf,
nas proximidades de Berlim (CANTON, 2006, p. 13).
Característica marcante nos Irmãos Grimm é o fato de
compilarem estórias do cotidiano, muitas delas do folclore europeu,
transformando-as em contos infantis. Durante muito tempo, as
narrativas eram transmitidas por meio da oralidade, de geração em
geração, de pai para filho, de filho para neto, de neto para bisneto, e
assim por diante. O grande desígnio dos Grimm foi registrar estas
historietas populares em forma de livros, voltados para o público
infantil. Além disso, outro diferencial de Jacob e Wilhelm Grimm foi
mudar o final triste e trágico das narrações, criando desfechos felizes,
com epílogos maniqueístas, nos quais o bem e o mal se enfrentavam,
saindo sempre o bom caráter, a virtude e a moral vencedores.32
Pouco antes dos Grimm, Charles Perrault publicara a primeira
versão de Chapeuzinho Vermelho, em 1697. No entanto, esta
preambular narrativa apresentava um final muito violento,
terminando a história com a vovozinha e a pequena Chapeuzinho
Vermelho devoradas pelo Lobo Mau. Na interpretação dos Grimm, a
conclusão foi modificada, surgindo a figura do Caçador, que as tira de
dentro da barriga vilão, salvando-as. Para mais, na versão popular
havia cenas eróticas, impróprias para crianças. Na exposição de
32
ARAÚJO, Felipe. Irmãos Grimm. Infoescola. Disponível em:
<http://www.infoescola.com/biografias/irmaos-grimm/> Acesso em: 11 fev. 2017.
- 248 -
Perrault e dos Grimm, as passagens ganharam tons totalmente lúdicos
e pueris. (BORGES, 2013, p. 33).
Os Irmãos Grimm publicaram inúmeras obras para o público
infantil, entre elas, as mais conhecidas: A Bela Adormecida (GRIMM,
2011), A Guardiã dos Gansos (GRIMM, 2009), Chapeuzinho Vermelho
(GRIMM, 2013), João e Maria (GRIMM, 2006), O Alfaiate Valente
(GRIMM, 2011), O Pequeno Polegar (GRIMM, 2015), Rapunzel
(GRIMM, 2008) e tantas outras.
- 249 -
universitário; e Álvaro, advogado. Chico Buarque de Hollanda é pai de
três filhas: Helena, Luísa e Sílvia – esta última seguira a carreira de atriz
(ZAPPA, 2011, p. 22).
Quando jovem, Chico Buarque recebeu influências musicais
eminentes, como: Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Dalva de
Oliveira, Sílvio Caldas, dentre outrem. Havia também grande
admiração de Chico por outro cantor, sambista e compositor: Noel
Rosa. Chico Buarque faz parte de uma geração de novos intérpretes, a
exemplo de Leci Brandão, Joe Cocker, Jeff Beck e Jimmy Page (ZAPPA,
2011, p. 32).
Chico Buarque de Hollanda apresenta-se atualmente como um
dos grandes músicos, compositores, dramaturgos e escritores
brasileiros. Em 2010, com a obra Leite Derramado (BUARQUE, 2009),
foi vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria Livro de Ficção. É também
autor de diversos títulos, entre eles: Benjamim (BUARQUE, 1995),
Budapeste (BUARQUE, 2003), Chapeuzinho Amarelo (BUARQUE,
2013), Estorvo (BUARQUE, 1991), Fazenda Modelo (BUARQUE, 1979),
Irmão Alemão (BUARQUE, 2015) e muitos outros.
Ziraldo
Ziraldo Alves Pinto nasceu em 24 de outubro de 1932, em
Caratinga (MG), interior do estado, localizada na região do Vale do Rio
Doce. Desde criança, apresentava talento para desenhar, tornando-se
ilustrador profissional na fase adulta. Em 1.º de outubro de 1960,
- 250 -
Ziraldo criou a primeira revista em quadrinhos infantil a cores do Brasil
– A Turma do Pererê – de circulação mensal, editada pela Gráfica
Cruzeiro. (Cf. PINTO, 1960).
