O Homem Volkswagen - Wolfgang Sauer
O Homem Volkswagen - Wolfgang Sauer
O Homem Volkswagen - Wolfgang Sauer
DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de
oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da
qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
Sobre nós:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Copyright © 2012 by Wolfgang Sauer
1a edição — Setembro de 2012
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009
EDITOR E PUBLISHER
Luiz Fernando Emediato (licenciado)
DIRETORA EDITORIAL
Fernanda Emediato
PRODUTOR EDITORIAL
Paulo Schmidt
ASSISTENTE EDITORIAL
Erika Neves
CAPA
Hans Donner
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Megaarte Design
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Vinicius Tomazinho
REVISÃO
Marcia Benjamim
Sauer, Wolfgang
O homem Volkswagen : 50 anos de Brasil / Wolfgang Sauer ; pesquisa e redação
Maria Lúcia Doretto. – São Paulo : Geração Editorial, 2012.
Bibliografia.
ISBN 978-85-8130-096-2
1. Empreendedores – Biografia 2. Empresários – Brasil – Biografia 3. Sauer, Wolfgang I. Doretto, Maria Lúcia. II. Título.
12-09773 CDD-338.04092
GERAÇÃO EDITORIAL
Rua Gomes Freire, 225 – Lapa
CEP: 05075-010 – São Paulo – SP
Telefax: (+ 55 11) 3256-4444
E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br
www.geracaoeditorial.com.br
twitter: @geracaobooks
Wolfgang Sauer
O HOMEM
VOLKSWAGEN
50 anos de Brasil
PESQUISA E REDAÇÃO
Agradecimentos
Prefácio: Antonio Delfim Netto
Apresentação: Hans Donner
Sauer sempre foi “o cara”: Salomão Schvartzman
Introdução
1
Paz, guerra e pós-guerra
Um salto no escuro
Uma amizade de seis décadas
2
A descoberta do novo mundo
Chegada ao Brasil
Bosch I
Sauer, o Vermelho
O hospital
Bosch II
Um gesto de extrema confiança
Viajar é preciso
3
Volkswagen: um projeto faraônico
A indústria automobilística brasileira: uma epopeia
Nossa grande escola
Construção de uma sólida família
O jeito Sauer de administrar
Brasilinvest: uma excelente ideia, uma administração equivocada
Revendedores: a rede mais capilarizada do país
Concorrentes e parceiros
Nas salas e antessalas do poder
Um grande encontro
Exportação: a conquista de novos mercados
Iraque: o maior contrato da indústria automobilística mundial
Projeto Pará: uma fazenda em estado de arte em plena selva amazônica
Proálcool – Etanol – Flex Fuel: uma tecnologia genuinamente nacional
Greves: um grito de guerra
De Sauer, o Vermelho, a ponta de lança do capitalismo
A Autolatina
CIP: um processo contra o Estado brasileiro
4
O Senhor Economia
Um homem de três cidadanias
Aglutinando pessoas e ideias
O estreitamento de laços entre minhas duas nações: Brasil e Alemanha
Nem cantor, nem musicista, apenas um amante da música
A Ordem da Cruz de Malta: uma prestigiosa missão
Hagiografia ou apologia?
5
Minha vida após a Volkswagen
Os jovens e o futuro
Fantasia ou realidade?
A nação somos todos nós!
Bibliografia
AGRADECIMENTOS
foi concebido com o objetivo de, através da narrativa da minha trajetória, passar às
Este livro futuras gerações exemplos da minha vivência profissional, listando um conjunto de
valores, a meu ver, imprescindíveis em qualquer direção a ser tomada na vida. Certo
de que minha expressão vocabular não seria suficiente para comunicar as minhas experiências, convidei
amigos para ajudar-me nesta difícil tarefa. A generosidade de todos colocou-me em posição de tal
relevância, envaidecedora, porém imerecida. Busquei uma palavra que, sozinha, dita ou escrita, pudesse
traduzir a natureza dos sentimentos produzidos dentro do meu coração diante da magnanimidade de todos.
Em nenhum momento me julgaram, ao contrário, definiram-me como um condutor de homens, sem
mencionar os meus defeitos. Mas, ou esta palavra não existe, ou eu não a encontro. Desisto. Contudo,
embora de maneira simples, falo da minha felicidade por poder juntar neste livro não apenas os exemplos
das minhas experiências, mas também os de homens notáveis com os quais tive o privilégio de conviver,
desfrutando da amizade de cada um. Compreendo que nós todos participantes do desenvolvimento da
Bosch e da Volkswagen, ajudando a fazê-las grandes e produtivas, conservamos em nossa memória um
rastro dos sonhos e das realizações conjuntas. É natural que, ao mergulharmos nessas lembranças,
pincemos as mais puras emoções particulares e coletivas para compor o quadro vivido em época não tão
distante. Afinal, juntos participamos da escrita da saga da industrialização brasileira. Daí, estou certo,
emergiu um Sauer ornado de qualidades, com as falhas camufladas pelo entusiasmo despertado pela
rememoração das conquistas e pela bondade de tantos amigos. Agradeço a todos do fundo do meu
coração:
A Delfim Netto, meu caríssimo e querido amigo, os meus agradecimentos pela honra de tão inspirado
prefácio. Minhas escritas simples não farão jus ao seu enorme talento, contudo o que posso fazer? Tive o
privilégio de encontrar nesta minha trajetória um amigo e intelectual do seu quilate.
A Hans Donner, os meus agradecimentos por dar ao meu livro o toque de sua incomparável arte.
Obrigado, meu querido amigo, pelo entusiasmo e pela alegria durante a criação da capa deste livro.
A Salomão Schvartzman, os meus agradecimentos pelo carinho contido no seu depoimento, pelo texto
escorreito e por trazer para dentro do meu livro um pouco de sua vastíssima cultura.
A Oskar Burmeister, meu querido amigo Kiko, os meus agradecimentos pela sua vinda de Portugal para
reafirmar a sua amizade e deixar registradas, neste meu livro, recordações tão caras da sua e da minha
juventude. Agradeço à vida por tê-lo conhecido.
A Mauro Iedo Caldeira Imperatori, pelo pronto atendimento às minhas solicitações, pelo fornecimento
preciso de dados e pela leitura preliminar desta narrativa. Obrigado por me emprestar seu intelecto
notável, colocando seu olhar de escritor sobre esta história. A Alex Periscinoto, pelo costumeiro espírito
de colaboração e por deixar impressa, neste meu livro, uma pequena parcela de sua genialidade criadora.
Aos meus amigos entrevistados, os agradecimentos pelas contribuições de suas mentes privilegiadas,
pela permanente boa vontade, pela amabilidade das palavras, por me verem com tão bons olhos e,
sobretudo, pela grande amizade:
Alcides Lopes Tápias, Amaury Amorim, André Beer, Carlos Roberto de Mattos, Carlos Sant’Anna,
João Camilo Penna, John Cook Lane, José Israel Vargas, Leo Krakowiak, Luiz Biagi, Marcelo Jardim,
Marco Antônio Rodrigues da Cunha, Marco Antônio Soares da Cunha Castello Branco, Maria Johanna
Sües Track, Mário Penhaveres Baptista, Maurílio Biagi Filho, Newton Chiaparini, Ozires Silva, Paulo
Simões, Paulo Tarso Flecha de Lima, Pedro Eberhardt, Pedro Malan, Roberto Civita, Sabine Lovatelli,
Sérgio Comolatti, Sérgio Reze, Shigeaki Ueki, S. Stéfani, Vicente Alessi.
Aos meus ex-colegas, os meus agradecimentos por enriquecerem a minha narrativa com os seus
conhecimentos, por tantos elogios e por aqui representarem os milhares de colaboradores que junto
comigo enfrentaram e venceram os desafios para tornar maiores empreendimentos já portentosos,
colocando os nomes Bosch e Volkswagen, duas das minhas grandes paixões, no topo da lista de empresas
instaladas no Brasil. Agradeço também aos meus colaboradores na WS Consult, que me ajudam a manter
ativa a chama do trabalho em equipe. Ter ao meu lado, na composição deste livro, pessoas da Bosch, da
Volkswagen e da WS Consult não me deu apenas prazer. Confirmou minha certeza de ter conquistado
grandes amigos, que fizeram e continuam fazendo parte da minha vida:
Carlos Roberto Rosseto, Christa Maria Weier Borges da Gama, Christian Bruno Schües, Claudio
Menta, Diogo A. Clemente, Evelina Boelcke, Fernando Tadeu Perez, Flávio Ricardo Vassoler do Canto,
Francisco J. R. Bueno, Franz Deutsch, Frederico Blumenschein, Georg Pischinger, Horst Richter, Jacy de
Souza Mendonça, Joachim Lungershausen, Joacyr Drummond, José Apparecido Ferreira, Karl Gutbrod,
Luc de Ferran, Luiz Carlos Mello, Luiz Carlos Vieira, Manoel Messias Gomes de Souza, Marta Soares
Zanela, Mauro Marcondes Machado, Miguel Barone, Miguel Jorge, Manoel Bayard, Reinhold Anton
Track, Ricardo Strunz, Roberto Carvalho Bandiera, Sarwat Wahab, Sebastiana das Graças Damasceno,
Therezinha Silva Araujo.
À escritora e redatora, Maria Lúcia Doretto, meus agradecimentos pelo interesse e entusiasmo ao ouvir
minhas narrativas, pela busca incansável de depoimentos importantes, pelo trabalho de carpintaria na
composição deste texto, que retrata não apenas com precisão, mas também com emoção minha história de
vida.
PREFÁCIO Antonio Delfim Netto
homem que chega aos oitenta anos com uma legião de amigos dispostos a relembrar os
Feliz é o episódios que viveram juntos; e que conta ainda com a memória viva para escrever a
própria história, compartilhada com um bom pedaço da história da modernização
industrial brasileira.
Este homem é Wolfgang Sauer, meu amigo, que me honrou com o convite para este prefácio, que faço
deselegantemente curto para não retardar a leitura de um livro que conta a história de um rico período da
economia brasileira no século XX; e que é, ao mesmo tempo, um romance com as extraordinárias
aventuras de um menino que sobreviveu, junto com a mãe viúva, aos bombardeios durante a Segunda
Grande Guerra em sua cidade natal Stuttgart e que, em pouco mais de duas décadas, construiu uma
carreira empresarial do outro lado do oceano e passou a comandar o maior fabricante de automóveis do
Hemisfério Sul. Nessa qualidade, deu importante contribuição para a modernização do parque industrial
de um dos mais promissores países “emergentes” desta parte do planeta (antes tratados de
subdesenvolvidos) e exerceu papel decisivo na diversificação das exportações de manufaturas no
mercado mundial.
Em 1951, aos vinte e um anos, foi contratado para trabalhar no escritório de representação de
empresas alemãs na cidade do Porto e, com 5 marcos no bolso, emigrou para Portugal para sobreviver e
poder ajudar a família nos anos miseráveis do pós-guerra europeu. Após dois anos, aceitou o desafio de
reerguer a sucursal da Bosch na Venezuela e iniciou uma carreira de executivo com jurisdição ampliada a
outros países da América Central e do Caribe, com crescente expansão das operações comerciais. Em
1961 após rápido retorno à Alemanha, já falando espanhol e português, foi designado para a direção
comercial da Bosch no Brasil, onde seu desempenho permitiu ampliar os negócios da empresa no
mercado interno e a conquista de novos e importantes clientes externos para a produção brasileira.
Todo este preâmbulo é para sinalizar que, ao ser convidado em 1973 pela direção mundial da
Volkswagen para presidir a principal empresa automotiva do Brasil, Sauer já era considerado um dos
mais competentes executivos da indústria no Continente. Ele era especialmente respeitado pela
habilidade no relacionamento com os operários (o “chão de fábrica”) e os sindicatos, num cenário
extremamente delicado pela dificuldade de diálogo entre os governos e as organizações trabalhistas em
toda a região.
Essas qualidades foram fundamentais para seu desempenho nos anos seguintes, quando ele realmente
passou a viver (e liderar em várias ocasiões) alguns episódios vitais da modernização do nosso parque
industrial. Não podemos esquecer que foram momentos que pavimentaram todo um período
extraordinário de crescimento econômico, o qual, para resumir, tirou o Brasil definitivamente da
categoria de país subdesenvolvido.
Citei, de início, como foi importante o esforço de Sauer para ampliar as exportações da indústria
automobilística. Há lances geniais retratados em meia dúzia de capítulos ou depoimentos. Dentre estes,
pela primeira vez, me parece, está toda a epopeia do contrato de exportação dos Passats ao Iraque e seu
pagamento em petróleo, numa época de enormes dificuldades de abastecimento de combustíveis ao Brasil
e em meio ao sangrento conflito entre os países do Golfo Arábico.
O que me alegrou nessas histórias é que se dá o devido crédito não apenas ao desempenho dos
executivos que trataram das operações de alto risco, mas especialmente à exposição dos modestos
funcionários que trabalharam em condições extremamente difíceis e perigosas. Não quero tomar mais
tempo do leitor e deixo apenas um pequeno aperitivo. Referindo-se à dedicação dos trabalhadores nas
difíceis operações de desembarque dos veículos no porto de Acaba, no Mar Vermelho, ele diz que “todos
faziam de tudo, para não atrasar as entregas: se precisava consertar, todos consertavam; se precisava
empurrar, todos empurravam; se precisava guiar, todos guiavam; e se precisava lavar, todos lavavam”.
Empresário de notória competência, o sucesso fulgurante de Wolfgang Sauer se explica igualmente
pela sua forma particular de relacionamento com o chamado “chão de fábrica”, de um lado; e pelo
entendimento da exata dimensão da natureza de como deviam se processar as relações do empresariado
com as instituições de um Estado Indutor.
DEPOIMENTO de Hans Donner
pelo Brasil aos 10 anos de idade, na Áustria, assistindo aos jogos da copa de
Apaixonei-me 58 pela televisão, ao vivo. Eu me espelhava no Gilmar, aquele maravilhoso
goleiro; e meu irmão, no Pelé, nossos ídolos. Jamais imaginei que o destino
me levaria para o Brasil para ficar e permitiria encontrar os nossos mitos e falar com eles em português.
Durante mais de trinta anos em que pude realizar os sonhos profissionais e pessoais aqui, o nome de
um alemão se tornou um mito no Brasil — Wolfgang Sauer. Novamente o destino me agraciou e permitiu,
falando nossa língua de origem, descobrir um grande, doce e suave homem. Ele também se tornaria meu
ídolo.
Foi uma das primeiras das muitas histórias incríveis que eu tive o privilégio de ouvir em primeira mão
— e vocês de lerem — deste grande homem que também ama o futebol. Muitos anos antes, o menino
Wolfgang, provavelmente aos 10 anos, travesso como eu quando era o Gilmar correndo atrás da bola,
participava de uma brincadeira muito perigosa no elevador de um edifício. No caminho da escola, havia
um prédio muito importante, onde ele e seus colegas faziam um campeonato — entravam e saíam
correndo do elevador que não tinha portas, arte que exigia muita habilidade para saltar em cada andar,
uma vez que ele — o elevador — não parava. Certo dia, quando, afoito, pulava para fora do elevador,
Sauer esbarrou na perna de um adulto. Olhando de baixo para cima, viu um senhor muito sério. Ele
conhecia, pois era famoso na cidade por ser dono de uma grande empresa. O senhor o chamou, puxou-lhe
as orelhas e o advertiu: “Nunca mais faça isto. É muito perigoso!”. Em seguida, mais calmo, fixou-o,
perguntando-lhe: “O que você vai querer fazer na vida?”. E Wolfgang prontamente respondeu: “Um dia
quero trabalhar para o senhor”. E o Sr. Wolfgang Sauer iniciou uma empresa na Venezuela com alguns
poucos funcionários. Expandiu-os para 17 mil no Brasil e fez fábricas dessa empresa em toda América
Latina. O elevador ficava no prédio de administração da Bosch na Alemanha. O senhor que lhe puxou as
orelhas era Robert Bosch. As empresas nas quais trabalhou por longos anos constituíam a Robert Bosch
América Latina.
Imaginem a minha felicidade de, depois de tudo isso, ainda poder criar a capa deste livro, que vai
perpetuar uma lição de vida, que meus e os seus filhos merecem conhecer.
SAUER SEMPRE FOI “O CARA” Salomão
Schvartzman
estou em pleno palco do Teatro Municipal de São Paulo, não para cantar uma ária
De repente, de Verdi, muito menos de Wagner.
Estava diante de um microfone para apresentar o organista Richard Marlow, um
talentoso músico inglês de Cambridge que daria um recital de órgão para um Municipal lotado, em
benefício de uma entidade social.
Eu mesmo duvidei que estivesse ali, não para falar de jornalismo ou fazer uma crônica radiofônica.
Eu estava no palco do Municipal obedecendo a uma solicitação do “maestro” Wolfgang Sauer, que me
pedia simplesmente que introduzisse o organista nesse espetáculo beneficente. Nunca discuti “ordens” do
Sauer. Afinal, quem desafia o governo brasileiro para uma queda de braço, que se tornou célebre nos
anais econômicos do País, não vai negar apoio a uma manifestação de solidariedade que sempre norteou
a vida deste meu amigo alemão.
Há muito tempo, eu não tinha notícia de Wolfgang Sauer, quem tive a honra de entrevistar, nos anos 80,
na qualidade de todo-poderoso presidente da Volkswagen do Brasil e, depois, da Autolatina. Os jovens
de hoje, que em geral já compram seu primeiro carro com o primeiro emprego, ajudando as montadoras
brasileiras a bater recordes sucessivos de vendas, certamente não sabem que a moderna indústria
automobilística muito deve a Sauer — um alemão corpulento que chegou ao Brasil em 1961, naturalizou-
se brasileiro em 1982 e transformou a filial da Volks na maior empresa privada do País. Para isso, ele
frequentou gabinetes presidenciais, comprou brigas com ministros e se tornou interlocutor em terríveis
negociações salariais com o movimento sindical.
Durante anos, seu principal interlocutor nessas refregas foi ninguém menos do que Luiz Inácio Lula da
Silva. E mais: Wolfgang Sauer foi o homem que inspirou a criação da Autolatina — resultado da fusão
das operações da Ford e da Volkswagen, antecipando em pelo menos 20 anos a tendência corporativa
global das fusões entre gigantes.
Pois bem. Fiquei sabendo outro dia que meu amigo Sauer, aos 80 anos, continua mandando brasa, com
a agenda ocupadíssima e o mesmo espírito empreendedor. Ele está à frente de sua empresa, a WS
Consult, iniciais de Wolfgang Sauer, que tem escritórios em São Paulo e no Rio e presta consultoria a
clientes de todo o País, sobretudo nas áreas de informática, petróleo e energia solar.
Ele trabalha em silêncio para viabilizar, nesse segmento, um acordo de parceria entre Brasil e
Alemanha. Diz Sauer: “Sou como a galinha. Só gosto de fazer barulho depois que o ovo está na cesta”.
A cesta básica de Wolfgang Sauer está cheia de entusiasmo, ideias, projetos. As paredes de seu
escritório em São Paulo são decoradas com fotos suas ao lado dos ex-presidentes JK, Sarney, Collor.
Sauer é homem de diálogo, com seu português fluente, mas ainda carregado de sotaque alemão, sua marca
registrada. E Sauer elogia a postura de Lula ao chegar ao governo, muito mais sereno e conciliador do
que nas negociações salariais com a Volkswagen. O próprio Lula já disse mais de uma vez que aprendeu
com o “alemão”, como se referia a Sauer, que confronto não leva ninguém para frente. Só o diálogo
constrói.
E Wolfgang Sauer continua dialogando e construindo. E dialogando e construindo tanto que não
acredito que ele completou 80 anos. Tenho certeza de que esta é a segunda vez que ele faz 40.
INTRODUÇÃO
da minha infância, as horas eram marcadas pelos sinos das igrejas. Situada no
Na Stuttgart Sul do país, banhada pelo Rio Neckar, numa das mais belas regiões da
Alemanha, era uma cidade pacata, apesar de ser chamada “o coração da
indústria automobilística alemã”, pois lá já estava o mais antigo fabricante de automóveis do mundo, a
Mercedes-Benz. Quem a visitasse teria a sensação de que, a cada dia, alguém invisível lavava e
esfregava com esmero todas as calçadas e praças, limpando-as de todos os objetos e substâncias
indesejáveis. Na primavera, ela se coloria inteira, espalhando pelo ar o aroma de variadas espécies de
flores. Embora tivéssemos o hábito de caminhar curtas e longas distâncias, o trem fazia parte das nossas
vidas. Ele nos levava para fora dos perímetros da cidade, nele as pessoas chegavam e partiam, dele
conhecíamos todos os ruídos, fumaças, vapores e odores. Passei a fazer parte dessa comunidade no ano
de 1930. No dia 15 de março, saí do ventre de minha mãe. Passamos a formar uma família de cinco
membros, o casal, duas filhas e eu. Vivíamos bem. Meu pai era diretor de uma companhia de distribuição
de carvão e, a cada mês, trazia para casa a soma considerável de 800 marcos. Mas ele partiu
definitivamente, quando eu ainda não tinha tido a percepção exata de como ele era. Completei quatro
anos e, logo após, ele morreu. Ao enterrá-lo, transformamo-nos, da noite para o dia, em uma família
pobre. Com o título de aposentadoria, nossos rendimentos mensais despencaram para 120 marcos.
Mamãe assumiu os dois papéis. Era, a um só tempo, nossa mãe e nosso pai. Alugou três quartos de nosso
apartamento e passou a datilografar cartas para várias empresas. Eu a via, até tarde da noite,
movimentando os dedos ágeis no teclado de uma máquina manual. Ah! Mamãe!!!... Que mulher admirável
era ela! De estatura média, os cabelos negros, presos num gracioso coque, emolduravam uma pele lisa e
clara. No rosto, os olhos de um azul intenso e translúcido, como duas contas de água-marinha,
iluminavam-lhe a face inteira. Como uma espécie de ímã, eles me atraiam. Neles eu lia censura para as
minhas peraltices, reprovação para os meus erros, incentivo para os desafios, aprovação para as minhas
conquistas e derramado amor nas horas em que prevalecia a ternura de seu sentimento materno. Ela era
linda! Séria, brava, serena, triste ou alegre, quando abria um amplo sorriso, jamais perdia seu encanto.
Usava vestidos de estampas claras, e nem o luto, após a morte de meu pai, empalideceu sua fisionomia e
sua beleza. Eu a chamava de mumy, e, para mim, ela usava um apelido carinhoso. Eu era seu wölfle (o
“le” é um diminutivo afetuoso, típico do Sul da Alemanha). Eu adorava minha mãe, e ela retribuía o meu
sentimento na mesma medida. Ao rememorar, ainda hoje, nosso relacionamento perfeito, me emociono
profundamente.
Minhas fotos de infância mostram uma criança bem nutrida, apesar de nossa condição financeira.
Mamãe fazia malabarismos para nos manter bem, não apenas fisicamente. Ela nos criou com muito amor,
sem jamais, deixar que perdêssemos o respeito por ela e pelos seus princípios. Sua força, sua tenacidade
e, especialmente, sua coragem foram fatores marcantes na minha formação, influenciando, mais tarde,
minha conduta no decorrer da vida. Comecei a trabalhar muito cedo, no coral da orquestra sinfônica de
Stuttgart. Eu ia muito bem, fazia papel de solista, e, naquela época, minha memória de menino retinha as
letras de todas as óperas cantadas. Mantive aquela sensação auditiva maravilhosa que fez de mim um
apaixonado por música clássica. Se, desse lado, eu me aplicava, na escola, ao contrário, fui um desastre.
Eu era uma criança menos afeita a comportamentos e formas de aprendizado tradicionais. Não era
nenhum santo, aliás, era bem malandrinho. Perdi a conta dos bilhetes azuis e advertências. Envergonhado,
eu os escondia de minha mãe até que ela os achasse, devido à obrigatoriedade de devolvê-los com sua
assinatura. Passei por sete escolas. Em todas não ultrapassei a condição de aluno medíocre. Meus
colegas se interessavam muito por futebol, mas eu não podia fazê-lo porque tinha apenas um par de
sapatos e não era autorizado a estragá-los. Em casa, minhas irmãs tocavam piano, e minha mãe me queria
assumindo o lugar de meu pai para acompanhá-las ao violino. Herdei apenas o instrumento, minha
vocação era nula. Cometi aquilo que se poderia chamar de heresia. Era um objeto grande, pesado para a
minha idade, abri-o em dois e fiz dele um tobogã para brincar na neve. Em um passeio com meus
companheiros de turma, levei-o comigo. Alguém o destruiu. Ali, terminou minha carreira de músico
instrumentista.
Esses tempos descontraídos seriam sucedidos por momentos trágicos. Eu completara 9 anos.
Anunciava-se uma guerra gloriosa contra o comunismo, sem jamais pensar em derrota, pois, para os
condutores da nação, era clara a supremacia alemã. Nas conversas, às vezes acaloradas, falava-se de
uma Alemanha imbatível, suficientemente forte para destruir os inimigos — os comunistas. Eu pouco ou
nada entendia daquilo, mas conseguia perceber as alterações na vida cotidiana, na escola, na
comunidade, no ar de agitação e preocupação, tomando conta dos rostos dos adultos. Meu curto
entendimento das questões bélicas seria, repentinamente, alargado quando começaram os bombardeios às
cidades alemãs. Fábricas, locais de trabalho, escolas eram evacuados. Instalava-se o terror. A cada noite
passávamos de duas a três horas nos abrigos, embaixo da terra. Nossas apresentações na Ópera
continuaram, mas em outro ritmo. Quando ouvíamos os alarmes de bombardeios, nossas vozes eram
abafadas por aquele barulho apavorante. Calávamo-nos de súbito. Em sobressalto, abandonávamos
nossas partituras, saltávamos do palco para a plateia em busca das saídas do teatro e corríamos em
direção aos abrigos. Havia um rapaz da minha idade, morando no mesmo bairro que eu. Seu nome, Karl
Gutbrod. Ele relembra nossa angústia de então: “O impacto da guerra em nossas vidas intensificava-se
continuadamente. Em setembro de 1943, Stuttgart sofreu o primeiro ataque aéreo feito à luz o dia. Dentro
de poucas semanas, fomos separados, evacuados para pequenas cidades e vilarejos no campo. Eu fui
para Biberach, na região dos Alpes. Perdi o contato com Wolfgang, cujo charme, já naquele tempo, era
impressionante. Ele era um rapaz alto, amigo de todos e, apesar da guerra, tinha sempre pensamentos
muito positivos. Voltaríamos a nos encontrar bem mais tarde em nossas atividades empresariais”. Eu
também fui mandado para uma escola mais para o interior, mas pedi para retornar porque era o único
filho homem de minha mãe. Meu pedido foi atendido, contudo vivíamos atormentados por um sentimento
comum, ela e eu. A cada dia temíamos não nos ver outra vez. Quando se anunciava o ataque, tiravam
quem havia permanecido nas escolas, e todos corríamos para os abrigos antiaéreos. Lá dentro, colados
uns aos outros, ouvíamos o barulho ensurdecedor das bombas e projéteis lançados sobre nossas cabeças
e, quando terminavam, nunca sabíamos se podiam voltar. Naquele estado de pavor, meus primeiros
pensamentos dirigiam-se a minha mãe. Onde estaria ela? Em nossa casa? Onde? Teria tido tempo de
abrigar-se? Aterrorizado perguntava a mim mesmo: “Será que a verei outra vez?”. Descobri depois que
aquele sentimento tomava conta dela e de mim simultaneamente. Ela também fazia as mesmas perguntas a
si própria e era assaltada por medos semelhantes. Isso formou dentro de mim uma sensação para a qual
até hoje não tenho explicações. O relacionamento com minha mãe, então muito carinhoso, intensificou-se
de tal maneira, tornando insuportável a ideia de me perder dela naquela confusão que invadira nossa
cidade. Terminado o bombardeio, passado o primeiro susto, saíamos do abrigo. Na primeira vez,
espantado, deixei aquele buraco para me defrontar com um novo assombro. Das casas, dos prédios, da
vegetação, de tudo que nos cercava minutos antes restavam apenas ruínas, pedaços ainda queimando pelo
fogo. Nuvens de fumaça negra se alastravam pelas ruas, faziam arder os meus olhos, entravam pelas
minhas narinas, aterrorizavam meu pensamento constante: “Onde está mamãe?”. Corria em direção a
minha casa. Tropeçando entre os escombros, sentindo uma espécie de aniquilamento provocado por toda
aquela destruição, dominado por uma ideia única — ver minha mãe —, eu prosseguia ofegante. Depois
de uns quarenta minutos de corrida, quase sem fôlego, encontrava-me diante dela. Ambos parávamos, os
corações aos saltos, os rostos lívidos, o mutismo causado pelo espanto do reencontro. De repente,
quebrávamos o silêncio, corríamos um em direção ao outro, abraçávamo-nos, tocávamo-nos para sentir a
realidade física de cada um. Ríamos e chorávamos a um só tempo. E, assim foi, até nossa casa ser
atingida pelos bombardeios. Pouco tempo depois, Stuttgart foi totalmente destruída.
Ainda durante a guerra, soldados do exército alemão vinham às escolas recrutar jovens para fazer
parte da Hitlerjugend.
A ordem de comando era:
— Quem quiser entrar para a SS Division Waffen Hitlerjugend deixe a classe. Quem não quiser pode
ficar.
Inflamada pelo discurso dos soldados, a maioria saía. Eu tive sorte. Um primo meu fazia parte de um
regimento importante do exército e havia me convocado para fazer parte de seu pelotão. Minha mãe
sempre usava esse pretexto a fim de impedir meu ingresso na Hitlerjugend, e seu argumento era aceito.
Assim, permaneci em Stuttgart. Não sobrou nenhum dos meus colegas de classe. Todos os participantes
da Hitlerjugend morreram em combate na batalha das Ardenas. Ainda me lembro daqueles cemitérios
enormes, cheios de cruzes, algumas com nomes, outras sem. Milhares e milhares de jovens alemães ali
estão enterrados. Aquela visão sombria e terrificante formou em minha mente um quadro inesquecível
daquelas sepulturas de meninos soldados cuja vida foi ceifada pelos horrores da guerra. Na minha
família, apenas um tio e esse meu primo eram nazistas. O último foi para frente de batalha na Rússia.
Morreu em um ataque aéreo em Karlsruhe, quando voltava para receber um novo comando na Alemanha.
Minha mãe era contra o nazismo, e assim também era meu pai. Ela dizia:
— Graças a Deus, ele morreu antes da guerra, porque, senão, teria sofrido muito.
Ele era membro de um partido conservador, de centro, com integrantes católicos e judeus. A maioria
deles foi liquidada durante a guerra. Mamãe acreditava que papai teria tido o mesmo destino. Um dos
meus cunhados, apesar de não ser nazista, foi convocado. Era capitão. Quando souberam de sua posição
contra Hitler, baixaram sua patente e o transferiram como soldado para um batalhão de castigo formado
por quem não apoiasse o regime. Debaixo do comando de oficiais nazistas, esses homens eram enviados
para as posições mais difíceis. Mais tarde, como faltavam oficiais, colocaram-nos para chefiar as tropas.
Assim aconteceu com meu cunhado.
Conforme a destruição caminhava por Stuttgart, fomos evacuados. Nosso destino foi o local onde
morava minha avó. Lá, antes da guerra, eu passava minhas férias. Nesses períodos, eu trabalhava com
meu tio José, muito querido. Ele era sapateiro e, enquanto as mãos se movimentavam consertando os
sapatos, falava e me ensinava. Como um aluno aplicado, eu absorvia todos os seus conceitos plenos de
sabedoria. Até hoje, guardo essas relíquias, com amor e carinho e sem grandes cuidados porque jamais
serão roubadas ou perdidas. Estão fixadas no meu cérebro ao lado da gratidão que sempre lhe devotei.
Mas ali também não havia lugar para todos nós. Conseguimos abrigo em uma fazenda de 100 hectares,
enorme para os padrões alemães. Nossa estada era condicionada ao fato de eu prestar trabalhos, durante
o horário livre depois da escola. O trem me levava para a escola, mas até chegar à estação ferroviária
eram seis quilômetros de caminhada. Eu trabalhava na parte da manhã e, às cinco horas da tarde, estava
de volta à cocheira para dar comida às vacas, limpar o esterco e, depois, participar da colheita, tirando o
trigo da palha. Eram dois hectares de plantação de trigo. Após esta atividade, fazia-se a estocagem. Era
preciso levantar sacos de sessenta quilos, tarefa pesada e difícil para um garoto de treze anos, mas eu
conseguia fazê-la. Foi uma experiência muito dura, mas acho muito positiva, porque ali entendi o valor
do trabalho. Ele é a base da vida. Cavalos faziam parte dessa lida campesina. Havia dois, lindos! Com
um ancinho, eu juntava a palha. Depois de recolhida, era colocada junto ao esterco líquido produzido
com as fezes e urina das vacas. Esse esterco era colocado em um tanque acoplado a um trator para, em
seguida, ser espalhado pelo campo. Ao manejar o trator, puxei o cabo a fim de fazer funcionar a bomba
da máquina. Todo o esterco líquido caiu sobre mim. Aquela substância pegajosa e fétida se espalhou da
minha cabeça aos pés, e o líquido grudento colou minha roupa ao corpo. Tudo tinha um cheiro
insuportável, mas, apesar do nojo, eu precisava terminar o trabalho. Hoje, esse episódio desperta risos,
mas, naquele momento, pareceu-me uma tragédia.
Sozinho naquele vasto campo, em meu laborioso trabalho, certo dia, quando levantei o ancinho, um dos
cavalos deu um salto à frente. Uma de suas patas caiu justamente sobre os dedos dos meus pés. As
marcas ficaram em meu sapato de madeira, pois, naquela época, eram assim os calçados dos
camponeses. Senti uma dor lancinante. Ao susto do primeiro momento acrescentou-se o pavor. Contudo,
tive sangue frio para atrelar os cavalos a uma carroça e correr para o posto de saúde da aldeia, a três
quilômetros dali. Um médico bem idoso me atendeu. Não havia mais homens jovens em nenhuma função,
apenas senhores mais velhos, pois já não serviam para os serviços militares. Olhando para meus pés, ele
me perguntou:
— Mas como você fez isso?
Expliquei-lhe e falei da grande dor que sentia. Respondeu-me:
— Lembre-se do que Cristo sofreu na cruz.
Deu-me uma injeção contra tétano, limpou a ferida, cobriu-a com ataduras e me dispensou. Voltei para
o campo, peguei o ancinho e fui para casa. O dono da fazenda ouviu todo o meu exaltado relato. Tentando
me acalmar, disse: “Bom, isso acontece. Não tem grandes problemas. Você vai sarar”. E, realmente,
sarei.
Dois fatos iluminaram aqueles dias de labor físico intenso. Invadido pelo cansaço, ansiando pelo sono,
não havia espaço para muitas divagações. De repente, toda a exaustão se foi, ondas de bem-estar
passeavam pelo meu corpo, tomavam conta da minha mente, compondo poemas de ritmos e visualizações
inspirados por um único ser. Apesar da juventude de então, que sonhos, além de fugir, poderiam ser
acalentados durante o período da guerra? Pois ali estava um! Apaixonei-me! Como num conto de fadas,
eu, um camponês, usando sapatos de madeira, enamorei-me de uma nobre, uma condessa. Ela era linda,
linda! Tínhamos ambos catorze anos. Nossos encontros, às escondidas, tiravam-me do meu mundo em
preto e branco. Com meu grosso calçado, eu adentrava em um paraíso multicolorido, envolvido pelo
encantamento de seus olhos azuis e pela doçura da sua voz. Mas, que pena, durou tão pouco. Logo ela
precisou partir. Nosso romance teve a fugacidade daquelas flores que desabrocham ao amanhecer,
enfeitam o dia com suas cores e fenecem ao anoitecer.
O segundo acontecimento não tinha a delicadeza do primeiro, ao contrário, exigia esforço e vigor e
tinha a pulsação comum às aventuras. Na escola, repetia-se a mesma história. Eu não era bom aluno,
aliás, era muito ruim. Mas esportes me atraíam. Um professor, uma exceção então, era jovem e dava aulas
de educação física. Aficionado por alpinismo, levou nosso grupo para a região dos Alpes, em um final de
semana. Que visão deslumbrante! Aquela cadeia de montanhas com picos elevados que chegavam a 2.700
metros me extasiava. Entusiasta do esporte, o professor nos iniciou em sua prática. Contudo, tínhamos
uma tarefa. Ao mesmo tempo que subíamos, limpávamos as paredes dos morros. Adorei aquela
combinação. Do outro lado das montanhas, estava uma esquadrilha alemã de caças, com os aviões mais
modernos do mundo. Movidos por turbinas, alcançavam velocidades de até 800 quilômetros por hora.
Seus ataques surpreenderam os americanos e ingleses. Depois da guerra, os americanos utilizaram essa
tecnologia, introduzindo-a em seus aviões para transporte comercial. Muito mais tarde, já na Volkswagen,
encontrei o comandante dessa esquadrilha na DDR — Deutche Demokratic Republic. Ele era o
presidente internacional da companhia de comércio exterior. Convidou-me para negociar o fornecimento
de prensas para a Volkswagen Brasil. Pegaram-me de carro na Alemanha Ocidental, passamos para a
Oriental, sem problemas. Perguntei-lhe como ele havia chegado àquela posição. Dentro de seu escritório,
não me deu nenhuma resposta. Fora, já na rua, olhando para os lados e para trás, verificando se alguém
poderia estar nos espiando, falou-me: “Eu era comandante daquela esquadrilha. Depois da guerra, vim
para este lugar, porque minha família morava e ainda vive aqui. Talvez, nesta posição, eu tenha
oportunidades de fazer muitas viagens internacionais, então eu aguento este sistema. Na realidade, não
tenho alternativa”. Aquela situação evidenciava o fato de que muitas decisões não dependem dos desejos
do homem, mas das circunstâncias que não lhe permitem escolher. Tive muita pena desse comandante.
Voltando a Stuttgart, lembro-me de que antes de partir para o campo, naquele clima de conflito e
tragédia, minha já fraca performance escolar piorou. O diretor da escola procurou minha mãe:
— Sra. Sauer, não adianta fazer nada com seu filho, ele não vai adiante. Ele não presta para nada! Não
presta! Não presta! Sabe para o que ele presta? Para limpar trilhos de bondes.
Como minha mãe permanecesse surda às suas advertências, meses depois, ele voltou a insistir:
— A senhora tem que tirá-lo da escola e mandá-lo para as minas de carvão.
Fui até as minas para ver como eram. Trabalhava-se a mil metros abaixo da terra em espaço exíguo.
Sinceramente, aquilo não me agradou. Eu tinha catorze anos!
Muito mais tarde, quando eu já estava no topo da minha carreira, minha mãe o encontrou em uma das
ruas de Stuttgart. Imediatamente, ele veio cumprimentá-la, dizendo-se sabedor por antecipação das
minhas grandes qualidades, afirmando que eu era um dos seus alunos fadados a um futuro brilhante. Com
sua habitual franqueza, mamãe o fez rememorar seu discurso recheado de “não presta”. Constrangido, ele
alegou não se lembrar do episódio, dizendo ser engano dela: “Não, sra. Sauer, eu não podia dizer uma
coisa dessas. Seu filho estava entre os meus melhores alunos”. Ela continuou sustentando: “Falou, sim,
professor, não uma, mas algumas vezes”.
Um amigo de meu pai, diretor-geral dos correios, concordou, a pedido de minha mãe, em me dar um
cargo público dentro da instituição, como distribuidor de cartas. Fiquei lá dois meses. Saíamos às 5
horas da tarde. Vinte minutos antes, todos já haviam guardado seus objetos de trabalho. Iam lavar as mãos
e ficavam aguardando o horário de saída. Francamente, aquele tipo de trabalho e de comportamento não
me agradou. Minha mãe ficou muito brava com meu pedido de demissão. Ela queria assegurar um
emprego público para mim, pois não desejava ver minha mulher na mesma situação enfrentada por ela,
depois da morte de meu pai. Em seus argumentos, ela defendia a continuidade de minha família, sem o
aperto financeiro pelo qual ela passara, pois para um funcionário público os rendimentos continuariam os
mesmos, após seu falecimento.
Apesar do meu baixo rendimento escolar e da incapacidade de me manter em um serviço burocrático,
sem nenhum estímulo, sempre tive a certeza de que um dia eu seria um vencedor e faria minha querida
mãe sentir orgulho de mim. Duas coisas ligadas uma a outra eram uma espécie de ideia fixa em minha
mente: vencer e dar à minha mãe conforto material para compensar todas as adversidades pelas quais ela
havia passado.
Durante a guerra tínhamos comida racionada, mas sempre havia algo para comer. Se a guerra foi uma
catástrofe, o período seguinte não foi menos trágico. As consequências foram gravíssimas, e amargamos
toda espécie de restrições. Não havia alimentos para ninguém. Eu ajudava como podia, sem reclamar da
escassez a que estávamos condenados. Era um adolescente, tinha muita vontade de comer, mas nunca
disse nada à mamãe sobre a minha fome. Afinal, encontrei um caminho. Morávamos perto de um gueto de
judeus. Como todos nós, eles procuravam comida. Sabedor disso, entrei em um negócio não
recomendável, o blackmarket formado para conseguir alimentos, fora da Alemanha. Eles queriam carne
defumada. Respondi que iria tentar encontrar. E o fiz, mas não de boi como eles encomendaram.
Encontrei somente carne defumada de cavalo e a entreguei como se fosse de boi. Ninguém percebeu nada.
O mercado negro envolvia um processo complicado. Só se arriscava quem tivesse audácia provocada
pela necessidade premente de comida e dinheiro, como era meu caso. Nossa família aumentara. Éramos
sete. Mamãe, minhas duas irmãs e três sobrinhos. As duas irmãs haviam perdido seus empregos, pois as
fábricas onde trabalhavam foram bombardeadas. Meu cunhado estava preso. Embora com 15 anos, eu me
sentia o homem da casa. Para conseguir os alimentos, eu devia passar pela fronteira francesa, onde havia
a presença de americanos. Então, era preciso saber quem estava lá para eu poder passar com as duas
malas de carne defumada. Era sempre um risco. Certa vez, pedi três quilos de batata, arrumaram trezentos
quilos. Nunca vou esquecer a reação de minha mãe diante daquelas batatas. Ela chorava copiosamente.
Parecia uma criança que, após ter ficado perdida por longo tempo, havia encontrado o caminho de casa.
Havia escassez de tudo — alimentos, dinheiro, trabalho —, enfim, faltava o essencial à vida do ser
humano. A despeito dos meus sofríveis boletins escolares, tive a sorte de encontrar um emprego como
técnico industrial na Bauchnet. Era uma empresa de construção de equipamentos elétricos. O diretor me
perguntou:
— Você é filho de Josef Sauer?
— Sou — respondi.
— Então, pode ficar — me disse ele.
A empresa mantinha um curso para técnicos industriais. Era muito interessante porque tínhamos dois
dias de teoria e três dias estudando e trabalhando diretamente na fábrica. Então, percebi que, para me
destacar dos demais, era necessária muita dedicação. Concentrei minha atenção em tudo que via e ouvia.
O senso de dever em relação ao trabalho foi se desenvolvendo rapidamente, e acredito ter atingido
naquela fase uma maturidade de comportamento responsável pela assimilação de teorias e práticas
oferecidas pelo curso. Os conhecimentos e habilidades adquiridos ali foram fundamentais para o
desempenho das atividades nos postos assumidos posteriormente. Um dos diretores aconselhou-me:
— Vai demorar muito para a Alemanha se recuperar desses problemas de guerra. Aqui, não há futuro.
Vá para fora. Saia daqui.
Em seguida, receberam um pedido de um representante deles, em Portugal. A empresa queria um jovem
alemão já formado, um técnico administrativo industrial para tomar conta do escritório deles na cidade
do Porto. Eram também representantes da Bosch, naquele país. Aceitei a proposta. O sr. Bauchnet
sugeriu-me o estudo da língua portuguesa, porque havia uma possibilidade no Brasil. Tratava-se de um
empresário interessado em fazer um negócio de geladeiras — era o dono da Wapsa e da Walita.
Minha ida para Portugal foi cheia de contratempos. Os vistos para sair por Frankfurt, atravessar a
Suíça, a França e a Espanha eram impossíveis. Depois da guerra, as fronteiras estavam fechadas para a
saída e entrada de alemães. Assim, o engenheiro responsável pela minha partida pensou em uma saída
via Hamburgo. No porto, estava atracado um navio português de 1.200 toneladas. Nele embarquei com a
promessa de receber um crédito em escudos ao chegar a bordo. Minha mãe havia colocado 5 marcos no
meu bolso, mas, como eu sabia das dificuldades enfrentadas por ela, fiquei com eles até chegar a
Hamburgo. De lá, mandei-os de volta, através de um amigo. Estava no navio um português, o Padre José,
vindo do Canadá, onde havia trabalhado. Fizemos amizade, e ele me ofereceu alguns escudos. Depois eu
os paguei. Levamos quinze dias de Hamburgo ao Porto. Uma forte tempestade durante oito dias nos levou
para muito longe da costa de Biscaia. Uma ventania impetuosa nos afastava mais e mais do nosso destino.
Eu não sabia se rezava para sobreviver ao temporal, ou se pedia para morrer logo de uma vez e livrar-me
daquela tormenta. A viagem terrível parecia interminável. Quando, por fim, o tempo mudou,
reencontramos nossa rota e atracamos no Porto. Minha mãe fez uma caixa de madeira para eu guardar
meus minguados pertences. Ela era o meu único bem e até minha inseparável companheira. No Porto,
saímos do navio em um pequeno barco a remo. Éramos três, o barqueiro, minha caixa de madeira e eu.
Ele remava com toda a força, mas a pequena embarcação me parecia muito frágil. Chegamos à beira de
um muro de uns dez metros de altura. Durante aquela curta trajetória, eu não conseguia parar de pensar:
“E se esse barco vira? E se caem as minhas coisas?”. Sentia-me meio perdido, até aportarmos diante de
um elevador de carga, que nos levou para cima. Ninguém me esperava. Passei pela alfândega. Soube que
eu era o primeiro alemão, oficialmente imigrante, desde a guerra. Eu tinha completado vinte e um anos.
Distanciei-me da Alemanha, da presença diária de minha mãe e de minha família. Entrava em outro
universo povoado de desafios. Muitas experiências positivas e negativas me aguardavam, mas, em
Portugal, tive um aprendizado muito profícuo.
UM SALTO NO ESCURO
amigos em Portugal, mas com um deles havia aquilo a que dou o nome de identidade
Fiz muitos absoluta. Depois da minha partida, vimo-nos em tempos esparsos, mas, quando nos
encontrávamos, estabelecia-se de imediato aquela cumplicidade que tinha sido a
tônica do nosso relacionamento. De um momento para o outro, era como se o tempo não tivesse existido,
como se partíssemos do mesmo ponto no qual nossa conversa tinha sido interrompida. Oskar Burmeister
é o nome dele, mas para os íntimos, como eu, ele é o Kiko.
Quando saí para a Venezuela, comuniquei-o:
— Kiko, vou para Caracas. Tenho um contrato de dois anos com a Bosch.
— Oh! Wolfgang, tu fazes um contrato de dois anos, vais para além-mar, não sabes o que vai
acontecer... E depois?
— Não se preocupe, Kiko, o contrato está muito benfeito, com garantias, tudo muito bem organizado.
