Filme Augustine

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O FILME AUGUSTINE:

ANÁLISE SOBRE A HISTERIZAÇÃO CLÍNICA E DISCURSIVA DA MULHER

Adalberto Ferdnando Inocêncio


Universidade Estadual de Londrina

Tamires Tolomeotti Pereira


Fabiana Aparecida de Carvalho
Universidade Estadual de Maringá

RESUMO: O presente trabalho apresenta uma análise discursiva da produção


Augustine (2012) considerando os estudos foucaultianos e de gênero que
problematizam questões e categorias constituídas historicamente como: gênero,
raça, classe e sexualidade. Considerando a materialidade fílmica e suas construções
simbólicas que levam ao estabelecimento de significados e interpretações no plano
da subjetividade, e o conceito de dispositivo de Michel Foucault, que aponta para
práticas difusas e heterogêneas que englobam discursos, instituições, arquiteturas,
enunciados científicos, mensurações, regulamentações, ou seja, o dito e o não dito
em redes de poder, apontamos categorizações discursivas que dizem sobre: a) o
corpo feminino como objeto de investigação médica; b) a representação da histeria
em aparatos de registro na produção de verdades sobre a sexualidade feminina; c) a
objetificação da feminilidade em práticas médicas; d) Os aparatos não discursivos e
a invasão do corpo feminino.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Histeria; Análise de Discurso; Psiquiatrização da


Mulher.

INTRODUÇÃO

Filmes e documentários são artefatos que difundem narrativas e pedagogias


culturais em suas práticas de significação e em suas relações informacionais e
formativas com o público. Na perspectiva dos estudos de gênero e dos estudos
foucaultianos, as produções cinematográficas devem ser olhadas, analisadas e
pensadas enfocando questões e categorias construídas e problematizadas
historicamente como: gênero, raça, classe, sexualidade, bem como, as estratégias
biopolíticas (FOUCAULT, 2014) que engendram modos de ser para os corpos e para
as pessoas.
Seguindo essa orientação, o presente trabalho apresenta uma análise
discursiva da produção Augustine (2012), da francesa Alice Winoccour, exibida nas
salas de cinema brasileiras durante o ano de 2014. Buscamos inspiração na
trajetória genealógica desenvolvida por Michel Foucault, que questiona os processos
e as forças que fizeram determinados discursos se perpetuarem, sem, contudo,
seguirmos à risca um método rígido e definido, uma vez que o próprio filósofo
entendeu sua obra como a uma caixa de ferramentas prêt-à-porter acionada à
medida que problemáticas necessitam ser presentificadas e discutidas.
Baseando-se em sua pesquisa dos prontuários médicos das muitas mulheres
internadas no Hospital Psiquiátrico Pitié-Salpêtrière, na Paris do final do século XIX,
a diretora narra, no plano principal, a história de uma jovem empregada doméstica
acometida de ataques, convulsões, espasmos e delírios que a levam a paralisias
corporais e a comportamentos considerados patológicos. No filme, observa-se a
construção gradual de conhecimentos e práticas médico-psicológicas que vão
moldar e atravessar as compreensões sobre a histeria feminina na época. Essas,
por sua vez, são engendradas nos corredores, dormitórios, salas e consultórios do
La Salpêtrière e nas ações prescritivas, analíticas e documentais de fisiologistas e
sanatoristas residentes na clínica parisiense, em especial, as descrições e
investigações encampadas pelo médico Jean-Martin Charcot, pioneiro em estudos
neurológicos e psiquiátricos.
Instituições sociais, como os hospitais psiquiátricos, produzem/produziram,
segundo Foucault (2014), conjuntos de dispositivos que colocam/colocaram o sexo
em evidência, criando verdades e discursos que geram/geraram investidas e normas
que são/foram obedecidas e incorporadas por homens, mulheres e crianças e que
deixaram o sexo, a sexualidade e o corpo no plano da linguagem e do discurso.
[...] a “colocação do sexo em discurso”, em vez de sofrer um
processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo
de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o
sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas, ao
contrário, de disseminação e implantação das sexualidades
polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu
irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através de muitos erros –
em constituir uma ciência da sexualidade (FOUCAULT, 2014, p. 18).

