Filme Augustine
Filme Augustine
Filme Augustine
INTRODUÇÃO
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Usamos a marcação “a/o” para contemplar e viabilizar perspectivas de gênero, entretanto, quando
as marcações se referirem a médicos, estamos considerando o domínio masculino, por abarcar os
personagens representados no filme.
É justamente nesse período ambientado na trama que o discurso médico
assume posição estratégica, insubstituível e hegemônica que legitima a prática de
confissão científica por meio da qual se produziu e se reproduziu corpos,
sexualidades e desejos.
Signo desse momento, o médico Jean-Martin Charcot, vivido pelo ator Vincent
Lindon, empreende investigações, postulados, estudos e discussões médicas sobre
a histeria e recolhe Augustine na clausura do hospital psiquiátrico para torná-la sua
cobaia didática, ou seja, um modelo viável pelo qual as crises histéricas poderiam
ser demonstradas a toda comunidade médica e científica da época. Nesse tempo-
espaço, adensado na película, a medicina (e os regimes disciplinares) inventaram
falas sobre a mulher e sobre seu corpo, teorizando e produzindo pareceres, regras
para a qualidade de vida, para os hábitos alimentares e para a regulação das
práticas sexuais. Augustine é, portanto, um recorte de uma história das mulheres, de
uma história de minorias interpelada por grandes instituições de poder e por
discursos hegemônicos.
Todo discurso seria um conjunto de enunciados apoiados na mesma
formação discursiva que está sujeita a regras e contingências que determinam seu
aparecimento, sua permanência e as correlações de força mantidas nas instâncias
sociais (FOUCAULT, 1987). Sob esse ponto de vista, podemos entender a narrativa
do filme Augustine como um destacamento de enunciados que operam apoiados
numa mesma formação discursiva que vai estabelecer: a) um princípio de
diferenciação para as mulheres, em especial as que desviam da economia produtiva
do sexo e do trabalho; b) um esquadrinhamento de sujeitos destacados em papéis,
posições ou proposições, como exemplo, a relação médico-paciente, internas no
Salpêtrière e funcionários e doutores; c) associações com outros enunciados
inscritos ou reproduzidas em artefatos ou práticas culturais, a saber, a
academização do conhecimento sobre loucura, histeria e sexualidade.
Nesse regime de verdades exposto no filme Augustine temos, portanto, um
princípio fundador da histeria; os sujeitos que ocuparam o lugar do discurso da
loucura (deficientes, mulheres, pobres); o discurso científico associado a uma
pedagogia explicativa da doença; e, especialmente, uma materialidade discursiva
desdobrada nos registros médicos, nos compêndios sobre doenças, nos arquivos
hospitalares, nos artigos científicos e jornalísticos publicados, na fala das pessoas,
na cultura do medo e do estranhamento frente a histeria manifestada pelas internas
do hospital.
Ao (re)constituir o lugar conceitual, físico e discursivo do Hospital Psiquiátrico
Pitié-Salpêtriere, Aline Winocoour traz a emergência histórica das narrativas que
possibilitaram a invenção da histeria e a objetificação de saberes sobre as mulheres.
Traços dessa condição contingente sobre o sexo e a sexualidade feminina podem
ser entendidos nas categorizações discursivas que trazemos a seguir.
The Salêtrière hospital wards provided Charcot and his disciples with
the human material which their great consctruction work requerid.
Charcot referred to the hospital as a ‘living pathological museum’, and
noted with satisfaction its ‘considerable [amount] of material and
resources’ (HAKOSALO, 1991, p.19).
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As lições de terça-feira referem-se à exposição de internos de hospitais psiquiátricos em aulas
públicas ministradas por Charcot entre os anos de 1887 e 1888 em Salpêtrière realizadas sempre às
terças-feira para uma plateia de alunos de medicina.
a materialização que garantiria a legimitidade da histeria e, mais do que isso, uma
"[...] autoridade museológica sobre o corpo doente [...]" (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.
17-30).
Essas críticas apontadas somadas ao contato com o filme permitem pensar
uma atmosfera farsesca arquitetada no centro psiquiátrico. A sucessão de cenas em
que Charcot se vale desse aparato médico sugere um caráter dúbio acerca de seu
papel como clínico que ora denota uma preocupação genuína com o tratamento e a
cura da doença, ora se subverte e desliza ante o mero interesse na construção de
seu reconhecimento, na manutenção da doença em Augustine, no ensaio e na
apresentação sintomática da histeria levada a público - sempre com o intuito de
visibilizar a gravidade e a importância das investigações voltadas a ela.
Esse jogo de interesses na manutenção da doença não é neutro e instiga o
espectador a pensar em quanto um centro psiquiátrico, que recebe somente
mulheres com histeria, fortalece uma maquinaria de produção de verdades que
passaram a ser o centro de referência na França do século XIX. Augustine é
somente mais uma peça chave na manutenção da boa reputação que Charcot
conquistara como neurologista-psiquiatra e médico-chefe de Salpêtrière, além de
catedrático na área de anatomia patológica na Sorbonne, o que garantiu ostentar
grandes poderes no meio acadêmico e fora dele.
Esse conjunto de elementos trazidos até aqui constelam relações de poder
que definem um dispositivo de sexualidade. Para delimitar esta noção foucaultiana
de dispositivo, apoiamos em Edgardo Castro (2009, p. 124) que o define como
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
REFERÊNCIAS