Em 1969, Ziraldo publicou FLICTS, outro grande sucesso. O
Menino Maluquinho, seu personagem mais conhecido, surgiu na
década de 1980, marcando para sempre sua carreira de escritor e
cartunista. Ziraldo iniciou sua profissão como chargista e produzia
caricaturas com temáticas políticas. Além de artista gráfico, é também
dramaturgo, jornalista, humorista e bacharel em Direito. Suas obras
foram adaptadas para o cinema, teatro e televisão.
Em 1998, Ziraldo ganhou o Prêmio Jabuti de Ilustração, com o
livro Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, publicado pela editora
José Olympio. Em 2003, foi vencedor do Prêmio ABL de Literatura
Infantojuvenil, com a obra Menina Nina, concedido pela Academia
Brasileira de Letras (ABL).
Ziraldo é autor de inúmeros títulos, entre eles: 25 Anos do
Menino Maluquinho (PINTO, 2006), A Turma do Pererê (PINTO, 1960),
As Aventuras da Professora Maluquinha (PINTO, 2010), Flicts (PINTO,
2009), Histórias da Carolina (PINTO, 2007), Maluquinho por Bichos
(PINTO, 2005), Maluquinhos por Festas (PINTO, 2008), Uma Menina
Chamada Julieta (2003) e tantos outros.
Além dos trabalhos para o público infantil, Ziraldo também
desenvolveu projetos voltados para outras áreas, como a revista
Bundas (sátira) e O Pasquim (semanário). O prenome Ziraldo é a
- 251 -
junção das sílabas dos nomes dos pais: dona Zizinha e sr. Geraldo. (cf.
PINTO, 1960). Ziraldo é irmão de Zélio Alves Pinto, também
caricaturista, artista gráfico e jornalista.
- 252 -
chamavam de Chapeuzinho Vermelho. Os pais de
Chapeuzinho Vermelho eram donos de uma
acolhedora pensão, e as pessoas vinham de longe
para provar seu borbulhante e famoso
refrigerante. Chapeuzinho Vermelho adorava
encontrar os viajantes e ouvir histórias dos
perigosos confrontos com audaciosos salteadores
lobos. (ROBERTS, 2009, p. 8)
- 253 -
tramas variadas, cada qual com suas conexões com o tempo,
localidade e estética literária.
Para Antonio Candido (2006, p. 32) existem intrínsecas
relações entre obra, autor e público; e neste âmbito, as experiências
coletivas exercem fortes influências na produção dos títulos ao longo
das gerações. Para mais, Candido (2006, p. 34) acrescenta que as
narrativas são reflexos da cultura de um povo; e neste ínterim, há
posições sociais levadas em consideração na criação do artista.
Chapeuzinho Vermelho, pois, é uma invenção coletiva, criada
e recriada no sentido semântico, estético e literário, perpetuando o
imaginário global, unificando interpretações de diferentes povos do
mundo.
Este capítulo tem por objetivo fazer algumas observações
sobre as obras: Chapeuzinho Vermelho, dos Irmãos Grimm – autores
europeus, publicada em meados do século XIX – e Chapeuzinho
Amarelo, do escritor brasileiro Chico Buarque de Hollanda, produzida
no século XX, com ilustrações de outro grande nome da literatura
infantojuvenil: Ziraldo Alves Pinto.
- 254 -
serenas, denotando percursos pitorescos, despertando expectativas
de suspense, prendendo a atenção dos expectadores. A linguagem é
clara, direta e concisa, composta por orações curtas, evitando
vocábulos redundantes e desnecessários, expondo locuções de fácil
entendimento.
- 255 -
Nas referências grifadas, notam-se rimas entre as locuções:
machuca e fruta; amarelinha, vizinha e madrinha; e jornaleiro e
sapateiro. Em relação às figuras de linguagem, em Chapeuzinho
Amarelo atenta-se para o fato de haver muitas repetições propositais
de palavras.