A escolha do filme articula-se, nesse sentido, dentro dessa scientia sexualis e


na negação da hipótese repressiva (FOUCAULT, 2014), na qual o poder não se
exerceria apenas se controlando as pessoas, mas, tornando-as objetos de
discursos, de verdades sobre o sexo que não operam apenas no âmbito da coerção
e da repressão, mas, sim, nas potências de seus desejos.
Em termos de construção de relações de saberes e poderes, não podemos
também esquecer que a ascensão capitalista, consolidada entre os Séculos XVII a
XIX, forjou sexualidades eminentemente burguesas e restritas à função procriativa e
a uma economia sobre o sexo. Contribuíram para esse aspecto: as práticas médicas
de análises, exames e confissões clínicas, como, também, as classificações
demográficas e os regimes jurídicos que regimentaram possibilidades de interdição,
proibição e práticas em torno de quem podia falar de sexo em detrimento daqueles
que não o podiam fazer e ainda eram considerados desviantes desse sistema
produtivo.
Vinculada às instituições sociais, essa incidência econômica tratou, como
ressalta Foucault (2014, p. 16), de “determinar, em seu funcionamento e em suas
razões de ser, o regime de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso
sobre a sexualidade humana”. Ao se atrelar a sexualidade ao domínio da linguagem
se determinou, portanto, “quem fala” (formação do sujeito), “os lugares e as
perspectivas de quem fala” (posição de sujeito), “as instituições que incitam a fazê-
lo” (hospitais, sanatórios, escolas, delegacias, sindicatos etc) e “com que interesses
se fala ou se evidenciam coisas”. Em síntese, trata-se de perguntar, considerando
processos genealógicos de investigação: que sexualidade(s) se quis construir na
mobilização dessas formações discursivas?.
Considerando especificamente o Século XIX, os discursos sobre a
histerização, foco de reflexão nesta produção, saturam/saturaram o corpo feminino
de sexualidade e transformaram a mulher em objeto de análise, qualificado ou
desqualificado em função das práticas médicas e das práticas de regulação social e
familiar. Nessa lógica, as mulheres improdutivas na economia do trabalho, ou, ainda,
na economia do lar e da perpetuação da família, foram, pois, psiquiatrizadas e
classificadas como perturbadas, neuróticas e dentro de uma pedagogia nosológica e
descritiva praticada em espaços arquitetônicos e não arquitetônicos.
É junto a Foucault que também pensamos o filme Augustine como artefato
cultural que importa à problematização do presente e dos regimes de verdade sobre
o sexo e sobre o corpo.
Considerando a materialidade fílmica e suas construções simbólicas (efeitos
visuais e sonoros, música, cor, profundidade de campo, closes da câmera), que
levam ao estabelecimento de significados e interpretações no plano da
subjetividade, e o conceito de dispositivo de Foucault (2014), que aponta para
práticas difusas e heterogêneas que englobam discursos, instituições, arquiteturas,
enunciados científicos, mensurações, regulamentações, ou seja, o dito e o não dito
em redes de poder, apontamos categorizações discursivas que dizem sobre: a) o
corpo feminino como objeto de investigação médica – a relação médico-paciente; b)
a representação da histeria em aparatos de registro na produção de verdades sobre
a sexualidade feminina – compêndios fisiológicos, fotografias, relatos, teatralização
da doença, etc; c) a objetificação da feminilidade em práticas médicas – métodos de
hipnose, relatos de sintomas; e, d) Os aparatos não discursivos e a invasão do corpo
feminino - instrumentos médicos, consultas, aparelhos cirúrgicos, arquitetura
hospitalar.
A SEXUALIDADE DE AUGUSTINE: DO ARQUIVAMENTO DO RELATO À
CONSTRUÇÃO DO DISCURSO SOBRE HISTERIA

