Noites de Insônia - Abril - Camilo Castelo Branco PDF

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D[

NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÔDE DORMIR


POR

Êamilía Êasfcíía Branca

PUBLICAÇÃO MENSAL

N.« 4 — ABRIL

LIVRARIA INTERNACIONAL

MKSTO CHARDROU EUGgHIO CHARDRON


96, Largo dos Clérigos, 98 A, Largo de S. Francisco, 4
'

PORTO BRAGA

1874
'^.//CF"\y^

'Jl^t
PORTO
nTOGRAPHlA DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
62, Rua da Cancella Velha, 62

1874
BlBLlOMi DE ALGIBEIM

NOITES DE IXSO^LNIA

SUMMARIO
O coju ?o capitão -itiót O io^oíot

c1u<;>ito ^0 ^cta ft. íBvtuatOo ?« íBtito

ÍLltboa ^tU<tatuta (-tazíCttui

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Oi àa(3^, p<fo «cc."° *nt. wUcoti^f

íatata t tCt^aiiU ^toftiiOa u(otuia


uoò ccòluiiu^ da i>ta-^ítua pottiuiiUTa

ifotuicía c niftCiz v1.uUm«w iíeiulc ^


Catlto.
o COFRE DO GAPITÃO-Mi )R
\

o homem, concluída a guerra do Paraguay,


liquidou quinhentos contos, e retirou-se com
esposa e filha para Mondim de Basto, sua pátria.
Passou, acaso, um dia por perlo das ruínas
de um casarão, reparou na pedra de armas que
encimava um vasto portal de quinta, e perguntou
de quem eram aquelles pardieiros.
O abbade. a quem a pergunta era feita, res-
pondeu:
— São da fazenda nacional, que se está co-
brando, ha trinta e dous annos, de uma divida
antiga de impostos e respectivos juros e custas.
— E, depois que fazenda nacional estiver
a
embolsada, de quem isto? é
— Veremos qual dos credores
a dá pri- a lei a
mazia — tornou o abbade.
niBLlOTHECX N.* 4. 1
— Acho que os donos d'estes pardieiros eram
fidalgos, porque tem armas reaes porta — vol- á

YBii o brazileiro pouco versado em heráldica.


— Estas armas não siío as reaes — explicou o
padre — o brazão de
é Pachecos e Andrades,
muito illusires senhores d'esie paço, que, em bons
tempos, se chamou a honra de Real de Oleiros.
— Cahiram cm pobreza?
— Sim, senhor; mas pobreza que tem uma
historia interessante. Meu avô conheceu esta fa-
milia no galarim. Contava elleque o capitão-mór
Pedro Pacheco estava em Lisboa, quando o mar-
quez de Távora, com os seus parentes, tentaram
matar D. José, que era o amante da marqueza
nova. Havia marqueza velha e nova, como sabe...
— A fallar a verdade, nrão sei isso muito bem
— atalhou ingenuamente o snr. José Maria Gui-
marães— Então como foi lá essa pouca ver-
gonha?
— Contos largos. A marqueza velha foi dego-
lada, por não aceitar a prostituição da nora; a
marqueza nova foi para um mosteiro bem rega-
lado, em quanto o marido ia para a masmorra, e
da masmorra para o cadafalso. Contos largos,
amigo Guimarães. Vamos cá ao nosso caso.
e snr.
O capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa
do duque de Aveiro; e, como eu disse, estava em
Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de
Azeitão. Assim que o soube, fugiu, e não fez
mal
porque foi procurado lá e aqui. Logo que chegou
a esta casa, que era então um paço feudal, deu
ordem á mulber que se preparasse e mais dous
filhos menores para sahirem do reino. E, em

quanto enfardelavam as bagagens, o capilão-mór


mandou chamar meu avô, lavrador abastado, al-
feres de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe
entregar um cofre de pau preto com braçadeiras
de bronze, cheio de peças. O cofre era tão leve
ou Ião pesado que meu avô, querendo erguel-o
pelas argolas, gemeu. IA por noite fora, pegaram
os dous no cofre, Iransportaram-o á casa que
ainda ê a minha, e metteramo n'um falso que fi-

cava escondido pelas costas do leito de meu avô.


Disse então o fidalgo ao depositário da sua rique-
za que n'aquelle caixote estavam trezentos mil e
tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e
outras moedas muito antigas. Disse mais que a
sua casa ficava exposta a buscas de quadrilheiros
e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca
aos assaltos dos ladrões. Por tanto, confiava de
meu avô o seu dinheiro, sentindo não ter mais
valiosas cousas que confiar á sua honra.
— Trezentos mil cruzados! — murmurou o
8

snr. Guimarães, esbugalhando os olhos — era bem


bom d'elle ! E depois?
— O fidalgo foi para Ilespanha, e para Ingla-
terra, onde linha um seu parente embaixador, e
por lá esteve alguns annos. N'esie comenos, meu
avO pegou de adoenlar-se de moléstia elhica, e
escreveu ao capiíão-mór, pintando-lhe o seu esta-
do, e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar
conta do cofre. appareceu aqui uma
O fidalgo
noite com o maior resguardo, e metteu-se no seu
palácio, confiando-se de um criaJo somente a
quem deixara a feitorisação das terras. De ma-
drugada, mandou chamar meu avo, passaram
juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre.
Contava meu pai, —
parece que o estou ouvin-
do, —que meu avô muitas vezes lhe dissera que
o íidalgo não declarara onde tencionava esconder
o thesouro; mas positivamente lhe dissera que o
não levava para Inglaterra, já por temer ladrões,
jáporque não precisava gastar mais que os ren-
dimentos da sua grande casa.
Meu avô morreu d*ahi a mezes; e o capilão-
mór voltou para a pátria, no anno de 1777, quan-
do D. José morreu, c o rcarquez de Pombal foi

desterrado.
— Essa
não sabia eu! — atalhou com civico
enleio o snr. Guimarães.
9

— Que (3 que v. s.» n3o sabia?


— Que o grande marquez foi desterrado!
Quem foram os marotos que...
— Sáo contos
largos, snr. Guimarães. Vinha
eu contando que o capitão-mór voltou, já viuvo,
com dous filhos barbados, muito extravagantes,
sem religião de casta nenhuma, criados entre he-
reges, destemidos, e levadinhos de lodos os diabos.
Ainda não ha muitos annos que morreram dous
velhos do seu tempo que me contaram as malfeito-
rias que elles praticavam. Batiam a matarem todas
as ordenanças f|ue por ordem superior lhe tinham
entrado em casa á procura do pai. De.>-honesla-
vam todas as cachopas d'estas três léguas em ro-
da. Em fim, amarguraram a velhice do pai,
que
era umsanto homem, a ponto de lhe roubarem
as pratas porque elle lhes não dava quanto di-
nheiro pediam. Finalmente, o velho morreu de
repente em 1782, segundo reza o epitaphio que
está na igreja de Refojos, convento que elle e seus
ascendentes haviam beneficiado...

E os trezentos mil cruzados? interrom- —
peu o brazileiro.

Lá vou j;i. .\ssim que o pai se finou, os dous
filhos abriram loJas as gavetas, levantaram ta-
boas, desladrilharam as lojas, escavaram debaixo
dos toneis, escalavraram os forros, c nada topa-
10

ram. Revolveram lodos os papeis, a vêr se en-


contravam alguma indicação do dinheiro; e, com
eíTeilo, em um papelucho meltido n'uma carteira

vermelha, acharam isto, que meu pai leu lam-


bem Pôde ser que a pobreza vos não corrija; mas
:

a riqueza de certo vos faria tigres. Eu não morre-


rei com o remorso de vos deixar itas mãos o peor

iustrumeuto dos perversos, que é o ouro não ad-


quirido com o próprio suor. Tomaram-se de rai-

va, e romperam direitos a casa de meu pai, per-


gunlando-lhe pelo dinheiro do seu.
— Não ha duvida — respondeu meu pai — que
n'esta casa e n'aquelle falso esteve um cofre do
snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar
a alma a Deus, meu pai, que era honrado, entre-
gou o cofre a quem llfo dera a guardar.
— E depois? — bradaram elles.

— Depois, nada mais sei, senão isto que seu


paisinho me repetiu muitas vezes.
— Nós havemos de achar os ladrões.
— Pois procural-os — disse meu
é pai.

Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos


o velho feitor do capitão-mór, determinados a não
o desatarem sem elle denunciar a paragem do the-
souro; porque o velho declarara que ninguém,
senão elle, soubera da vinda do capitão-mór á pá-
tria, em quanto vegetou el-rei D. José, e o mar-
li

quez de Pombal reinou. O feitor deixava-se mar-


lyrisar e morrer, ou porque realmente nada sa-
bia, ou porque esperava que a final o deixassem.
O caso é que, depois de solto, desappareceu does-
tas terras, enunca mais houve novas d'elle. Mui-
ta gente suppoz que o feitor levou os trezentos e

tantos mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu


e teve em conta de muito honrado, affirmou que
o dinheiro eslava enterrado. Não sei; mas o des-
appareciraento do criado confidente do capilâo-
mór, a meu vôr, deixa suppôr que a estas horas,
lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito ri-

cos os filhos do feitor. Deus sabe o que foi.

— E enl3o os dous do capilão-mór


filhos fica-

ram pobres? — tornou o snr. Guimarães.


— Pobres?! n3o, senhor. Quem tem sete
quintas, que rendiam cinco a seis mil cruzados,
que ha oitenta annos valiam dezoilo mil cruzados
de hoje em dia, não é pobre. O que elles fizeram
foi tratar de se empobrecer. O morgado por aqui

ficou, entretido com mulheres, galgos, cacadas,


cavallos, feiras, jogo e valentias. O otilro, que
teve duas quintas de património, reduziu-as a
moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não
sei que recompensas a D. Maria i. pensando que
o ser seu pai amigo do duque de Aveiro, lhe dava
direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse
12

que a filha de D. José negou ao desvenlurado, ao


innocente e quasi mendigo D. Martinho de Mas-
carenhas os bens de seu pai, duque de Aveiro,
não iria allegar como cousa digna de premio o
affecto do capilão-mór ao regicida suppliciado.
— Conte-me lá isso por miúdos... — atalhou o
brazileiro que não lôra a ílisloria porlugueza do
snr. Viale.
— São contos largos. Vamos primeiro á his-
toria do ultimo senhor da honra do Real de
Oleiros — respondeu o abbade, e continuou:
Não sei onde nem quando morreu Sebastião
Paclieco de Andrade, segundo do ca-
o filho
pitào-mór. Oavi, porém, dizer que morrera no-
vo, pobre e deshonrado. Quanto ao morgado, sei
que elle cnsou com a menos digna das suas con-
cubinas, já quando não toparia menina honesta
que aceitasse o fidalgo de Real de Oleiros. Chris-
tovão Pacheco, apesar da libertinagem e desper-
dício, ainda gozava o que se chama decente me-
diania, quando sahiu d'este mundo, antes dos
cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da
criada com quem casou. Este conheci eu mui de
perto e em conHicto muito deplorável, como lhe
contarei. O pai, que desprezava frades, e zomba-
va da religião, mandara-o educar em religião
e com um parente frade da ordem benedicti-
13

na. O rapaz alegrou-se grandemente ao nolicia-


rein-Ihe que o pai era morto e elle herdeiro.
Veio aqui, por ahi esteve dous annos socega-
damente, olhando pelos bens, posto que debaixo
de tutela; e, quando orçava pelos dczenove an-
nos, tão grandes amostras dava de homem de
bem que se lhe oITereceu para esposa uma se-
nhora de linhagem illustre e dotada com vinte
mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apos-
sou-se do casal, desempenhou parte das quintas
hypothecadas, c manteve bons créditos por espa-
ço de alguns annos.
Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já en-
tão vestia a farda de capitão de milicias. Esteve
no cerco do Porto, onde consta que procedera
valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons
costumes com que sahira doesta casa por lá fica-
ram. O homem voltou tão diverso, tão estragado
na moral, que já ninguém o via e ouvia que se
não lembrasse do pai. A esposa não sei se por
santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma crian-
ça de cinco annos para a casa d'onde viera; c
elle, hypolhecando os bens já deteriorados com
as pioJigalidadcs da vida militar, levantou mui-
tos contos de reis, c estabeleceu-se em Lisboa.
Desde 183G a 1813, o seu viver na capital deu
brado por aventuras amorosas, como lá dizem os
14

salteadores da lionra das famílias. Pedro de An-


drade, que assim se chamava, como seu avô, era
um homem gentil, hem feito, galhardo, e muito
airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito ho-
mem. A corrupção de Lisboa era grande, e elle

ainda maior; mas desgraçadamente, o maldito


empestou muita menina innocente, e abriu mui-
tos abysmos aos pés das virgens que pareciam
ter postos no céo os olhos contemplativos.
— Que grande maroto! —
disse o brazileiro.
— Em 1843, depois de uma ausência de seis
annos, appareceu aqui, de repente, Pedro de
Andrade, e procurou-me a fim de me propor a
compra dos bens que ainda não estavam capti-
vos de dividas. Eu desculpei-me com a falta de
dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a
mulher assignasse os contractos. N'este entretan-
to, recebi de Lisboa certa gazeta de que era as-

signante, onde li uma noticia que me abalou do-


lorosamente. E, estando em minha casa Pedro
de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do
triste successo contado pelas gazelas. — Qual
successo? — perguntou elle. «Eu lh*o leio»
disse eu; e visto que estamos á minha porta,
queira o snr. Guimarães entrar, que eu lhe vou
lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com
inalterado semblante.
15

O brazileiro entrou na saleta do abbade, que


lirou da estante dos seus livros a Revista Univer-
sal Lisbonense de 1843; e leu, a paginas 23, o se-
guinte:

€A POMBA E o ABUTRE

cQuasi todos os papeis públicos transcreve-


ram do Portugal Velho o caso de uma donzella
fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos

clamores contra ella, contra o seductor, contra a


perda da proverbial gravidade do palácio portu-
guez. Sentimol-o e calamos. —
Era assumpto me-
lindroso; para relatar e sentenciar careciamos
ainda de evidencia. Hoje suppumo-nos habilita-
dos para ratificar e completar a narração de um
succcsso que, devida ou indevidamente, já ca-
bia no dominio do publico, e não é possivel ex-
lorquir-se-lhe da memoria.
«No pjlacio velho da Ajuda vegetam ainda
umas cincoenta ou mais solitárias, que, opprimi-
das dos annos e das moléstias, recebem da cari-
dade da soberana o pâo pelos serviços, que ou-
trora prestaram ás rainhas e princezas suas as-
16

cendentes; — são os ornamentos partidos e des-


figurados de um que desabou para nunca
século,
mais ser reconstruido. —Todas estas mulheres
s3o tristes como reliiquias de tempos festivos,
saudosas, ou antes, saudades ellas mesmas: —
a presença de todas e de cada uma, aggrava a
cada uma e a todas ellas a melancolia do cre-
púsculo da morte, que já lhes vem anoitecendo.
— Todo o reboliço, todas as quotidianas trans-
formações materiaes, moraes e politicas da visi-
nha capital, onde já foram vivas, moças e bri-
lhantes, ou nãochegam alli, ou só chegam como
uns contos vãos e longínquos, como sonhos de
cousas passodas em outro planeta ^que tem el-
:

las que ver no berço que se apparelha para uma


nova idade? —
ellas, que já pendem para o se-

pulchro, a contemplar no fundo d^elle tantas cou-


sas louçãs e vivazes, que lhes pertenciam !

«Entretanto no meio doeste palácio de triste-


zas volteava ainda um raio de sol; um arbusto
florejava purpuras no meio d'este cemitério; uma
avesinha cantava primavera entre o desconsolo
d'estas ruinas: uma viração deliciosa fazia ás ve-
zes susurrar agradavelmente estes musgos re-
sequidos. Tudo isto era a joven Maria, lindeza de
18 annos, lindeza corporal como poucas, lindeza
de espirito como ainda menos, lindeza de cora-
17

cão como quasi nenhuma, sobrinlia e compa-


nheira de uma d'estas vellias, companheira e
amiga de todas ellas. Maria, era realmente o fei-
liço, a vida encantamento d'aquelle retiro
e o
sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga
de divida; Maria queria-lhe muito, quasi que alli
abrira os olhos, pelo menos outra nenhuma lhe
lembrava; sob aquelles tectos brincara desde a
idade de ires annos; entre aquellas cabeças en-
canecidas se fora coroando a sua de longas tran-
cas louras: entre o crescer de tantas rugas se
desenvolveram c aperfeiçoaram as suas graças;
entre o progressivo decahir de tantas prendas e
esperanças como as folbas verde-pallidas que em
pomar de outomno se despegam uma a uma, os
seus talentos naturaes por uma desvelada educa-
ção, que a munificência da snr.» D. Maria i pro-
porcionara a sua tia os meios de Ufa dar, tinham
chegado ao seu maior auge.
«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes
próprias do seu sexo, um lór e escrever primo-
roso, noçOes e gosto de littcratura, mormente da
franceza, em cuja lingua era mui versada, e mu-
sica,merecendo no piano as honras de mestra, c
por coroa de elogio verdadeiro, os seus costu-
mes eram puros e o seu coração religioso: nas
orações que todas iam quolidiauamente depor
i8

aos pés do deviam rescender mais


aliar, as d^ella

a innoceiite alegria que


temores ou remorsos.
a
— A 55 de junho orava no curo com sua tia
quando o relógio dos paços bateu as G da tarde.
Levanta-se, pede licença para deixar o restante
para depois, e ir entregar —
que o proraetteu —
um debuxo de bordados a uma sua amiga fora
da casa.
«Foi: correram horas, e não voltou.
«Começaram cresceram cuidados: raan-
e
dou-se á busca por todas as partes passou o se-
:

rão, passou a noite, e passaram também dias,


sem que a tornassem a vôr, nem a ouvir d'ella
nova alguma.
<LiS'essa tarde alguém se lembra de ter nota-
do uma sege parada debaixo da arcada do paço.
E um morador da casa acrescenta que, perto da
noite, achando-seno cães do Sodré, vira chegar
uma sege á porta de uma hospedaria, e um ho-
mem de chapéo branco apear uma menina, que
lhe pareceu ella.
«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no
domingo um gallego com uma carta para a cons-
ternada tia: — entrega-lh'a
em mão própria, e
ajunta, havel-a recebido de uma menina mui
linda, que lavada em lagrimas e afogada em so-
luços lhe recommendára fosse leval-a correndo,
10

e lhe trouxesse signal de ler sido recebida. O


conteúdo d'esla caria ninguém o soube, mas par-
te d'elle facilmente se pode presumir. — Ás no-
ve horas d'essa mesma noite viram-se sahir pela
portaria dous vultos rebuçados, (]ue por mais
que a porteira os interrogasse, partiram sem dar
resposta. Á hora e meia da noite os mesmos
dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre
si amparado c quasi em braços um terceiro, que
ninguém reconheceu. Abriram uma porta, que
liavia muito não servia, e que dava passagem

para a pousada da fugitiva, e entraram.


(í Pessoa do sitio por quem
soubemos, isto

nos acrescentou, que o estado de Maria na se-


guinte manhi5, segundo \Wo descrevera quem
acabava de a v^r, cortava o coraçiío. As suas
tranças louras e espessas tinham desapparecido.
O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas
fontes corriam dos seus olhos. A sua dôr via-se e
muda.
era terrível porque era
«As suas occupaçòes desde então teem sido
orar e chorar: com isto leva no oratório as ho-
ras do dia e da noite, abraçada com a imagem
da consoladora dos afilictos, beijando-a nos
pós, nas mãos e no rosto como filha a sua mãi
— como filha pródiga, que procura, á força de
se restituir toda, reconquistar o coração mater-
20

no; como se coração materno se apartasse nun-


ca. O pai aggravado perdoa, a mài não, toda el-
la foi sempre amor, e o amor não sabe senão
amar.
«A única pessoa, que além de sua tia, a tem
visto, é o medico, alma sensível, de quem rece-
be os soccorros mais assiduos e delicados. Entre-
tanto o mal que a mina é grave. Quasi privada
do alimento e do somno, os seus dias parecem
ameaçados de um fim prematuro. Se a violência
mesma da sua dOr lhe não limitar em breve a
duração, outro perigo pouco menos cruel que
o da morte, parece ameaçal-a. O pranto conti-
nuo que afoga os seus oUios, receia-se que ve-
nha por ultimo a lli'os apagar, e que a pobresi-
nha que, ainda ha pouco, era o raio de sol de to-
da a habitação, venha ainda a ser, mergulhada
em trevas e sobrevivendo a si mesma, um obje-
cto de profunda e estéril compaixão para tantas
infelizes, a quem ella. pouco^ha, repartia ale-
grias e emprestava mocidade.
« ; t E agora quem a condemnará por um er-
ro, cuja origem e historia nos são dcsconheci-
dos?Uquem a apedrejará entre os braços, sob
o manto e sob os olhos da rainha dos anjos, que
lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e com a
vista serena e amorosa lhe está apontando para
21

as alturns?! ; i ;
Qne delidos e crimes (quanto
mais erros) ! deixariam de se lavar cora tantos la-

grimas!!! jijEha enlrelanlo aqni iim homem,


talvez entre nós, talvez festejado e respeitado —
um homem, que ella generosa não nomeia, não
nomeará nunca —
um homem, cujo rosto mais
duro que o de Caim se não transformou, se não
tingiu de repente na cur de sua alma para o de-
nunciar, como da innocencia, da
sacrificador
virtude, da formosura, e do amor, de um amor
irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sa-
crificava tudo até a vida, — tudo até o porvir —
tudo — tudo até a Ha ahi um homem
honra ! ! !
i
;

doestes!! Ila-o sem duvida! esc as justiças o


descobrissem, este homem receberia uma pena:
menos aíTronlosa que a do ladrão assassino... Es-
te homem não havia de ser mandado por todas
as cidades e villa» do reino de brnro dado com o
carrasco, para ser alado a cada pelourinho, es-
carrado no rosto por todos os homens e mulhe-
res, e esbofeteado depois pelo seu menos infame
companheiro de jornada com a mão esquerda.
Não: que importa o que padece uma mulher?
Não cresse nas palavras de quem a fiscinâra;
não fosse moça, innocente e amante; não fosse
mulher. As justiças da sociedade toem mais cou-
sas em que pensar. ^E de mais não se vô isto
BIBLIOTHECA N.* 4. *
todos os dias? Não são conhecidos muitos outros
que também matam assim o tempo com estas ca-
çadas amorosas? ^que o confessam com vanglo-
ria c que em companhias mui luzidas são por is-

so admirados e invejados! Tratemos dos interes-


ses materiaes. O restante são chimeras, são fana-
tismos, são misérias, indignas da attenção de le-
gisladores, e dos homens illustrados de 1843.»

Concluída a leitura, o abbade proseguiu:


— Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a
poeira das calças com um chicolinho de baleia, e
disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa.
O que amim me espanta é que a imprensa vista
o habito de TartuíTo, e saia ás praças a pregar
contra a corrupção que ella promoveu com os
seus romances, com as suas philosophias, com as
suas theses de liberdade, e com a perseguição de
escarneo e de fome feita aos apóstolos da sincera
moralidade. y>

Discursou largamente n'este sentido, e des-


pediu-se, deixando-me inclinado a dar-lhe razão.

Passam-se trcs dias : — continuou o abbade —


— era meia noite de 2 de agosto do mesmo an-
23

no de 18i3. Recolhia-me â igreja de ter ministrado


3 extrema-unção a um moribundo, quando ouvi
dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a minutos o
alarido de muitas vozes, gritando «homem mor-
to! »
Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vi-
nham chamar-mepara assistir aos paroxismos de
Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido
á porta de sua casa.
Quando cheguei, haviam transportado ao
já o
leito. Estava ainda vivo. Assim que me viu, ace-

nou-me com anciedade, apertou-me convulsa-


menle a mão, e segredou-me: «Quero confessar-
me, que vou morrer.
Esculei-o por espaço de hora e meia; as
phrases eram cortadas por gritos de agonia; am-
bas as balas lhe estavam dilacerando as entra-
nhas do peito; e, ainda assim, aquelle demorado
arrancar da vida me quiz parecer uma delonga
providencial para que o grande criminoso tivesse
tempo de penar c chorar suas culpas. Expirou
com todos os sacramentos, pedindo-me que, em
nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua
mulher.
O moribundo, quando me revelou o seu der-
radeiro delicio, rogou-me que desse publicidade
ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgra-
24

ça podcsse aproveitar aos centenares de delin-


quentes que lhe haviam dado o exemplo do vicio
e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso
em lhe dizer que o seductor da infeliz Maria do
Carmo havia sido Pedro de Andrade, e que os
vingadores da abandonada menina deviam ser
seus parentes, posto que o assassinado os não
houvesse conhecido, e lhes ouvisse apenas dizer,
antes de desfecharem as clavinas, que lhe tra-
ziam saudades da prostituída senhora do paço da
Ajuda.
— Com eíTeito! — observou o snr. Guimarães
— essa historia arripiou-me os cabellos!... V. s.»
ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero
copiar esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse
desgraçado?
-—O filho do desgraçado, que tinha então on-
ze annos e estava com sua mãi, pôde dizer-se que
ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazen-

da nacional disputaram-se a posse do espolio. O


rapaz, quando chegou á idade de tomar conta da
honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe
era mister trabalhar para não morrer de fome.
Os parentes de sua mãi, posto que abastados, não
o protegeram, etornaram-lhe pesada a esmola do
pão 6 da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com
sua mãi da casa que lhe amargurava o bocado, e
25

foi habitar um casebre nas visinhanças do escri-


vão, que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze
vinténs por dia. V. s.> conhece-o. É aquelle Ál-
varo de Andrade que tem lavrado as escripturas
de compra de propriedades que o snr. Guimarães
tem adquirido...
— Pois cesse!... Aquelle homem humilde que
me beijou as mãos quando eu lhe dei uma libra
de gratificação...
— É esse mesmo.
— E nunca me disse de que familia era...
— Não em familia, e parece até esqueci-
falia

do da sua procedência. Que eu, a fallar verdade,


uma vez, passando com elle defronte das ruinas
da casa de seu pai, surprendi-o a olhar para as
paredes derruídas com as lagrimas nos olhos.
Pergunlei-lhe por que chorava, e elle respondeu-

me que chorava por sua mãi, lembrando-se que


d'aquella casa sahira ella coberta de mais amar-
gas lagrimas.
— Coitado — disse
I o brazileiro — hei de fa-
zcr-lhe o bem que poder.
— E pôde muito v. s.^ mas faça-Uf o de mo-
do que o não humilhe.
— Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados
brazileiros, sabemos todos os processos de dar es-
molas aos nossos patrícios de modo que elles se
26

dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos


o direito salvo de nos ridiculisar.
A justiça inspirara este homem, que nunca
fora tão eloquente.

Pouco tempo depois, annunciou-se a venda


da quinta de Real de Oleiros e suas pertenças, a
requerimento dos credores. José Maria Guima-
rães cobriu todos os lanços. Foilhe adjudicada a
quinta por alto preço. Os licitantes, que eram os
credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam
entre si

— Espigiiémol-ot
E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram
unanimemente:
— Foi espigado!
O brazileiro pagou immediatamente ao ins-
trumento da adjudicação, e disse, relançando a
vista aos alegres credores de Pedro de Andrade:
— Meus senhores, o que vale aos credores dos
fidalgos,que não pagam, são estes 7wssos irmãos
de além-mar, que, lá e cá, melhor fôra chamar-
Ihes irmãos da misericórdia...
— É parvo — disse um poeta de Basto ao ou-
1

vido de um bacharel de Felgueiras.


27

Passados dias, começaram obras de reedifi-


cação no local do palacete arruinado. O proprie-
tário, fazendo-se enconlradiço com o amanuense
do tabelliáo, disse-Ihe:
— Ó snr. Álvaro, vá o snr. hoje, se não tiver
que fazer, á quinta de Real, que temos que con-
versar a respeito de certos arranjos.
— Sim, senhor — disse Álvaro — quando v. s.^

quizer.
— Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que
não ha lá d'isso.

Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-


mór na extincta honra dos Pachecos e Andrades.
Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os al-
veneis. Assim que chegou o escrevente do tabel-
lião, subiu com elle por entre um matagal de bra-
vio até ao alto de um outeirinho onde se erguia
um pombal já descaliçado, mas ainda assim a
porçào menos esboroada das pertenças da quin-
ta, graças á fortaleza do tecto abobadado de pe-
dra.
Havia dentro uma banca de granito, onde ou-
lr'ora os senhores de Real se desenfastiavam em
merendas, depois das fadigas da caça na tapada
defeza. Já lá estavam duas cadeiras.
28

— Sente-se Álvaro —
alii, srir. José Ma- disse
ria Guimarães, — e vá escrevendo.
— Prompto! — respondeu o escrevente, ro-
dando a sibilante tarraclia do tinteiro de cliifre.
— Ponha ahios nomes dos pobres da fregue-
ziaque não tem casa de seu.
Álvaro Pacheco escreveu trinta e quatro no-
mes; quedou-se um momento, e perguntou:

De todos os pobres que não tem casa ?
— Sim, de todos os pobres que não tem casa
própria.
— Então, falta o meu nome. Somos trinta e
cinco os pobres que não temos casa.
E escreveu: Álvaro, escrevente de tabellião.
— —
Muito bem volveu o brazileiro commovi-
do — sabe o que eu quero?
— V. o dirá.
s.=^

— É ceder metade d'esta quinla aos pobres


para elles edificarem uma casa com seu quintale-
jo; já se vô que sou eu que pago as obras das ca-
sas; e, visto que o snr. Álvaro o um dos trinta e
cinco pobres, escolha o local onde quer a sua ca-
sa feita. A escolha do local é sua ; ora agora, o fei-
tio da obra isso é cá por minha conta.
— Os pobres aceitam, não escolhem — disse
Álvaro.
— Mau! —replicou José Maria Guimarães —
29

Mau! ou bem que somos francos um com o ou-


iro, ou Dão temos nada feito. Eu cá sou assim!
— Então quer v. s.»...
— Deixemo-nos de senhorias. Eu sou filho de
um almocreve, e neto e bisneto de burriqueiros;
e o snr. Álvaro Pacheco é descendente de capitàes-
móres a quem meus avós traziam presuntos de
Melgaço nas suas recovas de machos. Deixemo-
nos de senhorias. Vamos á questão. Onde quer a
sua casa ?
— Aqui — disse Álvaro.
— Aqui no pombal?!
— Aqui, porque sendo casa, e ao
fica mesmo
tempo memoria de ler estado n'esle sitio um ho-
mem honrado.
— Ou dous — emendou o brazileiro~Dô cá
um abraço, e vamos embora, que faz aqui frio.
E, no decurso do caminho, prosegiiiu:
— O snr. Álvaro ha de fazer-mc o favor de se
despedir do serviço do tabellião, se lhe não cus-
tar. Preciso de (juem me represente n'eslas obras,
em quanto vou tratar de negócios a Lisboa. Eu
cá lhe deixo as plantas das casas dos pobres, e o
capital para o custeio das despezas.
30

O brazileiro voltou, passados seis mezes. To-


das as casas estavam já de parede e tecto, quando
voltou, excepto a do pobre chamado Álvaro.
— Com que então a casa n.» 35 ainda não
tem sequer os alicerces? — perguntou o bem-
feitor.
— É porque o pobre n.» 35 não precisa tanto
como os outros — respondeu o feitor.
— Então vcu eu ser agora o fiscal das suas
obras — tornou José Maria.
E, ao outro dia, fez convergir os melhores
operários para a bouça do pombal, e mandou ar-
razar a vivenda de centenares de andorinhas que
se esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e
marretas.
Álvaro e José Maria assistiam ao derrubamen-
to do pombal, um tanto condoídos do esgazear
das espavoridas habitadoras das ruinas.
N'islo, um pedreiro esboroando com a ala-
vanca um pedaço de parede, descobriu uma su-
perfície escura, que se lhe figurou lousa.
— Que diabo de obra é esta de lousa em pa-
rede de cantaria ? — disse o alvenel.
O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a
supposta lousa, e observou ao pedreiro que era
pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e
alimpar a superficie do que quer que fosse.
81

— Isto é um caixote! — disse o mestre da


obra — querem vossos vôr que o diabo as arma?
— Arma o quê? — perguntou José Maria Gui-
marães.
— V. nunca ouviu dizer que os fidalgos de
s.>

Real esconderam um Ihesouro que nunca se en-


controu?
— Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a
pedra que está dos lados, e não embarrem no
caixote. Cuidado lá com issol Snr. Álvaro, pare-
ce-me que vai assistir á resurreição do melhor
defunto dos seus avós — bradou o brazileiro.
— Como — perguntou Álvaro, que vinha en-
? 1

trando no recinto do pombal.


— Venha vór. Apalpe. Que c isso?
— Parece-me um caixote — disse o bisneto do
capilão-mór.
— Não é parece; é que é. Sabe o que lá está

dentro ? Sabe a liistoria dos trezentos e tantos mil


cruzados de seu bisavô?
— Ouvi dizer que...
— Que nunca appareceram. Apparecem hoje.
Estão alli.

Álvaro de Andrade que tinha encarado o in-


fortúnio de trinta annos com intemerato aspecto,
descorou em frente da taboa negra que devia ter
32

dentro uma cousa chamada, bem ou mal, a for-


tuna.
A este lempo, o caixote era apeado, suspenso
entre quatro robustos braços.
— Oh ! como pesa !
— gemeu um dos pedrei-
ros.
— Podéra uâo — disse o brazileiro — trezen-
!

tos e tantos mil cruzados!


— Os correm para o mar, snr. Guima-
rios
rães—observou o mestre d'obras.
— Que quer mestre? — perguntou o
dizer,
brazileiro.
— Que se era
v. s.» agora riquissimo.
rico, é
— Obrigado pelo conceito que de mim, faz
mestre... — volveu José Maria entre risonho e
agastado.
— Ó meu senhor, pois eu...
— Suspeita-me de ladrão...
— Valha-meDeus!... o queapparecerem ter-
ra de V. s.a seu é.
—E esta terra é minha? Pois não sabe que
este chão é d'este pobre que se chama Álvaro?
—Ó snr. Guimarães!... — exclamou o filho
do ultimo senhor da honra de Real de Oleiros, e
não pôde articular outra expressão.
— Vamos! — acudiu o brazileiro — para on-
de é que vai o thesouro de seu avô, snr. Álvaro
Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde,
snr. conde, snr.... Quer mais? Dô as suas ordens.
José Maria casquinava uma risada de elevada
inteUigencia, em
quanto os obreiros, rodeando o
caixote, se embasbacavam uns nos outros, e lodos
no rosto de Álvaro com a mais sincera e respei-
tosa estupidez.
Novamente instado para que dissesse onde o
caixão devia ser levado, Álvaro respondeu :

— A minha mãi, que sabe o que são pobres.

E os primeiros pobres, que relativamente en-


riqueceram nas aldóas convisinhas, foram os
descendentes dos irmãos que
d'aquelle feitor
muitos alcunharam de fugitivo ladrão do ihesou-
ro do capitão-raór, e que se fora a morrer longe
d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamen-
te martyrisado pelos filhos de seu amo.
Álvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de
4871, tem quarenla e nove annos, e é conhecido
pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senho-
ra de tez morena, com cinco formosos filhos, que
brincam senhora de setenta an-
á volta de outra
nos, é a esposa de Aharo, e filha de José .Maria
Guimarães. A dos cabellos brancos, que lhe alve-
34

jara na fronte como a coroa de açucenas de uma


santa^ é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D.
Juan, assassinado em 1843. O sacerdote ancião,
que parece ser da família, é aquelle abbade que
nos leu a Revisla Universal Lisbonense^ e a quem
eu devo e agradeço os commentarios ao fogoso e
pungente artigo, que me parece ser do meu pre-
sado mestre e adorado amigo visconde de Casti-
lho.

O JOGrAJIDOFt
Hoje em dia, aquella denominação, nem é
desprezivel nem aíTronlosa. O progresso indultou
o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrôte.
Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um
palácio, cujas alfaias e baixella representem os
haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o
legitimo e respeitado proprietário do meu palácio.
Se eu abrir os meus salões, a mais selecta so-
ciedade virá pisar as alcatifas do meu palácio, e
lisonjear a magnificência do fino gosto que diri-
35

giu as correntes do meu ouro. Ninguém me per-


guntará se lierdei de avós, se ganhei de incautos
a rainha opulência. Talvez que os meus convida-
dos segredem entre si a proveniência das rainhas
pompas; mas duas vezes deshonrados,
d'esses,
vingado estou. Deshonrados, porque entraram
nas rainhas salas, e deshonrados porque dene-
griram a honesta posse dos vinhos que me be-
beram.
Continuando a auspiciosa hypothese : se eu fOr
o jogador enriquecido, bemquisto das farailias,
pessoa séria, iníluente nas eleições bancarias, com
folha corrida, insuspeito de falsificador de testa-
mentos ou moeda, de certo me não distingo do ho-
mem de bem, laborioso, honrado e provado nas
lutas da vida.
Ha, todavia, entre nós uma pequena diíTeren-
ça: eu dou bailes, e o meu honrado visinho não
os dá.
Mas isso depende da aristocracia da índole
elle pôde descender d'algum servo de gleba, que

lhe transmitliu génio cainho e o acanhamento de


raça; em quanto eu obedeço a impulsos de outro
sangue. As damas que se bamboavam nos coxins
ílaccidos das minhas othomanas com toda a certe-
za não calcularam quantos micos infelizes dos meus
parceiros representavam as copias de Raphael e
36

OS originaes de Murillo pendurados sobre as col-


gaduras das minhas paredes. Ames quero suppôr
que ellas, no arrobo da sua admiração, medita-
ram que na rainha cabeça havia o que quer que
fosse digno da cabelleira encalamislrada de um
Marialva, no reinado de D. João v.
É profundo o fosso que me separa do jogador
em outras eras. Nasci quando devia nascer. Se eu
viesse á luz no século xvi, este meu mister de jo.
gador era synonymo de vadiagem (Onl, 1. v, lit.

8'2). Nas minhas tertúlias, devidas á sorte feliz da


tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se
nascesse no século xvii ou xviii, os corregedores
dos Philippes, de D. João iv e Pedro ii, e dos reis
subsequentes, se eu desse bailes, carregavam-me
com as leis sumptuárias por sobre a pecha de va-
dio. Em tempo de D. João v, D. José ou D. Maria,
tanto o Camões do Rocio, como o Marques Baca-
lhau, como o Pina Manique mandavam-me res-
ponder do Limoeiro pela procedência dos meus
lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos
meus contadores marchetados, dos meus bron-
zes, dos meus frescos, dos meus pêndulos, dos
meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-
me talvez uma das librés dos meus criados.
Foi por isso que o facho da civiiisação, pas-
sando pelas minhas salas de jogador feliz, radiou
37

revérberos esplendidos da minha baixella, e me


mostrou em meio dos meus convidados, com a
fronte lazentissima das alegrias do homem de
bem.
Pôde ser que, em outras eras tenebrosas, a
felicidade no jogo fosse malsinada de fraude e
roubo.
Hoje não.
O jogo, á luz de 1871, é um contracto bilate-
ral, fundado no consentimento de ambas as par-
tes.