Ao saber da minha intenção de escrever um livro, imediatamente prontificou-se a me ajudar. Arrumou
sua mala e embarcou para o Brasil. Sentamo-nos frente a frente. Tornamo-nos os cúmplices de sempre.
Com três anos mais que eu, Kiko é dono de uma alegria contagiante, de fala rápida e envolvente, de
raciocínios profundos e de domínio absoluto de qualquer tipo de conversação. Sua vivacidade e
loquacidade nos levaram imediatamente ao passado. De repente, recuperamos nossa juventude, e ele
falava como se uma terceira pessoa ouvisse uma história cujo roteiro ambos conhecemos de cor. Kiko
iniciou o nosso diálogo:
— Sou alemão, mas vivo em Portugal, onde nasci. Também meu pai e meu avô ali nasceram. Já lá se
vão três gerações de alemães. Infelizmente, não temos sangue português. Não se permitiam misturas.
Fazíamos parte de famílias vindas da Alemanha. Isoladas, conservando cultura e hábitos germânicos,
formavam uma comunidade muito fechada. Foi ali que o Wolfgang caiu, ao chegar a Portugal. Logo me
tornei seu amigo. Éramos um grupo de jovens. Saíamos, jantávamos, íamos a bailes e, como rapazes
disponíveis para casamento com as moças alemãs, éramos muito convidados pelas famílias. Eram festas
de Natal, de Ano-Novo, de Páscoa. Que ambiente mais propício para o Wolfgang esparramar seu
irresistível charme?! As meninas eram loucas por ele.
— Kiko, que exagero! Você sabe que, à época, era muito difícil conseguir sair sozinho com uma moça.
Era preciso driblar todo tipo de resistência.
— Ora, Wolfgang, e eu não me lembro de quantas vezes pedias emprestado meu carro? Eu bem sabia
para o que era!
— Bom, quase me casei com uma moça muito bela. As insistências foram muitas, e, apesar de eu me
sentir muito atraído por ela, não passei da linha do quase. Eu era muito jovem e tinha a cabeça povoada
por grandes sonhos.
— Tu, Wolfgang, trabalhavas para meu tio Roberto Cudel. Lembro-me de quando partiste. Ele correu
ao aeroporto para reafirmar sua intenção de te tornar sócio da firma, com 25% de participação. Sei que
estavas farto das intrigas entre os filhos dele, mas era tão boa a proposta que qualquer moço da tua idade
teria aceitado aquilo. Era um ótimo trabalho; e o rendimento, excelente. Mas não, havia chegado tua
oportunidade de dar um salto, indo para a América Latina, e, apesar de todas as incertezas nela contidas,
tu não a perdeste. Nesse intervalo em que estiveste no Porto, fizemos tantas coisas... Lembro-me do teu
primeiro pedido. Ansiavas por visitar tua mãe e por mostrá-la a mim. Dona Maria Sauer lá estava à
nossa espera, com os olhos úmidos de emoção e com a certeza cultivada durante longo tempo de rever
seu filho. Depois do afetuoso e apaixonado abraço, seguido de beijos, afastaram-se como para se ver
melhor. Tu conservavas um dos braços em sua cintura. Ela não te tocava, apenas te olhava. Aquele
prolongado discurso amoroso tinha uma linguagem mágica, inaudível para quem os rodeava, mas
perceptível para mim, que os observava. Era uma comunicação secreta, cujos códigos apenas os dois
conheciam. Afastei-me para deixar-te à vontade.
— Em nossas curtas pausas de trabalho — continuou Kiko —, assumíamos nossos papéis de
cavaleiros andantes e rodávamos por toda parte, atrás de inesperadas aventuras, animados pelo desejo
vivo e intenso da juventude e pela riqueza dos nossos sonhos e devaneios. Um dia, fomos a Munique
visitar um amigo. Ele tinha uma noiva e nos convidou para jantar. Eu estava a ler um jornal. Aproximei-o
de ti: “Olha, Wolfgang, hoje, os russos abrem a fronteira para a Áustria”. Não hesitamos um momento.
Deixamos o amigo, a noiva, o jantar e partimos para Viena. Estavam lá todos os russos, deixaram-nos
passar, e, quando lá chegamos, tu me disseste: “Kiko, eu gostaria de dormir no Hotel Sacher. É muito
famoso e tem a célebre torta Sacher, feita de chocolate austríaco”. Um pedido teu era uma ordem!
Deparamo-nos com um porteiro fardado, cheio de galões dourados, vestindo impecáveis luvas brancas.
Dirigi-me a ele: “Somos alemães, mas vivemos em Portugal. Meu amigo tem aqui um sonho — dormir no
seu hotel, mas não temos dinheiro”. Para nossa surpresa, ele nos fez entrar e nos deu um quarto de
decoração suntuosa, com abundância de veludos e franjas e pesadas cortinas, sustentadas por muitas
argolas. Era luxo puro. Lá dormimos e partimos no dia seguinte. Devo confessar que, em nossas
andanças, eu te invejava pela facilidade com que as meninas gostavam de ti. Era uma desproporção!
Muito injusta, aliás. O carro era meu, e as “festas” eram todas para ti! Sem nenhum pudor, roubavas a
cena. Mas, preciso fazer justiça à verdade. Algumas vezes, fazia-o sem te dares conta; em outras, eras o
conquistador contumaz. Muitas coisas eu ainda poderia contar dessas nossas peripécias, mas uma delas
tenho nítida na memória. Estávamos sentados à mesa de um grande restaurante em Cascais, quanto te
perguntei: “Wolfgang, diz-me lá. E tu o que queres do futuro?”. Imediatamente, respondeste: “Poder,
dinheiro e um iate”. Devolveste-me a pergunta: “E tu?”. Respondi: “Muitas mulheres, muitos filhos e
muitos amigos”. E os tive, sim, e muitos e sou muito feliz. Tu também tiveste o que querias. Lembro-me
do teu enorme barco. Por que o vendeste?
— Como tu sabes, Kiko, o barco era um saveiro. Eu o trouxe quase sem nada da Bahia e o equipei com
todos os acessórios necessários. Tive muitos bons momentos, mas, depois, vendi-o para o Roberto Irineu
Marinho. Ele o dividiu em dois, acrescentou mais um terço do tamanho total do barco e tornou-o ainda
maior. Eu tinha uma casa na praia de Camburi, mas, ao sair para caminhar, encontrava amigos,
fornecedores, clientes, e só falávamos de trabalho. Eu dispunha de pouquíssimo tempo para o lazer, e,
naquela época, a profunda ligação que sempre tive com a terra retornava de maneira avassaladora. Lá no
meu subconsciente, essa atração irresistível me encaminhava para outro rumo. Vendi a casa, o veleiro e
concentrei aquelas pequenas pausas de trabalho em estadas na fazenda. Lá a natureza, o conjunto de força
da vida vegetal e animal, a possibilidade de pisar o chão, enfim, o vigor vindo da terra, a companhia dos
cachorros e dos cavalos me revigoravam e me devolviam as energias necessárias a minha atividade tão
intensa.
— Wolfgang, alcançaste tudo o que querias, mas não disseste se aquilo que te pareciam as conquistas
supremas para tua felicidade tiveram o efeito que esperavas.
— Ah, Kiko, nós éramos muito jovens naquela época!
— Do barco me lembro bem, já em Portugal gostavas muito de velejar junto com meu irmão. No verão,
quase todo o teu tempo livre era dedicado a esse esporte.
— Seu irmão apreciava muito a minha companhia, porque o peso do meu corpo fazia de mim um ótimo
parceiro no momento de movimentar as velas. E, para mim, aquilo era um prazer. Ah! aquele mar!
— Gostavas muito de esportes e aventuras. Lembras-te daquela que me contaste, a experiência nos
Alpes com um amigo teu? Tu te recordas?
— Ah, sim, por pouco não perdi a vida. Foi na Áustria. Ele fazia alpinismo e era muito bom nesse
esporte. Convidou-me, e eu imediatamente aceitei. Primeiro, eu amava aquele esporte. E, segundo, em
Portugal, não havia condições para a prática dessa atividade esportiva. Ele escolheu um conjunto de
montanhas, chamado os Três Irmãos. Chegaríamos ao topo da mais alta. Feliz e pronto para a façanha,
aceitei toda a programação, sem ver nenhuma dificuldade para atingir o cume. Levantamo-nos cedo,
fomos a pé até o abrigo. Ele escolheu o momento adequado para começarmos a escalada, com o auxílio
de cordas. Quando ele estava subindo, eu o segurava. Depois, era a vez dele de me sustentar enquanto eu
subia. Tudo corria bem, até que, no meio da subida, senti uma câimbra na perna direita. Gritei: “Cuidado,
Hans! Eu vou cair!!!”. Ele estava já pendurado na rocha. Despenquei uns 7 metros, mas ele conseguiu
segurar a corda e me puxar novamente para cima. Aquele movimento brusco e violento, a vista do
precipício abaixo e a dor paralisante na perna tiveram um impacto enorme tanto no meu corpo como na
minha mente. Fui invadido por um pavor indescritível. Retomamos a escalada, mas, quando chegamos ao
topo, eu disse ao meu amigo: “Tive tanto medo! Nunca mais vou querer subir e conquistar alturas como
esta”. Naquele dia, Kiko, meu amigo, o alpinismo foi riscado da minha vida.
Kiko e eu trabalhamos muito. Quando saí de Portugal, ele trabalhava com navegação, depois abriu o
leque de suas atividades, englobando vários ramos de negócios. Quando parti para a Venezuela,
perdemo-nos de vista, até 1973, quando nos encontramos novamente no Algarve. Ele soube da minha
estada lá, imediatamente foi me encontrar.
— Era como se tivéssemos nos visto à véspera — relembrou Kiko. — O mesmo carinho, o mesmo
querer bem, o mesmo entusiasmo. Já havias feito muitas coisas, eras importante! Fiquei muito contente ao
verificar que nada havia te subido à cabeça. Eras o mesmo homem!
E Kiko continuou seu discurso, enumerando qualidades, que sinceramente não tenho, mas, vindo de um
amigo como ele, sempre me envaidecem. Continuei a ouvi-lo:
— O Wolfgang é muito generoso, ponderado e organizado. Às vezes, eu o imagino como um jogador de
xadrez, organizando muito bem todos os seus passos. Meu tio Cudel admirava muito sua dedicação. Logo
depois de haver chegado, Wolfgang transformou-se no homem de confiança e no funcionário mais
competente de meu tio. Assim Cudel sempre nos dizia. Lamentou muito vê-lo partir. Naqueles debates
inflamados sobre pontos de vistas contrários, frequentes entre meus primos, herdeiros da Roberto Cudel,
Wolfgang tinha a habilidade de não pender nem para a direita, nem para a esquerda, buscando sempre o
diálogo. Essa característica o acompanhou, e eu o vi como promotor do entendimento em questões
delicadas, quando, em uma visita à fábrica de São Bernardo do Campo, durante um almoço, ele me
apresentou um homem: “Este é o Lula da Silva, o mais importante dirigente sindical do Brasil”. O
próprio Lula me afirmou: “Com Sauer, aprendi o valor do diálogo”. E acrescentou: “Tem uma coisa. Ele
é um homem de palavra. Quando diz algo é para valer e mantém aquilo até o fim”.
“Eu conhecia alguns detalhes das ações dramáticas que haviam regido as batalhas entre sindicalistas e
empresas, havia pouco tempo. Fiquei boquiaberto com a abertura estabelecida entre os dois personagens
centrais daquele embate.
“Em outras arenas, Wolfgang fez do diálogo uma de suas principais armas. Por isso, adquiriu prestígio
entre os governantes brasileiros, seus ministros e secretários. Era categórico ao afirmar: ‘Nunca precisei
subornar ninguém. Kiko, eu não gosto e não adoto esse tipo de prática’.
“Na Volkswagen da Alemanha, o diálogo o conduzia a uma interação com seus pares. Contudo, era
teimoso e valente na discussão, quando a questão esbarrava em obstáculos que faziam a matriz pensar em
optar pela decisão de fechar as operações no Brasil. Assumia, então, um discurso veemente e
apaixonado. Sua conversação sobre projetos e investimentos, com fins expositivos e explanatórios,
mudava de tom. Emprestava o ‘gigante pela própria natureza’ do hino nacional e defendia o Brasil com o
ardor de um patriota, exaltando as possibilidades e potencialidades do país, desenhando uma grandeza
futura da qual uma empresa como a Volkswagen mundial não poderia deixar de participar. Seus
inflamados discursos tiveram sucesso, pois, como se sabe, a Volkswagen permaneceu no país, vencendo
os muitos desafios analisados como intransponíveis por alguns homens de Wolfsburg. A história daria
razão ao Wolfgang. Hoje, o Brasil está entre os maiores produtores de carros no mundo.
“Admiro muito uma característica do Wolfgang: o seu sentimento de responsabilidade em relação ao
ser humano. Suas preocupações empresariais jamais excluem a presença do homem como coparticipante
de qualquer empreendimento. Tenho, como ele, a convicção de que não podemos fazer nada sem ajuda,
pois precisamos de gente para desenvolver um negócio, não importa de qual tipo ele seja. A tecnologia
avança, as máquinas sofisticam-se, cada vez mais rapidamente o mundo passa por transformações, mas, a
meu ver, a inteligência e a mão do homem sempre estarão presentes nos processos de evolução da
humanidade. Em minhas empresas, sempre escolhi homens mais espertos e mais inteligentes do que eu, e
essa foi uma das razões do meu sucesso. Em minhas conversas com o Wolfgang e depois em minhas
visitas à Volkswagen, percebi que ele tinha homens muito bons a sua volta e não os abafava.
“Dentre meus muitos amigos, Wolfgang Sauer ocupa um lugar de destaque, como se pode ver. Gosto
muito dele! É um homem de grande caráter. Nenhum sentimento negativo e nenhuma briga ou discussão,
apesar de eu não ficar muito animado com a preferência que, invariavelmente, as meninas demonstravam
por ele e pela facilidade de suas conquistas, deslustraram nossa amizade de sessenta anos. Somos
diferentes de temperamento e de intelecto. Contudo, há uma pequena semelhança a nos equiparar. Somos
dois seres muito mais voltados à ação do que à contemplação. Sou muito ativo e diligente, mas o
Wolfgang é uma máquina!!!”
A DESCOBERTA DO NOVO MUNDO
da Venezuela, tive um grave acidente de carro que por pouco não me roubou a
Antes de sair vida. Quando desembarquei no aeroporto, ainda trazia os curativos em minha
cabeça. Aguardava-me um funcionário da Bosch, o Ferreira. É ele quem
descreve com riqueza de detalhes suas observações sobre o meu desembarque.
— Eu sabia que estava à espera de um alemão contratado para ocupar um cargo importante dentro da
Bosch, empresa onde eu trabalhava no setor administrativo. Não tinha a menor ideia nem qualquer
informação de como ele seria. Quando a porta do avião se abriu, eu vi aparecer, no alto da escada, um
homem grande e forte, com uma bandagem na testa. Ele descia os degraus com as passadas seguras de um
homem jovem. Olhava adiante como quem contempla uma paisagem nova, sem sustos ou curiosidade
mais profunda. A firmeza dos movimentos revelava um homem livre de perigos ou incertezas, pleno de
resolução e autoconfiança. A mim, um jovem do interior de vinte e dois anos, tudo aquilo se configurava
como uma cena de filme. Essa ideia ganhou contornos mais nítidos, quando ele se aproximou de mim.
Debaixo daquele tecido envolto em sua testa, vi dois olhos muito azuis, com um brilho extraordinário.
Assim o conheci. Ele tinha trinta e um anos. Falava português com um forte sotaque, no qual prevalecia o
alemão misturado ao espanhol, mas comunicava-se perfeitamente, com muita desenvoltura. Dele
emanavam uma força, um vigor físico e uma energia, formando um conjunto que me magnetizava. Eu não
conseguia tirar os olhos daquela figura. Ele estendeu-me a mão e se apresentou: Wolfgang Sauer. Mais
tarde, entendi que aquilo tinha o nome de carisma. Começava ali um relacionamento que tomaria conta da
minha vida profissional, se entrelaçaria no campo da amizade e teria validade por tempo indeterminado.
A partir dali, nenhum contrato de compra ou venda de qualquer bem ou propriedade por parte da família
Sauer deixaria de ter minha conferência e assinatura como procurador. A relação de confiança
estabelecida desde o início perdura até hoje.
“Sua mudança chegou em um navio que atracou no porto de Santos em 21 de setembro de 1961. Na
bagagem, vinham itens com os quais não tivemos problemas, pois estavam todos de acordo com as leis
do País. Contudo, coube a mim o constrangimento de lhe dizer que os diretores da Bosch usavam seus
Aero Willys, e ele trazia a bordo um carro Mercedes-Benz, à época, um luxo ao qual pouquíssimos
brasileiros tinham acesso. Surpreendi-me com a resposta.”
— Não tem problema, usarei o mesmo veículo que os demais. Procure um comprador para este carro.
— Vendi-o para um senhor de nome Décio Capuano. Ele procurava um para presentear sua mulher de
então, a artista Hebe Camargo. A ordem do dr. Sauer era investir o resultado da venda em um terreno na
cidade de Campinas.
Sou um Schwabe, ou seja, venho da Schuabia, região do Sul da Alemanha, cujos descendentes têm
características marcantes. Segundo os entendidos, o Schwabe tem uma ligação estreita com a terra, com
seu pedaço de chão, com suas raízes. Avarentos, avessos à ostentação, não permitem que outros façam
tarefas a ele destinadas. São dotados de uma aparente frieza externa que se constitui em uma casca,
escondendo um coração repleto de ternura. Têm uma sensibilidade enorme, guardada por uma grande
incapacidade de demonstrá-la. Para ilustrar a austeridade predominante no local, os especialistas nessas
definições citam a Catedral de Ulm, a mais importante da região, belíssima, porém sóbria, com imagens e
ornatos em linhas retas, feitos em madeira. Não me considero um avarento, mas gosto de tomar conta de
tudo que me rodeia, embora tenha sabido delegar aos meus colaboradores todas as funções que lhes eram
pertinentes, até porque eu não poderia fazer tudo sozinho. Era e é atividade demais para um único ser.
Por dever de ofício, deixei aquela terra, transformei-me em um homem do mundo, um cosmopolita e,
aparentemente, liberto de raízes. Agora, não sei falar desse grande coração ou dessa ternura disfarçada
ou escondida, disso eu não sei. Talvez alguns desses elementos ainda convivam camuflados no meu
subconsciente e possam vir a engendrar pretextos ou armadilhas para mudar meu destino. Não creio, pois
tenho tudo muito cristalizado. Amo o Brasil e aqui pretendo viver, essa foi a minha escolha. Seguramente,
conservo uma dessas características importantes: a profunda ligação com a terra, mas com ela em
qualquer parte do planeta, não especificamente no lugar onde nasci, embora considere aquela região a
mais linda da Alemanha.
O Ferreira participou muito das minhas aventuras extra-atividade empresarial. Ele descreve muito bem
a minha relação com a terra:
— Em sua fazenda, criávamos cavalos. Animais de grande porte, muito bonitos. Havia também um
rebanho de gado holandês. Era admirável sua grande sensibilidade com relação a animais. Havia entre
eles uma espécie de comunicação secreta, uma linguagem particular compreensível apenas para ele e o
animal. Não é possível que esse meio de comunicação expressasse ideias, mas sentimentos, certamente,
sim.
Nos finais de semana na fazenda, eu me levantava cedo e saía para uma caminhada. Um dos nossos
cachorros me aguardava no horário exato da minha saída, saudava-me e, como parceiro silencioso,
porém ativo, punha-se a caminhar ao meu lado. Ouvia minhas palavras, rosnava, fazia festas e transmitia
um sentimento do qual eu partilhava com muita alegria.
Os cavalos sempre foram uma das minhas paixões. Gostava de vê-los no pasto. Animais belos, cauda e
crinas longas, um ar de nobreza davam-me ao mesmo tempo a sensação de força e de equilíbrio. Acho
que fui um bom cavaleiro. Tive alguns cavalos favoritos com as quais exercitei com muito prazer a arte
de cavalgar, desfrutando a sensação de liberdade trazida por esta prática. No momento da cavalgada,
estão os dois, o cavaleiro e o cavalo, cada um em seu movimento, sem concorrência, sem disputa, em
legítima parceria. Quando cavalo e cavaleiro se entendem, acontece uma união de sensibilidades, atinge-
se a harmonia perfeita.
BOSCH I
Campinas com a crença de que, por meio da minha experiência, da minha ética e do
Cheguei a uso da minha razão, eu poderia atuar como elemento aglutinador dentro da fábrica e
elevar a Bosch a ocupar um lugar de destaque no cenário empresarial brasileiro. Seu
fundador na Alemanha, o sr. Robert Bosch, começara com 10 mil marcos deixados pelo pai como herança
e havia construído uma das maiores empresas alemãs, sem nunca ter abandonado uma de suas prioridades
— o homem e seu bem-estar. Era essa uma das minhas metas.
Haviam me informado que as sociedades das cidades do interior do estado eram fechadas a
forasteiros. Aquilo não me preocupou, pois considerava fácil a tarefa de furar esse tipo de bloqueio. Foi
um equívoco. Eu entrava na hípica para praticar meu esporte favorito, selava meu cavalo e partia em uma
cavalgada solitária. Logo percebi que à minha chegada os homens se afastavam, formavam grupos, em
ostensiva rejeição à minha presença. Fiz várias investidas para vencer aquela barreira. Todas
infrutíferas, até chegar à percepção de que, quando diziam o meu nome, ele vinha acompanhado de um
adjetivo, no caso, pejorativo. Eu era o Sauer — o Vermelho. Como nada em minha vestimenta ou em meu
comportamento evidenciasse aquela cor, cedo entendi que eram minhas ideias e atitudes as responsáveis
por aquela denominação.
Com a mesma velocidade, corriam as notícias e formavam-se as opiniões. Aquele recinto era
frequentado pela elite do lugar. Incomodavam aqueles cavalheiros os benefícios trazidos para a
comunidade de trabalhadores da Bosch.
O prefeito da cidade convidou-me para visitar uma fábrica. Aconteceu justamente no dia de pagamento
aos operários. Vi uma prática inacreditável: duas pessoas distribuíam o dinheiro, os empregados
assinavam os recibos da quantia total e depois devolviam uma parte do valor recebido para os
funcionários que lhes pagavam. Ou seja, o valor recebido era inferior àquele constante no recibo. Como
na Bosch pagávamos salários mais altos, de acordo com o trabalho de cada um, e da maneira correta,
atraíamos um número grande de empregados na região. Assim, para manter seus empregados, os
praticantes dessa forma injusta de remuneração foram obrigados a mudar de comportamento. Como eu
destruí esse sistema, fui taxado de comunista.
“Mas como?! Ele mal chega e já vai alterando as normas do lugar! O que é isso? Ônibus para
empregados? Horário móvel? O empregado entra e sai na hora que bem lhe aprouver? Plano de saúde
para operários? Restaurante eles já têm, e a empresa lhes dá de comer? E todos os cursos e escolas? Ah,
e estão falando sobre a criação de um clube de recreação para os empregados. Onde vamos parar? Para
que tantas benesses? E tudo de mão beijada! Já não basta pagar os salários mais altos? Sim, este homem
é um vermelho, um comunista!”
Era novo o conceito de horário móvel, e eu o havia introduzido. O banco de horas trabalhadas era
desconhecido. A Bosch foi uma das primeiras empresas a introduzi-lo.
Aqueles senhores não sabiam que nenhuma denominação, cor ou cara fechada me afastaria do meu
roteiro. Eu faria daquela fábrica um modelo de modernidade. Promoveria a preparação profissional, a
formação de carreiras, a educação, a alimentação, o transporte, a segurança para a saúde, estimularia os
relacionamentos e desenvolveria o espírito de família entre os nossos colaboradores. Assim aconteceu.
A cor berrante a mim atribuída foi esmaecendo com o tempo. Fiz muitos amigos que acabaram
entendendo os meus propósitos. Não me limitei à fábrica, alarguei minha atuação junto à comunidade.
Aquilo era do meu temperamento, da minha natureza. O Brasil precisava de homens de ação, e eu não
poderia ficar parado ou me intimidar com o fato de me considerarem um bolchevista. Eu, definitivamente,
não o era. Nunca o fui.
Havia duas universidades importantes na cidade, a PUC e a Unicamp. Lá estavam as fontes do saber, e
eu precisava de pessoas preparadas, com bom nível intelectual. Essa foi a razão da minha aproximação,
mas vi que havia muita coisa a ser feita, desde instigação até aporte de dinheiro. Algo me empurrava, me
soprava no ouvido: “Mãos à obra, Sauer”. Participei de tudo com muito entusiasmo — eram sugestões,
promoção de intercâmbios entre a escola e a indústria e, também, com a Alemanha, um número sem fim
de palestras, de trocas de ideias e, na PUC, fizemos um belo trabalho na odontologia. Consegui, na
Alemanha, uma doação de 100 cadeiras odontológicas para equipar a Faculdade de Odontologia. Recebi
uma recompensa gratificante porque tocou profundamente os meus sentimentos. Foi dado a uma das salas
o nome de minha mãe, Maria Sauer. Ela veio da Alemanha para receber a honraria. Ao lado dela,
segurando-lhe o braço, invadiu-me uma sensação de ternura intensa e de agradecimento por tudo que ela
me transmitiu na infância, na adolescência e no começo da juventude. Embora apenas em episódios
isolados, como aquele, ela participava das conquistas alcançadas pela confiança e segurança por ela
impressas na minha formação.
Outro capítulo à parte que me deu muito orgulho foi a outorga do título doutor honoris causa, pela
PUC, através de seu reitor, o professor José Benedito Fonseca Barreto.
Não apenas a universidade necessitava de apoio, precisávamos pensar nas crianças e adolescentes. O
Colégio Porto Seguro, na cidade vizinha de Valinhos, teve muito suporte da Bosch. Nada mais justo do
que ter uma escola de alto padrão na região onde estava uma das mais importantes empresas alemãs
instaladas no Brasil.
Uma ideia genial do dr. Merkle deu-me um grande, porém muito prazeroso, trabalho. Ele queria formar
uma biblioteca onde houvesse uma coleção de livros, estudos e publicações sobre a história do Brasil.
Entrei em contato com o dr. José Mindlin, da Metal Leve, com quem mantive uma ótima relação de
amizade. Estabelecemos um intercâmbio entre a nossa biblioteca e a dele, que se constituiria na maior
brasiliana do País, posteriormente doada à USP. Ao encontrar dois exemplares de uma mesma obra, ele
reservava um para a nossa biblioteca, e nós fazíamos o mesmo com ele. Enriquecido pelo meu empenho e
pelo de meus colaboradores e do José Mindlin, fizemos um belo acervo. Essa biblioteca foi instalada no
centro da administração da Bosch em Campinas, transferida depois para Stuttgart, permanecendo sob os
cuidados da Universidade de Heidelberg. Complementando a parte de literatura, fomos adquirindo, em
leilões e galerias, quadros de pintores que, através de suas obras, mostraram um retrato do Brasil, na
época da colonização, de seus imperadores e imperatrizes, formando um belíssimo painel, mostrando a
composição da família real, o trabalho dos escravos, os hábitos e costumes de alguns séculos da cultura e
da história brasileiras.
Mindlin teve a ideia de deixarmos tudo para o Brasil e formarmos um museu. Em princípio, concordei,
mas depois lhe perguntei:
— E quem vai cuidar desse museu?
— O governo brasileiro — respondeu ele.
— Esta é a única forma de mantê-lo?
— Sim — disse Mindlin. — Quem mais senão o governo teria meios para isso?
— Não, não — respondi-lhe. — É melhor ficar como está. Você fica com a sua biblioteca, e nós
mantemos a nossa e mais a pinacoteca em Stuttgart, onde temos certeza de que ela jamais será
descuidada.
A Universidade de Heidelberg editou um livro em português e alemão sobre esse museu e essa
biblioteca. Ambos ocupam um prédio ao lado da Robert Bosch em Stuttgart. Como há sempre novas
descobertas de antiguidades, já foi feita uma edição dando continuidade ao primeiro livro Brasilien-
Bibliothek der GmbH band — I und II.
Visando ao congraçamento dos nossos colaboradores, criei o Clube de Funcionários, com todas as
instalações inerentes a uma atividade deste tipo — piscinas e quadras esportivas para várias
modalidades de esporte. Os campeonatos eram disputados entre várias indústrias da região. Tinham a
duração de um ano. Começavam no último dia do mês de maio e terminavam em 1º de maio do ano
seguinte. As últimas partidas eram de futebol, e o vencedor era conhecido no final de abril. No dia do
trabalho, fazia-se a grande festa do trabalhador com um desfile desses clubes esportivos. Cada um com
sua equipe, mostrando suas atividades e cantando, desfilavam pela rua principal de Campinas. Depois
dessa colorida parada festiva, vinha o grande final com a consagração do campeão.
No clube, foi feita uma divisão onde funcionava uma escola de paraquedismo dirigida por Renato
Simenauer e pelo engenheiro Münch, campeão mundial de voo a vela. Ambos organizaram com grande
sucesso o departamento destinado a este tipo de esporte.
Outro item chamou muito minha atenção. Tínhamos nosso restaurante na fábrica. Certo dia, uma
comissão de esposas de trabalhadores veio até a fábrica, querendo falar comigo. Perguntei:
— Qual é o problema?
Obtive uma insólita resposta.
— Nossos maridos dizem que comem muito bem na fábrica e já não gostam mais da comida feita em
nossa casa. Queremos saber o que há de especial nos pratos feitos na cozinha daqui.
— Bom, vocês devem aprender a fazer uma comida mais gostosa para eles.
— Mas, não sabemos como.
— Vou mandar organizar cursos de culinária para vocês. Assim, vocês aprendem a cozinhar melhor, e
seus maridos voltam a comer com prazer em casa.
Depois de introduzir inovações na administração de uma companhia do porte da Bosch e de motivar
operários e colaboradores, trazendo-os para posições condizentes com a atuação que eu esperava deles,
uma nova preocupação no campo social rondava minha cabeça — a saúde. Onde buscariam nossos
homens a assistência médica necessária a eles e a suas famílias? Nada havia em Campinas para atender
ao contingente populacional que todos os dias passava pelos portões da empresa. Era preciso pensar
grande, encontrar alternativas em uma área povoada de desafios e obstáculos. Via-me diante de uma
tarefa complicada, contudo o acaso me levaria na direção correta.
O HOSPITAL
Eduardo Cook Lane, médicos, filhos de americanos missionários, me levariam para uma
John e aventura da qual eu pouco sabia e nada entendia. O convite para este empreendimento não
veio da parte deles. Ao contrário, fui eu que, sem me dar conta, remexi em ideais por eles
acalentados, aticei-lhes fogo, revolvendo brasas, colocando lenha até que a energia despendida por
aquela chama transformou em realidade um sonho de John e de seus colegas dos quais me fiz parceiro,
pois eu precisava de uma solução para atender às necessidades de assistência médica dos nossos
colaboradores. De 1968 a 1973, tive no professor dr. John Cook Lane o homem forte desta nossa
realização. Foram conversas, estudos, reuniões no Brasil e em Stuttgart, com envolvimento de toda a
cúpula da Bosch alemã, até chegarmos ao ponto descrito por ele como o ato de ter um filho: “A
concepção foi um prazer; a gravidez, longa; o parto, dolorido. Sustentar e educar este filho foram muito
mais trabalhosos do que vê-lo nascer”. Este filho do coração de John tem um nome: Centro Médico de
Campinas.
A vida de John foi dedicada à medicina, tendo se formado em São Paulo em 1954, transferiu-se para
os Estados Unidos, onde fez residência médica durante seis anos em tempo integral na Universidade de
Emory, em Atlanta, e na University of Southern California, em Los Angeles. Desde o início da carreira,
tinha duas paixões: ensinar e escrever. Dedicou-se a ambas com o fervor dos apaixonados. Impossível
contabilizar os médicos que receberam seus ensinamentos e apreenderam suas técnicas e inovações e aos
quais John revelou suas descobertas. Publicou dez livros e algumas dezenas de artigos científicos. Seus
trabalhos em hospitais, universidades e instituições voltadas para a saúde estenderam-se a inúmeros
países nos cinco continentes. O interesse pela medicina nasceu quando seu pai falava dos irmãos Mayo,
fundadores da Clínica Mayo no início do século XIX, na cidade de Rochester, nos Estados Unidos. Como
seus dois filhos se dedicaram à medicina, Eduardo Lane reservou um terreno de 2.400 metros quadrados,
na cidade de Campinas, para a construção de uma clínica.
Ao retornar dos Estados Unidos, em 1961, John encontrou em Campinas uma situação de penúria na
área médica. Sua descrição dá uma dimensão da diferença entre sua vivência nos Estados Unidos e o que
tinha diante de si: “Os hospitais não tinham sala de recuperação anestésica, nem UTI, nem corpo de
enfermagem. A situação poderia ser classificada como indigência em termos de assistência hospitalar”. O
desejo de modificar aquela realidade começou a se desenhar na mente dos médicos, mas as dificuldades
eram insuperáveis. John saiu à procura de fundos para o novo hospital, batendo às portas do Congresso
Nacional em Brasília, do Capitólio em Washington, do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra e das
Fundações Kellogg e Ford, além de bancos privados e do presidente da Caixa Econômica Federal. Tudo
em vão. A saída inicial foi encontrada em Campinas, através da reunião de um grupo de médicos
idealistas, com mestrado ou residência feitos no exterior. Dessa associação de altas aspirações,
competência e muito trabalho nasceu, em 1965, a Clínica Eduardo Lane, onde funcionariam consultórios,
laboratórios e centros de imagens. Mas o grande e impossível sonho era a construção de um hospital,
atuando sem fins lucrativos.
John tem na memória os detalhes do nosso primeiro encontro: “Da sala de recepção da clínica, eu o vi
entrar. Um cavalheiro muito bem-vestido, rosto tenso, passos rápidos, caminhava em busca de
atendimento. Dirigi-me a ele e o levei para um detalhado exame físico. Subcutaneamente, abaixo do
joelho, encontrei um nódulo de meio centímetro de diâmetro.
— O senhor tem conhecimento deste nódulo?
— Não — respondeu, surpreso. — Faço todos os meus checkups médicos anuais na Universidade de
Tübingen. Até o último, ninguém mencionou nódulo algum. Posso lhe enviar os resultados dos exames
feitos recentemente.
Já bastante calmo, ele se levantou e voltou para o seu trabalho. Anotei seu nome no prontuário:
Wolfgang Sauer.
Do encontro de dois homens, o primeiro visionário e empreendedor, o dr. Sauer, e o segundo, eu, John
Lane, um humanista dedicado à ciência, nasceria um projeto social único na região onde vivíamos.
Empreendimento e ciência davam-se as mãos para trazer para a cidade de Campinas um hospital
moderno, instalado com equipamentos de tecnologia de ponta, onde eu e vários outros colegas médicos
pudéssemos trabalhar como sempre havíamos sonhado, levando à comunidade assistência similar à dos
grandes hospitais americanos, nos quais tínhamos apreendido as técnicas mais avançadas então existentes
no mundo para a prática da medicina.
Dois dias mais tarde, recebi um calhamaço de papéis, todos escritos em alemão. Nenhuma notícia de
nódulo. Avisei-o e convoquei-o a voltar à clínica dentro de três meses para verificarmos se o nódulo
teria aumentado. Uma viagem urgente o impediria de me procurar, mas ele o faria quando voltasse.”
Durante a viagem, passei pela Clínica Mayo, nos Estados Unidos, onde recebi o mesmo diagnóstico e
orientação de John Lane. Desejoso de me livrar dos três longos dias de exames na Universidade de
Tübingen, consegui aprovação da Bosch da Alemanha para fazer meus checkups na Clínica Lane.
Na minha volta, informei John da forte atuação social da Bosch e pedi-lhe que me enviasse três
projetos sociais para possível implantação em Campinas. Dei-lhe uma semana para pensar. John
apresentou-me os projetos, sendo que o mais avançado custaria à época cerca de trinta mil dólares.
Falamos por telefone:
— Gostei das suas propostas, mas tenho em mente projetos mais ambiciosos.
— Um hospital? — perguntou-me John, hesitante.
— E quanto custa esse hospital?
— Não tenho a menor ideia.
— Pois faça os cálculos. Quero isso em um mês.
— Mas, dr. Sauer, eu não sei como chegar a esses custos.
— Vou lhe mandar um homem do meu setor financeiro para ajudá-lo a fazer todos os levantamentos
necessários. Depois, procure uma área de uns 40 mil metros quadrados que possa ser doada para
erguermos o hospital.
Encantei-me com uma das opções apresentadas pelo John, localizada no bairro Cidade Universitária,
de propriedade do dr. João Ademar de Almeida Prado. Afeiçoado às suas terras, Almeida Prado teve o
desgosto de vê-las divididas ao meio por uma estrada ligando a Rhodia ao distrito de Barão Geraldo. A
Petrobras também escolhera a cidade vizinha Paulínia para instalar uma refinaria. Vieram depois outras
empresas. A região industrial crescia, e a estrada se fazia necessária. Concomitantemente, a Unicamp
iniciava a Faculdade de Medicina, cujo campus universitário foi construído em 30 alqueires doados por
Almeida Prado. Sobraram 30 alqueires. Ele doaria 70 mil metros se a Bosch garantisse a construção de
um hospital no local. Entrou em cena o dr. Karl Gutbrod, diretor financeiro da Bosch, tornando-se um
apaixonado defensor do projeto. Trocas de cartas, garantias, acordos entre a Clínica, a Bosch Brasil e
Alemanha e o dr. Almeida Prado chancelavam as intenções das partes. Contudo, as ideias socialistas do
então primeiro-ministro alemão, Willy Brandt, envolvendo a diretoria de sindicalistas na diretoria das
empresas, colocariam em banho-maria os planos da Bosch alemã de continuar seus investimentos
mundiais. Essa protelação se estenderia ao nosso hospital. Entre o nosso acordo com o dr. Almeida
Prado e a aprovação do projeto pela Robert Bosch Alemanha, houve um considerável lapso de tempo.
Sempre fui um obstinado. Todas as vezes que eu voltava a Stuttgart, o hospital entrava na pauta dos
meus assuntos. Eu o tiraria daquele estado de letargia, custasse o que custasse! Aproveitei a vinda de
nosso presidente ao Brasil, convoquei o dr. Lane e pedi-lhe que ficasse de prontidão, pois, se houvesse
tempo, defenderíamos o nosso projeto. Chamei-o no meio de uma aula na universidade:
— Venha imediatamente. O dr. Hans Merkle está aqui. Você terá dois minutos para falar com ele.
John Lane ainda se lembra da cena. Ele tinha uma incumbência difícil, mas eu confiava nele. John
descreve o presidente: “Fui cumprimentado por um homem esbelto, alto, de olhos azuis. Não perdi tempo
e recitei meu discurso para ocupar os dois minutos: sou filho e neto de norte-americanos vindos em
missão religiosa e social para o Brasil, a fim de evangelizar e educar o povo. Herdeiro da mesma ideia,
pois está no meu sangue a certeza de que é preciso continuar educando os brasileiros, partilho da crença
do dr. Sauer sobre a possibilidade de um hospital local ser a manifestação social da Bosch na cidade de
Campinas. Embora eu ainda tivesse mais um minuto, calei-me. O dr. Merkle alongou nossa reunião por
mais meia hora”.
Em 1969, consegui colocar novamente o assunto em pauta para uma reunião em Stuttgart. Levei comigo
o John Lane. O vice-presidente mundial da Bosch, o dr. Karl Scheiber, e o engenheiro-chefe das
construções mundiais da Bosch estavam presentes. O primeiro tomou o relatório e balançou
negativamente a cabeça, dizendo-nos que seria impossível construir um hospital com tão pouco dinheiro.
Em Stuttgart, haviam feito um orçamento de 80 milhões de marcos para construir o novo hospital da
Bosch. Tinham investido 120 milhões, e o projeto estava ainda por ser concluído. O engenheiro informou
que os cálculos eram baseados nos custos de um hospital feito na Grécia, considerando certas
similaridades entre os dois países. Como eu imaginava as dificuldades da decisão, pedi a interferência
do dr. Merkle. Assim, de súbito, ele apareceu na reunião. Sentou-se na cadeira principal, olhou
diretamente para o John, que, surpreso, lhe deu algumas curtas explicações. John recebeu como resposta:
“Dr. Lane, não se preocupe, os números apresentados aqui são muito menores dos que as cifras com as
quais eu lido todas as manhãs no meu escritório”. Conversamos bastante, e o John saiu seguro da
aprovação do projeto, mas eu sabia que ele estava equivocado. Após este encontro, não obtivemos mais
informações de decisões da Alemanha sobre o hospital. A filha de John tinha uma doença muito grave, e
ele a levou para os Estados Unidos. Nesse ínterim, um amigo o convidou para fazer parte da equipe da
University Texas Chest Hospital, como cirurgião. Dez meses mais tarde, recebi dele uma carta,
informando que fixaria residência nos Estados Unidos, pois as notícias recebidas do Brasil falavam da
incerteza sobre a viabilidade da construção do hospital.
— Há um equívoco nessa informação, John — falei ao telefone. — Volte para o Brasil, assim que você
puder. Temos muito a fazer. Na minha última volta da Alemanha, eu trouxe o projeto aprovado na mala.
John voltou dos Estados Unidos e, em seguida, foi comunicar ao dr. Almeida Prado que tudo estava
pronto para lavrarmos a escritura do terreno doado. A resposta foi como um balde de água fria atirado no
rosto de John: “Eu não dou mais o terreno, ninguém me deu mais explicações, não me deram importância,
foi como se minha doação não valesse nada”.
Diante daquele relato, eu não podia fazer nada, senão assumir a minha culpa. Eu lutara tanto na
Alemanha que havia deixado solta uma ponta importantíssima do assunto — o terreno. Minha insistência
em relação àquele local prendia-se ao fato de ficarmos próximos à Unicamp, possibilitando o
intercâmbio entre a universidade e o nosso hospital. Na minha mente, este era um fator vital para
atingirmos pontos de desenvolvimento científico de alto gabarito. Disse ao John:
— Vá até ele e diga que ele tem toda a razão. Estou disposto a pedir desculpas de joelhos, se ele me
receber.
John rememora nosso encontro: “Certamente, o dr. Sauer preparou-se muito bem, pois ele parecia
conhecer melhor os negócios do dr. Almeida Prado do que o próprio dono de tudo. Isso o encantou.
Conversaram um longo tempo, até que o dr. Sauer lhe disse de forma natural, em atitude de humildade:
— Estou aqui para lhe pedir desculpas em meu nome e no da empresa. Precisamos muito do seu
terreno, pois o projeto está aprovado.
— Não, que isso?! O terreno é seu — disse o dr. Almeida Prado, meneando a cabeça. — Eu só
estranhei o fato de vocês não me darem notícias sobre o projeto.”
John tinha uma espécie de obsessão pela eficiência da equipe de enfermagem. Em suas explanações,
deixava claro: “A estabilidade de um hospital é sustentada por um tripé: administração, enfermagem e
corpo clínico. A força, a organização e a qualidade da instituição dependem do equilíbrio das pernas
desse tripé. No Brasil, uma delas é muito fraca — a da enfermagem”.
Ele dava muita ênfase a este ponto, especialmente ao nosso diretor financeiro, Karl Gutbrod, a quem
encarreguei de procurar organizações beneficentes com possibilidades de levantar recursos adicionais
para financiar o Centro Médico de Campinas. Gutbrod descreve suas peregrinações: “Por indicação de
um amigo, fui recebido por um diretor da Igreja Luterana em Württemberg e, ao mesmo tempo, gerente da
organização alemã Brot für die Welt, responsável pelo auxílio a atividades beneficentes no terceiro
mundo. Nossa solicitação o sensibilizou, mas não ia ao encontro dos preceitos da igreja. Tinham como
regra a busca de projetos visando a melhorias a longo prazo. Focalizavam-se na área de educação, com o
intuito de capacitar pessoas para melhorarem a situação social de seus países nos anos posteriores. Esse
argumento levou-me a pensar na escola de enfermagem ligada ao CMC. Bati na mesma tecla de John
Lane: a enfermagem subdesenvolvida do País. O conselho da instituição aprovou nosso pedido.
Recebemos a doação de 250 mil marcos para a construção da Escola de Auxiliares de Enfermagem no
Centro Médico, a primeira na região de Campinas. Com essa quantia, construiríamos a chamada Ala 2 do
hospital. A escola seria construída em baixo. A renda do aluguel proveniente da Ala 2 manteria a escola
indefinidamente”.
Tivemos a ajuda inestimável do nosso responsável pelas importações da Bosch, José Apparecido
Ferreira, auxiliando os médicos nos complexos processos de importação de aparelhos e instrumentos
para o hospital. Segundo John, foi um trabalho intenso, durante os quais Ferreira e os médicos
trabalhavam noite adentro, chegando até a madrugada.
Em 1973, o professor dr. John Cook Lane via a conclusão de seu grande sonho. Segundo ele, foi
“graças à visão social e à coragem do dr. Sauer, que durante cinco anos lutou arduamente junto à matriz
da Bosch para construir e equipar o CMC”.
Nesse ano, cortamos a fita inaugural do hospital, no terreno doado pelo dr. Almeida Prado. No tempo
anterior à construção, constituímos a Sociedade Beneficente Robert Bosch, sem fins lucrativos. A ela
caberia a edificação, a importação e instalação de equipamentos vindos da Alemanha e os sistemas de
iluminação adquiridos nos Estados Unidos. A Clínica Eduardo Lane, que conseguiu a área doada, entrava
como sócia minoritária, com a participação de 6%, incluindo todo o equipamento de radiologia e
instrumental cirúrgico. Caberia à clínica, sob o comando de John Lane, a responsabilidade pela parte
médica, e a Robert Bosch ficaria encarregada da manutenção e administração.
John Cook Lane, o idealizador deste projeto, faz um resumo final sobre a trajetória do hospital, suas
conquistas e realizações: “Os dados registrados, criteriosamente controlados pela administração,
mostram que em 2010 foram atendidos 180 mil pacientes, realizadas 8 mil cirurgias com internações e
3.850 de menor porte, mensalmente. O CMC — Centro Médico de Campinas é o melhor hospital da
região. No ano de 2010, contava com 230 leitos, e sua ocupação média era de 98%, incluindo UTI de
nível excelente com trinta e dois leitos para adultos e vinte e três pediátricos. O departamento de
anestesiologia é o maior da região. Desde 1973, treinou 400 anestesistas. A meu ver, a maior
contribuição social do CMC se deu através da fundação e manutenção da Escola de Auxiliares de
Enfermagem e, posteriormente, da Escola Técnica de Programas de Residência Médica, que antecedeu o
programa lançado pela Unicamp. Formaram-se 952 auxiliares e técnicos de enfermagem. As quarenta
vagas existentes são concorridas, a média de candidatos por vaga é de 4 a 5. A grande maioria tem
emprego garantido, antes da formatura. A experiência e o treinamento obtidos pelos nossos médicos no
exterior levaram-nos na direção de estudos e pesquisas, dando origem a teses e conclusões científicas
pioneiras, fornecendo importantes contribuições ao avanço da medicina. Ao lado do hospital, criamos um
outro para atender a crianças com câncer. Esse hospital tem uma reputação mundial na cura dessa
doença”.
