A Formação Do Leitor (Doc) (Rev) - Jason Prado & Paulo Condini
A Formação Do Leitor (Doc) (Rev) - Jason Prado & Paulo Condini
A Formação Do Leitor (Doc) (Rev) - Jason Prado & Paulo Condini
com/group/digitalsource
Jason Prado e Paulo Condini
Organizadores
A FORMAÇÃO DO LEITOR
Pontos de Vista
Rio de Janeiro
Argus
1999
Projeto Gráfico: Eduardo Machado e Renata Vidal
Composição: Argus
Revisão: Paulo Corga
Edição
1999
Apresentação
Affonso Romano de Sant’Anna
Arnaldo Niskier
Bartolomeu Campos Queirós
Carlos Jacchieri
Edmir Perrotti
Eliana Yunes
Elizabeth D’angelo Serra
Elza Lucia Dufrayer de Medeiros
Ezequiel Theodoro da Silva
Fanny Abramovich
Francisco Weffort
Guiomar de Grammont
Guiomar Namo de Mello
Iara Glória Areias Prado
Jason Prado
Joel Rufino dos Santos
Jorge Werthein
Luiz Percival Leme Britto
Maria Alice Barroso
Maria Thereza Fraga Rocco
Ottaviano De Fiore
Paulo Condini
Paulo Renato Souza
Pedro Bandeira
Regina Zilberman
Rui de Oliveira
Ruth Rocha
Sônia Rodrigues
Tânia Dauster
Walda de Andrade Antunes
PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO
Os organizadores
[9]
APRESENTAÇÃO
Os organizadores
[12]
1 — AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
Sinto-me como o menino que tem que fazer uma composição sobre “Minhas
férias”. Nada mais simples. E, no entanto, bastante arriscado, pois há o perigo de se cair
no previsível, na banalidade.
Escrever sobre “leitura” e sobre a “formação do leitor” é algo que lembra
também aqueles filmes com títulos tipo “O crime no castelo”, “A última vítima”,
“Morte no entardecer”. O expectador já entra sabendo o que vai encontrar.
Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre “formação do leitor” ou sobre
“leitura” alguma palavra contra a leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor?
Assim, um tema como este deflagra logo uma questão que chamaria de a
armadilha do óbvio. Quem vai escrever sobre esses temas vai também naturalmente
dizer que é importante formar leitores, vai enfatizar que ler é um prazer, que a leitura
desencadeia processos conscientizadores e produtivos na comunidade, etc. Portanto, os
encontros [13] em tomo deste tema correm o risco de converterem-se em fervorosas
assembléias de autoconsolação.
Preferiria, como o fiz em outras ocasiões em que tive que abrir seminários,
congressos ou discussões sobre este tema, encaminhar algumas questões subjacentes,
ocultas, reprimidas, mas que representam uma radiografia, uma análise do terreno onde
pisamos e sobre o qual queremos construir algo.
Portanto, estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio, que nos afastam do
verdadeiro diagnóstico da doença ou do doente. E para tornar mais explícito o que aqui
está latente quero levantar uma questão básica: a necessidade de se proceder a uma
leitura crítica dos discursos sobre leitura.
Isto é um vasto e intrincado assunto. Tem inúmeras faces e disfarces, ou, como
eu disse antes — armadilhas. Uma coisa seria, academicamente, selecionar um corpus
de textos teóricos sobre a leitura, analisar propostas de programas de leitura e conferir
tudo isto com a prática. Ou seja: verificar se a esses textos se seguiu alguma ação
pragmática, que tipo de ação foi essa e se ela desmente a teoria ou que tipo de
obstáculos surgiram para sua realização.
Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito da armadilha do óbvio
está na banalidade da própria palavra “leitura”. Se em vez de “leitura” estivéssemos
usando uma palavra nova, de preferência importada de outra língua, talvez fosse mais
fácil fazer saber do que estamos falando.
Por isto, para espanto de muitos editores, escritores e professores eu tenho
repetido: é preciso que se esclareça que, quando falo de leitura, não estou falando de
leitura, mas sim de leitura.
Isto, advirto, não é uma charada nem um simples jogo de palavras. Quem tem
ouvidos, ouça, diz o profeta. Ou melhor: quem sabe ler, que leia.
A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não gera a ação concreta
e específica que gostaríamos deve-se ao que chamo de duplo discurso. Depois da
armadilha do óbvio essa é a segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada.
[14]
Uma coisa são os pronunciamentos, entrevistas, conversas da boca para fora,
outra coisa é realmente acreditar e levar adiante projetos conseqüentes. Neste sentido,
seria um não acabar coletar aqui e ali exemplos de práticas que não batem com as
teorias e intenções. Poderia, por exemplo, dizer sumariamente que durante os seis anos
(1991-1996) em que liderei, com uma equipe fantástica, a questão da promoção da
leitura e do livro no país, colhi exemplos fartos do duplo discurso.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, um disse claramente numa
reunião dentro do Ministério, para que todos ouvissem, que “leitura não é um assunto
prioritário no meu ministério, esse é um assunto para o Ministério da Educação”.
Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um ministro da Cultura,
que era membro da Academia Brasileira de Letras, que não estava falando de
alfabetização e sim de leitura. Ou melhor, que estava falando de leitura e não de leitura.
Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um “analfabeto
funcional”; ter que lhe mostrar projetos de implementação da leitura tanto na França
quanto na Colômbia; ter que lhe explicar o que é “desescolarização da leitura” e, além
disto, como se estivesse cometendo uma falta, mostrar que estávamos já realizando
programas de leitura em hospitais, quartéis, parques e sindicatos, que tínhamos projetos
de trem-biblioteca no sul do país, de bibliobarcos na Amazônia e no Rio São Francisco
e que as vidas de milhares de pessoas estavam se modificando por causa disto.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, só dois tomaram conhecimento
do programa de leitura que desenvolvíamos em 300 municípios, utilizando 33 mil
voluntários. Um deles, o último, esforçou-se, e conseguiu, desmobilizar o programa e
desfazer a equipe.
Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo — onde a prática não fecha com o
que é dito — diria que durante todo esse tempo, embora tenha encontrado um crítico e
um ficcionista que diziam tolices sobre “contadores de história”, não encontrei um só
prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram inúteis. No entanto, só
encontrei, entre as dezenas desses, apenas dois que haviam destinado verbas para [15]
compra de livros. Os demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham
pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por livre e espontânea vontade.
Dito isto, e como prova ainda do duplo discurso, assinale-se que a Colômbia
copiou e implementou um projeto brasileiro de promoção de leitura que teria a
participação da Câmara Brasileira do Livro e outros órgãos do governo. Isto não tem
nada demais. Pessoas, entidades e países devem se beneficiar com as boas idéias. Mas o
grave é que enquanto o projeto baseado nas propostas brasileiras era posto em marcha,
lá na Colômbia, pela Fundalectura, aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem
devia viabilizá-lo.
Finalizando, eu diria que nessa passagem de século, o Brasil, em relação à
questão da leitura, tem que batalhar ferozmente em três frentes ao mesmo tempo:
1) a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo. Ainda que algum
ministro ou presidente possa pensar assim, esta questão não diz respeito apenas ao
Ministério da Educação. Nos países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado
isto resultou de um projeto sistêmico nacional;
2) a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos funcionais: os que têm
rudimentos de educação, mas não conseguem decompor o significado dos signos. Na
Itália existem 15 milhões de analfabetos funcionais. Na França são 20% dos franceses.
Quem quiser que estime quantos são no Brasil, qualquer cifra entre 100 e 140 milhões
será possível;
3) a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao analfabetismo
tecnológico. As mudanças rápidas transformam o cidadão, mesmo de nível
universitário, num analfabeto diante das novas máquinas, e a atualização é dispendiosa,
competitiva e urgente.
Enfim, numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto — em que o leitor lê
em diversas direções e em profundidade, nosso país está povoado de hipoleitores —
aqueles que estão entre o analfabetismo e o analfabetismo funcional.
Como sair disto é fácil. Basta desarmar as armadilhas do óbvio e parar com o
discurso duplo. [16]
2 — ARNALDO NISKIER
Mesmo que se trabalhe sobre uma herança comum, como a que caracteriza a
comunidade lusófona, hoje de 200 milhões de habitantes, não há como avançar
adequadamente, na busca do homem novo, se mantidas as atuais condições de miséria e
pouco apreço pelas questões culturais.
No caso do Brasil, temos obstáculos de expressão à nossa frente, como a
existência de 19 milhões de analfabetos e um magistério de 1,2 milhão de profissionais
em geral desmotivados e recebendo salários incompatíveis com a dignidade da
formação do leitor brasileiro, em que estamos empenhados.
Enquanto países desenvolvidos exibem o índice de leitura de 10 livros por
habitante (média anual), o nosso atraso pode ser facilmente [17] medido pelo per capita
de 2 livros por habitante, nesse índice computando-se também os livros didáticos
distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Educação e do Desporto. Muito pouco se
o objetivo for a valorização do hábito de leitura entre nós.
Na verdade, não é o hábito de leitura que se busca, pois hábitos tendem a ser
impostos — e a imposição, na educação, caminha em geral para a rejeição. O que se
pretende é a formulação adequada de um gosto pela leitura, e isso na idade devida.
Sendo mais claro, é muito difícil estabelecer esse gosto a partir dos 16 ou 17 anos,
quando o jovem, em geral, tem o seu interesse voltado pragmaticamente para o exame
de habilitação ao curso superior, com a configuração que hoje ostente.
O ideal é que a criança, mesmo antes de ler, trave contato com os livros,
manipule-os, aprecie as ilustrações, interprete o que está vendo à sua maneira. Isso é
uma forma inteligente de despertar-lhe o gosto, que depois se traduzirá pelas primeiras e
definitivas leituras. Pensar que isso possa acontecer em idade mais avançada apresenta
pouca probabilidade de sucesso, embora casos se registrem.
Numa reunião do Comitê Executivo do Programa “Leia Brasil”, no Rio, que é
uma iniciativa de primeiríssima qualidade, com apoio da Petrobras, chamei a atenção
para uma realidade incontrastável. O MEC distribui gratuitamente 60 milhões de livros
didáticos para alunos carentes, num determinado ano, mas não repete a dose no ano
seguinte. É o primeiro problema. O segundo, ainda mais grave, na linha da formação do
leitor, é a discrepância aritmética em relação aos livros paradidáticos. Ou seja, o mesmo
canal que libera os livros didáticos praticamente desconhece os paradidáticos, que
seriam a riqueza com a qual se manteria o interesse pela leitura, nas classes abastecidas
pela primeira remessa.
Aqui se assinala, para tristeza nossa, a descontinuidade dos projetos
pedagógicos. Vai o livro de Língua Portuguesa, por exemplo, mas não segue nenhum
outro de literatura infanto-juvenil. Cessados os efeitos da inserção do primeiro, no
processo, não há material para sustentar a motivação estimulada, volta-se praticamente
ao estágio anterior de ignorância, o que configura enorme e lamentável desperdício.
Esta continuidade precisa ser assegurada. [18]
LÍNGUA PORTUGUESA
HORA DA LEITURA
1
(Bertrand Russell, O conhecimento humano. Vol. 1o, p. 15, Cia. Ed. Nacional, 1958.)
[29]
5 — EDMIR PERROTTI
Vista de um ponto
Eliana Yunes — que concorda com Borges e se orgulha
mais das páginas que leu do que das que escreveu —, é
professora de Letras e aprendeu que elas são mortas se
o homem não as vivifica. Pesquisadora, criadora do
PROLER, professora de Teoria na PUC-Rio, com
atuação em universidades públicas de vários Estados,
tem extensa bibliografia teórica e metodológica sobre
leitura. É, também, consultora de organismos
internacionais.