Fiorin (2014, p. 115) adverte que muitos professores ensinam
aos alunos, desde crianças, que repetições de verbetes são
consideradas vícios de linguagem. Entretanto, este linguista ressalta
que nem sempre a reiteração de vocábulos caracteriza-se como tal,
pois em muitos casos, a frequência do uso destes termos é necessária,
em vista do sentido textual. Fiorin (2014, p. 116) também destaca que
a repetição do predicado, por vezes, tem a finalidade de aumentar a
extensão do texto, reforçando ideias e salientando intenções. A
exemplo disso, transcrevem-se os versos abaixo:
E Chapeuzinho Amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz
de comer duas avós,
um caçador,
rei, princesa.
- 256 -
Sete panelas de arroz
e um chapéu
de sobremesa.
(BUARQUE, 2013, p. 7) (Grifos meus)
- 257 -
As inversões de sílabas, formando novas palavras, têm por objetivo,
metaforicamente, representar mudanças de comportamento da
protagonista, que antes tinha medo do lobo, e posteriormente, não
sentia mais pavor dele.
Aí,
Chapeuzinho encheu e disse:
“Para assim! Agora! Já!
Do jeito que você tá!”
E o lobo parado assim
do jeito que o lobo estava
já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo,
tremendo que nem pudim,
com medo da Chapeuzim.
Com medo de ser punido
com vela e tudo, inteirim.
(BUARQUE, 2013, p. 13) (Grifos meus)
- 258 -
Em Chapeuzinho Amarelo, é frequente o uso de figuras de
linguagem na composição de trocadilhos, inversão de sentidos e
demais estratagemas textuais. Em contrapartida, em Chapeuzinho
Vermelho, dos Irmãos Grimm, não há qualquer artifício neste sentido,
caracterizando-se convencionalmente como uma escrita culta, de
acordo com a norma padrão.
- 259 -
representando o homem em sua realidade, provocando processos de
socialização. Ademais, citando Vygotsky, a autora também ressalta
que o uso da linguagem favorece o direcionamento da criança,
estimulando-a e alimentando sua imaginação. E neste bojo, a
literatura infantil é determinante na familiarização tanto da linguagem
oral quanto escrita (COSTA, 2013, p. 27).
Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo narram medos
e perigos aos quais as crianças estão expostas no dia a dia. As angústias
sentidas pelos pequenos são fatos que se repetem ao longo do tempo.
A violência contra crianças se manifesta de diferentes maneiras: medo
de bicho-papão, bruxas, fantasmas, duendes, criaturas, etc. Medo do
escuro, medo de ficar só... O medo do lobo mal se traduz na aversão
ao desconhecido, tudo aquilo que aterroriza o universo infantil.
Ao mesmo tempo, Chapeuzinho Vermelho exprime a inocência
da criança frente às situações do cotidiano. Andar pela floresta sem
saber dos perigos, caminhar desatentamente por veredas insólitas ou
passear pelo bosque ignorando as circunstâncias.
- 260 -
ainda mais suculenta que a velha. Se tu fores
realmente matreiro, vais papar as duas”. (GRIMM,
2013, p. 37)
- 261 -
representa a passagem da infância para a fase adulta. Ou melhor, há a
substituição da fantasia pela racionalidade. Noutras palavras, ocorre a
perda da ingenuidade e a chegada da razão.
Considerações Finais
Muitas são as variações temáticas de Chapeuzinho Vermelho
encontradas no corredor do tempo. Diversos escritores, de diferentes
países, produziram versões da estória de uma menina que se vestia
com um capuz vermelho, ora traduzido como chapéu, manta ou
- 262 -
adorno semelhante. “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.
Assim diz um antigo bordão popular. E Chapeuzinho Vermelho, não foi
diferente.