A Sociedade Beneficente Robert Bosch e a Clínica Eduardo Lane mantiveram-se juntas por vinte e
cinco anos. Após este período, a Bosch retirou-se, dando lugar à constituição da Fundação Centro
Médico de Campinas.
BOSCH II
Bosch, em 1973, eu tinha consciência de que havia feito um bom trabalho ao longo
Ao deixar a da minha atuação, de 1955 a 1961, na Venezuela e, de 1961 a 1973, no Brasil,
incluindo as operações da Robert Bosch América Latina. Quando cheguei à
Venezuela, eu contava vinte e cinco anos. Deixei a Bosch América Latina aos quarenta e três. Nesses
dezoito anos de trabalho na companhia, minha função me obrigava a viajar constantemente. A América
Latina e seus mercados eram meus conhecidos. O Brasil, país que aprendi a amar, havia sido
esquadrinhado no desempenho das minhas funções como “O homem da Bosch, no Brasil”. A essas
viagens acrescentavam-se as constantes idas à Alemanha para as reuniões com o board. Eu estava
cansado daquele vaivém contínuo. Queria ficar mais perto da minha família, ter uma vida mais calma,
dedicar mais tempo às coisas que me davam tanto prazer, como, por exemplo, os meus cavalos. Recebi
uma proposta, vinda da Alemanha. Contratavam-me para a presidência da Audi AG. Este convite selava
meu retorno à minha terra natal. Como no desenrolar de um filme, passaram pela minha mente diversos
episódios. Dentre eles, minha saída do porto de Hamburgo para Portugal e a retirada dos 5 marcos,
colocados por mamãe em meu bolso, para devolvê-los porque a achava mais necessitada do que eu. Esta
cena havia permanecido no meu subconsciente como uma marca da minha identidade. Vinte e dois anos
me separavam daquele dia do embarque. Eu era um jovem precocemente amadurecido, sem um centavo
no bolso, com as feridas causadas pela guerra ainda se cicatrizando e outras novas se abrindo pela dor da
separação da minha família. Contudo, eu tinha dentro de mim o remédio. O ímpeto e o entusiasmo da
juventude.
Meu trabalho na Bosch me conferiu uma considerável bagagem — realizações, muitas batalhas ganhas
entre outras perdidas, experiências adquiridas, amizades, muitas feitas ao longo do tempo e outras
inumeráveis estabelecidas em caráter instantâneo para permanência por tempo ilimitado, e, sem falsa
modéstia, o orgulho de ter liderado homens e mulheres de muito valor — foram 17 mil pessoas — que
me ajudaram a transformar a Bosch da América Latina em uma empresa vigorosa e vitoriosa, em
condições de ombrear-se com suas congêneres espalhadas pelos cinco continentes. Constituímos uma
empresa que, embora estrangeira, contribuiu de várias maneiras para o desenvolvimento da economia
brasileira. A mistura de criatividade e espontaneidade com disciplina forneceu uma sólida base para as
constantes expansões feitas e deixou aberto o caminho para a exploração de um futuro de contínuo
crescimento. Com muita satisfação, carrego comigo um troféu invisível que conferi a mim mesmo e aos
meus colaboradores pela formação de profissionais competentes — administradores, engenheiros,
técnicos e operários eficientes e conscientes de seu valor e de seu papel na sociedade da qual fazem
parte. No último aniversário da Bosch, fui convidado para visitar todas as fábricas. Quando estava no
restaurante, tive o prazer de ver muitos gerentes de departamento brasileiros falando fluentemente
alemão, como resultado de muitas viagens ao exterior. Engenheiros e técnicos também, devido a estágios
em fábricas estrangeiras, participando de intercâmbios que enriquecem tecnologicamente a nação
brasileira. Trata-se de um caso de cooperação e integração total.
Agradeço a Karl Gutbrod, Walter Kuhn e Joachim Lungershausen por terem trazido seu saber, seus
conhecimentos e sua força empreendedora para um país desconhecido para eles e ao qual todos se
afeiçoaram. Tenho em minha mente uma lista imensa de fatos e elementos concretos comprobatórios dos
valores inestimáveis trazidos por vocês para a empresa instalada no Brasil. Muito obrigado a todos os
meus ex-colegas que me ajudaram a construir uma empresa na qual a ética era e continua sendo um dos
principais valores — a Bosch do Brasil. Sei que fui simpático muitas vezes com as pessoas, mas o que
realmente espero é ter sido correto e justo.
Durante todo o tempo na Bosch, tive o apoio de um homem admirável, ético e elegante em todos os
sentidos, o dr. Hans L. Merkle. Com ele, aprendi tudo que viria a me orientar para o resto da minha vida.
Ele me envolveu em negociações com parceiros, com concorrentes, com governos, não apenas na
América Latina, mas, também, na Europa e na Ásia. Com o dr. Merkle, fiz a minha universidade. Foram
longos anos ao lado de um professor magistral. Aprendi a ser pragmático, a ter confiança nas minhas
próprias decisões e no sucesso delas. Ele fazia parte do grupo de diretores da Bosch Mundial desde
1958 e, cinco anos mais tarde, assumiu a presidência do grupo. Passou depois a ser presidente do
conselho e sócio da Robert Bosch Industrietreuhand KG. Foi ele o responsável pela formatação da
política corporativa do grupo durante décadas. Deram-lhe o cargo vitalício de presidente honorário do
conselho. Dr. Merkle manteve estreitos laços com a companhia, até a sua morte em 2000.
Além do apoio integral do meu mestre, dr. Merkle, modelo que sempre me inspirou, tive no dr. Stein,
vice-presidente mundial da Bosch, um conselheiro fantástico. Sempre que eu necessitava de uma
orientação, eu sabia que podia contar com ele, pois ele sempre estava lá disposto a me ajudar. A ambos,
dr. Merkle e dr. Stein, deixo registrados os meus agradecimentos. Tenho pelo dr. Merkle uma enorme
gratidão que o tempo não apagou ou deixou esmaecer.
Outro valor importante incluído nessa bagagem era a minha admiração pelo fundador da empresa,
Robert Bosch, o homem que montou uma oficina de engenharia elétrica e mecânica de precisão em 1886
e a transformou em um império industrial, hoje conhecido como o grupo Bosch. Em 1897, iniciou a
produção de sistemas de ignição, mais tarde chamado de magneto, cujo sucesso se expandiu, levando a
companhia para os principais países da Europa. Em 1906, Robert Bosch já fincava suas estacas em solo
norte-americano. A partir de então, o mundo lhe abria as portas. Sua preocupação com a empresa era
inusitada para a época, mas o levou a montar uma estrutura acionária peculiar, com o propósito de
garantir a continuidade da companhia, sem interferência de terceiros. Ele vendeu 49% das ações aos seus
diretores em proporções diversas, permaneceu com outros 49% e depositou os 2% restantes em um
beneficiary trust. Dessa forma, ele era o detentor do controle acionário. Depois de seu falecimento, os
outros acionistas teriam o direito de comprar as ações, mantendo a proporção que já tinham. Em 1937,
ele mudou a estrutura legal, transformando-a em uma sociedade limitada, a fim de protegê-la de
influências externas e salvaguardar sua independência. Com a segurança dada pela composição
acionária, a empresa sobreviveu às intempéries das duas grandes guerras e à depressão de 1929, ampliou
sua variada linha de produtos, foi pioneira na evolução tecnológica, deu empregos a milhares de pessoas
e entrou no século XXI, com posição garantida entre as líderes mundiais de seu setor, mantendo-se fiel
aos princípios de seu fundador, baseados em três pilares: sua missão, sua visão e seus valores, voltados
em sua maior parte para a melhoria das condições de vida do ser humano. Quando morreu em março de
1942, aos oitenta anos de idade, Robert Bosch deixou consolidado seu império. Mas não apenas a
capacidade de realização do sr. Robert Bosch despertou minha admiração. Uma quantidade considerável
de grandes realizadores construiu o mundo do século XX e entrou no século XXI, porém um número bem
menor foi tão sensível às necessidades e ao bem-estar de seus trabalhadores quanto o sr. Robert Bosch.
Neste quesito, focalizei o meu olhar.
Robert Bosch formou um conselho de controladores. Esse conselho era formado por representantes de
várias categorias sociais — havia trabalhadores, médicos, pessoas especializadas em vários assuntos,
tendo como fator de escolha sine qua non uma reputação ilibada. Em seu testamento, o sr. Robert Bosch
deixou estabelecida uma condição. Seu filho seria o seu herdeiro se fosse capaz de sucedê-lo na gestão
dos negócios. Caso isso não acontecesse, o sr. Robert deixava 15% do capital para a família. Com o
restante, seria criada uma fundação cujos resultados seriam utilizados na preservação do hospital feito
pela Bosch em Stuttgart, em pesquisas sobre homeopatia, em obras científicas no campo da medicina e da
tecnologia e em obras sociais. Robert Bosch Júnior, quem conheci muito bem, era uma pessoa em cuja
personalidade as características humanitárias eram muito acentuadas. Apesar de haver estudado
engenharia, ele não tinha pendores para atividades comerciais, não acreditava poder adaptar-se ao
sistema empresarial. Por isso, não quis dirigir a empresa e decidiu adotar a alternativa deixada pelo pai:
os controladores seriam responsáveis pela continuidade da empresa. Depois de tomar sua decisão,
estudou medicina e fundou um hospital, que dirige até o presente, para crianças excepcionais. Este foi um
gesto de altruísmo. Teve a sabedoria de adotar a atitude correta para dar continuidade ao império Bosch.
O conselho até hoje define os presidentes e os diretores da companhia e também tem a atribuição de zelar
pela manutenção dos princípios da filosofia do dr. Robert Bosch.
Um deles: "É preferível perder dinheiro do que confiança".
A partir de seus exemplos, aperfeiçoei meus princípios de ética e abri minha mente para novos ideais.
Incorporei elementos de sua conduta que me ajudaram a compor minha forma de gestão empresarial,
dentro da qual o ser humano tem um papel primordial. São esses preceitos que eu gostaria de passar,
através destes meus escritos, às novas gerações.
Tive uma proposta do sr. Merkle para um cargo na Bosch mundial. Eu seria responsável por todas as
empresas do grupo Bosch no mundo, exceto Europa. Na minha função, eu estava de 70% a 80% do meu
tempo fora de casa. Estava cansado de tanto viajar, e assumir esta posição significava me locomover de
país em país, viajando ainda mais do que eu já fazia. Recusei, embora soubesse que aquela era a
pavimentação do caminho para chegar à presidência da Bosch mundial. Eu queria uma vida mais
tranquila. Surgiu uma proposta vinda da Audi, uma afiliada da Volkswagen, mas com administração
bastante autônoma. Era para a presidência da Audi AG, em Ingolstadt. Com operações na Alemanha, eu
não precisaria mais me deslocar mundo afora. Aceitei-a. Providenciamos a mudança, minha única
dificuldade era levar meu cavalo, do qual eu não queria abrir mão. Mas o destino batia à minha porta,
com outras determinações, levando-me para outra direção. O então presidente mundial da
Volkswagenwerk, o dr. Rudolf Leiding, a quem eu conhecia muito bem, pois ele havia sido presidente da
Volkswagen Brasil e, através da Bosch, tínhamos muitos contatos, chamou-me para uma reunião:
— Sauer, temos um pequeno problema na Volkswagen Brasil, e eu gostaria que você fosse até lá para
resolvê-lo.
— Que tipo de problema? — perguntei-lhe.
— Não é nada complicado. Aliás, é muito simples. Você vai ver. Em uns quinze dias, você resolve
tudo. Logo, logo, logo, você estará de volta — assegurou-me ele.
Esses quinze dias se alongaram. O “logo, logo, logo” estendeu-se por vinte anos. Cheguei à
Volkswagen em 1973 e deixei a presidência do Conselho Consultivo da Autolatina em 1993.
UM GESTO DE EXTREMA CONFIANÇA
guerra fria, a Alemanha Ocidental foi invadida por um sobressalto que se estendia de
Durante a norte a sul. Ganhariam os russos maior espaço e alargariam seu domínio para além da
fronteira com a Alemanha Oriental? A desenvolvida e rica parte ocidental era um
vistoso território para as ambições russas. Pairava no ar a incerteza, contudo, nas conjecturas de então,
ter a Alemanha Ocidental anexada à URSS, como já o era a Oriental, significava tomar posse da
Alemanha inteira, um sonho alimentado pelos senhores do Kremlin.
A diretoria da Bosch, assim como a de outras companhias, temia as consequências de uma tomada
dessa natureza. Quando cheguei à presidência da Bosch América Latina, fui procurado pelo board com
uma proposta surpreendente. Eu assumiria de pronto toda a administração da Bosch na América Latina,
através de uma procuração, concedendo-me plenos poderes para dirigi-la como se fosse seu proprietário,
caso a Alemanha Ocidental viesse a ser ocupada pelos russos. O escritório de toda a operação seria
sediado em Nova Iorque. Havia uma condição: a empresa deveria ser dirigida dentro dos preceitos do sr.
Robert Bosch, os quais eu conhecia de sobra. Caso os riscos deixassem de existir, eu devolveria a
procuração para a Bosch. Da parte deles foram feitos todos os documentos, mas da minha parte ficou
apenas minha palavra, sem qualquer papel assinado. Não me pediram nada. Era uma responsabilidade
muito grande, e eu a aceitei, depois de muita insistência dos senhores do board da Bosch, e também
porque, para mim, a Bosch na América Latina era praticamente uma criação minha e das minhas equipes
e eu não podia imaginá-la sem rumo, caso a Bosch Alemanha viesse a ser estatizada. Assumi formalmente
o compromisso de continuar a obra do fundador da empresa na América Latina.
Esses documentos permaneceram durante muito tempo comigo. Quando deixei a Bosch para assumir
um cargo na Audi, fui pessoalmente devolvê-los ao então presidente da Bosch Alemanha.
Não posso ocultar que essa decisão da Bosch, empresa pela qual sempre tive muito amor, me deu
muito orgulho, apesar da enorme responsabilidade envolvida nesse processo.
VIAJAR É PRECISO
Wolfgang Sauer, nos tempos de coroinha, foi advertido pelo padre, pois substituiu o sino por uma
buzina de automóvel
Uma das coisas que mais africa o agora confessor Sauer, eram os “pecados” que cerios motoristas
cometiam nas estradas.
Sauer sempre foi de um dinamismo incrível, até no jeito: a maneira de olhar, de falar, de
gesticular. Nada em Sauer é morno. Em tudo ele se mostra um emotivo, um entusiasmado. Fala de
várias coisas ao mesmo tempo, faz várias coisas ao mesmo tempo, pede várias coisas ao mesmo
tempo. Isso o ajudou a tornar-se a catapulta da VW: sob sua direção, foram realizados o centro
de desenvolvimento de produtos, a compra da Chrysler no Brasil e Argentina, a fusão VW/Ford,
formando a Autolatina.
Miguel Jorge — ex-vice-presidente da VW, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
até 2010
memória muito boa, mas todos aqueles que comigo conviveram conheceram o meu
Tenho uma caderninho de notas. Inseparável, eu o carregava no bolso de trás da calça. Dali ele
saía sempre que necessário. Para uma nova anotação, para uma cobrança, para um
lembrete — um verdadeiro parceiro administrativo, ou seria um apêndice de mim mesmo?
Sempre privilegiei ao máximo a atividade produtiva, tanto na indústria quanto na minha atividade na
área da pecuária e na continuidade do meu trabalho pós-Volkswagen, mantendo-me distante de
especulações financeiras. Minha visão da economia como um todo, além de contemplar a produção e a
geração de riquezas pela força do trabalho, possui igualmente um forte componente social. Esses foram
os princípios aplicados nas empresas que dirigi.
Tendo nas mãos os negócios que me foram confiados, tomei conta deles como se a mim pertencessem,
lutando com o afinco e a firmeza de um verdadeiro proprietário, mas sempre mantendo a consciência de
que não o era. Minha atenção estava concentrada nos trabalhadores, na produção, no mercado
consumidor, nos fornecedores e, é claro, nos acionistas. Não me incluo na categoria de administrador no
sentido clássico do termo. Dirigindo companhias como a Bosch e a Volkswagen, deparei-me com
situações que não cabiam dentro das regras ditadas pelos manuais de administração, tendo que passar por
cima do convencional em busca da eficiência. Eu simplesmente buscava fazer o correto e, uma vez
tomada a decisão, defendia meus projetos e ideias com veemência. Quando tinha sucesso, não via isso
como uma coisa enorme, grandiosa, mas sim como consequência de um trabalho bem realizado. Quando
não dava certo, nunca fugi da responsabilidade. Assumia-a integralmente. Acredito que este foi um dos
pontos fortes da minha administração, porque, através deste procedimento, adquiri a confiança dos meus
parceiros. Considero como obrigação do líder de uma empresa ter coragem para considerar e analisar
positivamente as possibilidades e colocá-las em curso, caso as considere viáveis e de provável retorno.
Não se pode instaurar um regime ditatorial, deixando à margem as equipes. É preciso informar aos seus
colaboradores aquilo que vai ser executado e como será conduzido. Caso não seja essa a conduta, o líder
poderá passar a ideia de que suas atitudes são baseadas em improviso. Com uma equipe bem informada,
conhecedora do planejamento das ações e de seus desdobramentos, abraçando os mesmos ideais de quem
a lidera, as possibilidades de sucesso são muito maiores. Assumi grandes riscos, mas não poderia ser de
outra maneira. Eu não podia ficar longo tempo pensando: “Ah, será que vai dar certo? Será que vale a
pena correr esse risco?”. É claro que se faz necessária uma avaliação criteriosa e não se pode desprezar
o cálculo das consequências. Contudo, o medo não é um bom companheiro para um administrador de
qualquer negócio, pequeno, médio ou grande. Perde-se a iniciativa, desperdiça-se a intuição, deixa-se
escapar as oportunidades e debilita-se a capacidade de assumir as responsabilidades.
Acredito ser necessário expressar que sempre me senti responsável por todas as decisões tomadas. No
caso de ações complicadas, se não tivessem tido sucesso, eu certamente teria perdido minha posição. O
fato de saber que podia confiar inteiramente nos meus colaboradores dava-me suporte para assumir todas
as responsabilidades. Certamente, meus gestos e atitudes na defesa das minhas equipes e na confiança
nelas depositada conquistaram o respeito de todos que comigo trabalharam.
Quando cheguei à Volkswagen, eu tinha muito claras na mente as regras e leis do processo de
administrar empresas e pessoas. Entre as fundamentais, estão a ética e o respeito pelo ser humano.
Contudo, gosto muito de ouvir as opiniões daqueles que me viram em ação. O olho do outro sobre minhas
atitudes quando comparado com o meu pensamento, ao tomar muitas delas, apresenta diferenças, mas
também algumas similaridades.
Meu assessor mais jovem, Christian Bruno Schües, que esteve junto de mim em muitos dos nossos
projetos, tece suas considerações sobre minha forma de conduzir a equipe: “O Sauer foi como um
segundo pai para mim, com ele aprendi muito. Ele é desses dirigentes de empresas que mandam,
determinam, mas que, ao mesmo tempo, dão muito autonomia e liberdade para seus diretores e gerentes.
É claro que ele não aceita qualquer coisa. Essa forma de agir funcionou muito comigo, porque tenho um
perfil profissional adequado a esse sistema. Se alguém me dá uma responsabilidade, não precisa cobrar
ou fazer follow-up. Quando Sauer deixou a Volkswagen, as coisas mudaram, pois, dentro da Autolatina, o
sistema Ford ganhou muita força sem a presença dele. Os dirigentes da Ford eram cobradores, sem deixar
muito espaço para o trabalho com liberdade de ação. O Sauer sempre foi uma pessoa muito positiva e
realizadora. Nas reuniões, quando ele nos transmitia um novo projeto, ele já o tinha como definitivo,
pronto. Passava-nos as linhas gerais de ação e não deixava espaços para debate, nem para observações
sobre dificuldades ou impossibilidades de execução de suas ideias. O desafio era colocado, a forma de
atingir o objetivo também, não havendo lugar para dúvidas, pois, na cabeça dele, o projeto já estava
delineado, ele já o via pronto. Cabia à equipe trabalhar naquela direção. Por outro lado, dava liberdade
ao executivo para seguir outra linha, desde que fosse bem-sucedida, mas discutir com ele para dissuadi-
lo de seus planos era algo muito difícil, para não dizer impossível. Alguns diretores ousavam enfrentá-lo,
tentando fazê-lo mudar de rumo, mas, quando ele tinha convicção de que estava certo, não aceitava
debates, queria ação. Era como se dissesse: ‘Ou você vai do meu jeito ou não vai’. Mas, depois, ele
deixava espaço para fazer de outra forma que não a dele. Tendo as características do homem emocional
racional, com profunda clareza na execução da sua atividade, Sauer não tinha paciência com quem não
acompanhasse a velocidade de seu raciocínio e sua disposição imediata para passar dos planos para a
prática. Com os privilegiados que conseguissem acompanhar seu ritmo, ele estabelecia uma ligação
estreita baseada em empatia e simpatia. Estes se transformavam em depositários de sua confiança e eram
os requisitados para as mais complexas tarefas. Exigente, ele esperava dessas pessoas a contraparte
naquilo que denomino entrega total. Como um executivo que estabelecia objetivos, encantava-se com
quem pudesse realizá-los. As metas tinham que ser alcançadas, e a quem pudesse viabilizá-las ele dava
corda, autonomia, liberdade, favorecia nesse sentido. É claro que, para estar ao lado dele, era preciso ter
muita competência. Às vezes, ele errava nessas escolhas, e, como valorizava muito as relações com as
pessoas, esses fatos o entristeciam. Fora da empresa, ele tinha uma rede de contatos imensa, não se
furtando a atender as pessoas, a dar sua colaboração quando necessário e a promover encontros que
pudessem ser úteis, enfim não media esforços. Um exemplo disso foi o relacionamento dele com o Ozires
Silva. Sauer o ajudou muito na Embraer. Quando o Ozires foi para a Petrobras, foi a vez dele de ajudar o
Sauer. Existem casos incontáveis de personalidades do mundo empresarial que com ele interagiram,
entrando para a categoria de amigos e parceiros”.
Christa, uma de minhas secretárias na Volkswagen, faz sua análise: “A administração do dr. Sauer foi
marcada pelo empreendedorismo. A característica predominante de sua personalidade empresarial era a
do empreendedor. A meu ver, quase tudo derivava desse fator. Ele sempre lutou muito pelo que queria,
pôs em risco coisas de sua vida privada, inclusive a convivência familiar em prol da realização daquilo
que idealizava. Era quase uma obsessão que não o deixava desistir nunca, apesar dos reveses muitas
vezes sofridos. Quando ele chegou à Volkswagen, abriu-se um novo tempo. Inaugurava-se um fato inédito.
O presidente da empresa, quando entendia ter cometido algum engano, pedia desculpas. Tive uma única
discussão com ele. Achei-o rígido demais em seus argumentos, fora de seus padrões. Embora eu
estivesse certa, calei-me, aceitei o que ele dizia e voltei para minha mesa. Minutos depois, ele levantou-
se de sua cadeira, atravessou a sala, veio na minha direção, parou em frente a mim e fez um sincero
pedido de desculpas. Agregou às suas palavras um gesto terno: passou a mão sobre a minha cabeça”.
Evelina, outra das minhas secretárias, fala um pouco da minha gestão: “Dinamismo era a tônica dos
nossos dias com ele. Quando ele chegava, tudo se punha em movimento. Mal se sentava para fazer algo,
logo se levantava porque outras ideias já brotavam, e ele ia atrás delas. O incrível é que ele tinha o
domínio de todas. Sua primeira pergunta era sobre a produção do dia anterior: ‘Quantos carros fizemos?
800? 820? 850?’. Todos os relatórios já estavam sobre sua mesa, mas nós todas já tínhamos o número na
ponta da língua. Dinâmico, elétrico, forte, exigente e, ao mesmo tempo, um ser adorável”.
Meu amigo, parceiro na Anfavea e respeitadíssimo concorrente na Ford, Newton Chiaparini me
visitava com frequência, devido às nossas atividades na Anfavea. Ele afirma que sempre me observava
na direção da fábrica: “A Volkswagen era um monstro, a maior empresa automobilística do Brasil, e
administrá-la era assunto para gente grande. O escritório todo envidraçado do Sauer dava vistas para a
linha de montagem. Não sei se propositadamente ou por acaso assim era a configuração de sua sala. Uma
das minhas incontáveis admirações pelo Sauer está no fato de ele, apesar do prestígio e da posição que
ocupava, nunca ter sido um homem cheio de estórias, nunca teve arroubos de estar acima dos outros.
Sentado a sua mesa, ele via a linha de montagem. Quando eu o visitava, ouvia-o dizer: ‘Hoje a produção
não está boa’; ou então: ‘Hoje a produção vai estourar!’. Ou seja, ele podia sentir a pulsação da fábrica e
é lógico que ele não tinha o número definitivo nem administrava a empresa apenas com o olhar, mas era
uma forma de ele participar junto com os operários e com os técnicos o dia a dia da produção. Ele os
chamava para perguntar o que estava acontecendo com as prensas, com as máquinas, quando algo não ia
bem”.
Jacy Mendonça menciona dentre outros um assunto que me é muito caro, o ser humano: “Falo de
elementos aparentemente contraditórios, mas, no Sauer, eles tinham o poder da complementaridade.
Apesar dessa sua capacidade de relacionamento humano, desse poder de conquista e de sedução, ele é
um administrador de pulso firme e de controles muito rígidos”.
Manoel Bayard fala de uma coisa sobre a qual sempre tive grande apreço: “O trabalho em equipe era o
traço marcante de sua administração. Sempre formou um grande e competente grupo de trabalho, uma
equipe que, em todas as circunstâncias, “fechava” com ele. É um homem que sabe trabalhar e valorizar o
seu time. A liderança dele é tão normal, tão óbvia, que ele não tinha nada a disputar com ninguém. Ao
contrário, ele era um apaziguador. Dentro da empresa, com todos aqueles diretores de áreas enormes,
grandes estrelas dentro da constelação Volkswagen, quando havia divergências e até desavenças, Sauer
administrava tudo com muito tato e diplomacia. Não precisava usar a pressão de sua autoridade, ao
contrário, ele se impunha de maneira gentil. Uma das razões do sucesso dele estava na experiência
acumulada, levando-o a conhecer tudo o que precisava mandar outros fazerem. Embora ele não lidasse
muito com a parte financeira, ele tudo sabia e falava com o diretor da área de igual para igual. Assisti-lo
no trabalho era muito estimulante, porque ele tinha uma intuição afinada com a realidade, sabia o que
queria, não titubeava e raramente errava. Acrescia-se a isso um feeling impressionante em relação a
pessoas. Era um conhecedor de gente, de suas reações, de seus sentimentos e de suas aspirações. Em
nossos trabalhos fora da fábrica, depois de resolvidos os problemas na área de governo, ele abandonava
o papel de presidente e se comportava como amigo. Tenho ótimas lembranças dele dos catorze anos que
trabalhei na Volkswagen. Era uma companhia muito agradável. Sinto saudades do convívio com ele. Um
dos atestados da competência do Sauer e de sua capacidade de estabelecer relacionamentos baseados em
confiança mútua foi o caso dos participantes do grupo Monteiro Aranha. Eu os representava na empresa e
conhecia muito bem a posição deles. Detentores de 20% do capital da companhia, eles tinham uma
relação distante com os primeiros presidentes da empresa. A chegada do Sauer mudou o destino dessas
relações, porque, além de sua capacidade de liderança e de realização, o Sauer é um gentleman.
O jeito Sauer de administrar tem componentes que o afastam das regras convencionais do gestor de
empresas de sucesso: amigo de todas as horas, um coração enorme, um homem sem rancores, capaz de se
desculpar, dono de uma imensurável preocupação com o ser humano, defensor ardoroso dos princípios
de ética. Pode parecer incrível, mas Sauer reúne todas essas qualidades. A esses valores juntam-se sua
inteligência rara, sua força e seu carisma para fazer dele um extraordinário realizador e um grande
condutor de pessoas. Sauer foi o grande construtor da Bosch na América Latina e, na Volkswagen, fez
uma empresa à sua imagem: dinâmica, brilhante e poderosa — uma potência. Era uma multinacional, mas
Sauer cuidava dela como se fosse sua, ao ponto de transformá-la em sinônimo de si mesmo. Sou
testemunha disso porque o assisti muito em seus contatos com presidentes da República e ministros de
Estado. Na maioria das vezes, ao falar da empresa, já não mencionavam o nome dela, mas sim o do
Sauer. Pode-se ter a impressão de que isso assim acontecia pela amizade desenvolvida por ele com essas
pessoas. Sim, a amizade era apenas uma parte, porque, nas discussões, ele colocava seus pontos de vista
com clareza, defendia-os com unhas e dentes, mantendo a consideração pela autoridade daquelas
pessoas, e advogava obstinadamente em favor da Volkswagen, dos empregos gerados por ela e do setor
que representava. O respeito dos componentes do governo foi gerado por vários fatores, mas
essencialmente pela percepção da visão de longo prazo de Sauer, pela evolução do processo industrial
brasileiro e pelo desenvolvimento do País.
Há muito não tenho nenhum envolvimento profissional com o Sauer, o que me prende a ele é o laço
afetivo, por isso posso dizer com toda a tranquilidade: o Sauer tem um caráter único, a tônica de sua
personalidade é ser amigo dos amigos e, também, como dirigente da empresa, um amigo dos seus
subordinados. Foi muito fiel a essas pessoas e, salvo raras exceções, teve na fidelidade delas a
contrapartida de sua dedicação.
Como representante do grupo Monteiro Aranha, assisti a saída do grupo da sociedade com a
Volkswagen Brasil. Sauer atuou com toda a lisura que lhe era peculiar. Entre ele e o dr. Joaquim
Monteiro de Carvalho, estabeleceu-se um relacionamento baseado em respeito e reciprocidade.”
Olavo Monteiro de Carvalho, sobrinho do dr. Joaquim e atual presidente do grupo, fala da importância
da minha atuação na negociação de venda de ações do grupo Monteiro Aranha para o Kuwait. Diz Olavo:
“Eu era muito próximo do Mário Henrique Simonsen, que me considerava seu pupilo, interessando-se
profundamente pela minha formação como executivo internacional. De bom grado, dada minha admiração
por ele, eu o acompanhava em diversas viagens. Em uma reunião do Fundo Monetário em Washington,
Simonsen pediu que eu me aproximasse do embaixador do Irã nos Estados Unidos. O xá do Irã estava
muito inclinado a investir na indústria automobilística brasileira, e, segundo Simonsen, aquele era um
assunto de interesse estratégico para o Brasil. Assim, nasceu a possibilidade de o Irã investir na
Volkswagen do Brasil. Os representantes da Volkswagenwerk foram categóricos, afirmando que
aceitavam o investimento, mas não mexeriam em um número de sua posição acionária de 80%. Então, a
compra pelo Irã deveria caminhar em outra direção. A pedido do Simonsen, começamos a estudar a
possibilidade de vender metade da nossa participação, que era de 20%. Bancos internacionais de
investimentos, como o Morgan Stanley e o Merrill Lynch, entraram nas negociações. Contudo, a
revolução islâmica decretou a queda do monarca, deixando no ar a conclusão do negócio, que não se
efetivou. Anos mais tarde, os bancos envolvidos voltaram com um novo cliente, desta vez do Kuwait. O
representante do Emir era um executivo libanês, de altíssimo nível, muito hábil nas negociações. Quando
estas já estavam em estágio avançado, esse executivo manifestou o desejo de conhecer a Volkswagen do
Brasil e seu presidente, pois queriam conhecer os planos de longo prazo da empresa. Nunca vou me
esquecer da apresentação do Sauer naquele dia. Ele falou da Volkswagen com a veemência de um
apaixonado, mostrou a força da empresa, sua posição de liderança, seu domínio absoluto do mercado
brasileiro e suas possibilidades futuras. Seu entusiasmo e vigor de ânimo tinham como base fatos
concretos: a poderosa Volkswagen era a maior empresa da América Latina, à época, maior do que a
Petrobras. Vários adjetivos superlativos poderiam qualificar a performance de Sauer, que usou todo o
seu natural magnetismo para encantar o representante do Emir. Finalizou seu discurso, convidando-o para
visitar a empresa no Brasil. O sobrevoo em helicóptero impressionou positivamente nosso visitante,
contudo um imprevisto nos aguardava. Naquele exato dia, havia sido iniciada uma greve. A operação
industrial estava parada. Ficamos exasperados, mas o acaso viria em nosso socorro. No dia anterior,
nosso ilustre convidado comera algo que lhe fizera mal. O convite de Sauer para descansar nas salas da
presidência da empresa foi muito bem-vindo, pois ali estaria próximo dos banheiros, sem perigo de
correr riscos imprevisíveis. A ideia que lhe fora dada pelo voo de helicóptero era suficiente. Vendemos
os 10% da nossa participação, e o Sauer atuou como peça-chave, importantíssima na negociação. O
cheque recebido do Kuwait foi de 115 milhões de dólares. Até o Delfim Netto fez um pedido: ‘Avise-me
quando isso vai entrar’. Foi um fato histórico. Havia tanto dinheiro no mercado que foi necessário mexer
no câmbio. Negociamos a outra metade da nossa participação com o sr. Leiding, então presidente da
Volkswagenwerk AG. Iniciavam-se as discussões para a fusão da Volkswagen com a Ford, e nós do grupo
Monteiro Aranha não queríamos continuar com nossa participação. Com sua maneira elegante de
conduzir os negócios, o sr. Leiding nos propôs: ‘Nós ficamos com os seus 10% e damos a vocês o
equivalente em ações da Volkswagen Alemanha’. Deixamos de ser sócios no Brasil e passamos a ser
sócios na Alemanha. Continuamos muito amigos do Sauer, como o tínhamos sido até então, porque,
apesar de seus contatos serem mais estreitos com meu tio, todos da família o admiravam”.
Mauro Imperatori foi um dos nossos ilustres advogados, está atualmente na direção da Assobrav.
Destacava-se pela competência e pela capacidade de destrinchar leis complexas para adaptá-las às
nossas necessidades. Apesar de ser um intelectual de primeira linha, adequava-se com perfeição aos
casos áridos do nosso departamento jurídico. Demo-nos muito bem e continuo tendo por ele admiração e
estima, que acredito que sejam recíprocas: “O dr. Sauer foi um extraordinário presidente e um grande
administrador. Sabíamos que ele vinha da Bosch e tivemos a notícia de que se tratava de um presidente
democrático. Pois foi assim. Com ele, chegou a democracia, provocando uma mudança na orientação de
gestão da companhia. Quando ele precisava de alguma coisa da área jurídica, ele mesmo pegava o
telefone e me perguntava diretamente. Eu não era o responsável pela área, mas ele a mim se dirigia com
toda a naturalidade. Quem já trabalhou em uma indústria alemã sabe que este é um procedimento
incomum. Àquela época, ele inaugurava um estilo de administração totalmente inovador, e isso aconteceu
quando o Brasil vivia sob um regime governamental de ditadura, com rígidos controles sobre as
companhias — controle de preços, controle de estabelecimento de regras e de regulamentos para as
atividades empresariais. Enquanto isso acontecia na condução do País, na Volkswagen, conhecíamos o
regime administrativo democrático. Nosso presidente tinha um dom raro — o dom da liderança no mais
amplo sentido da palavra. Era capaz de enxergar um problema não apenas no momento em que ele
acontecia, projetava-o para o futuro, considerando todos os fatores envolvidos. Essa capacidade nos
encantava a todos e fazia com que seguíssemos o nosso líder. Sua ampla visão fez dele um conselheiro
admirado e solicitado por ministros da área econômica e da indústria e do comércio. Nosso
departamento jurídico tornou-se uma área muito forte dentro da organização, pois, como as ideias do dr.
Sauer eram muito avançadas para a ocasião e ele não queria nada feito fora da lei, éramos
constantemente solicitados. Outro valor trazido por ele para a empresa foi a confiança na palavra, que se
espraiou pela companhia inteira. Discutíamos os assuntos, assumíamos os compromissos, iniciávamos os
processos, para apenas depois formalizá-los com documentos. Tudo isso imprimia um ritmo mais leve às
nossas atividades, aumentando a confiabilidade no trabalho. O jeito informal de administrar do
presidente vinha de cima para baixo, envolvendo todos os demais níveis hierárquicos. Sei que ele teve
algumas decepções, porque entregou projetos advindos de sua visão do negócio e de sua capacidade
intelectual a pessoas que não corresponderam à confiança nelas depositada. Apesar disso, sua
capacidade de confiar se abalava em relação àqueles que com ele falhavam. Com os demais, não sofria
arranhões, permanecia intacta”.
Luc de Ferran assumiu a divisão de caminhões da Ford, após a formação da Autolatina. Em sua
opinião, qualifica-me como: “Sempre foi muito solícito, sempre ouviu a todos e, mesmo que
eventualmente a contragosto, aceitava recomendações sólidas, contanto que muito bem fundamentadas”.
Trabalhando em exportação, Joacyr Drummond esteve a meu lado em situações complicadas nos
países da África, no Iraque, no Canadá e nos Estados Unidos: “O Sauer tinha uma criatividade fantástica,
para ele o impossível não existia. Ele apresentava um projeto, uma proposição, ouvia o que dizia toda a
consultoria que o rodeava, enchia-nos de porquês para, afinal, tomar a decisão delineada em sua mente
desde o princípio. Podia-se dizer que era uma atitude ditatorial. Mas não, não o era. Sua capacidade de
iniciativa e sua ousadia iam muito além da nossa. Entre nós, às vezes, brincávamos: ‘Ele está ficando
ainda mais inteligente’, porque ele não repetia a mesma decisão em situação futura, quase semelhante a
uma anterior. Ele analisava cada uma no seu tempo físico, no seu panorama, os fatores exógenos e vinha
com uma atitude nova. Não havia rotina, ele ia muito além dela. Basta ver o caso dos Estados Unidos, os
mercados onde atuamos. O custo e o desgaste de fazer esses negócios eram terríveis, sem falar nas
margens de risco. E ele passava por cima de tudo isso e fazia. Mas a liderança dele não era exercida
apenas dentro da Volkswagen e nos negócios em que ela estava envolvida. Numa época difícil em que as
empresas dependiam do governo para tudo, não se podia brigar nem ser antipático ou prepotente. A
bajulação ajudava alguns no sentido de conseguirem realizar seus projetos, mas o Sauer, exercendo a
liderança da indústria automobilística, expunha com clareza as suas proposições, chamava a atenção de
governantes e teve até a coragem de processar o Estado brasileiro, no caso do CIP. Suas atitudes
despertavam o respeito dessas pessoas, porque elas sabiam da seriedade dele”.
Sarwat Wahab era o nosso homem de exportação de peças para reposição. Egípcio, ele transitava no
mundo árabe com a desenvoltura de quem dominava a língua e os costumes locais. Tem suas opiniões
sobre a minha maneira de conduzir homens e negócios: “Eu não vejo o dr. Sauer há dezoito anos, mas
como ele é uma pessoa que marca, assim como um carimbo, não dá para esquecer. De qualquer coisa que
ele participasse, podia-se esperar sucesso. Era muito otimista e, raramente, desistia. Quando uma
transação comercial se tornava difícil, eu via que os diretores, depois de haver esgotado todas as
possibilidades de negociação, o chamavam. A presença dele amolecia o cliente. Parece brincadeira, mas
é a mais pura verdade. No exterior, saíamos sempre juntos, e, quando ele lá estava, acompanhava-nos
como se fosse um dos nossos, e não o presidente de uma das montadoras mais poderosas do mundo. Eu
estava organizando um depósito na Argélia, e ele veio para fechar alguns negócios. Ele acompanhava a
comitiva do então presidente Figueiredo. Fazia parte do protocolo um jantar na embaixada brasileira em
homenagem ao presidente. O dr. Sauer fez questão de convidar todos os operários e funcionários da
Volkswagen para participar desse jantar. E, depois, apresentando-nos como seus queridos colaboradores,
fez o presidente fotografar-se ao nosso lado. Tenho uma foto com o Figueiredo com a mão sobre o seu
ombro. Foi o dr. Sauer quem me mandou fazer este gesto. Eu o fiz meio constrangido, afinal era o
presidente da República, mas está aí, na foto, registrado aquele momento. Normalmente, os presidentes
das outras companhias não fazem isso. Ele não, ele nos fazia sentar em lugares de destaque e, no final da
festa, ao partir, ele não se esquecia de se despedir de cada um de nós. Mas não era só das grandes
celebrações que éramos chamados a participar. Ele vinha até nós quando estávamos em grupo. Certa vez,
um dos funcionários que gostava de levar vinho do Brasil, dizendo tratar-se de vinho importado, chegou à
Argélia com duas garrafas. Estávamos em uma reunião que foi até altas horas da noite, e o hotel já não
servia mais nada. De repente, o Sauer disse: ‘Estou com fome, não há nada para comer?’. Havia apenas
queijo. Nosso amigo do vinho foi imediatamente buscar uma de suas garrafas. Ao abrir, verificou que o
vinho estava estragado. Era vinagre puro. Sauer não se aborreceu, ao contrário, riu como todos nós e
continuou comendo queijo, sem mais nada, com o mesmo bom humor de sempre. Ele não é igual aos
demais. Ele é uma pessoa nobre. Não se pode igualá-lo a um alemão — ele é diferente dos alemães. Não
se pode igualá-lo a um brasileiro — ele tem a ginga, flexibilidade, bom humor do brasileiro, mas é
diferente dos brasileiros. Não se pode igualá-lo a nada, ele juntou tudo o que é bom de várias
nacionalidades em uma só pessoa”.
Minha secretária no período pós-Volkswagen, Marta Soares Zanela, tem algumas considerações
interessantes que escapavam da minha percepção: “Trabalhar com o dr. Sauer era um desafio. Ele sabe
mandar, controlar e guardar tudo na cabeça, além do famoso livrinho. Eu vivia atrás dele com um
gravador pequeno na mão, porque não acredito que haja ser humano capaz de registrar no ritmo em que
ele fala, pede as coisas, dita cartas, e-mails. Não admite atrasos. Neste caso, ele era um alemão genuíno:
‘Como? Ele está atrasado! Ligue para o celular’. Mas, quando se tratava dele próprio, o lado brasileiro
falava mais alto. O tempo era nosso inimigo. Eu ligava para avisar que ele ia chegar um pouco mais
tarde. Esse pouco, às vezes, chegava a uma hora. A agenda estava sempre lotada, porque ele era muito
dedicado ao trabalho, aliás, acho que até demais, pois colocava o trabalho à frente de qualquer coisa, o
que é uma qualidade, mas, muitas vezes, as outras partes da vida ficam abandonadas. Esse era o caso
dele. Muito determinado e perseverante e de um coração muito grande, muito generoso até com certa
dificuldade de dizer não quando lhe é feito algum pedido. Recebia muitos telefonemas de pessoas
necessitando de indicação para emprego e ele nunca deixava de pedir o currículo e encaminhá-lo para
quem ele achasse conveniente, sempre acompanhado de uma carta pessoal. Vi muitas pessoas distantes há
tempos vir pedir empréstimos. Ele nunca negava e, depois, a pessoa sumia.
Tínhamos um relacionamento ótimo, mas, às vezes, como acontece com pessoas que estão muito
próximas, tínhamos algumas rusgas. Chorei umas poucas vezes. Quando isso acontecia, ele se arrependia
amargamente: ‘Filha, não, não era isso, eu não queria magoá-la. Também não é para tudo isso... Vocês
mulheres choram por tudo. Não fique assim...’. Tudo se arranjava, porque ele sempre foi muito gentil.
O dr. Sauer é um homem que gosta de falar de tudo e dá muita atenção a quem fala com ele. Não é
desses que faz uma pergunta e não ouve a resposta, ele realmente se interessa quando alguém está falando
perto dele. Sempre que precisei, pude contar com ele. É uma pessoa muito querida por todos.”
BRASILINVEST: UMA EXCELENTE IDEIA, UMA
ADMINISTRAÇÃO EQUIVOCADA
caminhei com muita destreza nesses ambientes. Trata-se de uma realidade. Fiz
Dizem que amigos, tive entrada facilitada pelo tamanho da empresa por mim representada, mas
também pela coerência das minhas atitudes. Sempre que minhas opiniões foram
solicitadas, eu lá estive oferecendo minha parcela de contribuição para a solução dos problemas
nacionais, buscando o exame do aspecto global das questões, analisando o conjunto como um todo. Eram
minhas prioridades as necessidades da empresa e do grande número de empregos gerados, sem me
desviar do foco: o desenvolvimento do País não apenas do ponto vista econômico, mas também do seu
bem-estar social. Ao admitir que não tive dificuldades de entrar nesse mundo, posso deixar a impressão
de facilidades conseguidas graças ao poder da Volkswagen. Mas não foi assim. Eu era muito bem
recebido, embora tenha contado com alguns poucos desafetos nessa trajetória, mas era preciso aptidão,
habilidade e engenho para comprovar a justeza dos nossos pleitos e o caráter correto das nossas atitudes.
Minha secretária de muitos anos, Evelina afirma: “Nunca tivemos tão boas relações com o governo
como no tempo do dr. Sauer”.
Lembro-me como se fosse hoje. O presidente Geisel (1974 a 1979) chamou-me ao gabinete da
presidência:
— Sauer, você tem que ser brasileiro. Você representa o Brasil em várias delegações e missões, tem
um papel importantíssimo dentro do setor empresarial do País. Não pode ser um estrangeiro.
— Mas, presidente, qual é a diferença? Eu sou brasileiro de coração. Vou ser chamado de alemão
quadrado. Para ser brasileiro, eu precisaria de um nome latino. Com o meu nome, sou um germânico.
Muitos pensam que a cultura latina nos é estranha, o que, no meu caso, não é uma realidade. Amo o Brasil
e penso como um brasileiro.
— Também me chamam de alemão quadrado. Isso não tem importância nenhuma. Você vai ser um
cidadão brasileiro. Vamos dar entrada na documentação necessária. Isto já está decidido!
Assim, obtive minha cidadania brasileira.
Com o primeiro homem do Geisel, o Golbery, tive muitos contatos nos tempos das grandes greves. Ele
nos telefonava diariamente. Quando prenderam o Lula, telefonei imediatamente para ele: “Pelo amor de
Deus, solte esse homem!”. As tendências daqueles movimentos eram claramente esquerdistas. Debaixo
das reivindicações trabalhistas, havia uma declaração de guerra política muito forte, causadoras de
apreensão a todos os dirigentes das indústrias automobilísticas. Aquele homem preso se transformaria em
um mártir, interrompendo um diálogo feito no dia a dia de cada greve deflagrada.
Conheci pessoalmente vários presidentes da República, a partir de quando comecei a dirigir a Bosch e
a Volkswagen. Um deles foi Juscelino Kubitschek de Oliveira, a meu ver, um estadista. Tenho grande
admiração pela sua atuação desenvolvimentista, pelo entusiasmo que ele conseguiu imprimir à nação,
pelas suas obras e pelo seu respeito à democracia. Ele tinha um projeto para o País, e isso é fundamental
para um governante. Depois de sua volta do exílio, estivemos juntos pela última vez em um churrasco a
ele oferecido por um amigo em uma fazenda próxima de Campinas. Formávamos um pequeno grupo de
cinco pessoas. A primeira coisa que ele fez foi tirar os sapatos. Estava muito satisfeito e falava muito em
um Brasil novo, no qual ele acreditava com muita certeza. Depois de falar da situação política brasileira,
preparou-se para sair. Deu-me um abraço muito cordial e, com o seu largo sorriso, entrou em seu carro e
saiu acenando para nós. Infelizmente, aquela era a última vez que o víamos. Partiu de lá para o Rio de
Janeiro e, ao retornar, sofreu o terrível acidente que nos roubou um de nossos mais ilustres políticos,
considerado o pai da indústria automobilística brasileira.