O que mais tenho a dizer sobre a formação do leitor, depois de ter passado
quinze anos vivendo e pesquisando o percurso, de ter proposto uma teoria e uma
pedagogia que, ao que parece, ainda não foi refutada nem revista e ampliada por pares e
ímpares daqui e d’além mar? Uma e outra correm o país e já estão recolhidas em teses e
dissertações, eximindo-me da obrigação de concluí-las: elas caminham com os próprios
interlocutores. Não, não se trata de presunção ou arrogância. Trata-se de uma “evidência
invisível” como o claro enigma “drummondiano” que só conhece quem experimenta. E
disto podem dar testemunho milhares de neoleitores que se vêm constituindo no Brasil,
com todo o rigor teórico mas sem efeitos especiais de intelectualismo; com toda a
metodologia preconizada mas sem os malabarismos das receitas técnicas, que se [41]
tornam obsoletas, tão logo mudem os contextos e os sujeitos.
Mas, no mesmo dia em que recebi a convite de Paulo Condini para escrever
quatro laudas sobre o tema deste livro e que vacilava em fazê-lo, chegou-me um correio
eletrônico de Maria Angela Campeio de Melo, com uma mensagem destas que, de tanto
gostar, ela distribuía pela Internet, em fragmento.
Ei-lo:
“O paradoxo de nosso tempo na história é que temos edifícios mais altos, mas
pavios mais curtos; auto-estradas mais largas, mas pontos de vistas mais estreitos;
gastamos mais, mas temos menos; compramos mais, mas desfrutamos menos, variedade
de cardápios, mas menos nutrição. São dias de duas fontes de renda, mas de mais
divórcios; de residências mais belas, mas lares quebrados.
“São dias de viagens rápidas, fraldas descartáveis, moralidade também
descartável, ficadas de uma só noite, corpos acima do peso, e pílulas que fazem de tudo:
alegrar, aquietar, matar.
“É um tempo em que há muito na vitrine e nada no estoque; um tempo em que a
tecnologia pode levar-lhe essas palavras e você pode escolher entre fazer alguma
diferença, ou simplesmente apertar a tecla Del.” (P. Fabro)
A aproximação meramente casual dos papéis na impressora ofereceu-me a
justificativa e o pretexto. Quem me lê deve estar pensando o que tem este texto a ver
com o que me foi pedido dizer, em exíguas linhas que pareço desperdiçar. Nesta escrita
— sem sofisticações lingüísticas, coloquial quase, com uma economia de recursos
expressivos, feitos de pontuações antitéticas em estruturas paralelísticas —, que leio?
Para além do dito, o implícito e o subentendido: uma leitura crítica de mundo.
Para escrever essa leitura — porque ela o é, não sendo necessário lembrar Paulo
Freire — grafando-a em um instantâneo de frases curtas, o autor/leitor (de mundo) deve
ter se debruçado atentamente sobre a vida dos homens neste final de milênio, com os
valores e expectativas de seu repertório pessoal, recolhidos de um amplo acervo de
memórias atuais sobre a condição humana, em hora de profundas contradições.
Sabendo que na linguagem os discursos tanto flagram a natureza [42] dada das
coisas em seu recorte cultural, quanto fazem surgir, nos desvãos do consenso e da
linearidade, a palavra inaugural que surpreende outras versões de mundo, podemos
dizer que um leitor se vai constituindo também por ela. Enquanto pronuncia-se como
um pronome /eu/, sujeito conscientizado de seu lugar histórico e responsável pelas
conseqüências de seu dizer/pensar/fazer, o leitor alcança uma singularidade própria e
comunicável, passível de ter assinatura.
Ela, a singularidade, se dá como expressão de uma compreensão súbita que não
ignora o contexto, os interlocutores e suas outras motivações; ela propõe sentido para o
vácuo que há entre o mundo e o anseio de plenitude e transparência do homem, na visão
desse leitor — e se oferece como escrita.
Ela, a linguagem, é denúncia de nossa doença, de nossa falta, e, ao mesmo
tempo, nosso remédio e cura, ponte sobre o vazio. A leitura singular é resposta e recusa
à passividade; leitura é mais que recepção. O leitor que percebe as fraturas de nossas
práticas quer acusá-las na criação, o que nem sempre se dá sem conflitos. E lá está a
palavra que convida a sair da casca, que provoca, incita o próprio desejo de ser outro e
não o mesmo: “Galos sozinhos não tecem manhãs.”
Recorrer à literatura realiza isto porque não diz, antes pede a seu leitor que o
diga, que se pronuncie, e, tendo “lido”, escreva. Isto fez Fabro e faço eu: “fisgo pela
palavra, a não palavra”; só se é escritor porque antes se é leitor. Mais ainda, vejo no
texto quantas observações atentas em marcas da língua, aparecem singularmente
articuladas, reunidas para insinuar a dissonância que, afinal, expressam — faço a leitura
da palavra. Nela, subitamente o novo, a outra coisa, a terceira margem — e nós, seus
leitores, que nos inscrevemos no texto, apertando a tecla ENTER: pronto, aqui estamos,
parceiros das subjetividades com que construímos o mundo — não apenas porque
endossamos, rejeitamos ou polimos o texto e as idéias. Mas sobretudo porque, ouvindo
nossa voz no comentário, criamos e sabemos então o que é ser... humano. [43]
7 — ELIZABETH D’ANGELO SERRA
Excelentíssimas crianças
Se eu fosse vocês, a primeira coisa que pediria à professora ao entrar na sala
de aula, pela manhã, seria:
“Professora, leia uma história para nós.”
Não existe melhor maneira de começar um dia de trabalho!
E no final do dia, quando a noite chega, meu pedido ao adulto mais próximo
seria:
“Por favor, conte uma história para mim.”
Não existe melhor maneira para escorregar nos “lençóis da noite.”
Mais tarde, quando vocês já forem grandes, lerão para outras crianças aquelas
mesmas histórias.
Desde que o mundo é mundo e que as crianças crescem, todas estas histórias
escritas e lidas têm um nome muito bonito: literatura.
Bibliografia;
— LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil.
São Paulo: Ática, 1996.
— LEITE, Paulo Moreira & DE MARI, Juliana. Andando para cima. Revista
Veja. São Paulo: Abril (1.602), 68-71, jun. 1999 [50]
8 — ELZA LUCIA DUFRAYER
DE MEDEIROS
NOTAS
(1) A expressão “O livro é livresco, mas sem livros” é de João [58] Wanderley
Geraldi, servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da
Leitura (SP: Martins Fontes, 1988, p. IX-XIII). Ele assim a caracteriza: “Sem livros,
pratica-se no Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário,
mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura, obedecendo cegamente
aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos
textos tomados como fins em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas
máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros didáticos.
Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis; nunca o livro por inteiro
porque seria trabalho estudá-lo para extrair dele o que se busca: não há busca,
engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as
sopas pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar, mastigar,
degustar — a papa está pronta”.
Difusão cultural
A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de
contas, ler faz muito mal às pessoas : acorda os homens para realidades impossíveis,
tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura
induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo
social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O
primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se
pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal
sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tornou-se esposa
inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um [71] adulto
perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser
de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o
homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o
encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria
ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria
nunca o sumo Bem de Aristóteles : o conhecer. Mas pra que conhecer se, na maior parte
dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que
dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para
caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode
estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos
transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de
cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento.
Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás
das nuvens. Estrelas jamais percebidas.
É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar
nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem
levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um
animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de
progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência.
Professores, não contem histórias, podem estimular uma curiosidade indesejável em
seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos
seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma
ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a
sociedade se todos os seres humanos [72] soubessem o que desejam. Se todos se
pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos
discursos os instrumentos de conquista da sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões
utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos,
manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização
contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados
para outras dimensões, menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de
pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há
correntes, prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura ?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se
divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, Jamais àqueles que
desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da
alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um
poder e o poder é para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a
linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros
sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público,
o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua
história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do
Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano. [73]
13 — GUIOMAR NAMO DE MELLO
A história escolar vem mostrando que, não apenas no Brasil mas em diferentes
países do mundo, o acesso ao ensino da língua — alfabetização e estudos posteriores —
não tem garantido a competência dos alunos para utilizar adequadamente a escrita. Há
um enorme contingente de pessoas que tecnicamente aprendeu a ler e escrever na escola
e não consegue fazer uso da linguagem em situação de leitura e escrita — são os
chamados analfabetos funcionais: pessoas que, em decorrência do tipo de ensino que
tiveram, não se tornaram capazes de compreender o que lêem e de se comunicar por
meio da escrita.
Porém, alguns dados numéricos permitem analisar a dramática situação
brasileira no que se refere ao acesso a livros, a despeito de todas as estimativas de que
os níveis de leitura vêm se elevando. Segundo a [81] Câmara Brasileira do Livro, o país
consome 2,3 livros per capita ao ano, sendo que 60% dos livros vendidos são escolares
— didáticos e paradidáticos — e que parte considerável é distribuída gratuitamente pelo
governo nas escolas. E o Ministério da Cultura informa que a maior parte do material de
leitura adquirido espontaneamente no país é comprado em bancas de jornais e revistas e
que as bancas vendem mais livros do que as livrarias. Informa também que há apenas
4.000 bibliotecas públicas no Brasil, aproximadamente uma para 40.000 habitantes.
E, somando-se a outros tantos, disse o escritor Alberto Manguei, em entrevista
recente a uma revista brasileira: “Ler é poder.” A leitura dá poder porque é um meio
para compreender o mundo e essa compreensão é uma condição de cidadania— além do
que, lendo, podemos nos tornar, cada vez mais, também cidadãos da cultura escrita.
Portanto, os desafios que se colocam para a escola — espaço privilegiado de
desenvolvimento da competência para ler e escrever — não são poucos, pois todas as
evidências têm mostrado que essa competência não depende propriamente do acesso a
certas práticas convencionais de ensino da língua, mas a experiências significativas de
utilização da escrita no contexto escolar, tanto em situação de leitura como de produção
de textos.
O Ministério da Educação, assumindo seu papel de indutor de políticas, vem
produzindo documentos e incentivando projetos que têm na formação de leitores uma
das finalidades principais.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Referencial Curricular Nacional de
Educação Infantil, a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos, os
Referenciais para a Formação de Professores são documentos orientadores da educação
escolar e da formação dos docentes brasileiros, que assumem a defesa da formação de
leitores como uma prioridade e sugerem possibilidades de trabalho pedagógico para
incentivar a leitura e desenvolver a capacidade dos alunos de fazer uso real da escrita.
O “Programa Nacional Biblioteca na Escola” — que distribui livros de
literatura, obras de referência e materiais de apoio a alunos e professores de escolas
públicas de ensino fundamental — e o projeto “Pró-Leitura na Formação do Professor”
— que integra o Programa de [82] Cooperação Educacional Brasil-França e é resultado
da iniciativa conjunta do MEC e da Embaixada da França — são ações complementares
com a mesma finalidade.
A tarefa é, cada vez mais, criar condições favoráveis para o desenvolvimento de
propostas eficazes de formação de verdadeiros usuários da linguagem, o que pressupõe
trabalhar com os diferentes textos, tanto em situações de produção como de
compreensão. No que se refere à leitura, isso implica um amplo trabalho não apenas
com livros, mas com todos os materiais em que a palavra escrita é ferramenta para o
acesso à informação, ao entretenimento, à compreensão crítica do mundo...
Principalmente quando os alunos não têm contato sistemático com bons
materiais de leitura e com adultos leitores, quando não participam de práticas onde ler é
indispensável, a escola deve oferecer materiais de qualidade, modelos de leitores e
práticas de leitura eficazes. Essa pode ser a única oportunidade de esses alunos
interagirem significativamente com textos cuja finalidade não seja apenas a resolução
de pequenos problemas do cotidiano. É preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do
mundo: não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam apenas durante as
atividades na sala de aula, apenas no livro didático, apenas porque o professor pede.
Sem um trabalho com a diversidade textual, certamente não é possível formar leitores
competentes, ou seja, pessoas que, por iniciativa própria, são capazes de selecionar,
dentre os textos que circulam socialmente, aqueles que podem atender às suas
necessidades e que são capazes de utilizar procedimentos adequados para ler.