Quando trazemos outras materialidades (exemplo: artefatos culturais) para


pensarmos nossos posicionamentos como sujeitos produzidos por narrativas,
representações, significados e discursos, é preciso tanger o olhar de forma
diferenciada. Em narrativas fílmicas, os roteiros, os enredos, os planos de
sequências, a música, as tomadas de câmera não são apenas fios lineares na
condução dos sentidos dos espectadores. O olhar precisa estar atento para os
efeitos discursivos que presentificam a maneira como as coisas foram construídas e
as palavras foram ditas historicamente.
Mas, afinal, de qual ou quais realidade(s) fala o filme Augustine? De quais
efeitos discursivos e de quais regimes de verdades incorporados ao gênero
feminino?
Um plano de sequências lentas entrecorta a narrativa e mantém a atenção em
efeitos de suspense como se a diretora, intencionalmente, mesclasse à história
elementos de ficção e de cunho documental e histórico. Há, a todo o momento, um
clima de contenção nas ações das personagens e nos objetos dispostos tanto na
sala de estar, nos dormitórios e consultórios do hospital psiquiátrico parisiense,
quanto nos pátios vigiados constantemente por enfermeiras/os1 e médicos.
O ano é 1885. Augustine, representada pela cantora francesa Soko, é a
criada augusta de uma família burguesa e encontra-se recém-exilada no Salpêtrière
por conta de suas constantes crises convulsivas. O medo, a solidão, a desconfiança,
o mal-estar da personagem se contrastam com o aspecto grise de uma paisagem
excludente, perscrutadora, fechada que demarca, ainda mais, o ritmo lento da
passagem do tempo e a reclusão forçada nos espaços de tratamento.

1
Usamos a marcação “a/o” para contemplar e viabilizar perspectivas de gênero, entretanto, quando
as marcações se referirem a médicos, estamos considerando o domínio masculino, por abarcar os
personagens representados no filme.
É justamente nesse período ambientado na trama que o discurso médico
assume posição estratégica, insubstituível e hegemônica que legitima a prática de
confissão científica por meio da qual se produziu e se reproduziu corpos,
sexualidades e desejos.
Signo desse momento, o médico Jean-Martin Charcot, vivido pelo ator Vincent
Lindon, empreende investigações, postulados, estudos e discussões médicas sobre
a histeria e recolhe Augustine na clausura do hospital psiquiátrico para torná-la sua
cobaia didática, ou seja, um modelo viável pelo qual as crises histéricas poderiam
ser demonstradas a toda comunidade médica e científica da época. Nesse tempo-
espaço, adensado na película, a medicina (e os regimes disciplinares) inventaram
falas sobre a mulher e sobre seu corpo, teorizando e produzindo pareceres, regras
para a qualidade de vida, para os hábitos alimentares e para a regulação das
práticas sexuais. Augustine é, portanto, um recorte de uma história das mulheres, de
uma história de minorias interpelada por grandes instituições de poder e por
discursos hegemônicos.
Todo discurso seria um conjunto de enunciados apoiados na mesma
formação discursiva que está sujeita a regras e contingências que determinam seu
aparecimento, sua permanência e as correlações de força mantidas nas instâncias
sociais (FOUCAULT, 1987). Sob esse ponto de vista, podemos entender a narrativa
do filme Augustine como um destacamento de enunciados que operam apoiados
numa mesma formação discursiva que vai estabelecer: a) um princípio de
diferenciação para as mulheres, em especial as que desviam da economia produtiva
do sexo e do trabalho; b) um esquadrinhamento de sujeitos destacados em papéis,
posições ou proposições, como exemplo, a relação médico-paciente, internas no
Salpêtrière e funcionários e doutores; c) associações com outros enunciados
inscritos ou reproduzidas em artefatos ou práticas culturais, a saber, a
academização do conhecimento sobre loucura, histeria e sexualidade.
Nesse regime de verdades exposto no filme Augustine temos, portanto, um
princípio fundador da histeria; os sujeitos que ocuparam o lugar do discurso da
loucura (deficientes, mulheres, pobres); o discurso científico associado a uma
pedagogia explicativa da doença; e, especialmente, uma materialidade discursiva
desdobrada nos registros médicos, nos compêndios sobre doenças, nos arquivos
hospitalares, nos artigos científicos e jornalísticos publicados, na fala das pessoas,
na cultura do medo e do estranhamento frente a histeria manifestada pelas internas
do hospital.
Ao (re)constituir o lugar conceitual, físico e discursivo do Hospital Psiquiátrico
Pitié-Salpêtriere, Aline Winocoour traz a emergência histórica das narrativas que
possibilitaram a invenção da histeria e a objetificação de saberes sobre as mulheres.
Traços dessa condição contingente sobre o sexo e a sexualidade feminina podem
ser entendidos nas categorizações discursivas que trazemos a seguir.