Se é forçoso que uma das partes fosse tola e

desgraçada, eu de certo não fui.

Está fechada a hypothese.

leiío DO nm fr, e[rnio i

Escreveu o famoso cisterciense a Sylria de Li-


zardo, e ninguém o trata de poeta quando o
louva ou moteja. Chamam-lhe o chronhta, o chis-
sicOy o douto, o mentiroso, o massador, o milagrei-
ro; poeta é que não; e houve até um frade da
BLBLIOTHBCA N.* 4. 3
38

ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o au-


Ihor do Punhal dos Corcundas, que positivamente
desbalisou de poeta e de author da Sijlcia de Li-
zardo o vernáculo author da Chronica de Cister.
Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquel-
le Balthazar de Brito de Andrade, que por amor
do patriarcln se crismou em Bernardo.
Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosá-
pia dos outros. Raro fidalgo lha sahiu incólume
do crisol em que por obrigação do ofllcio de his-
toriador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozen-
dos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros
condes das raças romana e goda.
Nos descendentes do Espadeiro, que eram a
geração dos CocZ/ios, beliscava elle, á conta do as-
sassínio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade,
que os Britos, em Portugal, derivavam dos Bru-
tos de Roma.
Um descendente de Egas Moniz, chamado João
Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a
maledicência de fr. Bernardo de Brito com este
soneto:

Aos profundos impérios del-rei Phito


Bernardo, pelo que has escripto,
Irás,
Pois dizes que de Bruto vem teu Brito,
Ficando tu só 7i'isso Vrito e bruto.
39

Tu vens d'aquelles que a pé enxuto


Passaram, com Moijsés, o mar do Egypto,
Ou vens do que com sangue do cabrito
Tantos guizados fez sem nenhum fructo.

Chamastes ao teu livro Monarcbia,


Sendo Mona que cria monstros vários,
E tornastes de ferro a idade de ouro.

Não te mettas em casos temerários;


Pasta nas hcrvas, bebe da agua fria,
Ou na velha escudela o caldo louro.

O monge de Cister responde pelas mesmas


rimas:

Mararico dos charcos de cl-rei Pluto,


Que taes marmanjarias has escripto.
Que ao douto frei lii-mardo ou Bruto ou Drito
Picas com bico infame, sujo e bi^uto;

Jamais será de Ignez o ]>ranto enjrufo,


Puis a fazes mais quartos que um cabrito,
Dizendo que nas imios deu o esprito
De Coelho matador, sagaz e astuto.

Não vem da lusitayxa monarchiu


Martinho mono, pai de cascos vários.
Sua mãi de Aguilar, águia, não de ouro.

Não te incitas em casos temerários


Que louro não honra tua musa fria^
Mas de uma jyouca de... o caldo louro.
40

As injurias do primeiro tercôto entendem cora


os progenitores de João Soares de Alarcão. Mar-
tinho, se era mono, sobrava-lhe direito a ser da
monarchia lusitana; mas também o outro se de-
masiára, vituperando de mona a Monarchia do
frade. Tratavam-se de macacões um ao outro.
Pai de cascos varias, invectiva o poeta de Alcoba-
ça. Pela variedade da cascaria, entende-se que
capitulava de cavalgadura o adversário: saldo
bem ajustado com o outro que lhe chamara bruto.
Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser
da familia de Aguilarrs: e era com eíTeilo, sem
ser de raça desprimorosa. Chamava -se D. Cecí-
lia de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe
de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D.
Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castel-
la que chegou á mordomia-mór do rei intruso.

Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito


dos hespanhoes, o logo contarei um caso do mais
notável.
Martinho, mono, diz frei Bernardo. Que o pai
do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello,
6.0 senhor da casa de Torres-Vedras, não ha du-
vida; que fosse mono, não o inculcam os genea-
logistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de

Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre


esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, le-
41

trado eminente e guerreiro, que morreu queima-


do em uma explosão de pólvora, quando guarne-
ciaJuromenha, em tempo de D. João iv, capita-
neando os noviços da companhia, cujo reitor era.
Outro do poeta dos cascos vários, quando
filho

D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se


para Philippc iv; e foi condemnado á morte *.
Teve a mãi de João Soares um primo chama-
do Damião de Aguiar Ribeiro, que era correge-
dor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem,
andavam então divididas as opiniões entre D. Aq-
toaio e Phiiippe ii, acerca da successão do ihro-
no. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos
propugnadores por Castella. Succedeu então que
um homem do serviço de D. António acutilasse
na Padaria um vereador que fallava soltamente
no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi
preso e summariamente condemnado á forca. Á
hora em que o réo era levado, soube Damião de
Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava
povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Man-

D. Jaào Soares morreu em IGIS, com 3S annos de ida-


<Je.Escreveu e imprimiu em lingui castelh.ina: Archimima


de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei
D. Pedro, D. ígncz de Castro, etc. Este poema não devia
ser mui lisonjeiro ás tradiçGes de Pêro Coelho, avoengo do
poeta.
42

dou o corregedor parar o préstito; fez lançar uma


corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se
enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão
grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o
nomeou desembargador do paço, e depois chan-
celler-mór do reino, commendadorde S. Matheus
de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commen-
das que rendiam 3:500 cruzados.
Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem
que fundou o convento das Capuchinhas da Mer-
ciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma
extensa quinta que ia desde as portas de Santo
Antão pela travessa da Annunciada até á chama-
da calçada de Damião de Aguiar.
Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se re-
presentar entre nós pelos snrs. condes de Povo-
lide, de Valladares, etc.

Rebello da Silva não reza bem d'este Damião


na Historia de Portugal. Eu não rezo bem d'elle
nem por elle; confesso, todavia, que era homem
expedito n'isto de enforcar a gente na janella de
qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.
A3

LISBOA

Elucidemos a historia do viajante.


O mordomo-mór que fugiu era D. João de
Mascarenhas, -i.» marquez de Gouvôa,e7.oconde
de Santa Cruz. Tinha í2õ annos, e era casado
com uma hespanhola, ciiamada D. Thereza de
Moscoso e Aragão, filha do 7.° conde de Alta-
mira.
A senhora que com elle era D. Maria da
fugiu
Penha de França, lambem casada com seu pri-
mo-irmão D. Lourenço de Almada, muito moço.
Tinham casado em 17-2-2. Em junho de ir23
D. Maria da Penha de França deu á luz orna me-
nina, que se chamou Violante. E, na noite de 1

de novembro de 17:21, a esposa, abandonando


marido c filha, fugiu com o marquez.
Este desastre não foi precedido de ardentes
galanteios e grandes resistências do pudor ven-
cido pela paixão.
D. Maria foi de visita ao paço, onde havia si-
do dama, como sua mãi D. Violante Henritiues o
fora da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o
44

lEarquez que era galan, audaz, e sem ser mi-


lagre, falminou-o com o relâmpago da formosu-
ra. Fugiram pararam em Tuy. Não foi em Vigo
e
como diz o viajante. Julgavam-se salvos em ter-
ra estrangeira; mas o bispo, por ordem vinda de
Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o
raarquez fagiu por Hespanha dentro, e mais tar-
de para Inglaterra.
Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da
mulher de D. Lourenço de Almada, certo poeta
escreveu um soneto gravido de maus versos e
boa moral, que diz isto:

Desse cljustro a sagrada penitencia


Pia te esconda, oh bella criminosa,
E converta'Se em sombra a luz formosa
Que ardeu nos sacrifícios da indccencia.

Tolera da prisão toda a violência,


Perdida já a nobreza generosa ;
Fique ainda entre a culpa indecorosa
Benemérita ao menos a paciência.

Principia a morrer n'essa clausura


Encobrindo um descrédito itifinito
No ayitecipado horror da morte escura.

Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto.


Como vai sendo de vida sepultura,
Chegasse a ser cadáver o delicto !
45

liei de escrever um
que ha de chamar-
livro

se o DESTERRADO. Estes desastres hão de ser


esmiuçados compridamente. O Desterrado do
meu romance não é o marquez de Gouvéa é :

ouira casta de personagem. Bem


que esfrio o
sei

interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em


poucas linhas. Não importa. A curiosidade do
leitor é mais attendivel que as conveniências
mercantis d'uma novclla.
Como sabem, Penha deixou nos
D. Maria da
braços do abandonado marido uma íilhinha deon-
«

ze mczes, que se chamou Violante. Esta menina,


ahi pelos dezesete annos, amou seu primo D. Luiz
Francisco de Assis Sanches de Baena, alcaide-
raór de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns
gentilissimos vinte e nove annos. Na casa dos
AlmaJas, onde D. LuizfOra creado — porque sua
mài casara era segundas núpcias com D. Luiz
José de Almada —
havia um D. Antão, que se apai-
xonara por Violante, que era sua sobrinha. A
menina esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-
se arrebatar nos braços do primo D. Luiz, quan-
do uma ordem regia o desterrou para Moncorvo,
a rogos de D. Antão de Almada. Os dous fugiti-
vos (que desterro tão semelhante, o de mãi e fi-
lha!) esconderam-se e casaram era Zamora mas ;
46

alii mesmo os enviados do cioso lio a foram co-


lher de sobresalto e a trouxeram a Portugal.
Esteve a menina reclusa alguns annos em
Marvilla, com o propósito de professar, pois que
a lei lhe annullára o casamento com o primo;
não obstante, porém, a saudade do desterrado
primo, ao fim de onze annos, aceitou seu lio para
esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido
e desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito
pela rama o entrecho do livro para o qual se es-
tão aprestando as peças essenciaes da vida tem-
pestuosa de D. Luiz Francisco do Assis Sanches de
Baena, fallecido aos 75 annos, e terceiro avô do
actual snr. visconde de Sanches de Baena '.
De D. Violante e de seu tio D. Antão de Al-
mada (sem embargo das amarguras da violenta-
da esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que
foi o l.« conde do seu appellido em 1703.

Outra indicação do viajante que estimula a


curiosidade:
<.<A casa da rainha e dos príncipes são aná-
logas á do rei. O posto de camareiro-mór da

* Veja Apontamentos biographicos acerca de D. Luiz


Francisco de As*is Sanches de Baena, ttc, por Innccencio Fran-
cisco da Silva, Lisboa 1869.
47

rainha vagou por morte do marquez das Minas,


assassinado em 1721. Esle senhor era genro do
marechal de Villeroy; e seu filho, o conde do
Prado, está presentemente na côrle de França.
Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que
transcrevo do citado periódico de Francisco Xa-
vier de Oliveira:

«Um corregedor guardava uma porta da


igreja da casa professa dosjcsuilas,quando alli
se celebrava grande festividade. Somente o rei
havia de entrar por aquella porta. Chegaram
aqui o marijuez das .Minas e o conde da Atalaya ;

mas o corregedor com razão lhes vedou o passo.


Insistiram elles, dizendo ao ministro que as
ordens recebidas n3o podiam enlender-se com
pessoas de sua esphera. Redarguiu o corregedor
que as ordens ninguém exceptuavam, e por tan-
to, sem que o rei entrasse, não podia eile per-

mittir que entrasse quem quer que fosse. Aquel-


les senhores podiam entrar por outras portas
francas a toda a gente. Não obstante, perti-
nazmente exigiram do corregedor uma distincção
que elle não podia dar-lhes sem transgredir os
deveres... Os dous fidalgos, depois de o terem
insultado, passaram ás ultimas. O conde da Ata-
laya deu com o chapéo na cara do corregedor, e
48

O marquez das Minas traspassando-o com a espa-


da, matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram
do reino. O marquez das Minas foi perdoado e

voltou ao reino \ »
Cré o leilor que, não obstante o perdão,
o marquez das Minas passaria o restante da vida
sequestrado das graças do monarcha e da convi-
vência das pessoas de bem? Não faça juizos
temerários o leitor: o marquez das Minas rece-
beu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de
general.
Já vimos a justiça dos homens: agora veja-
mos a da Providencia. Servia no exercito portu-
guez um castelhano chamado D. Juan de la Gue-

' o de Oliveira não designa o tempo de ex-


cavalheiro
patriaçào do marquez das Minas, conde do Prado. Devi.im ser
dez annos, segundo a sentença manuscripta de que dá noticia
o snr. Innoceocio Francisco da Silva, a png. 233 do 1.' tom.
do Dicc. Bibliog. Diz assim: aSentença da Relação de Lisboa,
contra os condes do Prado e da Atdlaya por matarem publi-
camente o corregedor do Bairro-Alto no exercício da sua au-
thoridade. O primeiro, tendo-sc evadido, foi justiçado em es-
tatua ; coodemnado a degredo por dez annos, e am-
o segundo
bos era multas pecuniárias». Creio que ha equivoco na trans-
criprào da sentença. O queimado em estatua foi o conde de
Atalaya, que, no dizer do cavalheiro de Oliveira, morreu fu-
rioso em Vienna, depois de ter militado no exercito do impe-
rador de Áustria. Quanto ao marquez das Minas, presume-sd
que lhe foi indultada a senteni^a, visto que o citado Oliveira
diz que obteve perdão e voltou a Lisboa.
49

Ta, que n3o dava excellencia ao seu general,


marquez das Minas, sem que este lhe desse se-
nhoria. «Ora, o marquez, assassino do correge-
dor, — diz o cavalheiro de Oliveira — era sober-
bo e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia el-
le da portaria da congregação de S. Pliilippc Ne-
ri, tempo que desgraçadamente Juan de la
a
Cueva ia entrando. Cortejou elle o marquez, que
lhe não deu a pretendida senhoria, e por i.sso de
la Curva lhe não deu excellencia. O general,

grandemente irritado, levantou o bastão e profe-


riu palavras ameaçadoras. De la Cueva, sem lhe
dizer palavra, traspassou-o com a espada. O
marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu
por terra, já ia morto. O padre, que o acompa-
nhara até á portaria, e era confessor d'elle, ape-
nas teve tempo de lhe apertar mão. D. Juan de a
la Cueva pôde escapar-se, e refugiou-se em Hes-

panha '.»
Na jurisprudência divina a justiça mais se-
guida é a pena de Talião.

» AmueeineiM, 2.* v. pag. 147 e 148.


so

LITTERATURA BUAZILEIRA

Longo Lempo se queixaram os estudiosos


do descuido dos livreiros portuguezes em se for-
necerem de livros brazileiros. Nomeavam-se de
outiva os escriplores distinctosdo império, e raro
havia quem os tivesse nas suas livrarias. Nas bi-
bliolhecas publicas era escusado procural-os.
Em compensação, sobravam n'ellas as edições
raras de obras seculares que ninguém consulta.
O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha
poucos mezes, cm Portugal. Devemol-o á activi-
dade intelligente do snr. Ernesto Chardron. Foi
elle quem primeiro divulgou um catalogo de
variada litteratura, em que realçam os nomes de
mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se
nos deparam, entre os poetas, Gonçalves de Ma-
galhães, o correcto e sublime author da Confede-
rarão dos íamoyos; o lyrico e arrojado Alvares
de Azevedo; o primaz dos escriptores brazileiros,
e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso deva-
neiador, fallecido no viço da idade, Casimiro de
Abreu; Junqueira Freire que primou nos segre-
dos da melodia e já não é d'este mundo; e o se-
51

vero e cadencioso poeta de Colombo, tão estima-


do dos nossos. Entre os romancistas o fecundis-
simo Joaquim Manoel de Macedo, que disputa
a supremacia a J. de Alencar, que tanta nomea-
da grangeou com o seu Giiarauy. Não lustram
menos as novellas mimosíssimas de Luiz Guima-
rães, e as arrobadas mesclas de prosa e verso de
Machado de Assis. Em litleralura didascalica so-
bresahem os valiosos escriptos do professor, o
snr. cónego Fernandes Pinheiro, nomeadamente
o Resumo de historia Utleraria, que rauito se
avantaja a uns esbocétos que em Portugal circu-
lam nas escolas, e — o que é mais deplorá-
vel — nos estudos secundários. São notabilissi-
mos todos os livros do snr. J. M. Pereira da Sil-
na politica, e ain-
va, já na sciencia histórica, já
da no romance, lào prosperamente estreiado na
Aspazia. Sobre tudo, porém, os Varões illustrcs
do Brazil e a Historia da fundação do império
hrazileiro são obras que denotam profundo estu-
do e rauito engenho na boa disposição dos ele-
mentos e critica dos personagens históricos. Era
varia sciencia, em livros elementares, em lexico-
logia, 6 ainda sobre motivos de religião é copio-
so o catalogo da livraria Chardron. Esta varieda-
de argue a fertilidade de intelligencias que ajun-
tam á riqueza congenial d'aquelle solo os lhe-
souros do espirilo. E muito importa e cumpre
observar que os brazileiros modernamente nos
não cedem no zelo de imitar linguagem pura
a
dos grandes escriptores portuguezes dos séculos
de ouro.
Não esqueçamos, todavia, que o impulsor
d'este brilhante movimento lilterario no Rio de
Janeiro, e por isso em todo o império, é o li-

vreiro-edilor Garnier, espirito emprehendedor


que tanto faz luzir os talentos que divulga, quan-
to lucra para si a honra de os fazer conhecidos e
laureados. Quem calcular o despendio grande de
empresas semelhantes n'aquelle paiz, deprehen-
da o quanto cumpre que seja robusto e afouto o
pulso que removeu as immensas diíficuldades
com que ha trinta annos lutavam os escriptores
do Novo-mundo para se fazerem conhecidos.
Coube esta gloria e este triumpho ao snr. Gar-
nier.
Falta dizer que os preços dos livros oíTereci-
dos no catalogo das casas Chardron, no Porto e
em Braga, são módicos, reduzidos, e inferiores
ao preço corrente das obras portuguezas de igual
tomo.
E, pois que estou agradavelmente recommen-
dando [livros de brazileiros, seria injustiça não
graduar de passagem ao menos o mérito de uma
53

obra que recentemente saliiu dos prelos por-


tuenses. É o Estudo sobre a colonisação
e cmi-

gração para o Brazil. K seu aulhor o snr. Au-


gusto de Carvalho, que Ião grave e prestadia-
mente abre carreira de escriptor, em annos ain-
da muito na ílôr, e com o espirito já a fruclear
as mais sensatas considerações sobre as questões
controversas inculcadas no titulo da sua obra. A'
substancia do livro allia-se o primor da forma, a
propriedade do termo, a chaneza eloquente, e, a

espaços, a elevação do eslylo que não innubla a


clareza da idéa. E' o snr. Augusto de Carvalho
um brazileiro que nobilita as letras da sua pátria,
e está grangeando um lugar entre os melhores
escriptores, e, desde já, o tem dislincto entre os
bons pensadores e cultores de idéas prolicuas.
Congratulo-me com os seus conterrâneos.

A ACTUALIDADE
O meu nome foi banido das columnas d'aquel-
le jornal. Assim o rosnou o lebreu por entre os
arames da mordaça.
BISLIOTUECA N.* 4. 4
Foi realmente banido?
Então, adeus, desgraçado!
Que mundo tenha tanta piedade de ti, laza-
o
ro, quanto eu me arrependo de te haver baldeado
do charco da petulância para outro peor — o do
silencio.
Adeusinho! coça a tua lepra com os teus fo-
lhetins; mas sume-te, escalracho!

I ur \í\mm nm m i

Se me arguirem de adulador da senhora con-


dessa, madrasta d'el-rei D. Luiz i, são iniquos.
Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das
Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances
de cantora não escripturada, eu sahiria por hon-
ra do seu nome de artista contra o calumniador
que lhe mareasse os applausos recebidos no thea-
tro do Porto, ha quatorze annos.
Em um numero da Lanbiiia, periódico tru-
culento, li que a esposa do viuvo de D. Maria ii
55

havia sido paleada na rampa do Ihealro de S.


João, em 1850.
É calumnia, que vou desfazer com a impren-
sa contemporânea.
Conceda-se-me a abstinência de tratamentos
regiamente honorificos, em quanto a nobre con-
dessa de Edla me permitte pleitear em prol dos
seus créditos de cantora.
A snr.* Elisa Hensler cantou, pela primeira
vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outu-
bro de 1859. O Nacional do dia 10 escreve o se-
guinte :

€A companhia italiana esíreon-se effcctivamcnte


no sabbado, e não se eslrcou mal. A escolha da
opera fui acertada — «O Sallimbancot ; é uma bel-

la partitura... e a prima-dona Hensler é bella, jo-


ven, e canta com mimo. A sua voz, senão é possan-
te, é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante
para o Jiosso theatro. O publico ficou agradavel-
mente surprehendido, e deu lisongfiro acolhimento
â mimosa cantora... Tanto no duetto como no ron-
do mostrou a snr.^ Hensler que possue dotes inusi-
cães pouco vulgares. O sentimento com que cantou
os andantes do duetto, a bravura e perfeição na
execução da difficil parte do rondo, e aquelles trilos

ião nilidos e puros, que ella faz em notas tão agu-


das no rondo, é suflicicnlemenle para corroborar
56

as grandes e vantajosas informações que a precede-


ram; e o publico foi justo com os applausos e cha-
madas no fim da opera.-»
Receio que os detractores da mimosa cantora
venham com artigos de suspeição ao Xacional,
culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor,
já na censura, em juizos theatraes. Contra esses
artigos redarguo estampando a opinião do Com-
mercio do Porto, o jornal mais serio do paiz:
iAbriu-se no sabbado com a opera o aSaltim-
banco^ de Paccini.,. Fizeram a sua estreia n'esta
opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A pri-
ma dona Henslerfoi applaudida e teve uíJia chama-
da no fini.^ (Commercio de 10 de outubro). E no
folhetim de 45 do mesmo mez, confirma n'estes
termos: cA snr.^ Hensler é uma excellente cantora.
A sua voz de soprano- agiido é de sonoro timbre; e,
ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melo-
diosa e fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes,
outros não menos valiosos como cantora: conheci-
mento do mechanismo do canto, perfeita entoação e
expressão. Revela o seu grande mérito como canta-
iriz nos floreios, nas escalas chromaticas, e espe-
cialmente nos trinados. Na passagem da /.« á j?.«

^avaletta do seu rondo final faz admirar os trrs


longos e bellos trinados cm sol, lá e si agudos. Na
difficil cavaletta de sua cavatina do L^ acto são
57

tnuilo merecidos os applausos que tem colhido. No


larghello e cdinídthWe do d ue tio do baritono e sopra-
no do S.^ acto, não obstante a agudíssima lacitura
cm que está escripto, não deixa a snr.* Henslcr
nada a desejar, A todas estas excellenles condições
como artista e cantora reúne uma presença sympa-
tJiica, qualidade esta de muito valor no theatro.j>
Já no Nacional de 13 este parecer viera cor-
roborado com esles gabos «E a prima-dona Uens-
:

ler?Não desmereceu em nada das primeiras im-


pressões que nos imprimiu.
€ É sempre a cantora mimosa e correcta.it

O Commercio de 20 de outubro classifica ma-


viosamente a doce cantora com esta phrase:...
€A prima-dona Hensler é o bijou da companhia. i>

Na noite de O de novembro cantou a snr.»


Hensler a parte de Lúcia. O Nacional diz o se-
guinte: «.4 snr.* Hensler na ária do S.^actorc-
miu-se do fiasco do "2.0, e cantou com tal mimo e
doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então
em reiterados applausos.* (Nacional de 7 de novem-
bro). O Commercio, esquivando-se á ingrata e
desmerecida palavra fiasco, escreve : cA sr.* Hens-
ler foi muito applaudida no rondó, e os applausos
foram merecidos wo andante, que cantou lindamen-
te, executando com admirarei justeza a cadencia

em unisono com a flauta.,. Na cavaletta não foi tão


58

irreprehensivel a execução.'» Está de accordo com o


Nacional de 8 de novembro: «A snr.^ Hcnsler con-
tinua a ser applaudida no rondo do 3.^ acto, onde
a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz
fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista
de infinito merecimento. j>

A 12 de novembro principiam os jornaes a


gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empre-
sário que se dissolvia, com quanto fosse insolú-
vel. Sem embargo, a snr.^ Hensler, na confirma-
ção dos dous citados jornaes, excedia-se no mi-
mo do canto. Dir-se-hia que attentava em captar
com as harmonias dulcissimas da sua voz o ar-
chanjo torvo da miséria que espreitava o empresá-
rio por entre as bambolinas de cartão esgar-
çado.
Alguns amadores, que previam o desastre da
empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermenta-
ram a occultas dous bandos que, mais ou menos
ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas.
É o que se deprehende das revelações do Com-
mercio de 5 de novembro que reza assim :... «Ao
pessoal da companhia não ha nada que desafie en-
thusiasmo e dê vida animada ao theatro, apesar
dos esforços que alguns poucos frequentadores do
theatro, dos mais desenfadados, empenham para
crear partido ás duas damas.
59

Houve já episódios curiosos j porém nem as da-


<i

mas, nem os seus admiradores conseguem fazer


moça no indifferentismo do publico, que reconhe-
ce superioridade relativa na dama Hensler ; mas
não vê ainda assim molivo justificado para se en-
Ihusiasmar.jf
Com a sua usual discriç5o, omitliu o Commr-r-
cio os episódios curiosos. Bem c de vér que o amor,
ideal da arte das fusas e semifusas, n3o seria es-
tranho aos sonegados episódios. A radiosa belleza
da cantora sem duvida allraliia umas borboletas,
que então douravam o seu pólen sob as fulgura-
ções do lustre; todavia, como a dignidade da ar-
tista se esquivasse ás intrigas de bastidor que, ás
vezes, galvanisam os empresários oxydados, a em-
presa falliu.

Decorreram uns quinze dias angustiados para


a companhia desvalida. Ilerraann, aquelle presti-
giador cavalheiroso que morreu ha dous annos,
eslava enláo no Porto. Foi elle o generoso vale-
dor dos artistas e ainda do empresário. A compa-
nhia, em fim de dezembro, estava dispersa, não
deixando um vestígio de fragilidade no seu rasto
de pobreza.
Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma lo-
cal do Commercio dizia : tO vapor ÍAtsitania sahido
60

hontem pelas 12 horas da manhã conduziu f/8


passageiros, entre osqnaes: Elisa F. Hensler, etc.»
Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa
a cantora. Devia levar na alma os latos da natu-
ral vaidade ferida pela indiíTerença gélida d'uns
pisa-verdes que honraram grandemente a mu-
lher, menosprezando a artista. Dos frementes
applausos, que a victoriaram quando assomou
deslumbrante no palco, ao fastio com que as fi-
las dos seus admiradores rarearam, vai a distan-
cia que medeia entre a mulher honesta e a que
permitte que lhe abram saldo de contas em que
03 applausos representam uma verba.
Eu não sei se Ilensler, a cantora, escripturada
pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza
do Tejo, que devia vestir de negro n*aquelle dia
de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte,
em theatro de jerarchia tão elevada para suas
forças. Não sei porque frontarias de palácios lhe
avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia
sósinha, forasteira, sem o génio grande que estua
no peito as palpitações do triumpho. Não sei;
mas, se encarou lá em cima os palácios dos dous
reis — com que olhos a esposa do snr. rei D. Fer-
nando avistará hoje o Tejo, por onde entrara
n'aquella manhã pardacenta de nebrina carran-
cuda de agouros esquerdos! Se ella então prevê-
61

ria um marido rei nas Necessidades, um enteado


rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este
reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, os
bons súbditos do reique é marido, e do rei que
é enteado, e d'ella, que vale mais que todos, por
que, oíTascando-os com a aureola da arte, estrel-
lada das seducçõesda belleza, nos revelou que os
reis deslumbrados eram apenas homens
62

OS SALÕES
CAPITULO II

PLEBISCITUM

Homem plebeu. Ilumo jolebcius.Nos an-


tigos romanos havia tres ordens. A ordem se-
natoria, equestre e plebea. A ordem plebea
vai o mesmo que a gente do povo.
Plebiscitam. Termo da antiga jurisprudên-
cia romana. Deriva-se do latim: plebs plebe, ,

e sciscere, que vai o mesmo que assentar,


ordenar, determinar. E assim plebiscito era
o decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suf-
fragio dos senadores, mas só ao pedir do tri-
buno, magistrado do povo. Plebiscitum.

D. BAriIA.EL BI-UTE\U.

La conscience peut être géante, cela fait

Socrate et Jesus: elle peut être nainc, cela


fait Atrée et Judas.

La conscience petite est vite reptile...


Les catastrophes ont une sombre íaçon
darranger les eboses.
VICTOR HUGO.

A luz não se exprime. Não tem definição.


Como a não tem o calor, o magnetismo, a electri-
cidade, e a vida.
63

A luz é O agente ou a acç3o, que nos adverte


a distancia da presença dos corpos luminosos pelo
intermédio da vista.

Vejamos.
A luz propaga-se em linha recta nos meios
homogéneos. Ohrigada a parar, no seu caminho,
pelo encontro d"um corpo opaco produz os phe- —
nomenos da sombra e da penumbra.
No mundo moral são a sombra e a penum-
bra as reacções da sciencia, da arte, da civilisa-

çâo 6 do progresso.
Analyscmos as penumbras.
Entremos nas sombras.
Desçamos ás trevas.
Fora da vida physica são as trevas a ignorân-
cia, e esta produz o silencio. Ora, o silencio
é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu
consultar a plebe?
Ha por alii, nas ultimas camadas sociaes,
perdidas, nas solidões da miséria, almas tão no-
bres, aspirações tão vastas, crenças tão vivas...
Por que não eu consultar os generosos
iria

sentimentos populares?
Efui.
Entrei n'um tugúrio qualquer. — Que lhe im-
porta o leitor qual foi? Havia uma mesa de pi-
nho, duas cadeiras, e um catre. Era toda a mo-
64

bilia. Mas, no meio d'esta hedionda miséria,


existia um homem, feito á imagem de Deus; et
creavit Deus hominem ad imaginem suam.
Era um veterano da liberdade. Desembarcara
no Mindello. Tinha, na cabeceira do leito, prega-
da no travesseiro a insignia da Torre e Espada,
ganha em Souto Redondo, em lutas titânicas, e
em nome da liberdade.
Não desenho o soldado, ainda hoje operário.
Basta-nos ouvil-o.
Li-ihe o manuscripto.
Ficou pensativo, e triste. Encostou os coto-
velos sobre a mesa, afagou o craneo, como se
lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não
podiam irromper d'aquella abobada de fogo, e
depois, em voz baixa, como se receasse ser ou-
vido, começou assim:
— Publique tudo isso.

A abstenção politica é mais do que a morte


é a indiíTerença pelos males sociaes, é a historia
doeste torpe individualismo, que nos corrompe, é
a gangrena moral d'esta sociedade em dissolu-
ção, é a anasarca symptomatica da lesão orgâni-
ca que despedaça a nossa existência, c o maior
de todos os crimes, por que é uma tranquillida-
de fictícia, comprada á custa dos legados que nós
íamos enthesourando para as gerações futuras.
democracia agonisa, no século dezenovc,
A
quando desabrochava, e se abria em flor, na ar-
Tore, que nós lodos plantamos, regada cora o
sangue precioso de tantos marlyres, em nome
dos que deviam colher e adorar no futuro, o
fructo dos nossos trabalhos.
O velho operário, o antigo soldado do côrco do
Porto meditou por alguns instantes, e continuou
— Ahisloria vai esculpida em chronicas de reis,

e memorias d'aulicos. A historia ha de escrevel-a


um dia o povo, rasgando todas essas paginas
mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas,
sabidas das mãos dos eunuchos d'estes haréns
do occidente.
Esta paralysia social em que a geração pre-
sente cahiu, esta hesitação absurda e repugnan-
te nos annaes da nossa vida actual tem uma ex-
plicação irrespondivel: o mundo espera uma
crença viva para se alentar na sua marcha —
para respirar, e viver. D'onde virá a fé?
Habitantes d'uma península á morcô de tan-
tas invasões, raças tão diversas teem pisado este
solo, que difficil, senão impossível, será buscar-
Ihes a genealogia. Iberos, celtas, tyrios, pheni-
cios, carthaginezes, numidas, berberes, roma-
nos, godos, alanos, suevos, mussulmanos, e va-
rias hordas de gascões, e borgonhezes, afora
66

aragouezes, asturianos, egallegos sulcaram esle


solo sagrado.
Onde estão os lusitanos? — Onde corre esse
sangue mosarabe com que a historia enche a
vastidão das nossas campinas, e povoa a crista
dasnossas montanhas? — Nas trevas das invasões
perdom-se os vestigios, e em presença dos aven-
tureiros, que acompanhavam Henrique de Bor-
gonha, apparece uma raça enérgica, robusta, e
corajosa, que põe em derrota a meia lua dos
sectários do Islam, e obriga a dynastia aíTonsiua
a conceder-lhe cartas de foraes, que são os per-
gaminhos e armarias d'esta uobilissima raça his-
pânica.
E o velho soldado do cerco do Porto curvou
a cabeça, e meditou.
Depois disse:
— Quem são, então, os duques e condes que
acompanhavam o aventureiro, e bastardo real?
Quem são os mercenários, que se aformoseavam
com as alcunhas epheraeras, e irrisórias dos car-
gos nobiliarchicos da corte byzantina, quando
estes títulos valiam, outr'ora, pela significação
do mando, do poderio e da jurisJicção?
A' face da nobre raça hispânica — raça que
somos nós — eram elles o enxurro, e a vadia-
gem das cortes em que nasceram.
07

Nós éramos o povo, éramos a raça, éramos a


tradição.
Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem le-

vou os árabes e berberes de vencida até ás costas


do occideute? Quem povoou a pátria, quando as
quinas se desfraldaram cm Ourique? Quem co-
roou D. João esmagando as traições de Cas-
I,

tella? Quem promoveu a restauração de 16iO, e


lutou pela independência da pátria?
Foi o povo.
Deixemos Aljubarrota ao condestavel.
Deixemos a restauração aos quarenta conju-
rados do palácio do conde de Almada. Que po-
deriam elles sem nós? O zelo, a coragem, o es-
forço, e o amor da pátria só nos cabem a nós. —
Vencemos sempre, porque éramos o povo.
Batemos com os contos das nossas lanças ás
portas de Ceuta, de Tanger, e dWrzilla, e os
bastiões africanos cediam aos nossos esforços.
Aportamos em Calecut, Cochim, Gõa, Malaca e
Ormuz —e o Oriente dobrou-se á nossa vonta-
de. Que importa, que os cabos de guerra tenham
os louros das victorias, e das conquistas? A glo-
ria é nossa. Fomos o instrumento civilisador, o
soldado que morre pela pátria, o portuguez, que
cabe alanceado junto do seu pendão.
Para o condestavel, para Vasco da Gama,
68

para Affonso d'A]buquerque, para D. João de


Castro, para D. Francisco d' Almeida ha a chro-
nica, ha o livro, ha as tenças, ha a narração
dos feitos esforçados e valerosos, ha as recom-
pensas da munificência regia, e os brazòes, que
são a commemoração d'esses feitos, esculpidos
nos porlaes dos seus nobres solares.
Para o homem do povo, que pelejou ao lado
dos mais corajosos, que batalhou onde havia
mais perigo, que abandonou mãi, mulher e fi-
lhos, —para esse, ha a valia de linados, triste, e
obscura —e a chronica emmudece, porque
não é para peões, e villanagem, que foi creada
a historia dos reis, e a Torre do Tombo, onde
se guardam, e archivam seus feitos e memo-
rias.
Para o povo ha o silencio.
Quando d'elle falia a historia, alcunha-o de
sedicioso, bárbaro e turbulento.
Para o povo ha o esquecimento.
A humanidade é uma idéa abstracta, que vi-
ve para a historia, nos vaidosos triumphos dos
Alexandres, dos Césares e dos Pompeus.
Quando um homem do povo cahe mutilado,
pela arma homicida dos poderosos do dia, cha-
ma-se Sócrates, chama-se Spartacus, chama-se
Gracho, chama-se Galileu^ chama-se Dauton,
C9

chama-se Vergniaud, cliama-se Armand Garrei,


chama-se Gomes Freire, chama-se leijino. Mas a
liisloria atravessa estes períodos symbolicos da
vida das nações sem commemorar estes nomes?
Para que? — Levantou já alguém o estigma
que pesa sobre Catilina?
A historia divinisou Gesar, e applaudiu Gicero.
Rasgaram já os crepes que envolvem o busto
de Uobespierre, e a fronte de Saint-Just?
A França reclamou Bonaparte, e mais tarde
victoriou o cossaco, que dos estepes da Rússia
vinha impor leis e dynastias ao capitólio da raça
latina.
E nós ? — Aqui o veterano fez uma pausa. Le-
vantou a fronte como se sentira o clarim das ba-
talhas, e continuou em voz sumida e cavernosa :

— A nós deram-nos uma carta constitucional, que


r como um foral — para n3o dizer carta d^alforria
— a nós deram-nos uma mentira, escripta com
o sangue do povo, no solo sagrado da pátria.
E o veterano calou-se.
Depois como despertado pelo ruido dos com-
bates, como se aquella alma aspirasse a novas
lutas, para sustentar os principios por que pele-
jara, ergueu-se do catre onde estava sentado, e
rumorejou: E fallaes-nos de pátria! Pátria aon-
de, e pátria com quem? No Rocio em treze de
r
BIBLIOTIIBCA N.* 4. «^
70

março?— em Torres Vedras em 1840?— no


Porto era 1851 ? — A pátria é o solo sagrado on-
de jazem as ossadas dos nossos avós. A pátria
é o local onde assenta o nosso lar domestico, on-
de vivem as nossas famílias, onde está cravado o
pendão dos nossos direitos. A pátria é nossa por
que derramamos o nosso sangue por ella.
Em seguida curvou-se para mim, que estava
sentado no funio d'este triste e miserável quar-
to,e disse-me em phrases breves:
— Faça-mesó um favor. E' o único que lhe pe-
ço. Como prologo doesse manuscripto, publique
este papel. E' a meditação das minhas noites de
insomnia. E' o symbolo das miahas crenças. E' o
credo da minha religião politica. Morrerei con-
tente.
Começa por este prologo o manuscripto do
desembargador.

VISCONDE DE OUGUELLA.
71

Duarte de Almeida, o alferes de AíTonso v, co-


nheço-o desde a minha infância, por m'o apre-
sentar em verso o meu finado amigo Ignacio Pi-
zarro.
Chorei por Duarte de Almeida, como se elle
fosse meu avô, quando o infeliz, na volta de Toro,
onde os castelhanos llie deceparam as mãos, se
lastimava assim pela bocca do poeta do Roman-
ceiro portuguez :

Xem a espada, netn a lança


Posso nas mâoa empunhar!...
Ai de mim! triête lembrança!...
yern bandeira tremolar!..,
.Vem bordão de peregrino
Pôde meu corpo arrimar!
Xem o meu pranto contino
Tenho mãos paru limpar!...
l.uiza! já me esqueceste?.,.
Talvez tu ora suspires
Por outro... se tal fizeste...
Coração! ah! não delires.,»
Morto já, tu me julgaste,
K se agora assim me viras,
Daquelle a quem tanto amaste
Talvez agora fugiras.
72

Talvez nobre cavalleiro


Pôde alcançar tua mão...
Queira o céo morra eu primeiro,
Não saiba a tua traição.
Que eu antes quero da morte
Ter gelado o coração,
Do que vêr amor tão forte
Ter em premio a iíxgratidão.