Hoje se sabe que o desenvolvimento da capacidade de ler depende, em grande
medida, do sentido que a leitura tem para as pessoas: do ponto de vista de quem lê, a
escrita deve responder a objetivos de realização imediata. É assim que acontece fora da
escola: lemos para solucionar problemas práticos, para nos informar, para nos divertir,
para estudar, para escrever ou revisar o próprio texto. Certos textos lemos por partes,
buscando a informação necessária, outros exaustivamente e várias vezes, outros
rapidamente, outros vagarosamente. Às vezes controlamos atentamente a compreensão,
voltando atrás para checar nosso [83] entendimento; outras seguimos adiante sem
dificuldade, entregues apenas ao prazer de ler; outras realizamos um grande esforço
intelectual e, a despeito disso, continuamos lendo sem parar...
Toda criança, jovem e adulto têm direito a essas experiências de leitura também
na escola. Isso requer um trabalho pedagógico, criteriosamente planejado, não só com a
diversidade de textos, mas com a diversidade de objetivos e formas de ler.
Para tornar os alunos bons leitores, para desenvolver o gosto e o compromisso
com a leitura, a escola terá de mobilizá-los internamente, pois esse é um aprendizado
que requer esforço. Precisará fazê-los achar que ler é algo interessante e desafiador, algo
que, conquistado plenamente, dará a eles autonomia e independência. E terá de oferecer
condições favoráveis para as práticas de leitura — que não se restringem apenas aos
recursos materiais disponíveis, pois, na verdade, todas as evidências têm revelado que o
uso que se faz dos livros e demais materiais escritos é o aspecto mais determinante para
a formação de leitores de fato. [84]
15 — JASON PRADO
Ingenuidade e inconseqüência
Publicitário, jornalista. Professor Convidado da cadeira
de Promoções e Merchandising da Escola de
Comunicação da UFRJ e Diretor Geral do Programa
Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.
Para uma Organização das Nações Unidas que há mais de meio século luta
contra o analfabetismo no mundo, escrever sobre a formação do leitor representa mais
um desafio e também uma oportunidade, no marco de uma política cujo objetivo maior
é o de assegurar a todas as pessoas, sem nenhuma discriminação, condições para o
domínio dos códigos básicos da cidadania, quais sejam, o domínio da leitura, da escrita
e do cálculo.
O mundo, lamentavelmente, entrará no próximo milênio com aproximadamente
1 bilhão de analfabetos absolutos e 100 milhões de crianças sem escola. Se a esses
números adicionarmos o grande contingente de analfabetos funcionais, verifica-se logo
que estamos diante de um quadro assustador, pois privar seres humanos do direito da
leitura [93] e da escrita equivale a negar-lhes o direito à cidadania. Sem dúvida, pois
como muito bem lembrou Antenor Gonçalves, a língua é o grande projeto de formação
de cidadania, por meio do qual o homem toma conhecimento dos direitos que lhe
garantem e protegem a vida, nas condições de produção de sua vida social e individual.
O domínio da língua, continua Gonçalves, significa o ingresso no universo dos homens
livres, gerando resistência à opressão.1
É devido a isso que a UNESCO atribui prioridade máxima à erradicação do
analfabetismo e à educação permanente para todos. Não se trata mais de apenas
erradicar o analfabetismo — embora seja esta uma condição politicamente estratégica
— mas de garantir educação continuada para todos e por toda a vida. A Declaração de
Hamburgo Sobre Educação de Adultos, aprovada em 1997, admitiu que a educação ao
longo da vida é mais do que um direito: é uma das chaves do século XXI. É, ao mesmo
tempo, conseqüência de uma cidadania ativa e uma condição para participação plena na
sociedade.
Observa-se que este novo conceito de educação é de grande importância no
contexto da discussão sobre a formação do leitor. Por um lado, significa que o processo
de alfabetização precisa ser visto como passo inicial necessário ao início de uma
trajetória longa de ler e de ver o mundo com lentes que vão se ampliando para melhor
decifrar a realidade; por outro, significa que a formação do leitor necessita
aprendizagens que favoreçam o desenvolvimento da capacidade de análise e de crítica.
Não é mais suficiente somente ler. É preciso mais. É preciso saber ler. É o saber
ler que permite indagar e perguntar. Eis aí o sentido pedagógico da leitura. Tinha razão
George Steiner ao afirmar que ler corretamente é correr grandes riscos. É tornar
vulnerável nossa identidade, nosso autodomínio. Sem dúvida, é esse tipo de leitura que
permite a iluminação da realidade. Mas como formar esse leitor? Pode ser que existam
vários caminhos, mas nenhum se iguala ao da escola pública de qualidade, que é o locus
privilegiado para a aquisição dos instrumentos necessários para uma leitura crítica do
mundo. É o locus insubstituível onde podem e devem ser construídos os alicerces para
que cada aluno-sujeito dê início a uma trajetória de crescente autonomia intelectual, de
[94] forma a garantir permanente aquisição e domínio de saberes.
Se é verdade que a escola pode desempenhar papel dos mais relevantes no
processo de formação do leitor, é importante sublinhar que essa potencialidade só se
explicitará, plenamente, na medida em que o projeto pedagógico da escola colocar o
ensino da língua em posição privilegiada, ou seja, o estudo da língua precisa ser
entendido como veículo de inserção lúcida do estudante no circuito de idéias de seu
tempo. O domínio das idéias e da cultura, que caracteriza o tempo histórico no qual o
estudante se acha inserido, é de grande alcance para ampliar o significado das diversas
leituras que se tornarem necessárias.
Para se ter uma idéia de como pode ser importante a leitura e, sobretudo, a
leitura dos clássicos, reportamo-nos novamente a George Steiner, que, ao comparar o
ensino das ciências com o ensino das humanidades, afirmou:
Máximas impertinentes
Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para
ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me
é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel
de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia.
(Rodrigo S. M. — na verdade Clarice Lispector — A Hora da Estrela)
O mito de que ler faz bem, de que torna as pessoas melhores, parte do princípio
de que não importa o que se leia. No entanto, não se [98] pode negar que a leitura
pressupõe necessariamente o texto, que se este não existe sem aquela, a recíproca
também é verdadeira. Assim, não se pode pensar a leitura sem pensar os objetos sobre
os quais ela incide. Ler um romance pressupõe, em função dos códigos sociais
estabelecidos, esquemas e finalidades de leitura diferentes de quando se lê um relatório
ou uma receita culinária (sei que se pode escrever um poema na forma de uma receita,
que se pode escrever um relatório literário, que é tênue a fronteira entre biografia e
ficção; mas sei também das convenções que permitem essas possibilidades).
O leitor de X é leitor de X
Outra das idéias que circula muito nas escolas e em programas de promoção da
leitura é que o importante é ler, não importa o quê. Por trás dessa idéia, está a crença
que uma leitura puxa outra e que a pessoa começa lendo história em quadrinho e
conforme pega o gosto pela leitura passa a ler coisas melhores. Nada contra que o
sujeito leia o que quer ou precisa, mas não há como aceitar essa idéia de progressão na
formação do leitor. As TVs educativas continuam mantendo índices de audiências
baixíssimos, apesar da enorme audiência de certos programas sensacionalistas. Os
filmes de autor continuam sendo assistidos por muito menos gente que os filmes de
aventura. O grande sucesso de jornais populares no Rio de Janeiro não implicou o
aumento de vendas dos jornais tradicionais. De fato, o sujeito vai ler aquilo que tenha
relação com seu modo de vida, com suas necessidades pessoais e profissionais, com os
vínculos culturais e sociais.
Não é a leitura que conduz o indivíduo a novas formas de inserção social. É, ao
contrário, o tipo de vínculo que ele estabelece que pode conduzi-lo eventualmente a ler
certas coisas de certo jeito. A leitura, mesmo feita em recolhimento, não é um
comportamento subjetivo, uma questão de hábito ou de postura, é uma prática inscrita
nas relações histórico-sociais.
Se assisto a um show de música, se saio para dançar, se fico vendo TV, se vou
no parque de diversões, se jogo futebol, se faço um churrasco com amigos ou se leio um
livro, isso depende dos meus gostos, modo de vida e condição financeira. Não há até aí
nenhum parâmetro de avaliação que permita dizer que esta diversão é melhor que
aquela; pode-se, isto sim, lançar mão de princípios éticos ou sociais para pôr em questão
certas diversões macabras.
Divertir-se é muito bom e não tem por que supor que a leitura não seja um bom
divertimento. Mas, enquanto divertimento, ela não é diferente de qualquer outra forma
de entretenimento (prazer por prazer, tanto faz ler ou ver). Ela não forma ou transforma
ninguém, não produz nenhuma mudança na sociedade nem conduz a outros hábitos.
De qualquer modo, não se pode esquecer que, na sociedade industrial moderna, a
indústria do entretenimento é uma das maiores do mundo, movimentando somas
fantásticas de dinheiro. Nesse sentido, o livro ou revista é uma mercadoria como outra
qualquer, como um brinquedo, um doce ou uma peça de vestuário, e cabe aos
empresários do setor promover seus produtos. [100]
Não será demais recordar que nossa geração de bibliotecários (aquela que surgiu
na década de 50), se fosse interrogada quanto ao real motivo que a teria levado ao
estudo da biblioteconomia, daria como resposta a determinação de contribuir para a
formação do leitor, acima de tudo.
Podia ser até que muitos houvessem enveredado por esse caminho pela afinidade
com aquele que seria o leitor infantil; e não será difícil compreender que a compreensão
do texto torna-se cada vez mais completa na medida em que esse texto for mais simples,
em que as palavras se complementem sem o esforço maior do pernosticismo lingüístico.
Assim, os bibliotecários que passaram a centralizar o seu trabalho naquele leitor
em potencial (que muitos também chamam de analfabeto [103] funcional) descobriram
na simplicidade do texto infantil a indispensável aproximação que se oferece aos que se
iniciam e/ou desenvolvem o seu exercício de alfabetização trilhando o caminho da
educação supletiva.
Há, portanto, uma clara conexão no fato de a biblioteca pública estar sendo
amplamente utilizada não só em cursos de alfabetização como naqueles destinados aos
analfabetos funcionais.
Como um “centro de informação” é possível reconhecer nos bibliotecários os
educadores (e não, meramente, instrutores): assim é que a educação do adulto passou a
conceituar aqueles que não tiveram acesso ao estudo em idade própria ou que só
lograram esse acesso de modo insuficiente.
No Brasil, a sugestão de utilizar a biblioteca pública paralela à escola na
complementação da educação do adulto tem a ver com a aprendizagem da leitura: o
material didático deverá ser apropriado para aquele que vem de ingressar na biblioteca a
fim de adquirir, no mínimo, habilidades de escrita, leitura e operações numéricas — o
que deverá facilitar o seu ingresso no mercado de trabalho.
Os bibliotecários não são servidores da escolaridade, porém podem ser
considerados como os agentes capazes de transformar o mundo particular dos leitores.
Eles oferecem acesso a um universo coerente ou a um tipo de poder capaz de estruturar
a incoerência através da linguagem. Na verdade, o bibliotecário expande o seu papel de
contribuir para que o usuário aumente a habilidade no processo da leitura.
Alguma estatística: O Library Literary Planning Guide informa que 25 milhões
de adultos americanos não sabem ler nem escrever; outros 35 milhões são
funcionalmente analfabetos; 85% dos jovens que comparecem perante a Corte de
Justiça são analfabetos funcionais; de 4 a 6 dos 8 milhões de desempregados se
ressentem de não terem sido treinados, pelo menos, com habilidades cotidianas, o que
poderia, hoje, dar-lhes oportunidade num emprego de relativa tecnologia. Cerca de um
terço das mães que recebem auto-alimentação são funcionalmente analfabetas. Um, em
cada três americanos, se reconhece incapacitado de ler um livro. A população existente
nas prisões representa a mais alta concentração de analfabetos funcionais. (JOHNSON
& SOULE, Illinois, 1986, p.408). [104]
Na verdade, a estatística acima enseja que se indague: em que se distingue o
analfabeto do alfabetizado que não lê?