O CORPO FEMININO COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO MÉDICA – A


RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

De acordo com Didi-Hubermann (2007), Charcot ocupa uma posição


emblemática na história da medicina como anatomista, neurologista, clínico e diretor
do La Salpêtriere. Suas investidas médicas estariam próximas de uma clínica da
observação, pautada no visível e no descritível (FOUCAULT, 2008) e mediada pela
fabricação de hipóteses, teorias e objetificações sobre suas/seus pacientes. Esse
categórico trabalho transformou o hospital parisiense numa espécie de museu
patológico vivo onde, sistematicamente, as/os internas/os podiam ser
observadas/os, classificadas/os e catalogadas/os clinicamente.

The Salêtrière hospital wards provided Charcot and his disciples with
the human material which their great consctruction work requerid.
Charcot referred to the hospital as a ‘living pathological museum’, and
noted with satisfaction its ‘considerable [amount] of material and
resources’ (HAKOSALO, 1991, p.19).

Nesse museu humano determinado nosologicamente, a relação médico-


paciente captada no filme Augustine pauta-se, a todo tempo, numa relação
entrecortada pela objetificação de seu corpo e de sua posição social enquanto
mulher e empregada. O neurologista Charcot, situado como figura de autoridade e
amparado por seu status médico, por sua herança comportamental burguesa,
aristocrática, racista, especista e masculina, faz da doença de sua paciente uma
cruzada, projetando o seu repertório de pesquisa para o seu reconhecimento como
pesquisador de renome e como figura respeitada nos altos círculos sociais de Paris.
Tensionam-se, ainda, aproximações e afastamentos pontuados por intervalos
de explicações científicas sobre os achaques somatizados no corpo de Augustine,
mas, também, por uma relação sentimental ora distanciada ora muito próxima e
sempre marcada por uma dinâmica de transferência e contratransferência que será
reforçada, no filme, em cenas cujo olhar médico e obsessivo de Charcot
esquadrinha a doença e a cria discursivamente. Inscreve-se, aí, uma relação de
poder e dominação que, paradoxalmente, suplanta em Augustine dúvidas,
subordinação e, ao mesmo tempo, fantasias que se tornam pulsantes quando essa,
em seus delírios histéricos, libera seu recalque sexual e contempla, simbioticamente,
aproximações com seu tutor e examinador.
No filme, há também um elemento ficcional a tecer uma relação afetivo-sexual
durante os processos psicológicos de transferência médico-paciente. Embora não
saibamos se, de fato, a relação sexual entre Charcot e Augustine tenha sido
consumada, a diretora, durante seu trabalho de pesquisa para a constituição do
roteiro, não encontra nos arquivos do Salpêtrière documentos que trouxessem o
ponto de vista de outras/os pacientes; na película, o contraponto das/os internas/os
é, cuidadosamente, trazido quando algumas outras reclusas relatam os motivos
pelos quais foram internadas e quando Augustine se envolve com o médico e,
posteriormente, ganha a consciência de que seu ser e seu corpo são manipulados
nessa relação de poder estabelecida.
Charcot torna-se, então, o escrutinador e o confessor de sua paciente,
relatando, escrevendo e, por vezes, até mesmo definindo as sensações e os
sintomas da doença descritos por Augustine. Podemos dizer, amparados por
Foucault (2014), que essas são práticas confessionais estabelecidas nessa relação
íntima de poder-saber entre médico-doente. Tais táticas nada mais seriam do que
parte de regras de decência que passariam a filtrar os enunciados e reificar o
imenso aparelho produzido em torno do sexo e da sexualidade.