No Brasil, muitas interpretações foram editadas a partir da
narrativa original. Mas Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque
ganhou destaque especial. Vencedor de prêmios importantes,
Chapeuzinho Amarelo é duplamente assinado por escritores
brasileiros renomados: Buarque de Hollanda (autor) e Ziraldo
(ilustrador).
Em verdade, não importa a versão, interpretação ou tradução.
O importante, de fato, é a capacidade inventiva de modificar,
acrescentar e recriar a ficção: instigar a imaginação do leitor.
Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo, efetivamente, são
potencialidades de criação e recriação de um mesmo enunciado. Em
meio às assertivas, este capítulo teve o objetivo de refletir sobre estas
duas obras literárias, especialmente sob o enfoque comparatista.
- 263 -
Referências
OBRAS LITERÁRIAS
GARCIA-ROZA, Livia. Era Outra Vez. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- 264 -
PINTO, Ziraldo Alves. 25 Anos do Menino Maluquinho. São Paulo: Globo,
2006.
OBRAS TEÓRICAS
CANTON, Katia. Era Uma Vez Irmãos Grimm. São Paulo: DCL, 2006.
WEBGRAFIA
- 266 -
“Sirvo-me de Animais para Instruir os Homens”.
Fábulas: Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato e a
Moral da História.
- 267 -
demonstra, certamente, aspectos educativos, instruindo atos que
deveriam ou não ser feitos.
Na França do século XVII, surge Jean de La Fontaine, outro
grande fabulista. De família nobre, utilizava-se das fábulas para tecer
duras críticas à sociedade, especialmente, à burguesia. Embora de
origem abastada, La Fontaine desaprovava a aristocracia, que
praticava autobenefícios, explorando a população. Em sua
homenagem, Jean de La Fontaine foi empossado na Academia
Francesa e condecorado como Pai das Fábulas Modernas.
No início do século XX, Monteiro Lobato publica Fábulas (Cf.
LOBATO, 2008), destinada ao público infantil. Sucesso entre as
crianças, Lobato baseou-se nas escritas de Esopo e La Fontaine para
produzir tal obra. O grande diferencial lobatiano era acrescentar
comentários dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com
fortes críticas da boneca Emília.
Monteiro Lobato
- 268 -
Tremembé ou Barão de Tremembé. Lobato sentia imensa admiração
pelo avô, e a fim de homenageá-lo, criou o personagem Visconde de
Sabugosa – uma espiga de milho falante, extremamente inteligente e
amante da leitura. Monteiro Lobato via na figura do avô a
representação de um grande sábio.
Quando criança, Lobato ficava boa parte do tempo na
biblioteca do avô, localizada na fazenda Buquira. Neste ínterim, tomou
gosto pelos livros, dedicando longas horas de leitura aos clássicos da
literatura infantil. Este era seu ambiente preferido, onde mergulhava
no mundo da fantasia. Nalgumas das obras de Lobato, há cenas que se
passam dentro dessa biblioteca, com diálogos entre Visconde de
Sabugosa e os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Nesta época, não havia escritores nem obras relevantes no
país. Todos os títulos eram de escritores estrangeiros, muitos deles de
períodos bem anteriores, como Hans Christian Andersen, Irmãos
Grimm e Charles Perrault. Observam-se nas publicações infantis de
Lobato evidentes influências destes, bem visto na forma clara e sucinta
de escrever.
Monteiro Lobato é um marco na literatura infantil brasileira.
Tamanha importância, em 18 de Abril comemora-se o Dia Nacional do
Livro Infantil, em homenagem à data de seu aniversário. Antes, não
havia no Brasil um escritor que se destacasse neste gênero. Existiam
alguns autores, porém nada comparado a Lobato. Inúmeros
pesquisadores reportam-se a Monteiro Lobato como o verdadeiro
- 269 -
pioneiro, a exemplo da professora doutora Nelly Novaes Coelho (Cf.