Cabe, ainda, indagar o que têm feito as bibliotecas públicas pelos que desejam se
alfabetizar?
Definição: O analfabetismo — como quase todo termo na área da Educação —
possui vários significados. As várias interpretações da palavra, ou seja, aquela que diz
respeito ao analfabetismo do adulto e a que se refere ao analfabetismo funcional, nem
sempre são adequadas ao contexto em que são usadas.
Analfabeto funcional é aquele que não consegue ler o formulário do seu próprio
emprego nem as instruções que lhe são passadas por seu superior, tem dificuldade em
realizar operações numéricas ou decodificar as manchetes de jornais.
Há quem indague por que a biblioteca pública?
Vale a pena lembrar FLUSSER (O bibliotecário animador, 1982, p.122) que cita
a biblioteca pública como o órgão capaz de dar a palavra a quem não a tem. Vale
enfatizar a transformação ocorrida na alfabetização de adultos, que era realizada de
forma autoritária (FREIRE, A Importância do ato de ler, 1984, p. 83) e agora a palavra
é uma ato de reconhecimento do mundo, um ato criador. Ele pontua que a instrução da
educação não se limita ao treinamento técnico a fim de corresponder às necessidades de
uma área. Na verdade, FREIRE não se refere à educação que domestica e acomoda, mas
à educação que liberta pela conscientização, com a qual o homem opta e decide.
FREIRE inova classificando a biblioteca popular como um centro disseminador
do saber e não como um depósito silencioso de livros. Em sua obra A importância do
ato de ler em três artigos que se completam (1994, p. 18) esse educador afirma que falar
da educação de adultos e de bibliotecas escolares é falar, entre muitos outros, do
problema da leitura e da escrita. Não da leitura de palavras e de sua escrita em si
próprias, como se lê-las e escrevê-las não implicasse uma outra leitura, prévia e
concomitante àquela, a leitura da realidade mesma.
Um outro ponto que FREIRE acha interessante sublinhar é que uma visão crítica
de educação, portanto da formação do leitor, se refere à necessidade que têm os
educadores de viver, na prática, o [105] reconhecimento óbvio de que nenhum deles
está só no mundo.
A biblioteca popular/pública necessita estimular a criação de horas de trabalho
em grupo, realizando verdadeiros seminários de leitura.
Numa área popular — que possa ser desenvolvida por bibliotecários,
documentalistas, educadores, historiadores — poderá ser feito o levantamento da área
através de entrevistas gravadas com os mais antigos moradores, o que poderia
representar o testemunho dos momentos fundamentais da sua história comum.
PAULO FREIRE recomenda que se faça com esse material folhetos, observando
total respeito à linguagem dos entrevistados. Esse material, desde que coletado em
diferentes regiões, deverá ser intercambiado, constituindo um material didático de
indiscutível valor: nele possivelmente encontraremos o autor (recém-alfabetizado) que o
escreveu, como também através dele encontraremos o leitor que estará exercitando a sua
aprendizagem de leitura.
Como bem enfatiza o educador PAULO FREIRE, um dos aspectos positivos de
um trabalho como esse é o reconhecimento do direito que o povo tem de ser sujeito da
pesquisa, que poderá conhecê-lo melhor. E não objeto da pesquisa que os especialistas
fazem em torno dele.
A forma como deve atuar uma biblioteca pública, a constituição de parte do seu
acervo que deverá estar dirigida à formação dos analfabetos funcionais, as atividades
que podem ser desenvolvidas em seu interior, tudo isso deve estar inserido numa
política cultural: na verdade, a biblioteca pública deve também ser utilizada na educação
do adulto.
Até a Segunda República o problema da educação dos adultos não se distinguia
especialmente dentro da problemática mais geral da Educação Popular. Em sua tese de
mestrado VANILDA PAIVA (Educação popular e educação de adultos) esclarece que a
educação de adultos começou a ser percebida de forma independente a partir da
experiência do Distrito Federal (1933-1938), com ANISIO TEIXEIRA, como Secretário
da Educação, e das discussões travadas no Estado Novo, quando o censo de 1940
indicava a existência de 55% de analfabetos nas idades de 18 anos e mais. [106]
Devemos admitir no analfabetismo o traço delineador que sublinha as áreas da
injusta distribuição educativa, dividindo a humanidade. Em certas regiões geográficas é
possível reconhecer a existência do analfabetismo, da desnutrição, da pobreza, da
mortalidade infantil contribuindo para uma péssima qualidade de vida.
E também devemos estar conscientes de que não será somente através do
combate ao analfabetismo que conseguiremos vencer a injustiça social.
Vivenciando a véspera do 3o milênio, cremos que deva ficar bastante claro que a
alfabetização não se engloba somente nas exigências da sociedade ou do governo, na
intenção de incorporar os analfabetos -os analfabetos funcionais — na cultura letrada; o
centro de interesse deve ser a educação do adulto. A alfabetização pode ser uma das
ferramentas disponíveis para a educação do adulto. [107]
20 — MARIA THEREZA FRAGA ROCCO
Reflexões Iniciais
Leitor — texto — leitura, termos fundadores de uma relação aparentemente
imutável, revelam, no entanto, que entre o traçado da escrita, do texto — mais fixo e
menos sujeito a modificações —, e as leituras que dele se fazem, instaura-se, conforme
M. de CERTEAU, uma nova ordem em que prevalecem “o efêmero, a pluralidade e a
invenção”. E por quê? Porque, segundo o autor, “nossa sociedade hoje mede a realidade
por sua capacidade de mostrar, de se mostrar e de transformar as comunicações em
viagens do olhar.”2
O leitor agora busca nos textos uma reapropriação de si mesmo. Nesses textos, a
partir da própria experiência prévia de vida, o leitor, o espectador se tornam plurais. No
programa de atualidades da TV, no texto do livro ou do jornal, leitores/espectadores
enxergam paisagens do [109] próprio passado que acabam por integrar às visões, às
leituras do presente.
Desse modo, os textos, enquanto espécies de “reservatórios de formas”, esperam
que o leitor lhes dê vida, modificando-os enquanto objetos de leitura, aos quais são
atribuídas “múltiplas significações”.3
Mas nem sempre as “coisas” foram assim. Pelo menos, oficialmente. Houve um
momento em que se acreditava numa ordem fixa mais ou menos secreta — inerente à
natureza dos textos — e inacessível aos não iniciados.
O livro, os textos escritos, sacralizados e inatingíveis, só poderiam ser objeto de
estudo dos privilegiados que transformavam a leitura feita (também legítima, claro!) em
um produto ortodoxo de interpretação única. Assim, textos, livros, lidos por vozes
uníssonas, prendiam-se a um poder social fortemente elitizado e amplamente
propagado.
Foi preciso o tempo passar. Foi preciso questionar a estaticidade e a rigidez de
certas instituições (igreja, escola, partidos). Foi preciso surgir um Roland Barthes para
que se começasse a mostrar, sem nevoeiros, a relação de reciprocidade, antes velada,
que sempre existiu entre leitor, leitura e texto. Uma vez desvendada, tornou-se possível,
então, enxergar com nitidez a “pluralidade indefinida das ‘escrituras’ produzidas pelas
diversas leituras”.4
Em nossos dias, esse tipo de poder citado ainda pretende ser exercido, por
exemplo, em vários produtos da mídia e na própria escola. Na medida em que
procuram, por vezes, isolar os textos de seus leitores e receptores, algumas matrizes
tentam inutilmente deter a posse e estabelecer uma “verdade” única dos textos, seja por
parte dos produtores, seja por parte dos próprios professores.
Inutilmente, sim. Pois como ensina ainda de CERTEAU, “por trás do cenário
teatral dessa nova ortodoxia, se esconde hoje, como também no passado, a atividade
silenciosa, transgressora, irônica ou poética de leitores (ou espectadores) que sabem
resguardar boa parte da própria privacidade e manter a distância necessária dos
‘mestres’”.5
Referências
1. CAVALLO, G. e CHARTIER, R., História da leitura no mundo ocidental,
São Paulo, Ática, 1998, v. 1, p. 9.
Em 1990 éramos cerca de 144 milhões e produzimos em torno de 1,6 livros per
capita. Em 1998 somos quase 160 milhões e estamos produzindo perto de 2,4 livros per
capita, o que significou uma melhoria real — que pode ser atribuída à estabilização da
economia iniciada em 1995. Entretanto, este número manteve-se o mesmo entre 1996 e
1998. No ano 2000 as projeções indicam que seremos 165 milhões e, se o [118]
consumo de livros continuar crescendo apenas passivamente, produziremos cerca de 2,5
livros per capita — isto é, estaremos marcando passo.
A situação é, aliás, pior do que pode parecer: destes 2,4 livros per capita
produzidos nos últimos três anos, apenas 0,7 são livros não didáticos. Ou seja, o livro
didático, que é praticamente obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo
federal, constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país. Pode-se
afirmar que, na prática, o único livro que o povo brasileiro conhece é o escolar, e que,
terminada a escola, ele deixa de ter qualquer contato com este instrumento fundamental
para o desenvolvimento social, político e econômico da nação e dos indivíduos.
Duas exceções importantes devem ser registradas. Uma é o livro religioso, que
cresce muito mais que os outros setores devido à distribuição mais eficiente e
penetrante. Outra é o livro infanto-juvenil, (às vezes classificado incorretamente como
paradidático), que cresceu devido a sua ligação essencial com a escola. Constatadas
estas duas exceções, todo o resto — livros de referência, literatura, técnicos,
profissionais, científicos — mantém-se dentro dos 0,7% que não crescem com o passar
dos anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de nossa economia. De
fato, na última década, a quantidade de livros per capita no Brasil tem crescido e
decrescido em proporção direta com o aumento ou diminuição das compras de livros
escolares pelo estado. O livro livremente comprado pelos cidadãos é um mercado que
não se desenvolve.
Os fatores da leitura
O livro na família
Nossas livrarias
Para um país de 160 milhões temos cerca de 22 mil bancas de jornal e menos de
mil livrarias, a maioria em dificuldades. O problema fundamental não é sequer a falta de
clientes porque basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa cidade
sofra uma explosão. Mesmo para o nosso livro tão caro há uma demanda reprimida que
não é atendida. [121]
É necessário, pois, estabelecer uma política nacional de fomento às livrarias,
seguindo a máxima de José Sarney: A livraria é um serviço público terceirizado. Esta é
uma questão delicada, pouco estudada, mas essencial para o futuro do livro. Uma
proposta importante, surgida na Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica, é
a criação de um programa especial que permita às 10 mil papelarias do país voltar a
vender livros como elas faziam no passado antes da venda de livros tornar-se para elas
um negócio desimportante e secundário.
A questão do preço do livro é pois um problema que requer transformações
estruturais muito menos ligadas aos fatos da produção do que aos fatos da distribuição.
Ele só será resolvido progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de
bibliotecas públicas e escolares — expansões estas que permitam aos editores trabalhar
com grandes tiragens e economia de escala.
Nossas bibliotecas
Além da biblioteca pública, com sede fixa, existem dois outros tipos que não
podem ser esquecidos: a biblioteca volante e a mala de livros. [124]
A mala de livros é o que melhor se adapta às regiões muito pobres ou às de
baixa densidade populacional. Sua vantagem é o pequeno custo associado à mobilização
espontânea dos leitores. O sistema funciona melhor quando coordenado por uma
biblioteca pública. Sua sede pode ser uma casa de família, um estabelecimento
comercial ou uma igreja. Basta um bom armário com uns cem volumes que são
periodicamente substituídos por um mensageiro da sede central. O armário é controlado
pelo próprio dono da casa que se encarrega dos empréstimos e de seu controle. O
sistema funciona muito bem em várias regiões do país, inclusive as periferias de
Brasília, e merece ser fortalecido como um serviço extra das bibliotecas públicas. Nas
regiões rurais o carteiro pode tornar-se um personagem importante deste sistema.
A biblioteca volante, também chamada ônibus biblioteca, foi introduzida no
Brasil por Mário de Andrade e ainda funciona em São Paulo, onde presta bons serviços.