A REPRESENTAÇÃO DA HISTERIA EM APARATOS DE REGISTRO

Na produção de verdades sobre a sexualidade de Augustine, Charcot e seus


discípulos criaram aparatos de registros compreendidos por compêndios fisiológicos,
fotografias, relatos que determinaram uma verdadeira teatralização da doença. Nas
passagens que ilustram o saber técnico da ciência psiquiátrica, o filme adensa num
território que sobrepõe os discursos científico, pedagógico e terapêutico. O dizível
pelos registros escritos tornaram-se, pois, ampliados pelo visível e pelo narrativo da
fotografia da doença.
A captura fotográfica dos surtos e delírios de Augustine, mais que técnica de
pesquisa, e dentro de um regime confessional, tornou-se um empreendimento
laboratorial, uma arquivologia do patológico e, pedagogicamente, um artefato de
transmissão dos conhecimentos e saberes inventados pelos médicos. Toda essa
manufatura da doença deslocou a mulher histérica para o centro de um discurso e
para uma teatralização das representações dos sintomas sofridos.
Quando Charcot é duvidado por seus pares e pela sociedade moralista da
época, ele aciona seus registros escritos e um rol de profissionais para empreender
uma performatividade na qual a fotografia e o aparato teatral das salas de reuniões e
defesas do Salpêtrière tornam-se a própria metáfora da percepção clínica do
médico. Metodologicamente, criam-se, aí, as técnicas de construção da histeria
(HAKOSALO, 1991) que colocam o corpo feminino, materializado na personagem
Augustine, sempre numa dupla captura que envolve tanto o fascínio em que a
histérica coloca seu corpo de maneira apta ao tratamento e à medicalização, quanto
a perplexidade investigativa do médico, de seus discípulos e fotógrafos que
produziram um conhecimentos e biopolíticas diante de pessoas sendo observadas.
O corpo da paciente é, portanto, o corpo entregue ao espetáculo da enfermidade,
dos ataques, das convulsões, dos espamos e dos parâmetros descritivos da ciência.
Os registros de Charcot teatralizaram, regimentaram e conceituaram um
ataque histérico que se desdobrava, quase que seguindo um script, em diferentes
fases da histeria num mesmo corpo, mas, conseguiram, também uma espécie de
polícia de enunciados (FOUCAULT, 2014) estabelecida em situações de controle e
determinante de quem pode falar e como se pode falar sobre a histeria.

A OBJETIFICAÇÃO DA FEMINILIDADE EM PRÁTICAS MÉDICAS

O médico Charcot assume na trama justamente o exercício de diversos


procedimentos que garantiram a discursividade em cima do sexo e do corpo. Ao se
estabelecer tal relação de dominação, desdobram-se uma série de táticas outras
voltadas para reivindicar a doença no plano de uma ordem prática (métodos de
hipnose, relatos de sintomas, a exemplo). No filme, esbarramos, também, num
domínio de progressiva objetificação do corpo feminino diante dos procedimentos
analíticos diários aos quais são submetidos as/os pacientes. Sobre isso, pontua
precisamente Foucault (2014, p. 62):

Que a Salpêtrière de Charcot sirva, aqui, de exemplo: era um imenso


aparelho de observação, com seus exames, seus interrogatórios e
suas experiências, mas era também maquinaria de incitação, com
suas apresentações públicas, seu teatro das crises rituais
cuidadosamente preparadas com éter ou nitrato de amilo, com seu
jogo de diálogos, de apalpações, de mãos impostas, de posturas que
os médicos, gesto comum ou palavra, suscitam ou eliminam, com a
hierarquia do pessoal que espia, organiza, provoca, anota, relata, e
acumula uma imensa pirâmide de observações e de prontuários.

Os procedimentos do Salpêtrière foram demasiadamente invasivos ao corpo


feminino. Existiram as práticas rotineiras e exaustivas de obtenção de dados
clínicos, como a medição axilar, rectal e vaginal (nos piores casos, haviam
penetração danosa ao canal vaginal feita por aparelhos); a escuta atenta dos
movimentos respiratórios e musculares; a observação na resposta de percepções
sinestésicas – calor, frio, dor (muitas vezes envolvendo o uso de agulhas dérmicas
de grande calibre), mas, também uma gama de táticas e técnicas psiquiátricas como
as práticas de hipnose individual e coletiva.
Esses procedimentos são imperativos nas cenas em que a doença é
teatralizada e apresentada ao público de aprendizes de médicos, diretores de
hospitais, psiquiatras e curiosos de uma forma geral. São as famosas “lições de
terça-feira” ministradas por Charcot em Salpêtrière2 (GOETZ et al., 1995).
Gramary (2008), ao oferecer análises provenientes de trechos da obra
“Iconographie Photographique de La Salpêtrière de Bourneville”, questiona se, de
fato, essa histeria (que parecia existir somente no centro psiquiátrico parisiense), foi
realmente um diagnóstico ou uma invenção de Charcot. De acordo com o próprio
autor, o médico francês chegou a se questionar sobre tal questão.