Depois de instalada a indústria automobilística com a ação do GEIA, criado pelo Juscelino,
surpreendemo-nos com o crescimento da indústria de ano a ano. Nós sempre corríamos atrás. Sempre
podíamos vender mais do que podíamos oferecer. Tudo indicava solidez no setor automobilístico, e o
barco brasileiro navegava em mares tranquilos, contudo, em seguida, nuvens negras vieram turvar nosso
horizonte, os ventos da inflação sopravam fortemente, o dólar subia, a bolsa de valores caía, a taxa de
risco Brasil ia às alturas. O desastre começou quando o controle de preços passou a destruir o poder de
investimento. Na realidade, o que podia fazer o industrial? Preços controlados nas compras e fixados nas
vendas, margens fixadas, juros fixados, importação e exportação controladas, créditos e salários
controlados. Brasília/São Paulo transformou-se em uma ponte aérea utilizada todas as semanas quando eu
estava no Brasil. Os dirigentes brasileiros precisavam entender que o investidor é arisco. O capital é um
bichinho assustado. Ele vai para onde se sente mais bem protegido. Precisávamos dar garantias para o
investimento.
Um candidato à presidência no qual coloquei muitas esperanças foi o Tancredo Neves. Era uma pessoa
politicamente muito equilibrada, madura com ideias pragmáticas. Realmente, achei que com ele os
destinos do País poderiam ser conduzidos a uma sociedade moderna, através do estabelecimento das
bases definitivas dos princípios do regime democrático. Tive muitos contatos com o Sarney (1985/1990).
Discuti muitos projetos para o País com seu ministro Dilson Funaro. Seus ideais eram grandes, mas seu
tempo acabou sendo muito curto. Nessa época, foram feitos nossos negócios na Nigéria e na Argélia, e
construímos nossa fábrica na China.
Quando o Fernando Collor (1990-1992) assumiu o governo com poderes quase absolutos por ter
criado durante a campanha uma imagem de extraordinário sucesso, sobrepondo-se a um partido recém-
criado, sem expressão alguma, tive a ilusão de que sua inteligência e arrojo poderiam impulsionar o
progresso do País. Ele trazia uma aura de modernizador, era o primeiro presidente da globalização. Eu o
conhecia de longa data, quando ele ainda era casado com uma das filhas do dr. Joaquim Monteiro de
Carvalho, do grupo Monteiro Aranha, com o qual eu tinha relações de trabalho e de amizade. Collor teve
a gentileza de convidar-me para ser seu consultor em Brasília. Aceitei, acreditando que poderia ser muito
útil. Contudo, nos primeiros contatos, percebi que havia, sim, pessoas muito competentes, mas, como em
todo governo, havia também outras que abriam um sorriso automático no exato momento em que ele se
aproximava. Eram pessoas muito diferentes de mim. Meu principal conselho atingia as raízes de um
problema anacrônico. As leis trabalhistas criadas por seu avô, Lindolfo Collor, baseadas na Carta del
Lavoro, de Mussolini. Eram leis de uma ditadura e careciam de reformas imediatas. Aconselhei-o:
— Até como neto dele, você deveria promover uma atualização das leis criadas no passado,
modernizando-as, adequando-as ao processo industrial democrático, criando movimentos sindicais
também democráticos a fim de que, ambos, em conjunto, trabalhassem para o crescimento do País.
Respondeu-me que minha sugestão era ótima, mas ainda não oportuna. Mais tarde, retornaríamos a ela.
Algum tempo depois, percebi que, politicamente, ele não queria queimar as mãos, especificamente com
os sindicatos. Minhas recomendações subsequentes tiveram o mesmo destino. Ele as ouvia, declarava-as
excelentes, maravilhosas, mas ou as engavetava em seu cérebro ou deixava passar de um ouvido a outro
sem prestar muita atenção. Até que eu lhe disse: “Olha, meu caro, seu convite me deixou muito honrado,
mas tenho muitas ocupações na Autolatina e não posso trabalhar mais como seu consultor, pois não tenho
tempo de vir a Brasília com tanta frequência”. Eu soube depois, através de amigos comuns, que ele me
qualificou como um traidor. Sinceramente, essa nunca foi minha intenção. Eu não podia ficar lá
recomendando ações, ele respondendo: “Vou fazer”, e eu não vendo nenhum resultado. Eu não podia ficar
fazendo reuniões, tratando de assuntos que jamais se concretizariam. Agora, ele está de volta e tem
talento para se adequar ao mundo político de hoje. Seu sucessor, Itamar Franco (1992-1995), cercou-se
de pessoas muito capazes, fez uma boa administração e levou o País a um porto seguro até a entrada do
presidente subsequente.
Há um episódio interessante com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). Ele era
candidato à prefeitura de São Paulo. Convidado para um evento em um revendedor, foi em nosso avião
(tínhamos em conjunto com a Mercedes-Benz um jato e um helicóptero). Naquela época, ele deixava-se
fotografar tendo como cenário atrás de si a foice e o martelo, elementos nada oportunos. Fez críticas a
casamento, referências à religião, declarando-se ateu. Enfim, suas palavras eram sinceras, mas chocavam
a sociedade. Tomei a liberdade de me intrometer: “Fernando Henrique, isso não vai lhe dar muito futuro
na política. Dentro de pouco tempo tanto a foice como o martelo serão objetos politicamente obsoletos.
Estamos na era dos governos com responsabilidade social. Eu lhe recomendo: vá até a Alemanha e veja
o que é o Partido Social Democrata. Trata-se de um partido socialista, mas respeitando as regras de
liberdade, livre iniciativa e mercado livre. Este é o modelo para a criação de um partido no Brasil.
Posso aproximá-lo dos dirigentes desse partido alemão”. Assim fizemos. Quando ele voltou, criou o
PSDB, transformando-o em um partido forte, sendo eleito para dois mandatos na presidência. Através da
escolha de um ministro do gabarito de Pedro Malan e de um posicionamento firme do então presidente do
Banco Central, Armínio Fraga, com experiência no Banco Mundial nos Estados Unidos, Fernando
Henrique fez uma administração que estabeleceu os fundamentos da economia brasileira. O fim da
inflação com o seu Plano Real propiciou o crescimento da demanda e da produtividade. O aumento da
produção funcionou como uma arma eficaz para a manutenção do controle da inflação. Cresceram as
exportações, e com isso o saldo financeiro saiu do negativo e foi para o positivo. O País alcançou
finalmente uma situação de estabilidade e desenvolvimento.
Fui convidado para a solenidade de posse do presidente seguinte, o Luiz Inácio Lula da Silva. Ao me
cumprimentar, puxou-me pelo braço, segurou meu cotovelo e disse-me:
— Eu quero lhe agradecer, Sauer, porque eu estou aqui por sua causa.
— Por minha causa? — perguntei, surpreso.
— Sim, por sua causa. Porque foi com você que eu aprendi a dialogar. Você me ensinou que com
brigas não se chega a lugar nenhum. Para se alcançar o entendimento, era preciso o diálogo. E eu aprendi.
Foi o diálogo que me trouxe até aqui.
— E, agora, presidente — respondi-lhe —, o senhor tem todos os instrumentos na mão. O senhor pode
realizar todos os seus ideais socialistas.
— Olha, eu também aprendi que a gente não mata a vaca que dá leite. E eu preciso desse leite. Preciso
de produção e preciso da indústria para resolver o problema social do País.
Ele realmente me surpreendeu porque, em seus dois mandatos, continuou com a política econômica
iniciada pelo Fernando Henrique Cardoso, ainda como ministro do governo Itamar Franco. Com essa
política, chegamos a uma posição mundial impensável nos anos anteriores à implantação do Plano Real.
Poucos acreditavam nesse Brasil. Dentre esse número reduzido, estava eu, desde os meus tempos na
Bosch. Sou um eterno otimista, fascinado pelo Brasil e suas potencialidades.
Não me relacionei apenas com presidentes. Houve outras pessoas, ministros de Estado, secretários,
embaixadores e outros tantos funcionários do governo, com cargos mais importantes ou não, que muito
me ajudaram com suas inteligências, competências, boa vontade e interesse verdadeiro na evolução
industrial do País. Não gostaria de ser injusto, destacando apenas alguns, mas vou violar a lei que rege os
princípios da boa educação, mencionando amigos com os quais ainda me encontro ou outros que já
partiram e dos quais tenho lembranças de beleza incomum. Resultantes de sentimentos de emoção em
diferentes graus de qualidade e complexidade oriundos de afeto, de admiração, de respeito, de
discussões acaloradas, de senso de dever, de cumprimento de cada palavra dada, de realizações de
ideais, de conquistas coletivas, esses componentes constituíram o amálgama da amizade que nutro por
eles.
Como eu não gostava de pernoitar em Brasília, falava-se na imprensa que, quando o ex-ministro
Delfim Netto tinha algum assunto mais embaraçoso para o qual eu pedia audiência, ele marcava às sete
horas da manhã para me deixar irritado. Foi uma espécie de folclore criado em torno do assunto. Era um
transtorno dormir em Brasília, devido ao tempo despendido. Eu preferia ir pela manhã, ter as reuniões e
voltar no final da tarde. Em um dia, discutiam-se muitos assuntos. Mas, apesar do tempo funcionando
como inimigo da minha agenda apertada, eu ia falar com o ministro sempre com muito prazer. Eu tinha e
tenho um profundo respeito pela inteligência e cultura dele. Além da admiração, existia algo que não se
determina, nem está sob controle: a afeição que tenho por ele. A ironia com que ele se desviava dos
assuntos incômodos poderia irritar alguns, não a mim, ao contrário, estimulava meu intelecto. Tivemos
sérias discussões sobre temas espinhosos para ambas as partes, mas nunca deixamos que pontos
controversos minassem o campo onde vivia inatingível nossa amizade. Com o propósito de apoquentar-
me, ele me obrigava a estar às seis e meia da manhã em uma sala contaminada pela fumaça e o cheiro
horrível de cigarros fumados no dia anterior. Sim, porque começávamos antes da limpeza feita pelos
faxineiros. Eu, humilde servo, me submetia ao czar da Economia. Seu poder era tamanho que assim o
chamavam. Para mim, era o meu querido amigo, que começava a trabalhar de madrugada, sem ar-
condicionado ligado.
Outro ministro que me obrigava a pernoitar em Brasília, aí por uma razão oposta, era o nosso Mário
Henrique Simonsen. Um notívago adorável, ponderado, esbanjando a inteligência rara que Deus lhe deu,
esticava nossas conversas e tomadas de decisões até as duas ou três horas da madrugada. Tornamo-nos
grandes amigos e juntos fizemos muitas considerações econômicas importantes porque ele era realmente
um craque. Frequentemente, depois das reuniões no ministério, com o cérebro ativado pelas teorias
elaboradas pelo profundo saber econômico do meu amigo e pela sua vastíssima cultura, eu atendia ao seu
convite. Íamos até a casa dele ouvir música. Ele e eu gostávamos muito das óperas de Wagner, então eu
lhe trouxe um presente da Alemanha, alguns discos com essas óperas gravadas pelas melhores orquestras
alemãs e os melhores cantores do mundo. Ele os colocava no aparelho de som, e nós dois cantávamos
juntos, sobrepondo nossas vozes às dos grandes cantores líricos. Valentes e pretensiosos, acompanhando
a interpretação dos grandes dentro do mundo operístico, entrávamos madrugada adentro. No dia seguinte,
eu pegava um dos primeiros voos de Brasília para São Paulo. Eram pouquíssimas horas de sono, mas
tudo era compensado pelo enlevo da noite anterior e pela satisfação de ter um amigo daquele quilate.
Um amigo do qual guardo preciosas lembranças foi um homem de extraordinária elegância de gestos e
atitudes — o economista e diplomata Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo Castello
Branco. Reconhecido — mesmo por aqueles que não partilhavam das suas ideias — como uma das mais
eminentes personalidades do Brasil contemporâneo, sempre se pautou por uma implacável capacidade de
análise dos fatos, das épocas e dos contextos econômicos e sociais do País. Em função disso, esteve
presente em relevantes momentos da história nacional, dando sua visão aguçada dos acontecimentos, com
coragem e forte sentido ético. Ardoroso defensor do liberalismo e da economia de mercado, ele foi capaz
de advogar a privatização e a reinserção do Brasil no capitalismo mundial, numa época que vicejavam
internamente fortes posicionamentos estatizantes e pseudonacionalistas. Visitei-o certa vez na Embaixada
do Brasil em Londres. Conversamos durante horas, e ele me mostrou uma coleção feita durante longo
tempo. Guardava garrafas vazias de uísque que havia tomado com os amigos, cada uma delas rotuladas
com os nomes daqueles que haviam com ele repartido a bebida.
Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos foram grandes estrelas da economia
brasileira.
Conheci Paulo Tarso Flecha de Lima em 1962, em Montevidéu. Ele era secretário da embaixada
brasileira e responsável pela delegação que formava a Alalc — Associação Latino-Americana de Livre
Comércio. Pela Bosch, eu estava negociando o acesso dos produtos da empresa a outros países latino-
americanos. Precisávamos de concessões tarifárias para esses produtos. Procurei alguém do Itamaraty.
Fui apresentado a Paulo Tarso Flecha de Lima. O despertar de uma amizade pode obedecer a fatores
imperceptíveis para o homem. Pode surgir aos poucos, devagar e evoluir de modo progressivo, ou pode
despontar num impulso, de súbito, envolvente e grande, tomando de assalto todos os espaços. Foi esta
última modalidade que ordenou nossos gostos semelhantes, nossos ideais análogos e nos fez parceiros.
Corremos o mundo. Ele no Itamaraty e nas embaixadas mais importantes do planeta, eu na Bosch e na
Volkswagen. Eu sempre soube que, onde quer que eu estivesse, se precisasse do Paulo, eu poderia contar
com ele. Assim foi em diversas situações, em vários lugares da Terra. A mais empolgante de todas foi no
Iraque. Num país em guerra, com nossos funcionários reféns, lá aterrissou o avião trazendo a forte e
notável presença do meu amigo para liberar nossos brasileiros e trazê-los ilesos de volta à pátria. Herói?
Sim. Não apenas por esse episódio, mas pela coragem e bravura com que, de maneira precursora, ajudou
a tirar um país do anonimato para fazer dele um exportador importante, durante os 46 anos que ficou no
Itamaraty. É dele uma observação elogiosa sobre o meu relacionamento com o Delfim Netto: “O Delfim
gostava muito dele e o ouvia muito porque o Sauer é um patriota. Era comum o Sauer trazer sugestões
baseadas na própria experiência e na visão europeia que tinha dos problemas. Era uma contribuição
muito importante que ele dava para o governo brasileiro. De modo que ele é um homem de origem
germânica e nacionalidade brasileira que teve uma trajetória marcante aqui em Brasília”.
Carlos Sant’Anna, um dos mais atuantes presidentes da Petrobras, estabelece um paralelo entre a
atividade do Paulo e a minha: “Ambos foram caixeiros-viajantes. O Wolfgang Sauer era o da indústria; e
o Paulo Tarso Flecha de Lima, o do governo brasileiro”.
Tenho enorme respeito pelo Carlos Sant’Anna, não apenas como amigo, mas pela sua extraordinária
visão comercial. Em sua atuação na Petrobras, enfrentava a hostilidade de pessoas que ocupavam cargos
importantes, mas ele não arredava pé da sua posição. Ele utilizava o petróleo como instrumento de
barganha para transações comerciais importantes. Foi assim que entramos em vários países para onde
exportamos nossos carros. Lembro-me de que o primeiro foi a Nigéria. Mas não foram apenas carros, ele
levou muitos outros produtos manufaturados, usando esse sistema. Era o começo do começo.
No caso do Iraque, a participação do então ministro Ernane Galvêas foi fundamental. Paulo Tarso se
lembra: “A nossa relação com o Iraque era muito diluída. Não tínhamos nenhuma densidade de
intercâmbio. Todos trabalhamos muito para começar com a entrada de veículos, e a presença contínua do
Sauer lá foi determinante. Passamos a ter uma intimidade econômica muito grande com o Iraque e
tínhamos entrada direta no palácio do Saddam Hussein. Os outros países ficavam perplexos ao ver o
Brasil entrando naquele país, porque o Saddam era uma pessoa de difícil acesso, e o Ernane Galvêas
entrava em seu palácio como convidado especial. O iraquiano é um povo muito desconfiado, e o
relacionamento com ele é muito complexo. O Sauer conseguiu se impor de uma maneira muito positiva e
criou em torno dele um ambiente de simpatia extraordinário. Em função da amizade que desenvolveu com
o Ramzi Al-Hussein, então presidente da Somo, a empresa de petróleo iraquiana, ele era recebido no
país com toda pompa e circunstância, com honras de chefe de Estado”.
Lembro-me de muitos ministros e secretários de Estado com os quais tive o privilégio de conviver e
de trocar ideias. Difícil de esquecer a lucidez, transparência e seriedade com que o ex-ministro Karlos
Rischbieter tratava os assuntos. Era sempre muito produtivo e aberto a ideias de modernização da
economia. Também impossível não me recordar da força e da coragem do então ministro João Camilo
Penna para tornar viável o Proálcool. Era dono de uma vontade inquebrantável. Além da nossa amizade,
tenho por ele grande admiração. Outro personagem ilustre desse projeto foi José Israel Vargas, ex-
secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, com quem estabeleci uma
relação de amizade e respeito. O ex-ministro Shigeaki Ueki sempre muito aberto a discussões e dono de
um conhecimento profundo dos assuntos relacionados à energia foi também um dos muitos com quem
partilhei problemas para encontrar soluções. Alcides Tápias, amigo de muitos anos, antes de assumir o
ministério, foi um observador, investidor e um arguto conselheiro em nosso projeto de agropecuária, no
Pará.
A cada mês, eu convidava algumas personalidades dentro do mundo da economia para um jantar ou
almoço. Eram de dez a doze pessoas entre ministros, senadores, deputados e secretários e pessoal do
Itamaraty. Nesses encontros muito interessantes, entrelaçavam-se conversas sociais, políticas e de
negócios. No cardápio, uma especialidade alemã: chucrute e eisbein (joelho de porco defumado). Era
sempre um sucesso. Até hoje o Delfim ainda me ordena: “Sauer, você precisa fazer aqueles jantares
outras vezes”. Apreciador de uma boa mesa, sentindo-se à vontade, antes de começar a comer, Delfim
baixava os suspensórios. Às vezes, me ocorria a ideia de que naquele acessório de sua indumentária
estava concentrado todo o seu saber de política e economia. Ao desvestir-se parcialmente dele,
abandonava seus conceitos sobre essas duas ciências, assumia um ar de filósofo e falava como se
estivesse deixando registrados no ar os dados e falas para um livro — era um escritor!
Com Marco Antônio Rodrigues da Cunha, diretor de gestão empresarial da Cemig, tive contatos na
Volkswagen e, mais tarde, outros encontros importantes, quando ele participou ativamente do projeto da
fábrica de semicondutores. Suas afirmativas não apenas me envaidecem, como também despertam em
mim um sentimento profundo de gratidão: “O carisma e a simpatia do dr. Sauer, por si, seriam suficientes
para ‘abrir portas’ junto ao governo do estado de Minas Gerais e junto ao governo federal. A
respeitabilidade que ele conseguiu foi fruto da seriedade e da ética com que sempre tratou temas, por
vezes difíceis, junto às autoridades. Isto o tornou persona grata em todos os níveis de governo. Todas as
questões propugnadas sempre foram embasadas em opiniões técnicas e olhando os benefícios que
adviriam para a sociedade brasileira e para os governos, mesmo quando os projetos eram de interesse
privado”.
O diretor da Fenabrave, Sérgio Reze, com quem estive algumas vezes em Brasília tratando de assuntos
ligados a revendedores de veículos, fala sobre nossas idas à capital do País: “As opiniões do Sauer eram
muito respeitadas. Quando havia algum assunto espinhoso para se discutir com as autoridades, os
presidentes das outras montadoras, alegando suas nacionalidades estrangeiras e exigências de suas
matrizes no sentido de não subverter a ordem nos países onde atuavam, recuavam. O Sauer não. Quando
tinha absoluta segurança da justeza da causa que defendia, ele não tinha receio, assumia o papel que lhe
cabia. Assim foi desenvolvendo uma liderança não apenas no setor que representava, mas em toda a
indústria. A ausência do medo, a segurança de estar no caminho certo e o indiscutível charme que possuía
fizeram dele um líder respeitado por todos os governantes. E a nós sempre deu a certeza de que a ele
podíamos recorrer quando necessitássemos”.
Algumas vezes troquei ideias com um ilustre amigo, o dr. Eliezer Batista da Silva, sobre nossas
participações nas discussões com o governo. Tenho grande admiração pela capacidade empreendedora
dele, pela sua inteligência, pela sua vastíssima cultura e pelo seu conhecimento do mundo. Sua grande
obra a Companhia Vale do Rio Doce, hoje, a Vale, sob seu comando, saiu da posição de uma acanhada
mineradora, em 1962, para transformar-se na maior companhia de minérios de ferro do mundo, com a
terceira frota mundial de graneleiros e mineraleiros, após a construção do porto de Tubarão. Sem contar
sua realização gigantesca: o projeto de Carajás. Lembro-me de alguns trechos dessas conversas:
— Eliezer, meu caro, qual é o seu pensamento sobre a participação do empresariado nas decisões do
governo para a área industrial?
— Tenho a convicção de que ela é necessária, desde que o pensamento seja correto. O governo sente a
sua ineficiência, pois ele não é gestor. Não vai gerir bem as coisas que ele mesmo cria, então é melhor
deixar que os empresários criem. E estes devem dirigir com eficiência, do contrário eles farão o mesmo
papel do governo. Hoje em dia, a origem do capital não importa muito, a maioria do capital mundial vem
de fundos de pensão. O importante é a qualidade do gerente da empresa. No tempo em que você e eu
começamos nossos grandes projetos, os governos tinham a noção de que os empresários eram mais
eficientes, faziam mais rápido. Dentro dos governos, a maioria quer criar, realizar, caminhar muito
rapidamente, mas, na maior parte das vezes, os políticos são tomados por indecisão, gerando ineficiência
e, então, não acontece nada. Não adianta só pensar e ter ideias vagas, é preciso concretizá-las. É preciso
dar espaço a empreendedores que possam marcar o futuro, porque pensam, criam e realizam. O
empresário faz mais rápido. Agora, é preciso fazer de maneira fair, muito honesta, correta. Creio que a
ajuda do governo é muito importante, porque o interesse é mútuo, não é apenas de um lado. O empresário
ligado ao pocket orientation está equivocado. É claro que existe a necessidade de ganhar dinheiro, pois
sem ele não há como dar continuidade ao empreendimento, mas existem outros valores a observar. É
preciso fixar os olhos na qualidade da criação e da realização, trabalhando sem egoísmo para o País,
para ajudar o próximo, para a preparação de um futuro mais equilibrado e justo.
— Travei uma guerra junto ao governo, Eliezer, na questão dos impostos.
— Essa foi uma luta inglória, Sauer. Sabemos que, ao fazer um projeto, vamos beneficiar o País
também, recolhendo impostos, que deveriam ser distribuídos em serviços. Mas isso já vem lá de trás e
permanece: temos o sistema tributário da Suécia e serviços de Angola.
Em 1974, Manoel Bayard era um dos representantes do grupo Monteiro Aranha, então acionista da
Volkswagen, dentro da companhia. Era casado com Beatriz Monteiro de Carvalho, sobrinha do dr.
Joaquim Monteiro de Carvalho, e vinha de uma família tradicional gaúcha. Depois da saída do grupo
Monteiro Aranha, com a venda de suas ações, Bayard continuou na empresa, dirigindo o escritório da
Volkswagen, no Rio de Janeiro. Fazia parte de nossa diretoria de Relações Institucionais, e suas funções
estavam ligadas à representação junto ao BNDES, à Cacex, que cuidava de importação e exportação,
junto à Petrobras, enfim junto às instituições que haviam permanecido na antiga capital do País. Por força
de seu ofício, muitas vezes nos encontrávamos também em Brasília. É ele quem fala da nossa atuação nos
órgãos governamentais: “Acompanhei o Sauer nessas atividades, durante quinze anos. Trocávamos
experiências com outras empresas estrangeiras que, como nós, tinham os mesmos objetivos. A
Volkswagen era a empresa mais importante e tinha uma grande influência em todos os setores nos quais
atuava, e o Sauer sempre foi muito cooperativo na busca de soluções para os problemas dos empresários
com os quais estabelecíamos relacionamentos. Ele tinha uma rede de conhecimento enorme tanto no
Brasil como fora dele e nunca se negava, quando havia possibilidade, a ajudar outros empresários.
Muitas vezes, eu ouvia alguém dizer que tinha esse ou aquele problema com importação ou exportação,
ele logo revirava a cabeça e buscava contatos que podiam ser no Brasil, nas Américas, na Europa, no
Oriente Médio, na Ásia. Enfim, o espaço de atuação e conhecimento do Sauer era o mundo. No Brasil, a
figura do Sauer era a Volkswagen. Lembro-me de reuniões com muitos presidentes e com ministros, como
o Delfim Netto. Eles já não mencionavam a Volkswagen. Falava-se: o Sauer, tal o entrelaçamento
estabelecido entre ele e a empresa. Tivemos muitos encontros com as mais altas autoridades do País, e,
posso garantir, o Sauer nunca propôs algo que não fosse correto, que não fosse de interesse para o País.
Ele era alemão naturalizado brasileiro, mas era muito mais brasileiro do que muitos que transitavam por
Brasília, declarando-se patriotas. Meu trabalho no governo foi muito gratificante, porque nunca pediram
que eu fizesse qualquer tipo de oferta a quem quer que fosse para conseguir favores ou concessões
especiais para a empresa. E essa era a filosofia do Sauer. Nunca o vi pleitear nada que não fosse ético.
Outra coisa que me fascinava no Sauer era uma habilidade fantástica de lidar com o ser humano. O
carisma dele se estendia desde o presidente da República, passando por todos os seus assessores e
secretárias. Ele os conhecia a todos e os tratava com uma cordialidade natural, espontânea. Ele podia
entrar na sala de presidentes, ministros, secretários sem qualquer tipo de cerimônia, mas nunca o vi
desprezando os rituais que compunham esse procedimento. Não deixava de cumprimentar uma única
secretária, perguntar por ela, seus familiares e aguardava que ela o anunciasse diante da autoridade que o
esperava. O “vá entrando”, como lhe diziam, não lhe dava alvará para ignorar ninguém que estivesse no
caminho, nem mesmo o office boy ou o garçom. Seus cumprimentos e atenções abrangiam todas as
pessoas — desde o ascensorista até o presidente da República. Pode-se dizer que ele assim se
comportava por estar lidando com pessoas poderosas e aqueles que o cercavam. Eu respondo: não. Uma
das características que me cativaram no Sauer, desde o momento que o vi pela primeira vez em sua sala,
foi a maneira como ele tratava a copeira, os diretores e seus subalternos. Em nossos contatos seguintes,
percebi que essa atitude se estendia aos operários nos mais diversos níveis. O que afirmo é fruto de uma
convivência de trabalho e inclusive familiar muito frequente”.
Jacy de Souza Mendonça, nosso advogado, diretor de relações humanas e nosso presidente na
Anfavea, acompanhou-me em muitas das discussões que tivemos em Brasília. Ele era o homem que tinha
um profundo entendimento jurídico das questões, o que lhe permitia encontrar saídas legais para as mais
variadas questões, não apenas da Volkswagen, mas também de toda a indústria automobilística. Seus
pareceres jurídicos tornaram-se célebres em Brasília. Mas ele prefere atribuir a mim o sucesso das
nossas conquistas: “A marca do Sauer é seu carisma e seu forte poder sedutor. Acompanhei-o em muitos
contatos com as autoridades. Então, pude assistir. Ele exercia um encanto, um fascínio sobre todos. Era
ouvido e respeitado por todos os presidentes, ministros e pelo segundo escalão dos ministérios. Exercia
um papel muito importante para as autoridades que viam nele um porta-voz do pensamento empresarial.
Um conjunto de circunstâncias lhe deu um papel de protagonista entre os seus pares. Era um homem
vinculado ao País, apaixonado pelo Brasil, profundamente interessado em seu desenvolvimento,
acreditando em suas potencialidades. Comunicava-se em português, não estava aqui de passagem. A tudo
isso se acrescentava um ingrediente indiscutível — o seu carisma pessoal. Isto provocou alguns
ressentimentos. Em casos especiais, em vez de ouvir o presidente da Fiesp ou da CNI, os governantes
queriam ouvi-lo. Este é um fato concreto, real a que assisti muitas vezes. Causava mágoas, sim, causava.
Mas ele nunca fez isso para se sobrepor a quem quer que seja, e sim como uma situação natural do seu
comprometimento com o Brasil”.
UM GRANDE ENCONTRO
Se o Sauer não fizesse tudo o que ele faz, se não tivesse talento para mais nada, ele seria, sem
dúvida, um movie star — bonitão, de aparência cinematográfica, com uma fala suave que dá a
impressão de estar ensaiando, como se ele tivesse lido e decorado um livro sobre como agradar
pessoas.
Alex Periscinoto
a denominação que se dê: Proálcool, Etanol, Flex fuel, o fato é que a técnica
Não importa para a produção do etanol é uma conquista brasileira, e o lançamento dos carros
movidos a álcool foi um marco na história da indústria automobilística. Essa
descoberta de uma energia alternativa, hoje chamada de energia limpa, envolveu uma lista enorme de
personagens e instituições: do governo brasileiro: presidentes, ministros e secretários e a Petrobras; do
CTA — Centro Técnico Aeroespacial e ITA — Instituto Tecnológico de Aeronáutica: cientistas; das
instituições: Anfavea — Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, Copersucar —
Cooperativa de Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo, Fenabrave — Federação
Nacional da Distribuição de Veículos Automotores; dos empresários da indústria automobilística: todo o
aparato técnico composto de engenheiros com acesso a seus sofisticados laboratórios. No meu entender,
foi um trabalho de reunião de muitos cérebros privilegiados, de muitos gestores habilidosos e de
negociadores persistentes e perseverantes. Fiz parte desse grupo o que me autoriza a destacar algumas
figuras superlativas neste processo: o então ministro da Indústria e Comércio, João Camilo Penna, seu
secretário de Tecnologia Industrial, o professor José Israel Vargas, e importantes empresários paulistas,
Maurílio Biagi Filho e os Ometto. Deles vieram a força e o labor necessários para o sucesso do
Proálcool. Sem o idealismo e a crença do ministro, seguidos de seu secretário, um cientista do mais alto
gabarito, e sem a capacidade de convencimento dos últimos junto aos plantadores de canaviais,
dificilmente, atingiríamos as metas alcançadas. Faço questão de dar-lhes os créditos do sucesso desta
empreitada.
Meu amigo Newton Chiaparini, então vice-presidente da Anfavea, descreve este acontecimento de
forma apoteótica: “Foi um movimento coletivo, corajoso e responsável, unindo setores públicos e
privados numa batalha quixotesca para a época, cercada de fatores, dificuldades e interrogações quase
impossíveis de ser mensuradas, quanto mais avaliadas com precisão e segurança. Foi, enfim, uma vitória
do esforço, da perseguição implacável ao objetivo, do desprendimento e da teimosia, já que os fatores
adversos sobrepujavam, de longe, os aspectos favoráveis. Não surgiram heróis, apenas soldados
audaciosos e intransigentes, apesar do armamento ser apenas satisfatório, e não mais do que isso”.
Segundo o engenheiro químico da Volkswagen, sr. Henry Joseph Jr., já havia um decreto-lei de 1931,
determinando a mistura de 5% de álcool na gasolina importada, deixando clara a existência da
preocupação em diminuir a dependência do produto importado. Ele afirma que o Proálcool, num primeiro
momento, não incluía o fabricante. Partia da suposição de que o uso do álcool poderia acontecer como
hoje se faz com o uso do gás natural, através de conversões feitas em oficinas.
Antes de voltar na história para buscar o momento crucial em que o mundo virou de cabeça para baixo,
convulsionado pela crise do petróleo, chamado então de “ouro negro”, quero mencionar o depoimento
recente (2010) com que me honrou o ex-ministro João Camilo Penna: “Fui indicado por Aureliano
Chaves e pelo Mário Henrique Simonsen para o Ministério da Indústria e Comércio. No meu primeiro
encontro com o Figueiredo, antes de sua posse como presidente, ele me revelou: ‘Este Proálcool do
Alemão (falava do presidente Geisel) é um bom programa. Geisel entende de petróleo, sabe das
vulnerabilidades envolvidas e do provável aumento de preços internacionais. O Shigeaki Ueki já fez um
estudo profundo do assunto. O Brasil ainda não sabe quanto tem de petróleo e a que custo. O petróleo
também me preocupa por causa da fumaça dos veículos, e ando perplexo com o problema do carro no
terrível tráfego das cidades. Em meu governo, daremos ao programa do álcool uma grande expansão sob
sua responsabilidade’. Como presidente da Cemig, eu já conhecia o Sauer e sua reputação de grande
líder empresarial, mas foi com o programa do álcool que estreitamos nosso conhecimento. As empresas
alemãs, americanas e italianas gostavam dos carros rodando com a mistura gasolina-álcool, mas não
tinham entusiasmo pelo carro utilizando um único combustível — o álcool. O trabalho da Anfavea foi
decisivo para o lançamento do carro a álcool hidratado. A Fenabrave, através de José Edgard Barreto
Filho, foi também fundamental para a venda do carro a álcool. A mistura de gasolina e álcool tinha um
limite baixo para o uso do álcool, e o então presidente Figueiredo havia pedido metas audazes, maiores,
para o programa. As altas do preço do petróleo provocavam grandes tensões. O então ministro Simonsen
preparou um abrangente e, como sempre, competente estudo sobre o tema. Meus companheiros José
Israel Vargas, então secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, e Marcos
José Marques afirmavam haver grande margem para aumento de produtividade nos canaviais, nas usinas
de produção de álcool e no seu uso nos carros. Havia ainda enorme redução da poluição da gasolina, e o
álcool logo seria competitivo. Propusemos ao presidente uma meta de 170 mil barris/dia para alimentar
carros a álcool hidratado, igual à produção de petróleo de então. Foi aprovada pelo Conselho de
Desenvolvimento, e o presidente me disse: ‘Tome que o filho é seu! (não era) Cuide bem dele e preste
contas do andamento’. Foi aquela faina! As altas metas sustentavam-se, no campo financeiro, no apoio do
então ministro Mário Henrique Simonsen, uma vez que necessitava de incentivos e subsídios na sua
implantação, no Conselho Monetário, mantido pelo então ministro Delfim Netto e, também, no suporte do
então diretor industrial do Banco do Brasil, Roberto Carvalho. Na Anfavea, o dr. Sauer, o Newton
Chiaparini e o André Beer fizeram um trabalho formidável de convencimento das matrizes para apoiar o
novo tipo de combustível. Devido a esse esforço conjunto, fizemos o primeiro veículo automotor no
mundo movido comercialmente por combustível não derivado de petróleo. Tenho consciência de que foi
o destino que me ofereceu a grande oportunidade de consolidar e expandir o programa do álcool. Seu
sucesso foi notável, hoje alimenta a frota flex no Brasil. O álcool, a US$50 o barril, compete bem com a
gasolina vinda do petróleo, reduz em 85% a poluição causada pela gasolina, cria empregos e riquezas no
interior do Brasil, gera divisas pela exportação crescente do anidro para mistura. Além disso, é preciso
mencionar o bagaço da cana restante da produção, usado para aquecer caldeiras de alta pressão
geradoras de vapor para produzir 15% da energia elétrica do Brasil, competitiva produzida na seca,
distribuída no território, renovável, não poluidora, enfim uma maravilha de energia!”.
Outra figura de proa, não apenas neste projeto, mas em todas as atividades desenvolvidas na
Secretaria de Tecnologia do Ministério da Indústria e Comércio e em outros órgãos governamentais, onde
trabalhou pelas causas brasileiras, é o cientista e professor José Israel Vargas. Seu depoimento me é
muito agradável pela admiração que tenho por ele e pelas suas palavras de amigo, mas aqui o menciono
com o intuito de repartir a grande sabedoria de um mestre: “Conheci o Sauer pelas notícias relativas a
testes que a Volkswagen fazia do etanol como combustível em frota de certo número de seus veículos,
conjuntamente com a Secretaria de Tecnologia Industrial do MIC, em articulação com o ITA — Instituto
Tecnológico de Aeronáutica. Na ocasião, eu era secretário de Ciências e Tecnologia e Meio Ambiente do
governo Aureliano Chaves, em Minas Gerais. Naturalmente, a Volkswagen teve papel central no
desenvolvimento do vasto programa do Proálcool, que se estendeu por vários anos. Foi uma iniciativa de
sucesso diante das crises de petróleo geradoras de enorme dívida externa de nosso País. O programa do
álcool tornou-se peça fundamental de nossa economia. Produzíamos pouco e importávamos muito. Nossa
dependência era enorme. No seu ápice em 85, a produção de álcool atingiu cerca de 250 mil barris/dia.
Este salto espetacular, do qual vieram a participar outras montadoras, dificilmente teria sido levado a
cabo sem a liderança competente e patriótica de Sauer. Uso esta palavra porque ele se tornou cidadão
brasileiro, formalizando a condição que, de fato, já abraçara. Como secretário de Tecnologia Industrial
do MIC, posição assumida na administração Figueiredo, recebi do Sauer grande apoio não só na fase de
ampliação da adaptação de motores por rede de oficinas mecânicas credenciadas (o que aparentava estar
em contradição com os presumíveis interesses da montadora que dirigia), trazendo da Alemanha um dos
principais engenheiros da empresa, mas também, posteriormente, na busca da adequação dos carros de
sua fábrica às estritas novas normas de consumo de combustível, estabelecidos pela secretaria. A
Volkswagen tornou-se a maior produtora em série de carros movidos exclusivamente a álcool, passado o
período inicial de utilização da mistura álcool-gasolina”.
Menciono o ex-ministro dr. João Camilo Penna, verdadeiro animador do programa na área do governo.
Ressalto também o papel do dr. Marcos José Marques, ex-secretário geral do MIC, então presidente da
CENAL — Comissão Executiva Nacional do Álcool, que teve papel fundamental na definição do formato
e das exigências para o financiamento dos projetos da área. Paralelamente ao Proálcool, o ministério
lançou o programa Conserve, destinado à promoção da economia de petróleo nas indústrias brasileiras.
Foram selecionados setores notoriamente mais consumidores deste combustível, como as indústrias de
papel e celulose, a siderúrgica, a cimenteira, etc. O projeto de adaptação de motores, bem como o
Conserve foram sustentados com 6% dos recursos do Proálcool. Tiveram grande sucesso, levando à
redução de mais de 30% do uso industrial do petróleo. Como este insumo constituía o maior peso em
nossa balança de pagamentos, porque o país estava a braços com o serviço de imensa dívida externa que
nos afligia, tais realizações foram notáveis e se devem à dedicação e competência do dr. Marcos José
Marques”.
Segundo Ozires Silva, as raízes das pesquisas para se encontrar outro combustível além da gasolina
estão perdidas no tempo: “Energia sempre foi e continua sendo um desafio para o presente e futuro.
Durante o período em que estive na presidência da Petrobras, aprendi que os países não gostam de
importar energia e o fazem por ser absolutamente essencial. Todo o mundo busca uma energia alternativa,
e o Brasil conseguiu, mas, na realidade, o êxito do Proálcool trouxe um benefício que acaba ficando em
segundo plano, embora muito importante, o fato de utilizar um combustível renovável, vindo da
agricultura. A procura de energias alternativas não acontece apenas pela questão do meio ambiente, mas,
também, porque o petróleo é uma matéria-prima de extraordinária importância, com uma série de
hidrocarbonetos da qual se podem fazer coisas valiosas. A pior forma de usar o petróleo é queimá-lo
como gasolina. Como ele é exaurível, as gerações do futuro vão nos crucificar pela forma como o
utilizamos”.
No livro Etanol – a revolução verde e amarela, seus autores, Ozires Silva e Decio Fischetti,
mencionam que as origens desta energia vinda da cana-de-açúcar datam de longo tempo. E continuam
narrando sua história: “Em 1951, o professor Urbano Ernesto Stumpf, formado em engenharia pelo ITA,
depois de muitas pesquisas, chegava à metodologia científica. Sua criatividade e capacidade de inovação
levaram-no a considerar o álcool como combustível de motores. Seria necessário criar um motor
inteiramente projetado para essa finalidade. Em 1975, deu-se o encontro do presidente da República com
o cientista, vestido com um avental branco que lhe chegava até os pés. Programado para quinze minutos,
demorou duas horas. Sobre a bancada de trabalho do professor Stumpf, havia trinta motores a álcool em
movimento. Havia também um automóvel Dodge Polara, funcionando há muito tempo com motor a álcool.
Impressionado com aquela metodologia avançada, Ernesto Geisel lhe perguntou:
“— O senhor acha que o álcool poderia ser um combustível alternativo?
“— Considero o álcool muito mais eficiente do que a gasolina em todos os aspectos, é o melhor
combustível que existe. Henry Ford, quando desenvolveu o primeiro projeto do automóvel, previa um
motor alimentado a álcool.
“— E por que não continuou?
“— Porque o álcool era mais caro que o derivado de petróleo que nunca teve competidor.”
O Proálcool — Programa Nacional do Proálcool — foi criado pelo presidente Geisel no dia seguinte
a essa visita, em 14 de novembro de 1975. Tinha como objetivo estimular a produção do álcool, visando
ao atendimento das necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis
automotivos.
Na Volkswagen, tivemos uma figura de proa na criação deste projeto, o engenheiro dr. Georg
Pischinger, a meu ver, líder intelectual inconteste do motor a álcool para o automóvel. Tenho uma grande
admiração por ele e pela maneira como desenvolveu o trabalho dentro da Volkswagen. Segundo sua
afirmativa:
Não se tinha o entendimento de que alguns materiais não eram compatíveis com o etanol. Plásticos
não poderiam ser utilizados. O etanol poderia ter uma variação muito grande. Assim, as dificuldades
foram numerosas, apareceram problemas enormes de partida a frio, de distribuição de óleo
lubrificante, de corrosão, principalmente do carburador, do sistema de alimentação. O entusiasmo
inicial começava a arrefecer com o surgimento de tantas complicações.
O governo queria que a indústria automobilística produzisse, já na origem, veículos apropriados para
o etanol. Em 1979, chegou-se a um acordo entre ambas as partes, culminando com a assinatura de um
protocolo entre o governo e a Anfavea. A indústria comprometia-se a produzir 200 mil veículos a álcool
no primeiro ano, 250 mil no segundo e 300 mil no terceiro. Quatro montadoras já atuantes no mercado
poderiam usar o etanol — Volkswagen, GM, Ford e Fiat.
A Volkswagen aproveitou um fato muito importante, explica Ozires Silva: “Conheço bem o motor do
Fusca, pois tive vários. Era o mais fácil de ser transformado em motor a álcool. O Sauer sabia disso e
pôs toda a sua equipe para trabalhar nessa direção”.
Havia problemas de componentes, da compatibilidade de materiais e de processos produtivos de
veículos. Envolviam-se as engenharias dos fornecedores de componentes. Nossa divisão de pesquisa
para estudo de combustíveis alternativos contava com uma equipe de sessenta pessoas, entre engenheiros,
químicos e técnicos. Toda aquela movimentação causava em mim um grande entusiasmo. À época,
fizemos testes com óleo vegetal. Eu queria também explorar essa fonte alternativa de produção, mas não
havia tanto óleo à disposição. Esses motores poderiam ser substituídos facilmente via biodiesel, mas não
havia produto natural suficiente e processos adequados em nossa agricultura para a produção desse
biodiesel em grande escala.
Ozires Silva fala dos primeiros fracassos afirmando: “Todo início tem suas fraquezas e falhas, mas,
hoje, como resultado de um trabalho extremamente benfeito, toda a cadeia do sistema — desde a
produção da cana-de-açúcar até a distribuição do produto — funciona. Ninguém imagina entrar em um
posto de gasolina e não encontrar álcool. Esta foi uma condição fundamental para o sucesso do produto e
foi feita com pesados investimentos da Petrobras para colocar o álcool nas bombas dos postos
brasileiros”.
Newton Chiaparini lembra-se da nossa luta para provarmos ao consumidor a eficiência do carro a
álcool: “Havia as correntes contrárias. Formou-se o clube dos proprietários de carros a álcool,
queixando-se da performance do veículo, porque o carro demorava para esquentar de manhã.
Reclamavam do longo tempo necessário para o aquecimento fazer o motor funcionar. Tudo isso era
divulgado na imprensa como um fracasso. Na ocasião, junto com o então ministro Camilo Penna, um dos
heróis do Proálcool, tivemos demoradas batalhas. Conseguimos com a Rede Globo a gravação de uma
entrevista feita na rua, de surpresa, com motoristas anônimos. Foi um desafio enfrentado pelo ministro e
pela indústria automobilística, apoiados pela Rede Globo. Dividimo-nos: o ministro ficou no Rio de
Janeiro; eu, em São Paulo, representando a Anfavea; e os repórteres da Globo, nas ruas. Foi uma sorte
tremenda, porque todos os entrevistados se diziam satisfeitos com o carro a álcool. Caso houvesse um
único dizendo o contrário, seria um desastre. O programa foi ao ar ao vivo, em rede nacional. Este foi um
momento de heroísmo. Na Anfavea, eu recebia ligações diárias da Shell e das outras distribuidoras:
‘Como é? Vai ou não vai o Proálcool? Precisamos providenciar tanques novos. Isso não se faz de um dia
para o outro’. Houve um enorme trabalho, dia e noite. Mas tudo acabou sendo superado com o apoio
unânime dos produtores de álcool, dos distribuidores e da indústria automobilística”.
No exterior, esses projetos eram vistos como algo distante. Os americanos vieram, verificaram e
partiram, acreditando ser um processo restrito ao Brasil. Embora os carros brasileiros fossem em sua
grande maioria oriundos de tecnologias europeias, propiciando grandes contatos com os europeus, eles
olhavam nosso projeto como uma atividade de interesse local. As alterações feitas eram vistas como
ações voltadas para o mercado interno. Contudo, como diz nosso engenheiro Henry Joseph Jr. do lado de
cá, havia um entusiasmo contagiante entre os integrantes da parte técnica: “Envolvemos todas as
instituições capacitadas a participar dos desenvolvimentos e evoluções do projeto. Estiveram presentes o
INT — Instituto Nacional de Tecnologia do Rio de Janeiro porque tinha estudos importantes sobre
corrosão, o IPT — Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo, com estudos sobre
proteção de materiais e novas ligas, a fim de resolver os problemas com o carburador, o centro de
pesquisas da Petrobras, o CTC — Centro de Tecnologia da Copersucar, com pesquisas sobre a qualidade
do álcool e suas especificações. Para nós, engenheiros das indústrias automobilísticas, das empresas de
autopeças, dos institutos de pesquisas, o estímulo era enorme. Debruçávamo-nos com paixão sobre
nossas pesquisas. Era uma espécie de grito de alforria perante a engenharia das nossas matrizes.