Hoje, o modelo mais bem sucedido do gênero é o Leia Brasil, um empreendimento
privado, financiado pela Petrobras, que, circulando pelas escolas de municípios sem
bibliotecas, atinge mais de 600 mil alunos/mês e 16 mil professores.
Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO como decisivos na
implantação do hábito de leitura de um povo.
Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e do prestígio do livro
para nosso povo. Ela deverá ser feita para nos orientar corretamente. Mas não
precisamos dela para começar a trabalhar. Também não havia pesquisa a respeito de
nossa rede nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa, e ela foi realizada
simultaneamente ao trabalho de implantação das novas bibliotecas.
As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura foram realizadas
pelo MINC e pelo MEC.
Em convênios com os grandes municípios e a Associação Nacional de Livrarias,
o MINC realiza já há três anos, no mês de Novembro, a campanha Paixão de Ler, que
se iniciou em quatro capitais e já existe em 22. A campanha difere em cada cidade mas
é sempre [125] organizada a partir das bibliotecas públicas e é dirigida em especial para
os professores e estudantes. O MINC contribui com a divulgação, cartazes e folhetos,
alem de um bônus livro, distribuído pelas bibliotecas, através do qual os professores
podem adquirir o livro que desejarem em qualquer livraria. Já foram distribuídos mais
de 50 mil destes bônus. Este ano o MINC pretende cobrir todas as capitais do país, em
especial suas periferias.
O MEC, no ano que passou, usando a televisão, realizou a campanha Ler é
Viajar. Entretanto é evidente que estes eventos meritórios só terão influência sensível
nos hábitos da população se, contando com o apoio da televisão, forem substituídos por
programas permanentes de difusão, propaganda e convencimento. De todos os trabalhos
necessários em favor do livro e da cultura escrita, este é certamente aquele que menos
progrediu e aquele que ainda pode render muitos frutos — se fugir da mera publicidade
em si mesma e se tornar um instrumento integrado aos outros programas acima
mencionados, testemunhando os esforços realizados pela nação, sugerindo sua
multiplicação, engajando o povo, as famílias, as escolas, os sindicatos, as igrejas e as
empresas.
Que fazer?
Quando afirmamos que o Brasil não é um país leitor, não estamos, com certeza,
deixando de considerar as milhares de obras vendidas, todos os meses, nas bancas de
jornais e em clubes de livros; as centenas de milhares de jornais, revistas e volumes de
literatura de cordel; nem as cifras milionárias de livros didáticos que infestam as
estatísticas das diversas associações de editores.
Certamente, em número absoluto de exemplares, a indústria editorial do Brasil
ostenta respeitável posição na lista dos grandes produtores de papel impresso, e é
sempre este o argumento que costumam utilizar para minimizar a importância de
políticas públicas de estímulo à leitura que não sejam as de distribuição maciça de
livros, preferencialmente em caráter nacional, o que, quase sempre, acaba [129]
sensibilizando as autoridades responsáveis, nos vários escalões governamentais.
Números e estatísticas podem ser enganosos.
É conhecida a anedota do nadador que morreu afogado numa lagoa que tinha a
profundidade média de 30 cm.
A quantidade aparentemente imensa de exemplares publicados, no País, não
corresponde nem a dois livros, por habitante, ao ano...
Quem, por força da profissão, visita remotos recantos do País, pode dizer das
centenas de milhares de obras distribuídas estragando nas caixas que nunca foram
abertas...
Cegueira e teimosia podem ser perigosas.
Que a prática das políticas públicas até hoje adotadas nessa área não levou a
quase nada pode ser comprovado pela inexistência de um verdadeiro mercado editorial.
Objetivamente, o País carece de distribuidores — mais de setenta por cento dos
livros publicados ao ano são didáticos e sua distribuição ocorre basicamente entre
janeiro e março —; o diminuto número de livrarias, menos de 1.500 em toda a nação,
tende a diminuir; a ínfima quantidade de bibliotecas, aproximadamente 3.000 no Brasil
inteiro, e todas elas sem verbas para aquisição e ampliação de acervo, tende agora a
aumentar por força de um programa governamental, o que, esperamos, dê certo; as
tiragens, com raras exceções, caíram progressivamente — em 1981 um livro infantil
tinha, em sua primeira edição, tiragens de 3 a 5 mil exemplares. Hoje, variam de 1,5 a 2
mil exemplares —, para uma população que cresceu mais de 30 milhões de almas no
mesmo período.
Também como efeito perverso deste quadro, as editoras dificilmente abrem
espaço para a literatura, principalmente para os novos criadores e, especialmente, para
os ficcionistas.
Os únicos espaços existentes são para as personalidades conhecidas da mídia,
atores, apresentadores e músicos, cujo carisma garanta grandes tiragens; ou o das
editoras didáticas que, para fugir à sazonalidade do seu mercado, e poder manter seu
contingente de distribuidores e divulgadores ativos, investem num tipo de publicação a
que denominam paradidática. Como diz o nome, especializada em obras para leitura em
classe, ficcional ou de divulgação teórico-científica, [130] sempre com o objetivo de
complementar aspectos curriculares não tratados nas obras didáticas — história,
ecologia, geografia, línguas, costumes, etc. — e sempre a partir de modelos estruturais e
temáticos empiricamente testados em pesquisas com professores e alunos.
Da mesma forma, quando reafirmamos que o Brasil não é um país leitor, não
estamos, com certeza, deixando de considerar as centenas de milhares de páginas lidas
nas escolas de todo o Brasil pelos nossos jovens e professores. É claro que eles lêem, e
que as escolas, cada uma da sua perspectiva e medida, os estimulam.
Por certo, para entender o nosso ponto de vista, é fundamental buscar respostas
às perguntas:
Por que eles lêem, e o quê?
E, é evidente que, para dar respostas a estas perguntas, teremos que aprofundar
nosso olhar sobre a escola e o seu real papel, até chegar à questão primordial:
Que tipo de homem ela pretende formar?
Há muito tempo que, no Brasil, a escola perdeu seu caráter civilizador. Ainda
que renovada em sua ação pedagógica, nosso ensino cada vez mais está a serviço de
preparar os jovens para o ingresso à universidade, como se todos tivessem essa
oportunidade, e como isto fosse um fim em si mesmo.
Pragmática e superficial, coloca toda a eficiência pedagógica a serviço do
adestramento dos seus jovens, esquecendo, com isto, a nobre missão de educar: partilhar
o saber acumulado, como forma de ampliar ainda mais os horizontes da humanidade,
provendo a formação necessária a fim de que, seres biogenicamente equipados para
observar, pensar e expressar os fatos e coisas do tempo e espaço em que vivem, possam
desenvolver-se em sua plenitude, passando da condição de ser virtual para ser real, ou
seja: de um ser de inteligência inata, para o ser de inteligência cultural, socialmente
construída.
É evidente que nossa escola, com raras exceções, favoreça esse tipo pragmático
de leitura, porque ele é fruto de seu compromisso básico: o de inserir o homem no
universo da Economia de Produção.
Na verdade, quando afirmamos que o Brasil não é um País leitor, estamos nos
referindo a uma outra dimensão da leitura, fruto de uma [131] outra qualidade de
compromisso: o de inserir o homem também no universo da Antropologia Cultural,
abrindo-lhe as portas para a fruição do patrimônio geral da humanidade; para a
expansão ilimitada do seu espírito e, como conseqüência, para transformá-lo em um ser
civilizador.
Assim foi que todo o saber do Ocidente se criou a partir de dez algarismos e de
trinta e duas letras do alfabeto1.
À soma deste conhecimento, guardada nos livros e noutras obras do fazer do
homem, é o que chamamos nossa herança cultural, e é o acesso a este tesouro
acumulado que nos dá a verdadeira dimensão de nossa humanidade; que nos diferencia
radicalmente de qualquer outro ser vivo, e que nos propicia a condição de participar
desse processo civilizador.
Em suma, quando asseveramos que o Brasil não é um País leitor, estamos
propondo, com esta afirmação, uma reflexão corajosa sobre a premente necessidade de
mudar a nossa escola; a real possibilidade de ampliar eficientes programas de leitura já
existentes no País e o dever inadiável de resgatar os que, por incúria ou equívoco, foram
desativados, dando assim o primeiro passo para a construção do Brasil como uma nova
civilização.
Um ponto de vista
Economista pela UFRS. Mestre em Economia pela
Universidade do Chile e Doutor em Economia pela
Universidade de Campinas. Professor Titular da
UNICAMP. Foi técnico do BID em Washington, Reitor
da UNICAMP. Secretário Estadual de Educação em
São Paulo, Diretor da OIT no Chile, Economista da
Cepal. Professor da PUC — São Paulo, UFRJ,
Universidade do Chile e da Universidade Católica do
Chile. Atualmente é Ministro da Educação.
Lembro que a primeira vez em que vi o “Tríptico Portinari,” de Hugo Van Der
Goes, no Museu Uffizi, em Florença, foi na década de setenta. Eu ainda era um
estudante de arte em Budapeste. Todo o meu conhecimento anterior deste maravilhoso
retábulo da pintura flamenga do século XV estava restrito aos livros e às reproduções. O
primeiro impacto que senti diante da obra foi pelo seu gigantismo. Foi também a
primeira vez em que tive a vivência das contradições do que significa o conhecimento
diante do original, com as reproduções da obra que conheci através de livros. Este
conflito se acentuou ainda mais quando estive em frente de Sandro Botticelli, a quem
sempre admirei como um mestre, principalmente em seu período de juventude. Lembro
que neste caso a impressão foi no sentido inverso, isto é, apesar de na época já conhecer
[153] as características técnicas da têmpera, achei que as reproduções de “Nascimento
de Vênus” e a “Primavera” estariam mais adequadas no múltiplo do que no original,
guardando logicamente as questões de proporção, textura, etc. Portanto — ainda que de
forma intuitiva — eu estava diante de uma questão que mais tarde viria a me ocupar em
termos teóricos, quando passei a lecionar no Curso de Desenho Industrial da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pensando sobre o significado cultural da arte da ilustração, principalmente como
veículo de conhecimento, e a possibilidade da imagem impressa ser mais verídica do
que o próprio original, pretendo, através deste pequeno estudo, evocar algumas
contradições e preconceitos contra a imagem reproduzida, no caso a ilustração, que
ainda permanecem de forma velada, mas muitas vezes explicitamente.
Reportando-me ainda à experiência que tive diante do mestre flamengo, destaco
o painel central representando a “Adoração dos Pastores”. A magistral organização do
espaço e o jogo simbólico das proporções dos personagens deste verdadeiro presépio
sagrado impressionaram-me profundamente. A fruição desta obra-prima — a partir do
real, da presença humana insubstituível — fora totalmente reveladora para mim, até
mesmo na descoberta da “Anunciação”, pintada por fora das alas, quase em forma
monocromática.
Descrever e rever mentalmente este tríptico é uma aula eterna de ilustração. Por
exemplo: as mãos de José postas em oração, e as mãos contritas e espirituais de Maria
são um ícone que me ficou para sempre, e que adoto como referência até hoje dentro de
meus limites, quando represento as mãos em meus trabalhos.
O processo como foi construída a narração neste quadro de Van Der Goes é uma
fonte inesgotável de descoberta para os ilustradores, desde as flores nos dois vasos, que
simbolizam a pureza, conseqüentemente Maria até a leveza dos dois anjos que levitam,
contrastando com a imagem rústica e ao mesmo tempo sublime dos pastores. Estas
soluções narrativas e simbólicas fundamentais na ilustração — o que sempre é bom
enfatizar — são uma arte de contar histórias por imagens, que inevitavelmente nos
conduzem a uma reflexão sobre os limites entre a pintura e a ilustração. [154]
Diante da “experiência do real”, a que me referi no início deste estudo, gostaria
de me deter unicamente neste ponto: os momentos em que a leitura da ilustração e da
pintura realmente se polarizam. Estou me referindo à questão do múltiplo, da
reprodução em série, e da transmissão de conhecimento. A ilustração é sempre uma
imagem que foi criada para ser reproduzida. O seu conhecimento pleno, a sua fruição
correta advêm, portanto, do livro. Existem outras diferenças fundamentais entre a
pintura e a ilustração. Porém, no momento, por suas inúmeras contradições, nos
deteremos apenas nesta última.