Ao que parece a histero-epilepsia só existe em França e, até me


atrevo a dizer, e de facto [sic] já foi dito antes, que só existem em La
Salpêtrière, como se eu a tivesse inventado graças ao poder da
minha vontade. Seria realmente surpreendente que eu pudesse criar
assim doenças por vontade expressa do meu capricho e da minha
imaginação. Mas, na realidade, o meu labor foi unicamente o de
fotógrafo; eu registro o que vejo (CHARCOT apud GRAMARY, 2007,
p. 145).

A vontade de verdade de Charcot, criada pela fotografia, também teve o


alicerce das técnicas hipnóticas; Augustine, a histericizada, é o exemplo de uma
teoria que cria um sujeito inexistente ou deslocado para um rol discursivo de regras
que o circunscreve em função de relatos de saber-poder.
O filme pontua que Augustine era hipnotizada pela técnica do magnetismo e
que encenava os estágios do quadro histérico de Charcot, mesmo quando já não
apresentava os sintomas das convulsões. As sessões de hipnose fotografadas eram

2
As lições de terça-feira referem-se à exposição de internos de hospitais psiquiátricos em aulas
públicas ministradas por Charcot entre os anos de 1887 e 1888 em Salpêtrière realizadas sempre às
terças-feira para uma plateia de alunos de medicina.
a materialização que garantiria a legimitidade da histeria e, mais do que isso, uma
"[...] autoridade museológica sobre o corpo doente [...]" (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.
17-30).
Essas críticas apontadas somadas ao contato com o filme permitem pensar
uma atmosfera farsesca arquitetada no centro psiquiátrico. A sucessão de cenas em
que Charcot se vale desse aparato médico sugere um caráter dúbio acerca de seu
papel como clínico que ora denota uma preocupação genuína com o tratamento e a
cura da doença, ora se subverte e desliza ante o mero interesse na construção de
seu reconhecimento, na manutenção da doença em Augustine, no ensaio e na
apresentação sintomática da histeria levada a público - sempre com o intuito de
visibilizar a gravidade e a importância das investigações voltadas a ela.
Esse jogo de interesses na manutenção da doença não é neutro e instiga o
espectador a pensar em quanto um centro psiquiátrico, que recebe somente
mulheres com histeria, fortalece uma maquinaria de produção de verdades que
passaram a ser o centro de referência na França do século XIX. Augustine é
somente mais uma peça chave na manutenção da boa reputação que Charcot
conquistara como neurologista-psiquiatra e médico-chefe de Salpêtrière, além de
catedrático na área de anatomia patológica na Sorbonne, o que garantiu ostentar
grandes poderes no meio acadêmico e fora dele.
Esse conjunto de elementos trazidos até aqui constelam relações de poder
que definem um dispositivo de sexualidade. Para delimitar esta noção foucaultiana
de dispositivo, apoiamos em Edgardo Castro (2009, p. 124) que o define como

a rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos


heterogêneos: discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito.

Nesse instante, é imprescindível, pois, fazer alusão ao fato de que as práticas


de confissão exercidas sobre Augustine são facilitadas por elementos não
discursivos tais como: a disposição arquitetônica dos asilos ou hospitais
psiquiátricos da época engendradas nos corredores, dormitórios, salas e
consultórios, orientações que se consubstanciam na esteira binária de norma e
desvio. A instituição fez/faz funcionar, por sua vez, outras expressões do não dito,
mas que, na mesma esteira, ajudam a regular suas práticas confessionais: a
presença e disposição das grades no interior do hospital a fim de dificultar toda e
qualquer tentativa de fuga; seus horários de regimento que regularam, disciplinaram
e, por vezes, puniram quando não obedecidos; e o apelo a instrumentos de amarra
nos casos mais graves de indisciplina. Esse é um conjunto de fatores - ancorados
em biopolíticas e biopoderes - que mais contribui para moldar práticas e
comportamentos do que, efetivamente, livrar suas pacientes de manifestações
histéricas propriamente ditas. Esses elementos polarizaram-se de tal forma, que da
mesma maneira que Charcot representa a materialização institucional do hospital,
Augustine e as demais moças representariam, portanto, os efeitos de seu exercício
prático de poder.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Uma interpretação foucaultiana de uma produção cinematográfica permite