COELHO, 2006), na dedicatória de seu Dicionário Crítico da Literatura
Infantil e Juvenil Brasileira:
- 270 -
Por meio do personagem Saci Pererê, Monteiro Lobato trouxe
para as páginas dos livros infantis o folclore nacional (Cf. LOBATO,
2007). De modo divertido, a boneca Emília, Pedrinho, Narizinho e
outras crianças do Sítio acompanhavam as peripécias de uma
criaturinha que usava um gorro vermelho e andava pela floresta,
contando lendas milenares.
Lobato escreveu para os públicos adulto e infantil. Na literatura
adulta, publicou contos, textos jornalísticos, memórias, romances,
correspondências e impressões de viagens, entre as mais conhecidas:
Urupês (LOBATO, 2005);
Cidades Mortas (LOBATO, 2009a);
América (LOBATO, 2002);
Ideias de Jeca Tatu (LOBATO, 2001);
entre tantos outros.
- 271 -
Marca característica nas publicações de Monteiro Lobato é o
fato de não tratar a criança como “boba” ou “infantilizada”, não a
subestimando. Lobato tratava-a capaz de entender o mundo que a
rodeava. As histórias tinham temas significativos, como a Segunda
Grande Guerra – bem visto em A Chave do Tamanho (Cf. LOBATO,
2012), publicado na década de 1940, em pleno período bélico.
Monteiro Lobato morreu em 4 de julho de 1948, aos sessenta
e seis anos de idade. Entra ano e sai ano, há décadas, suas obras
continuam lidas na contemporaneidade. Sucesso editorial, Lobato
consagra-se como um dos maiores escritores da literatura infantil do
país.
Jean de La Fontaine
- 272 -
apenas quinze anos. Aos trinta e um anos, assume o cargo
administrativo do progenitor, na superintendência de recursos
hídricos.
Participante do círculo de poetas, La Fontaine escrevia poemas
e versos líricos. No entanto, as fábulas foram sua grande obstinação.
Por meio destas publicações, tecia pesadas críticas à sociedade,
condenando diversas práticas, sobretudo da burguesia. Suas temáticas
pairavam sobre diferenças sociais, vícios, luxúria e questões
correlatas. La Fontaine é considerado um dos maiores fabulistas da
história da literatura. A escrita leve e fluída conquistou uma legião de
leitores e admiradores. Ainda hoje, três séculos após a publicação do
primeiro ensaio, continua sendo um dos fabulistas mais lidos no
mundo.
A partir de personagens animais, La Fontaine apresentava
ideias contraditórias e pontos de vista refutativos. Por meio de suas
publicações, denunciava a podridão da classe dominante, que impedia
avanços da sociedade, em decorrência de interesses próprios, e não
populares. Embora referido como fabulista, La Fontaine também
produziu outros gêneros, entre romances, poemas e contos.
Consagrado um dos escritores mais importantes da literatura, Jean de
La Fontaine fora empossado na Academia Francesa, ao cabo do século
XVII. Morreu em 13 de abril de 1695, aos setenta e quatro anos,
deixando um dos acervos mais primorosos da literatura francesa. Em
- 273 -
razão da eminente atuação, foi laureado com o título de Pai das
Fábulas Modernas.
- 274 -
no fim uma moral da história, salvaguardando o cunho educativo. Para
não citar nomes, Esopo utilizava-se de personagens animais, como
leões, sapos, tigres, ratos, cachorros e outros bichos. Porém, quando
narrava um evento, todos sabiam a quem estava se referindo.
Portanto, metaforicamente, era possível relacionar animais e
pessoas. O leão, por ser considerado o rei da selva, representava
alegoricamente a monarquia, entre reis e rainhas, que detinham o
poder. A raposa demonstrava atributos matreiros, aludindo-se aos
espertos, malandros e astutos. As ovelhas, sempre dóceis,
interpretavam a bondade e a pureza, indivíduos virtuosos e
benevolentes.
Muitos ditados populares da contemporaneidade têm
ascendência nas máximas de Esopo, entre algumas delas:
- 275 -
É pelo fruto que se conhece a árvore;
E tantos outros adágios.