Seguindo, pois, a trilha acima descrita, chegamos à conclusão de que
conceitualmente o original da ilustração é o múltiplo. Isto é, a sua reprodução impressa
num livro, por exemplo. No caso da pintura, ela tem o seu estágio maior de percepção
quando estamos diante do original, ou das condições ideais para as quais esta pintura foi
criada. Porém, neste ponto, começam as incompatibilidades citadas acima. O que
realmente significa o original? A percepção direta do real é sempre a condição básica de
fruição do fenômeno pictórico? Veremos, no entanto, que esta condição fundamental
nem sempre se realiza. Isto é, a visão do original nem sempre autentica a experiência do
real.
Se deslocarmos esta discussão em direção à arte do nosso século, chegaremos no
“fundo de um poço sem fundo”, como dizia Tennessee Williams. Citaria apenas alguns
exemplos do Dadaísmo, que questionou, até os últimos limites, o significado de peça
única e do conceito sacro de original. Neste sentido, transcrevo dois pensamentos
enunciados por Picabia, afirmando que as verdadeiras obras de arte modernas não são
feitas por artistas, mas por pessoas anônimas e comuns.
Continuando ainda com Francis Picabia, ele chega à conclusão daquilo que seria
conhecido como “ready-mades” ao afirmar que o cordão umbilical entre o objeto e seu
criador havia se rompido, e que não havia diferença fundamental entre o objeto feito
pelo homem e o objeto feito pela máquina — “a única intervenção pessoal possível
numa obra é a escolha”, concluía. O urinol que Duchamp chamou de “Fonte”, e tentou
expor na Exposição dos Independentes em Nova Iorque, sob o pseudônimo de R. Mutt,
era certamente igual a milhares de outros encontrados nas lojas. [155]
Muitos exemplos poderiam ser citados no contexto da arte de nosso século,
sobre esta chamada “experiência única” diante da obra original. Porém, não é necessário
tanto radicalismo para levantarmos a questão ambígua do original, e sua fruição ideal.
Basta retornarmos ao século XIX, mais precisamente ao Impressionismo, que
encontraremos uma outra face deste multifacetado rosto. Em outras palavras, por
exemplo, os efeitos de luz solar das pinturas de um Claude Monet ou de um Camille
Pissarro: apreciá-los dentro de uma galeria sob luz artificial, ou tecnicamente elaborada,
pode até ser entendido como uma inadequação no ato de fruir corretamente a pintura
destes mestres. Melhor seria se as víssemos nas condições em que foram criadas, ou
seja, ao ar livre, o que seria sem dúvida mais compatível com o ato de criação daqueles
artistas. Logo, muito acima do significado de ser original, o que existe na verdade é um
ritual adequado de cognição da pintura, que até pode ser único.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados dentro do universo da escultura, e
a impropriedade de sua correta leitura em galerias e museus, principalmente com
relação à luz. Acho oportuno — diante de todos os mitos e sacralização do que seja
original — levantarmos esta questão, dirigindo sempre nossa reflexão para a ilustração,
e toda a sorte de incompreensões que ainda a envolve. Todas estas dúvidas nos
conduzem a uma conclusão: de que nem sempre a obra original é vista de maneira
original, existindo também a possibilidade de que a reprodução, como já foi dito
anteriormente, em termos conceituais, seja mais verídica do que a própria realidade e
originalidade da peça única. Esta discussão é importante pelo fato de a ilustração sofrer
freqüentemente o estigma de uma linguagem menor, a começar até pelo seu habitual
suporte, o papel, muito mais perecível do que a tela, e em termos de mercadoria e posse
ser um “investimento” de pouco futuro e rentabilidade.
A ilustração seria uma linguagem dirigida pela circunstancialidade, e, por este
motivo, uma experiência e conhecimento artístico atrofiados. Este preconceito — que é
tristemente real e revela uma absoluta incompreensão até da própria história da arte e
sua discussão — fugiria totalmente dos limites físicos deste trabalho. Porém, não
podemos deixar ao largo este tema do “fim servido” da arte, e da circunstância que
norteou grande parte da criação em todas as épocas. [156] Bastaria apenas citar no
universo da música alguém que resplandece como astro eterno — estou me referindo a
Johann Sebastian Bach, que levou ao extremo sublime seu ofício de músico. Como
autêntico artesão, trabalhava copiosamente, semanalmente, para os cultos dominicais.
Em vida mais conhecido como exímio organista, até hoje nos causa depressão a leitura
de suas humildes cartas solicitando ajuda e proteção para os nobres de sua época. Sua
magistral música — que era meramente destinada ao momento — tornou-se erudita e
transcendente em nossos tempos. Mesmo assim, como estigma de música “descartável”,
sua obra ficou esquecida após a sua morte. Apenas em princípio do século XIX
Mendelssohn o “ressuscitou”, e é também no início do nosso século que as transcrições
para orquestra feitas por Leopold Stokovsky o popularizaram, colocando-o num lugar
que sempre foi seu — um monumento da música.
Este apelo a duas referências musicais, inclusive utilizando a palavra
“transcrição”, é da maior importância quando estamos estudando a relação entre
conhecimento e imagem impressa. Citarei agora um exemplo, infelizmente pouco
conhecido, da complexa relação entre obra original, reprodução impressa e conseqüente
conhecimento da imagem original através da gravura reproduzida. Evoco o nome e a
obra de um dos pintores que mais admiro e que tem grandes influências em meu
trabalho de ilustrador. Estou me referindo a Henry Fuseli, nascido em 1721 e falecido
em 1825. Este pintor visionário e profundamente envolvido com a arte fantástica foi
contratado em 1786 pelo marchand e editor Aldermann Boydell para pintar uma série de
quadros sobre peças de Shakespeare, como por exemplo “Sonho de uma Noite de
Verão”. Estes quadros, após serem exibidos em sua galeria, na verdade se destinavam a
servir de modelo para que fossem feitas gravuras a partir deles, e conseqüente
publicação em forma de livros, e quem sabe até vendidas separadamente. Este não é um
exemplo isolado; artistas ingleses do porte de Romney e Reynolds foram também
contratados por Boydell.
Voltando às pinturas de Fuseli, elas estão hoje em dia em galerias como Tate
Gallery, Vancouver Art Gallery, etc. Sobre este tema de arte, ilustração e conhecimento,
que é na verdade o motivo central deste trabalho, voltarei a falar mais adiante. [157]
Retornando ao quarto de espelhos, — este labiríntico exercício que é a
concepção de original — as contradições se aguçam ainda mais quando constatamos
que o conhecimento da pintura dos grandes mestres se realiza em nossos dias,
basicamente, através da reprodução nos livros de arte. Neste ponto, existe uma analogia
com os exemplos que citei acima das ilustrações a partir da obra de Fuselli, na verdade
“transcrições” e gravuras para peças de Shakespeare. Esta leitura (a reprodução) possui
um processo próprio e extremamente diversificado de ver e decodificar a imagem
original. Portanto, existem vários “originais” a partir destas traduções visuais, onde até
mesmo um trabalho de “restauro” é obtido através de métodos modernos, como o laser e
a computação gráfica.
Os critérios para reprodução destas obras realmente não existem. Não se trata de
salvaguardar a aura, o valor cultuai, a obra única e irreproduzível — Walter Benjamin já
dissecou muito bem esta questão. Porém, retornando ao que poderíamos chamar de
imponderabilidade do conceito de fruição original, é muito difícil aceitar no túmulo de
Lourenço de Médici o modo frontal como é iluminada a peça escultórica representando
o “pensamento”, criada pelo gênio de Michelangelo. Tendo na parte inferior o
Crepúsculo e a Aurora, esta escultura, em pose de meditação, foi imaginada para ser
vista com os olhos em penumbra, acentuada mais ainda pelo elmo que lhe encobre a
fronte. Isto certamente lhe conferiria um nível mais simbólico e introspectivo.
Entretanto, não é isto que experimentamos nem na Capela dos Medicis, tampouco nas
inúmeras reproduções da obra. Esta complexa relação entre a experiência do real e a
dramatização da luz, e conseqüente (ou inconseqüente?) reprodução em livros e
catálogos, pode ser melhor compreendida quando observamos, neste caso, algumas
reproduções da pequena escultura o Hermafrodita — um protótipo de Policie de 150
AC, que está na Galeria Borghese, em Roma. O escultor o representou deitado de
bruços, intencionalmente encobrindo o atributo feminino ou masculino, criando uma
indefinição, uma ambigüidade absolutamente clara para o observador. No entanto, este
mistério é revelado de forma unilateral pela iluminação capciosa criada principalmente
na maioria das reproduções da obra. A luz é dirigida para a região lombar do
personagem. Em termos bem vulgares, — até porque vulgar é a sua iluminação, — o
[158] foco de luz é dirigido precisamente para a bunda de Hermafrodita.
Nesta parte final do estudo, gostaria, através de alguns exemplos, de enunciar
que a concreção, divulgação do pensamento, nas mais diversas disciplinas, teve na
imagem impressa a sua real complementação. Tentando encontrar uma metáfora para a
palavra e a imagem, eu diria que a primeira é a alma e a segunda, o corpo; portanto,
parceiras indissolúveis.
Começando pelo Renascimento, e por uma de suas maiores figuras que foi
Leonardo Da Vinci, seus estudos diversificados em geologia, zoologia, botânica,
anatomia, astronomia, além de seus projetos em máquinas e engenharia, tudo isto é
distribuído em mais de 5.000 páginas de anotações, repletas de ilustrações. Seu
pensamento era portanto materializado pelas imagens, que assumiam um alto estágio do
pensamento visual, com sua própria sintaxe, ao mesmo nível de suas especulações
escritas. Expressando ao mesmo tempo a beleza e a informação, estas imagens
prescindem em muitas casos da palavra. As indicações escritas funcionam às vezes
como fato complementar. Deste modo os pensamentos em imagens feitos por Da Vinci
são uma referência para conceituarmos a arte de ilustrar. Neste caso, elas não contam
histórias, elas narram conhecimento.
Permanecendo ainda no Renascimento, foi através das gravuras italianas,
reproduzindo as obras dos grandes mestres, que o principal vulto do renascimento
alemão teve o primeiro contato com a arte italiana dos “Quatrocentos.” Estou me
referindo ao genial pintor e gravador alemão Albrecht Durer. Este fato inclusive é
documentado por seus estudos a partir das gravuras de Andrea Mantegna, como a
“Batalha dos Deuses do Mar.” Durer foi o primeiro grande artista alemão a conhecer a
Itália — ele tinha 23 anos quando esteve em Veneza. Certamente o contato direto com a
arte italiana e o seu conhecimento prévio através de gravuras fizeram com que Durer —
diferente dos outros artistas alemães que tinham os mestres flamengos como modelo —
tivesse um caminho totalmente diferente, e até mesmo contestador.
Ainda nesta seqüência da imagem impressa como forma de pensamento, não
posso deixar de citar o exemplo de Petrus Paulus [159] Rubens. Este magnífico pintor,
originário da Antuérpia, onde nasceu em 1577, teve uma vida exitosa como pintor,
cidadão, embaixador e homem das cortes européias. Rubens foi também um grande
ilustrador, utilizando motivos alegóricos, símbolos, emblemas e figuras mitológicas nos
livros que ilustrava. Repleto de encomendas, trabalhando com uma equipe de discípulos
e com um profundo sentido de negócios, percebeu que sua obra única poderia ser
vendida e difundida através de cópias em gravuras. Para tanto, montou um atelier com
um grupo de gravadores que iria “traduzir” para um esquema basicamente linear, em
forma de gravuras, a sua obra pictórica. Criou com isto, inclusive, um estilo próprio,
que certamente tinha a sua orientação. Este estilo, um “Rubens médio”, para o grande
público, ficou tão famoso quanto o “estilo Goltzius”, ou o “estilo Callot” — estou me
referindo a dois grandes gravadores aguafortistas do século XVI, que criaram uma
verdadeira escola de reprodução de originais de pintura. O importante é dizer que a
popularidade, e principalmente, a extraordinária influência de Rubens na arte européia
da época se deu através de gravuras da sua pintura.