Com estas e outras piedosas queixas ia o na-


morado alferes caminho do caslello de Aguiar,
onde vivia a castellã Luiza.

O leitor já me está dizendo que sabe o entre-


cho do romance de Pizarro: que a donosa castel-

lã, julgando morto o seu amado, lhe fizera can-


tar os responsos em sumptuosos funeraes : que o
cavalleiro, a deshoras, se annunciára na barbacã
do castello; e, admittido á capella, encontrou
Luiza a vestir o habito de monja : que o decepa-
do, apertando-a ao peito, lhe fez vêr que estava
vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de
professar, cahiu de encontro á eça, e morreu.
Termina o trovador:

Seu amante desditoso,


Mais desgraçado, inveu;
Mas o seu fim lastimoso
Nunca ninguém conheceu.

Bastantes annos —e que ditosos annos! —


andei enganado pelo meu amigo Pizarro. Fui três
73

vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse,


não me lembra aonde, que encontrei entre as ur-
zes da matta subjacente ao castello um espigão
de espora sem roseta, e suspeitei que ella houves-
se sido do infausto amador da castellã. Figu-
rou-sc-me, ao cahir da noite, vôl-a no gothico
balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar
no alaúde

Adeus, serra do Mizio


Adeus, vai de Villa Pouca!
Adeus, castellosombrio!
Ahnlui voz ouvi já rouca

Estas impressões da primeira mocidade revi-


vem quando a razão as impugna ao sentimento.
De envolta com as minhas indagações históricas
na triste sorte da princeza D. Joanna, chamada a
exccllenle senhora, o vulto que mais me preoccu-
pava era o alferes da bandeira, Duarte de Almei-
da, o heroe, o amante da castellã, o decepado
cujo
/1m lastimoso
Nunca ninguetn conheceu.

Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho


de Duarte Nunes de Leão [Chronica de Affonso v)
muitíssimo desconsolador. AUi se diz que o bra-
74

vo, depois de tamanha proeza, vivera mais pobre


que d'antes. Este opprobrio nacional contírma-o
modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com es-
tas phrases austeras: <iO cavalleiro heróico so-
breviveu ás suas feridas, e voltou a Portugal onde
foi sempre conhecido pelo glorioso nome do De-
cepado. Mas, ó vergonha o homem que assim
!

Ião briosamente se portara, morreu na miséria,


porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e por-
que nem se quer podia ganhar a vida pelo seu
trabalho, logo que o haviam impossibilitado de
trabalhar as suas tristes mutilações *.»
Por honra da pátria e da humanidade, apres-
so-me a declarar que é menos exacto o que Duarte
Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo
me justificarei com documentos.
Pelo que respeita ao romance de Pizarro, t3o
somente dous elementos de verdade histórica po-
demos aceitar-lhe: a existência do alferes e a do
castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intel-
ligente amigo não corria o dever de maiores cxa-
ctidões.
Primeiramente direi do castello.
Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou
menos, antes da fundação da monarchia portu-

» Historia de Portugal, tom. iii, pag. 28.


gueza. Quem o possuía ou governava, no tempo
em que D. AlTonso Henriques pleiteava nos ar-
raiaes com sua mãi e com o imperador D. AíTon-
so, era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, gen-
ro de Egas Moniz, e senhor da terra de Sousa.
Traslada no tom. iii da Mjuarchia Lusitana (pag.
41:2), fr. António Brandão da Vida de Satila Se-
nhorinha, códice áquelle tempo inédito, uma pas-
sagem que faz ao nosso intento '.

Reza assim, raelliorado na ortliographia :

« Digo-vos que estando folganlo em sua terra


xim príncipe nobre e carallciro d'este reino, o qual

era mui prirado d'el-rei D. Affonso, e havia nome


D. Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho
del-rei estava em elle ; estando, como disse, folgan-
do, chegaram a elle mensageiros dizendo que os ini-

migos lhe corriam a terra, e que lhe tinham cerca-


do o castello d' Aguiar; o qual logo chamou suas
gentes que pôde haver, e foi-se para haver de des-
cercar o dito castello. E chegando aonde jaz o cor-
po d'esta santa lhe fez reverencia, e oração não lhe
lembrou; e indo ainda em vista da igreja metade

* o códice efel.-í integralmente impresso nas Memorias


resuscitddas da antija (iuimaruef, pelo Torquato Pei- p.-tdre

xoto do Azevedo, em 1092, pug. 4U-\TC. Sirvc-me d'e«ta copia,


corrigindo os erros do tnulado de Brandão.
76

de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o


com esporas e pancadas não
cavalleiro, a qual elle
podia abalar, mas antes a mída quedava imiís rija
e pêro se desceu d'ella e a não podia abalar ; e, ven-
do elle isto, lembrou-lhe como passara pela igreja
da santa sem lhe pedir benção, e sem fa-
mercê, e

zer oração, e por isso lhe detinha a mula; e, sof-


freando a mula para traz para se tornar á igreja,
a mula logo tornou, e o eavallciro fez sua oração
encommendando-se á santa, e des i fez seu cami-
nho, e com suas companhas descercou seu castello,
e correu depois os inimigos, e tornou a sua casa
com victoria, ele.

O clironista Brandão, por mal informado, es-


creve que o castello de Aguiar da Pena se avista
com as montanhas de Barroso. Estas montanhas
distam seis léguas do castello, e entre ellas e o
valle em que negreja a fortaleza golhica estão os
cabeços da serra de Alfarella, e no horisonle mais
elevado alveja vilja Pouca de Aguiar. Acrescenta
que o castello «é crespo de torres, baluartes e cu-
bellos, e está fundado sobre a coroa de uma pe-
nha talhada de uma parte por natureza, que pa-
rece obra feita á mão, » etc.
Pôde ser que no século xvii, quando Brandão
escrevia, permanecessem ainda as torres e ba-
77

luartes.O que ha vinte annos parecia ter robus-


tez para séculos eram quatro alterosas quadrellas
de alvenaria ameiadas com seus adarves, bas-
sem lavores.
tiões, e janellas gothicas
Recordo-me ter lido na Nova historia de Malta
de José Anastácio de Figueiredo que o castello no
século XIII pertencia á ordem hospitalaria de S.
João de Jerusalém, e cita um aviso que obriga os
lavradores circumvisinhos a carregarem pedra
para reparos.
E não sei mais nada quanto ao solar da phan-
lastica Luiza.
Agora vamos em
do Decepado^ depois que
cata
voltou de Castella. Enconlramol-o na sua casa
acastellada no século xii, que teve o nome de
castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje
concelho de S. Pedro do Sul.
É elk' o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço
de Almeida. Afora aquclle tem outro na
castello,

quinta chamada daCavallaria, honrada por el-rei


D. Fernando em 1410, e onde os linhagistas en-
raízam o tronco dos Almeidas.
Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e
dous filhos.

A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo,


filha do senhor da Louzã Rodrigo AÍTonso Va-
lente e de D. Leonor dWzevedo, que herdara
78

grandes haveres de sua tia D. Ignez Gomes de


Avellar.
Os filhos do Decepado chamara ra-se AíToiíso
Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. AíTonso, o suc-
cessor das honras e coutos de Villarigas e Caval-
laria, casou com D. Leonor Vaz Caslello Branco,
filha de João Vaz Cardoso, aio do conde de Bar-
cellos.

O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como


veador da princeza D. Joanna, filha de D. Duarte,
e mulher dé Henrique iv.

Esta geração de fidalgos continuou honrada e


rica até á duodécima nela de Duarte de Almeida,
a snr.a D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy
da Gama Mello Azambuja e Menezes que em 15 de
setembro de 183i casou com o snr. Fernando
Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem
teve dous filhos, Luiz, que, nascendo em 1837,
morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de Al-
meida, que nasceu em 1838, e vive solteira.
Do snr. Luiz Telles, que foi casado com a snr.^ D.
Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma
que é já senhora.
filha,

Quanto á pobreza e miséria cm que morreu


Duarte de Almeida, o snr. Pinheiro Chagas foi il-
ludido por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na
79

verdade o aulhorisaram a deplorar ião senlida-


menle a sorte do alferes de AíTonso v.

Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de


Menezes no posto nobilíssimo de alferes-mór da
bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou
o pendão real das presas da mourisma, quando
Aflonso V deu batalha na serra de Benacofuf. (Fa-
ria e Sousa, Africa, cap. O, §. 7.»)

E tanto o rei n3o foi inerato aos serviços do


seu valente alferes, que, estando em Samora, em
i no anno anterior ao da batalha de Toro,
175,
ainda antes do heróico feito, lhe fez mercê pelos
seus grandes serviços, para cUe e seus filhos, de
ura reguengo no concelho de Lafues, cuja carta
de merco pôde lôr-sc na Torre do Tombo no Li-
iro que serviu na cltanccUarin de D. A /[ouso v,
folha 17, e começa: A quantos esta minha carta
rirem faro saber que pelos muitos serviços que
Duarte de Almeida ,
fidalgo de minha casa, e meu
alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de
(Àistella como de Portugal e em Africa, onde sem-
}ire me serviu muito bem e lealmente, etc.

O rei, que tanto o apreciara e galardoara, sa-


bido é que foi para França solicitar debalde a al-
liança do velhaco de Luiz \i. Voltou a Portugal,
onde viveu ainda cinco Iristissimos annos, força-
do a divorciar-se da esposa, desestimado do filho,
80

e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tem-


po próprio aquelle para premiar heroismos ba-
talha, cuja perda dissimulada em victoria, enlu-
tara o brio 6 o coração de AíTonso v.
O decepado, por sua parle, lá tragava o fel

dos seus derradeiros annos na abastança dos bens


que, certo, lhe não mitigavam as angustias da
mutilação; mas em pobreza e miséria não con-
sintamos sequer á poesia que nol-o figure.
Se D. João II não augraentou em coutos, hon-
ras e senhorios a casa do alferes de seu pai, não
o arguamos por isso, sem haver a certeza de que
Duarte de Almeida sobrevivesse ao Africano. Na
batalha do Toro já devia no inverno da vida
ir

quem vinte annos antes desfraldara o pendão real


em Alcacer-Ceguer, e quem já tinha um filho, que
acompanhara como veador a Castella a mãi da
princeza D. Joanna por amor de quem andava ac-
cesa a guerra. Afora isso, c de crôr que Duarte
de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira
em 1449, e não fosse dos menos carniceiros na
mortandade do duque de Coimbra e dos seus
leaes amigos. Ora, transluz da historia que D.
João II odiara todos os fidalgos que, de parçaria
com o duque de Bragança, malsinaram de traidor
o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o
primogénito de Duarte de Almeida casado com a
81

filha de um que fora aio do conde de Barcellos,


antes de ser duque de Bragança.
porém, o successor de D. João ii galardoou
Já,
o nelo do decepado, dando-lhe o senhorio da vil-
la do Banho, a provedoria das caldas de Lafões,

e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da


Cavallaria.
Era remate de tão derramadas provas, quero
deixar bem
assente que Duarte de Almeida, o
meu chorado
tão heroe do sentimentalismo da
infância, não morreu pobre, nem acabou na mi-
séria do homem que, á mingua de mãos, não
pôde trabalhar.
Por fim, não sahirei do paço senliorial da Ca-
vallaria sem consolar o leitor pio e mais lido em
cousas do céo que em nobiliários, que n'aquella
casa nasceu o bemaventurado S. frei Gil, cha-
mado de Santarém, e que Almeida Garrett ajou-
joucom o dr. Fausto no poema D. Branca e nas
Viagens.
Ainda hoje, n"aquella casa, perdura uma ca-
pella edificada na alcova onde nasceu o sábio fei-
ticeiro e pactuario do demónio. Observe-se que o
conde D. Pedro, no Livro das Linhagens, til. 25,
pag. 151, diz que Gil fora assassinado por Pedro
Soares Galinalo; mas o chronista-mór João Ba-
ptista Lavanha desfaz o erro, —o que eu muito
82

estimo para que se não desluza a substaucia da


bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do
santo.

CARIDADE BARATA E ELEGANTE

O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco


annos, em Lisboa, e deixou dous filhos illegiti-

mos, que já não tinham mãi.


Amára-os extremadamente. As duas crianças
excruciaram-lhe a agonia; mas expirara com a
certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte
de seus haveres, não balbuciariam, em horas de
fome, o nome de seu pai.
Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o
espolio do advogado á sua viuva.
O menino alimentou-se cinco ânuos da cari-
dade de uma criada de seu pai.
E, quando tinha seis, appareceu livido e po-
bremente vestido a pedir esmola no tribunal da
Boa-IIora — alli, onde seu pai Iriumphára nas li-

des da eloquência.
83

A berafeitora que, até áquelle dia lhe repar-


tira do seu pão, quando sentiu a mão da morte
sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribu-
nal e mendigasse, lembrando-se que alli concor-
riam pessoas que tinham conhecido seu pai.
O snr. João Dernardino da Silva Borges viu o
menino andrajoso, a tiritar, com o espasmo da fo-
me nos olhos — aquelle olhar espavorido da mi-
séria — que parece sagrada nas criancinhas —
aquelle olhar torvo, expressão de assombro do
anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do
mundo.
O menino tinha uma carta na mão. O snr.
Silva Borges leu Era a supplica da mori-
a carta.
bunda a favor do desvalido filho de seu amo.
E conduziu a criança, onde lhe dessem a es-
mola do jantar e da cama.
Ao outro dia, o Jormil da Noite, publicando
uma commovente do protector do orphão,
carta
acompanhava a invocação á caridade de sentidas
e pungentes palavras.
E, no dia immediato, o mesmo jornal exulta-
va noticiando que o orphãosinho eslava amparado,
no regaço da caridade abundante, nos braços de
alguém que ouvira o echo das divinas palavras de
Jesus: t Deixai que as criancinhas se aconche-
guem de mim.»
84

Volvidas duas semanas, á volta do menino, a


caridade faz-se representar por nove senhoras il-

lustres.quanto cabe inferir dos appellidos.


Nove anjos, as nove musas da inspiração san-
lissima, nove corações a desbordar de generosi-
dade, dezoito mãos cheias de caricias e do supér-
edu-
fluo da sua riqueza, para afagar, alimentar e
car um menino a quem esta sétima primavera
bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha
puericia. É muito!
Mas estas nove damas assumem cada qual sua
nomenclatura
Uma, chama-se7;rí'siV/^;i/a;
Outra, vice-presidenta
Quatro, são vogacs;
Uma, é thesoureira;
E as outras, são secretarias.
Mas que tem isto que vêr com o orphão? O
congresso das senhoras, assim qualificadas em
categorias de banco, de junta de parochia, de
empresa aurificia, de companhia das aguas, or-
ganisou-se d'este feitio para dar uma pensão de
300 reis diários — o bastante — ao pequenino no
collegio?
Quer-me parecer dispensável tamanho fanccio-
nalismo em operações Ião singelas! São nove se-
nhoras abastadas que se fintam, quolisando-se cada
85

nma em 33 reis por dia, ou dez toslòes por mez.


É, na verdade, barato o salvar-se um menino e fa-
zel-o homem! Seis ou oiloannos do pão e esludo
d'aquelia crealura — que ss. exc.^^ hão de enviar
com sanla vaidade diante da sepultura de seu
pai — não pôde custar a cada uma tanto como
dous dos seus vestidos medianamente guarne-
cidos.
Então, qual vem a ser a missão das exc."»"
presidenta, vice, vogaes, thesoureira, secretarias?
que estás a impar de ternura, e tens o
Leitor,
rosto banhado de lagrimas de consolação, sabe-
rás que as referidas nove senhoras que tu já —
conheces dos lautos bailes, e das toilcttes esplen-
didas— congregaram-se agora para promover um
beneficio ao orphão no theaíro de D. Maria.
Ahi está o que é. Ainda agora ú que estas dadi-
vosas senhoras vão sondar a magnanimidade pu-
uns toques de elegante apparato á
blica; vão dar
caridade, e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr
hombros áquella ponderosa empresa de agasalhar
uma criancinha que se alimenta com um pouco
de amor e algumas migalhas sacudidas das C(?as

opíparas. A caridade de Lisboa ! A caridade do es-

palhafato! Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora,


estaria agasalhado, sem que a imprensa conhe-
cesse o nome do bemfeitor.
BIBUOTHECA N.* 4. 6
86

E a imprensa de Lisboa exalça encarecida-


mente a exuberante bizarria das senhoras que
promovem nos corações alheios o sentimento da
esmola. Peço licença para também me accender
em admiração de tamanho arrojo, e perguntar,
por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz
de phrases, ficou alguma com que se louve aquella
criada pobresinha que sustentou o menino cinco
annos, e o largou do seu seio quando o coração
se lhe afogou nas ultimas lagrimas.

PROfuii imu NOS cosíuis Dl wmm

Quando Portugal emergia das trevas da meia-


idade, em 1873, e a via-ferrea de Portugal era
roupa de francezes, o scintillante escriptor Ra-
malho Ortigão enviou aos snrs. François el Lada-
me (cumpre não aceitar a traducção de Bordalo
Pinheiro — Francisco e a mulher) uns urbanos
queixumes acerca da bruta ladroeira que os func-
87

cionarios da via-ferrea perpretaram em parte das


batatas de um sacco enviado desde o Minho ao
percucienle critico. Ortigão, cujo agudo espirito
argúe abstinência de alimentação farinácea, con-
clue a sua epistola, mod(^lo de graça portugueza
— que é a graça de todo o mundo — oíTerecendo
aos directores da via-ferrea todas as futuras e por-
vindouras batatas, visto que ss. s.»», cedendo-lhe
algumas, sotíriam tal qual desfalque.
N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasque-
jar nos demorados paroxismos da anemia, resul-
tante de dyspepsia, complicada com hepatite, e
prodhromos de encephalite, esymptomas de cur-
vatura de espinha, e esgotamento de fluido ner-
voso, afora a espinhela cabida.
Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um
amigo meu, residente no Porto, que me compras-
sealli doze garrafas do mais antigo e secco vinho

que se lhe deparasse em garrafeira particular.


Quando conclui a carta, cuidei que expirava, por
que tinha consumido em quatro idéas sem eslylo
o oxygeneo e acido carbónico de que podia dispor.
D'ahi a dias. o meu amigo enviou-me o titulo
de recepção de doze garrafas de vinho, compra-
das por 12 libras, é enviadas pela « grande veloci-
dade », cuidando elle que os ladrões não as apa-
nhariam na carreira.
88

Como se as doze garrafas se me figurassem


outras tantas botelhas de Leyde a descarregarem
electricidade sobre os meus grandes- sympathicos
e regiões limilrophes. saltei da cama, e fui re-
ceber o meu vinho — a minha salvação — a Santa
Apolónia.
Recolhido o caixote á sege, e baixados os slo-
res, debrucei as regiões do meu olfacto sobre

as fisgas da tampa do caixão, na esperança de


aspirar alguns átomos de tanino.
Cheirou-me a azeite. Entendi que havia per-
versão na minha membrana pituitária, uma nari-
zite, única moléstia que me faltava.

Assim que entrei em casa e o caixão se abriu,


não sei bem o que vi, nem como perdi a cons-
ciência dos dous eus. Sei que, volvidas horas, re-
cobrando o espirito, e querendo recordar as cau*
sas de tão comprido lethargo, perguntei aos cir-
cumstantes, distillados em lagrimas, se eu linha
lido algum livro de Theophilo.
— Não, — respondeu-me
infeliz! voz sincera
— não taraanlia desgraça que
foi a te fulminou;
o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que
te custaram seis libras, substituídas por seis gar-
rafas vasias que tiveram azeite.
A minha primeira idéa foi gritará d'el-rei;
lembrando-me, porém, que o rei não governa,
89

quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me


pelo espirito recorrer á camará «baixa » e ao pa-
triarcha. E, por fim, chorei copiosamenle, e bebi
dous tragos de uma das seis; e logo, á seme-
lhança das nações oppressas, que se levantam
como um só homem, também eu me levantei só-
sinho; e, clamando um rugido grande, pedi á
Providencia das raças latinas que nos desse um
administrador dos caminhos de ferro, nascido e
baptisado n'esta terra dos AíTonsos e dos Joões.
Fui ouvido, e as cousas melhoraram conside-
ravelmente.
N'este anno de 1871, 5.« da Emancipação, te-
nho recebido reiteradas provas da melindrosa
cortezia que assiste ao funccionalismo do trans-
porte da via-ferrea portugueza. Se em 1871 não
chorei mediante os prelos, hoje lamento nào ser
um cylharista bastante lyrico para dignamente ar-
pejar um fado expresso do citado funccionalismo.
Direi da cortezia com que alli são tratadas as
minhas cousas. Tendo eu recebido em Lisboa seis
garrafões de aguardente das nossas colónias, la-
crados 6 cheios, enviei-os d"alii para o Porto
cheios e lacrados. Ao cabo de onze dias de jorna-
da, os garrafões chegaram a minha casa... intei-
rinhos! Se isto não é probidade, a virtude era
aquillo que dizia Catão. Notei, porém, uma insi-
90

gniíicante cousa: os garrafões chegaram desla-


crados, e levavam pouco menos de metade do li-
quido; mas inteiros, perfeitos, sem rachadella,
nem esquirola de menos.
Um d'esies dias, em dous caixões de vinho da
Madeira, que me eram enviados de Lisboa.—e
foram relidos para despacho nas Devezas, posto
que já em Lisboa houvessem pago direitos —
observei ainda mais refinada cortezia; porque,
apparecendo algumas garrafas quebradas, teve
aquella honrada e limpa gente o cuidado de lhes
trasfegar o vinho a fim de que as outras se não
molhassem — de modo que chegaram enxutas.
E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar
algumas garrafas para que as outras chegassem
mais desafogadas da pressão das visiohas
Eu não conheço maneira mais subtil de obri-
gar a gente a um reconhecimento eterno, ea...
acautelar o relógio.
91

FORMOSA E IXFEUZ

A dita e a formosura,
Dizem patranhas antigas,
Qu9 pelej;iram um dia,
Sendo d^antes muito amigas.

Muitos hão que é phantasia


Eu que vi tempos e annos,
Nenhuma cousa duvido
Como ella é azo de damnos.

BERNARDIM RlBElRO.

São verdadeiras as trovas do poeta das Sau-


dades.
Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ain-
da agora, carpida n'um souelo. foi muito incen-
sada por formosa antes da sua queda. Uns poetas
a embriagaram com o perfume da lisonja, em
quanto ella se manteve honesta; outros lhe de-

pozeram alguns bagos de assafelida ua ambula fu-


nerária, quando os seus créditos eram mortos e
responsados no catafalco quo a sociedade levanta
ás suas mesmas victiraas.

E já que eu trasladei o soneto, como epilaphio


do seu tumulo no convento onde se finou, Irasla-
92

ladarei também uns versos que lhe deram alor e


azas á vaidade que a perdeu.
Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse
o fidalgo que a levou arrebatada de entre um
thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra,
costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas
aras da prosa. Assim o requer o equilíbrio do
cosmos. Á poesia — a lyra que insinua no coração
da mulher as phanlasias com que mais se alinda e
encarece á prosa
; —
as delicias d'essas bellas cou-
sas, odomínio das aves do paraíso, que os poelas
farejam, á laia de nebris que pairam a denun-
cial-as ao caçador sagaz.
A meu vôr, em quanto o marquez de Gouvêa
mandava ajaezar os cavallos para a funesta fuga,
um dos muitos idolatras da formosíssima Maria
motejava uma quadra e derivava d'ella a glosa tão
presada n*aquelles tempos:

A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA

MOTE

Abre-te, penha constante,


serás minha si^pultura;
e, se os meus ais te não movem,
digo-te, penha, que és dura.
93

GLOSA

Penha, já sei que és tão durat


porque dous soes te geraram;
seus raios te despojaram
das relíquias da ternura:
Porém, se a correyite pura
de tneus olhos incessante
abrandar um diamante;
a meu pranto sucessivo,
quebra-te. mármore vivo,
abre-te, penha constante.

Até na? mais rfitra? penhais,


lavrador o tempo sendo,
as aguas, que vão correndo,
fazem regos, abrem brenhas.
Xão receies tu que venhas
a perder por menos dura;
pois meu pranto o que procura
é desfazer-te em piedade;
e, se abrir concavidade,

serás mmha sepultura.

Lagrimas não enternecem


te
antes te tomam mais
dura;
roubou-lhe o preço a ventura
ou por minhas desmerecem.
Meus ais sentidos parecem
golpes, que pedras commovem
mas como faíscas chovem
de ti, que farei, oh penha,
se o teu rigor mais se empenha
e se os meus ais te não movem f
94

Teu nome a dizer se empenha


quem tu és por semelhança
jjois 110 garbo és toda frança,
na dureza é$ toda penha:
Penha em que pienha tenha
essa rara formosura;
mas, se estatua ser procura
a meu suspiro incessante,
mais que o mais duro diamante,
digo-te, penha, que és dura.

ANTÓNIO SERRÃO DE CASTRO

As indagações de Diogo Barbosa Machado,


acerca do poeta Serrão, reduzem-se a dalar-lhe
o nascimento.
Á falta de outros subsídios, bastariam as poe-
sias do travesso sujeito a esclarecer-lhe a vida
mysteriosa aos mais atilados investigadores. O
maior numero d'ellas está inédito. E o seu mais
notável poema, em
que perfazem 2:090
tercetos,
versos octosyllabos, chama-se 0$ ratos da inqui-
sição.
No palácio da inquisição passou elle alguns an-
nos de sua vida, que de certo não foram os melho-
res.
95

Pelos modos, era hebreu dos quatro costados


mas não adorava o bezerro, nem se abstinha dos
paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu
e medrou á lei da natureza. Seguiu fervorosamen-
te a religião do prazer, repartindo alma e versos
por judias, christãs e mouras, consoante lhe sa-
biam a talho de fouce. Tanto afinava a lyra para
cantar fidalgas como regateiras. Entre estas, hou-
ve uma vendilhona de maçãs camoezas que não
foi menos amadas e menos esquivas. Se os
das
poetas modernos querem ajuizar do lyrismo ple-
beu teem uma das canço-
d'este seu bisavó, aqui
netas dedicadas á saloia das camoezas, e cantada
pelos cytharedos d'aquelle tempo :

Para a feira vai Liara


Co seu balaio á cabeça
Todo enramado de louro
E cheio de canxoezas.

Leva saia de jilczia,


Também jubáo branco leva,
Que serve o jubâo de branco '

Donde Amor atira as flechas.

Sobre os dedos, pendurados


Leva seus punhos de rendj.
Tão valentuna camiíiha
Que treme o bairro de vcl-a.

« Alvo.
96

Lá no meio do Rocio
Levanta a voz mui serena
Como se aprendera solfa:
íEu já tenho camoezas.»

A voz tão divina e grave,


A voz tão de prata e baila,
Os galantes se alvorotam
E ferve a hulha na feira.

Deixam todos as boninas


Só por ver esta açucena:
Em um momento, cercada
Se viu esta fortaleza.

Os requebros que lhe dizem


São balas de feras peças:
Mas no muro de seu 2^eito
A.cham grande resistência.

Uns apreçavam a fruta,


Outros tiram da algibeira
Às marichnas os tostões,
Aos alqueires as moedas.

Mas Luiza, mui de espaço,


Levantando a voz tão bella.
De quando em quando repete :

«Eu já tenho camoezas.*

Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro


a quem pareçam, sequer toleráveis, estas linhas
toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as
satanisações modernas no entanto, o coração en-
;

tende-se melhor n'aquelles poetas que, em vez de


97

se evolarem á poeira luminosa da via-laclea, an-


davam alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras
de camoezas.
Por causa d'esles amores innocenlese frescos,
não foi António Serrão de Castro disputar aos ra-
los da inquisição a magra pitança da sua alcofa.
O leitor alguma vez ha de lòr os queixumes do
hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente
se admira que os graves monges de S. Domingos
lhe não acendrassem o engenho no fogo.
Quando o poema satyrico se escoou das grades
do cárcere para a assembléa dos catholicos, um
poeta christão, no intuito de apressar o processo
do judeu, divulgou as seguintes decimas:

Judeti de mau proceder,


Que, se cm tens versos discorro,
Logo pareces cachorro,
Ao ladrar e no morder.
Ainda espero vér-te arder,
Pois cem tanta sem-razão
Murmuras da inquisição;
Porém, é força em teu erro,
Se te tratam como perro,
Que te vingues como cão.

Dos ratos, d'esta maneira.


Te queixas ede seus tratos;
É mau queixar-te dos ratos.
Estando na ratoeira.
Tua allusão sorrateira
98

Saber o engenho procura,


E a rhetorica se apura
N'esta allusão que formaste,
Pois d' esta figura usaste,
Antes de fazer figura.

Néscio, depois de judeu.


Quando o sambenito mamas,
Triste portuguez te chamas,
Sendo o mais astuto hebreu!
Quem te vira posto em breu
Oti partido de uma bala !

Ninguém comtigo se iguala.


Pois fazes, quando precito,
Setido infame o sambenito,
D'esse sambenito gala.

Se viveste descortez,
Com repetida torpeza,
Mais á lei da natureza
Do que na lei de Moysés,
Queixa-te só d'esta vez
De ti, mas não de outro trato;
Que eu sei que nunca do rato
Te queixaras, asneirão,
Se assim como foste cão,
Poderás torymr-te gato.

Os fervenles desejos d'esle calholico, assim


rimados, chegaram ao ergástulo do cantor dos
ralos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dor-
sal.Não lhe pareceu caso novo e original queima-
rem-no. Embridou, por tanto, a musa da galhofa,
e cahiu em si. Começou de escrever poesias or-
00

ihodoxas ao nascimento do Menino-Deus, aos san-


los e santas mais em voga, ungindo tudo de la-
grimas de contrição que era uma piedade lôr-lhe
os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemen-
le commovido. O certo é que o vaticinio do bar-
do cliristào foi desmentido pelo hebreu que sahiu
absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos seten-
ta e quatro annos, rindo de tudo com resalva das
conveniências, e vivendo comas largas, que lhe
davam os seus admiradores, e acamaradado com
os primeiros lldalgos. Nasceu em IGIO e mor-
reu em 1G84.

FIM DO 4.0 NUMERO


BtlfllHEW D[ UmU

NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÔDE DORMIR

Samiíía Êasfeíía Branca

PUBUCAÇáO MENSAL

N.» 5 — MAIO

LIVRARIA INTERNACIONAL

IRRKSTO CHARDR08 IDGEHIO CHARDROH

96, Largo dos Clérigos, 98 4, Largo df S. Francisco, 4

PORTO BRAGA

1874
PORTO
TiTOGRAPHIA DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
02, Rua da Cancella Velha, 62

1874
BlBLIOTHEa BE AL5IBBM

NOITES DE INSOMNIA

SUMMARIO
2<ttouifta, Çaiuatta, ^atutvttul ou-

tta?a pata cò «atõc^ Oi òalõi^, i»i-

ttotVivção, ixfo íAV."" *tit. »us:ou?í ?c

Ouaiuila Cccv itctuiii • Jilva • ilviii-

viuui ífauto*-Olwa iUou^o tliu*íu

Á> cato^twiTOí iKíuait totuc-

fõ** clbau íaviupío ?; ro<ta> i:a*a?o«

»/V ca«a íe í5>uuxauça • ao ac •

xltu ttuiuÍ4t^\ot cotluaiur e o ytuutvt ?<

uauA Çtitoaia ?a « ^Tctuaiwa^ »


PETRONILLA, GAMARRA. ZAIIPERINI

Assim se chamaram as três actrizes que mais


dinheiro vampirisaram aosargenlarios porlugue-
zesno século xviii.
Petronilla. cantora italiana, representou em
Lisboa desde 1730 até 1745. Não era bella, nem
artista superior; enguiçava, porém, com philtros
diabólicos; fascinava, fulminava, cauterisava o
cérebro das mais solidas cabeças, sem respeitar
as testas coroadas.
Um dos seus amantes foi D. João v, que orça-
va então pelos cincoenta. Petronilla, ou Pellatro-
ni (dava por ambos os nomes) não se parecia com
as «princezas de comedia e deusas da Opera», con-
soante Ars«''ne Iloussaye denomina as actrizes e
dançarinas francezas coevas da amante do nosso
BIBLIOTHECA N.* 5. *
Luiz XIV. Era absorvente como as suas parceiras
mas não esbanjava em galanices, equipagens e
banquetes oproductoliquidodassuas transacções
mercantis com Tào queridas se lo-
o rei e os outros.
gravam as actrizes dos fidalgos portuguezes quan-
to os actores eram desprezados. O fidalgo, que não
uma aventura de theatro, apenas poderia
tivesse
hombrear em proezas de galã com algum frade
bernardo de costumes suspeitos. Os frades pro-
priamente, n'aquelle tempo, frechavam do seu
camarote o coUo despeitorado da Petronilla com
settas de amor platónico. Havia no theatro o ca-
marote dos frades, collocado por baixo do cama-
rote das açafatas. Tinha rotulas de pau, por entre
as quaes os monges assopravam uns suspiros
quentes como as lufadas da Arábia. Mas não pas-
savam d'estes resfolegos os frades.
A porção illicita d'aquelles espectáculos per-
tencia ao rei e aos fidalgos. Estesgabavam-se de
que as actrizes eram morccau
petisco, friaíid, —
dizia o cavalheiro de Oliveira —
que só aos gran-
des senhores compelia. Na actriz não amavam
arte nem belleza: amavam a comediante.
D. João V, acirrado pelos ciúmes dos seus ca-
maristas, deixou-se illaquear n'aquelles braços
elásticos da Petronilla, e locupletou-a de ouro e
pedras.
Quando se passou a Caslella, a garrida cómica
levou trinta cavalgaduras carregadas de riquezas
— diz Francisco Xavier de Oliveira — e acrescenta
que, no theatro de Madrid, a quantidade e valor
da pedraria que ostentou eram laes que as damas
de primeira plana se morderam de inveja. ((Kít-
vres mrlces... Londres, 1751, pag. 33). Em lles-
panha continuou a enthesourar as crystallisações
do seu espirito, amoedando a ternura. A final,
quando viu que era tempo de cuidar da alma,
visto que a parte menos espiritual da sua pessoa
andava em geral descuido, retirou-se capitalista,
beneficiou mosteiros, fez capellas de santas, do
mesmo passo que o seu real amante D. João v
fazia capellas de santos. Ambos comediantes, e
ambos, a final, fizeram ligas ao embacado demó-
nio.

Isabel r.amarra, hespanhola estreme, llorecea


em Lisboa dezesete annos antes de Petronilla,es-
cripturadapelo actor eemprezario castelhano An-
nio Ruiz. Este homem era óptimo poeta, philoso-
pho, historiador e cortez3o — assevera Francisco
Xavier de Oliveira. — D. João v davallie uma pen-
são annual de 120 moedas de ouro. Não foi estra-

nho aos amores de lina tempera velados pelos re-


ate
posteiros heráldicos. Tinha espirites levantados
como o seu contemporâneo Dufraisne. Em quan-
to engodava os fidalgos com as suas actrizes, le-
Tava ás fidalgas consternadas a boa philosophia,
a boa poética, e os casos históricos análogos á si-
tuação. E assim viveu e medrou longos annos em
Lisboa.
Isabel Gamarra floreceu entre nós quanda
em Paris arrebatava corações e algibeiras outra
hespanhola, chamada Marianna Camarro, a cele-
brada dançarina ; mas que parecia, com
a nossa,
pouca corrupção, a outra, quanto ao appellido,
deixou em Portugal memorias dignas de romance
de grande fôlego.
Um dos seus amantes foi o marquez de Gou-
Têa, pai do duque de Aveiro, justiçado como re-
gicida em 1758.
Era casada. O marido, a rogos do marquez,
recebeu alguns mil cruzados; e, deixando-lh'a,
declarou que a sua alliança não tivera a serieda-
de matrimonial. Isabel abundou no parecer do
marido, e sahiu do theatro.
Amor, zelos, a gangrena que afistulava os cos-
tumes do tempo, e o descrédito das ordens reli-
giosas femininas, compelliram o marquez a instar
com a Gamarra que professasse no mosteiro de
Santa Mónica, da ordem de Santo Agostinho.
E professou.
O marquez não despegava das grades, senão pa-
ra servir o rei como mordomo-mór. Tinha esposa
e filhos, já homens. Um foi o que fugiu com D. Ma-
Penha de França e não voltou; o outro, já
ria da
também sabem que trágico destino teve. Não ti-
nham tido pai, senào para lhes dar o exemplo da
libertinagem, com cabellos brancos.
E, por isso, a freira monica o ralava com im-
pertinências, instillando-lhe no peito bravos ciú-
mes, que eram a vingança da moral.
O marquez recebeu um dia simultaneamente
duas ordens : o rei chamára-o ao paço, e Soror
Isabel ao convento. O mordomo-mór oscillou al-
guns minutos quando já ia caminho da corte, e
mandou retroceder o coche para Santa Monica.
— Yôs tu quanto te amo? — disse o marquez
— dei-te preferencia, entre e o
a ti rei.
— Se fizesses outra cousa nunca mais me ve-
rias—replicou ella abespinhando-se.

Mas olha que me arrisco a muito, obedeceu-
do-leí...
— O teu dever é esse... Antes que todo es mi
dama, diz Calderon de la Barca ; e, se te não ar-
riscares, 6 tudo sacrificares ao meu prazer, fraco
amor me tens.
J'ai enUndn moi-méme tout ce peíit dialogue.
10

OH il 11 \j a pas nn seul mot de ma façon, diz o ca-


valheiro de Oliveira. {CEnvres mêlées, t. 3.op.3i).
Isto é apenas irrisório, mas desculpável. To-
dos temos na vida a má digestão de um pedaço
de Gamarra. O que excede toda a piedade, que
nos merecem os consócios de infortúnio, é que ella
o trahia com um Valentim da Costa Noronha, ra-
paz galante, valente, o único por quem ella sen-
tira alguma cousa que a indemnisava da repugnân-

cia do habito. O cavalheiro de Oliveira conta-nos


assim as miudezas d'aquelles amores, que leva-
ram o velho marquez á cova

«Conheci Gamarra melhor que ninguém. A


estreita amizade, que tive com o Noronha, me
occasionou durante dous annos ensejo de vêl-a,
conversal-a, e conhecer-lhe os merecimentos
e defeitos. Noronha, apaixonado por ella quan-
to cabe em peito de homem, sacrificou á intri-
ga d*esta actriz monástica tudo que mais caro
lhe era no mundo. A estima devida á espo-
sa, o respeito paternal, o affecto dos melho-
res amigos, o porvir dos filhos, socego, inte-
resses, em fim, a própria vida que expôz em mui-
tos lances á vingança do marquez, cujo respeito
benemérito soíTreu muitos desfalques de encon-
tro á coragem intrépida de Noronha... Era elle.
ii

porém, o possessor único da ternura de Gamar-


ra. O marquez traçou perdél-o. Duas vezes pro-
jectou matal-o. Estava eu com Noronha, uma
noite, quando o aggrediram: felizmente repulsa-
mos os assassinos. A final, o marquez, authorisa-
do pelo rei, logrou encarcerar Noronha no Li-
moeiro, onde esteve nove mezes; e com muita
difficuldade obteve soltura depois da morte do
marquez. Fr. Gaspar, tio d'aquelle senhor, e va-
lido do rei, fez quanto pôde por demorar tão in-
justa prisão, vingando d'est'arte os manes do mar-
quez, seu sobrinho.» {Obra cit., pag. 34 e 35).