Um homem tinha
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Uma galinha,
Que juno bela
Por desenfado
Tinha falado
Vivia ela
Dentro dum covo,
E punha um ovo,
D’ouro luzente
Em casa uma dia,
Que valeria
Seguramente
Dobrão e meio;
Mas o patrão
Um dia cheio
D’ímpia ambição
Foi-se à galinha
E degolou-a.
Examinou-a;
Porque supunha
Que em si continua
Rico tesouro,
Visto que punha
Os ovos de ouro;
Outra galinha
Jamais topou
Com tal condão;
E assim pagou
Sua ambição.
(LA FONTAINE, 2005, p. 354-355)
- 277 -
As fábulas de La Fontaine estão dispostas em poesias,
estruturadas em versos. Há presença de rimas, bem visto entre as
palavras:
Tinha e galinha;
Desenfado e falado;
Covo e ovo;
Dia e valeria;
Patrão e ambição;
Tesouro e ouro;
Topou e pagou;
Condão e ambição.
O Cavalo e o Lobo
- 278 -
Ou mesmo burro, ou vitela,
Já marchando me andarias
Pelo estreito da goela;
O cavalo, conhecendo
A malícia do impostor,
Diz-lhe: O céu lhe pague o bem
Que me faz, senhor doutor;
- 279 -
— Bem que essa doença toque
À cirurgia somente,
Diz o lobo, eu nesse ramo
Sou um prático eminente!
De carniceiro a ervanário
Quis passar sem que estudasse;
Levei da toleima o prêmio;
Cada qual para o que nasce!
(LA FONTAINE, 2005, p. 483-485)
- 280 -
Vitela e goela;
Miúdo e Saúdo;
Erraram e mandaram;
Impostor e doutor;
Chega e prega;
Lobo e tolo;
Estudasse e nasce;
Curar e aplicar.
Em contrapartida, comparado a La Fontaine, verifica-se que
Monteiro Lobato publica suas escritas não em versos, mas sim em
prosa. Além disso, em Lobato não há a presença de rimas, como no
escritor francês, conforme visto na fábula abaixo:
- 281 -
esperá-los, para que também eles tomem parte na
confraternização.
Ao ouvir falar em cachorro, Dona Raposa não quis
saber de histórias e tratou de pôr-se ao fresco,
dizendo:
— infelizmente, amigo Có-ri-có-có, tenho pressa e
não posso esperar pelos amigos cães. Fica para
outra vez a festa, sim? Até logo.
E raspou-se.
Contra esperteza, esperteza e meia.
(LOBATO, 2008, p. 34)
A Rã Sábia
Como a onça estivesse para casar-se, os animais
todos andavam aos pulos, radiantes, com olho na
festa prometida. Só uma velha rã sabidona torcia o
nariz àquilo.
O marreco observou-lhe o trejeito e disse:
— Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando
todos nós pinoteamos alegres no antegozo do
festão?
— Por um motivo muito simples – respondeu a rã.
— Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar,
sabemos muito da vida e enxergamos mais longe
do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se
casasse e em vez de torrar o mundo sozinho o
fizesse ajudado por dona sol e por mais vários sóis
filhotes? Que aconteceria?
- 282 -
— Secavam-se todas as águas, está claro.
— Isso mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e
peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade
semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça, e
já de começo será ela e mais o marido a
perseguirem os animais.
Depois aparecem as oncinhas – e os animais terão
de aguentar com a fome de toda a família. Ora, se
um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando
forem três, quatro e cinco?
O marreco refletiu e concordou:
— É isso mesmo...
Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três...
(LOBATO, 2008, p. 39)
- 283 -
caracterizam-se pelas ácidas críticas da boneca Emília, que não
poupava comentários ásperos e irônicos sobre fatos, atitudes e
personagens.