Começamos a ter liberdade de criar, de pensar em inovações tecnológicas, assuntos anteriormente
recebidos prontos de nossas matrizes”.
Em 1978, a Fiat lançou no Salão do Automóvel o primeiro carro a álcool, seu 147. Contudo, foi a
Volkswagen a primeira montadora a lançar uma frota inteira de veículos movidos a álcool. Devido aos
percalços iniciais, até 1979, a venda desses veículos foi inexpressiva. Vencidas as dificuldades iniciais,
a partir de 1981, houve um crescimento vertiginoso. Em 1985 e 1986, teve seu ápice. Chegamos a 90%
das vendas de veículos leves no Brasil. Alguns fatores influenciaram como atrativos ao consumidor,
como, por exemplo, a venda obrigatória de álcool em todos os postos do Brasil, a tributação menor no
veículo e o preço do álcool tabelado em 65% do preço da gasolina.
Lembro-me do entusiasmo do Maurílio Biagi Filho, presidente da Maubisa que engloba entre outros
vários empreendimentos, a Usina Santa Elisa e a Zanini. Quando conseguimos uma das vitórias em nossas
muitas lutas pelo Proálcool, fui visitá-lo em sua fazenda. Seu cumprimento foi um beijo na minha testa.
Sempre nos demos muito bem, e eu tenho grande admiração pelo trabalho dele, sobretudo nessa questão
do programa do álcool. Continuou o negócio de seu pai, usineiro e fabricante de equipamentos, e o fez de
maneira brilhante:
Conheço o Sauer há muito tempo e tenho por ele mais do que amizade — um respeito profundo pela
sua capacidade de olhar as coisas de forma abrangente e pela sua visão de futuro. Partilhávamos a
mesma opinião em relação à busca de fontes alternativas de energia. O Proálcool era um programa
estratégico, um programa de poder. No mundo inteiro, ter energia significa ter poder. Nós, na Santa
Elisa, usina fundada por meu pai, produzíamos açúcar, e o álcool era um subproduto. Quando ainda
nem se falava em Proálcool, nós já o utilizávamos em nossa frota, fazendo a mistura com gasolina,
porque funcionava muito bem. Meu pai, Maurílio Biagi, foi um dos subscritores do documento
“Fotossíntese como Fonte Energética”, que convenceu o governo a criar o Programa Nacional do
Álcool. Esse movimento desembocaria no Proálcool. Meu irmão, Luiz Biagi, foi para o mundo todo
em busca das melhores tecnologias existentes para a produção de açúcar e de álcool. Era uma
parceria fantástica. A Zanini adaptava a tecnologia, a Santa Elisa experimentava os componentes,
corrigia os defeitos, e os produtos eram tropicalizados antes de entrar definitivamente em produção
comercial. Fomos o único grupo tradicional do açúcar que foi para o álcool. Fomos os pioneiros na
produção de álcool carburante, sendo os primeiros a produzir, dentro desse programa incentivado, o
Proálcool. Havia uma grande descrença em relação ao álcool, principalmente porque a primeira
geração de carros não funcionou muito bem do ponto de vista técnico. Nosso grupo, à época com
trinta empresas, comprou 150 carros a álcool. Mesmo com o problema de o carro não ‘pegar’ em
tempo frio, compramos até Galaxies a álcool, demonstrando que acreditávamos no sucesso do novo
combustível. Eliminamos a frota pesada de caminhões a diesel, substituindo-a por caminhões leves
tocados a etanol. Quando a Volkswagen absorveu a Chrysler do Brasil e Argentina, fabricantes do
caminhão Dodge, compramos 300 unidades, todas com motor a álcool. No início, os produtores de
açúcar foram arredios à produção do álcool. A Zanini entrou por interesse comercial, mas também
por uma questão filosófica facilitou o acesso das usinas, financiando os equipamentos e os
procedimentos necessários para montar destilarias. Quem fez o trabalho grande nessa área foi o Luiz
Biagi. Ele foi por esses rincões brasileiros mostrar as vantagens de construir destilarias de álcool.
Outra empresa participante ativa do processo foi a Dedini. A adesão do Sauer aconteceu desde o
primeiro momento, tornando-se um defensor ferrenho do Programa Nacional do Álcool. Essa
posição foi muito importante, porque o Sauer era uma figura de proa no sistema. Como líder da
maior indústria e com sua força dentro da Anfavea, ele estava à frente do processo. Foi a pessoa que
mais se expôs e mais trabalhou em benefício do carro a álcool. Caso houvesse uma oposição da
indústria automobilística e da Petrobras, o projeto dificilmente conseguiria se efetivar. Durante toda
a elaboração deste programa, tive muitos contatos com o Sauer, ele trabalhando na ponta da
indústria automobilística; e eu, no meu segmento do agronegócio, na produção do etanol. Nesse
tempo, nasceu minha admiração por ele, e consolidou-se uma grande amizade.
Sobre a questão da produção de álcool a partir do milho, Ozires Silva expressa sua teoria:
Os Estados Unidos têm, hoje, uma produção de álcool proveniente do milho equivalente à nossa,
mas com pesados subsídios agrícolas porque a eficiência de produção é muito menor do que a da
cana-de-açúcar. O Brasil deu o pulo na direção certa. Estamos produzindo muito mais álcool por
tonelada de cana do que o fazíamos no passado, graças aos trabalhos técnicos e científicos levados
a efeito.
Gosto muito desta questão do Proálcool, porque formou uma história muito bonita. Cometemos erros,
enfrentamos resistências, mas este projeto teve um êxito enorme. Foi um programa do governo brasileiro,
envolvendo os mais competentes estadistas, cientistas e empresários. Formamos um grupo de pessoas
sérias, bem-intencionadas e chegamos a uma tecnologia exclusivamente brasileira. Somos seus autores, e
tenho disso muito orgulho. O Maurílio Biagi sempre me dizia que, além disso, temos uma vantagem
adicional. Nosso grande diferencial é a cana, que tem no País seu habitat. Quando se faz o álcool do
milho, é preciso usar petróleo como combustível para a execução do processo. Segundo ele, no caso do
etanol, usa-se o bagaço da cana como combustível. Além de gerar todo o combustível necessário, produz
ainda um excedente a ser vendido como energia. Ele fala da geração de dez mil mega energia feita
somente do bagaço. E os olhos dele brilham ao afirmar: “Temos aí, duas usinas Itaipu, adormecidas em
nossos canaviais”.
Maurílio Biagi continua seu discurso: “Eu sempre digo com muito prazer, pois isto é algo sobre o qual
conversamos muito. O Sauer enxergou aquilo que conjuntamente chamamos de ‘a beleza deste programa’
porque, além da produção do açúcar e do etanol, a cana tem uma porção de derivados. A indústria
automobilística fez a primeira, a segunda e a terceira geração de veículos, aperfeiçoando-se cada vez
mais até chegar à quarta com injeção direta. Atualmente, com o carro flex, o consumidor passou a ter o
comando da operação, pode escolher entre o álcool e a gasolina. A partir do carro flex, precisamos, a
cada ano, de 3,5 bilhões de litros a mais a fim de abastecer a frota que entra no mercado. O dia 4 de maio
de 2010 foi um dia histórico. Em São Paulo, começou a rodar uma pequena frota de ônibus movidos a
diesel de cana! São fabricados por uma empresa da Califórnia com uma planta instalada em Campinas em
associação com a São Martinho da cidade de Pradópolis, região de Ribeirão Preto”.
Shigeaki Ueki acrescenta: “O bagaço de cana era considerado um resíduo usado para gerar energia
para o processo industrial e mais nada. Mas hoje é importante destacar o desenvolvimento tecnológico
fantástico ocorrido na utilização do bagaço para gerar energia elétrica. O rendimento aumentou de 300 a
400 por cento nos últimos trinta anos. Então, o bagaço de cana considerado um resíduo sem muito valor
econômico, hoje, tem o valor do petróleo. Atualmente, não há uma usina de álcool moderna que não
objetive a produção de etanol, açúcar e energia elétrica. O rendimento energético não deve mais ser
calculado por um hectare de terra que produz tantos mil litros de etanol ou tantos sacos de açúcar. É
preciso calcular também quantos quilowatts podem ser gerados. Outro aspecto importante é que a
produção de cana começa em abril/ maio quando diminuem as chuvas. Até outubro/novembro temos
condições de gerar energia elétrica com bagaço e palha de cana, exatamente no período em que o Brasil
queima mais petróleo e gás natural”.
Quando perguntado sobre qual é a diferença que existe entre o etanol e o petróleo, o professor e
cientista José Goldemberg afirma: “A diferença fundamental é muito simples: etanol é a energia do sol
transformada em líquido”.
“O carro flex”, diz o dr. Pischinger, “tecnicamente comprovado pelos desenvolvimentos anteriores
(injeção, multiponto, catalisador), somente com adição da eletrônica embarcada a partir de um
determinado momento tão poderosa que suportava a ideia de se fazer este projeto. Foi uma iniciativa da
Magneti Marelli brasileira a criação de um software que consegue ler através de um sensor no sistema de
escapamento (sonda lambda) a composição do combustível (proporção gasolina/álcool no tanque) e
ajustar a curva de ignição e a injeção de combustível. Foi um projeto que deu certo e conquistou para o
Brasil a admiração internacional. A tecnologia flex, hoje, oferecida em todos os carros brasileiros é uma
perfeita solução de engenharia. Ficou provada a excelência do combustível derivado do álcool para os
motores do ciclo Otto. Foi muito acertada a decisão de se partir para um programa de combustível
renovável em grande escala. Todos os pioneiros envolvidos neste processo do final da década de 70
devem ser parabenizados.”
Em todos os lugares por onde passei sempre fiz uma defesa apaixonada pelo Brasil, exaltando suas
riquezas naturais e a capacidade de seu povo de sempre se superar. Qualificavam-me como sonhador ou
excessivamente otimista. O carro a álcool é um dos atestados da justeza das minhas afirmações. Ele foi o
resultado da eficiência e da coesão de diversos setores da sociedade. É muito interessante notar que,
mesmo tendo diante de nós a possibilidade de alcançar a liderança mundial na produção do etanol,
vamos encontrando mais petróleo. No entender de Shigeaki Ueki, o petróleo, embora chamado de ouro
negro, é ainda mais valioso do que esse precioso metal. Durante as crises do petróleo, estávamos
mergulhados em dívidas, consumindo nossas divisas para comprar petróleo. A inflação era um fantasma
que nos assombrava, parecendo ter vida eterna. Nossas batalhas não foram pequenas. Hoje, somos
exportadores de energia e estamos produzindo petróleo praticamente no volume que precisamos. O IAA
— Instituto do Açúcar e do Álcool foi criado pelo governo Vargas em 1933, o Programa Nacional do
Álcool — Proálcool foi criado em 14 de novembro de 1975, no governo Ernesto Geisel. Um longo
caminho foi percorrido. O carro a álcool foi um projeto fascinante e desafiador. Deixou de ser uma
aventura como afirmavam alguns para se transformar em uma vitória da indústria brasileira. Passou por
algumas etapas. Sua conquista nesta longa jornada já está aí rodando com o nome de flex fuel. O Brasil,
berço do carro a álcool, provou a qualidade da sua tecnologia, a engenhosidade de seus cientistas e
técnicos, a capacidade de seus produtores de cana, de seus usineiros, de seus fabricantes de bens de
capital, mas é preciso ter sempre os olhos colocados no futuro. Como me dizia meu amigo Camilo Penna,
precisamos de inovação contínua.
Na Volkswagen, pensamos em exportar o carro a álcool. Meu assessor Ricardo Strunz lembra-se de
algumas de nossas aventuras nesse setor: “O Sauer era um entusiasta do carro a álcool, tanto que pensou
em exportá-lo. Fez uma coisa muito interessante. Escolheu países onde havia plantações de cana-de-
açúcar para nossas primeiras investidas. Promovíamos encontros com os ministros de Energia e
apresentávamos nosso produto nacional movido a uma energia alternativa — o álcool. Era um Passat,
mostrando na parte traseira um emblema onde estava escrito: Álcool, em vermelho. Fizemos uma
apresentação para o Ferdinand Marcos, nas Filipinas. Depois fomos para a Indonésia e, também, para as
Guianas. Um fato interessante aconteceu no palácio do Ferdinand Marcos. Seu assessor nos perguntou:
“Qual a diferença deste carro? Vocês colocaram atrás a indicação de que tem ar-condicionado?”.
Respondi que se tratava de um carro movido a álcool. Ele insistiu: “Não é all cool?”. Expliquei-lhe que
a palavra não fazia referência a um carro totalmente refrigerado, mas ao combustível que o movia. Então,
resolvemos colocar um h no meio da palavra, escrevendo Alchool. As pessoas achavam interessante,
muito bonito, mas não passava disso”.
Um caso muito interessante e adorável aconteceu na Tailândia. Nossa tentativa comercial foi feita
através dos canais normais de importação do país. Contudo, resolvi oferecer um presente ao rei
Bhumibol Adulyadej — um Passat movido a álcool. Confesso que, mais tarde, considerei a ideia
excelente, não por motivos comerciais. Fui até o seu belíssimo palácio, onde encontrei a família real
reunida. Ornadas com as vestes tailandesas e joias com muitas pedras preciosas, as mulheres me
pareceram lindíssimas. O riso acolhedor estampado no rosto de cada uma delas deixou-me maravilhado,
contudo tamanho encantamento não me fez mudar de rota. Cumprimentei a todos respeitosamente como
convinha em visita como aquela e ofertei ao rei o meu presente. Ele agradeceu, recebeu a chave e
passou-a para a filha, dizendo que o carro era dela. Para minha surpresa, ela se levantou e convidou-me
para fazer um test drive. Sempre gentil, muito feminina, sorriso permanente nos lábios, conduziu-me para
fora do palácio. No longo trajeto, olhos atentos, palavras delicadas, gestos elegantes e, sem nos dar conta
do tempo, continuamos testando o carro. De repente, ouvimos sirenes, ruído de carros em alta
velocidade, aproximando-se e colando-se ao nosso. Era a guarda real, procurando a princesa. O rei,
achando que nos demorávamos muito, ficou preocupado com o que tivesse acontecido com sua filha.
Infelizmente, nada. Apenas o test drive. Posteriormente, todas as vezes que fui à Tailândia sempre fui
muito bem recebido pela família real.
O Luiz Biagi da Zanini procurou-me porque eles tinham a intenção de exportar o etanol como
combustível para alguns países árabes: “Um amigo nosso nos disse que o Sauer poderia nos ajudar, e eu
fui procurá-lo. Ele me indicou um libanês de nome Edmund Baroudi, residente em Paris e com quem o
Sauer tinha um ótimo relacionamento. À época, o Sauer mandou um Passat a álcool para as Filipinas, e
nós mandamos um grande volume de combustível para eles poderem testar o carro a etanol. Existia uma
grande vontade e muito empenho da parte dele e também da nossa em divulgar o etanol como
combustível”.
Nas considerações do professor José Israel Vargas, há uma análise interessante: “Estamos diante das
inevitáveis contradições mundiais. De um lado, a preocupação com o efeito estufa, resultante da
utilização dos combustíveis fósseis, como petróleo, que, tudo indica, põe em risco o futuro do planeta, e
a necessidade de substituí-los por biocombustíveis, para a mitigação do problema, ou por energia
elétrica, gerada por fontes limpas, como a hidroeletricidade, com a concomitante geração de novas
tecnologias, anunciadas para breve, leva a moderado otimismo. Alguém disse que a Idade da Pedra não
terminou por falta de rochas... É, pois, possível que a Idade do Petróleo chegue ao fim, bem antes de
acabar suas reservas. De outra parte, o petróleo será usado ainda por muito tempo como matéria-prima
pelas indústrias químicas, cada vez mais sofisticadas. É preciso não esquecer que estão em fase de
pesquisa, há mais de trinta anos, a busca da produção do etanol por via da hidrólise enzimática da
celulose. Tal abordagem permitirá a utilização não só de madeira, mas também de todos os resíduos
agrícolas, para a geração de biocombustível. O procedimento contribuirá também para a redução da
pressão sobre o uso crescente de solos, em competição com a produção de alimentos, que vem criando
objeções à produção em massa do etanol como nova commodity. Há ainda outras vias não convencionais
de produção de energia, que deverão, em futuro ainda problemático, competir com o petróleo. Por
exemplo: a produção de hidrogênio por decomposição térmica da água (por via nuclear) ou a fusão
nuclear, objeto agora de certo otimismo, quanto à sua viabilidade, em futuro não muito distante”.
Como afirma o dr. Georg Pischinger: “Em curto tempo, foi criado um programa gigantesco em um país
do tamanho de um continente, despertando admiração e respeito lá fora”.
O Proálcool iniciado como uma busca de alternativa para a gasolina foi mais além — hoje nos
interessa do ponto de vista de limpeza do ar. O álcool traz um bônus para a sociedade num momento em
que as questões de meio ambiente se transformaram em uma prioridade mundial.
GREVES: UM GRITO DE GUERRA
querem greve?
— Vocês — Queremos!!!
— Vocês querem greve?
— Queremos!!!
Uma voz áspera em tom elevado vinha através do microfone, sobre um caminhão de som, fazia a
pergunta. Cabelos escuros cobertos por um boné compunham o rosto barbudo do protagonista daquela
cena. Uma multidão de operários, desconhecidos nossos, levantavam seus braços, dando a resposta.
Aquela reação rumorosa da plateia tinha os contornos de uma declaração de guerra.
Ele era o Lula. Os operários conduzidos por líderes sindicais vinham de outras fábricas instaladas no
ABC.
Aquele sonoro “queremos” era um clamor estridente que agitava a massa trabalhadora fora da fábrica.
Dentro dela, silêncio absoluto. No minuto exato daquela “parada da produção”, cessaram-se todos os
ruídos, interromperam-se os movimentos, calaram-se as vozes, paralisaram-se todas as máquinas. Era
como se de um momento para outro toda a vida que animava aquela fábrica imensa tivesse se perdido no
ar. A energia e vibração que dela emanavam diluíram-se atingindo o ponto zero. Eu via tudo aquilo
através dos vidros da minha sala. Meus olhos se concentravam no todo, e a minha mente perguntava o
porquê daquela paralisia súbita.
Lembro-me muito bem daquela data — 15 de maio de 1980 — quando o sr. Luiz Inácio da Silva, o
Lula, declarou guerra à Volkswagen. Ficamos quarenta e dois dias parados, durante os quais não arredei
os pés da fábrica. Ele conseguira o queria, realizava seu grande sonho: parar a maior fábrica instalada no
Brasil. À época, éramos maiores do que a Petrobras e a Vale do Rio Doce. Tínhamos 42 mil empregados
em São Bernardo e mais 4 mil em Taubaté.
Nossos empregados eram valorizados, classificados pela imprensa como a elite da classe trabalhadora
brasileira. Pagávamos os melhores salários, dávamos as melhores condições de trabalho, tínhamos
sistemas educacionais e assistenciais avançados, garantíamos proteção aos nossos trabalhadores, através
de alimentação adequada e assistência médica de nível elevado. As possibilidades de crescimento
profissional e o acesso à tecnologia de ponta estavam ao alcance de todos que quisessem evoluir em suas
carreiras. Aplicávamos normas e regras adotadas na Alemanha, onde os operários já haviam atingido um
patamar social impensável no Brasil daquela época. Víamos nossos empregados como colaboradores e
aliados, e não como adversários. Contudo, os métodos usados pelos sindicalistas não eram os da
persuasão, mas os da exigência. Segundo sua estratégia, os líderes sindicais dos três municípios do ABC
se revezavam, os de Santo André paravam São Bernardo e São Caetano e vice-versa. Não sei de onde
vinham os operários aglomerados na porta de entrada da nossa fábrica, impossível identificá-los, mas a
greve foi deflagrada por aclamação da assembleia ali constituída pelo sindicato.
O movimento não foi originado dentro da fábrica, mas introduzido de fora para dentro dela, de forma
ditatorial, sem qualquer negociação, antes de se começar a greve. Algum tempo antes, eu havia pensado
na criação de uma comissão de fábrica, nos moldes feitos na Alemanha. Um dos meus assessores, Jacy
Mendonça, se lembra do fato: “Por determinação do Sauer, fui à Alemanha a fim de apreender como
funcionavam as comissões de fábrica. Na minha volta, fui encarregado de criá-las, mas graças à mão
dele. Com seu aval elas foram constituídas, mas devo salientar que seu apoio integral lhes deu estatura e
credibilidade para analisar e discutir os problemas relativos às reivindicações dos trabalhadores”.
Tivemos críticas durante a formação das comissões porque eu queria constituí-las com a partição de
funcionários e ex-funcionários da VW. Não era essa a intenção do sindicato, que queria seus dirigentes
dentro das comissões. Mantive minha posição porque os problemas levantados e as decisões tomadas
deveriam vir de dentro da fábrica, e não de fora dela. Através das comissões, dissolviam-se as
hostilidades, e criava-se o diálogo. Fui o primeiro presidente de uma montadora a receber o sr. Luiz
Inácio Lula da Silva para conversar. A partir de então, tivemos vários encontros. Sempre bati na tecla de
que não estávamos medindo forças, nem estávamos em campos antagônicos, como ele gostava de
demonstrar. Nossa busca era a solução dos problemas, através do diálogo. Nosso gerente de recursos
humanos fala da importância desse processo: “A comissão de representantes da fábrica foi criada e
implementada nos anos 80, tendo sido a VW a pioneira na adoção do sistema. Era similar ao Betriebsrat
da Alemanha. Seu papel foi muito importante no aprimoramento do processo das relações sindicais na
montadora, demonstrando que essa parceria entre patrões e empregados se constitui no melhor caminho
para diálogos mais transparentes e respeitáveis entre as partes nos fóruns de negociações e em todos os
segmentos da condução estratégica na gestão de pessoas”.
Os primeiros tempos foram muito duros, não estávamos preparados, e os sindicalistas assumiam
posições muito radicais. Contudo, posso dizer que as relações dos meus colaboradores de relações
humanas com os sindicatos evoluíram muito. Mas, ainda hoje, penso que as leis trabalhistas no Brasil
precisam ser mudadas, pois datam do governo de Getúlio Vargas, baseadas na Carta del Lavoro, de
Mussolini. São retrógradas, reacionárias, originadas de um regime fascista. Portanto, não condizem com
o nosso sistema democrático.
Na opinião do embaixador Marcelo Jardim, que assistiu a muitos dos episódios relacionados às
greves, meu papel foi o de um pacificador. “Nas disputas trabalhistas no ABC, a voz de Sauer sempre foi
a da conciliação e do diálogo. Sempre entendia que uma relação harmoniosa e aberta entre o chão de
fábrica e a direção da empresa constitui um instrumento vital para a consecução dos objetivos a que se
propõe a empresa — sua direção e seus acionistas. Nesse ponto, ele foi um empresário que pautou sua
conduta pessoal e profissional por uma forte feição humanista”. Infelizmente, não enxergavam assim os
representantes do Mettalgewerkschat, o Sindicato dos Metalúrgicos da Alemanha, no board da
Volkswagenwerk. Manifestaram seu voto contra minha ascensão à presidência mundial da empresa. O
Mettalgewerkschat era um poderoso financiador do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Sua posição
contra a VW no Brasil foi muito forte por total desinformação sobre a realidade dos fatos. Conceituadas
revistas alemãs também assumiram seus papéis de defensores dos trabalhadores brasileiros como se a
empresa fosse um monstro pronto a devorá-los.
Foi uma época muito desagradável, mas, ainda assim, considero-a positiva, porque aprendemos os
mecanismos para a construção de uma relação sindicato/empresa mais democrática.
Nosso gerente de recursos humanos, Mauro Marcondes Machado, faz um retrospecto sobre o
movimento trabalhista brasileiro: “Começou na década de 70. O operário brasileiro não tinha o hábito de
reivindicar nada. A partir da formação do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, os
sindicalistas começaram a fazer uma verdadeira catequese, e isso era feito dentro das igrejas. Criaram
um livreto com o nome: ‘Os Dez Mandamentos do Sindicalista’. Era um manual completo das formas de
reivindicações. Até então, ninguém acreditava em greve. Acrescia-se a isto o fato de estarmos vivendo
sob o regime militar.
O Sauer acompanhava muito de perto a área de recursos humanos. Dele veio a ideia de formarmos um
grupo de gerentes dessa área, com participantes das demais montadoras — Ford, GM, Mercedes, Scania,
Chrysler, a fim de viajarmos para a Europa e Estados Unidos para conhecer como eram feitas as
negociações trabalhistas e os acordos coletivos, qual era o sistema e a forma de organização sindical na
Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos. No Brasil, não tínhamos nenhuma vivência nesse tipo de
assunto. Na Alemanha, o movimento trabalhista já havia avançado muito. Em Wolfsburg, já existiam as
comissões de fábrica. Pessoas do sindicato e das comissões já participavam da diretoria da empresa. Era
um movimento maduro, já com condições de coparticipação dos trabalhadores na gestão da empresa. Já
tinham passado por tudo o que viríamos a ter, conheciam os caminhos para encontrar formas adequadas
de convivência. Um mês depois da nossa volta, tivemos a primeira greve iniciada na Scania-Vabis. Os
conhecimentos adquiridos lá fora tiveram grande utilidade durante nossas negociações com os
sindicalistas. Em 31 de maio de 1978, fizemos a primeira convenção coletiva da indústria
automobilística, registrada em documento ao qual demos o nome de “Documento Histórico”. Era o
primeiro acordo feito entre um setor da indústria — o automotivo — e um sindicato. Na finalização deste
acordo, eu precisava da decisão do Sauer. Ele estava dando uma festa em sua casa. Liguei, pedi
desculpas pela interrupção. Ele imediatamente me disse: “Venha até aqui, vamos conversar”. Quando lá
cheguei com os meus assessores, estavam os presidentes da Ford e da GM entre os convidados. Fomos
para uma outra sala e fizemos uma longa reunião. Eu negociava pela indústria automobilística como um
todo, pois era presidente da comissão de relações sindicais da Anfavea. Conseguimos um acordo de 11%
de aumento, quando outros setores chegaram a 21%. Esse foi o nosso primeiro passo”.
Muitas vezes, depois de chegar a um acordo com o sindicato, eu recebia uma ligação do então ministro
Golbery:
— Sauer, não queremos que se faça nenhum acordo. Precisamos desmanchar esse movimento.
— Mas, ministro, não temos outra saída.
— Então, venha até Brasília. Vamos discutir, não concordo com esse acordo.
Mauro Marcondes se lembra: “Íamos em comitiva falar com o ministro, mostrar que tínhamos
compromissos com exportações, contratos a respeitar, portanto não poderíamos ficar parados
indefinidamente. Dali a alguns dias, ele autorizava o acordo. Lutávamos em duas frentes — na dos
sindicatos e na do governo militar. Com o último, havia interesses políticos difíceis de questionar. O
Sauer participava disso pessoalmente, e como diz o Jacy Mendonça: ‘Ele tinha a delicada tarefa de
explicar para a Alemanha todas as evoluções. E ele o fazia com maestria’. O Romeu Tuma era o
delegado, chefe do Dops. Diariamente, recebíamos uma ligação sua: ‘Como é? Parou? Não parou? Quais
são as previsões?’. Dentro do departamento de recursos humanos, formamos uma equipe cuja atribuição
era verificar os pontos divergentes dentro da fábrica, onde havia atritos e quais os argumentos utilizados
para se montar a greve. Nossa meta era cuidar do aspecto social e também do salarial, visando à
manutenção de um clima harmonioso dentro da fábrica. O Sauer participava pessoalmente de tudo isso.
Ele era muito cauteloso com a parte humana da indústria. Era uma pessoa pragmática, no entanto
preocupava-se muito com o bem-estar dos empregados. O assunto era uma constante em sua cabeça”.
O PT não existia, mas já começava a se formar um movimento político trabalhista. A Volkswagen, por
ser a maior indústria, empregadora de maior número de pessoas, líder do mercado em vendas, era muito
visada. Parar uma empresa gigante como ela era ponto de honra para os sindicalistas. Mauro Marcondes
dá um panorama da evolução política da época: “No sindicato de São Bernardo, havia pessoas de todas
as tendências políticas. Eram a extrema esquerda, centro-esquerda, socialistas, intelectuais. Tudo ali se
misturava — divergências políticas, interesses políticos diversos —, tornando difícil fazer com que a
instituição caminhasse em uma determinada direção. O Lula era o controlador de tudo aquilo. Quando ele
foi preso por participar de movimentos ilegais, à época, o Sauer juntou-se a outros presidentes de
montadoras, e fomos juntos tentar demover o governo da ideia de mantê-lo preso. Com ele já havíamos
começado a dialogar. Aquilo era uma coisa inédita no Brasil, porque, de fato, nenhuma das partes — nem
eles, nem nós — sabia negociar. Fomos aprendendo com o desenrolar dos acontecimentos. As paradas
constantes, sem nenhum tipo de negociação prévia, as quantidades de greves e de reivindicações
impossíveis de ser suportadas pela indústria foram muito difíceis para ambos os lados, para as empresas
e também para os operários, porque a primeira ficava com suas linhas paradas, impossibilitada de suprir
as demandas do mercado, e os trabalhadores ficavam longos tempos sem remuneração, além do clima de
alta tensão de ambos os lados. Acredito que um dos momentos mais delicados, que poderia ter se
transformado em uma catástrofe, foi o encontro dos trabalhadores no estádio da Vila Euclides. Milhares
de pessoas reunidas, o Lula ao microfone, os helicópteros do exército com soldados armados
sobrevoando o local. Foi uma situação sensível, qualquer deslize poderia levar a um acontecimento de
consequências graves”.
Jacy Mendonça, como diretor de recursos humanos, era o nosso porta-voz para a imprensa. Era
acordado pela manhã com pedidos de entrevistas para emissoras de rádio e televisão. Depois, eram
jornalistas aglomerando-se para ter as notícias mais novas, e aquele era um evento que poderia a cada
hora gerar fatos novos pelos quais os repórteres disputavam a primazia. O Jacy fala de uma estratégia
adotada para vencer as resistências do sindicato, que a cada greve tinha reivindicações mais difíceis de
serem aceitas: “O estilo dos sindicalistas era este: primeiro faziam a greve para depois dialogar. Nunca
fizeram o contrário, não havia nenhuma tentativa de reivindicação anterior. Iam direto para a greve.
Naquele período, montei um esquema através do qual eu dispensava mil homens por dia. Publicava
diariamente a lista numa tentativa de quebrar a resistência deles. Vieram, então, me perguntar o porquê
dos mil. Respondi, amanhã serão 1001, e assim fomos aumentando e mantendo a luta. Tive minha sala
cercada por mais de 20 mil homens. Em frente a ela, havia uma rua muito larga, e eu precisava atravessá-
la. Ouvia observações desagradáveis, mas nunca ninguém me tocou. Uma das exigências deles era entrar
com o carro de som dentro da fábrica, alegando que ‘até para conduzir e evitar conflitos, nós precisamos
falar com a massa’. Não cedi, emprestei-lhes os aparelhos de som da empresa. Outra situação nevrálgica
estava nos pontos de alta periculosidade, de risco de vida — tínhamos centrais elétricas, centrais
químicas — e não podíamos nos responsabilizar por possíveis consequências devidas ao uso inadequado
daquelas partes. Avisei os líderes sobre isso e adverti: ‘Não vou chamar a polícia para proteger esses
locais’. Portanto, os responsáveis serão vocês. Eles voltaram e pediram-me que mostrasse onde estavam
os pontos de risco. Abri uma planta passada pela produção e os apontei. Eles montaram equipes para
manter a segurança de todos esses pontos. Tive um relacionamento bom com os sindicalistas, mas sempre
com fronteiras muito bem demarcadas entre o que era possível e o que não era.
Em nenhum momento, tomamos a iniciativa de chamar as autoridades para nos ajudar a resolver o
problema. O Sauer era totalmente contra qualquer intervenção policial. Apenas passávamos as
informações, quando nos eram solicitadas, mas ele rejeitava sempre qualquer tipo de participação. Posso
afirmar que a interferência governamental ou policial neste caso foi igual a zero. Nós não a queríamos e
não a tivemos”.
Meu amigo André Beer, da General Motors, usa a palavra confronto para definir os choques de
interesses e de ideias insuflados pelo radicalismo dos sindicatos: “Guardei na memória uma frase, tal a
ênfase a ela dada e a quantidade de vezes repetida: ‘Com patrão não tem diálogo, é na marra’. Era uma
afirmativa forte que acirrava a revolta do empregado contra a empresa. Eu não era patrão, na GM
ninguém o era, mas era a figura que o representava. Assim, o Lula era uma das pessoas que ficava na
porta da fábrica, ofendendo minha mãe, meus familiares, e aquilo me irritava muito. Aquela execração
pública fazia parte da tática de guerrilha para minar o moral do adversário. Isso eu não vou esquecer
nunca. Queriam atingir a mim por representar a GM, posso entender, mas envolver minha família, e ainda
de forma desrespeitosa, era um agravo inaceitável. Em São Caetano a CUT nunca conseguiu entrar apesar
das inúmeras tentativas, e as negociações, embora difíceis, chegavam ao momento em que predominava o
bom senso. Contudo, em São José dos Campos, com sindicatos de uma agressividade intensa, nossos
problemas foram grandes. A meu ver, a ‘quebra’ da GM nos Estados Unidos se deveu a fatores
administrativos, mas a força reivindicatória dos sindicatos teve muito peso nesse processo. Difundiu-se
no País a ideia ‘vou construir carros para que meus empregados possam comprá-los’. A fim de atingir
esse objetivo, pagavam-se salários muito altos, causando um desequilíbrio entre os carros fabricados no
País e fora dele. Chegou ao ponto que a GM, com seus benefícios sociais, tinha uma penalidade em torno
de um a três mil dólares por carro, quando comparado ao carro produzido no Japão. O sindicato não teve
visão, não tentou adaptar-se às mudanças oriundas dos países asiáticos, que se tornaram competidores
dos americanos. Com a entrada da China, vamos ter veículos chineses rodando por todo o mundo. Será
necessária uma adaptação a essa realidade. Não existe outra chance. No Brasil, felizmente, as coisas se
nivelaram, mas também houve mudanças radicais. Impossível fabricar um carro popular pagando salários
iguais ao fabricante de um Cadillac. Outro fator resultante do radicalismo sindical foi o êxodo das
indústrias do ABC para outras localidades. Algumas razões de outra ordem também contribuíram para
essa movimentação, mas o sindicato teve grande parte da responsabilidade por esse processo”.
Mauro Marcondes faz sua análise do deslocamento industrial para outras regiões: “Havia uma crença
de que o movimento sindical diminuiria sua força com as mudanças das empresas para outros locais. Isto
foi ilusório porque os radicais que estavam no ABC se articularam para acompanhar a descentralização
das empresas. A General Motors foi a primeira a transferir-se para São José dos Campos. Criou-se lá um
movimento ainda mais agressivo do que no próprio ABC. As migrações continuaram. Em uma segunda
fase, foram para as regiões de Campinas, de Araraquara e de São Carlos. O movimento sindical foi atrás,
ganhando espaço e formando lideranças fortes nesses locais.
Essas greves tinham forte componente político. Patrocinadas por parte da igreja católica, dos
seguidores da Teologia da Libertação, e no caso de São Bernardo, tinham enorme apoio financeiro do
sindicato da Alemanha. Com forte tendência esquerdista, desses movimentos originou-se um partido
político, o PT — Partido dos Trabalhadores. A grande inspiração dos líderes vinha de Cuba, de Fidel
Castro e Che Guevara. Àquela época, os seminários promovidos pela igreja católica estavam cheios de
fotografias dele. Muitas assembleias eram estrategicamente marcadas na praça em frente à igreja matriz
de São Bernardo do Campo. Caso acontecesse alguma intervenção da polícia, Lula estaria a salvo,
escondendo-se na igreja.”
Nas relações sindicais, acredito que tenha havido uma grande evolução conquistada com lutas e
sofrimento de ambas as partes. O conselho dos funcionários criado na Volkswagen foi muito útil, pois
abriu um canal de comunicação muito interessante. Pudemos mostrar aos funcionários a situação
financeira da empresa, as condições de funcionamento de uma indústria privada, os investimentos
necessários, o acompanhamento das evoluções tecnológicas; quesitos que permaneciam obscuros, pois se
difundia a ideia do patrão usurpador, pronto para se apropriar do trabalho dos indivíduos, explorá-los,
visando unicamente ao lucro. Deixávamos claro que o lucro era um direito de quem investia seu capital,
mas o trabalho gerado por esses investimentos era o criador de empregos, promotor de riquezas e de
bem-estar social. Os resultados obtidos foram excelentes, provando que greves impositivas traziam
perdas para ambas as partes, incluindo trabalhadores que queriam e precisavam trabalhar para sustentar
suas famílias e estavam sujeitos a atos de caráter terrorista pela parte dos líderes sindicais. O jornalista
Vicente Alessi Filho lembra-se de um desses fatos: “Para quem não obedecesse às ordens dos piquetes
de greve, colocavam sobre sua máquina de trabalho um osso, com a advertência: é assim que tratamos os
cachorros”.
Estava correta minha afirmativa inicial repetida ao sr. Luiz Inácio Lula da Silva por inúmeras vezes: o
caminho é o diálogo. Aprendemos muito juntos, e, hoje, as relações são mais pragmáticas. A meu ver, o
sistema de relacionamento entre sindicato e indústria deve ser cada vez mais democrático.
DE SAUER, O VERMELHO, A PONTA DE LANÇA DO
CAPITALISMO
Quando entrar em operação a Autolatina, Wolfgang Sauer, presidente da Volks e futuro presidente
da empresa que está sendo criada, estará entre os principais executivos da indústria
automobilística mundial.
O Estado de São Paulo, 30/11/1986
Não se pode tirar bife da vaca que nos dá leite. Precisamos trilhar o caminho inverso, reduzindo
os impostos, que, no caso do automóvel, são os mais elevados do mundo.
Jornal de Tarde, dezembro de 1987
Wolfgang Sauer acabou perdendo a paciência com o governo em 1987, partindo para uma queda
de braço com o ministro da Fazenda, Bresser-Pereira, ao defender aumento de preços para
automóveis.
Jornal do Brasil, fevereiro de 1991
não eram mais donas de suas decisões em relação aos preços de seus produtos.
As empresas Quem decidia sobre eles era o governo. Criou-se uma comissão dentro do
Ministério da Fazenda a que se deu o nome de CIP — Conselho Interministerial
de Preços. Instituído em 1967, tornou-se a dor de cabeça dos industriais. Entendia-se que, com este
controle, a inflação seria banida do País. Esta política monetarista era baseada na crença de que a
demanda não controlava a inflação, e a saída estava no congelamento de preços. Fui obrigado a constituir
dentro de nossa área financeira um grupo de pessoas trabalhando exclusivamente para justificar nossos
aumentos de custos. Eram planilhas e mais planilhas, formulários, anexos e arquivos armazenando
dezenas de dados comprobatórios das elevações de preços das matérias-primas e componentes utilizados
na fabricação dos carros. Tudo inútil. Nossos argumentos e nossas provas não eram aceitos, e quem
determinava o preço do nosso produto era o governo. Era uma espécie de estatização da economia.
Contudo, era difícil formar dentro do CIP comissões que entendessem de todos os produtos, seus custos e
a enorme complexidade envolvida em um processo produtivo de veículos. O controle de preços pelo
governo provocou uma defasagem para a empresa, pois os custos superavam os preços fixados pelo CIP.
Restringiam-se os investimentos, paralisavam-se as pesquisas, e a tecnologia de ponta de nossos
produtos era seriamente comprometida.
O CIP foi durante anos um martírio para mim. Sofri muito com ele. Sim, falo de sofrimento, porque era
um processo verdadeiramente doloroso. Internamente trabalhávamos como loucos, buscando alternativas
para reduzir os custos. Minha meta de aumentar a economia de escala foi atingida, e os resultados
positivos baixaram nossos custos. Melhoramos bastante a situação, mas não satisfatoriamente, pois não
chegávamos a uma condição de rentabilidade.
Nas reuniões do board em Wolfsburg, não havia um único ser humano que conseguisse entender o
porquê de uma medida tão arbitrária, como o CIP. Eu ouvia perguntas como: “De quem é a Volkswagen,
afinal? Dos acionistas ou do governo brasileiro? É uma companhia da iniciativa privada na qual
investimos nosso dinheiro ou é uma estatal?”. Do irônico partia-se para o concreto. Este me acoitava,
mas eu não desistia. Aqueles argumentos não teriam o poder de me quebrantar. Como um padre, eu
começava meu sermão longo e enfadonho, em prédica racional e calma, apresentando números, volumes,
avanços nos sistemas produtivos, na economia de escala, prováveis redutores dos custos. Não convencia
ninguém. As admoestações eram severas; e a conclusão minha conhecida: “A persistir este estado de
coisas, não vemos outra saída, senão vender a fábrica do Brasil. Impossível conviver com um governo
que, muito hábil em taxar nossos produtos, tirando deles substanciais impostos (os mais altos do mundo!),
nos impõe medidas severas e inflexíveis, obrigando-nos a ter prejuízos. Por quanto tempo?”. Eu
realmente não sabia a resposta. Havia um bom período, batalhávamos em todas as instâncias
governamentais, ouvindo sempre decididas negativas ou promessas não cumpridas. Mudei o tom do meu
discurso: “Não se trata de miopia do nosso board, é cegueira definitiva. Não se abandona um mercado
como o brasileiro, do qual temos 65% de participação. Não se trata de um país qualquer! Mas de um país
com fartura de riquezas naturais — água, energia, minério, produtos agrícolas. Lá, além da concentração
de filiais das maiores indústrias automobilísticas do mundo, se produzem aviões, e se descobriu uma
tecnologia — o Proálcool, fonte de energia abundante, alternativa ao petróleo. A mão de obra farta é,
hoje, tão capacitada quanto a de qualquer outra parte do mundo. A população cresce, o mercado se
amplia. Onde vocês podem encontrar isso no mundo, um país em desenvolvimento de forma organizada?
Um crescimento de 5,6% até 7% são seguros e digeríveis. Não precisamos mais daqueles enormes saltos,
que podem se converter em incertezas e em altos e baixos dentro da economia. Governos passam, homens
que deles fazem parte também passam, mas a empresa permanece. Soberana, ela segue seu caminho a
despeito de medidas justas ou injustas. Fechar a fábrica seria voltar as costas a um mercado fantástico,
constituído por um povo muito generoso!”. Minha fala adiou por um tempo o fechamento da fábrica. Mas
eu sabia que sua sobrevivência não estava garantida por discursos inflamados. Havia uma evidência
sobre a qual nenhum encadeamento ordenado de argumentos sairia vitorioso. Ele carecia de lógica. Os
acionistas não queriam mais pôr dinheiro em um negócio que não dava lucro.
Até nosso sócio minoritário, dono de 20% das ações, o grupo Monteiro Aranha, não estava mais
disposto a arcar com prejuízos por prazo indeterminado. No passado recente, eles haviam sido
regiamente pagos com os dividendos de suas ações. Mas a ala jovem da família começou a pressionar o
dr. Joaquim Monteiro de Carvalho. Ele me procurou, pedindo que o ajudasse a vender 10% das ações do
grupo, pois a família queria sair da atividade automobilística, na qual não via um futuro promissor. Eu o
entendi e o ajudei a vender as ações.
Dentro de mim, eu sabia que os programas de investimentos tinham que estar diretamente ligados à
política econômica do governo e repetia incessantemente meu monólogo interior: “Ninguém no mundo vai
pôr dinheiro numa empresa que dá prejuízo”. A Autolatina estaria condenada à “morte lenta” mesmo sem
deixar o Brasil porque seria obrigada a reduzir muito os seus investimentos. Era uma pena, porque o
mercado interno brasileiro tinha tudo para ser bom. O que eu queria não era ter lucros extravagantes, mas
deixar de acumular prejuízos.
O governo era o do José Sarney, e seu ministro da Fazenda era o Dilson Funaro, um industrial com
todas as possibilidades de entender assuntos relativos ao setor. Tivemos várias discussões, mas o
governo permanecia inflexível.
Decidi interromper a produção do Fusca, mas achei conveniente avisar o Dilson Funaro. Encarreguei o
Jacy Mendonça dessa penosa missão. Ele relata sua conversa no governo:
— Ministro, estou aqui para lhe informar que vamos desativar a linha do Fusca.
— Não, não — disse ele. — Vocês não podem fazer isso.
— Não vim aqui para perguntar se podemos ou não. Estou aqui apenas para informar-lhe. Fui
encarregado de lhe dar essa informação por uma cortesia à sua autoridade.
— Então me diga, quanto vocês precisam de aumento para manter a linha?
— Não vim pedir autorização para fazer um aumento, ministro. — Mas de quanto vocês precisariam?
— Entre 40% e 50% para termos uma rentabilidade razoável.
— Isso eu não dou!!
— Reafirmo, ministro, não estou aqui para pedir aumento de preço.
A partir daí, abriram-se as portas para o diálogo, levando-nos a discussões que resultaram em um
acordo, segundo o qual o controle de preços seria eliminado. Em compensação exigiam que fizéssemos
investimentos. Não se tratava do resultado de uma conversa privada com o ministro, mas de uma reunião
formal conduzida pelo ministro acompanhado pelos seus assessores. Era uma questão oficial, chancelada
pelo Ministério da Fazenda.
Fizemos um documento formal, assinado por ele, garantindo que as montadoras tivessem a permissão
de reajustar os preços de acordo com os custos. Tratava-se de um protocolo firmado entre o então
ministro da Fazenda, Dilson Funaro, e a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores
— Anfavea, em abril de 1987. Entre outras questões, constava também deste protocolo a redução dos
encargos fiscais aos níveis de novembro de 1986. Em contrapartida, as montadoras investiriam no Brasil
aproximadamente um bilhão de dólares e se comprometeriam a exportar US$7,2 bilhões e gerar saldo de
balança comercial de no mínimo US$4,5 bilhões. Embora não constasse do protocolo, na divisão entre as
montadoras feita na Anfavea, caberia à Autolatina investimentos de duzentos milhões em 87 e duzentos e
cinquenta milhões em 88. Eu havia cumprido ao pé da letra a parte que nos cabia no protocolo. Contudo,
o ministro foi acometido por uma séria doença. Visitei-o várias vezes no hospital Oswaldo Cruz. Ao
longo desse tempo de negociações, tornamo-nos amigos. É claro que, dadas as circunstâncias, o
protocolo assinado não entrava em nossas conversas, até porque em nosso entender ele era definitivo. Na
penúltima vez que fui ao hospital, eu estava com viagem marcada para a Alemanha. A esposa do Funaro
me disse que precisava de alguns remédios inexistentes no Brasil e pediu-me que os trouxesse de lá.
Imediatamente acedi. Na minha volta, com os medicamentos no bolso, fui visitá-lo. Encontrei-o muito
disposto, lúcido, alegre mesmo. Ele sentou-se, com as costas eretas apoiadas por um travesseiro, e cedeu
espaço para eu me sentar ao pé de sua cama. Ali ficamos horas falando sobre o País e suas imensas
possibilidades e sobre os planos dele para quando voltasse à ativa. Nossas esperanças de um Brasil
grande eram comuns. Ele estava em plena posse de suas faculdades mentais e expressava suas ideias com
muita clareza. Saí de lá aliviado, acreditando em uma recuperação próxima. Fui para meu escritório.