O mordomo-mór estava na idade critica dos


cincoenla em que as paixões atabafam o coração
como aos dezesete. Os velhos, quando amam, lêem
a sensibilidade das meninas que principiam a
amar. Se não se percatam e escudam com o ar-
nez da paciência e da dignidade das cãs, maus bi-
chos os comem, como disse o Sá de Miranda.
Maus bichos começaram a desfazer o corpo, que
tão regaladamente vivera, d^aquelle D. Martinho
de Mascarenhas, terceiro marquez de Gouvôa, sex-
to conde de Santa Cruz, assassinado pela pérfida
actriz de Santa Mónica no dia O de março de 17-23.
O derradeiro golpe recebera-o com a noticia
de que ella havia dado a Valentim de Noronha o
43

retrato que lhe elle dera engastado em moldara


de brilhantes... 11 me fit voir (diz o amigo de No-
ronha) entre ses propres mains ce ménie portrait
du marquis, le méme jour quHl en avait fait pré-
sent à son infideleGamarra.
Se era formosa ? Responde o cavalheiro que diz
tel-a conhecido a preceito, mieux que personne

«Era com certeza a mais formosa actriz que


vi no theatro de Lisboa era moça, azevieira,
:

travessa, vivíssima, espirituosíssima, feiticeira


em todos os seus requebros. Tinha um só defei-
to: era ser treda. Atraiçoava igualmente o mari-
do e o amante. Por um tinha aversão, por outro
somente estima. Se amou rasgadamente alguém,
foi Noronha.» {Obra cit., pag. 35).

Assim que o finado marquez a dispensou do


capricho do habito, quiz sahir do convento, e na-
turalmente visitar Valentim no Limoeiro. A prela-
da oppoz-se. Mandou chamar o marido, que ainda
não era frade. Communicou-lhe o propósito de se
declarar casada e passar-se ao dominio de seu
homem, como era de justiça. O marido sondou a
profundidade do seu direito e a profundeza do pe-
cúlio da mulher. Requereu, disputando-a ao pa-
irlarcha Santo Agostinho. Sahiu-lhe a igreja
18

com embargos á anoallação dos Yotos da frei-


ra. A religião permittia que ella os transgre-
disse com o marquez e com o Valentim mas ;

qne os anuullasse para se tornar ao marido, isso


era feio. A Gnal, Soror Isabel safoa-se do mostei-
ro, metteu-se em Castelia, e voltou a representar
com o marido no theatro de Madrid. (Obra cit,,

pag. 33, nota .4).

Quanto a Valentim, não lhe faltou medo que


D. João V o mandasse enforcar como fizera áquelle
gentil rapaz que ousara disfarçado em carvoeiro
visitar-lhe, no convento da Rosa, a cigana Soror
Margarida do Monte, a quem o rei mandara ves-
tir o habito. O desgraçado ficou na tradição com
o nome de carvoeiro da Rosa. Ao propósito doesta
perigosa cigana, escreve o tantas vezes citado ca-
valheiro de Oliveira:

tVi o próprio monarcha arrastar duros gri-


lhões, e longo tempo captivo da astúcia ou do ma-
gismo de Margarida do Monte. Quantas desordens,
quantos desterros e mortes causados por intrigas
d^aquella mulher Morreu enclausurada no mos-
!

teiro da Rosa, como freira da ordem de S. Do-


mingos. Este pai, que lho foi imposto á força, não
lhe incutiu mais juizo. Induziu ella um galã a vi-
silal-a na cella. Fez-lhe a vontade o desgraçado
14

foi preso lá dentro, e pouco depois enforcado


(Obra cit., pag. 66).
O encarregado da prisão foi o desembargador
Marques Bacalhau, homem de cruas entranhas,
chamado sempre a fanccionar nos dramas que
terminavam pela catastrophe da forca.
Correram entiJo em Lisboa umas insípidas
quadras de queixume de Margarida do Monte
contra o desembargador aguazil do carvoeiro.
Diziam assim:
Oh ! descahido te vejain
Estes ollios jycccddircs:
Arrastado e perseguido
Já que perco os meus amores.
Todas nós, as freiras juntas
Te havemos <le praguejar
Pois por caber com cl-rei
Nos vaes desacreditar!
Justiça de Deus te caia,
E com todo o seu poder;
Xa bocca de um bacamarte
Te vejamos padecer.
Homem., deixa-nos viver,
Não sejas tão turbulento ;

Deixa divertir as tristes


Que não sahem do convento.
Etc.

Um amigo, que me ouviu lôr estas noticias do


theatro do século xviii, perguntou-me se eu as
bebi nos livros do snr. Theophilo Braga.
i5

— Qae livros?
— A Historia do theatro portuguez, onde elle
conta pouco mais ou menos essa historia. A pa-
ginas 8 do 3.0 tomo diz elle o que voss<^ diz do
actor hespanhol António Ruiz.
Possuo com singular curiosidade os livros ori-
ginaes d'aquelle sábio. Abri a obra citada e li.

Effectivamenie copiei o doutor Tlieophilo, co-


mo o leitor vai observar. Em expiação da minha
fragilidade, confesso a culpa, confrontando o ori-
ginal e o plagiato.

ELLE EU
(BM 1871) (EM 1866)

António ílodrirjues hespa- António Hodrigues, hes-


nhol 8nsteiitoU'8e com felici- panhol, sustentou-se com fe-
dadi muitos annos no thca- licidade muitos annos no
tro de Lisboa. Era bonissi' theatro de Lisboa. Erabonis-
mo poeta, philosopho, histu- simo poeta, philosopho, his-
riadur e palaciano. Era ho- toriador e palaciano. Era tão
mem do bem tanto As direi- homem de bem quanto actor
tas como actor de mérito. Do de merecimento. Do seu pro-
seu porte honrado redundou- ceder honrado resultou-lhe uma
Ibe uma pensão annual de pensão annual de cento e
cento e vinte moedas^ de ou- vinte moedas de ouro (fue
ro que lhe dava o rei. Que- lhe dava o rei. (juerido das
rido das mulheres, estimado mulheres, estimado da nobre-
da nubreza, e relacionado com za, c relacionado com mui-
muitos prelados do reino, tos prelados do reino, até do
até do povo se fez idolatrar. povo se fez idolatrar.

HiST. DO THEATRO PORT- O JLDEU (romnnce).


16

Quem, primeiro que elle e eu, dissera isto


em francez foi Francisco Xavier de Oliveira, em
um livro que provavelmente o snr. Theophilo
nunca viu; mas adivinhou-o, e eu copiei d'elle.
Porém, no acto da copia, deslisei da versão do
professor de litteratura em três pontos, l.^ Elle
escreveu em 1871 : Era homem de bem tanto á$
como anctor de mérito; e eu escrevi em
direitas
1866: Era tão homem de bem quanto author de
merecimento. E o cavalheiro de Oliveira tinha es-
cripto: n étoit aussi homme de bien quHl etoit
Acteur de mérile. O tanto ás direitas do snr. Theo-
philo é uma pérola de estylo de que eu não quiz
defraudal-o nem ás tortas. 2.» ponto : Elle disse
do sm porte honrado. E eu, gafando a phrase de
francezia, puz proceder em lugar de porte. Foi
ignorância que me pesa como porte ou carreto;
mas ainda me fica porte ou capacidade para mais
toneladas de matéria bruta com que me quero
áBT porte ou importância. 3.^ ponto da minha di-
vergência, quando em 1 866 eu copiava o que o dou-
tor escrevia em 1871 : Elle pôz redundou-lhe, e eu
resultoíi-lhe. Do que elle escreveu a idéa
feitio

fica mais aceada. Na nova edição do Judeu hei


de apanhar-lhe o redundou-lhe que é bom.
No entanto, posto que eu plagiasse este eru-
dito, não sei por que artes lhe armei a sancadi-
17

lha dechamar António Rodrigues ao actor hespa-


nhol que nunca foi Rodrigues; mas sim Rniz.
Faz-se mister sestro de muito mentir para enga-
nar um homem, de quem se copia o engano cin-
co annos depois ! Parece enguiço ! O cavalheiro de
OHveira escreveu Ruiz. Cuidei que era abrevia-
tura de Rodrigues, e lá vai a peta de recochóle lo-
grar o doutor que m'a encampou cinco annos an-
tes, a mim, seu copista! Quem me desenganou
foi o poeta jocoso Tliomaz Pinto Brandão; e con-
tarei ao leitor como e quando, se é que lhe não
vou contar o que v. exc já sabe do doutor Theo-
philo.
Ahi por 1730 chegou a Lisboa a companhia
hespanhola, que se hospedou em casa de um clé-
chamado D. Hieronimo Câncer.
rigo seu patrício
Ao assumpto doesta hospedagem de raparigas em
casa do padre fez Brandão as seguintes decimas

Victor! já chegou a gente


de Madrid, tão esperada,
e já foi agasalhada
do seu superintendente.
Este padre impertinente
se intitula em Portugal
Dom Hieronomio de tal,
e Câncer tanxbem seria,
poiê (i sua enfermaria
puxa aã damas do hospital.
18

Porém, viva o tal padrinho t

8Ô a taes afilhadas chega;


que á Undarro, e á yallega
abençoa o seu carinho.
E baptisa de caminho
com, fé pia e fervorosa
a dama em flor magestosa,
confirmada no primor;
porém, se a Undarro é flor
também a gallega é Rosa.

Coin que já por uma vez,


temos boa companhia,
graças ao nosso Atouguia
que tal companhia fez.
Em, fim, já chegou Garcez, i '

galan de primeira classe,


que eu não cuidei que chegasse;
e já muita gente diz
que morreu António Ruiz
mas requiescat in pace.

Amen.

Digo O mesmo, respectivamente ao sábio que


desbalisei do seu trabalho de traductor de um li-

* o snr. Theopliilo a pag. 151 e 152 do tom. 3." do seu


Theatro portuguez desmente o Pinto Brandão, dizendo que o
Garcez não veio. O doutor, lil annoa depois, estava mais
em dia que o poeti, redactor diário dos factos que vai poe-
tlsandú a seu modo. Tbeophilo é único!
19

vro que nunca viu. E agora vem do molde peni-


tenciar-mc d'um insolente repto que escrevi ha
deus annos por occasiáo de recommendar cerlo
livro escripto porluguezmente:

«Admiro como elle (o author) se manteve


austeramente portuguez em meio dos sycambros
tempo, coaxavam por es-
litteratiços que, áquelle
ses paues! Parece-me que já então poralli era
(em Coimbra) contagiosa a sarna letrada do insi-
gne rhapsodista, snr. Theophilo.Esle sujeito tra-
duzia as suas cousas originaes em vasconço azado
para nos capacitarmos da sua ignorância dos
idiomas neo-latinos. Vislumbrava-se d'aquillo
muito lidar com línguas teutonicas; uma cons-
trucçâo que cheirava ao grego, mas fallava mou-
ro. O seu forragear no francez era um justo des-
pique dos latrocínios que elles cá nos fizeram em
1808. Se os nào citava, também elles lá não dis-
seram cujas eram as patenas e os cálices de ouro
que nos arrebanharam nas igrejas. Retaliação
justa.
c Ainda assim, as rhapsodias d'esle philosopho,
derrancadas pelo estylo, não tinham cunho d'au-
thor escorreito. O polygrapho, chamado ha pou-
20

CO a ensinar a mocidade, sustenta créditos de


original, affirmados e cimentados na singularida-
de bordalenga com que transpõe idéas peregrina-
mente formosas para as suas locuções de chouto^
coxas, esparavonadas, pragaes infindos, florilé-
gios de absurdos, listrados d'algumas raras cla-
reiras de siso commum, apanhadas de outiva, mas
desordenadas no vascolejar d'aquelle craneo le-
gendário onde o enxofre sobrepuja o phosphoro.
«O homem, um dia, traduziu Balzac. Dizia
elle que ia traduzir novellas para que o publico
soubesse onde os romancistas portuguezes ceifa-
vam, a furto, as suas messes. Era contra mim
que o doutor desempolgava a flecha. Ai do Balzac,
se o avaliaram na injuriosa versão do meu mal-
siml
«Eu tinha então oitenta volumes com o meu
nome, oitenta provocações atiradas á cara juve-
nil do prodígio. Lá lli'as deixo estampadas. E
prometto lembrar-lh'as.
«Não me ha de como desvane-
ser acoimada
cimento a presumpção de que umas negaças lit-
terarias, que vou tregeitando a este vidente ves-
go, hão de viver tanto como os seus apocalypses,
em que a besta é muito mais intelligente e ma-
nhosa que a de S. João Evangelista. Eu, por mim,
desejo que, lá ao diante, se saiba quo morri na
21

desconfiança de que o snr. Theophilo Braga era


um malabar de feira saloia enfatuado com os ap-
plausos do gentio lúrpa.»

Desdigo-me de tudo que atii fica para minha


eterna villa. Logo que fui apanhado a copiar do
snr. Joaquim Theophilo Fernandes Braga, julgo-
me capaz de copiar de toda a gente.

Agora, direi da Zamperini.


Cantou no theatro da rua dos Condes ha 104
annos. Éa terceira das forasteiras que mais ouro

mineraram em Portugal emais authenticos docu-


mentos levaram da sensibilidade do peito lusi-
tano.
Para o theatro lyrico dama dos Condes íinta-

ram-se os argentarios em quatrocentos mil cru-


zados ; e, no anno seguinte, já não havia dinheiro
para pagar ao tenor Schiallini. Adoptaram então
os emprezarios um systema que não c hoje bas-
tantemente seguido: como o tenor instasse pela
mensalidade, metteram-o na casa dos doudos;
mas, em noite de espectáculo, concediam-lhe a
lucidez necessária para cantar de graça. Iam então
dous quadrilheiros trazêl-o da enfermaria dos ora-
tes em direitura ao camarim. O tenor vestia-se,
BIBLIOTIIECA N.* 5.
22

e era escoltado até ao palco. Ahi, desatava o can-


to, compondo de sua lavra a letra, que era um
desafogo de injurias rimadas aos emprezarios. O
povo trovejava gargalhadas, e o improvisador,
aquecido pelos applausos, sarjava a epiderme d'a-
quelles originaes patifes que, no íim da opera, o
devolviam ao seu cubiculo no hospital de S. José.
Assim andou baldeado entre o palco e a en-
fermaria, até que D. José i, condoido do artista,
o admittiu á sua real capella. Aos biltres illustres
que capitularam de sandeu o tenor, não irrogou
censura o rei nem o grande ministro porque :

entre elles estava o conde de Oeiras, filho do mar-


quez de Pombal, e um dos vários amadores da
cantarina.
Não porém, o primogénito do marquez
foi,

a mais generosa victima no holocausto de Zara-


perini. O sagacissimo pai espiára-o até dar-se a
crise da logreira dama se manter a expensas
d'elle, sem o concurso dos capitalistas. Chegado

o momento, Zamperini foi expulsa do paiz, por


ordem do ministro.
Em 1772 espalharam-se em Lisboa alguns
exemplares de uma reles gravura, figurando a
camará de Zamperini. Está a cantora sentada ao
pé de uma banca e, ao lado, estas duas linhas
;

com feitio de versos


23

Prenez, belle et chirmante coquctte, prenez tout,


puis que vous fttes dans un p^iis de fous.

Defronte d'ella eslá Anselmo José Braancamp,


dando-IIie 1:000 peças, que ella recolhe coma
m3o direita, em quanto o monteiro-mór, ajoelha-
do, lhe beija a mão esquerda. Da bocca doeste
sujeito partem duas linhas em inglez :

Tho true property of an englishman


Tis to pay and despi se *

E mais abaixo:
Mylord, dent kiss her lund,
Because she ha<? no f.icc,
But kios her... her... her...
Kis» her else\Tliere -.

Á direita, eslá Ignacio Pedro Qainttlla com a


bolsa aberta, mas, ao que figura, ainda não re-
solvido a esvazial-a. Corresponiem-lhe estes ver-
sos:

A quoi pens?z. Monsieur? elle enorfl ne vouz aime;


aUous, prenez Texenoplc, et vous serez da môme.

A esquerda, António Soares de Mendonça

' o que bem caracteriza o ingloz é pagar bizarramente


e... andar.
7 Mylord, talvez vos desse maior jubilo, em vez de bci-
jar-lhe a mio, etc.
24

mette a bolsa na algibeira, e dá visos de safar-se,


com estes versos

Lasciate agli altri, amico, la campagna,


questa sol con quatrini si guadagna.

A um canto, está o padre Manoel de Macedo


repetindo a sua celebrada ode á cantora, e João
da Silva Tello recita-lhe esta quadra

Macedo, não te cances,


Pois os gostos são diversos;
Zamperini estima o ouro,
E nada entende de versos.

E assim termina a relamboria semsaboria.


Os casos relativos a esta cantora são vulgares
e muito sabidos da ampla nota de Verdier ao Hys-
sope. Os netos dos sujeitos que a opuleniaram,
hoje em dia, são pessoas de muito juizo, de media-
nas posses, e sorveteiras glaciaes em ternuras de
camarins.
25

ENTRADA PARA OS SALÕES

Eu não contava com a gloria e o contenta-


mento de estampar nas Noites de insomnia o
livro completo de physiologia social, intitulado —
os SALÕES.
Cuidei que o pensador severo e estylista pri-
moroso me daria como brinde tão somente al-
guns fragmentos, radiados da idéa geral da obra.
Agora sei que todo o livro será meu, será
d'estes opúsculos que tão benigna e agraciada-
mente são recebidos e indulgenciados pela bem-
querença de 1:000 subscriptores.
E, pois que a publicação dos salões princi-
piou aqui desacompanhada da inlroducçào indis-
pensável ao complexo dos capilulos, forçoso é que
se interponha o soberbo peristylo por onde o lei-

tor mais de grado irá ao entendimento dos trechos


que já leu e dos outros que advierem.
Este livro dos salões será a porção mais para
durar e sobreviver ás futilidades das Noites de
insomnia. O visconde de Ouguella, ainda em
annos llorentes e vigorosos, pude dizer com o ve-
lho e experimentado Rousseau: Je sens vion
26

coBur el je coimais Jes hommcs. O seu livro esplen-

de os lampejos sinistros do espirito por onde pas-


saram as duvidas e pungentes ironias de Prou-
dhon —
aqueile vidente que Deus mandou apre-
goar a prophecia da destruição debaixo dos muros
da segunda Jerusalém derruida.
A Justiça, a inspiradora do livro que se inti-

tulou graciosamente os salões, apparece-nos ahi


sem a venda geniilica, vc pelos olhos da historia
— a Fatalidade inflexa— e emerge á ílôr does-
:

tes parceis, que nos atormentam, as evoluções da


Providencia.
Não estamos afeitos a taes livros com assi-
gnalado sinete portuguez. O melhor romance en-
tre nós é um espairecimenlo, e o melhor poema
uma balbuciação em linguagem nova.
A Poesia ha do vir a ser apostolo, e a trajar

insígnias circumspectas de Justiça, quando os


bons espíritos como Guerra Junqueiro e Guilher-
me de Azevedo a não descompozerem com a nu-

deza das tragedias, e as diatribes em que o sar-


casmo não suppre o ensinamento aíTectivo. A
«alma nova» não se compadece com uns cora-
ções que nasceram velhos.
Livros para este tempo faz-se mister que ve-
nham saturados das lições do passado, e se ajus-
tem a entendimentos rudimentares. Aos espíritos
27

cultos pouco ha que ensinar, logo que esses nos


admoestam superciliosamente que moralisemos
as massas. Mas sejamos todos massas em quanto
o povo — a arraia das hortas e das galerias par-
lamentares — desconfiar que lhe desce do alto o
exemplo que a dissolve e acanalha.
O livro do snr. visconde de Ouguella será a
historia ideada um pouco á feição do estylo e ma-
neira de Lamennais quando a referia em pala-
vras de crente, e quando as turbas criam e estre-
meciam ao relampejar do Sinay. Isso passou lá

fora, e estou em crer que nunca se acclimou aqui.


Se alguma hora o fervor politico levantou cachão
na consciência publica, a infâmia assignalava as
esplosões de civismo com o sangue de Agostinho
José Freire. Relâmpagos de Sinay entre nós são
os que flammejam das casernas e reverberam nos
gládios dos Quichotes que constituem os reis
seus Pansas.
E, como eu me sinta impellido a grandes for-
ragens históricas em terras da Mancha c Barata-
ria, recolho-me ao vestibulo dos salòes, e peço
ao visconde de Ouguella que nos relate como foi

que um providencial acerto lhe deparou o ma-


nuscripto do desembargador.
28

OS SALÕES

INTRODUCÇÃO

... EUe eut pour lui cette reconnais-


sance que la avoir pour le
perle doit
plongeur, Ta decouverte dans son
qui
écaille grossière sous le ténébreux man-
teau de ToGéau.

THÉOPHILE GAUTIER.

Era um dia esplendido de inverno n'este


ignoto canto do occidente. Abri o Almanach da
agencia primitiva de annuncios, e a paginas dez
encontrei o seguinte:

<í20 Terça. S. Sebastião, martyr. Festa na sua


freguezia, e na igreja do liospital de S. José.

Perdoem-me os devotos. Nenhuma d'estas


festividades me impressionou o espirito.
Eesolvi ir á feira da Ladra.
29

Ás lerças feiras, assemelha-se o campo de


SanfAnna a um bazar africano, na selvagem e
cynica disposição dos objeclos que constituem o
mercado.
Estas tristes e lúgubres origens berberes de-
monslram-se sempre, e a cada passo. As magni-
ficências orientaes, em todo o esplendor c opu-
lência das inacreditáveis e sublimes raridades da
Ásia, nos seus soberbos e sumptuosos caravause-
raes, não existem aqui. Lôem-se nos livros,
aprendem-se nas Mil e uma noites, adivinham-se
nas chronicas dos nossos navegadores, estudam-
se nos espólios atrozmente mutilados das casas
antiquíssimas e esplendorosas dos vice-reis da
índia. Hoje são um mylho. Para nós — pobre po-
vo — empurrado para as vagas espumosas do
oceano, pelas civilisações que se apossaram da
Europa, e que nos varrem sem piedade nem dòr
para a Africa carthagineza, como se nós fôramos
os numidas das lendas romanas ou os ferozes ka-
bylas das raizes do Atlas.
E o que somos nós? Deus o sabe.
Somos um povo essencialmente temente a
Deus, essencialmente catholico, devotado á vir-
gem de Lourdes e á Senhora de la Salette, essen-
cialmente constitucional, e essencialmente igno-
âo

rante n'estas lutas, que despedaçam Ihrooos e

proclamam republicas.
«Tudo quaalo Deus faz é por melhor», asse-
vera esta família lusitana. n'um proloquio de
origem céltica, que tem todo o fatalismo e sabor
das raças e linguas orientaes.
As lutas do catholicismo e do crescente mou-
risco crearam uma epopéa grandiosa, que se tra-
duz n'este eclectismo philosophico e religioso,

que afoga, em vastas dissertações aristotélicas, e


em tristíssimas lutas das escolas de Alexandria,
estas simples e ingénuas verdades chrislãs. A
graça, evangelisada pelos doutores da igreja, é,

talvez, eílicaz para apagar estes torneios nas cons-


ciências, e remir peccados de reminiscências tão
pagãs.
E assim vamos vivendo. A phrase é chata e
villã. Mas está officialmente reconhecida e estam-
pada nos muito verídicos e piedosos discursos da
coroa, tal qual resa e commemora o agiologio
parlamentar.
Houve um dia, antes das ordenanças de Car-
los X, em que um jornal francez, tão lido que
aterrava o ihrono, terminava o seu principal ar-
tigo — esculpido hoje nos bronzes da historia —
com esta phrase singela e prophetica: Pobre
França, pobre rei!...
31

Se eu dissera aqui: pobre Portugal !


— Não
digo.
Entrei na feira da Ladra.
Na entrada do campo, a um dos ângulos, em
face do convento de SanfAnna, levauta-se a
praça dos Touros. Edificações mais ou menos ele-
gantes, mais ou menos sumptuosas, enfileiram-
se, em linha recta, por uma das faces.
Ao fundo está gizado um microscópico jar-
dim que, na louca ambição da sua trislissima Flo-
ra, cingindo-se no cinto fanado de empoeira- um
dissimo buxo, caberia á vontade na mais limita-
da sala de qualquer nababo das possessões indo-
britannicas.
Pelo meio do campo, em deplorável estendal,
havia pannos, pranchas de pinho e laboleiros
ignóbeis, onde jaziam, na mais intima convivên-
cia, os resíduos, o lixo e os detritos da geração
presente e das que passaram.
Acudiu-me aqui a musa do poela íloreulino:

« Lasciate ogni speranin, voi cbo enlrate.

Achava-me cm presença do inventai io de uma


capital.
Examinei:
Um pires secular de Sòvres, voluptuosamente
32

contornado nas formas elegantes do reinado de


Luiz XV, escondia-se na penumbra d'umâ terrina
de faiança, que fora a ultima aspiração da fabrica
de Sacavém. Havia um sacrifício a Diana, em bis-
cuit de Saxe, tombado sobre a espora de prate-
leira, que fura triste legado do ultimo marquez
de Marialva. Mais longe, espreguiçava-se com a
boçal ironia de parvenu, um saleiro da modesta
porcelana da Vista-Alegre, sobre os fragmentos
de um vaso etrusco, humilhado e melancólico
nas mutilações e concertos com que o expunham
á irrisão publica. Um espelho de crystal de Vene-
za, onde os amores brincavam com frechas ecar-
cazes, coloridos sobre o vidro, por mãos de fa-
das, entre um rosal de perfeito esmalte, n'um
berço de verdura e de papoulas, encaixilhado em
ébano, aberto a buril, nos cantos, em prata dou-
rada, repousava sobre uma farda de archeiro,
coeva dos devaneios da corte de D. João v, e re-
líquia marcial, talvez, dos delirios ascéticos do
mosteiro de Odivellas. A tampa de um assucarei-
ro do mais antigo Saxe, levantando, em relevo,
uma deliciosa grinalda de boninas e amores per-
feitos, recordava, na suavidade das formas e no
primor das folhagens, as creaçOes elegantíssimas
de Vanloo e Bucher. Um prato esmaltado da mais
diaphana e transparente porcelana do Japão equi-
33

librava-se sobre um fructeiro de louça das Cal-


das, onde se traduzia a ridícula vaidade do olei-
ro, que quizera rastejar no colorido e nos embu-
tidos cambiantes das cores, e pela opulência dos
debuxos e ornatos, com os preciosos trabalhos
cerâmicos de Bernardo de Palissy.
Mais adiante, por entre uma selva de martel-
los partidos, fechaduras quebradas, correntes de
ferro em completa oxydaçào, e chaves e cadeados
de varias dimensões, dei com o retrato de el-rei
D. Jos(', pintado a óleo, em vestuário de corte,
com o globo de ouro e sceptro cinzelados, no es-
tylo clássico dasmonarchias absolutas. Pendia o
quadro sobre um candieiro de latão, pharol de
Ires lumes, contemporâneo, talvez, da lâmpada a
cuja luz Paschoal José de Mello escrevera o seu
livro de direito criminal. Após estes primores ar-
cheologicos desenrolava-se uma fileira incom-
mensuravel de botinas, sapatos, babuches, chi-
nelas, tamancos, galochas e alpercatas, que se
perdiam n'uma extensa linha, talvez a ultima il-
lusào dos seus possuidores. Sic íransit gloria
viundi, clamavam os escravos, queimando estopa,
detraz dos carros dourados dos triumphadores ro-
manos.
Desde o vestuário trágico, que acompanhava
em scena os heroes do alheniense Sophocles até
34

ao soco plebeu da coraedia vulgar, onde se ex-


pandia o riso de Aristophanes, havia tudo n'este
bazar immenso das gerações extinctas. Gigantes
6 lilliputianos, heroes, semi-deuses e proletários
poderiam calçar-se, afoulos, n'aquelle cháos de
todas as civilisaçòes.
Havia a bota de canhão, séria, grave e irre-
prehensivelmenle lustrosa —
despojo venerando
de algum desembargador da casa da supplicação,
de par com a chinela phanlastica e imaginosa da
cortezã mais desenvolta e elegante. Por entre
colchas da índia, recamadas de lentejoulas, esmal-
tadas em mosaicos de fios de ouro, entretecidos
em variados matizes, lencoes de Bretanha, finís-
simos, arrendados era arabescos nas orlas das
cabeceiras, coluranas de carvalho do norte, aber-
tas a buril, em que pousavam pássaros esculpidos
sobre pâmpanos e hastes do videira, no meio de
fragmentos de apparatosos biombos de charão
escarlate da phantastica China, onde aves e dra-
gões dourados surgiam de vasos idealisados pela
imaginosa creaçião do artista, através de crystaes
de Bohemia, partidos e mutilados, enunciando
todas as cures do prisma, e de envolta com vas-
souras de piassaba, modestas e envergonhadas
em toda a humil.lade da sua burguezia, avistei
um contador de Boule, moldado em tartaruga.
envolto em festoes de grinaldas de cobre doura-
Pompadour, e arre-
do, no mais correcto eslylo
medando, na ousadia do desenho e na elegância
e recortes das folhas de metal, as sublimes ins-
piraçòe^ de Benvenulo Cellini.
Por detraz d>ste contador, que era a jóia, o
talisman, a maravilha, no seio d'aquelle crapulo-
so 6 hediondo bazar, equilibrava-se de cócoras,
formando como novello, uma velha octogenária,
que se poderia descrever por uma ruga inteira,
que em zig-zag ou em grega lhe cortava as faces,
e ia perder-se, em espiral, n*uma garganta, que
parecia a pelle abandonada por uma serpente do
deserto. Encarei-a a medo, e comum pavor inex-
cedivel. Pareceu-me dar de rosto com uma das
feiticeiras de Macbeth. Envolvia se u'um cafraa
ouburnus — uma espécie de farrapo de panno,
que lhe cingia o tronco, deixando solta a cabeça,
que apparecia envolta n'um lenço asqueroso, in-
juriado pelo tempo, c que emraoldurava dous
olhos negros scintillantes e vivos, n'uma physio-
nomia baça e livida, como um pedaço de cera
amollccidu entre os dedos.
Dirigi-lhe a palavra em phrases breves. Che-
guei a ter receio do despertar d'aquella sphinge.
Ouvi, depois, um ruido surdo, como de um mo-
vei, que se arrasta, uns sons roucos e gulturaes.
36

na melopéa arabe, uma voz cavernosa, e sabida


dos abysmos, como se fora uma das pytbonissas
da velha Escócia. Afigurou-se-me que lhe ou-
vira a saudação feita ao heroe de Shakspeare:
Salve thane de Glamis, e de Candor
A fascinação, que me produzira o cofre, ex-
plica, de certo, estas allucinações e devaneios
acústicos.
Enchi-me de animo, e perguntei-lbe de no-
vo: quanto custa este contador?
A velha, a sibylla, a bruxa, o que quer que
era, remexeu-se, por entre os farrapos que a
cobriam, rumorejou por duas ou três vezes algu-
mas phrases, que não chegaram aos meus ouvi-
dos. Alguma invocação infernal, algum preito a
Satanaz, — e depois accentuou em voz clara e ca-
denciada as seguintes palavras:
— D6-me dez libras, e leva-o de graça.
— E a chave?
— A chave não a tenho. Perdeu-se. Ha pa-
peis dentro. Bem sei que os ha. São comedias,
entremezes ou seja lá o que for. Doudices do do-
no. O desembargador João Aleixo de Castro Pi-
mentel e Figueiredo escrevia muito nos últimos
annos da sua vida.
— Conheceu-o?
A velha sorriu-se.
37

A ironia d'esle sorriso linha n3o sei que re-


flexo dos lampejos do fogo infernal.
— Se o conheci! Fui sua criada. Tinha siJo
sua escrava. Comprou-me em Teluão. Morreu-
me nos braços, no ultimo de dezembro á meia
noite. Eu vendo os moveis para comer.
Entreguei-lhe as dez libras sem regatear cin-
co reis. Esperava com esla amabilidade que a

antiga escrava do desembargador continuasse a


sua curta narração.
Mas guardou o dinheiro n'um sacco
a velha
que lhe pendia do cinto, velou as faces com o
farrapo ou capote que a cobria, e ficou muda e si-
lenciosa como um mysterio.
Nâo me dei ao trabalho de procurar uma ciia-

ve. Quebrei a fechadura, achei nas gavetas um


raanuscripto, e encontrei na primeira pagina o
seguinte
AO LEITOR

Vivi bastante para alcançar mais de metade


do século dezenove. Considerei, examinei, e es-
tudei os acontecimentos, e os homens do meu
terapo. Vou debuxal-os e desenhal-os tacs quaes
os concebi, e taes quaes elles se teem mostrado
n'estas rotações constitucionacs de uma (?poca,

que não é a minha. Onde bastar o esboço aban-


BIBLIOTBECA N.* 5. 3
38

donarei a palheta, e usarei do lápis de carvão.


Onde o vulto carecer de mais laz, e de mais vas-
to horisonle deixarei o pincel, e pegarei do cin-
zel 6 do escopro. Não tenho pretenções a Phi-
dias, nem a Miguel Angelo, nem a Rubens, nem
a Hogarlh, nem a Van-Dick, nem a Areiino, nem
a Delacroix. Fallam-me os traços de Zabarran,
as linhas de Corregio, as tintas de Ticiano, os
perfis de Murillo e o riso sardónico de Gavarni.
Com tudo, as sombras d'estes nossos Mirabeaus,
Talleyrands, Barnaves, Berriers, Collards, Cavai-
gnacs, Favres e Marats hei de pul-as de pé, hei
de veslil-as, hei de enroupal-as, nas vestiduras
do nosso século, e hei de com ellas e só com cilas
povoar

os SALÕES

Segue-se o livro.

Vou publical-o.

VISCONDE DE OUGUELLA.
39

ECCE ITERQM "SILVA" CRlSPINUS

Escreve elle no n.° 00 da Aclualidade:

tPublicou-se o n." 17 da Tribuna. Insere ar-


tigos e versos dos snrs. Ferrer Farol, Gaimarães
Fonseca, e outros escriptores, e nào desmerece
dos números ulleriores. »

Uíerior quer dizer que vem depois, ou que tem


data posterior.
Á vista do qui\ o n." 17 já publicado é poste-
rior ou ulterior ao n.*' 18. Segundo este systema
chronologico de Pinto, o depois está primeiro que
antes, G ê a continuação de 7, e os filhos nascem
primeiro que os seus pães. Se elle quizesse dizer
que os n.o» 18, 10, etc, da Tribuna promettiam
ser iguaes aos seus precedentes, escreveria:
«iTudo nos assegura que os números, que hão de
sahir anteriormente, ser3o dignos dos números
que já sahiram posteriormente.»
Sem impedimento d'estes e d'ontros anlerio-
40

res e ulteriores furúnculos de aposthema intel-


lectual, proponho á academia real das sciencias
este snr. Silva... para varredor.

Bravo 1 almas generosas do meu brioso Por-


tugal que amparastes a viuva e os sete orphãos
do egrégio orador 1

Bravo corações que avaliastes o talento do


!

pai e o infortúnio dos filhos 1

Formoso rastilho de luz foi esse que vos


guiou desde a sepultura de Santos-Silva ate ao
recinto em que uma viuva, entre a saudade e a
pobreza, ampliava o regaço para aconchegar do
seio aquelles sete rostos banhados das ultimas la-

grimas de seu pai.


Entrou, a um tempo, n'aquelle lugar de an-
gustias, a mortalha e o manto da misericórdia.
Sabia um cadáver, e entrava o anjo da caridade.
João António de Santos-Silva levava espelha-
das na retina morta as oito imagens queridas; e
a Providencia rodeava de amigos aquelle sagrado
41

grupo de crianças qne punham as m3os — ex-


pressão única das agonias inexprinaiveis.
A fatalidade da morte justificava, não menos-
cabava os designios do Âltissimo.

Eu conheci-o pouco: fallei com elle duas ve-


zes; lia-llie os seus discursos como ijuem estu-
dava a grande phrase lusitana no mais correcto
e enérgico orador parlamentar.
Tem lanços admiráveis de força e de atticis-
mo as suas orações. Não sei nem entendo o qui-
late politico dos seus discursos. Estudava-o me-
ditativamente, sem lhe graduar a justiça da ag-
gressâo ou da dcfeza. Os seus adversários, a jul-
tamanho do gladio que os feria, pare-
gal-os pelo
ciam-me grandes, como os de Isocrates e Demos-
Ihenes. Se o não eram, o orador magnânimo
deu-lhes a honra de o inspirarem.
Também eu lhe mereci a consideração de al-
gumas cartas em que me vejo houoriticado com
o titulo de amigo. Mal pensava eu, quando ha
dous annos lhe fallava da irreparável perda da
minlia saúde, que tão cedo o seu nome iria ajun-
tar-se aos de tantos amigos mortos, a quem ea
dissera o ultimo adeus.
42

E, quando eu lhe fallava de meus filhos com


o coração cheio das presentidas lagrimas de dous
orphãos, dizia-me elle que lhes seria protector
n'esta vida, se Deus lh'a não tirasse ás suas seis
criancinhas.
Como esta carta está revendo as lagrimas e a
santidade de pai!...
Porque não hei de eu dar um quinhão d'esta
melancolia aos que tem filhos? E uns assomos de
jubilo aos que abriram mão redemptora á fami^
lia de Santos-Silva?
Esta carta foi datada em 24 de outubro de
1871.

« : Vou dar-lhe um conselho. Estudei e


exerci a medicina por uma boa dúzia de annos,
Estudei-a nos outros, com os escrúpulos de uma
sã consciência, e como quem tinha a sua missão
por um sacerdócio. Tenho-a também estudado
em mim, porque a isso me obrigam os meus pa-
decimentos. Dos desenganos que colhi na scien-
cia e na pratica, resulta para mim uma regra
que, se não é uma verdade infallivel, é com cer-
teza muito geral. Nada ha mais falso ou pelo me-
nos incerto do que o juizo que o paciente faz do
seu estado, pelo que diz respeito ao diagnostico e
prognostico da sua moléstia. Os próprios médicos
43

são OS que, n'este ponto, mais se enganam, por


que são os que mais exageram.
cNão creia, pois, nas suas anemias, nem nas
suas elhicas; mas não descure restaurar as suas
forças, e seguir tenazmente um tratamento 1 y-
que lhe reconstrua o
gienico, analeptico e moral,
sangue, lhe regularise qualquer desarranjo de
funcção, lhe Iranquillise o espirito, ou o levante
de qual(]uer ligeira prostração. Creia também na
sua idade, e na força medicatriz da naturez?,
que, quando 6 bem dirigida e auxiliada por um
medico prudente e hábil, faz milagres.
uFalIa-me o meu amigo de dous tilhos seus,
e appellou para o coração de um pai que tem seis.
Feriu a minha corda sensivel estremeceu-a com
;

as mais vivas vibrações. Não sei se lodos os pães


são como eu sou: devem sel-o. De todas as des-
graças humanas a que mais confrange a minha
alma, e mais me angiisiía o corarão, r a que se
desata em lagrimas e em infortúnios sobre a or-
phandade desprotegida e desamparada, a quem
Deus esqueceu na hora em que encerrou o livro
da vida ao pai que só vivia do santo amor de seus
filhos.