A citação anteriormente transcrita (A Rã Sábia) tem como
anexo a seguinte observação:
- 284 -
palavras, quando Emília falava, era Monteiro Lobato quem estava
expressando seu ponto de vista, por meio das fábulas.
Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo fazer uma análise comparatista
entre as obras de dois grandes escritores: o primeiro, Jean de La
Fontaine, francês; e o segundo, Monteiro Lobato, brasileiro. Há três
grandes nomes que se destacam universalmente nas fábulas: Esopo,
Jean de La Fontaine e Monteiro Lobato, cada qual em seu tempo e
espaço. No entanto, constata-se que cada um deles abordou este
gênero literário de maneira diferente. O pioneiro, Esopo, considerado
o Pai das Fábulas, utilizou-se da linguagem oral para transmitir seus
adágios. O segundo, Jean de La Fontaine, passou a grafá-los a partir da
estrutura poética, organizando-as em trovas. No Brasil, no século XX,
surge Monteiro Lobato, acrescentando-lhes comentários incisivos,
discordando de temas e posturas, com a ajuda da turma do Sítio do
Pica-Pau Amarelo.
Observa-se que as fábulas assumiram diferentes estéticas ao
longo da história. Começando pela oralidade, passando pela poesia e
chegando até as crianças, estas narrativas sobreviveram ao tempo,
perpetuando-se de geração em geração. Poucos sabem, mas diversos
ditados populares tiveram suas origens em Esopo. Utilizando
personagens animais, nota-se que é possível retratar eventos,
extraindo deles alguns ensinamentos. Tanto para o público adulto
- 285 -
quanto o infantil, as fábulas imortalizaram-se, denotando a
capacidade de narrar o cotidiano fundamentando-se em variadas
estéticas.
- 286 -
Referências
BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Editoral Cultural, 1984.
- 288 -
Denise Menin Tortelli
http://lattes.cnpq.br/4014041457676548
Possui curso técnico em Processamento de Dados pela Escola de Educação
Básica da URI - Campus de Erechim. Licenciatura plena em Letras -
Habilitação Português/Espanhol e Respectivas Literaturas pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI - Campus de
Erechim/RS e Pós-graduação a nível de Especialização em Metodologia do
Ensino de Línguas: Português, Inglês e Espanhol, pelo Instituto de
Desenvolvimento do Alto Uruguai - IDEAU - Faculdade de Getúlio Vargas/RS.
Atuou como professora de língua portuguesa e espanhola na rede pública
Municipal de Jacutinga/RS de 05 de março de 2004 a 21 de fevereiro de 2012.
Participou de diversos simpósios, congressos, cursos de formação
continuada e aperfeiçoamento relacionados à educação. Concluiu o 10º
semestre do curso de Língua Inglesa do Centro de Línguas POSITIVO em
Erechim/RS. Tem experiência em ministrar aulas de língua portuguesa,
espanhola, inglesa e na disciplina de artes. Atualmente é professora
nomeada na Escola Estadual de Educação Básica Professora Margarida
Lopes, em Santa Maria/RS, desde novembro de 2012, e é mestranda no
Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de concentração em Estudos
Linguísticos, linha de pesquisa Linguagem e Interação, pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS).
- 289 -
Literaturas de Língua Portuguesa, atuando principalmente nas seguintes
linhas de pesquisa: Literatura, História e imaginário. Poéticas da
modernidade. Literatura Comparada.
Warleson Peres
http://lattes.cnpq.br/3101898299435523
Possui graduação em Letras - Habilitações: Língua Portuguesa, Italiana e
Espanhola (e suas respectivas literaturas) pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (2001), graduação em Secretariado pelo Centro Universitário
Internacional (2012) e mestrado em Gestão e Avaliação da Educação Pública
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é professor
regente da Prefeitura de Juiz de Fora e Secretário Executivo da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Estudos Literários, atuando principalmente nos seguintes temas: Línguas
Mestiças, Hibridação Linguística, Culturas Híbridas, Portunhol.
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