Quando lá cheguei, recebi o recado: dez minutos após minha saída, ele faleceu. Lamentavelmente, foi
uma grande perda para a nação brasileira.
Substituiu-o Bresser-Pereira. Aguardei algum tempo depois de sua posse para abordar o assunto do
CIP. Eu levava o protocolo assinado pelo seu antecessor:
— Ministro, tenho aqui um documento assinado pelo então ministro Funaro, sobre mudanças no
Conselho Interministerial de Preços e outros itens relativos à indústria automobilística.
— Sim, mas eu não posso cumprir uma promessa com a qual eu não concordo. Agora, o ministro sou
eu. E o CIP continua.
— Mas, ministro, aqui estão a palavra e a assinatura de um homem que representava o governo.
Imagino que este seja um compromisso assumido pela então autoridade máxima do seu ministério. Para
mim, é a palavra do governo. O senhor representa o mesmo governo com a mesma política, a mesma
filosofia!
— O senhor se engana. Debelar a inflação é a nossa meta, e o CIP é o mecanismo de que dispomos
para atingir nosso objetivo. O Estado vai perder o controle sobre a indústria, e o País vai quebrar. Não
posso manter uma palavra que não empenhei. Este protocolo não tem validade jurídica, porque foi
firmado segundo as regras do decreto 63.196/68, revogadas pelo decreto-lei/87 do Plano Bresser.
— Isso não é possível. É inaceitável, intolerável! Cumprimos à risca nossa parte do acordo.
O ministro permaneceu inabalável. Aturdido, deixei o ministério. Retornei ainda outras vezes, tentando
fazer o ministro entender a legitimidade do nosso pleito. Nada o demovia de sua decisão inicial. O
Jornal do Brasil falava de “uma queda de braço entre Wolfgang Sauer e o então ministro da Fazenda,
Bresser-Pereira”. Não era isso que eu pretendia, mas ele não me deixava alternativas. Entre ele e a
sobrevida da Autolatina no Brasil e dos milhares de empregos por ela garantidos, optei pela segunda.
Consultei nossos advogados. Na minha cabeça, mil ideias trabalhavam simultaneamente. Segui a que me
parecia mais pertinente: juntar o parecer de cinco juristas renomados, incluindo o de Paulo Brossard,
então ministro da Justiça. Assim o fiz. Todos foram unânimes: “O Conselho Interministerial de Preços é
anticonstitucional”. Depois de obter a segurança de que eu estava certo e depois de várias noites sem
dormir, decidi processar o Estado Brasileiro. Consultei vários amigos no governo. Todos me pediam
calma. Eu não queria envolver nenhum deles. Meu grande amigo Paulo Tarso Flecha de Lima advertiu-
me: “Sauer, eu sei que você tem razão, mas esse é um assunto muito complicado. Vá com muito cuidado”.
Avisei o então ministro Paulo Brossard, assegurando-lhe que, para não colocá-lo em situação
constrangedora, não usaria seu parecer, pois ele era um dos ministros do Estado, que eu iria processar.
Ele me respondeu claramente: “Sauer, direito é direito, e não tem dois nomes diferentes. Defendo aquilo
que escrevi, e você não precisa tirar meu parecer da documentação a ser juntada ao processo. Minha
posição está declarada no meu parecer. Pode utilizá-lo”. Mas não fiz uso dele, embora tenha ficado muito
feliz com sua atitude por constatar que, num ministério tão importante como o da Justiça, havia um homem
de grande caráter.
Eu entendia que os primeiros meses de liberação de preços para a indústria automobilística seriam
desastrosos, com altas de preços não somente para os consumidores, mas também para os fabricantes.
Mas, depois, tudo voltaria ao normal, as leis de mercado regulariam os preços. Quem mantivesse os
preços muito altos não teria para quem vender, sendo forçado a reduzi-los. Era preciso olhar para a
história recente, quando não havia o controle de preços e prevalecia a prática do livre mercado. Não
tínhamos um único dia de greve, e todo mundo estava satisfeito por trabalhar na indústria automobilística.
Apesar das muitas advertências e das muitas considerações sobre a insanidade daquela minha atitude,
dentro de mim eu tinha a convicção de que eu ganharia o processo. Loucura? Intuição? Sexto sentido?
Poderia ser a junção desses elementos, mas a força que me movia era baseada em raciocínio, em análise
e, confesso, em uma boa dose de revolta e inconformismo pela injustiça de uma medida que não apenas
limitava a iniciativa privada, mas a condenava à estagnação.
A maioria das indústrias que sofriam com o mesmo processo calou-se. Exceção feita à Mercedes-Benz
e à Bosch, que me apoiaram integralmente, e à Associação Brasileira de Revendedores Volkswagen, que
chegou a ir aos jornais em defesa da minha ação, as demais fecharam suas bocas, mergulhando em um
incompreensível silêncio. Quem me alertava dizia: “Você está colocando sua cabeça na guilhotina”. Eu
sabia que eu estava pondo em risco a minha carreira, mas eu não podia titubear. Não pedi permissão para
a Alemanha ou para os Estados Unidos, apenas os avisei.
Entrei com mandado de segurança impetrado contra o ministro de Estado da Fazenda, na qualidade de
presidente do Conselho Interministerial de Preços. Nosso advogado Leo Krakowiak, para mim o melhor
advogado tributarista do País, fez um trabalho estupendo. Seu escritório esteve empenhado na elaboração
e no seguimento do processo, dando-me segurança de ter atrás de mim um suporte excepcional.
O subprocurador-geral da República enviou um parecer ao Tribunal Federal de Recursos (TFR),
levantando a possibilidade da realização de uma perícia contábil na Autolatina para verificar se a
empresa estava realmente sofrendo prejuízos em decorrência da política econômica do governo. Segundo
ele, o protocolo firmado entre a Anfavea e o então ministro da Fazenda, Dilson Funaro, não se tratava de
um ato jurídico capaz de criar obrigações e direitos. Para ele o documento não passava de uma simples
carta de intenções ou roteiro de propósitos.
Sem consultar meus concorrentes, aumentei os preços dos produtos Ford em 25% e os da Volkswagen
em 28%, quando o que nos impunha o CIP era 16,7%. Entendíamos que era preciso apertar os cintos em
épocas difíceis e já o havíamos feito desde o ano de 1981. Agora precisávamos de uma economia
positiva e de uma situação de rentabilidade razoável para podermos continuar operando. Sem isso,
teríamos que nos curvar diante das ordens de nossas matrizes.
É claro que o barulho foi enorme! Em palestra na Unicamp para cerca de 100 pessoas, o ex-assessor
do ministro Dilson Funaro, Luiz Gonzaga Belluzzo, discursou: “Face à decisão da indústria em elevar os
preços de seus veículos acima do limite estabelecido pelo Ministério da Fazenda, deve o governo exigir
a substituição de Wolfgang Sauer, presidente da Autolatina, em 48 horas”.
Ganhamos o processo julgado pelo STF — Supremo Tribunal Federal. Depois de seis meses de luta,
extinguia-se o CIP. Estava resolvido o problema de controle de preços em todas as indústrias
automobilísticas e em todas as demais afetadas por aquele regime de controle do Estado, que,
praticamente, freava o desenvolvimento industrial e a evolução tecnológica, motores da economia de
qualquer país democrático.
Não tive minha cabeça decapitada, permaneci no Brasil e na Autolatina. Nunca ouvi uma palavra de
agradecimento, de aprovação ou desaprovação de qualquer um dos representantes das empresas
beneficiadas pela decisão. Não importa. Permanece a lição de que o empresário tem o direito e pode
lutar para defender seus interesses, conquistar mercados e obter resultados positivos. Mas só pode fazer
isso um empresário que tenha as “mãos limpas”, sem manchas em sua reputação. Eu tenho o orgulho de
dizer que nunca paguei um centavo de propina.
Fui até o gabinete do então presidente Sarney para lhe pedir desculpas por transtornos causados pela
minha decisão. Ouvi a seguinte resposta: “Sauer, você fez muito bem. O que você conseguiu foi a favor
do País. Você trabalhou pela evolução da iniciativa privada. A partir de agora, os empresários não
dependem mais do governo, e sim de sua capacidade de produzir mais, levando em consideração a
responsabilidade social com as pessoas que para eles trabalham”.
Deixo registrada minha gratidão à Justiça brasileira e, especialmente, ao meu grande amigo Leo
Krakowiak, seu colega e equipes de advogados que trabalharam incansavelmente neste processo para
demonstrar de que lado estava a razão. A decisão da Justiça demonstrou que prevaleceram os direitos
garantidos pela Constituição do País.
O SENHOR ECONOMIA
Naquela época, vivia-se muito dependente do Estado brasileiro. Em pouco tempo, o Sauer criou um
trânsito em Brasília, e todas as portas se abriam para ele. Falamos de um tempo, quando até os
preços eram estabelecidos pelo governo. Naquele ambiente burocrático, apresentávamos planilhas e
mais planilhas de custos e relatórios sobre câmbio, sem resultados. O Sauer passou a ser o líder
consultado pela imprensa porque falava, colocando em evidência assuntos de valor e interesse para
a economia do País, não apenas para agradar o governo, ao contrário, sempre que houvesse
necessidade ele se posicionava bem e era muito forte quando queria uma coisa.
No Bradesco, Alcides Tápias era o homem-chave da instituição. Segundo sua opinião, eu tinha uma
noção aprofundada das necessidades e aspirações de um segmento altamente representativo da
população. Ele continua: “Todo o mundo queria saber a opinião do Sauer porque as decisões dele
afetavam tudo”.
No Almanaque Abril – Quem é quem na História do Brasil, uma publicação que apontou os 500
personagens que ajudaram a construir o País, tive o privilégio de ser incluído na lista, abrindo um
parágrafo sobre o papel das multinacionais:
Mais de 400 jornalistas, vindos de todas as partes do País, encontravam-se no almoço oferecido
pela Volkswagen, durante o qual se realizava uma entrevista coletiva de imprensa, tendo como
estrela seu presidente, Wolfgang Sauer. O Sauer era considerado o mais carismático empresário de
todo o setor automotivo. Transformou-se em seu porta-voz. Inegavelmente, seu magnetismo atraía a
atenção de toda a mídia, e sua imagem na tela das televisões, nas capas de jornais, nos cadernos de
economia, nas revistas de negócios era garantia de audiência e de número dobrado de leitores.
Tornou-se uma figura nacional presente na mídia praticamente todos os dias. As pessoas queriam
saber suas opiniões e suas ideias. Para onde pendia a indústria automobilística, inclinavam-se os
demais setores industriais. Depois da reunião, ele ainda continuava sua conversa com quatro ou
cinco jornalistas de sua mais inteira confiança, entre os quais eu tive a honra de estar incluído.
Fumando seu inseparável charuto, ele continuava com sua voz bem modulada e seu forte sotaque
germânico, falando sobre as tendências no mundo e sobre os rumos indicados para o Brasil. Seus
pronunciamentos tinham um caráter muito positivo em relação ao País, mas, quando necessário, não
poupava críticas às medidas tomadas pelo governo e as fazia publicamente, sem nenhum receio. Em
ambos os casos, suas considerações eram muito relevantes. No dia seguinte, tínhamos farto material
e leitores ávidos pelas notícias sobre a economia do País. Todos nós sabíamos que, se o ano que
estava por vir fosse bom para a Volkswagen, o seria também para o Brasil. O vice-versa era
igualmente verdadeiro.
S. Stéfani, da revista Autodata, era àquela época responsável pelo setor automotivo da Gazeta
Mercantil. Na celebração do aniversário de cinquenta anos da Volkswagen, ele publicou sua matéria,
contando nossa história e me dando um título pomposo. Assim ele começa: “Quase um rei!”; e continua:
Os mais jovens certamente considerarão um exagero. Mas a verdade é que houve tempo, e nem tão
distante, em que bem pouco se fazia no País sem que o presidente da Volkswagen do Brasil fosse
consultado. Em meados da década de 70, militares no poder, cada vez que Wolfgang Sauer deixava
sua sala no primeiro andar da ala 2 da fábrica de São Bernardo do Campo, cruzava aquele corredor
com paredes de vidro que permitiam a visão completa da linha de montagem no piso térreo e tomava
o rumo de Brasília, DF, era o sinal de que lá vinham mudanças na economia. Se Sauer concordasse,
é claro. Misto de empresário, executivo, diplomata e, sobretudo, estadista, tudo muito bem
temperado por conveniente dose de elevado carisma pessoal — tinha, de fato, tal conhecimento da
realidade nacional e global e, sobretudo, tal liderança na área empresarial, que tornavam
aconselhável a qualquer ministro e a qualquer presidente ouvi-lo antes que qualquer decisão mais
grave fosse tomada. O poder de Sauer, por decorrência da Volkswagen do Brasil, apoiava-se,
contudo também em outros dois pontos, de igual ou até maior importância. Naquela época, 60% dos
veículos produzidos no Brasil saíam das linhas da Volkswagen, fundamentalmente abastecidas pelo
conjunto de indústrias de autopeças quase que exclusivamente formado por empresas nacionais. Era
a base da mais fina flor da elite empresarial nacional. Neste contexto, qualquer coisa que colocasse
em risco as vendas da companhia na prática punha em risco não apenas a maior empregadora e a
maior exportadora do País, mas, também, a elite empresarial nacional. Naquela época, qualquer
coisa que abalasse as relações com a Volkswagen resvalava, também, nas relações com o setor
como um todo na medida em que por sete anos consecutivos, de 1974 a 1981, o comando da
entidade máxima do setor, a poderosa Anfavea, permaneceu nas mãos de um executivo da
Volkswagen. Jornalista atuante em São Paulo interessado em entrevistar ministros tinha apenas que
ir até a Ala Oficial do Aeroporto de Congonhas e esperar a descida dos jatinhos vindos de Brasília.
Já entrevistar o Sauer era bem mais difícil. Com rara exceção de uns poucos jornalistas de sua
maior confiança — que vez ou outra tinham o verdadeiro privilégio de almoçar com ele no então
fechadíssimo restaurante da diretoria da fábrica, com direito a vodca, vinho e charuto —, a
imprensa, de forma geral, só conseguia chegar perto dele no almoço de fim de ano patrocinado pela
empresa. Aquele era um acontecimento nacional.
Miguel Jorge, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (2010), fala de seu
relacionamento comigo, quando exercia sua função de jornalista:
Ainda no Jornal da Tarde, sempre tive a preocupação de tentar ir além da notícia e da leitura dos
jornais, para me manter informado. Por isso, procurava o contato com executivos, visitava
empresas, inclusive as linhas de montagem, para conhecer processos produtivos. Isso me levou a ter
contato com muitos dos presidentes e diretores das companhias automobilísticas. Já como diretor da
redação do Estadão, essas iniciativas se aprofundaram — e meus contatos com Wolfgang ficaram
mais frequentes — com o ‘Alemão’, como carinhosamente era chamado por muitos, já presidente da
Volkswagen. Eu me lembro, lá pelos anos 83, em uma das muitas crises da indústria automobilística,
de quando Sauer anunciou que a VW precisaria dispensar cerca de três mil trabalhadores. Foi um
deus nos acuda: primeira página de todos os jornais noticiando o que seria a maior dispensa da
história do País. A reação do governo não se fez esperar, e o então presidente-general João
Figueiredo anunciou que ‘expulsaria aquele alemão da VW’. Eu me lembro como se fosse hoje: O
Estadão publicou o desabafo do general e, na mesma notícia, informava que aquela era uma ameaça
vã, pois o Alemão já tinha se naturalizado brasileiro havia muitos anos.
Mesmo depois de deixar o setor automobilístico, continuei e sigo sendo um entusiasta do carro
brasileiro. Não podemos destruir a nossa indústria automobilística. O País precisa dessa espinha dorsal
de desenvolvimento tecnológico. Não devemos nos dar ao luxo de importar automóveis em larga escala.
Quando olho para o tempo em que começamos, quando a palavra dada valia mais que contratos e nos
casos em que estes eram indispensáveis ficavam guardados nas gavetas, vejo os avanços que fizemos no
Brasil. Basta fazer uma comparação entre as indústrias existentes há sessenta anos e as que temos hoje.
Simplesmente, pode-se dizer que é um mundo novo. Não apenas nos avanços tecnológicos, mas também
na aceitação da responsabilidade social pelos seus líderes. À época em que começamos, tivemos ciência
de que o Estado não poderia resolver sozinho os problemas sociais e tomamos para nós a tarefa de
buscar soluções para as necessidades que compunham o conjunto dos elementos produtivos do País. A
questão permanece a mesma. Cabe às empresas, sejam as do agronegócio, as de exploração de petróleo,
as de minérios, as de construção, as de transporte, as metalúrgicas, as químicas, as de comunicação e as
de outros setores, a responsabilidade pela formação de um país com uma situação social mais
equilibrada.
Uma questão crucial para a qual devemos olhar com mais cuidado e nela concentrar nossa atenção
continua sendo a educação. Quando ouço que no Brasil atual se criam empregos em velocidade
desproporcional à formação de mão de obra qualificada disponível, vêm-me à memória os meus tempos
de Bosch. Sabíamos que os indicadores de educação no Brasil eram muito inferiores aos de outros
países. Era uma realidade a ser enfrentada. E o fizemos. Foi através da chamada ao aprendizado que
conseguimos formar operários capacitados a entender os sofisticados processos produtivos a ser
introduzidos em nossas fábricas. Um fato chamava muito minha atenção, quando estava na Volkswagen.
Diversas vezes fui convidado para fazer palestras na Faculdade de Engenharia, em São Bernardo do
Campo, e via uma multidão disposta a estudar até meia-noite, para no dia seguinte trabalhar para pagar os
estudos. Isso demonstra uma incrível vontade de vencer na vida, e é esse o maior motor de
desenvolvimento que um país pode ter. Nos anos 60, era difícil até conseguir levar engenheiros de São
Paulo para Campinas, porque ninguém queria morar no interior — e Campinas era interior. Depois,
aconteceu um grande processo de desconcentração industrial, com fábricas sofisticadas em grande parte
do território brasileiro.
Como à época que iniciei na Bosch e mesmo na Volkswagen precisávamos de mão de obra
especializada, plantamos dentro da empresa o princípio da educação. Apesar da evolução na questão da
educação, o País ainda ficou atrasado em relação aos outros que, naquele tempo, estavam em situação
igual ou pior que a nossa. É preciso revivificar aquilo que plantamos lá atrás, o princípio da educação;
primeiro através da escola, depois a partir de exemplos, qualquer indivíduo conseguirá entender que o
saber e a curiosidade são portas e janelas abertas para o mundo que os conduzirão a caminhos mais
propícios. O conhecimento lhe dará respostas para perguntas: o que posso fazer, onde posso trabalhar,
qual o caminho a trilhar a fim de mudar de patamar, alcançando o direito a uma vida digna e
participativa? Estou convencido de que este é o roteiro a ser seguido pelas novas gerações. Sem ele, não
há futuro. Para segui-lo, é necessário um país democrático, porque uma boa democracia com
pragmatismo aplicado na política e na administração do Estado dará aos cidadãos as condições de
evolução moral, intelectual e profissional, tornando cada vez maior o número de pessoas que possam
fazer parte de uma comunidade ética formada por aqueles que têm conhecimento para exercer influência
sobre o poder político de sua sociedade.
Outro fator que já vem sendo levado em consideração, mas necessita de aprofundamento, está ligado
às demandas éticas da própria sociedade. Os empresários e seus administradores devem estar atentos aos
valores públicos que a sociedade vem elegendo como sendo inalienáveis. De qual valor não podemos
nos afastar, independentemente do país onde estejamos, no Ocidente ou no Oriente? É a preservação do
meio ambiente. As empresas devem estar comprometidas com este fato, porque esta demanda é muito
premente e está espraiada como um valor muito forte, conclamando-nos a todos, porque a crise do
aquecimento global em diversas situações está chegando até nós.
Minha defesa do desenvolvimento brasileiro não se apoia apenas em uma indústria na qual estive a
maior parte da minha vida profissional. Conheço o País de norte a sul e vi incontáveis possibilidades de
progresso ainda inexploradas. Temos uma extensão territorial e uma concentração de recursos naturais
extraordinárias. Clima e solo propícios fizeram de nossa agricultura uma das maiores do mundo, logo
atrás dos Estados Unidos. Conseguimos ser competitivos, sem contar com subsídios. Este boom no setor
é recente, estamos falando de vinte cinco ou trinta anos. Até então, nossa agricultura era artesanal,
primitiva. Hoje, temos um setor moderno, com produtividade excelente numa demonstração clara da
capacidade do País de se organizar rapidamente em torno de uma atividade produtiva.
No exercício das minhas atividades, percebi que dois elementos são indispensáveis para o sucesso de
um negócio: ética e pragmatismo — que, a meu ver, podem caminhar lado a lado. Pragmatismo pode ser
resumido em duas palavras da língua alemã: zur sache, entendido por mim como “vamos direto à
questão”, ou mais simplesmente: “mãos à obra”.
A aliança destes princípios foi a coluna mestra da minha atuação como executivo. Ética e pragmatismo
devem estar presentes na política, nos negócios, nas empresas, nas universidades, nas escolas, na vida
familiar, no intercâmbio entre países, enfim, em todas as situações nas quais se vive em conjunto dentro
de uma comunidade.
Considero um desastre a falta de ética entre as lideranças, pois isto pode abalar nossos sistemas, como
aconteceu com a economia mundial, levada a uma de suas maiores crises, devido às especulações para se
ganhar dinheiro, sem limites, não se importando com os altos custos com que, agora, arca a sociedade.
Este é um exemplo claro de abandono total dos princípios éticos.
No âmbito das empresas, o capitalismo, sistema econômico no qual elas estão inseridas, funciona com
a aquisição do lucro, do dinheiro para ser reinvestido, do dinheiro movimentado para gerar mais lucro e
continuar o investimento. Neste campo, a honestidade deve prevalecer em propostas norteadas pelos
preceitos de reciprocidade, deixando de lado o conceito de que as vantagens devem ser unilaterais.
Quando benefícios e ganhos ficam apenas com um dos participantes do negócio, o outro tende a ser
aniquilado. A realidade e as dificuldades de hoje tornam cada vez mais evidente que não podemos viver
em campos antagônicos, em nenhum momento.
UM HOMEM DE TRÊS CIDADANIAS
Alemão, brasileiro e cidadão do mundo
Considerando o Sauer pelo amor que ele tem pelo Brasil, a princípio, eu o considerava um
espírito nacional. Rodando o mundo com ele, vi que esse conceito era estreito demais. O Sauer
via o Brasil dentro do contexto mundial, e seus princípios de ética e de empreendedorismo não se
restringiam ao país que ele adotou como sua pátria. Ele é um cidadão do mundo.
Joacyr Drummond, da Exportação VW
Durante boaparte da minha vida, estive sobre asas. Voei por vezes incontáveis. Tanto da
Varig como da Lufthansa recebi o certificado de pessoa que mais havia utilizado
seus voos. Sou agradecido à vida por ter colocado diante de mim a fascinante
tarefa de olhar e descobrir o mundo. Das viagens, já não tenho a conta. Dos lugares conhecidos, também
não. Permanece no meu cérebro a certeza de nunca haver deixado escapar uma brecha onde pudessem ser
inseridas as companhias que representei. Abri mercados, rompi fronteiras, comprei, vendi, fiz parcerias.
Ao ir de Stuttgart para o Porto, tinha uma cidadania: a alemã. Acrescentei mais uma: a brasileira. E, por
dever do ofício, adquiri uma terceira: a de cidadão do mundo. O curioso é que, nos dois países, naquele
onde nasci e no outro que me adotou, nunca me senti como se não estivesse em casa. Ambos são pátrias
minhas.
Conheci reis e rainhas, estadistas, líderes empresariais e líderes comunitários nos mais diversos
cantos do planeta. Com a maioria deles vivi experiências que enriqueceram minha vida, deles assimilei
muita sabedoria, com eles fiz grandes contratos e para eles mostrei a qualidade e a eficiência do produto
made in Brazil.
Hoje, olhando para trás, vejo que me dediquei quase em tempo integral ao meu trabalho. Até meus
amigos, com exceção do Kiko, em Portugal, e do Karl Gutbrod, conhecido na minha infância, eu os fiz
todos, e foram muitos, durante o exercício de minhas funções. Mesmo o Karl, mais tarde, veio trabalhar
comigo na Bosch. Embora as viagens fossem cansativas e umas seguidas das outras, reconheço que
minhas atividades me abriram as janelas do mundo. Foram lotes de maravilhas descortinadas diante dos
meus olhos: culturas desvendadas, costumes identificados, fisionomias de tons e contornos
diversificados, sons, ritmos, cores e sabores estimulando todos os sentidos. Apesar de ter feito muitas
viagens a lugares já antes visitados, como o Iraque, onde estive umas cinquenta vezes, durante nossas
operações, havia sempre algo novo revelando-se ao meu olhar. Fui um viajor interessado, curioso, ávido
de novidades, eterno buscador e colhedor de experiências fosse no trabalho ou fora dele.
Um grande amigo com quem tenho muitas afinidades e com quem estive em muitas partes do mundo,
vivendo fascinantes “aventuras”, o embaixador do Brasil na Turquia, Marcelo Jardim, de cuja amizade e
vastíssima cultura tive o prazer de desfrutar, esbanja sua generosidade, falando muito bem de mim.
Retribuo, lembrando que Marcelo Jardim pertence a uma elite que formou o Itamaraty. A excelência da
diplomacia brasileira fez escola no mundo, formou uma tradição e deixa uma herança que não deveria
jamais ser desperdiçada. Marcelo toma a palavra:
Sauer é um homem do mundo, cujos interesses vão além daqueles exclusivamente profissionais. Em
nossas conversas, foram-se identificando coincidências de pontos de vista, de opiniões, de
percepções sobre grande número de temas e se estabelecendo uma boa camaradagem. Aprendi muito
com sua experiência e visão da vida e de nosso papel no mundo. Nas muitas vezes que o encontrei
no exterior, pude perceber que qualquer que fosse o país, sua cultura e sua forma de ser, Wolfgang
Sauer nunca estava ali como um ‘peixe fora d’água’. Possuía, em todos, vínculos ou contatos com os
‘nativos’, fossem eles chineses em Beijing, nigerianos em Lagos, argelinos em Argel, poloneses em
Varsóvia ou em Gdansk e, até mesmo, alemães em Berlim. Uma vez, estávamos tomando um drink
no lobby do hotel Adlon, em Berlim, quando encontrou a empresária de música clássica Sabine
Lovatelli, a quem me apresentou e também ao maestro Claudio Abbado, que estava, na ocasião,
deixando a direção da Filarmônica de Berlim. Em Varsóvia, reuniu na embaixada em torno de sua
forte personalidade toda a cúpula dos estaleiros de Gdynia e de Gdansk, em torno de um projeto
para a constituição de uma joint venture entre aqueles tradicionais shipyards e parceiros potenciais
no Brasil. Estivemos juntos por ocasião de uma das várias iniciativas empresariais entre o Brasil e
a Alemanha, esta presidida por Hans Sthiel, em Stuttgart. O embaixador José Botafogo, à época
ministro da Indústria e Comércio, presidia a delegação brasileira. O momento era particularmente
importante, pois seria a ocasião para o primeiro contato oficial entre um ministro do governo
brasileiro e sua contraparte do novo governo alemão do SPD, que tinha como chanceler federal,
Gerhard Schröder, eleito nas eleições gerais ocorridas havia duas ou três semanas. Sauer,
literalmente em casa, trouxe o novo ministro da Economia, Werner Müller, ao encontro do ministro
Botafogo, selando, dessa forma, por intermédio de um brasileiro-alemão, o primeiro aperto de mão
entre os governos brasileiro e alemão. Ninguém melhor do que ele, em sua terra natal, para
oficializar aquele momento. Nessa mesma noite, Sauer nos convidou, a mim e ao ministro Botafogo,
para jantar. Sendo Stuttgart uma das mais ricas cidades alemãs, capital do poderoso land Baden-
Württemberg, pensamos em um grande restaurante de luxo. Qual não foi nossa surpresa, quando
nosso anfitrião nos levou a um modesto café em uma área fora do centro, onde comemos e bebemos
muito bem em um ambiente muito mais humano e acolhedor do que encontraríamos em qualquer
restaurante convencional e luxuoso. Era o lugar que nosso amigo Wolfgang frequentava em seu
bairro, durante a juventude. No dia seguinte, Botafogo e eu concordávamos que melhor homenagem
não poderia ter nos prestado nosso querido amigo Sauer, levando-nos a um café que fora um pedaço
de sua vida em sua cidade natal. Esse é o Wolfgang Sauer, generoso, sentimental e amigo de seus
amigos. Nenhum jantar no Tour d’Argent ou no Lasserre teria sido mais importante, nem para ele,
nem para nós. Em outra ocasião, na Argélia, estivemos juntos quando o então presidente Figueiredo
visitou aquele país. Ficamos Sauer, o então embaixador Flecha de Lima e o então conselheiro Ruy
Pinheiro de Vasconcellos e eu papeando até tarde da noite anterior ao fim da visita. Fazer negócios
com a Argélia era então complicado e difícil, além de termos de enfrentar a concorrência francesa,
que, apesar do trauma do conflito da independência, nunca deixara de ser uma referência
fundamental, sobretudo no campo dos grandes contratos. E era isso o que Sauer queria para a
Volkswagen e acabou conseguindo. Foram, enfim, muitos os encontros que tivemos em outras partes
do mundo. É plenamente reconhecido o quanto Sauer foi instrumental para a exportação dos Passats
da Volkswagen para o Iraque, país sempre complicado, isso à época de Saddam Hussein. Até hoje,
ao vermos na televisão cenas muitas vezes chocantes de atos terroristas perpetrados pelas facções
extremistas que ainda atuam ali, vemos na tela, volta e meia, um Passat brasileiro remanescente do
grande volume de veículos exportados para lá graças à engenharia exportadora de Sauer. Também
na Nigéria, que conheço bem, era espantoso o número de veículos do modelo Brasília que constituía
a coqueluche do mercado consumidor. Eram comercializadas ali sob o nome de Igala e ainda hoje,
me dizem, resistem bravamente, por sua robustez, às insuficiências logísticas ali tão marcantes,
alcançando ainda bons preços no mercado de carros usados.
Recordo bem a presença sempre marcante de Sauer durante a visita que o então presidente João
Figueiredo fez à China em junho de 1984. Era a primeira de um chefe de Estado brasileiro àquele
país, que na ocasião começava a despontar como uma possível potência, embora nada pudesse
prever o crescimento abissal de sua economia que faz hoje dessa nação o colosso que é. O então
ministro Saraiva Guerreiro, por indicação do ex-embaixador Flavio Perri, meu amigo dos bancos da
Faculdade de Direito da PUC, designou-me para coordenar as providências de logística e de
protocolo e organizar in loco a parte que corresponde ao Itamaraty nessas operações. A China não
me era desconhecida, pois havia servido lá por quase quatro anos. O então embaixador Paulo Tarso
Flecha de Lima propusera, e tanto o ex-ministro Guerreiro quanto o então presidente Figueiredo
aprovaram de imediato, que a visita presidencial, a primeira de um Chefe de Estado brasileiro à
China, tivesse, além da dimensão política natural, um forte componente econômico-comercial. Para
tanto foi decidida a realização de uma importante exposição industrial e comercial, cuja
coordenação coube ao então embaixador Júlio Cesar Gomes dos Santos, que chefiava o setor de
feiras e turismo no Itamaraty. A participação empresarial na visita foi maciça, e lá pontificava o
nosso Sauer, buscando identificar formas e meios de a Volkswagen do Brasil vir a exportar para o
mercado chinês. A presença de Wolfgang Sauer nessas viagens agregava ainda maior densidade à
comitiva empresarial, e ele era sempre interlocutor de membros influentes do governo. Em Beijing,
ele o fora do então ministro Delfim Netto e de Carlos Viacava, à época, diretor da Cacex, e, é claro,
do então embaixador Flecha de Lima, que com ele sempre trocava ideias.
Presidente da Ford, dentro da organização Autolatina, Luiz Carlos Mello faz sua observação: “O Sauer
é alemão, porque nasceu em uma determinada data em uma região da Alemanha, mas, na verdade, ele é
um cidadão do mundo, que trouxe sua visão internacional para o nosso País. No caso do CIP, apenas um
homem com ampla visão e coragem poderia pôr em execução um processo daquele porte. A luta que ele
empreendeu não foi a de uma empresa isolada, embora ele fosse dono de quase dois terços do mercado.
Ao fazer isso, demonstrou sua condição de estadista — com sua ação vitoriosa, ele abriu novos
horizontes para a indústria nacional como um todo”.
Um dos meus assessores, Reinhold Anton Track, tinha entre suas atribuições a coordenação de
palestras feitas em diversas instituições no exterior e, especialmente, na Alemanha:
O dr. Sauer era muito convidado pelas universidades alemãs para falar sobre os mais variados
assuntos. Havia grande interesse dos estudantes pelas relações entre o Brasil e a Alemanha. Em uma
dessas ocasiões, ele teve um problema, impedindo-o de viajar. Então, pediu-me que o substituísse.
Fiquei perplexo com a quantidade de alunos interessados em ouvir sua palavra. O tema era ‘A ética
profissional dos dirigentes de empresas brasileiros’. Falei para uma plateia enorme. Tratava-se de
uma palestra escrita por mim, mas com base nas ideias dele. Outro evento muito importante foi a
visita ao papa João Paulo II. O dr. Sauer tinha uma participação muito grande em nossa paróquia da
igreja alemã, no Brasil. Ele foi convidado para ir a Roma e participar de uma audiência com o papa,
juntamente com diversas personalidades mundiais. Dentre elas, ele foi destacado para falar. Apesar
de sermos católicos, ele e eu, foi o discurso mais difícil que preparamos, mas ele conseguiu
imprimir um tom de emoção e de fervor religioso.
Pedro Eberhardt, quando vice-presidente e presidente do Sindipeças, esteve junto comigo em várias
instituições brasileiras. Como amigo, fornecedor e parceiro, ele fala de algo que me emociona:
Minha família tinha grande afeição por dona Maria Sauer, mãe do Sauer. Ela era uma mulher muito
carismática. Minha mulher guarda até hoje um lenço que Maria lhe trouxe da Alemanha em uma de
suas visitas ao Brasil. Na despedida, ela sempre me dizia: “Cuida do Wolfgang por mim”. Esta frase
dita por uma mãe zelosa despertava risos, porque o Wolfgang era um homem muito forte, sem
necessidade de cuidados. Dono de uma autonomia invulgar, ele transitava por todos os lugares,
compondo uma união perfeita das características germânicas com o jeito brasileiro. Com muita
competência, dirigia uma companhia do porte da Volkswagen. Fora dela, tinha e ainda tem um jogo
de cintura político impressionante. Tanto nos governos militares quanto nos pós-militares, ele tinha
um trâmite incomparável em qualquer gabinete. Num campo ou no outro, tinha total domínio das
situações.
No final de 2001, fui convidado pelo então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, para
integrar o “Global Compact Advisory Council”. Esse conselho era formado por doze pessoas, e eu fui
nomeado como representante da América do Sul. Tinha esse grupo de pessoas a tarefa de encontrar
soluções para os impactos causados pelo processo da globalização, buscando alternativas que
atenuassem a vulnerabilidade dos países economicamente mais frágeis. Seguramente, o secretário-geral
das Nações Unidas contava com minha experiência sobre as cooperações entre os países, utilizando meus
conhecimentos das operações de exportação. As atividades do conselho eram muito interessantes,
exercendo seu papel muito bem durante os dois primeiros anos, período em que foram fixadas as regras
básicas de proteção aos países menos desenvolvidos. Estabelecia-se como princípio fundamental a
cooperação entre as nações nessa entrada da nova fase da economia globalizada. Recebi uma carta de
congratulações do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, enfatizando seu apoio ao
tema de globalização solidária e declarando sua convicção de que aquela meta só poderia ser
concretizada com o suporte da comunidade empresarial consciente de suas responsabilidades sociais.
A cada dois meses, eu ia para Nova Iorque. Encontrei pessoas muito inteligentes e interessadas na
promoção do sucesso econômico global, envolvendo todos, fortes e fracos, apesar da grande disparidade
entre ambos. Contudo, as reuniões deixaram de ser estimulantes, perdendo seu vigor inicial, pois as
opiniões eram muito divergentes. Esbarrava-se em uma pesada burocracia, um entrave para a evolução
dos trabalhos. Abandonava-se o caminho do pragmatismo, cedendo lugar à filosofia. No meu entender,
isso não tem como funcionar. Demonizada pelos defensores do status quo, enaltecida pelos destemidos,
afeitos a desafios e inovações, indiferente a opiniões exaltadas ou não, a globalização abriu seu caminho
e, de maneira avassaladora, tomou conta do mundo, rompendo barreiras e “muros” que separavam os
negócios entre os países. Acredito que esta família de nações formada pela globalização buscará meios
de convivência nos quais prevaleçam o respeito do grande pelo pequeno e vice-versa. Nesta questão, há
uma regra básica que sempre recomendei aos administradores de empresas grandes, médias ou pequenas:
cabe a cada um conquistar o respeito dos que dele dependem e daqueles de quem ele depende. É um
preceito relativamente fácil. Contudo, de tão simples e tão claro é, infelizmente, pouco respeitado.
Deposito minhas esperanças nos líderes empresariais mais jovens, alertando-os sobre as grandes
possibilidades do Brasil. Este País tem, além de um povo de natureza pacífica, um tesouro enorme de
capacidade em inúmeros setores. Acordado nos últimos 50 ou 60 anos, ele tem todas as chances de estar
no topo entre os líderes mundiais. Lamentavelmente, não poderei assistir a isto que prego há bastante
tempo, mas estou seguro de que a juventude de hoje e de amanhã trará este projeto do campo do sonho
para o terreno da realidade. Tenho muita fé nisso.
O ESTREITAMENTO DE LAÇOS ENTRE MINHAS
DUAS NAÇÕES: BRASIL E ALEMANHA
Wolfgang Sauer representa a perfeita e mais bem-acabada síntese da Alemanha com o Brasil,
comparável apenas, se tanto, àquela que marcou a vinda de seu compatriota Hans Staden, que
aqui chegou quatrocentos anos antes dele. Possui em sua forte e generosa personalidade a
melhor combinação de DNAs nacionais, isto é, da pátria onde nasceu e daquela que escolheu.
Por isso, o Brasil não perdeu tempo e o adotou e o naturalizou, incorporando-o ao nosso
contingente populacional de modo que ele faz parte hoje destes cento e noventa milhões de
brasileiros que o IBGE apurou no último censo.
Marcelo Jardim, embaixador do Brasil na Turquia
posso dizer que a indústria alemã no Brasil teve uma contribuição enorme na
Em geral, evolução industrial do País. O ex-ministro Delfim Netto me falou que nós fomos os
líderes, os impressores do industrialismo moderno no País, tendo a indústria
brasileira se adaptado no percurso dos anos à modernização industrial, adotando os conceitos
tecnológicos da automação, cujo início se deu na indústria automobilística.
Chegamos a um total de 1.320 indústrias trabalhando em nosso estado, o que faz São Paulo, Guarulhos
e Campinas formarem o maior centro industrial alemão, fora da Alemanha. Isto é um fato muito
interessante, porque, no princípio, a chegada da indústria estrangeira ao Brasil não era vista com bons
olhos. Éramos chamados de exploradores. Cultivava-se a ideia de que o País estaria sendo loteado para
ser entregue ao capital estrangeiro. Mas houve um brasileiro que teve coragem para enfrentar o problema
— Juscelino Kubitschek —, com quem tive a honra de conviver por algum tempo. Na minha memória,
permanece a imagem do homem que trouxe muitas contribuições positivas para o crescimento do Brasil.
Hoje, tem-se consciência do papel de destaque da indústria alemã na evolução industrial do País, pois as
empresas aqui instaladas trouxeram a cultura industrial alemã, com uma noção muito clara da
interdependência entre quem necessita do trabalho e aquele que precisa do trabalhador. Dessa
compreensão já haviam nascido o respeito pelo trabalhador e a atenção às suas necessidades. As práticas
desse sistema foram introduzidas nas empresas vindas da Alemanha para o Brasil.
A Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha foi criada com o objetivo de buscar o
desenvolvimento das relações bilaterais e alcançar a excelência do intercâmbio entre os dois países.
Começamos trazendo empresas alemãs para o Brasil. Entre indústrias de setores vários, vieram também
as produtoras de autopeças e as farmacêuticas. Em palestra na Câmara de Comércio e Indústria Brasil-
Alemanha no Rio Grande do Sul, em 1995, eu ressaltava: “Chamo a atenção para o fato de que esta
câmara foi fundada no mesmo ano em que Juscelino Kubitschek começava o caminho do Brasil rumo ao
progresso. Seu dinamismo contagiou esta câmara, já que, ao longo do tempo, ela vem acompanhando o
crescimento do País. Esta evolução trouxe grande desafios para todos, mas permitiu às indústrias alemãs
instaladas no Brasil e aos seus fornecedores atualizar seus produtos, trabalhando com tecnologia
moderna. Abriram-se chances especiais para a participação de um processo de crescimento e
modernização através do contato com a Alemanha tecnológica, industrial, importadora e exportadora”.
Ao receber o Prêmio Personalidade Brasil-Alemanha 2000, em Berlim, embora continuasse pensando
que ainda havia muito a ser feito, rememorei o nosso começo, buscando estabelecer uma parceria entre o
Brasil e a Alemanha. Este prêmio foi instituído em 1995 e é entregue a duas personalidades, uma de cada
país, com o objetivo de homenagear e atestar o reconhecimento público às contribuições de ordem
pessoal, profissional ou cultural de pessoas que fortaleceram os laços de amizade entre os dois países.
Em minhas atividades na câmara, busquei trabalhar em prol das relações Brasil-Alemanha, tentando
sempre entender claramente o modo de pensar e agir, de certa forma descontraído, mas sempre
responsável, do povo brasileiro e identificar os pontos de sinergia com a nossa maneira de ser, para
permitir que ações efetivas nas questões bilaterais pudessem obter sucesso. Há quarenta anos, acertei um
encontro de industriais e dos governos da Alemanha e do Brasil, alternando os locais de realização, uma
vez no Brasil e outra na Alemanha. Este evento começou com a Comissão Mista, que naquela época era
formada por parte da indústria brasileira e parte da indústria alemã. No início, era restrita, na totalidade,
não mais de trinta pessoas. Expandiu-se de tal forma que, em 2009, tínhamos 1.200 pessoas,
participando, na cidade de Vitória, no Espírito Santo. Este é um evento único no mundo. Em 2010, foi em
Munique e, em 2011, foi no Rio de Janeiro. Esses encontros visam ao fortalecimento das relações
bilaterais, nos âmbitos empresarial, econômico, social e cultural. Acho que logrei êxito naquilo a que me
propus, ou seja, na promoção da interação entre as duas nações. No começo, era uma parceria. Hoje, já
não a vejo assim. Trata-se de uma irmandade. Não somos parceiros, somos irmãos. Tenho muito orgulho
de haver participado intensamente do estabelecimento dessa reciprocidade, aprofundando o vínculo entre
essas minhas duas nações.
Criamos no Brasil um Conselho Integrado das Câmaras Alemãs, com sedes em São Paulo, Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul, com revezamento de seus presidentes, cabendo a cada dois anos a eleição
de um representante de uma dessas três cidades. Desde a sua criação, o Conselho Integrado cumpre sua
função de promover o aperfeiçoamento profissional, educacional e industrial, incluindo as relações
comerciais, financeiras e econômicas entre o Brasil e a Alemanha.
Na opinião de Ozires Silva, as contribuições tecnológicas trazidas da Alemanha foram essenciais para
o Brasil: “O Sauer é o alemão mais brasileiro que eu conheci. Ele abraçou realmente o Brasil e foi muito
dedicado à sua missão, prestando serviço não só para os acionistas da empresa, gerando lucros, mas
também trazendo contribuições de alto valor tecnológico ao país que o acolheu. Mesmo que ele não tenha
explicitado isso nunca, acho que um dos seus grandes méritos foi a participação efetiva da mundialização
dos produtos fabricados no Brasil. Ele veio para cá, evidentemente ligado à sua pátria, mas sem dúvida,
levando em consideração o caráter global dos produtos. Não era porque os produtos fossem feitos na
Alemanha que não pudessem ser produzidos no Brasil. Então, o Sauer foi, de uma forma até, eu diria, não
muito consciente, um dos pioneiros deste processo de globalização vivido hoje com muita intensidade”.
Reinhold Anton Track, que me acompanhou na organização de muitos dos encontros Brasil-Alemanha,
formou sua ideia a respeito das relações entre os dois países: “O dr. Sauer foi presidente da Câmara
Brasil-Alemanha e, não apenas durante o exercício desse cargo, mas, também, posteriormente, teve um
papel preponderante no desenvolvimento do intercâmbio entre as partes e na vinda de empresas alemãs
para o Brasil. Seu nome na Alemanha e no Brasil era muito forte, e sua palavra tinha muito peso, pois
suas afirmações eram a garantia de que se estava indo na direção correta. Ele tinha uma força incrível de
persuasão para fazer valer suas ideias, explicando-as com muita clareza, sempre muito entusiasmado
arrastava os demais com sua força criadora, fazendo com que quem estivesse ao seu lado abraçasse seus
ideais e caminhasse adiante na concretização deles. Sou suspeito para falar porque, trabalhando ao lado
do dr. Sauer, aprendi a admirá-lo muito, mas, no meu entender, ele foi o melhor presidente que a Câmara
Brasil-Alemanha já teve. É também indiscutível a posição de destaque do dr. Sauer dentro da
Comunidade Alemã no Brasil, através de suas participações no campo da cultura e nas atividades de
cunho social”.
Merece destaque neste processo de evolução das relações entre os dois países, o papel de Günther
Lipkau, que presidiu a câmara e foi por muitos anos o braço do Dresdner Bank no Brasil. Editou os
Relatórios Econômicos sobre o Brasil, que se tornaram uma leitura muito útil para empresários alemães
com interesses no País. Quando presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha,
escreveu um livro sobre os setenta e cinco anos da instituição, tendo como tema o desenvolvimento
econômico do Brasil e o relacionamento entre os dois países.
Dentre muitos dos meus amigos agraciados com o Prêmio Personalidade Brasil-Alemanha, destaco um
por quem tenho admiração profunda. Isto aconteceu em 1995. Ele foi escolhido quando exercia o cargo
de chairman da Rio Doce Internacional, em Bruxelas. Falo de Eliezer Batista. Recebeu o prêmio pela
sua posição visionária nas relações entre os dois países e a concepção de desenvolvimento, atuando
como forte aproximador de empresas alemãs aos projetos de infraestrutura no Brasil.
Ao narrar as minhas andanças pelo mundo, o embaixador Marcelo Jardim menciona: “O
reconhecimento da enorme importância empresarial e política do Sauer veio através de muitas láureas
justamente recebidas. Entre elas uma vai para o topo, quando se fala de Brasil e Alemanha. Foi escolhido
por unanimidade o Homem do Ano Brasil-Alemanha, homenagem recebida em Berlim, logo após o
retorno da sede do governo alemão àquela cidade, na virada do século. Tive o privilégio de poder
abraçá-lo naquela noite de alta categoria e de presença recorde de personalidades dos meios
empresariais, financeiros, políticos e acadêmicos no grande banquete realizado no Hotel Intercontinental,
no lado Ocidental da capital”.