«Se Deus me alongar a vida, e seus filhos


precisarem de mão valedora que os guie e ajude
.n'esta escabrosa peregrinarão, irmanal-os-hei
44

aos meus. Repartirei com elles o meu préstimo,


se então o tiver. Estas palavras não são só de
consolação: são compromissos solemnes, que es-
pero não desmentir.

«A posteridade nem sempre se esquece de


pagar as dividas sagradas de seus antecessores.

ftMeu caro não pense em morrer.


amigo,
Pense no que necessita, e de que Deus, que é
justo, o não pôde por ora privar. Pense na sua
vida, que é a vida de seus filhos. »

Elle morreu; e, na hora derradeira, reco-


nhecia ainda a justiça divina, posto que estivesse
lendo nas lagrimas de sua família e nas agonias
próprias que era chegada a morte. Abençoou-a
como enviada de Deus, quando sentiu na gargan-
ta a constricção da asphyxia.
O hálito consolador da Providencia passara,
como valicinio, por aquella alma, quando me es-
crevia as esperanças realisadas em seus filhos
A posteridade nem sempre se esquece de pagar as
dividas sagradas de seus antecessores.
Pagou. O monumento do grande orador é o
pão da sua viuva e dos seus sete filhos.
46

DOUDO ILLUSTRE

O arcebispo deMilylene, D. Domingos José de


Sousa Magalhães, doutor em cânones, jurisconsul-
to eminente, orador esclarecido lanlo no magisté-
rio universitário como no parlamento, ensandeceu
em 1858, quando contava quarenta e nove annos,
e acabou de morrer em 187-2, em Villa Pouca de
Aguiar, na casa onde havia nascido.
Motivou a demência d'este douto prelado a sus-
pensão das funcçOes de provisor e vigário geral do
patriarchado de Lisboa, dada pelo cardeal D. Gui-
lherme I. A causa da suspensão, pleiteada acerba-
mente por parle do arcebispo e dos seus conten-
dores, foi um opúsculo d^aquclle prelado, que de-
nunciava irregularidades e delidos ecclesiasticos.
Teve parle n^esta pugna um dos nossos contem-
porâneos mais abalisados em jurisprudência e em
variatla litteratura, o snr. visconde de Paiva Man-
so, a favor do arcebispo, e contestando o doutor
Cicouro. IMeitearam com energia, por parle do
patriarcha, o cónego João de Deus Antunes Pinto
e o reverendo académico Francisco Uecreio, di-
gno dos vigorosos impugnadores.
46

Como quer que fosse, o arcebispo de Mitylene


perdeu na brava luta a razão; e, ao parecer de
illuslrados juizes da sua justiça, foi a iniquidade
que matou o robusto athleta.
Transferido de Lisboa para o amparo de sua
familia em Traz-os-Montes, a esperança de res-
taurar-lhe o juizo desvaneceu-a a progressiva con-
densação da escuridade á volta d'aquella alma tris-

te, lelhargica, absorta na contemplação estúpida


das lagrimas dos parentes e amigos.
Do torpor silencioso e abstrahido passou ás
manifestações irrequietas do delírio, do sonho,
das miragens que lhe tumultuaram, durante qua-
torze annos, nas suas escuridões interiores.
Escrevia muito; dormia poucas horas; palmi-
lhava em vertiginoso regirar o taboado do recin-
to, onde se refugiava dos olhares amargurados de
sua familia.
Possuo pequena parte dos seus manuscriptos
autographos, com as datas de anno, mez e dia.
Deprehende-se de alguns que o illustre alienado
se considerava rei de Portugal, umas vezes; pon-
tífice outras; e não é raro enxertar-se em jerar-
chias mais elevadas no reinado dos puros espíri-
tos. De envolta com os dislates d'aquelle sonhar
incessante, ha, nos escriptos do homem que fora
um dos mais alumiados da sua época, admiráveis
47

lanços de linguagem, de conceito e alé de razão.


Que espantoso coutra-senso! E' que lambem nos
delirios ha raptos de luminosas visões.
Os seus escriplos sáo tratados, theses, disser-
tações cada qual com seu titulo, compostos desde
o segundo até ao penúltimo anno da demência.
Conhece-se, apalpa-se o espessar progressivo das
trevas, a vertigem da desordem, o vasquejar das
derradeiras scinlillas.
Eis-aqui os litulos : O gigante — Os privilégios
da coroa dynaslica — As cinco questões de direito
natural, ou o estudo da philosophia de direito na
universidade —A missão divina —A chronica real
— Da santidade do direito — Cemitério protestan-
te— A tyrannia impossivet — O mesmo Senhor fez
os seus martyres, de
epistolaPauto aosS. de fieis

Galada — O — O erro commum — Os


inipassivel
três fundadores — O cordeiro — A surpreza — O
burrinho menino dos
e o — O templo
protestante^;
— O penhor a hypolheca, ou juro a herdade —
e o e

O da realeza — O parocho — O demónio ten-


titulo

tador — A espada de Bruno — O enigma — Mas-


S.
cara de ferro — O sonho — D. Maria Caraça Bona-
parte ou a burrinha protestante — O viaticoda eter-
nidade— A estreita do norte ou a misericórdia dos
mares — A vacca — Apologo — catasirophe. .4

Estes manuscripios comprehendom sessenta


48

cadernos em folha. Em poder da família do fina-


do arcebispo ainda ha rimas de papel escriplo no
trajecto de doze annos. Tirando ao acaso um de
entre os cadernos cosidos com algodão verde e
escarlate— para dar ao leitor a manifestação escri-
pta de uma alma que esvoaça á volta dos residuos
ainda bruxuleantes da sua razão — aqui vai a

CATASTROPHE

sobrenome o Sexto, filho do pri-


AíTonso, por
meiro rei, que usurpou o titulo de duque de Bra-
gança chamado D. João iv, foi deposto de sua pri-
mogenitura por seu irmão D. Pedro, e conserva-
do em prisão e exilio de toda a vida. D. Pedro
não podia ser mais perverso. As circumstancias
atrocíssimas d'este inaudito escândalo não estão
bem explicadas nem eram bem conhecidas dos
contemporâneos. Os mais prudentes do reino, ou
porque não souberam, ou porque não poderam
averiguar o intrincado drama, deram ao successo
o nome de «caiastrophe». Os hespanhoes limita-
ram se a negar o que era patente e publico; e das
verdadeiras causas e do seu fio e enredo occulto,
nada explicaram na sua «anti-catastrophe», doeu-
40

mento mediano emal Iraradopara o fim, epara o


grande empenho da causa e da questão; lâo in-
ferior e pueril que a desvirtua e degrada apou-
cando o assumpto para diminuir a impressão, ou
para distrahir e desviar a attenção do horror da
calastrophe.
Os subsequentes historiadores pouco ou nada
tem apurado d*esta vergonhosa historia da usur-
pação ; as suas monograpliias são como memorias
de encommenda que chegam ao seu fim por meios
tortuosos para espalhar algum erro ou para afa-
gentar algum receio politico; edo verdadeiro fim
da historia não curam nem tratam porque a pre- :

venção da historia O o erro, e com este rumo nin-


guém pôde navegar nem progredir. Attribuem ge-
ralmente os protestantes aquelle sinistro ao par-
tido cardinalicio de Roma, segundo o seu costu-
me e petulante ousadia de calumniadores, que
commettou o delicto para o assoalhar e publicar
por um lado attribuindo-o aos seus maiores ini-
migos,em quanto vão por outro lado desfiguran-
do sempre em vão alguma memoria de maior
horror, ou alguma imputação mais pronunciada,
mais manifesta e visível, e n'ostc falso empenho
confundem a historia e geram o erro dos séculos;
mas a verdade c como a luz mais forte, que pe-
netra através dos maiores obstáculos em toda a
50

parle onde estiver encerrado o homem pela maior


lyrannia para alumiar o captivo, e ale para es-
clarecer o cadáver, que geme debaixo da lousa e
do epilaphio, que lhe escreveu o maior crime, em
quanto não revela o enigma da sua escura sepul-
tura.
A analogia dos factos é o melhor meio de des-
cobrir os mysterios da historia. Para escrever a
dos crimes ainda ale o presente não achou a boa
critica outro fio de mais severa lógica, nem docu-
mento mais fiel e verdadeiro, nem testemunha
mais digna de credito e de authoridade. A Divina
Providencia dá causa á catastrophe para punir a
atrocidade da injuria; o demónio escreve a anti-
catastrophe; mas o eíTeilo subsiste, o fado per-
manece, o som repercute e sua em outro ponto e
órgão, ás vezes só no echo alé á altura, que o Se-
nhor fixa ao bramido para se reproduzir no de-
curso dos séculos, se um unisono accorda igual-
mente terrivel e medonho ou funesto e assusta-
dor alé para o demónio que o gera e produz. Sóa
do órgão a tuba, e não é a mão do homem que
fere a tecla, nem a musica e pensamento do seu
compositor que produz a melodia. Devia o homem
vôr no arcano a sciencia divina, que deu ao ar
modulado pelo instrumento a euphonica sympa-
51

tília dos sons e o gentil devaneio do mais accor-


de accenlo.
O orgão da historia não é um instrumento de
imbecis, e mentecaptos que julgam illudir as
turbas attribuindo a causas falsas o oíTeito ver-
dadeiro da sua maravilhosa impressão: deixai
o órgão ao templo calholico; porque só n'elle
avulta e brilha ; aos viciosos e prostíbulos de maior
vergonha apenas cabe a profana chula de taber-
nal comedia, e a ironia da musica. A arpa é ins-
trumento real, a lira só a tange a poesia e a ver-
dadeira inspiração que o Senhor concede ou nega
ao cantor pelo moto da trova e pelo pensamento
da sua religião e virtude. A historia verdadeira ou
falsa, illustrada ou cega e pedinte — eis o dilemma
nnico da sciencia, e o programma que oescriptor
competente sempre encontra diante e dentro do
seu pensamento segundo o fim a que se propõe
e persuade: a maior parte dos eunuchos só pre-
sam o devaneio do canto pelo sustento que rece-
bem e pelo dinheiro que contam para satisfazer
as suas abomináveis e depravadas paixOes. São
homens, que se deixam mutilar sem possuir a fal-
sa virtude de Origenes, nem a verdadeira e santa
da nossa catholica virgindade; e como pactuam a
sua deshonra não exaltam o tiple do seu desen-
52

fado sem sonhar com opíparo e somnolenlo ban-


quete; 6 por isso todas as suas loas acabam em
comer.
O estigma d'este falso ministério da historia
recahe sobre todos os homens do mesmo engenho
e calibre, que adoptam os seus estudos e profis-
sões só pelo benigno e precioso metal que aufe-
rem e adoram — e d'estes
sempre o maior nume-
é
ro; o actual enche de eunuchos todos os theatros
e d'hisiriões a comedia d'aldôa, e a sua nobreza
de tamanco. Que mais diremos d'este réprobo e
amphibio meteoro, senão que jamais deixa de se
converter contra o inventor e mais obstinado se-
ctário? o eunucho converte o sexo, e faz-se bes-
ta de carga, ou machina de pura digestão, e mor-

re a pedir, ou vai por conta d'estranlio herdeiro


dispor o cemitério da familia, que já se sabe 6 a
familia dos eunuchos sempre a mais torpe e im-
munda, que nem merece a honra do homem pro-
letário.
Queremos dizer, que todos estes h3o-de sahir
a campo com os vozeirões para aturdir e desme-
moriar a maioria dos nossos leitores; este opús-
culo ha de rir do tremedal e produzir o seu ef-
feito: acunhar os truculentos, e fazer duvidoso o

seu ócio e evitar o seu pestífero alento sem ter


necessidade de fugir da sua sanha, e sem accele-
Õ3

rar o passo de seu domestico e providenle ani-


mal. Não eslranliemos o som do orgáo mais mI e
desentoado, que vai ás costas de erradio transfu-
ga deslumbrar o cálix da sua melodia a todas as
tabernas e lupanares; olhai para o rosto e deci-
frai os signaes, que vos revelam a historia com
mais fidelidade do que as memorias que deviam
retratar os seus pensamentos de historiador, e
apenas con((''m a sombra da sua ignominia e pro-
terva hediondez e peçonha.
Possuir ou nào possuir a casa de senhorio de
Bragança sempre synonymo de ser ou de não
foi

ser rei; mas possuir a casa sem possuir o direilo


(' dar pasto á ambição oligarchica e á falsa plalêa

de comedia ; é o mesmo que entregar o supremo


poder aos mais vis e ignóbeis, ao mais desleal e
traiçoeiro corrilho e atroz sequella. Este ó o único
partido (jue púJe formar-se e existir em Portu-
gal, em quanto dura e vigora a usurparão os seus ;

meios os maiorescrimes, a sua politica a giiiaraais


desleal e machiavelica, e o perpetuo enredo do en-
gano; o estribilho protestante, o punhal do foras-
teiro mais atrevido e audaz, e a entrega da pátria
perdidaao maisambiciosoeslrangeiro, e ao maior
renegado do demónio. A sua authoridade sempre
falsa não impera, pactua em toda a parte com os
maiores scelerados, e consegue fins mcdiocres e
BlBUOTUECA .N.* 5. «
54

resultados de dinheiro sempre ephemeros e falla-


zes: porque os juizes d'esta lonlina roubam-se
uns aos outros.
Subiu o primeiro usurpador ao throno, e foi
este D. João i: a sua mais negra, e mais atroz
usurpação foi a da casa de Bragança, mas primei-
ramente o rei não pòJe usurpar, nas provincias
nem em Traz-os-Montes, em segundo lugar a usur-

pação veio toda a pertencer aos caudilhos, que o


governaram e dominaram e á sua lei mental e
miserável recurso; que só pude commuaicar a
seu filho com o mais tétrico e deplorável êxito,
justo 6 bem merecido castigo do Senhor pela abo-
minável traição de Coimbra. Por esta forma D.
João não reinava, e o cardeal romano cuja nome
o infame usurpador dava ao summo pontilice, li-
nha o escravo sempre encerrado na sua possilga,
que era o peor palácio da casa de Bragança, sem-
pre a sorver quartilhos de vinho tabernal, cuja
despeza faziam entre si os falsos possuidores dos
bens para não soffrer a fúria real, que era indo-
mável 6 grutesca. Se estivesse bem abeberado
deixava-se vencer, e cabia ao chão, como Grão
Lamma, depois de opiado pelo mellior tabaco e
café de Moca, e pelos prazeres reunidos do seu
abominável harém.
A lei mental foi uma medida deficientissima
para o seu fim, mas prova alô que ponto é ver-
dadeiro o principio e evidente em nossa doulri-
fi3. O padre santo durante o interdicto de vinte e
sele dizia: entregai os bens á casa de Dragança;
— disse entãoa abominável facç3o entregar os :

bens é o mesmo que entregar a coroa ; e logo —


faziam um processo com grande numero de teste-
munhas para provar que não havia successor á
coroa, e que D. João i por esta falia de successor
fora justamente acclamado. Escreviam ao mesmo
tempo uma Memoria protestante, que atlribuiam
a João das Regras, e davam ao falso documento o
cunho das cortes de Coimbra, aonde nào foi nem
podia ser apresentada sem grande irrisão e es-
carneo de todo o povo. Alli ficava o corpo santo
do duque de Dragança para desmentir todas as
memorias, mas tal r a audácia de todos os hcre-
jes e fementidos, que nega a verdade conhecida,
uma vez que possa fundar-se na apparencia do
erro. Este João das Regrasnão existiu o nome é ;

de um anonymo; o eíTeito da Memoria foi coa-


iraproducenlc, o povo riu, zombou, irrilou-se e
condemnou ao desprezo a falsa e torpe oligarchia
que usurpava os bens em nome do simulacro da
realeza ; e sustentava esta figura sú para desfrutar
o rendimento da casa de Bragança. Todos os his-
iriOes do torpe magnetismo das façanhas da es-
56

trada orçam pelo mesmo vulto e dimensões; o»


seus meios são análogos, a sua cobardia prover-
bial, a sua vangloria o mais vil commento e a
mais ambiciosa tyrannia. Em 1811 outros da
mesma chita allegavam no Brazil os grandes ser-
viços que fizeram contra os francezes e obtinham
os prémios de lograr obeliscos devidos ao valente
Ajax: alguns d'estes, se viram os francezes, fm
para entregar e vender a pátria e os penates, os
templos e a sua santidade, as mulheres e todo o
verniz do rosto vil e infame do idolo das suas
abjectas heresias e traições: se algum militar
brioso 6 valente do exercito appareceu no Brazil
foi vendido três vezes, ludibriado, atraiçoado e
escarnecido, porque nSo assignava os mais fal-

sos documentos e os mais caluminosos e torpes


enganos que preparavam e reuniam para a histo-
ria de todas as façanhas e proezas do nosso exer-
cito peninsular.
Porque razão não se escreveu ainda este ver-
gonhoso commento da usurpação? porque de to-
do o modo ha de ser a historia mais catholica
dos séculos modernos, e o infame hereje e pro-
testante não pôde attribuir ao Senhor a menor
virtude nem hão de conceder ao povo a corres-
pondente sombra de galardão. Na época de D.
João I o povo venceu as batalhas, o rei gemeu na
57

sua escravidão de toda a vida, os usurpadores


escreveram seus anachronismos,
-CO ns|) iraram,

e falsa historia, e o principio Divino triumphou,


porque a luz da verdade é a luz da Providencia, e
nào ha obstáculo na força humana, que possa oc-
cultar a verdade sauta que calou na consciência
do povo como queijo do melhor fermento do cor-
deiro e do novilho.
A casa de Bragança venceu o que D. Duarte
apenas sonhava como possivel, e deixava entre-
gue ao tristíssimo evento das successOes para se
realisar no decurso de muitos séculos era um :

engano absoluto; o partido usurpador é como a


familia dos ílamengos e dos ciganos prova e —
reprova todas gerações e partos suppostos como
pOe e dispõe os seus monarchas pela ultima
arma do veneno e do punhal. D. João i por fim
da sua vida estava como o condestavel atormen-
tado pelos remorsos; esle deixou os bens usur-
pados aos outros aventureiros, e pediu esmola á
porta do convento com bastante industria e saga-
cidade ; aquelle seria morto na mesma possilga
em (|ue vivia, se tentasse restituir a coroa; por-
que a verdadeira estava na cabeça dos ambicio-
sos ministros da sua histórica realeza.
A lei do remorso é a mais imperiosa que se
conhece; ao pé da forca, no banco dos réos, no
58

nltimo transe de vida, ou no meio da mais funes-


ta desventura, chega a subjugar e a dominar, e
rompe como o furacão através dos maiores obs-
táculos, 6 derriba as torres, e arranca as arvores
com a sua tormenta e fracasso. D. João i fez uma
morreu;
confissão, e —
quem estrangulou o mo-
narcha? o processo começado das provas eviden-
tes de testemunhas oculares contra os partidários
de Bragança. Quem são estes em vista do opús-
culo do anonymo João das Regras? Já ia o algoz
para descarregar o ferro do cutelo sobre alguns
infelizes, que choravam os males da pátria, quan-
do chegou novo inlerdicto de Roma expedido em
virtude de uma queixa e de uma prevenção que
o rei já se via obrigado a dirigir ao cardinalicio
de Roma; onde dizia, que a sua consciência ver-
gava debaixo do peso de invencíveis remorsos,
mas que não podia entregar á casa de Bragança
uma coroa sem entregar a vida aos seus tyran-
nos e cruéis usurpadores, e algozes, e d'estes ti-

rava o seu seguro e pedia desaggravo e redem-


pção.
D. Duarte viu-se brevemente no mesmo apu-
ro; a lei mental era uma ficção e um
engano:
este documento prova que os usurpadores da
casa de Bragança não contam com successor, e
que são muito sujeitos á maldição da esterilida-
de. O que D. Duarte pedia para os falsos donala-
rios, usurpadores veio para a fa-
e verdadeiros
milia real em pena de aleive e da calumnia do
falso e feraenlido João das Regras: quasi Iodas
as sQccessões sáo actualmente da casa de Bra-
gança por bom e legitimo direito de familia; mas
a tyranuia e o roubo é o mesmo — o seu castigo
providencial vai sendo idêntico da mesma catas-
trophe e represália.
Esta é a analogia dos fados : os (jue escre-
Tem a historia não pintam a sua verdade ponjue
não são dignos de praticar as suas gentilezas nem
lem a virtude necessária para desmerecer a liv-
pocrisia do embuste, nem o horror das suas
IraicOes, nem o abominio e esconjuro da sua
Camões com-
aleivosa mordacidade e peçonfia.
mandou um reducto no cerco memorável de Diu,
Barros e Couto foram dos mais valentes soldados
da Ásia; e o nobre César das suas façanhas o
animo real do senhor D. AlTonso d\\lbu(iucrque
temia mais a calumnia da historia do que o feroz
basilisco do turco, que tomava pela frente como
crocodilo do Egypto. sem tombar ao impelo e
sem estremecer do vulcão.
Chegado a este ponto, já entregava a descri-
pção OQ a lenda doesta memorável cataslrophe
ao mais innocente mancebo e ao mais simples
60

académico, uma vez que fosse dotado de boa fé


e acreditasse na Divina Providencia, e desse a
esta philosophia o peso que os herejes attribuem
ao dinheiro de todos os seus commellimentos e
unicos recursos. Em regra, moeda vale tudo pe-
lo peso, e pouco ou nada pelo cunho, e pelo si-

gaal da sua boa fc; o hereje só admitte da fé e

do cunho o maior desprezo para fazer seu o pro-


veito, e para continuar o lucro da sua torpe ve-
niaga.
D. Joào IV também usurpou a casa de Bra-
gança e o nobre titulo de duque; todos sabem
com que falsidade e com que atroz engano e mais
que feroz e brutal ardil : teve da heresia o mesmo
fim e o mesmo trágico féretro: os dous primei-
ros usurpadores do mesmo nome escalaram os
seus Ihronos pelos mesmos meios e falsos de-
graus, no fim a mesma ruina, na vida a cxcom-
inunhão e o interdicto, na morte a corda e a
traição, o mesmo desenlace, e a mesma reprovação
e condemnaçào divina. O conde da Ericeira escre-
veu n'esta era a sua vergonhosa historia ; o con-
de era verdadeiro sandeu; o authorde «^Portugal
Restaurado» recebeu a falsa herança de uma casa
e trabalhoso no appetite fazendo do conde o fundo
da sua ambiç.âo pelo veneno que propinava, e pela
astúcia mais que ^diabólica de que se servia no
61

empenho. Apenas concluiu o seu trabalho, dis-


se: Dji-meo premio; —e apenas se viu senhor do
falso titulo e casa, disse: Dai-me o prero da
obra;~e fez doesta oulra historia um thesouro
para se enriquecer e empavesar de fidalgo: este
era o verdadeiro João das Regras; porque a sua
original possilga nunca se descobriu nemannun-
ciou, e dizia-seque linha nascido aquelle orácu-
lo da historia ao pé da feira da Ladra de uma

mulher, que vendia a chanfana do açougue pelas


portas de Lisboa, e que apregoava pelas ruas
maior engano.
Dizia alguém que o grande erro de D. João
IV fora o acciamar-se duque de Bragança: mas
que faria o usurpador depois de malar como
malou á traição em Lisboa o legitimo succes-
sor de Dragança e do ihrono? quem havia de
sustentar a sua lyrannia, quem ousaria contem-
plar em freme sem desmaiar e sem horror o
monstro de lautas vidas, que bebia o sangue hu-
mano, e se recreava com o vil offijio de algoz e
de executor da nobreza? D. Jo3a i principiou a
considerar como próprios da coroa todos os bens
da casa real de Dragança; D. Joi5o dispunha co-
mo duque e como senhor de todos os bens para
imilar ou produzir a realeza e invicta memoria
do senhor D. Manoel i. Esta questáo linha sido
62

tratada e muito debatida ua primeira época; to-


dos se acostumaram a considerar a usurpação
da casa e dos seus bens como prova herética
de infrene e perversa oligarchia, e D. João pro-
fessou o erro em Inglaterra, no seu pa-
e tinha
lácio um ministro de Calvino semelhante ao que
foi expulso das Necessidades em nossos dias pelo
clamor do povo e pela justa queixa da parte sen-
sata 6 calholica do reino. Todos os herejes são
monarchomacos, o seu rei é de taberna, o seu
preito o juramento da loja que o falso rei presta
ao venerável, e se o rei tem o falso cargo jura
como rei ao immediato sujeição e obediência ás
decisões maçónicas, e como são muitas as lojas,
a cada passo se vê partida ou fraccionada a rea-
leza, ou despedaçada a sua monarchia pelas sei-
tas mais fortes ou mais ousadas, que empolgam

o vislumbre do poder.
Entre nós só tem havido um partido legitimo
que é o calholico e briganiino de todas as eras;
só um partido usurpador e constante, que é o
dos bens da casa que desfruta pela via directa e
occupa pelo mais feroz engano. As seitas e os
corrilhos, que se formam das fezes de todos os
partidos estrangeiros e execráveis contam coma
elemento uma vez que o lisonjeie e afoute para
maior roubo e façanha da contribuição c da in-
63

juria qne se haja de fazer á casa de Bragança, e


com estas promessas todos sobem, e todos des-
cem, se as frustram ou illudem. Este facto é o
que nos resta a provar para complemento da ca-
lastrophe e para sua prova real e exuberante.
Quando D. AíTonso vi se sentiu desprezado
por todos os portuguezes recorreu aos estrangei-
ros, e sabe-se,que trazia comsigo alguns valen-
tões,que o defendiam e faziam respeitar era Lis-
boa, e nâo podia ser esta força angariada contra
o povo, mas antes devemos acreditar, que o rei
se fazia forte contra o partido dos usurpadores da
casa de Bragança a cuja frente estava a rainha
viuva; e por isso teve a regente tanta difticuldade
em conceder as rédeas do governo ao presumido
successor. Este conílicto nasceu e cresceu da
mesma antiga causa de todas as discórdias da
usurpação, e pelo motivo da injuria que tinham
feito á casa de Bragança e ao seu popular e he-
róico senhorio. D'esla vez o governo pontificio
ainda náo estava resolvido a ceder; não faria a
menor concessão de reconhecimento sem a ab-
soluta e total entrega dos bens de Bragança ou
dos bens da coroa, e D. AíTonso eslava resolvido
a lodos os sacrilicios, uma vez que achasse uma
collocaçâo era Uoma e um modo de viver ou uma
absolvição vantajosa para o seu arrumo e fim.
64

Esta deve ser a ambição do usurpador que nas-


ce ; o seu throno não otTerece encantos, nem
pôde servir de balisa para a gloria verdadeira e
santa que se embebe na felicidade do povo e no
heroísmo e façanha.
K'esle estado, privado do seu natural apoio, D.
Affonso VI ainda que fosse tão corajoso e tão ab-
soluto como foi o quinto do nome, devia fugir ou
sahir do reino para não soíTrer a perda da liber-
dade; tentou o impossível, e quebrou pela reco-
nhecida prevaricação e má fé da nova e falsa ca-
sa de Dragança, que seu pai organisou em Lis-
boa como partido protestante para sustentar a
negra e atroz usurpação: estes factos são inne-
gaveis. O Joannes à j^egulis da primeira usurpa-
ção era um hereje estrangeiro semelhante a um
Dilzi, e talvez ministro da seita: D. João iv tinha
na sua corte um ministro protestante da convenção
de Cromwell, e todos os usurpadores dos bens
da casa de Bragança deviam ser da mesma seita
e falso cunho: D. AlTonso vi abraçava a doutrina
catholica, e, consoante os bons principias de direi-
to, devia perder o titulo de rei; e, se em vez de

casar em França, fosse ao reino ceder da coroa,


lisonjearia o reino calholico, e podia obter a li-
berdade, que outro AlTonso achou no mesmo
reino. D. AlTonso conservou a corua e por esta
65

razão o povo porlaguez n3o podia ingerir-se na


questão para defender o preso; D. Pedro, seu
irraâo, era nimiamente cruel, mas não temia o
partido de seu irmão, porque não o tinha: D.
Pedro lambem não tinha o partido da narão, e
por isso aíTectava grande humanidade para com
seu irmão, e grande respeito pelas cortes, que
sempre o repelliram e despeitaram amargamente.
D. Pedro, depois do celebre processo que fez
ao irmão para o privar de lodos os seus estados
até o dar por demente e por impotente, aceitou
a mesma mulher, a celebre Sdboya, e como esta
linha o tratamento de rainha, D. Pedro julgou
que o mesmo ihrono o fazia successor do titulo
de rei; e parecia lógico que a deposição perpetua
de AlTonso o investisse na aulhoridade real, e o
coroasse rei em vez de regente; o titulo de prin-
cipe não lhe podia competir, nem o de infante,
que pouco tempo depois começaram a usar por
inaudita usurpação e roubo, e pelo mais atroz
anachronismo os filhos segundos doesta família
de D. João iv.

Dizem geralmente as suas historias que sen-


do duque de Bragança D. João iv e senhor da
casa, instituirá a do infantado a favor de seu fi-

lho segundo para prevenir a falta de successor


pelo receio da morte do príncipe, e uma supposi-
66

çâo e um embuste indigno, ou um meio de que


se servia a alroz calamnia da usurpação dos bens
para tirar a D. AíTonso vi o que lhe tinha ficado
da casa de Bragança e para os dar ao seu predi-
lecto: e por esta razão veio a D. Affonso o desejo
de restituir, e occorreu á facção o pensamento
de depor o insensato. Assim manejou a pérfida
intriga os seus aleives e falsidades e da mesma
maneira em todas as eras procura colher e al-
cançar o seu único fim que ó o roubo pela per-
engano e enredo.
tinaz heresia e pelo mais alroz
D. Pedro usou immediatamenle do titulo de
rei, mas o povo sempre lhe negou o tratamento;

as nações não cessavam de o responsabilisar pe-


la vida do infeliz e proscripto; e já se julgava
que fazia guardar como rei um homem estra-
nho, quando o deixou sahir de propósito em Cin-
tra c o fez prender e reconhecer pelo povo como

verdadeiro D. Affonso vi no meio do tumulto dos


seus agentes e confidentes, que fizeram grande
alarido d'aquella supposta revolução para decla-
rar novamente como doudo o triste que se dei-
xou cahir no laço. D. Pedro a cada passo reunia
as cortes do reino sempre na esperança de que o
reconhecessem rei, mas jamais o conseguiu pela
grande desaíTeição e justo ódio que tinha mereci-
do e grangeado.
67

A casa do infantado foi uma falsidade doeste


pGrlido; mais tarde se assenhorearam da falsi-
dade para tomar posse nas provincias de todos
os bens de Bragança e de S. Bruno, e para os
desfrutar e gozar por almoxarifes que nomea-
vam do infante. A casa do infantado mandava
para as terras jaizes, e assalariava por todo o
género de engano os cobradores da falsa e alei-
vosa renda, e por esta forma constituiu as suas
instituições e morgados: o povo reagia contra a
usurpação, mas o rei e o governo, o infante e os
seus almoxarifes conspiravam, e apesar do ódio
do povo que não podia ser mais justo nem mais
bem merecido colhiam e recolhiam do roubo
grandes interesses e mortificavam o povo com
exacções de cruel engano e tyrannia, que desvir-
tuavam do seu íim primordial e applicavam para
outro de maior escândalo e torpeza.
O núncio de Roma ordem de visitar a
teve
D. AlTonso VI, que cumpriu, mas jamais foi ad-
miitido a vér o verdadeiro, e por esta razão ficou
a figurar por alguns annos como prisioneiro o
que já era cadáver; a sua mudança para a ilha
V uma chimera, as suas cartas para llespanha
ílcam abaixo de toda a critica D. AíTonso vi não
:

era admittido a escrever; o mesmo governo de


D. Pedro fingiu ou suppôz as cartas para dar ao
68

preso a laia de hespanhol e não o quiz dar por


brigantino; porque d'es(e partido se temiam mui-
to; e porque o seu fim era desacreditar e dar
como vivo e como existente o homem que dor-
mia debaixo da lousa o somno do sepulchro.
Com eíTeilo, pouco depois d'esta falsidade, D.
AíTonso foi dado por morto na ilha para que nin-
guém o visse nem examinasse, e appareceu D.
Pedro em cortes a pedir o seu tratamento real.
As cortes disseram que tomasse o titulo e o tra-
tamento de seu pai, isto r, que fosse usurpador
hereje, e injusto possuidor dos bens de Bragança
e de S. Bruno, e com isto se houve por acclama-
do 6 por installado na sua falsa e apocrypha rea-
leza.
Veio então a questão romana do reconheci-
mento. A cúria cedia em quanto aos bispos, depois
de não haver nenhum no reino pelo grande alari-
do do povo, uma vez que os nomeados tivessem
a apresentação real de Bragança. O governo pas-
sou pelas forcas caudinas, e deu então o ultimo
testemunho e prova de sua torpe e nefanda am-
bição. O rei ficou de mero fado, epóde dizer-se
que o escravo d'alheias vontades vegetava na mais
sórdida taberna, ou no ergástulo do scucaptivei-
ro, ou na mais indómita fera; por
fétida jaula da
que estes reis sempre andaram presos, e a quo
CO

chamam casa de Bragança de Lisboa governa o


seu estado, como o domador ensina e conduz o
seu ganha-pão pelo mundo dos seus especlaculos.
Havemos de julgar que a familia não c livre, e
que desde o seu nascimento cada individuo é
obrigado a beber o veneno da maior heresia e
torpeza para ficar doudo e bem sujeito á von-
tade imperiosa ou caprichosa dos seus verdadei-
ros senhores e tyrannos.
Nào admira que sempre estran-
estes sejam
geiros e revesados de origem ou de má procedên-
cia e de abstrusa memoria por ahi pretendem al-
;

guns que a lingua do paço seja a franceza, outros


que seja a ingleza; em tempo pretenderam fallar
a italiana, jamais admittiram a portugueza verná-
cula, nem suscitaram as questões da corte d"al-
dc^a; nem deram ao povo fiel o ingresso e a in-
íluencia, que lhe cabe nas questOesdo estado pa-
ra nào ouvir verdades amargas, e a sincera quei-
xa de tanta tyrannia e de táo inauditas usurpa-
ções 6 falsidades, e de tão grande subserviência
aos estrangeiros e a todos os inimigos da nossa fé
e da nossa gloria e renome.
João das Regras, nome verdadeiro ou suppos-
to,nào era mais do que um fementido estrangeiro,
as suas doutrinas não se ensinavam, nem cor-
riam entre nós; os seus dogmas próprios da mais
niBLlOTMKCA N.' 5. O
70

abjecta demagogia podiam apenas applicar-se ao


império dos Tiberios e dos Caligulas, dos Neros e
dos Heliogabalos; as nossas cortes de Lamego
ficavam semelhantes á lei regia d'Âugusto e o
santo corpo de D. AÍTonso Henriques seria como
os Tusculanos de Cicero e de sua Republica, só
para a posteridade; e estaria em algum recôndito
n'aquelle tempo de D. João i para se revelar e
apparecer somente nos séculos seguintes, e no
grandioso, monumental e eterno d'el-rei o snr.
D. Manoel. É justo confessar que estas falsida-
des causam tédio e nojo. D. João iv usava do ti-

tulo de Rei e do tratamento de magestade, sem


lhe competir e por heresia de infame e vil pro-
testante. Agora dizem os apologistas da mesma
seita que Portugal sempre foi protestante; mas
não dizem como se retractou a viuva, nem diz
como precisou a ignóbil memoria de D. João iv
de ser absolvida como contrita á hora da morte
para ter sepultura de corpo.
Como hereje deu em receber o titulo de ma-
gestade á imitação de Cromwel cuja seita seguia:
entre os catholicos sempre se entendeu e teve
por boa e por firme doutrina, que só o summo
pontífice é senhor de conceder o titulo ao mais
puro e santo monarcha legitimo. Antigamente se
reservava esta rosa d'ouro só para um rei ou im-
71

perador qne acontecia ser o que confirmava a


eleição real, se ainda não tinham o titulo; e ja-
mais o pretenderam nem aceitaram os reis de
Hespanha e de Portugal por terem o mais nobre
de catholicos e o mais santo e hnmilde de alteza
e como vigários do Senhor. Na Hespanha não ha-
via herejes nem raças impuras que não estives-

sem separadas e bem extremadas para n3o ei-


var as familias, nem causaro escândalo de philis-
leus, e de immundos entre bons catholicos e fieis.