subverter, a princípio, sua lógica linear de aceitabilidade, direcionando um olhar mais
apurado às formas com que as coisas são construídas. Longe de esgotar uma
pretensão de um funcionamento verdadeiro, as análises trazidas podem ser lidas
como provocações que irão criticar o exercício do poder institucional, do discurso
médico-psiquiátrico e de outras relações de poder que foram postas em evidência na
trama fílmica.
Uma leitura ancorada na multiplicidade de relações de força que são
imanentes ao domínio onde se exercem – no caso, o hospital Salpêrtrière e os
constituintes de sua organização: os exames de rotina, conformação arquitetônica,
as práticas médicas da época – propõem um distanciamento de interpretações
ingênuas e lineares sobre o tratamento e a cura das mulheres histéricas. Trata-se de
pensar essa invenção de um domínio de sintomas que permitiu com que o hospital e
o discurso da histeria se disseminassem no final do século XIX e início do século
XX.
A riqueza, pois, desta contribuição, está justamente em provocar e emergir
caminhos possíveis para aqueles que se interessarem pelo filme e por este artigo,
que problematizou a construção de uma verdade, ou seja, aquela que deu corpus a
uma doença inventada a partir de investidas de um projeto progressivo de reificação
institucional exercido sobre o corpo e a sexualidade de mulheres francesas.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: Um percurso pelos seus temas,


conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

DIDI-HUBERMANN, Georges. La invención de la histeria: Charcot y la iconografia


fotográfica de La Salpêtrière. Madrid: Cátedra (Ensayos Arte Cátedra). 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 1. ed. São


Paulo: Paz e Terra, 2014.

_____. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.


_____. O nascimento da clínica. São Paulo: Forense Universitária. 2008.

GOETZ, Christopher G.; BONDUELLE, Michel.; GELFAND, Toby. Charcot:


construing neurology. New York: Oxford University Prees, 1995.

GRAMARY, Adrian. Charcot e a Iconografia Fotográfica de La Salpêtrière. In:


Leituras/Readings, Porto, no.30, vol X, mai-jun, 2008. pp. 61-64.

HAKOSALO, Heine. The Salpêtrière histeric – a foucauldian view. In: Science


Studies, Maastricht, no. 01, 1991. pp. 19-32.

WINOCOUR, Alice. Augustine [filme-vídeo]. Produção de Alice Winocour, direção


de Alice Winocour. França, 2012. 1 DVD, 102 min. color. son.
THE AUGUSTINE MOVIE: ANALYSIS ABOUT CLINICAL HYSTERIZATION AND
WOMAN DISCURSIVE

Prof. Doutorando Adalberto Ferdnando Inocêncio


Universidade Estadual de Londrina

Tamires Tolomeotti Pereira


Profa. Doutoranda Fabiana Aparecida de Carvalho
Departamento de Biologia
Universidade Estadual de Maringá

ABSTRACT: This paper presents an analysis of the discursive production Augustine


(2012) considering the Foucault's and gender studies that question issues and
historically constituted categories such as gender, race, class and sexuality.
Considering the film materiality and its symbolic constructions that lead to the
establishment of meanings and interpretations in the plane of subjectivity, and the
concept of Michel Foucault device, which points to diffuse and heterogeneous
practices that encompass speeches, institutions, architecture, scientific statements,
measurements, regulations, so the said and the unsaid in power networks, we point
discursive categorizations that says about: a) the female body as medical research
object; b) the representation of hysteria in registration apparatus in the production of
truths about female sexuality; c) the objectification of femininity in medical practices
and d) Apparatus not discursive and the female body invasion.

KEYWORDS: Gender; Hysteria; Discourse Analysis; woman’s psychiatrization.

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