Outro eminente participante desta homenagem da qual muito me orgulho foi uma das pessoas por quem
tenho admiração e reconhecimento pelo seu trabalho no Ministério da Fazenda. A ele devemos as
diretrizes da política econômica que colocou o Brasil nos trilhos do crescimento. O então ministro Pedro
S. Malan esteve entre as marcantes presenças daqueles que me deram a honra de participar de uma noite,
para mim, consagradora. Diz o ex-ministro: “Lembro-me da homenagem que recebeu em Berlim: Prêmio
Personalidade Brasil-Alemanha 2000, concedido pelas Câmaras de Comércio e Indústria dos dois
países, por ocasião da visita do então presidente Fernando Henrique Cardoso àquele país. Justíssima
homenagem a quem dedicou décadas de sua vida à aproximação entre os dois países e ao
desenvolvimento econômico e tecnológico da indústria brasileira”.
Em todos esses anos, com a dedicação de outros colegas brasileiros e alemães, procurei fazer a minha
parte. Espero ter a oportunidade de continuar trabalhando intensamente para que o relacionamento entre
os dois países continue forte, sólido e cada vez mais próximo. Porque Brasil e Alemanha merecem.
NEM CANTOR, NEM MUSICISTA, APENAS UM
AMANTE DA MÚSICA
sempre teve o poder de me enlevar. Quando ainda menino, ao pisar no palco do teatro
A música onde eu fazia parte do coro da Ópera de Stuttgart, tinha a sensação de entrar em outro
mundo, onde beleza e encantamento se reuniam, exercendo um fascínio sobre a minha
mente. A riqueza das composições, a combinação harmoniosa de sons, o lirismo e o sentimento de prazer
advindo do canto compunham a magia reinante no ambiente. Apesar das insistências de mamãe para que
eu tocasse violino, seguindo os passos de meu pai, nunca tive nenhum pendor pelo manejo das cordas,
contudo cantar provocava em mim uma espécie de exaltação do espírito. Todas essas sensações foram
interrompidas pela guerra e adormecidas temporariamente pela brutalidade dos acontecimentos. A luta
pela sobrevivência e os trabalhos chamando-me para uma atividade totalmente oposta levaram-me para
outras direções, contudo, apesar do pouco tempo de convivência com ela, a música enraizou-se dentro de
mim.
Em Campinas, comecei uma atividade cultural que tinha na música seu fio condutor. Em São Paulo,
junto com o José Ermírio de Moraes, começamos a formação de uma orquestra, trazendo do Leste
Europeu músicos para compor aquilo a que, pretensiosamente, imaginávamos transformar em uma
orquestra sinfônica. Contudo, nossos contratados vinham de bom grado para o Brasil, permaneciam
algum tempo no grupo que teimávamos em formar, mas logo se entregavam a outras atividades mais
estimulantes que participar de um conjunto ainda desafinado e sem grandes perspectivas de sucesso em
um país voltado para outra cultura musical.
Em 1971, conheci Sabine Lovatelli, recém-chegada da Alemanha, com o sonho de trazer para o Brasil
o Mozarteum. Ela narra a forma como começamos um dos mais importantes projetos para incentivar a
cultura e o gosto pela música erudita no Brasil: “O dr. Sauer foi o precursor. Abraçou essa ideia e, como
era uma personalidade muito importante e muito ouvida, conseguiu juntar em torno dela participantes das
grandes indústrias”. Quem logo me seguiu foi o parceiro em nossa primeira aventura nessa área, o José
Ermírio de Moraes. Logo em seguida, veio para o nosso grupo o Leon Feffer. Outros nos seguiram, e
acabamos tendo trinta e nove participantes de indústrias nacionais e estrangeiras. Era um fato inédito.
Como confirma Sabine Lovatelli, esses patrocinadores ajudaram muito: “Eles depositaram muita
confiança no projeto, porque, à época, ninguém conhecia o Mozarteum. O dr. Sauer foi o líder,
funcionando como uma espécie de fiador moral, porque foi a palavra dele que juntou essas pessoas em
torno de uma atividade cultural. Foi ele quem abriu o caminho. Hoje, temos um nome e continuamos a
contar com a confiança dos patrocinadores, permitindo-me fazer até o momento trinta séries do
Mozarteum Brasileiro. Evoluímos muito nossas atividades com o intuito de estender a cultura musical a
toda a população. Fazemos concertos ao ar livre, no Ibirapuera, temos uma quota de bilhetes gratuitos
para estudantes, temos o clube do ouvinte — uma introdução aos concertos —, organizamos
Masterclasses, abertas para jovens músicos. Assim, o público tem acesso à música interpretada por
orquestras e cantores líricos renomados que atuam nos palcos das mais importantes casas de espetáculos
do mundo. Temos que contar muito com a fidelidade de nossos patrocinadores, porque a lei brasileira
corta nossas asas, fazendo-nos ter que, a cada ano, começar tudo do zero, porque não podemos fazer um
planejamento financeiro para o ano vindouro. A lei proíbe. Preciso programar uma orquestra com a
antecedência de três anos, mas não posso dispor do dinheiro dos patrocinadores, porque o governo não
dá o incentivo. Neste caso se tem um espelho do interesse das indústrias brasileiras, porque, apesar
desses obstáculos, elas patrocinam oitenta por cento do orçamento do Mozarteum. A bilheteria entra com
apenas vinte por cento. Nosso voo mais audacioso aconteceu com o início de uma escola de música na
favela de Heliópolis, aberta não apenas para os habitantes da favela, mas também para outros vindos de
fora com o desejo de aprender música. Entre os participantes, temos alunos de vários locais de São
Paulo, de Manaus e de Curitiba. Hoje, já temos uma orquestra constituída, que, a cada ano, tem seu lugar
garantido em um espetáculo do Mozarteum, conduzida por regentes de orquestras internacionais,
acompanhando solistas de renome no cenário mundial. As apresentações têm tido grande sucesso.
Anualmente dez alunos dentre os melhores são enviados para as escolas de verão na Alemanha e Áustria.
Os resultados são surpreendentes, eles retornam mudados, mais sérios, sabendo o que querem, capazes
de se integrar em culturas totalmente diferentes das deles, entendendo a necessidade de conhecer uma
língua estrangeira. A orquestra foi formada em parceria com o maestro Baccarelli há cinco anos, mas as
aulas foram iniciadas há dez anos. Em 2010, eles foram para a Alemanha em uma turnê da qual fizeram
parte o festival de Bonn e espetáculos apresentados em Berlim, Dresden e Munique. Tudo foi filmado
pela Deutsche Welle, com transmissão para 160 países. Estavam muito bem preparados para viajar e
para ser reconhecidos. Tudo isso é fruto do trabalho do Mozarteum, iniciado lá atrás pelo dr. Sauer”.
Reinhold Track se lembra de muitos músicos que trouxemos da Polônia e da antiga Tchecoslováquia
para concertos e cantos em nossa paróquia. Sua esposa, Maria JohannaTrack, faz uma narrativa
interessante de um concerto de órgãos realizado no mosteiro São Bento: “O dr. Sauer trazia muitos
artistas de fora e patrocinava muitos espetáculos para entidades de assistência filantrópica. A audiência
era enorme, pois convites da Volkswagen dificilmente eram rejeitados. Houve um episódio do qual me
lembro claramente. O dr. Sauer, quando chegava a algum lugar, atraía como um ímã as outras pessoas,
pois tinha personalidade forte e muito carisma. Levei mamãe, uma senhora com mais de oitenta anos, a
esse concerto no mosteiro São Bento. Ela o viu caminhar pela nave central. Imediatamente, puxou-me
pelo braço:
— Aquele homem é o meu tipo! Não gosto de pessoas desbotadas, de pele branca, olhos claros e
cabelos muito loiros. Gosto deste contraste de cabelos pretos com olhos de azul intenso.
— Mamãe, aquele é o dr. Sauer, presidente da Volkswagen.
— Não importa quem ele seja! Ele é muito bonito.
Ele se dirigiu a nós, sabendo quem ela era, abraçou-a carinhosamente. Ela, sem ter a menor ideia de
quem ele era, retribuiu o abraço. Quando ele se afastou, ela repetiu:
— Eu disse. Ele é meu tipo!”
A ORDEM DA CRUZ DE MALTA: UMA PRESTIGIOSA
MISSÃO
“Na minha definição da atuação do Sauer como empresário, busco a palavra grega: holística. Holos, em
grego, quer dizer olhar a parte pelo todo, e não o todo pela parte. É necessária uma compreensão integral
do mundo, e não uma visão parcial dele. É muito diferente uma coisa da outra. Pode-se ter uma visão de
dentista, que olha para baixo, para dentro, ou a de um pássaro. A que realmente importa é a do pássaro,
porque tem a visão do todo, possibilitando a visão do contexto do entorno. Incluo o Sauer na lista
daqueles que têm a visão do pássaro. Além disso, é um homem de uma coragem cívica muito grande. As
coisas eram difíceis, mas ele as enfrentava. Eu me lembro dele vendendo automóveis no Iraque, fazendo
transações complexas naquela época. É uma grande figura, e eu gosto muito dele.
O País deveria ter mais reconhecimento. Os povos tropicais são conhecidos como povos de pouca
memória, por isso eles não constroem muito uma tradição em relação a pessoas que trabalharam para o
país. O Sauer trouxe um grande benefício para o Brasil, criando empregos, permitindo ao governo
distribuir as riquezas que ele ajudou a criar. Este é um mérito muito grande. Então se deveria registrar, ter
uma espécie de cadastro das pessoas que fizeram isso para criar um estímulo para a juventude — olhe aí,
há o que fazer aqui!”
Eliezer Batista — primeiro presidente da Companhia Vale do Rio Doce, ministro de Minas e Energia
em dois governos e muitos outros ofícios no Brasil e no mundo.
“O Sauer tem uma característica ótima. Dono de extremo tato, extrovertido, alegre, ele faz parte de um
seleto grupo de pessoas que, quando estão em um lugar, todos sabem de sua presença. Ele não se eclipsa
de forma nenhuma. Como industrial, fez grandes investimentos em automação, confirmando sua vocação
de pioneiro e desbravador. Na Fiesp, uma de suas tendências era aproximar-se do pessoal que discutia
horizontes para o futuro, como era o caso da tecnologia. Vivíamos numa época de comunicação precária.
Comprava-se um telefone como se fosse um patrimônio, devendo constar na declaração de imposto de
renda de seu proprietário. Como grande visionário, o Sauer já tinha uma visão antecipada da
globalização. Sua noção de empreendimento tinha várias facetas. Começou com a educação e treinamento
de seus empregados para formar um know-how brasileiro, depois passou para o lançamento de produtos
criados e fabricados no País. Embora com a mente voltada para o futuro, não era um imediatista, não se
desviava dos projetos de longo prazo. Dentre eles, estava a educação, assunto permanente em suas
conversas. Partilhávamos da mesma ideia — a alavanca de sucesso da educação é crucial.”
Ozires Silva — criador da Embraer — Empresa Brasileira de Aeronáutica, presidente da Petrobras,
ministro de Estado de Infraestrutura, presidente da Varig e, hoje, reitor de universidades.
“A liderança de Sauer, tanto no setor industrial quanto no auxílio da moldagem da política econômica
brasileira, foi considerável.”
Camilo Penna — ministro da Indústria e Comércio — 1979-1985, presidente da Cemig, Furnas,
presidente do conselho de administração da Itaipu.
“A história da indústria automobilística no Brasil não poderia ser escrita sem referência a Wolfgang
Sauer.”
Pedro S. Malan — presidente do Banco Central (1993-1995), ministro de Estado da Fazenda (1995-
2002), presidente do conselho de administração do Unibanco e da Globex — Pontofrio, professor do
departamento de Economia da PUC – RJ.
“A meu ver, o grande mérito do Sauer foi colocar a Volkswagen a favor do Brasil. Com um pensamento
muito fora da média, ele tomou conhecimento da realidade brasileira e colocou a Volkswagen dentro
desse contexto. Ele é mais brasileiro do que alemão, com um conhecimento raro do território nacional.
Eu diria que o conhecimento leva ao amor, e foi isso o que aconteceu com ele. Admiro sua personalidade
e suas atitudes em relação ao Brasil. Conheço muitos empresários que fazem discursos sobre temas e
problemas nacionais, mas que na hora H, quando há necessidade de tomada de decisões, pensam
unicamente em sua própria empresa, em seu comércio, em seu banco, em seu próprio negócio.”
Shigeaki Ueki — membro da Alalc, consultor da OEA em Washington, ex-diretor comercial e
financeiro da Petrobras, ex-ministro de Minas e Energia, ex-presidente da Petrobras, ex-presidente do
conselho da Petroleum Finance Corporation, em Washington.
“Wolfgang Sauer é um homem sem medo de ousar, dotado de superlativa capacidade para entender
intuitivamente os fatos e por essa razão prever de forma acurada seus desdobramentos, conseguindo
muitas vezes influenciar seu desfecho. Combinando esse valioso potencial a um gerenciamento inteligente
da informação e a uma atualização permanente com o que se passa no mundo, Sauer pôde aplicar esse,
digamos, ‘capital próprio’ para antecipar escolhas e opções muitas vezes estratégicas nas empresas que
dirigiu e alcançar, em decorrência disso, os resultados positivos que marcaram sua trajetória e que
contribuíram para fazer dele um ícone no mundo dos negócios. Wolfgang Sauer sempre foi e segue sendo
um homem voltado para as atividades produtivas, nas quais a capacidade de assumir riscos é
indispensável. Suas atividades na direção da Bosch e da Volkswagen, para ficarmos apenas nessas duas
empresas, implicaram sempre priorizar a inovação e a criatividade que permitissem o desenvolvimento
de novas tecnologias e de novas iniciativas que iriam abrir portas para importantes saltos qualitativos e
conferir maior competitividade a ambas.”
Marcelo Jardim — embaixador do Brasil na Turquia.
“Gosto muito de falar da indústria automobilística porque fiz parte de sua implementação no Brasil, pois
estive ao lado do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. Ele fez de seu sonho um projeto
vitorioso que mudou a mentalidade do País, levando o carro ao povo. A Volkswagen facilitou muito a
difusão de um veículo integralmente voltado para aqueles que apenas ousavam sonhar com um automóvel.
O Sauer foi um empreendedor corajoso que nunca teve medo de dificuldades. O Brasil deve a ele uma
coisa muito importante na área de tecnologia. Ele criou um ambiente tecnológico de alto padrão em São
Bernardo do Campo, através da formação de engenheiros e técnicos, promovendo intercâmbios entre os
nossos e os estrangeiros. Além disso, na época da formação do sindicalismo brasileiro, soube muito bem
conduzir movimentos fortíssimos, mantendo o equilíbrio através de diálogo, sabendo negociar muito bem.
Quando estávamos juntos no exterior e eu dizia que ele era brasileiro, as pessoas me olhavam duvidando.
Com aquela cara de alemão, olhos azuis — sua aparência me contradizia, mas eu continuava afirmando:
‘Ele é brasileiro!’. O Sauer faz parte daquele grupo de ‘cavaleiros de indústrias’, como se dizia
antigamente. O que eram esses ‘cavaleiros’? Eram os empreendedores, os visionários, comprometidos
com o desenvolvimento do País, sem perder valores imprescindíveis à formação de uma nação. Eles
tinham a ousadia, mas, também, a classe de homens para quem a palavra dada era sagrada. Meu amigo
Sauer, com seu intenso carisma, suas atitudes que impunham respeito, com seu porte de homem grande e
forte, daqueles que entram num ambiente e, de imediato, polarizam a atenção, era indiscutivelmente o
cavaleiro que vinha à frente dos demais. E olha que tivemos grandes dentre eles. Não seriam em
quantidade suficiente para se desfiar um rosário, mas em qualidade, foram os construtores do setor
industrial da nação brasileira. O que se fazia nas automobilísticas estendia-se em maior ou menor
proporção para todas as demais indústrias.”
Paulo Tarso Flecha de Lima — ex-embaixador.
“Dentre suas inúmeras qualidades, o que mais chamava minha atenção sobre ele era a forma como
gostava do Brasil. Era tão apaixonado pelo País que se irritava e brigava com pessoas que acreditavam
que o Brasil não daria certo. Essa dúvida não existia em sua cabeça. Estava absolutamente convencido de
que o Brasil se tornaria uma grande potência e em nenhum momento admitia que houvesse dúvida a esse
respeito. Trocava governo, entrava governo, e ele persistia, continuava com sua crença inabalável,
tocando seus projetos empresariais sem nenhuma hesitação. Outra marca do Sauer era sua qualidade de
empresário à frente de seu tempo, com ótima reputação nos meios empresariais internacionais, onde tinha
amigos espalhados pelo mundo inteiro. Lembro-me de jantares em minha casa para os quais Sauer levava
pessoas notáveis, presidentes de bancos mundiais, figuras extraordinárias que, ao vir ao Brasil, a
primeira pessoa que procuravam era o Sauer, porque além de ser um apaixonado pelo País, conhecia-o
profundamente, tinha dele uma visão ampliada, sabendo identificar suas forças e seus pontos frágeis. Não
tenho dúvidas de que ele foi um dos maiores vendedores de Brasil, pelo mundo afora.”
Olavo Monteiro de Carvalho — presidente do grupo Monteiro Aranha.
“Acho imprescindível falar da idoneidade do Sauer, do seu caráter e de sua forma transparente de tratar
as questões. É um homem extremamente correto.”
Pedro Eberhardt — presidente das Indústrias Arteb.
“Como empresário, um dos maiores visionários que conheci. Estrategista, batalhador incansável e
obstinado na busca pelo resultado, o dr. Wolfgang Sauer sempre se mostrou um líder de equipe nato na
condução de projetos e empresas. O sucesso foi uma consequência natural da sua competência. Seu
trabalho para trazer o projeto de semicondutores para o estado de Minas Gerais é o resultado da
persistência, do conhecimento e da capacidade ímpar de olhar para o futuro.”
Marco Antônio Rodrigues da Cunha — diretor de gestão empresarial da Companhia Energética de
Minas Gerais — Cemig.
“Dentre as muitas qualidades do dr. Sauer, ressalto uma — o equilíbrio na condução de uma negociação.
Ele nunca deixava a discussão caminhar para possíveis atritos que pudessem comprometer a relação
entre as partes. Quando se estava próximo de um ponto extremo que não pudesse ser ultrapassado, para
não se expor a risco ou embaraço, ele sabia recuar, retomar a conversação a partir de uma nova
perspectiva, mantendo o controle da situação, sem ferir o ânimo dos interlocutores. Presenciei isto muitas
vezes. Vem-me a lembrança de uma negociação com os representantes do governo do Rio Grande do Sul
para onde deveríamos trazer uma grande montadora. Esgotadas todas as possibilidades de conclusão dos
negócios, cabia-nos a espinhosa tarefa de informar que não fora aquele o Estado escolhido pela empresa
estrangeira. Os gaúchos não se conformavam com a decisão, demonstrando claramente o sentimento de
rejeição por não haverem sido escolhidos. Entraram em cena as habilidades mencionadas do dr. Sauer.
Estabelecer a harmonia dentro daquele clima quase hostil era tarefa para quem tivesse o dom da
liderança e do equilíbrio. E ele o conseguiu.”
Diogo A. Clemente — ex-diretor de recursos humanos da Autolatina, presidente da DAC Consultoria.
“Só conhece bem o dr. Sauer quem teve contato direto com ele. É um verdadeiro armazém de
conhecimento, ética e classe. Tem uma memória incrível, nunca vi nada igual. Daria um ótimo ministro da
Indústria e Comércio ou conselheiro de qualquer governo. Como vendedor, o olhar dele é um perigo para
o comprador, porque ele tem uma força no olhar e através dela ele é capaz de convencer e de transmitir
segurança para quem com ele negocia. Antes de falar ou de expor seu produto, ele transmite confiança.
Era como se com o olhar ele magnetizasse as pessoas. Dentro da fábrica a educação, a humildade e a
gentileza encantavam as pessoas. Fora da fábrica era atencioso com os simples e com os grandes. Sabia
ser diferente, sabia respeitar, sabia cativar não importava o ambiente onde estivesse. Eu o vi atuar muito
no Iraque, fazendo amigos, ajudando outras empresas, conquistando a confiança dos iraquianos. Quando
se tem um ídolo, nunca se encontra defeitos nele. O dr. Sauer era meu ídolo e meu exemplo. Quando
comecei a participar de reuniões com ele, passei a copiar tudo o que conseguia, tentando assimilar todas
as suas qualidades. A única coisa que não tentei copiar foi o hábito dele de colocar um dente de alho em
um copo d’água à noite para tomá-la no dia seguinte. Dizia que fazia bem para a saúde e para a
circulação do sangue. Isso eu não copiei. O dr. Sauer, na fábrica, era nota 10; fora da fábrica, ele era nota
10; no Brasil, ele era nota 10; no exterior, ele era nota 10; na parte social, ele era nota 10. Ele era muito
querido.”
Sarwat Wahab — gerente de exportação de peças — Volkswagen.
“Nós estamos há quarenta e oito anos juntos. Ainda estamos noivos. Não nos casamos para não enfrentar
a monotonia das relações cotidianas, que podem comprometer a harmonia. Tenho a honra de ter Wolfgang
Sauer como amigo, desde o dia em que o vi descer do avião com uma bandagem na testa, mas tenho
também com ele uma grande responsabilidade. Sou seu procurador. A tarefa de administrar o dinheiro de
terceiros é muito difícil, porque exige de ambas as partes um clima de confiança absoluta. E é deste tipo
de confiança que eu desfruto com ele. O que dizer a ele, senão agradecer o entendimento e o respeito
profundo, que sempre foi recíproco. É preciso também enfatizar um dos principais atributos do Sauer:
seu carisma.”
J. A. Ferreira —
“O Sauer é notável como empresário. Mas não podemos olhá-lo apenas por esse ângulo. O homem,
Sauer, tem muito das características germânicas, mas uma boa dose da alma brasileira. As primeiras o
fazem capaz de articular os mais variados assuntos de forma muito objetiva. A segunda torna-o uma
pessoa com a qual é praticamente impossível brigar. O conjunto das duas faz dele um homem que sabe
defender com unhas e dentes o que quer, sem jamais perder o tato e a diplomacia. Essa ascendência
germânica misturada ao jeito brasileiro que ele adquiriu faz do Sauer uma pessoa forte e, ao mesmo
tempo, conciliadora.”
Carlos Sant’Anna — presidente da Petrobras (1989 a 1990), criador da Interbras.
“Nos acontecimentos mais importantes da Fiesp — Federação das Indústrias do Estado de São Paulo,
onde se reuniam os grandes empresários, o Sauer era uma figura de proa. Sua voz era ouvida, e suas
opiniões prevaleciam. Ele era, incontestavelmente, o grande líder da indústria automotiva.”
Mário Penhaveres Baptista — ex-diretor do grupo Comolatti, presidente do Sicap.
“Ele é dessas pessoas que, quando entram num local, chamam a atenção. É como se alguém invisível
colocasse um banquinho para elas subirem e ficarem mais altas e de lá irradiarem o seu brilho. Não que
ele precisasse, porque porte e físico privilegiado de um alemão forte e saudável ele tem. O fato é que, no
salão, se formavam vários grupos de pessoas conversando. Quando ele entrava, elas começavam a se
dispersar e a convergir para ele. Naquele recinto, onde se encontravam os expoentes da indústria
paulista, ele tinha um poder fabuloso. Ele era o dono da conversa. Na Bosch, ele era o homem do
diálogo, mas minha grande admiração por ele estava em sua capacidade de enxergar o futuro. Ele
propunha e defendia assuntos que para nós pareciam inviáveis. De repente, nós os víamos acontecendo.
Com uma capacidade de concentração invejável, ele consegue assimilar as coisas com rapidez, montar
uma estrutura, criando uma, duas até três alternativas, eleger a melhor delas, concentrar nela toda sua
força e incentivar todos os envolvidos a ir naquela direção. Quando ele falou em mil postos de serviços
da Bosch no Brasil, parecia uma brincadeira. Chegamos a mais do que isso. Há uma força — não sei se
inata ou fabricada pela vivência — que vem de dentro dele e arrasta as pessoas.”
Luiz Carlos Vieira — ex-diretor de vendas da Bosch.
“O dr. Sauer tem uma aura ou um carisma que logo cativa a pessoa. Sua figura trazia brilho ao ambiente,
quando ele entrava. É o que se chama de uma pessoa que tem luz própria. Ele sabia disso e utilizava
muito bem essas características. O alemão, em geral, é assim... um pouco distante. Precisa primeiro
conhecer a pessoa para depois, gradualmente, aproximar-se. Ele não. Era logo de casa, falava com todo
mundo, não importava se fosse negro, branco ou amarelo, tanto fazia, e isso conquistava as pessoas. Ele
não falava de forma diferente com os mais ou os menos importantes. Era igual com todos e sempre muito
espontâneo.”
Evelina Boelcke — ex-secretária da presidência da Volkswagen.
“Na indústria automobilística, definitivamente, não houve ninguém que representasse o segmento como
ele o fez. Era o presidente da Volkswagen, mas falava em nome de todo o setor em todas as instâncias.
Era o embaixador da indústria automobilística junto ao governo. Quando representantes de instituições
estrangeiras visitavam o País, ele era o primeiro a ser chamado para conferências, diálogos e até
reuniões mais informais. Conhecia muito bem o País, suas riquezas, seus pontos fracos e fortes. Nessas
ocasiões, enaltecia as possibilidades do Brasil, como se brasileiro fosse. Enfim, tinha status de ministro
de Estado. Simpatia e carisma foram marcas registradas na vida industrial e comercial deste homem.”
Miguel Barone — ex-diretor de vendas da Volkswagen.
“Eu sempre vi no Sauer um líder em quem eu devia me espelhar. Estivemos muito próximos, e eu
procurava bastante a Volkswagen. O Sauer me apresentava ideias, e eu lhe dava meus pareceres. Afirmo
com toda liberdade, com toda abertura e com toda a amizade: ele nunca tentou me ludibriar e, também,
nunca pensou que eu pudesse tapeá-lo. Éramos concorrentes vigorosos, Volkswagen e Ford. Então, na
vida militar, digamos assim, éramos grandes concorrentes e, na vida civil, tínhamos uma afinidade
tremenda.”
Newton Chiaparini — ex-vice-presidente da Ford, ex-presidente da Anfavea, membro do conselho da
Sabó.
“Sauer sempre foi de um dinamismo incrível, até no jeito: a maneira de olhar, de falar, de gesticular.
Nada em Sauer é morno, em tudo ele se mostra um emotivo, um entusiasmado. Fala de várias coisas ao
mesmo tempo, faz várias coisas ao mesmo tempo, pede várias coisas ao mesmo tempo. A Volkswagen
viveu seu período de maior esplendor durante os dezessete anos do comando de Wolfgang Sauer.”
Miguel Jorge — ex-redator do jornal O Estado de S. Paulo, ex-vice-presidente da Autolatina, ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior até dezembro de 2010.
“O Sauer tem um caráter único, uma pessoa cuja tônica da personalidade é ser muito amigo de seus
amigos e muito amigo daqueles que eram seus companheiros de trabalho. Ele foi muito fiel a essas
pessoas. Sem dizer palavra sobre o assunto, ele pregava, através de suas atitudes, o valor da fidelidade.
Teve retribuição da maioria daqueles que com ele conviveram. Desde o princípio, ele me inspirou
respeito por ser competente e por ter conseguido adquirir por si próprio uma cultura abrangente. É um
homem culto e, apesar de ser obstinado, com grande capacidade de liderança, com grande vontade de
lutar e vencer, é ao mesmo tempo um gentleman. É uma pessoa correta, de convívio muito agradável, um
homem de sucesso e um grande empresário.”
Manoel Bayard — ex-representante do grupo Monteiro Aranha na VW, ex-diretor do escritório da
Volkswagen no Rio de Janeiro.
“O Sauer é um homem de qualidades admiráveis. Ressalto uma delas. O toque criativo, o jeito de fazer as
coisas sem perder tudo o que ele já ganhou. Todos nós precisamos de uma certa quantidade de oxigênio
para viver. Sauer a tirava inteira do seu extraordinário trabalho.”
Alex Periscinoto — criador da Almap, atualmente na Sales, Periscinoto e Guerreiro.
“O Sauer tinha todas as qualidades para ser presidente de uma empresa como a Volkswagen e estender
sua atuação para várias direções como o fez, mas, a meu ver, sua característica mais marcante era a
liderança. Ele comandava, ia à frente e suas palavras e ações exerciam influência sobre as pessoas.
Como eu, ele também pensava que não se faz nada sozinho, uma boa equipe é fundamental. E o Sauer
formou um time fantástico na Volkswagen.”
André Beer — ex-vice-presidente da General Motors, ex-presidente da Anfavea, atual presidente da
André Beer Consult & Associados.
“Wolfgang Sauer é um dos fundadores da nossa indústria automotiva, que, em 2010, chegou aos 4 milhões
de unidades e continua crescendo. Ele faz parte de um grupo seleto que montou a indústria, a cadeia de
suprimentos e a cadeia de distribuição. Por mais que sejamos criticados, o fato é que temos uma indústria
forte que nasceu na década de 1960. Relativamente nova, porém reconhecida globalmente. Cresceu com
bastante vigor até chegar ao atual patamar. Passamos na frente de muitos países da Europa e somos, hoje,
um centro de criação de novos produtos e processos de produção.”
Luc de Ferran — ex-diretor da Ford e ex-diretor da divisão de caminhões da Autolatina.
“O Sauer é um grande empresário, mas é também um extraordinário vendedor com uma visão macro do
mercado. Sabe para onde está indo, para onde quer ir e como chegar até onde quer. Mas não se ocupa de
detalhes nem se prende a eles. Ele vai e resolve sem machucar ninguém, e isso é o que há de melhor.
Nunca o vi brigando com quem quer que fosse. Sei que ele teve decepções com algumas pessoas, mas
isso faz parte da vida. Entre os concessionários, todos gostavam muito dele a tal ponto que, quando ele
teve alguns problemas com o governo, todos nos alinhamos ao lado dele. Fizemos publicações em
jornais, utilizamos todos os meios para falar da reputação de um homem que sempre colocou a ética entre
seus principais valores.”
Carlos Roberto Franco de Mattos — presidente da Caraigá Veículos.
“Conheci o Sauer em 1970, quando começamos um relacionamento muito positivo. Ele é muito assertivo
e sempre deu muita segurança ao interlocutor, passando muita confiança a quem com ele negociava. Outro
traço marcante da personalidade dele é o dom da autoridade. Assisti à cena de que, na Volkswagen,
quando ele falava alguma coisa, todo mundo corria para executá-la. Isso, numa empresa daquele tamanho,
tinha um efeito multiplicador de resultado extraordinário. Como executivo, acho esta uma característica
admirável. Outro fator importante era a ausência de medo. Ele não tem medo de tomar uma decisão, uma
qualidade muito rara. Ele é impositivo, mas, por outro lado, é um bom ouvinte e sempre muito aberto ao
conhecimento de novas pessoas e de novas informações. O Sauer não tinha dúvidas sobre o
desenvolvimento do Brasil, um país, à época, questionado e questionável. Ele acreditava tanto no País
que a Volkswagen foi a primeira empresa multinacional instalada aqui a fabricar carros específicos para
o Brasil, com um sucesso tremendo, como foi o caso do Gol. Fez um trabalho extraordinário na
Volkswagen e mesmo na construção da Autolatina, que sempre foi um assunto polêmico. Na minha visão,
foi um ato de consolidação que acabará sendo feito nos próximos anos. A concorrência da indústria
automobilística no mundo é intensa, e não vai haver espaço para a sobrevivência de todos os que estão
aí. Agora está envolvido em um trabalho sobre energia solar.”
Luiz Lacerda Biagi — presidente da empresa B5.
“Eu tive a felicidade de conhecer este homem, de vê-lo entrando na Volkswagen. Digo felicidade porque
conheci um homem bom, um homem de bem. Não tinha temores reverenciais, admirava a inteligência, o
empreendimento, a bondade. Tratava de maneira igual o presidente da República e o seu operário. Teve
muito poder em suas mãos e soube usá-lo para o bem, porque sempre foi muito preocupado com o ser
humano. Sou de origem portuguesa, e em Portugal dizem que há certos homens que clareiam o nosso dia.
O Sauer, pela força do seu olhar, pela sua simpatia, pelo seu sorriso, pela sua positividade, pelo seu
otimismo, pela sua bondade, é um homem que clareia o olhar da vida. Eu não me lembro de uma
reticência profissional ou moral em relação a ele. É uma pessoa que tenho muito prazer em ver, em estar
em sua companhia e em me lembrar dele. Conheço pouquíssimas pessoas que têm as características de
unanimidade deste homem. Ele é admirável. Nos eventos da Volkswagen, os diretores que vinham da
Alemanha eram todos muito formais, pisando pesado; Sauer chegava leve, contava piada, tomava conta
da conversa, brincava, falava sério, fazia tudo muito bem. Todo mundo tem, mais ou menos, um tamanho
definido. O Sauer não tem tamanho. É um homem muito grande.”
Paulo Simões — presidente da Abolição Veículos.
“Sempre admirei muito o Sauer. Ele foi como um pai para mim, foi meu grande ídolo. Eu o respeito muito
e acho que ele foi um grande construtor do Brasil. Tenho grande carinho por ele e acho que ele também
gosta de mim. Na Volkswagen, ele era excepcionalmente forte e brilhante como executivo, fazendo com
que as pessoas a ele se apegassem, criando uma dependência grande. Foi quase uma geração e meia que
esteve sob sua condução, criando uma cumplicidade e uma parceria muito intensas. Como ele era um
realizador e conseguiu fazer quase tudo que planejou, sentíamo-nos e éramos participantes dessas
grandes conquistas. Seu brilho, sua força e o poder daquela imensa indústria se estendiam a todos nós.
Ele tratava a Volkswagen como se fosse dele, portanto era nossa também. Quando ele saiu, foi uma perda
enorme. Um trauma. Era como se todos tivessem perdido o pai. Se ele tivesse ficado no governo de três a
quatro anos, ocupando qualquer cargo, ele não teria conseguido fazer pelo País o que fez, sendo
consultado por vários presidentes e ministros no período em que ele esteve na Volkswagen. O Sauer não
foi apenas presidente da Volkswagen, ele foi um dos líderes empresariais mais importantes do Brasil.”
Christian Bruno Schües — ex-diretor de logística da Volkswagen.
“O Sauer era muito bem relacionado nos meios governamentais. A tal ponto que, um dia, no tempo da
Autolatina, eu assisti a uma cena de ciúme explícito de um dos representantes da Ford. Em uma das
reuniões de estratégia do produto, o senhor da Ford virou-se para o Sauer dizendo em tom irônico:
‘Então, Sauer, você não se dá tão bem em Brasília?! Vá lá e resolva!’. Por outro lado, este homem tão
bem relacionado nas altas esferas tinha com o ser humano uma preocupação incrível. Havia pessoas que
tinham problemas, mas desempenhavam bem suas funções, ele relevava o outro lado. Conheci todos os
presidentes que o antecederam. Ele foi o mais humano de todos. Precisávamos reduzir custos, e eu o
aconselhei: ‘Podemos utilizar robôs em várias linhas de produção’. Ele levou as mãos à cabeça e com o
rosto crispado, perguntou-me: ‘E o que vamos fazer com toda esta mão de obra?’.”
Claudio Menta — ex-diretor de engenharia da Volkswagen.
“O Sauer é um empreendedor nato. Adora o Brasil e, diferentemente de outros colegas seus com quem eu
convivi no Bradesco, salvo o fundador da empresa, ele não voltou para a Alemanha. Seu pioneirismo na
exportação de carros feitos no Brasil foi uma de suas grandes conquistas. Em visita à Volkswagen, fiquei
boquiaberto com as cores berrantes dos veículos e seus estofamentos. Ele me respondeu: ‘Assim querem
os xeiques do Oriente Médio’. Eram os famosos Passats para o Iraque. O que a Volkswagen é hoje deve
aos muitos anos que o Sauer ficou na presidência com seu espírito de sempre empreender e inovar.”
Alcides Tápias — ex-vice-presidente do Bradesco, ex-presidente do grupo Camargo Côrrea, ex-
ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, atual presidente da Aggrego Consultores,
membro do conselho de 7 empresas, incluindo Itaú/Unibanco.
“No tempo do Sauer, éramos muito unidos e formávamos uma família que trabalhava com muita vontade.
Bem mais tarde, depois da saída dele, entrei na fábrica e, quando encontrei pessoas do nosso tempo,
ouvia-os dizer: ‘A época do Sauer é que foi muito boa. Todos gostávamos muito de trabalhar com ele’.”
Reinhold Anton Track — ex-assessor na Volkswagen.
“Não importava o nível da pessoa que chegava próximo do sr. Sauer, qualquer um ficava enfeitiçado, tal
era o carisma dele. Na arte de seduzir e encantar, ele era um professor. Mas o interessante é que era tão
natural, parecia não haver qualquer esforço dele para encantar as pessoas. Seu senso de oportunidade e
seu poder de inovação eram incomuns. Convivi bastante com ele no exterior. Na Argélia, naquele calor
sufocante, ele chegava sempre como se houvesse saído do banho naquele exato momento. Íamos para uma
reunião, e eu lhe perguntei: ‘Dr. Sauer, o senhor não vai levar sua pasta com os documentos?’. ‘Não’, foi
a resposta. ‘Você leva sua pasta, eu tenho tudo aqui na minha cabeça’, apontando o dedo indicador para a
própria testa. Certa vez, no Iraque, ficamos em reunião até as cinco horas da manhã. Às três, alguém se
levantou, dizendo que ia se recolher. Ele imediatamente disse: ‘Não, ainda não terminamos, temos outros
pontos a definir’. Tínhamos tomado uma aguardente forte feita de ameixa, vinda de Iugoslávia e
estávamos com muito sono. Às cinco horas, ele nos liberou, pedindo que o acordássemos às sete porque
tínhamos uma reunião às oito horas. Decidimos não dormir para não correr o risco de perder a hora.
Fomos até o quarto, tomamos um banho e, às sete em ponto, batemos no quarto dele. Ele abriu a porta,
pronto, novinho em folha, com a elegância de sempre e um largo sorriso de bom-dia. Nós estávamos
capengando, ‘destruídos’, e ele impecável. Ele havia fumado não sei quantos charutos durante a noite. Eu
estava impregnado daquele cheiro. Ele não. Uma hora de sono e mais o banho haviam-no restaurado.
Estava em perfeita forma.”
Joacyr Drummond — diretor de exportação da Volkswagen.
“O Sauer é um diplomata sem punhos de renda. A Volkswagen não era apenas a maior indústria
automobilística no Brasil, tinha um presidente cuja figura e personalidade davam à empresa uma
característica muito própria. Estive com ele na Autolatina. Era capaz de olhar o todo, as implicações
para as duas companhias, Volkswagen e Ford, suas repercussões nas matrizes alemã e americana, sem
perder a visão dos impactos e consequências de suas ações dentro do País e da economia brasileira. É
um homem de decisão e firmeza nas palavras e nas atitudes.”
Luiz Carlos Mello — ex-presidente da Ford na operação Autolatina, atualmente no CEA — Centro de
Estudos Automotivos.
“A trajetória de sucesso do Sauer está calcada em alguns fatores. Tudo é feito com muita vontade,
dedicação, carinho e competência. Tinha-se a impressão de que ele não exercia sua função por
obrigação, mas por prazer. O dinamismo e a energia com que ele fazia e continua fazendo o seu trabalho
são admiráveis. É preciso gostar muito do que faz para, como ele, encontrar a fórmula completa do
sucesso. Lembro-me de sua festa de cinquenta anos. O traje era black tie e a música de câmara. Trinta
anos se passaram, e, agora, aos oitenta anos, ele continua ativo. Isto nos serve como estímulo e exemplo.
Se meu pai, Evaristo Comolatti, estivesse aqui, diria a mesma coisa, porque ele admirava muito o Sauer.”
Sérgio Comolatti — presidente do grupo Comolatti.
“Falar sobre o dr. Sauer é falar sobre um estadista. Eu tive a honra e o orgulho de começar a trabalhar
para ele, quando a Autolatina foi criada, pois até então eu trabalhava na Ford do Brasil. Mesmo
trabalhando na Ford, nós todos já tínhamos uma grande admiração pelo dr. Sauer, pois ele, além de
representar com brilhantismo a marca que presidia, a Volkswagen do Brasil, já era o maior representante
da indústria automobilística brasileira. Além de comandar sua empresa, era o seu maior vendedor,
desbravando mercados internacionais, tais como o Iraque, dentre muitos outros. Não tenho dúvidas ao
afirmar que a indústria automobilística brasileira atingiu os patamares atuais graças aos sólidos
ensinamentos e plataformas de desenvolvimento arquitetadas pelo mestre dr. Sauer.”
Fernando Tadeu Perez — vice-presidente de recursos humanos Autolatina.
“Uma das qualidades do dr. Sauer está na forma positiva de encarar as dificuldades, os fatos negativos e,
ao mesmo tempo, nos momentos de euforia, saber manter os pés no chão. O olhar positivo para os fatos
não permite que ele deixe de ser realista. Não posso deixar de ressaltar sua condição de estadista e o seu
pragmatismo. Do lado humano, a característica mais marcante é a doçura, a generosidade diante de
situações de adversidades.”
Frederico Blumenschein — sócio na WS Projetos.
“O pensamento positivo e o vigor criativo do Sauer sempre estiveram presentes em suas atividades na
Bosch. O alto conceito de que ele gozava nas empresas alemãs fez com que fosse escolhido para presidir
a VW, embora tivesse sido chamado para a presidência da Audi. Devo acrescentar que ele era muito
cooperativo com as pessoas. Lembro-me, em particular, de que minha sogra, retornando à Alemanha no
mesmo voo que ele, no final de 1969, observou a maneira como ele foi prestativo com as pessoas
necessitando de ajuda. Tenho também boas lembranças de quando fui apresentado à mãe e irmã dele e de
como as personalidades delas me impressionaram.”
Karl Gutbrod — ex-diretor da Bosch, atualmente vive em Portugal.
“Minha admiração pelo Sauer tem como base o carinho que nutro por ele. Vi-o atuando nas mais diversas
situações e aprendi a respeitá-lo por diversos fatores, dentre os quais destaco a maneira como ele encara
os desafios e a forma como ele tratou a educação dos empregados e de seus filhos nas empresas que
presidiu. Além da carreira extraordinária, o Sauer se notabilizou com uma trajetória de vida séria, com
valores e princípios muito rígidos.”
Maurílio Biagi Filho — presidente do grupo Maubisa, presidente do conselho da Usina Moema,
conselheiro do CDES — Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
MINHA VIDA APÓS A VOLKSWAGEN
o calendário me avisava: Wolfgang Sauer, os sessenta anos estão batendo à sua porta.
Em 1990, Era hora de dizer adeus a uma das minhas grandes paixões, à qual eu me havia
dedicado de corpo e alma, durante dezessete anos. Deixava meu posto de executivo
para assumir a Presidência do Conselho Consultivo da Autolatina. Sentimentos ambivalentes tomavam
conta do meu coração. Havia, sim, a nostalgia antecipada de tudo que fora conquistado, do efervescente
cotidiano, da posição de “dono”, contrapondo-se à ideia de um futuro otimista com uma vasta gama de
possibilidades. Eu dizia adeus a tudo que havia me causado tanto orgulho: as realizações e tantas outras
coisas que, apesar da satisfação de tê-las, sobrecarregaram meus ombros com tantas responsabilidades,
dentre elas a família constituída por milhares de pessoas. Como num filme de longa-metragem, eu via o
desenrolar de cenas desde a minha chegada, das pedras encontradas no caminho, dos obstáculos a vencer,
das batalhas, para não dizer guerras, das conquistas e dos triunfos. Sob meu comando, ela continuou a
maior, a de melhor tecnologia, manteve a liderança de mercado e tornou-se exportadora para cem países
nos cinco continentes. Eu entregava ao meu sucessor uma empresa lucrativa, ampliada pela fusão com
outra gigante do setor, pronta para os desafios vindouros, ombreando-se com os grandes fabricantes de
automóveis do mundo. O futuro dela estava garantido. E o meu? Uma incógnita? Não. Na minha mente,
ele estava delineado. Eu ainda tinha energia, coragem e otimismo para recomeçar!
Minha experiência conduziu-me a posições no Conselho de Administração, através de convites de
vinte grandes corporações. Fundei a WS Consult com o intuito de fazer dela uma ponte entre empresas
internacionais de alta tecnologia e projetos a serem instalados no Brasil.
As empresas das quais fui conselheiro sempre foram muito bem recompensadas. Apenas como
exemplo, cito o grupo Tupy S.A, dono da maior fundição privada da América Latina. Fiz um processo de
reformulação, promovendo um aumento de capital de 350 milhões de cruzeiros para 14,3 bilhões.
Estive envolvido em muitos projetos, trouxe bastante tecnologia de outros países para o Brasil, mas,
dentre todos eles, um está enraizado na minha mente. Quem acompanhou minha trajetória foi minha
secretária Marta Soares Zanela, durante seus catorze anos de trabalho na WS Consult: “Jamais conheci
alguém tão determinado quanto o dr. Sauer. Enquanto não leva a cabo os projetos iniciados nos quais ele
investe toda a sua força, não sossega. Sua carreira foi desenvolvida na indústria automobilística, mas,
qualquer projeto em que ele acreditasse e considerasse bom para o Brasil, punha-o em movimento. Ele ia
atrás. Fez trabalhos para algumas automobilísticas, mas depois se afastou desse setor e prospectou muitos
negócios para a Petrobras e para a Vale do Rio Doce. Para a Petrobras, fez contatos com uma empresa
alemã de nome Ruhrgas, com atividades na área de gás. Intermediou negócios e trouxe investidores
estrangeiros para o Brasil, sendo a maioria da Alemanha, onde há muita tecnologia e, também, porque ele
tem ótimos contatos lá, mas havia empresas americanas, uma russa e também a francesa Veolia, um grupo
enorme que ele trouxe para o Brasil para fazer uma parceria de intercâmbio de tecnologia. Outro projeto
estava concentrado na área de tratamento de lixo com a Termo Select, empresa localizada na Suíça, de
tecnologia alemã muito avançada. Ele o apresentou a várias cidades, mas é difícil de ser implantado
porque se trata de uma tecnologia muito cara. Ele buscava em muitos lugares do mundo e se envolvia em
projetos muito interessantes, mas acredito que aquele em que ele mais se aprofundou foi o de
semicondutores. Ele me dizia: ‘Este é um projeto que vou realizar antes de morrer’”.
Maurílio Biagi Filho, com quem tenho um relacionamento maravilhoso desde o projeto do Proálcool,
convidou-me para a presidência do conselho de uma de suas empresas, o grupo Zanini: “O Sauer aceitou
meu convite e foi um excelente presidente do nosso conselho de administração. Juntos, fizemos, mais uma
vez, um trabalho excepcional. Todo mês, ele ia para Sertãozinho, normalmente dormia em minha casa em
Ribeirão Preto para no dia seguinte irmos para a fábrica. Jantávamos e conversávamos até tarde da noite.