Durante usurpação sempre procuraram os he-


a
rejes tomar lugar e assento, e á medida que fu-
gia a fé da sua pureza invadiam as raças, e vinha
o arménio e o judeu, o cigano e o protestante in-
vadir as rendas e fazer monopólio das reaes pa-
ra cultivar as massas e para dar pasto á luxuria
dos maiores desvarios e ameaças. E seria só pe-
la necessidade de fazer proseh los, e instrumen-
tos de tyrannia? E' certo que u império de ne-
cessidade compelle ale os tvrannos, mas o prin-
cipio de desmoralisação é um systema, que os
actuaes herdaram dos seus antecessores, e que
estes tinham recebido de outros, e de muilassuc-
cessOes estrangeiras, que o demónio communi-
ca a todos da mesma fonte e pensamento do des-
prezo da santa lei e íé.
Oulra sanha doeste abominável systema foi
72

O Ímpio tratado de Methuen cujos artigos secre-


tos são da infame propaganda protestante que in-
vadiu o reino por consentimento do falso e pér-
fido governo, e se obrigava este com todos os
usurpadores dos bens da santa casa de Bragança
a seguir o falso preito, e a prestar homenagem
secreta aodemónio e ao mais infame ministro de
Calvino, que, segundo dizem, era monarchico,
assim como Lulhero era republico, e sopliislico
orador de comicios; e já os protestantes se divi-
diam n'este ponto essencial do governo: mas os
seus superiores e chefes sempre estavam accor-
des no ponto principal da injuria que haviam de
fazer ao Senhor verdadeiro e ao seu santo vigá-
rio, no ódio á santa casa da Java por causa
e
dos bens e da fé. D. João i fez com Inglaterra o
primeiro convénio secreto, mas era só de pirata-
ria ede heresia, cujos vicios já minavam os ihro-
nos de Ilollanda o da França, da Bretanha e de
Londres, como é sabido e se estendia por meio
de ramificações secretas por toda a Europa, e
bebia as falsas idóas da santa acclamação de D.
João I. Esta seita ou partido foi inaugurado pe-
lo mesmo demónio no tempo em que Juliano se
fez Iruâo e ridículo para depor o papa de sua so-
berana cadeira e para o entregar, como então se
dizia ao mais desvanecido príncipe que havia de
73

surgir para governar o mundo e para resuscilar


os immortaes.
Estes abomináveis e impios reformadores do
mundo começavam as suas iniciações por um
symbolo do demónio, e davam á sua falsa f»j o
caracter verdadeiro de diabólica, e alcunhavam de
divina, de lyrannica, e protestavam fazer irium-
phar o inferno, e pelos seus meios da maior as-
túcia progrediam e illudiam sempre até o grau
de maior engano, a este como simples mação,
áquelle como aprendiz, a outro como mestre, e
aos mais adiantados como convivas do mesmo de-
mónio; e nâo sal)ia o menor os maiores segredos
dos outros graus, em quanto não obtinha os ver-
dadeiros da maior abominação de seu secreto es-
conjuro.
Em nossos dias os mesmos factos ostensivos,
e a mesma historia secreta revela todos os arca-
nos, e explica, o que parece inexplicável, de
atroz calumnia, e de sarcástico pensamento. A
morte do ambicioso meteoro, que nasce sem o
prestigio da duração, e ^\\levem ao mundo
para a conquistar dos que sú podem com-
municar a falsa morre asphyxiado fo-
e pérfida,
ra do seu elemento; porque as claridades da sua
existência não o habilitavam para conviver no
espaço dos ares com os astros opacos da sua na-
74

tureza, epor mais depressa pa-


isso o precipitam
ra que conheça o que é e o que pôde valer como
energúmeno. Alguém julga que o meteoro pôde
fazer-se cometa, e que o cometa pode vir a ser
planeta ou eslrella sem que o Senhor o faça; o
atroz engano de falsa ascensão precipita mais ce-
do este rústico presagio. Agora já dão ao timido
o nome vil do seu catholico reinado e se lhe põe
o nome de mechas, ou de põe 7nais ,

mais adiante o fazem José do nabo, e o compeilem


a tomar novo Ditzy, ou a subir os degraus da
forcasem levantar o espectáculo do cadafalso: os
inimigos são sempre os mesmos e da mesma sor-
te unidos pela tyrannia do crime e pelo estupor
das suas façanhas. Se agora diverge o maior atten-
tado sempre triumpha e atrella ao carro de seu
triumpho todos os seus sectários, e escravos;
mal dos que não comprehendem a necessidade
de obedecer cegamente ao mais audaz partido e
ao homem mais facinoroso. O sophisma é a
apparencia da virtude; os que queimara no in-
ferno o incenso podre ao demónio, são despoja-
dos da própria pelle, e victimas da nova cruelda-
de dos monstros.
Alguém julgaria que Simão comprava de boa
fé a S. Pedro o poder dos milagres: c um en-
gano. O infame só aspirava a enganar o padre
75

saoto, se a sua tentação ioclinasse a S. Pedro pa-


ra a torpe veada, o demónio que fallava pela boc-
ca do maldito teria conseguido o seu fim, ria do
desventurado e cantava a sua victoria. Por esta
razào S. Pedro condemnou o tentador com o tri-
plice poder do seu divino amor e pareceu severo,
mas foisomente justo, porque Simão, o demónio
apparenle e ostensivo, já era escravo de outro
mais negro e atroz, que persegue toda a huma-
nidade para a sua ruina e perdição.
A calastrophe de AíTonso termina com a in-
juria que Simão fez a Pedro. Quantos deslisaram
da escola santa sem a comprehensão dos meios
divinos e sem o alcance dos fins do sublime cul-
to, e se embrenharam na mais damnada chorôa

da usurpação que se fez ao Senhor Esses hão !

de ter n*esle mundo e no outro a mesma sorte —


a catastrophe — e o mesmo êxito e cruel engano.
76

3E=iE:]NrA.isr

o snr. António Augusto Teixeira deVascon-


cellos tratou com exemplar juizo e prudência a
questão da academia real das sciencias e Ernesto
Renan. Estas linhas do Jornal da yoile compen-
diam todos os argumentos do esclarecido publi-
cista Merecem respeito as convicções. Mas a cons-
:

ciência dos outros é tão d'elles como a nossa, igual-


mente Uvre, de todo o ponto respeitarei.
E' aquillo que dizia eloquentemente Vieira de
Castro, no opúsculo da Republica: nós, que de to-
lerantes nos desvanecemos, somos intolerantissimos
como frades.
O menospreço d'este cânon de liberdade sem
rebuço nem condições explica as diatribes desfe-
chadas contra os académicos adversos á ad-
seis
missão do author da Vida de Jesus. Os adaís da
liberdade forjam golilhas de phrases para o alve-
drio dos que votaram segundo sua consciência.
Offendem e injuriam.
O author do romance intitulado Vida de Jesus
é malquisto dos seis académicos que se dispensa-
ram da sua camaradagem litteraria. Fruiram o
indisputável foro da sua consciência, rejeitan-
do-o, como romancista indiscreto que enreda as
77

suas novellas com o sacralissimo nome de Jesus


Christo. Se Renan escreveu sobre línguas orien-
taes um livro mui dilecto do snr. Soromenho,
também orientalista, isso não é motivo bastante
a que as almas profundamente christãs se devo-
tem á apotlieose do depreciador de Jesus, descon-
tando-lhe as falsificações históricas do romance
nos descobrimentos linguisticos que fez acerca do
syriaco e do chaldeu.
Por outro lado, os académicos vencidos na vo-
tação e revelados no ulterior protesto, merecem
igual inviolabilidade na sua consciência, mormen-
te quando, á imitação do snr. António Augusto
Teixeira de Vasconcellos, declaram que estremam
entre o author da Vida de Jesus, e o aulhor da
Historia geral das linguas semilas.
Temos em conta de venerável e honroso o
proceder dos académicos que afastaram do seu
convívio o escriptor que atirou um livro corrosivo

ao coração ulcerado da Europa como quem arro-


ja petróleo ás linguas de um incêndio. A França
lá sabe o que deve aos discípulos de Salvador e
de Strauss, e nomeadamente a Renan, o compi-
lador de Uevílle, de Heuss, de Schi-rer e Colaní.
Se alguns homens illustrados pela experiência e
receosos das fatalidades congéneres de certos li-

vros, reprovaram que Renan recebesse publica-


78

mente em Portugal a consideração que o snr. So-


romenho lhe faculta por sympalhicas afflnidades
phoneticas, o que temos a recear d'ahi é o espe-
ctáculo das vaias e satyras com que alguns escri-
ptores estão provando que entre nós é mais ur-
gente um compendio de civilidade que a convi-
vência académica do sabedor de linguas do
Oriente.

Gor;.i=cE:Gç:ÔE;íS
Convém fazer algumas ao artigo O Decepado
(n.o 4, pag. 71). Ministrou-m'as o snr. J. F. Tor-
res; e eu, trasladando-as, ajunto á gratidão o con-
tentamento de encontrar quem ainda se entretém
com cousas remotas e alheias das novissitnas
tão
charadas, das capilações, do don-juanismo e dos
bancos.
Transcrevo a carta do cavalheiro, que não te-

nho o prazer de conhecer; e, se não ilUdo as pa-


lavras que encarecem os meus estudos, é porque
o appelUdo que a subscreve ainda não exercita
alçada litteraria que levante turbilhões de glorio-
sa poeira á volta do meu carro triumphal. Eis a
carta do snr. J. F. Torres:

f Deliciei-me com a leitura das verídicas noti-


cias históricas do meu conterraueo Duarte d'Al-
meida, o Decepado. Ora, v. incansável em revolver
e pesquizar tudo quanto possa esclarecel-o em
t3o gloriosa e árdua tarefa, não levará a mal, e
relevará a um ignorante o arrojo de lembrar a v.

umas insignificantes correcções, que em nada al-


teram a verdade do facto, nem desdizem do emi-
nente grau litterario de seu aullior.
tNão existe (se é que existiu) casa nenhuma
acastellada no lugar de Villarigas (hoje por cor-
rupção Vilharigues) no concelho de Vouzella '

mas sim um ou cubello qaadrado e mui-


castello
to alto, era parle mandado demolir pelo íallecido

procurador da casa Penalva, Martinho do Ba-


nho, para com a pedra mandar fazer escadas e
outras toscas obras que conduzem á capellinha
de Santo Amaro, pertenças da mesma casa Pe-
nalva. Existe outro igual monumento no lugar
de Bandavizes, freguezia de Falaunços.
c casa dacavallaria sita na villa de Vouzella,
e que em tempo devia ter sido uma vivenda os-

I Existia DO Mculo XTii, segundo in'o aífirma um escripto


nobiliário de teatemuaba coeva e ocuUr.
so

tentosa, como se vê do que ainda hoje existe?


pertence actualmente por emprazamento a João
Corrêa d'Oliveira.
<iA capella da casa é hoje adega, palheiro ou
cousa semelhante; e nada alli existe que faça
lembrado o nosso celeberrimo S. fr. Gil \ lia
porém na villa uma elegante capella do santo,
onde se celebra missa todas as segundas feiras; e
onde se conserva a pia em que se baptisou o san-
to; e bem assim o queixo inferior do mesmo, re-
líquia muito venerada pelos habitantes da villa.

O corpo, como v. sabe, jaz enterrado em S. Fran-


cisco de Santarém.»

Outra correcção a respeito do prestidigitador


Herrmann, mencionado como fallecido, ha dous
ânuos, no artigo intitulado : A exc,^^^ madrasta
d'el-rei D. Luiz I calumniada.
O snr. Comparse Herrmann está vivo em
Vienna d'Austria, e é banqueiro opulento. Quan-
do se retirou rico do theairo, declarou elle aos
seus admiradores que morrera na rampa e ia re-

suscitar na burra, a mais eloquente de quantas


conversaram com o género humanai depois da
outra biblica.

t Em 1780 ainda se via n'esta casa a capella, no local


onde oaEcera S. fr. Gil.
81

João de Deus, o excellente poeta, cantava


d'esl'arte, ha 15 annos, em Coimbra o dadivoso
prestigiador:

Herrmann ! Herrmann ! eftpantas-me ! Não scismo


Nos da milagrosa i'ara
proctifjios
Que o Senhor Deus te deu :
Teu corarão, Moysés do christianismo,
Tua alma é que eu admiro, e te invejara,
Se o que é teu fosse teu.

Tanto era que era d'elle que está ban-


d*elle o

queiro; e João de Deus, que tem o condão pro-


digioso de abrir fontes de lagrimas, e não inve-
java a varinha que tirava de uma manga da casa-
ca trezentas jardas de fila, ainda não é banquei-
ro, segundo me consta.
Pois também Herrmann era poeta, e, se é li-
cito acredital-o, tinha talento. Elle o disst.^ aos aca-
démicos n'estas quadras ({ue, entre outras, sobre-
vivem ao prestigiador, na pag. 205 do tom. viu
do Ins titulo

I.e crrur est ulcért^ quand pour prix d'un hienfait


()n s'apperroU alora des ingrata qu'on a fait.
Et pourtant choque jour jadresse à 1'Etemel
l.'ne promcs32 aainte, dans un vceii solennel!
82

Si, par lai, mon talent me donne la richesse,


Tai ma mi9sion aussi, soulager la détresse,
Gráce à vous, tout s'eclaire, un instam a suffl,
Pour ramener enfln le calme en mon csprit.

N'este poema queixava-se o gentil allemão


das suas illusòes perdidas, da sua inflnda triste-
za, e das angustias de coração com que entrara
n'aquelle recinto da charmajile jeunesse, Queixa-
va-se outro sim, de ingratidões que lhe ulcera-
vam um
romance de amores come-
o peito. Era
çado no Porto, romance que bifurcou em dous
fios de ouro : um foi prender-se á orla de um
throno não sei aonde, outro á carteira de uma
casa bancaria em Vienna d'Austria. Brilhantes
desenlaces!
E foram os rapazes de Coimbra — aquelles vi-

ventissimos rapazes de 1859, Corvo, Vieira de


Castro, João de Deus, Northon, Victorino da
Motta, e dezenas de galhardos espíritos que lhe
degelaram as frialdades do coração retranzido.
Gloire à vous! exclamava Ilerrmann.
83

MAU EXEMPLO DE POETAS CASADO!

... Une femme prudente y doit rcgar-


der à deux fois arant d'épouscr un poete!
J. Janin, Lc livre.

Se O fino amor nâo é condão dos poetas, é es-


cusado esgaravalar essa rara pérola era outra
concha. O amor duradouro (• iucorapalivel com a
creatura sujeita á decomposição e á morte. As
recomposições interiores si3o incessantes, até ao
momento em que o espirito vital se evola, e a po-
dridão começa.
As reformações da alma operam-se mais de
afogadilho que as do corpo. Envelhecera al-
mas em corpos novos. Muita gente sente o grava-
me e a melancolia da idade de annosferro nos
dourados. Ha lambem Almas
o reverso d'isto.
floridas em corpos devastados. Os primeiros tem
aurrola de poesia lúgubre. Os segundos s3o las-
timáveis quando, em honra de suas c3s, arran-
cam um a um os renovos da alma, ou os v3o de-
84

lindo com secretas lagrimas; e são irrisórios,


quando aviltam a magestade da velhice, daudo
resplendor á calva com um nimbo de namorados.
Foi d'esta espécie D. Thomaz de Noronha,
cognominado, no século xvii, Marcial porluguez.
Amou numerosas primas, e casou com uma, de
quem ficou viuvo. Deus sabe como o coração de
sua esposa Helena de Salazar foi anavalhado de
ciúmes para a cova! O pérfido, em quanto se an-
dava pela corte diluindo em trovas a fé conjugal,
deixava era Alemquer a consorte, cuidando dos
trigaes e dosparrécos.
Casou em segundas núpcias com D. Calliari-
na da Veiga, tanto ou mais desafortunada que a
primeira. Pensava ella, porém, que o marido,
ahi pelos ciacoenta, ganharia juizo, e se faria se-
rio, acolhendo-se ao santuário da familia com a
lyra e com o rheumatisrao.
Enganára-se D. Catharina, a infausta esposa,
que, por lhe agradar, se bezuntava de posturas,
e arrebicava de inúteis artificies. Santa senhora
O dissoluto não só a Irahia, senão que a zom-
beteava em verso, depois de a ter mofado na pro-
sa caseira— a prosa de marido enfastiado, que é
o vasconso mais bárbaro da glottica humana.
Aqui está um dos cantares com que o sobre-
dito Marcial desprimorosamente chasqueava as
86

caricias, os vernizes, as tranças reliutas, os algo-


dões que lhe acolchoavam o seio, e arqueavam
as ancas da esposa, em fim, tudo aquillo que a
paixão engenhosa inventara, á custa de iuexpri-
niiveis magoas e dolorosos retrocessos nos vesli-
E observem que o cruel
gios da belleza perdida.
a denomina Snra, equiparando-a á velha da Bí-
blia. Lôde, senhoras, que hospedaes poetas no

coração:

Escuta, ó Sara ! Pois te falta espelho


para vèr tttas faltas^
não quero que te falte meu consellio
em presumjx^õei tão altas.

Lembre-tc agora só que é$ terra e lodo


e terra tehas-ile vér do mesmo modo;
mas não te digo ntm te lembro nada
porque ha muito que em terra estás tornada.

Que importa que, algtuna hora, a prata pura


de tuas mãos nascesse,
e que de teus calcUos a espessura
as minas de ouro desse

Se o tempo ..,
. j.j tudo troca e muda,
somente do ouro poz, por mais ajttda,
em tuas mãos de prata o a
e a pi ata de tuas viõua o;; 7o/
SC um tempo, foram de marfim brrunido,
no século dourado,
não vés que o tempo as tem já conêumidOf
não vés que as tem gastado?
BIBUOTHECA N.* 5. 6
86

Deixa, Sara, deixa esses vãos enredos


que eu, quando toco teus nodosos dedos,
me parece que apalpo, e não me engano,
cinco cordões de frade franciscano.
Viciaiido a natureza com taes tintas,
com pincéis delicados,
jasynins e i'Osas em teu rosto pintas.
Deixa esses vãos cuidados
jyois quando tua cara me alvorota,
mascara me parece de chacota;
e, se é das tintas, digo n'este passo
que a mascara está inda em calhamaço.

Como pretendes, pois, com mil enganos,


vestir mil primaveras
sem, ter a prityiavera de teus annos!
Como não desesperas!
que o tempo chegou já ao seu estio,
aonde toda a fruta perde o brio;
parecendo tua cara desmedrada
fruta que se seccou, noz arrugada.

Se feitura de Deus Eva não fora,


dissera, sem porfias,
que de Eva foste mãi, velha senhora,
pois te sobejam dias
para esta presumpção que agora tenho
e, concluindo em fim, a alcançar venho,

pois alcançar não posso tua idade,


que deves ser a mãi da Eternidade.

Teus olhos, por descargo da consciência


a idade os tem mettidos
em duas lapas, fazendo penitencia
e estão tão escondidos,
87

qit^,quando OS VOU bu^car porque me choram,


não acerto co' beco aonde moram
porque o tempo os mudou, seu passo a passo,
da flor do rosto lá para o cacharo •.

Em fim, senhora, se te vejo cm osso.


com essa cara posta em tal pescoço,
me parece, tirada a cabelleira,
em cima de um bordãu uma caveira.

Sabe que sei, e d'isto me não gabo,


que te alugou sem duvida o diabo,
invejando teu corpo, cara e dedos
para a Sctnto Antão fazer maiores medos -.

E deixa, em fim, tuntn vão cuidado;


e ao sagrado te acolhe
primeiro que te ponham em sagrado.
Este conselho colhe

t Segue uma estrophe cuja nudeza, posto que n-^o enver-


gonhe o realismo hodierno, nos pareceu propriedade dos livros
escriptos para humcixs, cuja deshuDe-ttiddde os authores lidoo-
jeam com as dedicatórias dos seus romances.
' Metter medo aos medos de Santo Antão, era adagio
do tempo, que teve a seguinte origem: No terceiro domingo
de igosto de 1577 sahiu uma procÍMáo da antiga parochia de
S. Juliáo. Entre varias figuraa e carros triumphae^ ia um ho-
mem representando Santo Antáo no deserto, e á voltA d'elle
vários demónio* com feitio de moo^s o aterravam com care-
tas e tregeitos medonhos.
88

admitte o que te digo sem desgosto;


que eu, quando vejo teu funesto rosto,
delle tambein o seu conselho tomo,
pois cuido que me diz: Memento, homo!

Esta poesia ou outra peor tesourou os liga-


mentos da vida de D. Catliarina, abrindo-llie as
portas do paraiso. Elle, o viuvo consolavel e im-
penitente, por aqui ficou até aos oitenta ou mais,
deshonrando a idade provecta com poemas sór-
didos, e taes que os prelos não os despejaram á
circulação dos enxurros. Sem embargo, Jacintho
Cordeiro, no Elogio de poetas lusita}ios, coucei-
tua n'esta altura o descaroado marido:

D. Thomaz de Xoronha em tanto aujmento


Confirma de sus versos la escellcncia
Que admirando sutil su enlendimiento
Pucde hazerle a Quevedo conpetencia:
Alma de tan ayroso movimiento,
Luz parece de sol de su presencia
Y sol a cuya luz crecen desminjos,
Aguila no soy yo de tantos rai/os...

Que te fulminem, Jacintho ! — diria um leitor

circumspecto.
Achou-lhe airoso movimento na alma, assim
como nós, os filhos d'est6 século cortez e cava-
Iheiroso, lhe acharíamos na arca do peito as ver-
tigens ébria? d'um trovisla de tasca.
89

A poesia, qae um sorriso meigo de mulher


agradeceu, logrou a soa nobre missão: divinisou-
se. Essa outra cousa, que se chama poesia, por-
que metrifica a injuria ou o chasco vil á mulher,
é a hyJrophobia do talento, é enfermidade re-
pugnante.

A CASA DE BRAGAXÇ4. 'AB OVO

D. Gonçalo Pereira, Irigesimo-quarlo arcebis-


po de Braga, quando estudava as santas theolo-
gias em Salamanca, achou compativel a sciencia
de Deus com as curiosidades philogiuias, grega-
mente fali ando.
D'esta compatibilidade, em que foi parte in-
tegrante e constituinte, chimicamente fallando. D.
Thereza Peres Villarinho, resultou nascer um me-
nino robusto, como os recem-nascidos do high-
life, o qual se chamou Anloninho.
Este D. António Gonçalves Pereira ordenou-
se, foi prior do Crato, e pai de 3-2 filhos, compa-
tíveis com o priorado. Uma das mães d>sterapa-
zio todo chamou-se Evria de Carvalhal, e das
90

predestinadas entranhas d'esta menina apojou D.


Nuno Alvares Pereira, pai da primeira duqueza
de Bragança, casada como bastardo de D. João i.

D'esta estirpe, bastantemente gafa de couto-


damnado e bastardias, nos veio a redempcão eno
16Í0.
Bemdilos e louvados sejam aquelles padres
arcebispos e priores! Se elles fossem castos ou
infecundos, não teriamos Braganças, e gemeria-
mos ainda boje captivos de Ilespanha.
O arcebispo dcscança ha 526 annos, era uma
capella contigua á poria travessa da se de Braga.
La lhe vi, um d'esles dias, a figura esculpida no
mausoléo. Portuguez de lei era aquelle padre,
posto que se apaixonasse por hespanholas. O co-
ração não tem ubi. O escolar de Salamanca lera
talvez o philosopho grego que dissera serem to-
das as mulheres uma. Se a natureza as não dis-
criminara, como estremal-as por fronteiras?
Mas tão portuguez era que articulou em seu
testamento que, se um dia a mitra primacial cin-
gisse a fronte de prelado castelhano, fosse arra-
zada sobre suas cinzas a capella em que ia es-
perar o clangor da trombeta f

Ainda não vi impressa a noticia do desastre


extraordinário que motivou a morte de D. Gon-
çalo. Nem D. Rodrigo da Cunha nem o padre José
91

Corroa, biographos dos arcebispos bracharcnses,


a souberam ou quizerara divulgar. Parece-me,
todavia, que o primeiro, lauto por haver sido pre-
lado como por génio investigador de antiguidade,
não ignoraria o que era constante de um pro:es£0
existente no archivo da mitra.
Eis o caso
Em i3n foi D. Gonçalo visitar a província
transmontana. Chegando a Villa-Flôr com grande
séquito, Iravaram-se alli os seus criados com os
moradores da terra, c de ambas as parles belli-
gerantes morreram quatro homens, esohiram do-
ze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebale. Le-
vantou-se a povoação armada. Cercaram a resi-

dência do arcebispo, malaram-lhe seis homens,


e matariam o próprio prelado, se náo fugisse, pen-
durando-se de uma corda, que lhe náo evitou ca-
hir de costas n-j terreiro e coniundir-se grave-
mente. Não contentes os de Villa-Flòr cora a fu-
ga do seu arcebispo, tomaram-lhc as mulas, de
envolta com t»artc dos capellàes, e seis criados.
Protegido por atalhos, o conluso prelado chegou
a Carrazeda de Anciães, povoaçáo importante
n'aquelle tempo, fortificou-se no caslello, fez la-
vrar instrumento publico, e enviou o a D. AíTon-
80 IV.
92

O rei, poucos dias depois, mandou a Villa-


Flôr uma alçada com dous algozes bem escolta-
dos, e fez enforcar os sacrílegos que pude colher
na devassa. Esta vingança nem por isso alliviou
os incommodos do arcebispo descadeirado na
queda. Transferido a Braga, deitou-se para nun-
ca mais se erguer. Quatro mezes depois ador-
meceu no Senhor.
E assim morreu, por eíTeito de tão misérrimo
lance, aquelle valente do Salado, que deu o exem-
plo da bravura e legou a espada ao seu quarto
successor D. Lourenço, o raio de Aljubarrota.
Fora elle o defensor da cidade do Porto, quando
o enfurecido amante de Ignez levava na sua van-
guarda o incêndio e a devastação. Fora elle ain-
daquem acaudilhára a hoste de portuguezes, quan-
do uma invasão de hespanhoes, em desapodera-
da fuga, deixou o sangue de trezentas vidas nas
lanças dos alabardeiros do arcebispo.
Santo Deus! um heroe d'esta polpa chega a
Villa-Flôr, amotina-se a arraia-miuda, foge de es-
corregão por uma corda, cabe de cangalhas, amol-
ga o osso sacro, e morre! Mas em ficn, maior se-
ria a desgraça de Portugal se elle, antes de lesar
as vértebras lombares e regiões visinhas, nos não
tivesse deixado os embryões da casa de Bragança
na pessoa de seu filho prior
93

M ioisifi mmm í o pícip[ oe um


o filho de Jayme i de Inglaterra veio a Ma-
drid, em 1010, para vêrde perto a princeza Anna,
filha de Philippeiii, uma das mais formosas mu-

lheres d^aquella rpoca. D. Fernão Martins Mas-


carenhas, inquisidor geral de Portugal, e resi-
dente era Lisboa, assim que soube da chegada
do herético neto de Maria Stuart, escreveu-lhe
com a presampç3o de o reduzir á fé
santa
catholica. O príncipe, todo cmbebecido nas ma-
gias da íilha de Philippe iii, guardou a carta para
mais tarde resolver esse negocio que se lhe figu-
rou de importância subalterna. A opiniáo de al-
guns historiadores, porém, é que a Inglaterra
voltaria ao redil da igreja romana, n3o tanto pela
inllaencia theologica da carta, como pelos filtros
amorosos da princeza Anna. O príncipe de Gales
pediu-a para esposa; e, quando em Londres se

preparavam os festejos do noivado, morreu o noi-


vo em iOli.
A carta do inquisidor bispo do Algarvt^ é iné-
dita. A este prelado devemos a impagável fineza
de expurgar das livrarias de nossos avós lodos os
94

livros gafados de heresia?. Se não fosse elle, é


muilo de recear que em Portugal se lessem então
os livros que no soculo xvii propulsaram as scien-
cias na França e Allomauha : o que seria uma ca-
lamidade. Eis a carta do santo varão;

«A vinda de V. A. a esta corte foi de tanta


alegria para todos os que nascemos em Ilespa-
nha, que ainda aquelles que estamos mais distan-
tes da sua presença, temos obrigação de fazer
demonstração publica, assim em dar graças a
Deus por esta mercê, como em significar a V. A.
o animo, e a vontade com que festejamos a hon-
ra que todos alcançamos por esta causa.
«O que todos agora desejamos, e pedimos a
Deus com continuas orações, para melhor ser-
virmos a V. A. n'aquillo que mais lhe importa, é
que queira V. A. ouvir e entender a razão do que
por cá acha, e é professarmos a ft.^, e a rehgião

que romana,
professa, e ensina a igreja cathoHca
verdadeiramente apostólica; porque o animo com
que desejamos paz perpetua entre as coroas de
Hespanha e Inglaterra, nos obriga a procurar a
conformidade na religião entre os príncipes d'el-
las, pois, como diz Santo Agostinho, não pôde

haver verdadeira concórdia aonde os entendi-


mentos estão desunidos na terra.
95

«Muitas razões se podiam allegar para V. A.


se dispor a fazpr este serviço a Deus, e merco a
Ioda a Hespanha, porque os livros csl3o cheios
d'esias raalerias, roas ires são só as que lenibro a

V. A. para satisfazer a obrigação que tenho n'es-


te reino de Portugal.
«A primeira é considerar V. A. que isto que
nós professamos era Hespanha, acerca da obe-
diência á sé apostolica-romana, professaram, sem
nenhuma interrupção, oss"renissimos reis de In-
glaterra por mil annos, desde o tempo de S. Gre-
gório Magno ponlifice, e Maurício imperador, até
o de Henrique viii de Inglaterra, que por seus
respeitos fez mudança na religião; porque como
nunca se havia proferir o parecer dos que que-
rem innovar cousas ao juizo d'aquclles que n'el-
las perseveraram por tantos annos, bem se V(>, a
prudência natural está pedindo que se repare mui-
to n'esta variedade que se introduziu em Ingla-
terra nos derradeiros annos. E é muito para \òr
a forma em que escreveu Eduardo, rei de Ingla-
papa Alexandre in, porque ambos estão
terra, ao
condemnando o que agora se segue no mesmo
reino com palavras tão claras que não soíTrem in-
terpretação alguma.
«A segunda razão é porque lodos os reis de
Inglaterra que antes de Henrique viii tiveram o
96

sceptro d'aquelle illustre reino depois de Alberto,


fundaram a sua jurisdicção na obediência á igre-
jaromana, em que presidem os verdadeiros suc-
cessores de S. Pedro, principe dos apóstolos, e
vigário universal de Christo na terra, até Ina e
Ataulfo fazerem o próprio reino tributário da sé
apostólica, e este tributo durou por novecentos
annos. E ainda que alguns reis de Inglaterra
houve que em cousas e casos particulares guar-
daram menos respeito do que deviam aos pontí-
fices romanos, nunca lhes negaram o serem ca-

beças da igreja catholica, e sempre depois vieram


a fazer penitencia de seus erros, como consta dos
próprios annaes e chronicas de Inglaterra que
Polidoro Virgilio ii seguiu, e tratou em sua his-
toria.

«A terceira razão óporque o mesmo Henri-


que que fez
viii esta mudança, quando morreu
declarou que errara, e por esta causa expirou
com summa pena, e inquietação, como consta da
relação que fizeram homens de muita virtude,
letras, e aulhoridade que assistiram á sua morte,
e os aponta Sandero, com outros muitos historia-
dores inglezes que trataram de suas cousas; e
se não remediou seus erros foi por occulto juizo
de Deus que permittiu lhe faltasse n'aquella hora
quem o encaminhasse, e lhe lembrasse o que o
97

próprio escreveu tão doutamente contra Luthero,


e dirigiu ao papa Leão x.
*Por onde tornando V. A. a receber aquillo
que os reis seus antecessores tiveram e professa-
ram por largos annos, sendo tão virtuosos, pru-
dentes e valorosos, como o mundo todo reco-
nhece, não fará mais que restituir á fé a casa
d'onde contra razão e justiça anda desterrada; e
com esta restituirão além da gloria imraorlal, que
alcançará era todos os séculos vindouros, obrigará
a Deus Nosso Senhor abrir as mãos da sua libe-
ralidade para lhe acrescentar muitos reinos com
novas prosperidades temporaes.»

A TRILOGIA DA «ACTUALIDADE»

Quando o snr. Moutinho de Sousa, ha pouco


tempo, negociava, em Lisboa, actores que preen-
chessem e aperfeiçoassem a companhia dramá-
tica do theatro Baquet, o snr. Silva, roto sa-

boyardo do escangalhado realejo litlerario da


AclualidadCj escreveu, cem o desplante da sua
98

igQorancia impenitente, que a escripturação dos


tres indicados actores formava uma agradável
TRILOGIA.
Tres actores, tres pessoas — uma trilogia!
O leitor (se não é elle) sabe que os gregos de-
nominavam trilogia o conjunclo de tres peças
theatraes,quando o poeta pleiteava o premio da
tragedia. Uma compoz Eschylo, a mais comme-
vedora que nos legou a antiga scena. Shakspeare
fez uma trilogia com as tres tragedias que com-
pletam Henrique O Walstein de Schiller é
vi.

lambem uma trilogia. Querem os francezes por


igual ter a sua na conca tenação do Barbeiro de
Sevilha^ Casamento de Figaro e AJãi delinquente
de Beaumarchais. Também nós, em os nossos hu-
mildes fastos litterarios, temos uma Trilogia ro-
mântica, em que se annunciavam collaboradores
António Pereira da Cunha, D. João de Azevedo, e
João Machado Pinheiro (visconde de Pindella).
Por analogia, Ires composições em um livro,
Ires tratados, tres discursos, poderemos denomi-
nal-os trilogia; mas chamar tratado {logos) ao
snr. Pola, e composição á snr.« Virgínia, e discur^
so á snr.* Emilia das Neves, hellenisaudo-as
pessimamente, seria uma fineza grega, se não
fosse uma asneira portugueza.
Este snr. Silva (aviso aos naturalistas) dizem-
99

rae que lem as orelhas de tamanho regular. Elle


e os ^ Joaquins sáo ires partes de uma só cousa
— irilorjia. Aqui vao bem; calham: são três pe-
ças que arredondara um tolo superlativo. Ainda,
no dominio grego, podáramos chamar aos três —
trifja. (Veja um Le.dcon o snr. Pinto). E, quando
apparecer um quarto, por não sahirmos de Alhe-
nas e das analogias remotas, os quatro serão
quadriga. Ora ahi tem gregárias em barda. Di-
virla-se.
P. S. Eu dissera-lhe adeusinho, quando fui
banido; mas elle, mentindo e espremendo nova-
mente o fígado, espirrou um golfo de bilis ne-
gra. Faz-se mister não levantar mão das vento-
sas. Ou elle estuda, ou eu o esfolo.

FIM DO 0.0 NUMERO


BiBLiflíiCí OE ALGilRA

NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÔDE DORMIR

Camiíía Êastcíía Branca

PUBLICAÇÃO MENSAL

N.» 6 — JUNHO

LIVRARIA INTERNACIONAL

ERNESTO CHARDROR EDGKHIO CHARDROS

9C, Largo dos Clérigos, 08 i, Largo de S. Francisco, 4


PORTO BRAGA

1874
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
62, Rua da Cancella Velba, 62

1874
BlBLIOTHlCi DE ALGIBEIU

NOITES DE INSOMNIA

SUMMAIUO
ífu^M^A iMta a (n^otia ^a MUuOMma ca-

éa ?< lBta<^aufa Oé *afõ<4, ^Ic occ.""

Sceioè e vtcòa^ctt* ttaiiuitc* A> «i-

1 .^ tuja-
ca í« Ioo^iuÍmí 8*íuc«i?ij c

MU L\)' * A<liia.C%^a.\ t) Catta ao

<*Mt. coiU<fé<tw 1taí!< Qututa imíH'

cia ?< tuaíau^tiui U\>' »\)ctuaU\a?« i|


DA

SERENISSIMV CASA DE BUAGAMIA

PEDRO DE ALPOEM

(Veja a pag. 93 do n." 3 daa Xoiteí')

CARTA DO DOUTOR PEDRO DE ALPOEM CONTADOR


PARA O DUQUE DE DRAGANÇA

€ Muito illustre snr. duque de Braganra.

«í Obriga-me a escrever a v. exc." cá d'esL'ouli o


miHuIo de verdades desenganos, sobre este ne-
e
gocio de tanta monta, c matéria tão importante á
honra, vida c estado vusso, e de lodos estes rei-
nos de Portugal, a memoria de um avó que tives-

tes muito conhecido no mundo •, a quem em tem-


po tio necessitado de homens, qual elle foi ca vi-

da, por nossos e vossos peccados, succedesles no

'
D. Constantino de nrn^an<;a.