Para concluirmos sobre a importância da ilustração, e da imagem impressa como
formação de pensamento, quero citar um curioso exemplo de influência da gravura. O
fato em questão é o famoso quadro de Eduard Manet que tanta polêmica causou em
1863, quando exposto no Salão dos Recusados, o célebre “Almoço sobre a Relva”. A
tranqüilidade de uma mulher nua e seu displicente olhar para o observador em plena
conversa de dois vestidos cavalheiros causaram um escândalo no grande público, tudo
isso aliado a uma extraordinária palheta, um jogo de luzes, uma naturalidade até então
nunca representada numa cena ao ar livre. Todavia, este ícone da pintura francesa do
século XIX guarda incríveis semelhanças com uma antiga gravura do século XVI de
autoria de Marcantonio Raimondi, denominada “O Julgamento de Páris.” Este não é, em
absoluto, um exemplo isolado na história da arte. Enfatizo, pois, que a imagem é
realmente um gênero de pensamento, uma persuasão fortíssima em nossos dias
globalizados, e a nação que melhor usar suas imagens e ícones dominará, numa primeira
fase, todos os fenômenos culturais do planeta, e, numa segunda fase, o real domínio
econômico das outras nações. [160]
Logo, o estudo da imagem impressa nos mais diversos suportes e emitido nos
mais diferentes veículos de alta tecnologia é fundamental para qualquer País que tenha
um mínimo de projeto sério quanto ao seu futuro, como nação, como povo, e,
principalmente, como preservação de seus valores culturais. [161]
27 — RUTH ROCHA
Livros X Computador
Paulista, socióloga, orientadora pedagógica e editora.
Escritora premiada de extensa obra de literatura infantil
e juvenil. Membro do Comitê Estratégico do Leia
Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.
Por que existem mais leitores do que escritores? Por que é mais fácil aprender a
ler do que a escrever? Por que a leitura e a escrita podem ser usadas automaticamente e,
no automático, mascaram limites de visão e de atuação?
Deve parecer estranho começar a partilhar um ponto de vista pelas dúvidas e não
pelas certezas. Leitora quase que compulsiva, escritora, doutora em literatura e co-
autora de um jogo educativo de criar histórias em grupo, sempre me intrigou a
dificuldade de contar histórias demonstrada por um grande número de pessoas.
Durante muito tempo, acreditei que bastava uma boa iniciação à leitura para que
todos pudessem expressar livremente seu potencial criativo. Transformado em leitor
pelo contato com o produzido pela [165] imaginação alheia, o ser humano seria sujeito
de sua própria obra. As redações, a correspondência, os relatórios seriam mais
coerentes, mais coesos, mais belos. Hoje sei que isso não é verdade.
A formação do leitor para levá-lo à escrita é um processo mais complexo. E,
talvez, mais misterioso. Não estou aqui me referindo às pessoas que apresentam um alto
potencial de inteligência para a linguagem, como alguns para a música.
Meu questionamento dirige-se à maioria dos seres saudáveis com experiências,
dores e alegrias comuns à espécie. Com uma capacidade íntegra de compreender a
língua materna e dominar suas regras.
Por que, mesmo quando são leitores sensíveis, essas pessoas não se expressam
através da escrita? Por que não conseguem escrever uma história ou mesmo contá-la
com clareza de forma a produzir prazer, terror, riso ou compaixão em outros?
Conheço dezenas de leitores que confessam não conseguir escrever. Amam o
texto literário, porém fazer ficção lhes parece uma tarefa impossível. Alguns alegam ser
esta uma atividade para eleitos, iluminados, gente dotada de um talento acima do
comum. Outros imaginam os escritores como pessoas que detêm o privilégio de poder
estudar o texto, burilá-lo em condições ideais, e prometem a si mesmos que um dia,
“quando se aposentarem, ganharem na loteria ou tirarem longas férias”, imitarão. Para
os dois grupos, na maioria das vezes, escrever, mesmo um texto pragmático, relatório,
carta, ofício, é um esforço assombroso. Fazê-lo com facilidade, um dom.
Depois de seis anos estudando a produção coletiva de texto, interativa e
instantânea dos jogos de representação (RPG), praticada por jovens, e depois de ter
contribuído para a criação de um jogo, cheguei a um ponto de vista específico que aqui
partilho: escreve o leitor que se mostra. Escreve o leitor que se arrisca à exposição. O
leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a rejeição ou aquele que precisa da
companhia, do aplauso, da apreciação de alguém que o leia.
O escritor é o leitor que escolhe o palco e não a platéia. Ele é platéia dos outros
autores, mas se acha no direito de se expor também na arena. Talvez não seja nem uma
questão de direito e sim de compulsão. É um leitor que precisa recriar o que leu, viu,
ouviu (como, aliás, todos [166] os leitores o fazem no processo de produção de sentido).
Precisa mais: se arriscar aos aplausos ou às vaias ao exibir sua recriação.
A formação desse leitor segue passos específicos. É necessário que se crie um
clima de confiança para que os resultados de leituras sejam partilhados, as primeiras
criações mostradas em público e, principalmente, se demonstre ao leitor, sempre e
sempre, o direito inalienável de recontar histórias.
Óbvio que grandes escritores se formaram em famílias opressoras, escolas
opressoras, regimes políticos idem. Alguns irão atrás de literatura e de publicar sua
literatura mesmo que canhões busquem impedir. Mas esses fazem parte da minoria dos
resistentes, aqueles que lerão mesmo que tentem colocar uma venda em seus olhos ou
amarrem suas mãos. Para cada um que tem dentro de si a compulsão de escrever,
milhares serão sufocados pela falta de condições de desenvolverem essa forma de
comunicação humana.
Penso que a maioria das pessoas não acredita ter o direito à imaginação, ao
exercício da beleza a partir de histórias contadas e recontadas. A não ser no faz de conta
infantil, nas brincadeiras de “casinha” ou de “polícia e ladrão.” Depois desses breves
anos, as pessoas aprendem, na escola e na vida, coisas sérias para passar de ano,
trabalhar, casar, constituir família.
A ficção se torna uma atividade à parte dos “outros”, os artistas, atores,
escritores, roteiristas de cinema ou de telenovelas. Com sorte, se existir uma iniciação
anterior, essas pessoas se tornarão leitores. Platéia. Escreverão com maior ou menor
dificuldade textos aos quais atribuirão a categoria de realidade. No trabalho, na
correspondência entre amigos ou familiares.
É preciso que se incorpore à formação de leitores o conceito de invenção do real.
O Rio de Janeiro em “Dom Casmurro” era o Rio “inventado” por Machado de Assis. Da
mesma forma, se uma recém-casada retrata em carta a sua melhor amiga os melindres
da sogra, trata-se de uma sogra inventada também, as cores serão mais ou menos
favoráveis dependendo do relacionamento entre as duas e a confiança entre a remetente
e a destinatária.
A diferença principal, na minha opinião, entre a hipotética nora e [167] Machado
de Assis é que este tinha a certeza de que alguém perceberia a originalidade do seu Rio
de Janeiro e dos personagens e sentimentos que ali colocava a circular. Se essa certeza
não existia dentro dele, existia pelo menos a necessidade de encontrar e encantar o
leitor. O direito de conquistar um interlocutor para sua obra. A noção de que seria capaz
de recontar a trajetória de um ciumento, mesmo que Homero ou Shakespeare tivessem
feito isso antes dele.
Acredito que escritores têm, em comum, essa convicção. Têm algo a dizer e
alguém quer ouvir. Ler. Nem que para isso precisem se expor ao ridículo, às críticas, às
concessões. Mesmo que recorram ao baú das lembranças familiares, à denúncia dos ex-
amores e amigos. À fofoca, portanto. Correndo o risco de imitar, quem sabe mal, seus
autores preferidos.
O resto é talento sim, mas principalmente trabalho. E maturidade e mais
trabalho. E lucidez e mais trabalho. Muito esforço para seduzir o leitor, sabendo que até
chegar a ele existe uma longa cadeia industrial a ser percorrida.
Isto — a via crucis do escritor — não é objeto dessa minha reflexão. Quero
apenas chamar atenção que é necessário que se acrescente às atividades voltadas para o
projeto de formação de leitores uma intervenção específica no sentido de ampliar o
direito de recontar. O direito de se expor. A competência do Narciso que se mostra, não
para o espelho, mas para seus pares e diz: “Eu também sou belo.”
Não basta formar uma sociedade leitora. É preciso que ousemos mais. É urgente
democratizar os segredos da narrativa. Criar espaços onde leigos, de qualquer idade, se
manifestem livremente como autores. Socializar a idéia de que a leitura e a escrita como
instrumentos de imaginação são um direito. Mais do que direito ou além dele, são fonte
de prazer e arma de combate. Caminho de redenção e troféu da condição humana.
Qualquer escritor sabe que a imaginação concretizada no texto tem esses
poderes. De Homero a Woody Allen. Só não o sabem, ainda, os milhões de estudantes
que se digladiam com dissertações onde não conseguem transmitir seus pontos de vista.
Os apaixonados incapazes de colocar no papel o calor dos seus sentimentos. Os
solitários impedidos [168] de estabelecer contato através da escrita. As vítimas sem
possibilidade de defesa ou de vingança pela palavra.
É indispensável à formação do leitor o exercício da confiante exposição. Só
assim a leitura será um contágio, uma grande epidemia de autores, cada um no seu
território, senhor, rainha, dono da sua própria palavra. [169]
29 — TÂNIA DAUSTER
Espaços de Sociabilidade:
ouvindo escritores e editores sobre a
formação do leitor e políticas públicas de
leitura no final do século XX
Doutora em Antropologia Social (UFRJ) e Mestre em
Educação (PUC-RJ). Leciona a disciplina de
Antropologia e Educação nos cursos de graduação e
pós-graduação do Departamento de Educação da PUC-
RJ. Coordena o escritório da UNESCO no Rio de
Janeiro. Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil
— Programa de Leitura da Petrobras.
Postura teórico-metodológica
O gosto pela literatura pertence ao domínio da arte. Birman (1996) comenta que
o leitor moderno tem, com o texto, uma relação de prazer e de revelações imaginárias,
na qual “... a leitura é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de
educação, justamente porque o que está em causa não é apenas o entendimento, mas
principalmente a subjetividade do leitor”.
“O gosto se forma pela opção”, declara Julio Emílio Braz. Já para Luiz Antonio
Aguiar, a formação do leitor se dá na liberdade de escolha, sem obrigatoriedade. Livro
não é material didático e o professor deve “ir no caminho do interesse da criança”6.
Liberdade, opção e prazer aparecem como valores relacionados à subjetividade
do leitor, mas também devem ser incorporados à dinâmica das políticas públicas sobre
leitura, dentro e fora da escola. Isto porque é preciso levar em conta a formação do
gosto pela leitura enquanto enriquecimento do imaginário. Trata-se da lógica da
subjetividade, transposta e traduzida para a lógica da ação e das políticas públicas.
Contudo, parece-nos fundamental trazer o outro lado da moeda: Jean Hébrard,
em comentário no Salão do Livro, em Paris (1998), recomenda que o discurso em prol
da leitura não seja apenas afetivo, mas contenha um trabalho de leitura, como um de
seus eixos principais. Nesta linha, a escola tem um significativo papel, no que tange à
construção de espaços coletivos de discussão e debate em torno da leitura e do livro.
Isto significa um esforço intenso de elaboração, construção e negociação do sentido da
própria leitura, a partir do confronto de distintos pontos de vista. O mesmo autor, em
recente palestra na PUC-Rio (1999), falando de políticas públicas educacionais,
apresenta como uma das vias de entrada para a cultura escrita as práticas do “aprender a
falar”, que fariam da escola o espaço do “ensinar a falar”.