Era um encontro agradabilíssimo, tanto o jantar como a reunião de conselho. À época, tínhamos um
projeto muito grande no Irã. O valor era de um bilhão de dólares para a construção de uma série de
usinas de açúcar no país. Foi no início da era dos aiatolás. O xá Reza Pahlevi já havia sido expulso, mas
seu imponente e luxuoso palácio podia ser visitado. Um amigo do Sauer que morava na França, uma
pessoa fabulosa, com muitos contatos no Oriente, entrou também na negociação. Fomos ao Irã muitas
vezes, e as discussões avançavam de maneira bastante favorável, mas os governantes voltaram atrás.
Mais tarde, fizemos a fusão da nossa empresa, a Zanini, com a Dedini, da família Ometto, formando a
empresa DZ. O sr. Dovilio Ometto me propôs convidarmos o Sauer para presidir o conselho. Assim o
fizemos. Foram muitos anos de convivência muito profícua e agradável. Quando desfizemos a junção
Zanini/Dedini, cada empresa tomou o seu rumo. Nossos contatos de negócio com o Sauer cessaram ali,
mas nossa amizade não perdeu a solidez”.
Dentre os muitos projetos dos quais participei, está o da fábrica da Renault, no Paraná, através de meu
amigo Pierre-Alain de Smedt, anteriormente presidente da Volkswagen. Eu o conhecia desde o seu
trabalho na Bosch, quando eu estava na presidência da Volkswagen. Lembro-me da brincadeira dele,
chamando-me de padrinho da fábrica da Renault, instalada em São José dos Pinhais. Outra área para
onde fui chamado foi a indústria têxtil e a de calçados, ambas com grandes dificuldades no enfrentamento
da concorrência com outros países, especialmente a China. Juntei os produtores têxteis e aconselhei-os a
trabalhar em conjunto, formando grupos voltados para a produção de artigos específicos, concentrando-
se em produtos de linhas tecnologicamente mais avançadas, a fim de ter linhas de oferta que
contemplassem as necessidades do mercado para todas as estações do ano. Fizemos um ótimo trabalho, e
duas empresas, a Cia. Hering e a Coteminas, do ex-vice-presidente José Alencar, seguiram nossas
orientações.
Meu sócio em uma das divisões da empresa, a WS Projetos, é um jovem de grande talento, Frederico
Blumenschein, economista com MBA na prestigiosa Universidade Bocconi de Milão. Depois de lá
estudar em tempo integral por dois anos, trabalhou em uma indústria do setor siderúrgico, construtora da
CST, em Tubarão, no Espírito Santo. Sua função o levou a comandar projetos em todo o mundo. Ele
estava trabalhando no Irã, quando fiz a fusão da Dedini com a Zanini. Convidei-o para integrar nossa
equipe e ajudar-me nesse projeto. Diz ele que sou muito exigente, por outro lado, afirma estar em uma
escola permanente: “O dr. Sauer é uma pessoa muito firme, sabe o quer, o que é preciso fazer, exige
muito de todos e cobra muito. Eu tenho mais facilidade com ele, porque conheço algumas características
de sua personalidade muito semelhantes às de meu pai. Ambos vêm da mesma região da Alemanha, de
Stuttgart. Sérios, exigentes, detalhistas, mas em situações especiais transformam-se em pessoas doces e
extremamente compreensivas, generosas e de coração aberto. Uma de suas habilidades mais notáveis é a
capacidade de dominar os assuntos, indo até o detalhe de cada um. Consegue conversar com qualquer
pessoa sobre qualquer matéria, mesmo aquelas que sejam novas para ele e estejam fora de seu cotidiano
de trabalho. Tratando de negócios que não pertencem à gama de temas com os quais conviveu e dominou
durante muito tempo, ele consegue tirar e apresentar contribuições valiosas. Outro ponto muito
interessante é o fato de ter pensamentos e atitudes sempre muito positivas, encontrando saídas e soluções
racionais para os problemas. Isso faz com que o trabalho a seu lado seja muito prazeroso. O dr. Sauer
acostumou-se a trabalhar com equipes formando estruturas bastante complexas. Na empresa de
consultoria, o grande desafio está em ajustar-se a estruturas com menos complexidade. O lado positivo é
a manutenção do nível de exigência alto, empurrando-nos para adiante, acelerando o desenvolvimento
dos projetos.
Uma definição justa para o dr. Sauer cabe em três palavras — estadista da indústria — não há outra.
Ele traz a visão do estadista para qualquer projeto, não importa sua natureza, desde os mais simples até
os mais elaborados. Com relação à indústria em geral e a novas oportunidades, a visão dele é realmente
muito superior. Além disso, ele tem o background, a capacidade de usar a experiência do passado para
atingir patamares mais altos. Há também um network excepcional. Às vezes, ele tem a visão, mas há um
pico na frente, impedindo-o de ver diretamente alguns pontos. Através do network, ele consegue
melhorar essa percepção, trazendo os elementos para mais perto, ajustando e depurando a visão do
conjunto. Apesar de ele ter tido atrás de si empresas do porte da Bosch e da Volkswagen, é preciso
lembrar que um network como o dele só se constrói com muito respeito. Muitas pessoas passaram por
posições similares, mas creio que apenas algumas raras formaram um network que ao dele se compare.”
Durante esses vinte anos que me separam da saída da Autolatina, mantive-me ativo, trabalhando todos
os dias, com o intuito de trazer projetos de interesse para o Brasil. Todos de alta tecnologia, como os
semicondutores, a energia solar, muito importantes e estrategicamente valiosos para o País. Segundo meu
sócio, falo do futuro de forma muito pragmática, às vezes até chocante, de forma muito diferente do
Roberto Marinho. Deram-lhe uma tartaruga, ele não aceitou, dizendo: “Você cria afeição por esses
bichinhos. Depois, eles morrem, e você fica triste”. Temos um portfólio de projetos em gestão, e procuro
criar alternativas para sua continuidade, independentemente da minha participação. Existem empresas
alemãs com altíssima tecnologia em equipamentos de perfurações tanto horizontais como verticais,
líderes mundiais, e nós somos os consultores diretos dos acionistas na Alemanha, com projetos para
atender à América Latina inteira. Todos esses projetos já estão encaminhados. No futuro, a WS Projetos
será mais uma executora dos projetos nos quais estamos trabalhando.
Frederico Blumenschein fala do nosso projeto de energia solar: “A energia solar guarda algo da
própria indústria dos semicondutores. Ela também é voltada para o fotovoltaico. A indústria fotovoltaica
forma toda a cadeia para a sua produção. O aquecedor solar não é fotovoltaico, é só termo, aquece a
água. Isto se chama energia solar. A energia fotovoltaica é aquela que, através das células solares,
processa a energia, utilizando tecnologia de ponta. Existem questionamentos sobre o preço desta energia,
mas, atualmente, seus custos já a tornaram viáveis para muitas utilizações, como na parte de geração a
diesel em algumas zonas remotas. Nós acreditamos muito na energia solar, contudo, para que ela tenha
sucesso, necessita de incentivos, pelo menos até o momento em que se crie uma massa crítica da
indústria. Com o tempo, eles podem ser reduzidos. Somos confiantes nas possibilidades de o Brasil ter
logo fábricas de painéis e, depois, num segundo momento não muito distante, fábricas de células solares.
Trata-se de energia limpa, atrai mão de obra qualificada, envolvendo uma série de elementos positivos
para o País. Nós estamos convencidos da importância da energia solar”.
Em todos os projetos da WS Consult, sempre mantive os mesmos princípios que nortearam minha
trajetória na Bosch e na Volkswagen. Tenho em mente o que é bom para a empresa, sem esquecer o
impacto para o País e as vantagens para ele trazidas. Esta nossa conduta é orientada pelo princípio de
que um bom negócio precisa ser vantajoso para as partes envolvidas e estar baseado em ganhos
recíprocos. Caso assim não seja, não terá continuidade. Poderá ter sucesso no início, mas será efêmero e
logo se dissipará, sobretudo quando se fala em tecnologia, em projetos com investimentos a longo prazo,
exigindo dinamismo, demandando atualização das tecnologias aprimoradas ao longo do tempo.
Uma tarefa muito prazerosa que já me aguardava na saída da Volkswagen reforçava minha ligação com
a terra. Logo depois que cheguei ao Brasil, fiz aquilo que meu limitado tempo permitia. “Brinquei de
fazendeiro.” Tive momentos maravilhosos nesta atividade, mantendo três fazendas em sociedade (duas no
Sul do Pará e uma em Barretos). Estas parcerias foram desfeitas devido ao tempo exíguo e à distância
das fazendas do local onde eu exercia minha atividade principal. A venda delas levou-me para mais
perto. Em 1979, concebi aquela que se tornou a menina dos meus olhos — a Fazenda Santa Maria, em
Joanópolis, a 150 acidentados quilômetros de São Paulo. Desde a minha “aposentadoria”, deixei de ser
um “filósofo agrícola” para me dedicar mais à prática. Planejei-a de maneira que cada atividade fosse
um mundo autônomo. Por um período, produzimos leite, criamos ovelhas e cavalos e retiramos do solo
abundante colheita de legumes e verduras. São dois mil hectares de uma paisagem europeia no lado
paulista da Serra da Mantiqueira, onde se destacam inúmeros cuidados reveladores da tradição alemã. O
próprio relevo da Santa Maria relembra muito a parte da Alemanha onde nasci. Plantamos mudas de
pínus nas encostas montanhosas, criando pequenas imitações da Floresta Negra, intercaladas de bosques
e mata nativa. Este sistema, além de beleza, proporciona uma atividade de reflorestamento sem prejuízo
ambiental e sem exaurir a terra. Na baixada, outra paisagem encantava meus olhos. Cercas brancas do
haras, onde estavam os meus maravilhosos cavalos, puros-sangues hannoverianos, cortavam os campos
de ovelhas e gado. No fundo, as casas dos colonos. Jardins? Sim, muitos e bem cuidados. Depois de
minha saída da Volkswagen, passou a não se tratar de apenas um brinquedo de fins de semana.
Transformou-se em um negócio, onde empregados batiam ponto diariamente. Com a experiência
adquirida em minhas outras atividades rurais, dediquei-me ao aprimoramento do rebanho, usando
técnicas inovadoras e importando sêmen da Alemanha, a fim de atingir uma produtividade de nível
europeu. Meu sonho era ambicioso — tornar a Santa Maria autofertilizável, ou seja, autossuficiente em
adubo orgânico. Ultimamente estas atividades ficaram para trás, os negócios na WS Consult e as viagens
ao exterior impediram-me de dar continuidade aos meus planos. A fazenda ficou limitada ao negócio de
reflorestamento, mas já não me ocupo dela. Mantenho na lembrança a imagem da fazenda por mim
idealizada, um projeto envolvendo a criação de animais, o plantio, a colheita e o reflorestamento. A cada
vez que pisava no solo da Santa Maria, restabelecia-se a magia do meu reencontro com a terra, sua
fertilidade e seu poder regenerador.
OS JOVENS E O FUTURO
da minha carreira, tive a colaboração de pessoas das mais diversas idades. Aprendi
Ao longo bastante, troquei experiências e consegui envolvê-las em meus projetos de
crescimento. Deste intercâmbio nasceu a certeza de que homens bem preparados são
essenciais para a estruturação de equipes eficientes e motivadas. Consciente do valor da informação
teórica e prática, sempre fui um observador atento durante o aprendizado e, posteriormente, pródigo na
repartição do conhecimento adquirido. Assim, estou buscando transmitir àqueles que estão saindo das
universidades, àqueles que já iniciaram suas carreiras e àqueles que já galgaram posições mais elevadas
em sua atividade profissional alguns exemplos da minha trajetória profissional. Nela colecionei ganhos e
perdas, sucesso, fracasso e triunfo, dos quais se podem tirar algumas lições. Como me inspirei em
modelos positivos de pessoas admiráveis que me antecederam, identificando em suas ações
comportamentos e diretrizes muito úteis para a composição da minha atuação empresarial, acredito que
minha experiência e vivência possam conter alguns temas que estimulem em cada um o desejo de
conquistar suas posições através do trabalho, marcando de maneira efetiva sua passagem, não importa em
qual seja a atividade, propulsionando o desenvolvimento do lugar onde estiverem e promovendo a
evolução dos seres humanos em busca de seu bem-estar, sem jamais esquecer os princípios de ética. Ao
sair da Alemanha, que estava destroçada pela guerra, meus horizontes eram muito estreitos. O abatimento
provocado pelas perdas e pela destruição havia roubado o ardor e o entusiasmo da adolescência e da
juventude. Fora de lá, aos poucos, recuperei o ímpeto e a audácia que instigaram e reavivaram a minha
chama interna, impulsionando meu espírito, devolvendo-lhe o alento. Em Portugal, descobri o poder e a
energia advindos do trabalho e da vontade de vencer. Quando embarquei para a Venezuela, tinha a mente
povoada de fantasia, idealismo e otimismo. Eram eles o meu único capital. Desde então, abracei-os como
bens, dos quais jamais me separei. Recomendo-os a todos em doses maciças não apenas na fase da
juventude, mas para todo o transcorrer da vida. Apesar das transformações trazidas pela evolução e pelo
progresso, as formas de conquistas e realizações humanas continuam muito semelhantes em sua essência.
Ontem, hoje e amanhã, o progresso dependerá do homem, de seus ideais, de sua criatividade e do seu
trabalho. Quando se quer crescer, é preciso pensar que não existem caminhos fáceis, mas existem
caminhos possíveis. Àqueles que estão deixando as universidades, trocando a sala de aula pelo trabalho
em uma empresa, falo na condição de administrador dotado de alguma experiência à frente de uma grande
companhia: chegou o momento de participar, de uma nova maneira, da sociedade à qual pertencem, de
colher os frutos de um aprendizado, sempre pautado pela expectativa do justo reconhecimento da
capacidade e do conhecimento adquirido com sua respectiva dedicação. Vocês aprenderam que não basta
conhecer as diversas funções e responsabilidades atribuídas ao profissional especializado. A empresa
não é uma unidade isolada na qual são fabricados e comercializados alguns produtos, como se esta fosse
sua única razão de ser. Existe uma expressão clássica no mundo dos negócios: toda empresa tem uma
função social, ou seja, tem a responsabilidade de fabricar e de vender produtos de acordo com as
exigências da sociedade que irá consumi-los. É também responsável pela geração de empregos e pela
preservação de seu bem mais precioso, seus recursos humanos.
Minha convivência com pessoas de enorme talento e brilhantes carreiras me dá a certeza de que elas
podem me fazer excelente companhia nesta pretensiosa tarefa de dar conselhos.
De: ex-embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima
No caso do Sauer, a meu ver, o melhor exemplo é o patriotismo dele. Seu amor pelo Brasil chega a
ser comovente. Integrou-se ao País de forma total, defendendo com ardor nossa bandeira. Nunca foi um
pessimista em relação à nação brasileira, ao contrário, sempre acreditou em suas potencialidades e
trabalhou para desenvolvê-las ao máximo.
Quanto às carreiras dos jovens, vejo um país oferecendo muitas oportunidades, mas cada vez mais
competitivo. Hoje, a exigência é de profissionais altamente qualificados. Então, primeiro para se
inserir no mercado e depois para conquistar novas posições, é preciso adquirir uma formação e uma
cultura que atinjam padrões de excelência. Isso se faz com trabalho duro e persistente. Devoção pode
parecer uma palavra muito forte, mas define o sentimento com o qual o jovem deve se aplicar em sua
formação e em seu trabalho.
De: Cel. Ozires Silva — criador da Embraer — Empresa Brasileira de Aeronáutica, presidente da
Petrobras, ministro de Estado da Infraestrutura, presidente da Varig e, hoje, reitor de universidades
A natureza, em seu projeto de vida, fez o homem diferenciado de todos os outros seres, sendo
extremamente generosa nos dons que lhe deu. Fazendo-nos tão diferentes, com tanta capacidade inata:
na inteligência, na fala, na habilidade de lidar com as coisas, de transformá-las, deixou-nos a tarefa de
conquistar um dom — o de viver numa sociedade humana criada por nós — e este dom só se adquire
através da educação. Então, ela — a educação — é responsabilidade nossa. Precisamos prover este
dom adicional que não temos de uma forma inata. Em nosso País, a educação se transformou em um
assunto aparentemente insolúvel, mas eu sempre penso que não devemos avaliar o problema pela
dificuldade, mas, sim, medi-lo pelas possibilidades de solução e tentar chegar ao que se deseja.
Insisto muito com os alunos das instituições de educação, trabalho ao qual me dedico nos dias de
hoje: seus concorrentes, individualmente, não estão mais apenas em nosso País. Eles podem ser
chineses, japoneses, americanos, alemães ou de outras muitas nacionalidades. Vocês têm que estar
aptos a enfrentar não apenas a competição que foi gerada dentro das fronteiras brasileiras, mas sim em
qualquer lugar do mundo. Para este preparo, são necessários dedicação, amor e paixão. Eu mesmo,
nesta última quadra da minha vida, estou apaixonado pela educação, pelo sistema educacional. Quero
dar no que me resta de tempo uma contribuição nesta direção e eu vou tentar. Dará certo? Não sei. Mas
só saberei se tentar.
De: Shigeaki Ueki – membro da Alalc, consultor da OEA, ex-diretor comercial e financeiro da
Petrobras, ex-presidente da Petrobras, ex-ministro de Minas e Energia, presidente do conselho da
Petroleum Finance Co., em Washington
Existem várias coisas para se dizer aos jovens. Se eu tivesse que sintetizar, a primeira grande coisa
seria manter sempre a chama da curiosidade. Vontade de saber, de conhecer, de não se conformar
apenas com os estudos já feitos, buscando conhecimento ao longo da vida. Curiosidade é algo que o
Sauer tem de sobra, seja na parte empresarial, agrícola, florestal, pecuária, em tudo o que ele toca.
Quando encontro um jovem que não tem curiosidade, não se anima em tê-la, não consigo ver sucesso
em seu futuro. O segundo ponto é o raciocínio numérico. A eletrônica, com todas as vantagens e
avanços trazidos, está acabando com isto na maneira de pensar da juventude. Quando se vai a uma
loja, compra-se algo, entrega-se o dinheiro, e a mocinha ou o menino encarregado de devolver o troco
precisa pegar a máquina de calcular para fazer uma conta facílima. Eles não têm ideia de número. O
raciocínio numérico é fundamental em qualquer área de atividade, na economia, na sociologia, na
medicina e tantas outras e até na música, uma atividade artística. O Sauer, por exemplo, quando discuti
assuntos diversos com ele, percebi que, em tudo feito por ele, havia uma base numérica. Quando
selecionei executivos para a Petrobras, nunca fiz uma entrevista no sentido clássico. Mantinha algumas
conversas em eventos sociais, nos happy hours realizados na empresa. Eram conversas
descomprometidas, durante as quais eu formava o perfil do executivo. Mesmo neste tipo de contato, é
possível perceber qual é o papel dos números na formação da pessoa. Nunca contratei um que não
tivesse raciocínio numérico. Acho que fiz boas escolhas, porque tive colaboradores de primeira linha
em minha equipe. Acrescem-se a isso as atitudes normais, como trabalho, honestidade e disciplina.
Outro fator fundamental é a ambição. Quem não a possui não tem incentivo nem estímulo. A pessoa
conformada com a situação em que se encontra nunca dará um passo adiante. Então, ficamos com três
itens essenciais: curiosidade, raciocínio numérico e ambição. Lembro-me de ver estampado na
primeira página do Financial Times o resultado de uma pesquisa feita entre dois grupos. No primeiro,
estavam as pessoas de sucesso. No segundo, aquelas que não o tinham tido. O que as diferenciava? No
primeiro time, havia quatro elementos que o Sauer tem de sobra: 1) Coragem para aceitar novos
desafios. Ele demonstrou isto ainda muito jovem, quando foi da Alemanha para Portugal, depois para a
Venezuela e em seguida para o Brasil. Foram desafios, um atrás do outro, demandando boa dose de
coragem, especialmente no tempo em que foram enfrentados; 2) Noção de timing. Se não houver uma
combinação perfeita entre coragem e timing, o sucesso poderá ser comprometido. Isto ele dominava
muito bem; 3) Ter bons amigos. Não se encontram pessoas de sucesso entre as que não tiveram bons
amigos ao longo da vida. Sempre vi o Sauer rodeado de pessoas que lhe foram fiéis. Tinha e continua
tendo amigos nas mais diversas camadas sociais; 4) Sorte. Bem, neste item, basta olhar para ele e para
a sua vida.
Comentei muito este artigo com os meus assessores, criando entre eles a ideia de que eu, como
presidente, queria que as pessoas tivessem sorte. Seria ótimo se eu assim pudesse determinar, mas não
é este o conceito: a sorte é mais ou menos consequência da coragem, do timing e da capacidade de
fazer e manter amigos.
De: Dr. Roberto Civita — presidente do conselho e editor da Editora Abril
O exemplo é melhor do que qualquer pregação. Evidentemente, a educação recebida em casa é
fundamental. Eu diria essencial. Depois, vêm os ingredientes pessoais — curiosidade, concentração,
ética, persistência, energia aplicada. Se eu pudesse influenciar os jovens, eu diria: leiam muito, leiam
tudo, leiam sempre. Façam perguntas, questionem. As duas palavras mais importantes que eu conheço
são: “por quê?”. Indo sempre atrás do porquê, o resto é consequência. Continuo minha recomendação:
estudem, leiam, perguntem e insistam.
De: Dr. Marco Antônio Rodrigues da Cunha — diretor de gestão empresarial da Cemig
O exemplo que nos dá o dr. Sauer de tenacidade, visão de longo prazo e profundo apreço pelo
trabalho, mesmo depois da sua aposentadoria no grupo Volkswagen, demonstra às gerações futuras que
o sucesso é uma decorrência natural deste espírito empreendedor. Seguindo os passos do dr. W. Sauer,
certamente, os jovens estarão contribuindo, decisivamente, para o futuro das empresas nas quais
trabalham e para o desenvolvimento deste País. Além das experiências exitosas nas várias empresas
em que trabalhou, a iniciativa do dr. Sauer, pós-emprego, buscando um projeto de semicondutores para
o Brasil é, sem dúvida, um esforço merecedor de destaque.
De: Dr. André Beer — ex-vice-presidente da General Motors, presidente da André Beer Consult &
Associados
Acho que se deve prestar muita atenção às ideias do Sauer. Ele é capaz de fazer reflexões muito
valiosas. Sua visão da indústria — do passado, do presente e do futuro — é extremamente importante.
Com relação a ele, os jovens deveriam refletir: o que pensa um homem que tem a experiência e
vivência dele?
De: Dr. Alcides Tápias — ex-vice-presidente do Bradesco, ex-presidente do grupo Camargo Côrrea,
ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, atual presidente da Aggrego
Consultores, membro do conselho de 7 empresas, incluindo Itaú/Unibanco
O conselho que coloco no topo — o de número um: estudar. O máximo possível. Se puder, só
estude, durante o tempo de vida escolar. Aos dezoito anos, procure um emprego. Estude e trabalhe,
qualquer que seja o trabalho, a fim de adquirir disciplina, senso de dever, obrigação de estar presente,
de se reportar a outras pessoas, envolvendo-se no processo, com a consciência de que todo trabalho
deve ser benfeito. Tente reunir o máximo possível de informações para depois especializar-se em uma
atividade, porque ela não existe sozinha. Muitas outras gravitam em torno dela. Não adianta desejar
fazer um automóvel, por exemplo, e ignorar de onde sai o minério para a fabricação da chapa ou como
se obtém energia para manter as máquinas em movimento. É necessária também uma visão humanística
para saber o que querem as pessoas, quais os seus talentos e tendências. A concentração no objetivo é
muito importante, contudo é preciso olhar para os lados e ter ouvidos abertos, funcionando como uma
caixa de ressonância. Este processo fornece os elementos necessários para a tomada de decisão. Todo
este conjunto faz o sucesso do empreendedor. Estou com sessenta e sete anos, estudo até hoje, e isso
me dá muito prazer. Fiz Administração e Direito e sou contabilista de origem. Faço todos os cursos
sobre IFRS, um sistema novo de contabilidade, contendo toda a visão de detalhes de capitais,
governança e outros itens. Sou aluno número um, sempre sentado na primeira carteira. Se eu pudesse
aconselhar o presidente do Brasil, eu lhe diria: invista na educação. Acompanhei de perto o processo
de crescimento das Coreias. O investimento feito há trinta anos está dando resultados hoje. O
desenvolvimento de qualquer país só pode acontecer através de uma população com boa escolaridade.
O governo cuidando da educação, o resto vem naturalmente.
De: Dr. Claudio Menta — ex-engenheiro da Volkswagen
Fui trabalhar na Vemag, porque o salário era mais alto do que o da firma onde eu trabalhava. Lá tive
um campo enorme de desenvolvimento, porque ninguém sabia nada de automóvel, e nós fomos abrindo
picadas no caminho. Neste processo, percebi que não se deve ter medo dos problemas, mas procurar
resolvê-los. Com a incorporação da Vemag pela Volkswagen, entendi que não existe super-homem no
exterior, melhor do que nós. Se nos dedicarmos, estudarmos e procurarmos fazer, atingiremos os mais
altos objetivos. O engenheiro brasileiro é tão capaz quanto qualquer outro estrangeiro. Ele pode fazer,
deve procurar fazer, dedicar-se e estudar para isso. Desta forma, o êxito virá certamente.
De: Luiz Carlos Mello — ex-presidente de vendas da Ford na Autolatina, atualmente no CEA —
Centro de Estudos Automotivos
Não se pode crescer profissionalmente sem olhar para o todo da organização. As escolhas devem
ser feitas mais no sentido qualitativo. As melhores pessoas são uma combinação de capacidade
intelectual, conhecimento de técnicas e integridade. Na questão da indústria automobilística no Brasil,
precisamos estar ligados à compreensão de que precisamos criar e desenvolver a inteligência
automotiva nacional porque, hoje, a parte importante deste negócio não é hardware, não é a fábrica
física. O hardware pode ser instalado em qualquer lugar. O que conta é o pensamento, é a capacidade
de criar, de idealizar, de projetar, de desenvolver, ou seja, inteligência pura. Isso nós temos.
De: Paulo Simões — presidente da Abolição Veículos
Sou filho de portugueses que chegaram analfabetos ao Brasil. Com os meus sessenta e cinco anos, eu
diria ao jovem: seja correto em tudo na vida, não minta nem por brincadeira. Respeite as pessoas.
Respeite os valores morais e éticos. Trabalhe muito, mas tenha em mente que a família vem sempre em
primeiro lugar. É preciso estabelecer um equilíbrio entre vida profissional e vida familiar. Adore os
seus pais, respeite a sua mulher e se divirta, sorria, leve uma vida leve. Aproveite a arte, a dança, a
música. Seja curioso. Quanto ao Sauer, ele deixa para mim e para os demais um exemplo de trabalho e
de liderança. Ele sabia congregar as pessoas naturalmente, com simpatia e capacidade de
convencimento. Sabia trabalhar em equipe. É um visionário, um homem que vê adiante, uma
inteligência de exceção, um homem antes de mais nada bom, um homem que gosta de gente. Este gostar
leva-o a tratar bem as pessoas e a respeitá-las. Ele é um exemplo a ser seguido.
De: Amaury Amorim — presidente da Automac
O Sauer vai deixar um exemplo para qualquer empresário, mas, sobretudo, para a indústria
automobilística, para os concessionários, para os profissionais do automóvel. O Sauer é o cavalheiro
da ética, sempre se apegou a ela. A mensagem que ele vai deixar neste livro é de extrema valia. Para o
jovem, o melhor conselho é o exemplo. É melhor do que qualquer fala ou discurso. Contudo, é preciso
salientar a ética como valor fundamental. Trabalho também não faz mal a ninguém. Comecei o meu aos
dezesseis anos, quando sozinho saí de casa, de João Pessoa, na Paraíba. Eu era muito pobre. Nunca
tive um brinquedo, uma bicicleta. Não se tinha absolutamente nada. Trouxe comigo apenas os meus
princípios e sempre soube separar o joio do trigo, buscando o caminho do bem. Fiz uma faculdade
maravilhosa — a faculdade da vida. Não me casaria com outra mulher que não fosse a minha, tenho
duas filhas e netos maravilhosos. Tenho tudo. É claro que, na questão de escolaridade, meu exemplo
não serve para os jovens. Aprendi por mim mesmo. Isso foi possível no passado, hoje já não há mais
lugar para isso. Diplomas e títulos são muito importantes, mas eles precisam ter atrás de si o saber
verdadeiro.
De: Alex Periscinoto — fundador da Almap, atualmente na Sales, Periscinoto e Guerreiro
O perigo para o jovem que se dedica à carreira de publicidade e propaganda é sair da escola e se
sentir solto. Ele deve ter um norte. Ele precisa saber o que pretende fazer. Eu não conseguiria imaginar
nada sem um líder lá na frente fazendo. Quando me apaixonei pelo trabalho de um publicitário
americano, criador da DDB nos Estados Unidos, estabeleci o meu norte. Havia e existe hoje uma
publicidade muito comum, chamada de enxurrada. Em Nova York, diante da TV por umas dez horas,
anota-se tudo o que é bom, o que é médio e o que é ruim. Noventa por centro é lixo. Buy now,
vendendo seguro, xampu, várias marcas, tudo. Em todos os lugares do mundo, é parecido, muda o
idioma, mas o sentido é o mesmo. São clichês cansativos que fazem da publicidade uma profissão
abaixo de medíocre. Lembro-me de que apareceu alguém nos Estados Unidos começando a anunciar o
conceito, e não o produto, sem gritos. Apareciam uma loira muito bonita e com ela a pergunta: “Is she
blond or not?”. E, então, começava a mudar o caminho, o caminho de respeito ao telespectador, ao
comprador e até mesmo para quem não tinha cabelo para tingir ou não estava a fim de comprar o
produto. Na Volkswagen, começamos a propaganda do zero, fazendo coisas dentro deste gênero.
Criamos o conceito Volkswagen. Fizemos uma propaganda que marcou época, conquistou o
consumidor e atravessou o tempo, permanecendo até os dias de hoje.
De: Luiz Lacerda Biagi — presidente da empresa B5
Acredito no conhecimento, como o quesito mais importante. Não falo do conhecimento adquirido
por aquilo que hoje torna o jovem obcecado pelo acúmulo de títulos e diplomas de cursos adicionais
sem grande profundidade, mas de um cabedal de conhecimento formado por uma vivência mais intensa
dos fatos, pelo entendimento de outras culturas, de outras línguas, pelos estágios em outros países,
respeitando costumes e comportamentos de seus habitantes. A junção de conhecimento e coragem fará
alguma diferença no mundo. Pode-se trabalhar em uma grande empresa, afinal elas precisam de
funcionários, mas, se a pessoa pretende fazer alguma coisa diferente, se ela quiser se destacar, ela
precisará correr riscos, e para isso é preciso ter coragem. Por outro lado, estamos diante de um
paradoxo. Às vezes, o conhecimento pode funcionar como elemento inibidor da coragem. Quando
perguntavam a meu pai como ele havia construído a Santa Elisa e a Zanini e tudo o que ele fez, ele
dizia: “Foi a coragem da ignorância, se eu soubesse o que eu iria enfrentar, eu nunca teria feito o que
fiz”. Apesar de entender o receio gerado pelo conhecimento, porque, quando se têm todos os detalhes
de um negócio, todos os números, todas as viabilidades, todas as análises, eles podem nos atemorizar,
continuo pensando que conhecimento profundo e coragem formam a receita para o sucesso das novas
gerações.
De: Frederico Blumenschein — sócio na WS Projetos
Não podemos fugir de um fato, o mundo está ficando cada vez menor. O novo executivo precisa ser
uma pessoa do mundo, com capacidade de entender e viver o mundo globalizado. Acredito muito na
formação cultural aliada a uma formação técnica sólida com experiências fora do Brasil,
desenvolvendo a capacidade de entender as diferenças. E, nesta questão, é imprescindível o
conhecimento da língua inglesa, de falar, de entender e de escrever fluentemente. Não basta mais o
basic knowledge. Uma terceira língua seria desejável, mas o domínio do inglês é indispensável. Esta
preparação para se tornar uma pessoa competitiva neste mundo global deve ser mais valorizada nas
universidades. Antigamente, quando se ia para Harvard, para o MIT, a pessoa estava certa de que
aquilo era o suficiente para se tornar um profissional competente. Hoje, conheço pessoas que não se
formaram em Harvard ou Sorbonne, mas tiveram sucesso porque agregaram ao conhecimento técnico
uma formação cultural e moral sólida.
De: Luc de Ferran — ex-diretor da Ford e ex-diretor da divisão de caminhões da Autolatina
Constância de propósitos, firmeza e conhecimento profundo nas áreas de atuação. Numa indústria, a
exigência de bom nível intelectual é enorme.
De: Maurílio Biagi Filho — presidente do grupo Maubisa, presidente do conselho da Usina Moema,
conselheiro do CDES — Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
Existem os líderes em diversos graus, e há outros que não sabem ou nem querem liderar. O Sauer é
um líder nato, veio ao mundo com essa liderança, nasceu com uma luz. Há uma variação muito grande
entre as capacidades humanas, mas algumas coisas são imprescindíveis, seja para líderes, seja para
liderados: preparo, foco no objetivo, não se deixar atrair por coisas que não sejam absolutamente
corretas e procurar, na medida do possível, fazer algo de que goste, porque o trabalho feito com
alegria, além de mais eficaz, torna a vida muito mais amena. Aqueles que não puderem escolher,
mesmo mantendo-se em atividades que não lhes deem satisfação, devem manter-se atentos à abertura
de novas possibilidades que possam propiciar mudanças favoráveis, mais de acordo com suas
aspirações.
Mauro I. C. Imperatori — ex-gerente do departamento jurídico da Volkswagen, atual diretor de
assuntos políticos e jurídicos da Assobrav
Existem muitas dúvidas entre jovens que terminaram a universidade e fizeram suas pós-graduações e
têm diante de si duas possibilidades: ingressar em empresas, ou começar ou dar continuidade a um
negócio. Caso o negócio seja do pai, seria bom considerar que foi ele quem trouxe a pessoa ao lugar
por ela hoje ocupado. Em vez de trabalhar para outros, trabalhe para o seu próprio negócio. Mas, para
trabalhar em seu negócio, é preciso saber fazer para saber mandar ou saber pedir. Caso não saiba
fazer, seja humilde. Conheça todas as facetas do negócio, aprimore o que for possível e trabalhe
sempre entendendo que um negócio tem dois lados. Os conhecimentos, bonitos na teoria, muitas vezes,
não aplicáveis na prática, necessitarão de mudanças ou adaptações. Aplique-se a elas, considerando
que a persistência será uma ferramenta indispensável. Pode-se procurar um conselheiro inteligente, um
mentor ponderado, não importa a idade, mas que esteja fora do negócio. Os conselhos se fazem
necessários, e nem sempre o pai será o indicado para dá-los, porque a tendência é que ele faça a seu
modo, e muitas vezes não é a forma mais adequada. Os problemas aparecerão e precisarão de solução.
Na maior parte dos casos, eles trazem sofrimento — isso acontece em qualquer plano da vida — como
pai, como avô, como marido, como mulher, como colega de trabalho e como empresário. Fugir deles,
deixando-os para trás, fará com que retornem maiores ou piores. Enfrentá-los é a melhor maneira de se
libertar deles e da dor que causam.
De: Mauro Marcondes Machado — ex-gerente de recursos humanos da Volkswagen, atual presidente
da Marcondes & Mautoni e vice-presidente da Anfavea
Olhe para fora da empresa, para fora do País, abra a janela, abra a porta da empresa para fora. Olhe
a conjuntura. Eu acho que este é um grande mérito do Sauer. Ele sabia olhar a conjuntura, ponto
importantíssimo para as novas gerações.
De: Manoel Bayard — ex-representante do grupo Monteiro Aranha na VW e ex-diretor do escritório
VW no Rio de Janeiro
É difícil escolher dentro da performance do Sauer e de suas capacidades de administrador um
exemplo para os mais jovens. Eram tantos! Vou dar apenas um que considero fundamental para quem
pretende fazer uma carreira de sucesso: ele era uma pessoa que traçava um objetivo e aquilo era
sagrado. Ele ia atrás, e nós, que vivemos e trabalhamos com ele, adquirimos esta forma de proceder.
Tudo tinha que ir até o fim, até atingir o objetivo. Esta foi a tônica da atividade dele. O Sauer nunca fez
nada pela metade.
De: Dr. Jacy de Souza Mendonça — ex-diretor de recursos humanos da VW e ex-presidente da
Anfavea
Deixo para os jovens os mesmos conselhos que dei às minhas filhas: dedique-se a uma atividade
produtiva, com toda a garra, com muita seriedade, alimentando um sonho para si próprio, mas
pensando no benefício para o país em que se encontre.
De: Sérgio Reze — presidente do Conselho Deliberativo e diretor da Fenabrave
Recomendo aos jovens que procurem seguir exemplos como os de Sauer, considerando seu
comportamento como empresário, como cidadão e como ser humano. O segundo ponto é aplicação e
determinação para buscar o que foi traçado como objetivo.
De: S. Stéfani — ex-jornalista do setor automobilístico da Gazeta Mercantil, atual proprietário da
revista Autodata
Minha recomendação não vai apenas para os jovens que estão começando, mas também para os
dirigentes de empresas, tendo como base a maior qualidade do Sauer: sua visão de estadista. Ele a
tinha, e nós aprendemos com ele a ter a dimensão dos reflexos da indústria em todas as áreas. No caso
da Volkswagen, onde ele nos mostrou isso, ele tinha muito cuidado com a empresa, com as pessoas que
nela trabalhavam e com a representatividade dela na economia do País. A Volkswagen era 60% de uma
coisa que representava 25% do produto industrial. Então, tudo o que acontecesse com a Volkswagen
tinha reflexo no País. Por que teria acontecido ali o início do movimento sindical brasileiro? O Lula
tinha consciência do peso de parar uma indústria daquele porte. Tudo passava pela Volkswagen. Para
dirigi-la, era preciso um homem com estatura de estadista, como era o caso do Sauer, e isso nos faz
muita falta nos dias de hoje. Atualmente, as pessoas são formadas nas escolas para administrar
empresas, sem considerar o todo, fazendo-as perder a percepção do seu papel no conjunto,
esquecendo-se de que um país é o resultado das empresas que o compõem. Se essas empresas tiverem
qualidade, tratarem decentemente seus trabalhadores, este será um bom país.
De: Marco Antônio Soares da Cunha Castello Branco — ex-diretor comercial da Mannesmann S.A.,
ex-diretor-presidente da Vallourec & Mannesmann Tubes, ex-presidente da Câmara de Comércio
França-Brasil, ex-diretor-presidente da Usiminas
Considero importante que os jovens recém-advindos das universidades dediquem suas energias à
aquisição de conhecimento que extrapolem os limites de seu primeiro ofício. O nosso sistema
educacional privilegia, de forma geral, a fragmentação dos saberes. Se, por um lado, esta busca pela
especialização facilita um melhor ordenamento da cadeia de conhecimento da sociedade, por outro,
pode facilmente estimular o jovem profissional a limitar seus horizontes de descoberta. A
compreensão efetiva dos fenômenos políticos, econômicos, sociais e tecnológicos depende, por
premissa, da aceitação da complexidade do mundo. Por exemplo, há trinta anos, a questão ambiental
era vista como capricho de naturalistas fanáticos. Hoje, um jovem engenheiro ou economista não pode
deixar de alargar seu escopo de trabalho, visando à compreensão da sustentabilidade. Mudanças
climáticas, impactos ambientais, fontes de energia limpa ganharam espaços nas calculadoras e nos
programas de computador. Pobre daquele que não se informar sobre o assunto e não se mantiver
preparado e atualizado para discutir estas variáveis. Um outro exemplo, a China. Como podemos
compreender a dinâmica da economia mundial sem referenciar o gigante asiático como paradigma? O
fenômeno China não pode ser limitado à disciplina curricular do curso de relações internacionais. Ao
contrário, deve permear matricialmente cursos de diversos matizes, pois é impossível que um jovem
profissional não tenha estes referenciais, seja a sua ambição ser um grande investidor do mercado
financeiro ou um simples administrador de lojinha de bugigangas. Se o paradigma chinês ainda não
chegou à sua porta, é só uma questão de tempo. Creio, portanto, que, para melhor dar conta de todo
este complexo, o jovem profissional deva nutrir-se da curiosidade transdisciplinar, exercer a pergunta
não como sinal de fragilidade intelectual, como, aliás, entendem os arrogantes, mas como sinal de
abertura para o desconhecido, para o novo. Nossa forma de trabalhar foi sobejamente impactada pelo
avanço da linguagem virtual. A internet trabalha com o hipertexto, ou seja, com a capacidade ilimitada
de estabelecer links, correlações e, assim, quebrar os muros de um tecnicismo exacerbado. Todavia,
os nossos modelos mentais, cristalizados por uma tradição acadêmica pouco dinâmica, parecem estar
há anos-luz desta forma de compreensão do mundo. Há um descompasso entre o humano e o
tecnológico. Mas o rompimento deste limite pode ser feito a partir da iniciativa pessoal de cada
profissional. Isso significa pesquisar, ler, debater e questionar sempre, sobre tudo. Alguns autores
comparam a internet, por si, a um novo Renascimento. Eu discordo. Acho que o novo Renascimento só
fará sentido se nossos jovens buscarem de forma instigadora não apenas o renascimento tecnológico,
mas o renascimento da capacidade de pensar — como o homo universalis do passado — de maneira
complexa e ética. Pois somente estas expressões têm fundamentos razoáveis ao combate da
mediocridade e da desesperança, visando à construção de um futuro mais justo e sábio.
De: Ricardo Strunz — ex-diretor de exportação da Volkswagen, da Autolatina, da Ford e da Fiat
Dentre as características positivas do Sauer, seleciono a mais importante — o exercício de uma
liderança, que lhe é inata. Dela vem a capacidade do visionário. É preciso ter a visão de algo a ser
conquistado, construído ou desenvolvido. Para se realizar aquilo que é transmitido através da visão, é
preciso montar uma estratégia. Se o executivo não é um líder visionário, deve procurar trabalhar com
alguém que o seja e possa conduzi-lo para uma determinada direção. Caso contrário, terá que se
conformar com funções nas quais não existem desafios. O líder visionário é aquele que diz aos seus
liderados: cuide do dia a dia, eu vou à frente, mostrando para onde vamos e como atingiremos nossa
meta. Esta é a visão. Ao liderado cabe a tarefa de identificar a estratégia que possa fazer a ponte entre
o presente e o futuro. A construção da ponte pode ser lenta, a curto, médio ou longo prazo, não importa,
mas ninguém consegue ser líder sem dar uma visão para os liderados. Na Volkswagen, conseguimos
realizar praticamente todas as visões do Sauer. Mas há que mencionar a obstinação dele, como valor
essencial para nossas conquistas. Contudo, o processo de liderança passa, através dos tempos, por
modificações que precisam ser assimiladas. Os ensinamentos do Sauer foram muito úteis e
constituíram a base da minha formação empresarial. Mas as gerações que estão aí e as que as
sucederão têm características diferentes da minha. Não éramos questionadores como o são os que
fazem parte da geração Y, os jovens de cerca de 30 anos, da geração internet, do fast information. Já
não se aceita mais uma liderança que não seja a do convencimento, a da justificativa. Portanto, não
existe um modelo de líder, até porque a maioria das lideranças são inatas, contudo um ponto é de
absoluta importância — a competência. As gerações modernas já não aceitam trabalhar com líderes
que nada lhes transmitam e que não lhes proporcionem condições de ir adiante em suas carreiras.
Vicente Alessi — ex-jornalista da revista Quadro Rodas da Editora Abril, atual sócio da revista
Autodata
O Sauer e eu habitávamos mundos idênticos, porém com imensas diferenças. Nosso território era o
automobilístico. Ele, o grande empresário; e eu, um jovem jornalista, ávido por notícias espetaculares
e por ouvi-las da boca do representante mais ilustre do setor. Da Volkswagen vinham dados
bombásticos, em relação a números e eventos. Mas não era só de lá. Ele estava sempre em Brasília,
falando com as maiores autoridades do País. Aquele homem sabia tudo em primeira mão. Ele foi me
testando, até o ponto que adquiriu uma confiança muito grande; e eu, como consequência, uma
responsabilidade tremenda. Ele mantinha uma transparência profissional no limite do possível, e,
quando me confidenciava assuntos que não podiam ser publicados, como foi o caso da Autolatina, eu
os mantinha em segredo, até o momento em que viesse dele a autorização para dar a notícia. Foi uma
espécie de acordo sobre o qual nunca falamos explicitamente, mas que eu respeitava ao pé da letra.
Aprendi muitas lições com o Sauer. Ele era uma fonte inesgotável de conhecimento empresarial no
mundo. Na indústria, não havia ninguém como ele. Viajar ao seu lado, além de um prazer enorme, era
um aprendizado constante. Relacionar suas qualidades e enumerar os exemplos por ele deixados
dariam uma lista muito comprida. Do meu ponto de vista, além do seu valor, do seu talento, da
exuberância de sua figura, da autoconfiança, da cabeça criadora de coisas novas, ele não teria sido o
que foi se não tivesse e se não colocasse em exercício uma virtude simples: a confiança nas pessoas. À
imprensa ele sempre passou transparência e seriedade. Mas o grande valor que ele deixa para as
pessoas de todas as idades, especialmente para os jovens, é algo que sempre esteve presente em suas
atitudes — a ética.
FANTASIA OU REALIDADE?
Uma fábrica brasileira de semicondutores, produto base da eletrônica digital
Was du ererbt von deinen Vätern hast, erwirb es, um es zu besitzen! “O que você herdou de seus
pais, receba como legado para apropriação e desenvolvimento.”
Falamos muito ao longo de todos esses anos dos direitos humanos, simplesmente deixamos de falar
de algo muito simples que são os deveres humanos, ou seja, os deveres em relação aos outros.
No título deste último capítulo — “A nação somos todos nós!” —, permito-me fazer um chamamento
aos deveres dos herdeiros desta pátria, chamada Brasil. Precisamos do trabalho de pensar e da coragem
de agir de todos os seus habitantes. Aos jovens deixo algo que falei a um jornalista em 1994: o Brasil
que todos queremos não é muito diferente deste que está aí. Bastam alguns retoques, e o País será aquele
com o qual os brasileiros sempre sonharam e que lhes tem sido prometido desde o descobrimento. Já
Pero Vaz de Caminha, em sua carta a El Rei, foi o primeiro a acreditar e propagar esta ideia, ao falar da
terra muito chã onde se plantando tudo dá... Quando aqui cheguei, ouvi falar que “Deus é brasileiro!”.
Acreditei nisso. Sendo Ele brasileiro, se nós fizermos a nossa parte, juntos faremos com que nosso povo
avance na direção de um país melhor, sem miséria e com grandes esperanças de sucessos.
Espero que este livro, escrito com muito zelo e carinho, leve a você, leitor, algo de útil que o ajude a
participar da conquista deste Brasil de que falo e com o qual todos sonhamos.
BIBLIOGRAFIA
São Bernardo do Campo — Berço do Brasil Moderno — autor Fernando Longo, Editora Via das Artes
— ano 2000.
Small Wonder — The Amazing Story of the Volkswagen by Walter Henry Nelson — Revised and
Enlarged Edition — publicado por Little, Brown and Company — Boston — Toronto — anos 1965,
1967 e 1970.
Powered by