UIULIOTIIECA N.* G. 1
casco da illnslriásiraa casn, somente, que não na
lealdade porlugueza, no coração real, no zelo da
conservação do reino que houvéreis de herdar
afamado no mundo Lodo. Os oleiros, sapateiros,
alfríiales,eos mesteres do paço vos furtaram a ben-
ção, e o lugar, mostrando-se tão inteiíos, gene-
rosos e leaes n'este derradeiro termo, que Portu-
gal fez, e com que acabou por alguns annos, como
se os privilégios honrosos, ou os titulos illastres,
e os raorgados e reguengos foram sgus d'elles, e
não vossos. E como se de rei natural ((]ue podiam
ler e dar-vos) não fora sempre o melhor quinhão
o vosso, e dos mais senhores fidalgos a quem fa-
vorecia, conversava, e sabia o nome, e com quem
distribuía a uiaior parte dos bens da sua coroa,
ficando elle somente com o estado, e titulo real,
com as obrigações, e trabalhos de nos defender a
todos, e governar. Porque quem vir com curiosi-
dade as rendas da coroa, e bens patrimoniaes dos
reis nas alfandegas, nos contos, e nas sizas da ci-
dade de Lisboa, do Porto, edas mais, achará esta
verdade clara, a saber: que todo o bom, e grosso
eslava repartido, e derramado em juros, tenças,
morgados, reguengos, jurisdicções de vassallas, c
vassallos, tudo desmembrado da coroa real nos se-
nhores, 6 fidalgos do reino, de maneira que mais
parecia o rei seu pai, ou almoxarife d'elles, que
rei, nem senhor. Oh! mal afortunados tempos?
Hora infeliz, e desavenluraJa, e lastima para sen-

tir! Quem de lodo não perdeu o juizo com as ra-


zões castelhanas de porluguezes elches! K possí-
vel que chegaram estes mesmos senhores de hom
sangue, de bom entendimento, de sua livre von-
tade, e molu próprio, a escolher e a negociar por
lodos os meios humanos e diabólicos extinguir-
se com o sceplro porluguez sua pátria, nação, sua
honra, fama, estados e suas mesmas casas, ven-
cidos de respeitos, ódios e interesses! Mal me
parece que lhes lembrou aquella notável resposta
<]ue o conde d'Ourcm D. Nuno Alvares Pereira deu
a seus irmãos em outro caso semelhante a este. O
qual, lendo guerras com Caslella o mestre de Aviz
que depois foi rei D. João o primeiro de gloriosa
memoria, e andando os irmãos doeste valoroso
portngnez bnrados da parte do rei de Caslella,
sendo commetlido d'elles por parte do rei caste-
lhano com grandes promessas, e partidos que se
lançasse lambem com elles, respondeu: «Nunca
Deus queira que por dividas, nem haveres eu seja
traidor, nem ingrato á terra que me creou, c aon-
de eu nasci. Os senhores fiilalgos d'este nosso
T>

lempo por interesses, e promessas falsas, assi-


gnadas em branco, não somente venderam sua pa-
iria, mas pregoavam, e persuadiam esta seita cas-
8

telhana com tanta vehemencia, elles, suas


mulhe-
res, filhos e criados; e com tanto desejo de nos
verem a todos convertidos a ella, que Martim Lu-
thero, e os outros heresiarcas que o seguiram
não zelaram mais seus erros, e falsa doutrina para
a verem perpetuada na igreja de Deus.
«Ora, excellente senhor, quero-vos capitular
brevemente os erros gravíssimos que n'este ne-
gocio comraettestes. com os mais senhores fidal-
gos d'esta conjuração, para que vendo-vos a vós,
6 a elles n'este espelho claro não percaes alguma
boa occasião, se a Deus der em algum tempo, de
cobrardes o nome porluguezque perdestes, tanto
para cobiçar, e perderes o que ganhastes, vós, e
os mais por todas as nações, até com o mesmo
rei, e nação a quem n'isso servistes; pois chega-
ram a chamar á rua onde moravam os governa-
dores quando fugiram de Setúbal la calle de lo&
traidores. E não cuido que n'isto vos faço peque-
no serviço, e ao bem commum.
«Primeiramente o senhor cardeal dos quatro
coroados, jurado rei em Lisboa, lembrondo-
Ihe a obrigação que tinha, c perigo entre mãos
de conservar este pedaço de terra que seus ante-
passados tomaram aos mouros, e defenderam aos
castelhanos, ha perto de 500 annos, á custa de
muito sangue derramado d'elles, e de seus vassal-
9

(os em continuas guerras com uns, e com outros,


em tomando o sceptro, e vendo os tempos que
corriam, logo se acautelou para assegurar o reino
em sua liberdade, e rei natural, com perseguir ao
snr. D. temer de
António seu sobrinho, e a se
Bragança, mandando-os afastar de si o mais que
pôde, e mettendo nos braços os embaixadores de
Castella, de quem se devia temer.
ílDous erros infames commetteu esta leal ci-
dade '
em nossos tempos que eternamente nunca
lhe sahirâo do rosto, se houver chronistas des-
apaixonados: o primeiro foi consentir, e permittir
a desavenlurada jornada de el-rei D. Sebastião,
que no seu porto embarcou francamente sem
se
haver um vereador, ou mester que acudisse a is-
to com uma honrada e portugueza doudice. O se-
gundo erro foi aceitar esta cidade ao cardeal por seu
rei, c dar-lhe posse do reino sem mais curtes, nem
consulta das outras cidades e povos tâo nobres, e
mais naluraes do reino do que é a raór parte da
gente de Lisboa, recebendo esta cidade por her-
deiro legitimo e forçado, sendo clérigo, e impo-
tente, podendo (já que o queria) elegel-o em nome
de lodo o reino por seu rei arbitrário, eleito com
protestação de por sua morte (que tâo perlo es-

I LUboa.
10

tava á vista) ser outra vez a eleição dos povos. Foi


este tão mau conselho, e tamanho erro que bem
parece faltar aqui um João das Regras que lem-
brasse e requeresse.
« Era este principe, como v. exc.^ sabe, irmão
ultimo, e inferior em tudo a cinco que teve, e
muito aborrecido d'elles todos c de seus próprios
pães, de que não faltam ainda testemunhas vi-
vas; por ser homem de baixos espíritos e condi-
ções, tençoeiro, vingativo, para pouco, tão inimi-
go da nação portugueza, e de seu próprio sangue
que por mostrar esta natureza sua, perseguiu aos
seus sobrinhos, aíTeiçoando-se aos castelhanos.
Foi este principe guardado com vida tantos an-
nos, depois da morte de seus irmãos, sobrinhos e
herdeiros do reino, queforam vinte e tantos, para
nos herdar, e governar com tantas desventuras, e
mofinas que até o caso da ilha da Madeira tão af-
froDtoso o vimos no seu governo e tempo. E para
ser deshonra de todos seus avós que com tanto
animo, e esforço offereceram sempre a vida e esta-
dos por nos não deixarem caplivos de castelha-
nos, lançando ainda muitos d'elles em seus tes-
tamentos e cartas grandes maldições, e particu-
larmente el-rei D. Manoel seu pai, a todos seus
successores, se em algum tempo pretendessem
alliança doeste reino á coroa de Castella, como se
11

pôde vôr nos cartórios da torre do tombo da ci-


dade de Lisboa, e de Évora.
«Algum pouco tempo depois, este velbo cobar-
de e cruel, depois de ser rei, dizem que esteve in-
clinado a declarar a snr.» D. Calharina, mulher
de V. exc.^ por herdeira e direita successora do
reino, — parece que receoso d'estas maldições ou
remordido na consciência de algum bom espirito
com que Deus nos falta. Depois de encarniçado
com as lagrimas que via nos portuguezes por sua
má e nativa inclinação, ajudado com as prega-
ções de D. Jorge de Athaide, o algoz da côrie, e
de outros discípulos occultos do duque de Ossu-
na, que pela unitiva desviava, ajudando-se do pa-
dre D. Leão, do sobrinho dissoluto e da sobrinha,
por evitar guerras, se mudou este rei pcrtuguez
doeste santo propósito assestando-se de maneira
na devoç;lo do l*hili[)pe, e ódio dos mais preten-
sores do reino que nem reí|ueriraentos dos mes-
teres, nem lagrimas dos povos, nem desenganos de
procuradores das cidades o demoveram nunca does-
te obstinado intento; antes vemlo que o povo punha

os olhos cheio de esperança no snr. D. António


por sua rara humanidade, e por falta de não ve-
rem outrem, lodo o seu negocio n'este tempo fui
proceder contra elle com sentenças cruéis, car-
tas, e éditos infames, sendo sobrinho seu, e íilho
12

do mais honrado irmão, e amigo que elle teve na


vida, e a quem tomava por terceiro quando que-
ria que o rei D. Manoel seu pai o visse, ou ouvis-
se. E para que v. exc.» veja quão descoberto cas-
telhano era com os da conjuração que depois se
descobriu e fez, um dia, estando em pratica com
alguns portuguezes elches, que trazia á ilharga,
chegou a dizer que lhe pesava de uma boa som-
ma de mil cruzados de um alvitre que applicava
a obras pias, pelos não mandar gastar nos paços
de Évora para que quando entrasse o castelhano
(a quem n'este caso chamou sobrinho) tivesse lo-
go na entrada bons aposentos onde se recrear.
«D'el-rei D. João o segundo se conta que di-
zia muitas vezes á mesa entre pratica «quem me
poderá fazer entre Portugal e Castella um muro
de bronze que chegasse até o côo, que nem os
passarinhos de voassem para cá, porque ne-

nhum bem nns vem de lá, e males muitos. » Pare-


ce-vos, excellente senhor, que se este santo rei
lá onde está descancando, e ainda inteiro está seu

corpo, ouvira estas palavras de um seu sobrinho,


e herdeiro, que ficara contente, c as approvára
por acertadas?
«Estes foram seus desenhos e intentos, nos
quaes continuou sempre, entretendo pouco e
pouco com promessas falsas, que lhe daria prin-
cipe porluguez, e em paz até sua mortal doença,
na qual fez um testamento tão calholico, lào por-
tuguez, lâo pio, táo cheio de esmolas para mos-
teiros, e viuvas pobres e com boa declaração do
successor do reino que em quanto o mundo durar
será escândalo para quem d'elle souber: porque
tão escasso e cruel, tão descuidado nas cousas do
reino se mostrou, deixando por sua alma como
um pobre escudeiro para que so-
tudo ficasse í;i

lidum a Philippe, que chegaram alé cantar pelas


ruas de Lisboa e Santarém publicamente aquellas
orações por sua alma que elle bem merecia, mas
porém nunca ouvidas da bocca dos chrislàos e
innocentes meninos, os quaes diziam assim:

Vifã el-rei D. Henrique


no$ infernos muitos annos,
pois dgixou em testamei^to
Portugal ao$ castelhanos.

€ Ainda que por obra isto não foi verdade, de


tal maneira deixou elle estas cousas ordenadas, e
sua tenção declarada aos que deixava commetli-
do o negocio, que linha razão o povo de lhe can-
tar estes louvores.
cMas deixemos já defallar nos escândalos que
este Anti-Christo deu ao reino: porque esperamos
ainda em Deus, e na sua justiça divina, que se fo-
14

rem vivos alguns portuguezes dos que agora an-


dam escoudiílos, e perseguidos, e presos, quando
Porlugal resuscitar, que a sua ossada que Philippe
trasladou para Belera, acompanhada das que es-
tão em Elvas, no espinheiro de Évora, e em ou-
tras partes, srjam publicamente queimadas.
«Os cinco traidores do governo, com titulo de
defensores nossos, e governadores do reino, her-
dando por morte d'esle priucipe o ódio que elle

tinha ao snr. D. António, e á nação portugueza,


de maneira começaram logo, em tomando o go-
verno, a guardar todos os respeitos a Philippe, e
â seus mexedores ou embaixadores, e nenhum
aos pretensores do reino, assim naturaes, como
estrangeiros, que logo se viu, que dominava nVl-
leso humor castelhano. I^or onde com infame
nome que então cobraram para seus descenden-
tes, terão sempre a culpado nosso aíTrontoso ca-
ptiveiro, e de todos os males que á sombra de boa
guerra se fizeram, e ainda fazem n'esle triste

reino.
« Nem foi pequeno descuido, e pusillanimidade
dos procuradores das cortes, temendo isto d'an-
tes,darem-lhes pacifica obediência, reconhecen-
do n'elles a mageslade real, porque além de n"isso
abrirem mão da occasião e posse que o tempo
lhes oíTerecia de ser do povo a eleição do rei, ou
11

de quem os governasse ale isto se determinar,


mostraram grande cobardia, venJo já n'elies o
que d"anles temiam, e (tendo as costas quentes
em Santarém) náo os mandarem todos após o
cardeal a juizo a darem conta de suas damnadas
lençOes: ponjue, á fé, se Santarém desembai-
nhava como o tempo pedia, a carniça começara
em Almeirim por esles traidores, e outros que á
sua sombra estavam claramenle já vistos por fal-
sos e castelhanos, e o reino despertara, e tornara
sobre si para que nunca viéssemos a poder de
castelhanos, nem ousariam entrar elles cá, se vi-
ram estes começos sangrentos, porque são tam-
bém ás vezes sadios, e necessários...
«D. Manoel de Portugal, e um Phebus Moniz
requereram nas cortes que tirassem os governa-
dores suspeitos no governo, ou lhes acrescentas-
sem outros cinco; mas nada aproveitou para ani-
marem os espíritos cobardes. Coníiaram de suas
palavras; e que, postos em táo alta dignidade com
titulode nossos defensores, fariam como leaes o
que eram obrigados á pairia e á justiça; mas foi
claro e grosseiro engano: por onde os traidores
cobraram tanto animo de o nào verem em nin-
guém para lhes ir á mão, e de se verem reco-
nhecidos por suprema e real dignidade, que sem
mais temerem, nem fazerem caso de cortes, con-
46

tinuaram desembaraçadamente com a venda e


entrega do reino como lhes ficara encommendado
do rei cardeal.

«Mas para sua traição emaldade ser mais


abonada e espantosa, n'este mesmo tempo come-
çaram a metler o insolente povo em pensamentos
de guerra, e defensão da pátria para o desmagi-
narem dos temores, e desconfianças que n'elles
viam. Maldade foi esta nunca vista, nem lida em
historia antiga, nem moderna, porque, se nos met-
teram a todos nos contractos, e partidos em que
andavam com Caslella, fôramos rendidos, ou
entregues com menos deshonras, e perdas. Por-
que não estava Philippe desarrazoado nos parti-
dos, e condições que nos commettia, ainda que
nunca as cumprira, como fez aelles; mas estes
senhores, para melhor fazerem seu proveito com
este rei estrangeiro a quem pretendiam ganhar a
vontade, quizeram elles somente com os seus pa-
rentes e amigos ser os que negociassem esta con-
tractação para que o povo (que d*estas meadas não
linha mais suspeitas e receios) na resistência, e
defensão que fizessem lhes acrescentasse a elles

merecimentos e serviços para com sua magestade.


E, assim, que palliadamente se communicavam
todos n'e£la conjuração cora cartas, e correios
muito tempo antes da morte do rei cardeal. E de-
17

pois d'ella (que é caso de grande espanto) cor-


rendo entre elles esla linguagem de chamarem
aos da conjuração siswlos, tendo por néscios e
doudos a todos os que, nào sendo da sua liga, que-
riam antes morrer valorosamente em defensão da
patiia que vôl-a entregue por traições e manhas,
sem ordem nem com per-
justiça, a seus inimigos
petua infâmia do nome portuguez, chamando aos
taes por escarneo os leacs; de maneira que n^este
tempo em que o reino ardia era motins e confu-
sões, em temores e esperanças, suspenso e con-
fuso do successo d'esle negocio, começaram suas
senhorias a ratificar mais seus ardis, e traições
com mandarem cartas e provisões por lodo o rei-
no ao estado ecclesiastico em que pediam e re-
commendavam aos pregadores e curas das igre-
jas que claramente dissessem ao povo nos púlpi-
tos, c suas estações que se animassem á defensão
do reino, apparelhassem armas e fortiticações nos
muros, porijue elles tinham já mandado prover
os arraiaes, e ordenado fronteiros-móres, para o
que passaram provisões a fidalgos para isso como
foi a D. Diogo de Menezes na comarca do Alem-

lejo, D. Luiz de Portugal na comarca de Tliomar,

etc. E assim, com estas falsas mostras de leaes,


alvoroçaram o povo a falsas esperanças de liber-
dade c defensão para de todo ficar perdido e aba-
18

tido no faluro. Possível é que algain dos cinco


governadores tivesse sanlo e leal inleiílo n'esle
desenho; porque se afíirma que alguns lhe resis-
tiram, 6 que o arcebispo de Lisboa não quiz que
dentro da cidade se publicasse, ne;n pr(5gasse es-
te apercebimento; noas elles todos juntos não fi-

zeram mais n'esle negocio da liberdade porlugue-


za que o acima dito, sem raetlerem mais cabedal
ou fazerem mais despezaspara esteeíTeito que de
papel e tinta. É certo que cuidaram que assim
como ÍMiilippe com estas armas conquistara a el-
les, e aos mais fidalgos do reino, assim também
com papel e tinta nos defenderíamos dos tudes-
cos e italianos que elle trazia enganados, havia
dons annos, para o metter em Portugal.
«Tinha entendido este cobiçoso rei por espias
allemãs que cá mandou reconhecer os fortes do
reino em vida do cardeal-rei*, que somente para
bater os castellos da raia, se n'elles houvesse de
entrar, havia mister gastar toda a sua fazenda em
pólvora, porque se não tivesse por si todas estas
achegas, a saber: armas, pólvora, chumbo, ti-

rando-nos tudo isto a nós n'estc tempo, só Elvas

* Em um dos seguintes números daremos traslado da con-


ta que os espias deram a Philippe ii do seu exame em Por-
tugal.
19

com seu termo (aonde ha perto de quatorze mil


homens de pé, e de cavallo) bastava para nos Oli-
vaes, antes de chegarem os castelhanos a bater
nos muros, lhos consumir lo Jas as suas forcas com
a arcabuzaria ponugueza. Os traidores dos go-

vernadores os seguraram doeste perigo.

«Chegaram estes traidores a tanta cegueira e


desavergonhamento, que, tendo jurado todos não
tomar voz por algum sem se dar primeiro sen-
tença pelos letrados deputados na causa, avoca-
ram a si, e intentaram de que vindo a Setúbal ser
juizes em caso tào grave, tão duvidoso, e dar sen-
tença por Philippe, para este fim se partiram de
Almeirim para Setúbal, porto de mar, convocan-
do a ella os mais fidalgos da conjuração assim
leigos, como ecclesiaslicos, a saber: o meirinho-
mór, D. Aiilonio de Cascaes, D. Fernando de Li-
nhares, D. Jorge de Alhaide, o bispo Pinheiro,
e outros muitos que seriam perto de quarenta fi-

dalgos conhecidos '. Mandaram logo fechar todas


as portas da villa de pedra e cal da grossura do

muro, deixando somente duas abertas com guar-


nições de soldados postas n'ellas para que não cn-

* Provavelmente os avós dos quarenta fidalgos da restau-


raçlo.
20

trassem dentro senão os da conjuração. N'este tem-


po o conde portuguez do Vimioso (Iierdando o es-
pirito do conde D. Nuno Alvares Pereira, seu bis-
avô) que em Almeirim linha já visto suas trai-
ções, os veio seguindo muito á pressa para vêr
se podia impedir tanto mal quanto se temia. O
que entendido por elles, antes do conde chegar,

mandaram dar rebate ao traidor Diogo da Fon-


seca, seu guarda-mór na mesma villa, que por
nenhum modo o deixasse entrar dentro. E assim
o esperou ás portas com murrõesaccesos para lhe
defender a entrada ; mas, antes d'elle chegar, ven-

do estes traidores que o povo da villa sabia isto,


e se começava a amotinar por parte do conde
portuguez, em que escorava grande parte de suas
esperanças, tornaram a mandar recado que dei-
xassem entrar, em tempo que elle já vinha pelos
arrabaldes. Depois, entrado na villa, e vendo que
este conde portuguez com alguns procuradores
das cortes, que á sua sombra se foram também
lá, para lhes resistir a seus maliciosos intentos
de quererem ser juizes, e dar sentença, e que
não podia isto ser pelas razões, e embargos que
lhes punham, usaram de outra invenção e ardil
não menos desaforado que o primeiro, querendo
avocar a causa e litigio da successão do reino a
votos dos que então se achavam presentes; e por-
21

que os procuradores das cortes que ahi se acha-


vam, á sombra do conde, eram leaes e muitos,
determinaram de reduzir n'esle conselho e elei-
ção os votos dos Ires estados — a saber: ecdesiasti-
cos, fidalgos, e procuradores dos povos a numero
de três volos somente, dizendo não era tem-
(lue
po para mais vagar (por ser já Elvas entregue a
Pbilippe) senão do votarem todos Portugal, ou
Castella, por favas brancas e negras, os três es-
tados cada um por si;e, para onde prevaleces-
sem os dous estados nos votos, assim se fizesse.
E ponjue tinham por si os votos dus fidalgos, ao
conselho acrescentaram alguns homens novos a
saber: Bernardim Rib^firo, e outros por se segu-
rarem mais ii'este voto. Tinham também pela se-
gunda liga o segundo voto que era o do estado
ecclesiastico presente que era o arcebispo de Lis-
boa e capellão-raór, D. Jorge de Athaide, o bispo
Pinheiro; o terceiro voto a que tinham reduzido
todos os procuradores dos povos não lhe fazia
roau jogo, ainda que votasse, por Portugal. Esta
panella assim mexida por D. Cbristovão de
Moura, e proposta no conselho pleno, não pareceu
bem aos leaes. E logo o conde portuguez acudiu, e
resistiu a ella com os procuradores de sua tenrào,
protestando que a tal eleição não seria valiosa, e
que em caso tão grave, e Ião importante a lodo o
IIIDLIOTIIKC.V X." G. 2
22

reino, que o não queriam deixar nos parece-


j í

res dos letrados, senão dos votos, que mandas-


sem primeiro chamar os mais procuradores, e
senhores do reino para que o que aiii se accordas-
se e resolvesse fosse com consentimento e con-
tentamento das partes. Mas como estes traidores
do governo, e fidalgos da conjuração estavam de
muito tempo penhorados por Caslella, e não so-
mente na villa, mas lambem nas mesmas casas do
duque de Aveiro em que se mostravam com mui-
tos mosquetes, pólvora e pellouros para fazerem
a sua mais a seu salvo, esperando d'hora em ho-
ra pelas galés dô Piíilippc que tinlnm mandado
vir para esic intento, a nenhuma cousa se demo-
veram pelas protestações, e requerimentos que
lhes foram feitos sobre este caso, estando tão en-
fadados da tardança que as galés faziam em che-
gar, que se ouviu um dia esta palavra ao turco
D. Jo.ão Mascarenhas indo pela varanda que man-
dou tapar por se temer de algum pellouro bem
merecido : « Ah ! Philippe, que assim és vagaroso !

E como Deus não queria que o innocente e leal


povo licasse cinbíraçado na consciência com a

sentença e abominável eleição do rei, cursaram


tantos nortes e tâo rijos lodo o tempo que elles

esperavam pela armada, que, depois de muitas


consultas e confusões de accordos, que houve um
23

um dia o de apunhalarem quasi lodos os do con-


selho o conde porluguez.
«Deixada a iraça da sentença seguiram a da
eloiçHo, determinando fazer este auto solemne
dia de S. Pedro e S. Paulo, que era d'al]i a dous
dias, para que cnlSo se declarasse; e, sahindo os
dous votos dos dous estados por Castella, como
tinham porsem duvida, acolheram-se todos a nraa
galé e caravella da armada que tinham mandado
vir de Lishoa a qual tinham já apparelhada na
bahia de Setúbal. N*este mesmo dia mandou o
conde portuguez recado ao benigno rei D. Antó-
nio que já era entrado e recebido era Lisboa, que
acudisse logo antes de se concluir a traição; o
qual sabido logo pelos mesmos da guarda dos pa-
ços, e pela gente leal que havia na villa, começa-
ram de se amotinar com gritos e ameaços públicos
no Sapal, defronte dos traidores, e tal qae elles
houveram por seu accordo \òr se podiam pôr-se
em salvo, e assim determinaram n'aquel!a noite
seguinte sc embarcarem, deixando tudo em aberto
para porem sello a suas traições. Náo pôde isto
ser tão secreto que também se n3o entendesse
dos soldados que logo os começaram a vigiar; e
recearam de maneira que, era anoitecendo, com
muito risco de suas vidas, e tanto que ura se dei-
tou por uma corda, outro se vestiu em um chiole.
24

e se acolheu sobre um asno, os mais buscarani


mil invenções baixas, como
eram dos espi-
elles

ritos, para se irem embarcar. Estes foram Fran-


cisco de Sá, alcaide-mór do Porto, D. João Mas-
carenhas, capitão que foi do segundo cerco de
Diu, Diogo Lopes de Sousa, governador da casa
do Os da villa vendo já com os olhos a
eivei.

traição, engano em que os traziam, bramiam


e
como leões, desejando dar-lhes o pago de seu bom
governo e lealdade. A este motim acudiu o conde
porluguez com animo de christão, e leal como
sempre o teve, o qual por muitos justos respeitos
impediu não se fazer carniça, entretendo com ra-
zões o Ímpeto dos soldados por largo espaço da
noite até se porem em salvo, e se embarcarem;
porque, se não fora, todos os da conjuração
elle

houveram de pagar aquella noite o que deviam á


pátria, porque parece que de propósito os trazia
alli seu peccado juntos ao talho.
«Não faltou quem
que o conde erra-
dissesse
va n'isto; mas a sua razão convenceu a todos
ii'aquelle tempo, dizendo [que mais fazia a nosso
caso fugirem elles que não malal-os em terra, o
que soaria mal a quem desapaixonadamente visse
este negocio. Basta que os salvou, e deu passa-
porte por terra a D. Christovão de Moura para se
pôr em salvo.
25

c Bem visto fica n'esle breve summario quaes


foram os traidores em seu officio e dignidades,
rsão fallo em D. João Tello porque, quando se foi
juntar com elles em Setúbal, em uma galé que to-
mou em Lisboa, entrando pela barra, sabendo os
-quatro do governo que elle era o quinto, o man-
daram servir de bombardas arrazoadamente da
torre d'Outão, por não ser da sua tenção a liga.
Depois que o viram entrado pelas boccas dos tiros,
e isto visto e sabido pela villa, soíTreram-no por
dissimularem até que seu peccado os levou de
mar em fora, onde andaram em calmaria dous
dias á vista da villa, desmaiados, olbando se iam
os da terra prendel-os. Este só governador se foi

quietamente para sua casa por ser portiiguez,


onde morreu, dizem que de paixão de ver as in-
justiças dos traidores.
tNo principio doesta conjuração já espigada,
se foi V. exc.» a Almeirim, quando o rei-cardeal
descobrira sua tenção por Castella. E logo depois
a snr." D. Catharina com grande estado, e capei-
la de músicos, acompanhada cora alguns poucos
de ceifOes enfronhados em libré de soldados de
guarda de vossa pessoa. Já então as cousas eram
laes, que para responderdes a quem éreis, e ás
obrigações do estado braganção, não somente não
vos houvéreis de temer, e ir medroso, mas ser
26

tão temido, e entrar na corte cora um brio portu-


guez, e com um coração tão grande, que assom-
brasse o cardeal, e matasse por dentro a todos os
traidores que lá andavam; e entretivésseis vossos
vassallos todos apparelhados a som de guerra, e
postos a piques para toda a desordem, e traição
que vísseis, ou no rei-cardeal, ou nos pretenso-
res de que vos receáveis. Porque, fallando des-
apaixonadamente, vós só com vossos parentes,
criados, e vassallos tinheis bastantes forças para
receber lodo o poder, que Pliilippe linha appare-
Ihado contra nós, e para obrigardes ao duque
d'Alva a uma retirada muito aíTrontosa. Mas fal-
tou-vos o coração do conde D. Nuno Alvares Pe-
reira, vosso quarto avô.Não somente nada d'ista
fizestes, senão,quando o snr. D. António, —ape-
sar de aborrecido, desnaturado e perseguido não
somente do cardeal-rei seu lio, mas lambem dos
traidores do governo, depois de sua morte d'elIo
— com animo real que herdara do infante D.
Luiz, seu pai, se determinava defender-nos da
ambição dos estrangeiros, e traição dos naturaes,
arriscar sua vida, e estado na defensão do reino,
antes que soffrer desordens na justiça da succes-
são, e que todos os partidos honrosos vos fazia á
conta de lhe seres companheiro n'este santo pro-
pósito, nunca jamais o pôde acabar comvosco
27

por raais que vísseis os inimigos entrados pelo


reino, e tomarem-vos os vossos aposentos de Vil-
la Viçosa, e armazém d'armas; antes para a vos-
sa culpa ser causa mais de propósito, depois de
desenganado de vossas esperanças reaes mais
parvoas. d;jda> pelos traidores do governo, os dei-
xastes em Setabal, e vos fostes a Portel ter con-
sulta com os coudos de vossos parentes do <]ue
fazieis, estando já as cousas sem remédio bem :

se vos podén dizer n'este tempo: «Asno morto,


cevada ao . . .» Em vida do cardeal-rei deverieis
de cuiJar em ós, e em nós. O esiu^iido do conde
lavrador, e o íf abe do arcebispo de Évora, e o
raposa do commendador-mór com os mais que
se achai am prementes n'este vosso conselho, como
havia muito leajo que estavam feridos da peste
castelhana, e pitados a seu sabor com Philippe,
accordaram em 'clacào que vos lançásseis de fora
do jogo, e vissiis os louros de palanque. Ptla
primeira lei de Sulon alheniense, perdida tendes
a casa, e estadosó por esta culpa. Mandava esta
lei,que quem nas dissensOes e nos motins da ci-
dade se nào lançissc de algum dos bancos e par-
cialidades, esperjndo ser de viva voz quem ven-
ça, pelo mesmo »aso lhe fossem confiscados to-
dos os seus bens. Nada d^isto tivestes; antes, con-
forme ao conseho, (jue vos deram, e tomaram
28

para si estes senhores vossos parentes, vos dei-


xastes íicar n'essa vossa villa desviada, que era o
que Philippe desejava e vos pedia. Com esta in-
venção tomou o turco Ásia, Africa, e muita parte
da Europa, pondo-se os reis chr.'stãos á mira
quando este lyranno fazia guerra a algum d'elles.
Assim tomou Hungria, Bohemia, o império da Gré-
cia, Rliodes, etc.

(iN'este tempo que v. exc.^ se apartou do bem


comraum, olhando somente para si, o mesmo po-
vo padecia a ultima desaventura de ferro e fogo,
sem ler armas, nem resistência por lodo o termo
de Elvas, Olivença, Estremoz e tod3s os outros lu-
gares doAlemtejo. Não quero parlicularisar mais
as culpas de v. exc.» por não afrontar mais os
ossos de quem come a terra.

((Os fidalgos, morgados, e :ommendadores


que em todas as idades foram os nervos da repu-
blica, e por esla causa Ião privitgiados, e vene-
rados do povo, d'elles (ainda qie poucos) se fo-
ram pira o snr. D. António depis de levantado
em rei, para segurar o jogo de imbas as partes,
fazendo d'alli com Phi-
o seu negocio comelle, e
lippe, dous cabos (ccmo já fez Veneza
cosendo a

muitas vezes em liga da christaidade, escreven-


do, e dando avisos ao turco conra a liga, e a liga
contra o turco). Assim o faziaa estes senhores,
29

pendendo ainda mais n'isto para Caslella; c tan-


to, que era grande vergonlia, e espanto vt*r as

cartas que se tomavam cada hora, as espias dos


fidalgos portugaezes que andavam á ilharga d'este
vencido rei, e entravam em seus conselhos de
guerra; outros eram capitães d'armada, que lam-
bem foi vendida tantas vezes, que se cada dia se
tirava um capilào-mór, e se punha outro para
não o arrematarem, o que não aproveitou nada ;

tanto assim que o derraiieiro capitão (Gaspar de


l>rito d"Elvas) (jue era leal, o qual peia não que-
rer vender, o venderam a elle os capitães, ainda
que escapou da morte.
Os outros fidalgos em geral, tirando os cria-
1

dos, inda não todos, dVste senhor rei eleito, pa-


recendo-lhes ainda mau conselho de se arrisca-
rem alguma desgraça da guerra, e terem com-
a

primento com sua pátria sequer nas mostras de


fora, como lodos estavam metlidos na conjuração
castelhana, e assegurada sua fazenda, e mercado-
ria, tomaram o conselho que v. exc tomou para

si, escondendo-se pelos mattos em recintos, em


bandos, como zorzaes", esperando ouvir novas do
mundo, como se conta de um esforçado em uma
gah', que escondendo-se na escotiUn. ou coberta

• Tordos 01 estorninhos.
30

ao tempo da briga, depois de acabada, perguntou


de lá: <.(Levacn-nos, ou levamol-os?»
«Outros, depois de tomado Cascaes, batendo-
se já a torre de S. Gião, ouvindo-se os tiros em
Lisboa, se esconderam deniro na cidade com tanto
segredo e resguardo para não serem chamados;
e obrigados a acudir a tão extrema necessidade,
como padecia o reino, chegaram a mandar fechar
as portas de pedra e cal das casas onde se escon-
diam, mettidos com armas, e cavallos dentro era
casa, dando-lhes os seus de comer porjanellas de
noite, parecendo-lhes que quando os reis, e re-
publicas insliluiram os grandes, os fidalgos, e
morgados, que foi para comerem, e vestirem me-
lhor, para jogarem mais grosso, e para terem
muitos criados para lograrem as delicias do mun-
do; e que, quando viesse o tempo da guerra e do
trabalho, não tivesse n'elles a republica braço e
columna para se defender c onde se encostar.
As escusas que elles davam n'estc caso são

para aceitar. Diziam estes senhores (jue não po-


diam em boa consciência seguir ao snr. D. Antó-
nio, porque era ura alevantado, e filho não legi-
timo. Não attentando, que andando em prova a
sua legitimidade, o alevantou em rei a leal villa

de Santarém em nome de todo o reino, tendo já


Philippe tomado com a mão armada Elvas, OU-
31

vença, Campo Maior, e Eslremoz, não corro ale-


vanlado pelo povo, mas como lyranno, a quem el-
lesseguiam sem nenhum escrúpulo. Tarabem di-
ziam, que o poder de Caslella era Ião grande, que
tocava em doudice querer-lhe resistir. A isto res-

pondem os contemplativos que não nascia d'aqui


a tosse. E poniue fiiUemos porluguez claro: sa-
berá V. exc.^ por que não queriam pelejar, nem
defender o reino, e andaram com estes contra-
ctos e traições? Foi fina cobardia, e puro medo,
que os mais d'elles trouxeram mettido nos tuta-
nos, da destruição, e captiveiro d'Africa, medo
que damnificou o mui esforçado e invencivel rei
D. Sebastião de saudosa memoria elles o desam-
;

pararam, e entrrgaram aos alarves com suas ju-


diarias, cliamandu-llie doudo, e temerário, pon-
do-llie todas as culpasque quizeraro, por enco-
brirem as suas, que a verdade é esta; elle os co-
nhecia muito bem, e tinha na conta que elles me-
reciam; mas ííão lhe lembrou, em tempo que lhe
ia mais a vida e honra. Era este um rei a quem

se não pôde negar muito esforço, e muita libera-


lidade, muito boa conversação, ainda que os pa-
dres da companhia o crcaram fora dMsto, e man-
cebo de muito raro entendimento; e, se os fidal-
gos que com elle foram, o acompanharam ajuda-
do com o anifLO e esforço que nVlle viram, pele-
32

jára dobrado, ou a victoria fora nossa, ou a des-


ventura nào fora tanta. Mas como estes senho-
res não sabiam mais que rasgar sôias, lograr per-
fumes da índia, aguas estilladas, passear as da-
mas, inquietar donas virtuosas e honestas, andar
com a barba no ar, soberbos mais do que Lúci-
fer, cuidando que n'isso estava o ponto e ser da

lidalguia, indo armados d"esta côr e tenção mais


para bodas que para brigas: em vendo o campo
do Maluco, arraiaes calmosos, e armas pesadas e
desacostumadas, logo esmoreceram, cahiudo-lhes
o coração aos pés. Pelo que, ao primeiro S.
Thiago que se deu, elles foram os primeiros que
raostraram as costas aos mouros, voltando á ré-
dea solta com desordem e cobardia, que o
tanta
esquadrão dos aventureiros, ou desaventurados,
de pé, á custa da vida lhes deu lugar, e elles de-
ram principio a todo o mal e destruição, que logo
se seguiu. Esta é a verdade pura e clara; o con-
trario é quererem cobrir o céo com uma joeira,
lapar a bocca aos soldados, e pôr a culpa ao rei.

Digam isto aonde se não sabe como elles se cru-


zaram diante dos mouros, metlendo-se debaixo
das carretas; sem algum esforço, e valentia de
leaes portuguezes, deixaram seu rei em Africa,
sem saberem dar novas d'elle, rendendo-se por
captivos de negros desarmados. No captiveira
33

houveram-se ttío v3os, t3o deshoneslos, t3o in-


sensíveis de sua honra, e fidalguia que muitos
dVlles aceitaram resgate dos embaixadores de
Philippe com vergonhosos partidos sobre a succes-
s3o do reino, que j;i começavam a vender.

«Este mesmo ser e fidalguia tiveram na der-


rota de Alcântara, a saber: escondendo-se, fugin-
do era tempo que seus avós se podiam desejar vi-

vos para lancearem castelhanos, e os lançar fora


do reino. Por onde digo a v. exc.» que podemos
affirmar com. muita verdade que sea abou já a fi-

dalguia de Portugal; e, se Deus der n'elle rei na-


tural, poderá com justiça, e com boa consciência
fazer o que fazia Lycurgo, afaz o grão- turco hoje
em que é tirar-lhe os contos de renda, os
dia,
morgados, e privilégios, arrazourando-os com os
mecânicos, e começar-se outra enxertia de fidal-
gos, fundada em merecimentos pessoaes, sem
opinião de gerações, nem appellidos, porque os
Castros, os Menezes, Mellos, MascarenhaSy Tavo-
ras, fíarretos, ele. ', já não dão fructo senão de
baixezas, cobardias, deshoneslidades, e pouca
chrislandade; c se alguns ficaram bons, o nome
e appellido se lhes houvera de tirar. Não fallo nos
porluguezes Cantinhos e Britos, a quem pelos

< Toilos oa íldalg^ts d'et>te8 appellidos arrebiabaiam as


melhores commendas cm tempo de D. Joáo iv.
34

lionrar dou lugar entre os negros, em quera se


achou tanta lealdade e esforço, que até a torre da
pólvora era que estava a nossa defensa se não fiou
senão d'elles, e acompanharam o snr. D. António
até de toJo se perderem era Vianna. O povo, cuja
voz se charaa vox Dei, ainda que nunca foi ouvi-
do, conservou a fé portugueza nas cortes, e fora
d'ellas com pacto, esforç), e desejo, pedindo, e
buscando guerra : até as mulheres (que parece
cousa de espanto) ! porque a ellas só vinha o mór
mal d^ella.

« Os inconvenientes que se seguiram dos nos-


sos governadores e fidalguia portugueza ser isto
que V. exc.a v6, e de el-rei de Castella ser tão
comedido, e sujeito á razão, são os seguintes.
Primeiramente: se seguiu entrar o turco lallie-

rano duque d'Alba em Lisboa com tanta cruelda-


de e deshoara nossa, que, chegando a Alcântara,
com menos de dezeseis mil homens, todos ir-
mãos, visinhos e companheiros, nos rompeu, e
deshonrou a todos para sempre, não por forças
suas, mas por traições dos corruptos, por pro-
messas, dando o saco tres léguas de termo, com
duas que tomaram mais os soldados, estando por
causa da peste a mais gente e fazenda derramada
pelas quintas fora de Lisboa. Entrando as suas
35

gali^^s polo rio, e soMadesca pelas ruas com tanta


crueMade, disparando no triste e rendido povo
toda a mosquetaria, e artillieria do mar: indo
ii'este tempo muitos contentes, Iriumphando en-
tre elles de sua pátria, e nação nas galés — a saber
Diogo Lopes de Sequeira, D. António de Cascaes,
Luiz César, e outros muitos arrenegados, de volta
com os leacs, a quem o traidor castelhano tinha
passado provisões de marquezados, condados, e
contos de renda por este serviço, tão custoso nâo
somente ús pessoas, mas lambera á honra d'estes
senhores que lhe entregaram o reino. Mas, assim
como estas provisões foram assignadas em bran-
co, também foram despachadas em branco; por-
que lhes sahiuem despacho na mesa da consciên-
cia (qual D.^us sab'3) (]uo não era Philippe obriga-
do a cumprir estes assignados; mas a v. cxc.^
como principal parte n"este negocio, como verda-
deiro, e legitimo herdeiro doestes reinos, segundo
dizem e assigaaram alguns juristas doutos, des-
pachou este seu rei muito bem com lhe fazer uma
mesura muito bem feita em Klvas. quando lhe foi
beijar a mão, e renunciar todo o direito que tinha
no reino, e com o acompanhar ate á porta da
sala, e com lhe lançar depois o habito dcl íuson
em Tiiomar, que é de mui grossa renda, e esta-
dos, mas pago em panem no^l rum quolidianum, o
36

em uns poucos de maravidis para vinho, e faça-


me raercc que não mande cada dia recadar esta
ração do paço com miiila Iiuraildade como cavai-
leiro (lei íuson, como lhe mandou dizer um dia em
Abrantes o manlieiro, ou vedor por um descuido
que n'isto teve. Outra mercê fez a v. exc.'» de con-
destavel do annel d'este reino qae santa gloria ha-
ja; outra lhe fez muito maior em o ter na repu-
tação que v. exc.^ merecia pelo seu fraco juizo.
Os mais senhores, e fidalgos, de presumir é
a

que também Philippe usou com elles d'esta ma-


gnifica liberalidade castelhana. Porque a D. An-
tónio do Cascaes fez o mesmo que a Tristão Vaz
em satisfação de lhe entregar a mór força do rei-
no, e renunciar quatro mil reis de juro que el-rei
D. Anntoio lhe tinha dado por provisão.
«Fim das razões: já v. exc.-^ eosmaisda con-
juração começam a ver o erro, e desconcerto seu,
e dizem entre si pela bocca pequenina: «SolTra-
mol-o, poiso quizeraos. » Qaando isto virem, lem-
brem-se quanto diíTerentes na verdade e libera-
lidade eram os despachos e mercês dos reis por-
Inguezes, naturaes de Portugal; pois com terem
tão poucos contos de ouro, as viuvas dos seus
criados, os orphãos, os fidalgos pobres, em ge-
mendo, eram ouvidos, c despachados como filhos;

se agora, estando o rei á porta, os despachos de tão


37

graníles serviços pessoacs, sSío os que V(*'mo?,

qiiaes soráo depois que virar as costas? Qae fa-


rão os tristes que vieram da índia, ou de Afrira
com serviços de pães, dos irmãos mortos, e com
vida gastada? ir3o caminho de Madrid, e Toledo
rogar por terceiros castelhanos que não sabem o
que isto custa. Este é o primeiro inconvenienlc
que succedeu n'este caso.
« O segundo erro foi fi :armos captivos e escrc-

vos da mais soberba, odiosa, e aborrecida naçào


que ha no mundo todo; não sómento aos porlu-
guezes a quem foram em tudo inimigos; e, não
som muita causa, tem esta má nação tal fama,
porque se tem isto claramente visto no caso de
Lisboa, e das mais terras por onde o arraial pas-
sou; a sabor; fizeram todos os roubos, estupros.
eadulterios,homicidios, elyrannias, desaforamen-
los, commettidos por castelhanos de nação, sendo
n'esta parte mais comedidos, e humanos os tu-
descos, e allemãos. Somente os castelhanos fize-

ram tantas aíTrontas. crueldades, sacrilégios a ho-


mens nobres, a mulheres honestas, a religiosos
desarmados, ate nas igrejas, e mosteiros de frei-
ras, como se viu na igreja de Delias, no mosteiro
de Monchique, e Vairão '. Muito melhor nos fora
I Cm nenhum livro, ou aioda tradição oral se nos depa-
rou esta novidade.
DUJLIOTIIECA Jí." G. 3
38

morrer mil mortes, que vêr, nem chegar a taes

tempos. Basta que cumpriram seus desejos nos-


nos inimigos capitães, e chegaram a nos dizer nas
barbas com muito gosto, e soberba quando nos
viam tristes: «Teneis de tragar este bocado. i> E
de maneira nos tem o pé no pescoço que nem
tal

para chorar nossas desaventuras nos dão hcença;


e,se não fora estarem ainda as cousas no ar, sem
assento, já os desterrados com titulo de despacho
houveram de ser tantos os occupados nas guar-
nições de Flandes, Nápoles, e Itália, que se não

vira já mais portuguez de capa preta andar pelas


ruas como se costuma em Galliza.
«O terceiro inconveniente não menos para
sentir que os outros, o qual vai ainda em crescimen-
to, é que as donas illustres, e as fidalgas portu-
guezas tidas sempre em tanta veneração, e res-
peito dos estrangeiros, acreditadas por lodo o
mundo por muito castas e honestas, até nos ves-
tidos, vencidas da cobiça dos inales, ou da desen-
voltura dos castelhanos, esquecidas de sua fama
e honra, e do sentimento que devera ter da des-
envoltura de sua nação, maridos, c parentes, tão
desenvoltamente os namoram, e se lhes entregam,
que disparam em mulheres de mancebia, que em
outros tempos se estranhava muito, e que n'estas
senhoras se vê agora publicamente. Já não po-
39

dem vêr porliigiiezes, nem os próprios maridos.