O professor, enquanto detentor da função de “saber falar a língua escrita”, seria
incentivador de outras maneiras de dar vida ao ato pessoal da leitura. Neste enfoque,
caberia uma reorganização das sociabilidades da leitura, buscando novas formas de se
falar sobre o que se lê. Ainda segundo Hébrard, este seria o trabalho da leitura, ou seja,
falar da leitura [177] realizada implica reconhecer a existência do ato de ler. Portanto,
dever-se-ia estimular o diálogo em torno do livro e não “aprisionar” a literatura, como
se ela fora material didático. Neste sentido, é questionável o uso de encartes, fichas e
avaliações. Em relação à ficha de leitura, ponto muito polêmico, disse Ana Maria
Machado:
Já fui muito contra essa ficha (quando ela vem nos livros) e sei que, hoje, ela é
muito criticada. Eu preferia que ela não existisse, mas reconheço sua importância no
Brasil, sobretudo no caso da professora do interior, sem recursos e despreparada.
Para ela, a ficha dá um mínimo de orientação.7
A escola apresenta uma dupla face na formação do leitor. De um lado, a
obrigatoriedade de leitura de um só livro pode criar resistências e obstáculos à formação
do gosto e do hábito de ler. Mas pode significar o único acesso a livros, para quem não
os tem em casa.
Nesse propósito, os entrevistados concordam que as políticas públicas têm que
incentivar e apoiar a leitura de livros na escola, atuando na formação de professores,
viabilizando acervos de livros e favorecendo acesso freqüente a bibliotecas atualizadas.
Assim, Ana Maria Machado sugere que seja garantido, a cada escola, um acervo
de pelo menos 300 livros, de uma lista básica de aproximadamente 5.000, escolhidos
por uma comissão de especialistas. A autora lembra, também, que traduções bem feitas
são boas leituras e que, portanto, os professores de português poderiam indicar livros
estrangeiros.
Também merecem atenção as campanhas incentivadoras do hábito de ler,
envolvendo distintos estimuladores, como grupos de contadores de história e outros,
além de recursos como programas televisivos, etc.
Relata Ana Maria uma iniciativa inglesa de leitura em colégio, acessível a
qualquer outro país. Trata-se do “Projeto de Leitura Silenciosa Contínua”8. Essa autora
nos conta a vivência de sua filha nessa experiência, em 19889:
No primeiro dia, a única coisa que ela trouxe para casa foi uma pasta com
fecho éclair, de plástico transparente, onde estava escrito USSR. Dentro, havia uma
folha mimeografada, com um cabeçalho que [178] continha data, título do livro, autor
e comentário da família, em quatro colunas. Atrás vinham informações sobre o
Projeto: entre elas, a de que a escola havia aderido à campanha do USSR, que não era
obrigatória. Podem dela participar escolas públicas ou particulares, mas é
basicamente voltada para as primeiras. A escola se compromete a determinar um
horário semanal para leitura silenciosa. A de minha filha optou por 40 minutos. Outras
optam por 30 minutos, uma hora. Neste período, eles avisam aos pais que não tentem
vir ao colégio, porque ninguém vai poder recebê-los. A leitura silenciosa é para toda a
escola: do porteiro à diretora, todos lêem. A professora não pode ficar corrigindo
caderno, o homem da cantina pára tudo. Não se atende ao telefone. Este horário deve
ser antes do recreio, porque se alguma criança estiver em um ponto do livro em que
não queira parar, pode continuar durante o recreio. Ao acabar a leitura, todos voltam
a suas obrigações. O professor não pergunta: “O que faz tal personagem?” Alguém
poderá até indagar: “Quantas páginas você leu?” Mas o aluno só precisa registrar na
folha os dados do livro da biblioteca, levando a fichinha para casa. Aí, irmão, irmã,
avô, avó, pai, etc, devem completar a parte da opinião da família sobre a leitura da
criança: “Ele gostou...”, ou “ele não gostou...”, “que bom que ele está lendo esse
livro...”, ou “nunca ouvi falar nesse autor,” etc. Alguém da família tem que ter uma
opinião sobre aquele livro, colocando-a na ficha até o dia da próxima leitura, prazo
dado pela escola. Após a terceira semana, se o aluno não trouxer a opinião de casa, os
pais são chamados ao colégio para uma conversa. O interessante é que a família se
envolve nesse projeto. Outro critério importante na escola inglesa é o sistema de
pontos, em que uma série de atividades, inclusive essa campanha da leitura, torna a
escola prioritária para receber ajuda do governo. Por exemplo, tendo comprado um
determinado número de livros novos para a biblioteca, a escola conta pontos para o
sistema. Se precisa cimentar novamente o pátio ou colocar uma grade nova, poderá
também utilizar os pontos da campanha. Essa experiência existe há 24 anos e aplica-se
apenas à escola primária. Uma avaliação mostrou que ela conseguiu aumentar a
freqüência da leitura entre os jovens.
Outro ponto recorrente, no discurso de nossos entrevistados, diz [179] respeito à
disseminação de bibliotecas. Idealmente, a maioria delas deveria ser de estaduais e,
portanto, necessariamente diversificadas, com uma dupla entrada na escolha de seus
acervos: ao mesmo tempo centralizados e contendo obras de autores locais.
Segundo recomendação da UNESCO, a relação tolerável é de uma biblioteca
para cada 12.000 habitantes. De acordo com dados veiculados pelo Jornal do Brasil10,
há 3.500 bibliotecas públicas e 22 milhões de brasileiros alfabetizados não têm
biblioteca próxima a suas casas. Para se alcançar o ideal, seria necessário criar
aproximadamente 2.000 unidades.
É claro que mais bibliotecas devem ser criadas e atualizadas, mas elas têm que
funcionar como espaços vivos, nos quais os bibliotecários, assim como os professores,
são preparados para estimular a formação do leitor.
Do ponto de vista econômico, autores e editores insistem no barateamento do
livro, por meio da redução de impostos sobre a produção. É reiterada também a
publicação de obras de domínio público, melhor distribuição em bancas de jornais e
investimento em edições de bolso.
Em suma, preços altos e baixas tiragens são considerados “inimigos” do livro e
da formação do leitor.
No que diz respeito ao grande evento da Bienal, pesquisa recente da empresa de
pesquisa Vox Populi conclui que mais de 90% da população brasileira não têm o hábito
de ler, o que indica a importância de se difundir, no país, pequenos eventos, como feiras
e salões de livros, que não deveriam ficar limitados apenas às grandes capitais.
Para finalizar, volto à tese central da UNESCO (1996):
Desenvolvimento econômico não é variável independente. Inúmeros projetos de
desenvolvimento sócio-econômicos fracassaram, por não levar este fator em conta. Os
fatores econômico e cultural se interpenetram. Dado o papel constitutivo da cultura,
teremos que pensar o desenvolvimento em termos que englobem também o crescimento
cultural.
Buscando uma síntese, diria que são culturais as políticas de leitura. Cabe aos
responsáveis pelos equipamentos de educação e cultura promoverem parcerias, criando
as teias articuladoras entre família, escola, [180] bibliotecas, museus, cinema, teatro e
música, enfim, tecendo a rede cultural na qual o leitor se forma.
Referências Bibliográficas
BIRMAN, Joel. O sujeito na leitura. In: Por uma estilística da existência. São
Paulo: Editora 34, 1996.
CHARTIER, R. A História cultural entre práticas e representações. Memória e
sociedade. Lisboa: Difel, 1990.
_____. A ordem dos livros. Brasília, Editora UNB, 1994.
_____. As práticas da escrita. In: História da vida privada — da Renascença ao
século das luzes, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CUÉLLAR, J. P. (org.) Nossas diversidades criadoras. Relatório da Comissão
Mundial de Cultura e Desenvolvimento (UNESCO). Campinas, SP: Papirus, 1996.
DAUSTER, T. Leituras no Rio de Janeiro. In: Testemunho III. Antologia em
prosa e verso. Rio de Janeiro: Oficina do Livro
Ltda., 1994.
_____. O Cipoal das letras: entre olhares, recortes e construções da Antropologia
e da História, no contexto de uma pesquisa sobre leitura. Seminário “História da
Educação Brasileira: a ótica dos pesquisadores”. Leitura: teoria e prática, Campinas, SP,
revista da Associação de Leitura do Brasil (ALB), Fac. de Educação UNICAMP, Ano
15, n. 28, dez. 1996. Série documental: eventos, INEP-MEC, n. 5, maio/1994, p. 48 —
54.
_____. Jogos de inclusão e exclusão sociais — sobre leitores e escritores
urbanos no final do século XX. Anuário da Educação, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro
(org. Barbara Freitag), 1997-1998.
_____.; MATA, M. L. O valor social da Educação e do trabalho em camadas
populares urbanas. Rio de Janeiro: CNPq/OEA, Departamento de Educação da PUC-
Rio, 1990.
_____.; MATA, L.; GARCIA, Pedro, B. Cotidiano, práticas sociais [181] e
valores nos setores populares urbanos — a difusão diferencial da escrita e da leitura e o
significado da imagem entre os jovens. Rio de Janeiro: CNPq, Departamento de
Educação/PUC-Rio. Projeto (1991), Relatório Final (1994).
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Edit., 1979.
QUEIROZ, M.I. Experimentos com histórias de vida (Itália-Brasil). Org. e
introdução de Olga de Moraes von Simson. São Paulo: Vértice, 1988.
VELHO, G. Observando o familiar. In: A aventura sociológica. Rio de Janeiro:
Zahar Edit., 1978.
_____. Subjetividade e sociedade — uma experiência de geração. Jorge Zahar
Editor. Rio de Janeiro, 1986.
1
Vale esclarecer que as recorrentes pesquisas sobre a formação do leitor, dentro
e fora da escola, têm recebido o apoio do CNPq, incorporando alunos de iniciação
científica, mestrandos e doutorandos, tanto da PUC-Rio como da UFRJ. Dissertações,
teses e artigos vêm sendo elaborados e estes últimos, apresentados em seminários, no
Brasil e no exterior, pelos componentes da equipe.
2
Esta classificação corresponde às concepções de alguns dos escritores. Vale
dizer, contudo, que a literatura infanto-juvenil brasileira é vista como uma das melhores
do mundo e comparada qualitativamente à inglesa.
3
Trata-se de iniciativas públicas e privadas importantes, como: o programa
PROLER, articulado à Biblioteca Nacional; a campanha “Paixão de Ler”, da Secretaria
Municipal de Cultura do Rio de Janeiro; e o “Leia Brasil”, programa da Petrobras
apoiado pela UNESCO.
4
Em entrevista realizada em 1996, para a pesquisa A formação do leitor —
limites e possibilidades da escola.
5
A Secretaria Municipal de Cultura, na gestão de Helena Severo, começa a
implantar bibliotecas em áreas faveladas, tendo sido iniciadas essas atividades no
contexto de ações do Programa Favela-Bairro. [182]
6
Em contatos realizados para a pesquisa A formação do leitor — limites e
possibilidades da escola, em 1996.
7
Em entrevista realizada em 1997, para a pesquisa A formação do leitor —
limites e possibilidades da escola.
8
Uninterrupted Sustained Silent Reading (USSR).
9
Em entrevista realizada em 1997, para a mesma pesquisa, A formação do leitor
— limites e possibilidades da escola.
10
(Informe JB, 1997). [183]
30 — WALDA DE ANDRADE
ANTUNES
Leitura e biblioteca
Bibliotecária, Mestra em Planejamento Bibliotecário.
Doutora em Educação, Professora do CID —
Departamento de Ciência da Informação e
Documentação da Universidade de Brasília, Diretora
Técnica da WA-CORBI. Membro do Comitê
Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura da
Petrobras.
Nota da revisora: Páginas em branco: 10, 30, 44, 54, 60, 70, 74, 80, 108, 116, 128, 144,
162, 170, 184
1
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de
facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes
Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
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