Sào lantos os aduilerios, e deshonestidades suas,
que os mesmos castelhanos e italianos andam es-
pantados d'ella8, que clipgaram a dizer que senão
podiam defender d'ellas, e que elles eram os
acommettidos. As visiiaròes do arcebispo de Lis-
boa mofuias s3o taes que já chegou um cura a
nomear algumas fidalgas por publicamente aman-
cebadas com castelhanos. Na noite de S. João
d'este desaventurado anno de 81, se acharam al-
gumas senlioras mão por mão com os castelhanos
a vór as fogueiras. Também vão já tomando pos-
se das carroças de Roma, e das carretas de Sevi-
lha como cortezãs de Castella. Os casamentos
com soldados picaros foram infinitos nas esta-
cões das igrejas de Lisboa. Deus nos livre dos ma-
les, (jue estes nos vãoameaçando, para que an-
tes d'estes lançarem raízes, tenhamos rei natural

c portuguez, e que nos ponha com Castella no


andar em que estão os chinas com os tártaros,
dos quaes affirmam que fizeram um muro por ar-
raia de trezentas léguas quasi, ou como estamos
com os mouros nos lugares dWfrica fronteiros, e
para isto se efl'ectuar suavemente, inspire Deus
no peito de v. exc.% c dos mais senhores fidalgos
deste reino animo, esforço e lealdade para que
se ao diante houver alguma occasiào do se reslau-
40

rar a liberdade portugueza, ainda que seja com o


soccorro de turcos e mouros, o aceitem, e lan-
cem mão d'elle ;
pois que, se o não fizerem assim^
estou já vendo que perderam lodos seus estados,
a pátria, e muitos a vida. E sentirei muito como
portuguez leal saber lá na outra vida, para a qual
estou já de caminho, que defendem os meus na-
turaes com mór esforço seu captiveiro (mandan-
do-lhe Deus remédio), do que mostraram era de-
fender sua liberdade.
«Muitas cousas das que n'esta carta vão, vi com
meus olhos, antes de condemnado a tratos, pe-
los quaes o lutherano de Paulo Coelho, meu na-
tural, e oppositor em Coimbra mandou pagar di-
nheiro aos que m'os davam, e depois me senten-
ciaram que fosse degolado por final sentença,
que meus inimigos deram contra mim por amor
de meu rei e pátria; parte d'estas cousas vi cá
em revelação, e outros muitos males que aos
principaes d'este reino estão ameaçando, cujos
nomes não digo, porque cedo sahirá um rol ge-
ral dos portuguezes herejes, e arrenegados, jun-
tamente com os dos leaes na fé calholica de sua
pátria e nação para que, quando Portugal resus-
:

citar, e Deus der n'elle rei natural, se saiba na

santa inquisição futura da lealdade portugueza a


seita errónea que os maus seguiram, e se faça
4i

justiça d'elles, e de suas fazendas conforme as


santas leis d'estes reinos, ao qual Deus tem pro-
meitiJo de conservar eternamente. Dada no Seio
de Abralião a 20 de junho de 1581.

PEDRO D'ALrOEM.»

os SALÕES
CAPITULO m
VOX POPULI
A defíoií^Ao mais exacta da democra-
cia ú cbamar-lbe o reinado da justiça.

II n'y a que deux choses qui puisseDt


sauver la société : la justice, et la lu-
viicre.
BASTIAT.

o papel do veterano e operário dizia assim:

<0 que é a democracia?


*i E o governo do povo pelo povo — 6 a omni-
42

potencia soberana de toda a nação — é o predo-


mínio do poder popular em qualquer governo,
«Quanto mais um estado social se aproxima
do ideal da justiça, tanto mais se confundem os
interesses particulares com os interesses públi-
cos.
<(A democracia é, entre todas as formas de

governo, a que melhor corresponde ás exigências


da verdadeira justiça social.

«Mas não nos illudamos. Estudemos-lhe os


perigos, e evitemos-lhe os inconvenientes. Para
que um paiz verdadeiramente democrático possa
crescer, engrandecer-se e prosperar, carece de
certas e determinadas condições. A democracia
nunca surgiu, nem se manifestou na infância das
sociedades.
«Pelo contrario —a democracia exige uma
civilisação largamente desenvolvida, a completa
ausência das classes privilegiadas, a exclusão ab-
soluta da nobreza hereditária, uma certa homo-
geneidade nas populações, uma grande diíTusão
de luz — pela instrucção— o desejo real da paz
,

interna, e externa, ea intelligencia, eo trabalho,


como únicas fontes da riqueza, da prosperidade,
6 da consideração publica. São os perigos, e a
morte inevitável da democracia os privilégios das
castas, o espirito de conquista, a ignorância, a
43

ociosidade, e a falta de educação em lodos os ra-


mos, 6 nas diversas aplidOesde todos os homens,
que compõe uma naçáo.
fOs erros, e os vícios que sepultaram as re-
publicas da antiguidade servem-nos de luzeiro, e
sáo o pliarol, para nos indicarem as condirOes em
que a humanidade deve viver, nos rasgados ho-
risontes do futuro.
Nào
(í se illudam com a Roma pagã. Nunca
conheceu a democracia — nem nas preconisadas
formas tfibunicias da republica, nem nas grande-
zas, e no fastígio do império.
«As republicas podem ser, e algumas d'ellas
teem sido, excessivamente aristocráticas.
«i A democracia não pôde nunca estabeleccr-
se em Roma, por diversas e ponderosissínas
causas.
«De passagem mencionaremos algumas d\I-
Ias.

«Durante cinco séculos, foi o governo de Ro-


ma a guerra declarada ou latente, entre dous
corpos sociaes inimigos. Era o antagonismo das
classes, era -o espirito de conquista, era a falta de
homogeneidade nas populações, era a variedade
de crenças, era a hedionda e asijuerosa ociosida-
de das massas, era a escraNídãu, repugnante e
execranda, decretada na lei, era a ignorância do
44

povo, que o trazia submerso nas trevas espessas


da peor das servidões, e que lhe abria abysmos
na consciência. Ora, a desigualdade de cultura
intellectual é a agonia lenta da democracia, e a
arma mais poderosa da ignóbil lyrannia do po-
der.
4 Alumiemos o tugúrio do proletário, levemos
a luz da inslrucção até ao anlro mais recôndito
da desgraça.
«Que as ondas de luz se diíTundam, emillidas
pelas ullimas classes sociaes. Todos os despotis-
mos fugiião espavoíidos, porque são elles, na
sua pueril lyrannia e oppressão teimosa, os es-
cravos das ridiculas e insustentáveis tradições de
épocas que passaram.
«Interroguemos o século.
Perguntemos aos democratas: quem sois?
vi

«Somos milhares de famílias, menos algumas


— a classe media, e a nobreza que queremos—
um regimen de igualdade, em que honradamente
possamos viver do fructo do nosso suor, sem olhar
com inveja nem despeito para o património de
ninguém. Vós, as classes privilegiadas, vós, que
vos dizeis distinctos pela casta, pela raça, pelos
nomes que sabeis de vossos avós, tendes arvores
genealógicas, e apresentaes-nos pergaminhos car-
comidos pelos séculos.
45

«Nascemos nós hontem por acaso?


« Vimos de láo longe como vós. Dizeis-vos ca-

tholicos por excellencia — pois estudai, no géne-


sis biblico da vossa crença, a origem de todos
nós. Os nossos brazOes não datam de nenhum sal-
teador afamado, que responderia hoje, se existis-
se, em audiência criminal, e soíTreria, pelos seus
pena de prisão cellular ou de
feitos e façanhas, a
degredo para os climas africanos. Os nossos titu-
los de nobreza não os devemos a complacências

cortezãs, nem á ofliciosidade torpe e obscena de


alguns avoengos, derreados junto dos thronos,
a levar daante-camara para a alcova as Messali-
nas, Pompadours e Dubarrys, que não sabiam,
nem sabem resistir á lascívia e impudicicia dos
reis. Não foi nos prostíbulos, nem nas encruzi-
lhadas, tjue calçaram os nossos avós as suas es-
poras de ouro. Cingiram elles, com mais lustre e

gloria, a espada de cavalleiros. Vem de mais lon-


ge os nossos brazOes, e estão gravados, por for-
ma indelével, na superfície do globo.
«Quereis vcl-os? Examinai-os. Os lilulos no-
biliarchicos,que possuímos, datam do primeiro
homem, (|ue cavou o solo, que accendeu o fogo,
que descobriu e bateu o ferro, que sulcou a ter-
ra com a relha do arado, que desenterrou e fun-
46

dia metaes, e que devassou, no primeiro frágil


lenho, as vastas solidões do oceano.
«Fomos nós que metamorphoseamos este glo-
bo, triste, árido e deserto, n'am paraiso esplen-
dido e animado. Creamol-o segunda vez, para
cumprir a palavra de Deus, que nol-o deu para
este íim: ul operarelur eum.
«Se os céos celebram a gloria do Eterno, se,
como clamava o psalmista, o firmamento annun-
cia 6 proclama as obras do Senhor, a terra — que
é a nossa obra — narra a nossa própria gloria.
«Fomos nós que lhe fendemos a crusta, que
a semeamos, cultivamos, aformoseamos, cobri-
mos de monumentos, que, como pérolas desenfia-
das, rolaram pela vastidão das campinas, e que
lhe demos, como cinto da sua própria formosura,
essa rêJe infinda de estradas e canaes, que se
cruzam, e estendem por toda a amplidão da es-
phera terrestre. Fomos nós que descemos ao
centro das suas entranhas, para lhe extorquir os
seus inapreciáveis, e inexhauriveis thesouros.
Não ha flor, que desabroche nos campos, não ha
espiga, que se erga robusta, era toda a vastidão
da cultivada leziria, não ha fio de linho, nem de
algodão, nem de seda, não ha lamina de ferro,
de ouro, ou de platina, não ha pedaço de pedra,
47

prancha de madeira, capitel de columna ou mas-


qne n3o conserve o cunho das nos-
tro de navio,
sas mãos, 6 o perfume do nosso amor. Sim, o
perfume do nosso amor —
porque o trabalho ó a
oração — e o perfume do nosso amor é o incenso
e a myrrha, que acompanham as nossas oíTereu-
das ao Eterno.
cSubi da galeria subterrânea das minas até á
cúpula das sumptuosas basilicas, edascalhedraes
mais augustas e imponentes, sahi das elegantes
capitães da civilisarão moderna e devassai as
praias selvagens mais longínquas, encontrareis,
em toda a parte, os passos dos filhos do povo: a
democracia.
<L Somos o lavrador, que prende os bois ao ara-
do, e que sulca a terra laboriosamente — o nosso
insaciável e inesgotável thesouro. Somos o se-
gador, que ceifa o trigo, nas ardentes, e afllicti-

vas calmas do estio; o robusto ceifeiro, que cor-


ta, nos prados, esmaltados de papoulas e boninas,
o alimento constante dos rebanhos: o vinhateiro,
que poda, empa, e cava a vinha o navegante, ;

que se afadiga em transportar os artefactos da


creaçáo humana e o commercianle, que leva a
;

faz circular em todas as zonas habitadas — como


o sangue nas artérias — os suecos da terra, e os
produclos das mais variadas industrias.
48

«Nós somos o operário curvado sobre o tear,


o mineiro, que vive soterrado, e arranca das en-
tranhas da terra o carvão, que alimenta a machi-
na, multiplicando os productos; o ferreiro, que
forja e bale o ferro; o carpinteiro, que aperfeiçoa
e adelgaça a viga; o pedreiro, que abre os cabou-
cos, e levanta os muros do edifício; a íiandeira,
que estende na roca a estriga de linho o tece- ;

lão,que faz o panno, transformado em enxoval


da familia; o soldado, que vela nos limites sa-
grados do solo da palria c o marinheiro, que
;

atravessa os mares, levando bem alio o pavilhão,


que é o emblema d'um povo, e o estandarte sa-
crosanto do seu paiz.
«Nós somos tudo. O nosso nome é legião.
((Somos nós, que nutrimos, vestimos, e abri-
gamos a humanidade, e que lhe damos a paz, a
abundância, o repouso moral, c a tranquillidade
pública. As que alindam, e encantam
artes,
a vida, as letras, que robustecem, desenvolvem,

e fortificam a alma, as sciencias, que a illuminam,


c esclarecem, somos nós, que as cultivamos, que
as honramos, e desenvolvemos. Qaaudo falíamos,
quando reivindicamos os nossos direitos é sem-
pre pela voz dos nossos apóstolos.
(í Temos tido guerreiros para vencerem, poe-
tas para cantarem as nossas fadigas, e as alegrias
40

modestas do nosso lar, e artistas para commemo-


rarem os nossos heroísmos no trabalho, e escul-
pirem, no bronze, as imagens dos grandes inven-
tores.
ft Temos tido operários, para crearem machi-
nas maravilhosas, e astrónomos para nos narra-
rem as maravilhas dos céos, devassando os es-
plendores e magnificências do universo. As len-
tes, preparadas por nós, teem-nos feito conhecer,
pelo telescópio, os globos luminosos que giram
no espaço, e lêem descido comnosco, pelo micros-
cópio, aos mundos infinitamente pequenos.
«Os raros talentos d'essas ociosas, e rachiti-
cas aristocracias, d^essas estéreis, e inúteis clas-
ses privilegiadas, quando lhes estala a ultima
corda da lyra, nas tristes cstrophes das suas si-
nistras e tenebrosas lendas de fjmilia, vem sen-
tar-se na lareira do povo, e buscar ahi as harmo-
nias mais sonoras, mais suaves, e mais duradou-
ras — as únicas que hão de achar echo nos sécu-
los do futuro — as lulas incessantes, pelo pro-
gresso, em que lida a gerarão actual. A sua der-
radeira canção r para o povo: o canto do cysne é
o hymno da democracia.
Nós somos a arvore gigante e immcnsa da hu-

manidade, com as raizcs perdidas nos limbos do


50

passado,com o tronco vigoroso, que resiste aos


embates dos tempos, com os festões de ílôres que
desabrocham, e emmurchecem passando, e com
os fructos sazonados do presente, na esperança
das odoríferas flores, que, com o seu cálix radian-
te de vida, hão de perfumar o espaço no futuro.
«Eis-aqui a democracia.
«E quem são os seus adversários junto d'esta
frondosa e copada arvore da humanidade?
« São os cogumelos parasitas e venenosos, que
vegetam á sombra d'este cedro magesloso e se-
cular.
(íOs privilégios e as castas são o absurdo, são
a torpeza dos costumes, são o desconhecimento
completo do século que atrevessamos, são as tris-

tes reliquias das épocas feudaes, são os distia-


clos das ridículas nobiliarchias byzautínas, são a
ignorância e o ódio ao trabalho, são, finalmente,
a protecção dada em premio, por feitos e acções,
que, as mais das vezes, tem sido um poderoso
obstáculo ao progresso, e á civilisação da huma-
nidade.
((As recompensas, as glorificações, e as apo-
theoses, quando justas, quando bem merecidas,
quando conquistadas pela aptidão, pela sciencia,
pela arte, pela industria, pela própria virtude ou
61

pelas grandes dedicações, são vitalícias, e passam


á posteridade com o nome que se engrandeceu,
e vem a historia esculpil-o nos mármores dos
seus fastos.
« A democracia, como hereditário, só reconhe-
ce um direito, um dever, e uma nobilitação para
o homem: é o trabalho.
« É absolutamente necessário que se contem
todos os partidários sinceros e leaes da justiça, e
que pela palavra, pelo livro, e pelo exemplo, ar-
rastem os indecisos, e abandonem o restante —
os poderosos do dia — aquelles, que não apren-
dem, nem esquecem nada.
«Attendam a que chegou a hora, em que a
menor hesitação, a menor duvida, o menor pas-
so irreflectido, ou a mais timiJa concessão, podem
fjzer recuar, para muiio longe, o reinado da jus-
tiça — o governo do povo pelo povo.
«lE povo somos nós todos, que vivemos de-
baixo do mesmo céo, sujeitos ás mesmas leis, e
que exercemos, na sociedade, funcções c miste-
res diversos, mas igualmente úteis e necessá-
rios.

«Hoje, ha uma só nobilitação: é o traba-


lho.
«Trabalhemos todos para a revolução nos es-
píritos —
ponjue concorremos para o advento da
52

verdadeira liberdade, para o governo da justiça


social, e para a emancipação da humanidade.
«E assim realisaremos a democracia.»

Terminava aqui o papel, escripto pelo ancião,


condecorado em Souto-Redondo.

O MANUSCRIPTO DO DESEMBARGADOR

IV

CARTHAGO
Caetururo, censeo Carthagioem
esse delend^m,

MARCUS PORTIUS CATO.


L'lnstoire n'est pas sealement
un drame, elle est une justice.

LAMARTINE.
A philanlhropia ingleza é pura-
mente mcrca)itil, assim como o
são todas as suas virtudes, que
deixam de o ser logo que se não
conformam com os seus interesses.
FREIRE DE CARVALHO.

Na deslumbrante e magnificente descripção


da aurora bíblica do nosso globo, diz o Génesis,
que o Espirito de Deus era levado sobre as agua?
El Spiriliis Dei ferehnlur super aqiias.
Parece que a raageslade divina escolhera este
elemento, na sua esplendida grandeza, para en-
cetar a obra da creacão.
*

Seja assim n'este modesto trabalho.


Busquemos os primeiros salões do nosso sé-
culo nas solidões immeusas do oceano. E a Car-
Ihago moderna, a nobre e fiel alliada de Por-

tugal, á do execrando bombardea-


luz sinistra
mento de Copenhague, em 1807, ao clarão aver-
melhado dos primeiros foguetes do coronel
Congréve, ensaiados no acto da mais atroz e
inaudita pirataria, mostrar-nos-ha o Belléro-
phon, o Windsor Castle, e o Delfasl, três salões
em que a fé púnica da Gri5-Bretanha se expan-
diu, no seio das ondas, d sombra das suas ílam-
mulas, que sao a divisa dos bastardos da rara
latina.
Ha duas infâncias na vida: a juvenil, e a se-
nil. Perdoem ao homem, que já vô a sombra pro-
jectada na beira do fosso da sua ultima jazida,
estes echos longínquos,que vem ftM'ir-lhe o tym-
pano nas vésperas da sua dissolução physica.
Convém que nos entendamos:
A Carthago na designarão latina, a Karkhé-
dnn no vocábulo grego, a Kercth-hadeshot ou em
ninLioniKCA N." 0. 4
54

pronuuciação dialéctica Karth-hadtha, segundo


05 lermos púnicos e phenicios, finalmente a ci-
dade nova pela traducção e tradição da capital car-

ihagineza significa, para mim, na actualidade, a


futura ruina da rainha dos mares, da soberba,
orgulhosa e egoista Albion. E nada mais.
Deixemos passar as correntes históricas.
A analyse verdadeira, justa e consciente d'uma
sã e severa critica atira ás faces dos romanos
com esse ignominioso epitheto de fé púnica, que
só a elles cabe na antiguidade das ambições lati-
nas, e no ardiloso espirito dos Machiáveis da Itá-
lia, transmitlido alé ao ultimo papa. E a mais

ninguém.
Desde Rómulo até Antonelli são vastas as con-
cepções de perfídia, erguidas, a principio, no ca-
pitólio, para ficarem mais tarde, como tradição e
doutrina, nos salões do vaticano.
Havia um dia em Roma, em que, ao comme-
morar o supplicio e resurreição de Christo, subia
ás sumptuosas varandas da basílica de S. Pedro
o escolhido entre os bispos, arremessava o facho
do incêndio, o emblema do inferno á praça pu-
blica, analhematisava os herejes, e invocava so-
bre elles a cólera do Eterno.
Era a fé púnica, na singela e curta interpre-
tação de Scipião o Africano.
A igreja calholica, na ingenuidade d^eslas
crenças ferozes, segue as tradições latinas, e a
innocencia virginal de Scyla, de Mário, de Nero,
de Constantino, de Alexandre vi, de S. Domingos,
e de todos os Simões de Monforte, e de todos os
Torquemadas da reIigi3o do operário nazareno.
Olhemos para Carthago.
Vejamos o que era a fé púnica.
A cidade phenicia assombrava Roma. Dobra-
va-se, porém, aquella diante do orgulho da cida-
de de Rómulo. Curvava-se submissa a raça semi-
tica na presença do povo indo-europeu. Cartha-
go sujeitára-se á dura condição de ni5o defen-
der os seus direitos, nem a sua própria indepen-
dência sem aulhorisaçáo de Roma. Aproveitou-se
Massinissa, principe da Numidia, d'este abjecto e
humilissimo pacto, para avassallar o empório das
riquezas d'Africa ; —e quando
commissâo, en-
a

viada pelo senado, voltava ao Lacio, depois de


ter fomentado e atiçado a discórdia, Caiáo no —
seu ódio implacável, e cego pela torpe e abjecta cu-
bica, que o movia, terminava constantemente os
seus discursos com a celebre phrase, que revela-
va toda a negrura d'aquella alma: 4 E de mais é
preciso destruir Carthago » — Dclmda quoque
CarUiago.
E quando Carthago, confiando na lealdade ro-
56

mana, entregava e depunha todas as suas armas


e machinas de guerra, ficando indefesa, e iner-
me — agradecia-lh'o com a mais hypocrita e pun-
gente das ironias, o cônsul Mareio Censorino, di-
zendo aos carthaginezes «Louvo-vos pela vossa
:

«prompta obediência em cumprir as ordens do


«senado. Sabei agora a sua ultima vontade:
ícmanda-vos sahir de Carthago porque resolveu
(ndestruil-a.D
E mais tarde —
ardia dezesete dias a cidade
nova dos phenicios, por ordem expressa do sena-
do, e, na voragem e horror do incêndio, saquea-
va a soldadesca infrene as immensas riquezas,
que sete séculos alli tinham accumulado.
A fé púnica é uma calumnia histórica, inven-
tada pelos romanos, cujo ódio e ciúme, sem re-
pouso nem tregoa, sobreviveram á carnificina
mais cruel e hedionda de que rezam aschronicas
e lendas da antiguidade.
Aceitemos, pois, Carthago como a imagem do
aniquilamento, e da destruição.
Seja a fé púnica, na inversão da phrase, o es-
tigma e ferrete da lealdade latina.

A Grã-Bretanha será a Carthago do futuro,


como é, na sua machiavelica e pérfida politica,
a Roma do passado, do presente e do porvir.
AlUança e alliados, na bocca de qualquer go-
C7

verno inglez, diz um escriptor liberal, quando


nào sâq palavras enganadoras, são, pelo menos,
palavras sem sentido.
Sem saliirmos do século xix, desde o por-
to da capital da Dinamarca até is muralhas de
Metz e trincheiras de Sédan, são longas e
monstruosas as provas da fé britannica, e da leal-
dade ingleza. Ilndson Lowe, o carcereiro do Pro-
metheo moderno — imagem do abutre roendo-
Ihe as entranhas nos rochedos de Santa Helena,
será a ignominia e alTronta eternas dos algozes
da Irlanda.
Estamos nas amuradas de Bellérophon.
Entremos no convez.
Antes do desenlace final d'esta tragedia anti-
ga, que parece modelada por Sophocles ou Eu-
ripides — escrevia Napoleão ao príncipe regente
<le Inglaterra a seguinte carta :

€ Alteza Real.

€ Alvo das facções, que dividem o meu paiz, e


A da inimizade das grandes potencias da Europa,
<i acabei a minha vida publica, e, á semelhança de
€ Temistocles, venho senlar-me no lar do povo bri-
<i lannico. Abrigo-me á sombra das suas leis, e pa-
4 ra isso invoco vossa alteza real, como o mais po-
58

« deroso, o mais constante, e o mais generoso


<( dos meus inimigos.

(L Napoleão. y>

Responder com um asylo magnânimo, e gran-


dioso a esta invocação escripta, teria sido para a
Inglaterra a mais nobre das vinganças, e a pagi-
na mais magestosa da sua historia.
Irrisória illusão ! A orgulhosa Albion não vi-
ve de gloria: vive de dinheiro. Quem deixou mu-
tilar a Polónia, quem escravisou a índia, quem
fomentou a guerra civil nos Eslados-Unidos, quem
viu impassível as desgraças da França, e quem
subjuga, pisa, e tortura a Irlanda, escolheu adre-
de os leopardos, para insígnia e emblema herál-
dico dos seus armazéns da cily. A Inglaterra é a
feira da Ladra da Europa. Seja assim para honra
da raça latina, onde não ha filhos espúrios dos
chatins do Oriente.
Napoleão vestiu aquella farda dos caçadores
da velha guarda, como se estivera em Marengo,
Austerlitz ou lena. Entrou com o general Becker,
e com os legionários dedicados da sua heróica
Iliada, n'um escaler — ultimo refugio das suas glo-
rias—e subiu para o brigue francez, que ia leval-o

á esquadra ingleza. Becker quiz acompanhal-o


59

n'esla via dolorosa. «Não, não, general, bradou-


Ihe o vencedor de Arcoli, cuidemos da França.
Se entrardes comraigo no Bellérophon dirão que
me entregastes aos inglezes. Não quero que a
França soíTra a responsabilidade, a suspeita, e
nem sequer a apparencia d'uma traição tama-
nba.
A bordo do Bellérophon estava ocommandan-
te Maitlaud, os seus ofliciaes, e toda a equipagem
esperando o vencido de Waterloo. Dias depois
entrava na bahia de Plymoulh o Bellérophon ás
ordens do almirante que o recebeu com o
K<^ilh,

respeito obrigado com que o visitara a bordo


d'um pontão inglez o almirante Hollnm.
A Inglaterra aceitou a affronta e o escarneo
das potencias alhadas. Disseram-lhe estas no ar-
tigo ^2.0 da sua famosa declaração : t A prisão de
Napoleão Bonaparte é coníiada especialmente ao
governo britannico.»
Foi a Inglaterra o cárcere, foi o traidor, e foi
o algoz.
Aceitou três papeis infames.
Entregou á Europa o banido, que Ibe vinha
pedir refugio e hospitalidade, invesliu-se na mis-
são execranda de carcereiro, e gizou, com a soa
fértil imaginação, o cárcere da águia da Córsega,
o antro onde ia sepultar o génio das batalhas.
60

Cuspam na memoria, em parte talvez calum-


niosa, de Judas de Kerioth, no drama sanguento
de Jerusalém, e respeitem e curvem-se reveren-
tes diante dos suíTetas da Carthago britannica.
Arrancaram-lhe a espada épica das cem bata-
lhas, quando elle, abandonado e indefeso, medi-
tava encostado á proa do seu cárcere flucluante —
e foi preciso, que o genro do imperador da Áus-
tria, o antigo tenente de Toulon, os encarasse fa-
ce a face, para que os almirantes da velha Albion
estremecessem de vergonha, e corassem de pejo,
satisfazendo-se, no seu vil orgulho, com as ada-
gas de Bertrand, Savary, Lalleraand, Gourgand,
e de todos os outros legionários d'esta phalange
homérica.
Napoleão não sabia chorar. Passou impassí-
vel por sobre quatrocentos mil homens, que jun-
cavam os gelos da Rússia. Viu immovel os desas-
tres de Leipsick. Escutou silencioso, em Fontai-
nebleau, o ruido surdo da catastrophe quando o
império desabava. Afastou-se de Waterloo sere-
no, implacável e severo como o destino — e nem
uma lagrima deslisava por aquellas faces, assen-
tes n'um busto grego, e que pareciam rasgadas pe-
lo scopo de Phidias, como ornamento do mais
'^asto craneo, que a Providencia ousou modelar.
Mas rebentou em pranto desfeito, e corriam-
61

lhe as lagrimas como em torrente caudal, ao lór


os pormenores aviltantes da segunda occupaçào
de Paris.
Não era o imperador, nào era o general, não
era o tenente d'artilheria, nào era o coiso: era
o ultimo dos francezes, se assim querem — que
chorava de vergonha e de raiva ao vôr a nobre e
formosa terra das Galhas pisada vilmente pelos
cossacos do Don, e pelos ignóbeis escraN^Ds do
Czar de todas as Russias.
Virtude, tu não és mais do que um nome !

Estas palavras, attribuidasa Bruto, e que são ape-
nas a citação d'um verso da Medêa de Euripides,
vieram reboar em SéJan, e feriram, ainda n'esta
geração, as traições, as insidias, e os ardis do se-
gundo império, que cahiu a pedaços esphacelado
e púdre sob as garras da águia da Prússia.
O almirante Keith recebeu o ultimo protesto
de Napoleão. Era o seu testamento de vingança
arremessado á posteridade.
Terminava assim :

* Appello para a historia : dirá ella que um ini-


migo, que durante vinte annos combateu o povo in-

glez, veio, em liberdade, no seio do seu infortú-


nio, buscar um abrigo á sombra das suas leis —
que demonstração mais brilhante podia elle dar
da sua estima, e da sua confiança? Mas comeres-
62

pondeu a tanta magnanimidade a Inglaterra? Si-


mulou estender-lhe mão hospitaleira, e quando o
segurou nas garras, quando elle se lhe entregou na
grandeza da sua boa fé — trahiu-o, e immo-
loU-O. ))

O nome do heroe firmava este protesto. Foi


com a mão habituada a empunhar a espada da
victoria, que o vencedor dos reis, escolhidos por
direito divino, escreveu: Napoleão.
Pouco depois, um vaso de guerra, o Nor-
Ihumberland arrostava as vagas do oceano, le-
vando a seu bordo o homem, que fora o terror
do commercio da Inglaterra, e o missionário in-
consciente da liberdade europôa.
E no meio d'uns rochedos de granito, na soli-
dão dos mares, na insularão completa de todas
as aspirações d'aquella vasta e grandiosa intelli-
gencia, amarravam ao poste da mais tremenda
perfídia o homem, que o mundo inteiro acclamá-
ra imperador, e a quem a Inglaterra, mesquinha
e ridiculamente, nos seus ódios e pavores vilissi-
mos, regateava o avcf impcraíor! que duas gera-
ções lhe votaram, raandando-o appellidar secca-
mente: o general Bonaparte.
Detesto o heroe, mas choro ao lado do mar-
lyr. Curvo-me perante os altos designios da
Providencia, que levantou sobre os broqueis da
63

\icloria o Atlila moderno, o açoute de Deus —


velo a fronte cheio de horror c de indignarão,
quando considero este homem feito á imagem
do Creador, caminhando sobre cadáveres, na sua
sòáe insaciável de conquistas; e por um rasto
de sangue humano subia ao Ihrono das monar-
chias do occidenle, depois de perdidas as illusões
com que sonhara o império da Ásia.
Morreu em Santa Helena, no seio dos mares,
para além das lutas democráticas da Europa, o
mais ambicioso dos conquistadores, e o maior
génio d'esie século.
Alexandre Homero. Napoleáo meditava os
lia

commentarios de César. E Alexandre, Annibal,


Scipião, César, Attila, Frederico ii, e Carlos xii,
são pallidos meteoros, que fulgiram, e passaram
diante d'este esplendido luzeiro, d*esta magesla-
de immensa, que, como o astro do dia, tingindo
de purpura o firmamento, vai immergir-se lenta-
mente nas vastas solidões do oceano.
Hudson Lowe foi a syntliese dos ódios selva-
gens, e das cubicas inexcediveis da nação ingloza.
Por mais que a Inglaterra simule os enthu-
siasmos d^um povo livre, por mais que apparente
respeitos, e aflirme sentimentos generosos, e ma-
gnânimos —
em quanto Santa Helena fòr uma ilha
c Hudson Lowe uma verdade histórica, temos nós
64

todos, nós — raça latina —o direito, e o dever


de lhe atirar ás faces, no soberano desprezo da
nossa lealdade, com um nome só: —o nome do
Bellérophon.
Este vocábulo é o epitaphio sinistro, lúgubre,
e aíTrontosoda generosidade britannica.

VISCONDE D'OUGUELLA.

MANOELINHO DE ÉVORA

É errada a presumpção histórica de que o


Manoelinho — pseudonymo grutesco de uma as-
sembléa de revolucionários — figurasse tào so-
mente nos decretos expedidos durante o levanta-
mento do povo eborense, acaudilhado por Sezi-
naudo Rodrigues e João Barradas, em iG38.
Consigne-se de passagem que eu ainda não
vi algum d'esses decretos, nem D. Francisco Ma-

noel de Mello, o mais detençoso historiador dos


tumultos de Évora, nos transmiltiu traslado de
algum.
65

Representações a Filippe iv, e salyras aos


porluguezes infamados de hespanholisrao, em
fim a gazela manuscripla, como ella podia clan-
destinamente correr n'aquelle tempo, começou
a circular, em 163'), logo depois que a duqueza
de Manlua chegou a Lisboa.
Entre os manuscriptos relativos á ultima dé-
cada do nosso captiveiro, possuo dous. É um as-
signado por Matwelinho menino, em Évora, aos
29 de agosto de 1037, poucos mezes antes do
motim Uma carta que os meninos de Évora man-
:

daram ao bispo do Porto.


Este bispo era D. Gaspar do Rego, nomeado
n'aquclln prelazia n'essc mesmo anno, anterior-
mente bispo de Targa, muito aíTecto a Filippe iv
de Caslella, e um dos tenacíssimos ahitrislas dos
impostos sobre a sua pátria. O seu biographo
padre Agostinho Rebello da Costa {Dcscrijirão da
cidade do Porto, pag. 83) exalta-lhc as virtudes
prelaticias, a lermos de o sentar no refeitório co-
mendo com a sua família, virtude que todos nós
possuímos pouco mais ou monos.
Mas nem es?a lhe concediam os delrabidores
que se chamavam os Meninos de Évora; e eu n3o
sei o que lhe fariam em lOiO, se elle n3o tivesse
morrido em 13 de julho de 1030, fora da sua dio-
cese em Lisboa, onde o tinham chamado Miguel
66

de Vasconcellos e os outros que se lemiam do ru-


gir soturno do vulcão popular.
Vai vêr o leitor pela primeira vez, se me não
engano, qual era a prosa do Manoelinho. No pró-
ximo numero d"eslas Xoites, lhe darei amostra
das musas acaraaradadas com os heróicos revo-
lucionários de Évora.
Eis a cnrla:
«A' noticia d'esta cidade chegou, reverendís-
simo bispo tyranno, ser v. s.=* a origem de que
este reino tão calholico padeça oppressões tão
insoíTriveis, como no miserável esta-
elle testefica

do em que tomando-vos para executar a


se vê,
mais infame empresa que em nossos tempos vi-
mos, nem de nossos antepassados sabemos; —
que até considerada envergonha. Porque, quando
a desventura chegasse a tanto, que, como por
prophecia, houvesse alguém de tyrannisar a pátria,

fosse o fidalgo pobre, rico de filhos e falto de ren-


das; e ainda n'este, depois de satisfeito, cessaria

a ambição. Mas um prelado, a quem havia de fal-


tar o tempo para dar graças a Deus de o chegar
a ser, e que aos pobres havia de dizer: (ribuo
vobis pro otnnibus quce retribuis mihi — grão mal-
dade! e com razão podem dizer por vós o que
Platão por Dionisio: Vidimus monslrum in natu-
ra honimis.
67

«Que naus portos? Que


vistes entrar n'estes
Que riquezas n'es-
frotas vistes vir lá das índias ?
le pobre reino? K que farturas n'este nosso Alem-

tejo que, como lillio tâo mimoso de seus pães,


sentiu como de padrasto o pi5o de vosso alvitre?
Mas a verdade, Aquelle que é a mesma verdade,
diz no Deutcronomio, cap. -i: Cotligilc ex vobis
tiros sajjienlcs, et nobiles. A sciencia em vós é era
ludo um que apren-
retrato natural da de Nero,
deu todas tendo por mestre ao grande Séneca, e
foi um dos mais torpes tyrannos do mundo, alé

chegar a matar sua própria mài, como vós agora


quereis fazer á amada pátria; porque em lim,
sciencia sem virtude, não vem a ser uma nem ou-
tra cousa; mas elle já nenhuma professava, o vós
professaes ambas, e não exercitaes alguma. A no-
breza conservam os que carecem d'ella, e o dar-lhe
nascimento, na benigna clemência, é para que,
convocando os ânimos, esqueçam a baixeza dos
seus progenitores. E vos, pelo contrario, querereis
dar vida ás de António Fernandes, vosso pai, e de
Anna Antónia, sua mulher... Os extremos todos
são maus. Temos rei calholid), não o façaes In ran-
no ; c príncipe benévolo, não o facaes cruel. Deixai
Portugal ser pobre já que vos deixou ser bispo.
Não vt^des que porTarga ser de herejes, vos Gze-
ram do Porto? e (jue poro Porto não (juerer, vos
68

faziam de Coimbra ? As cidades são como os pa-


rentes; corre-lhes a dôr pelas veias como o san-
gue a ellas. Ao menos estai advertido no salto

em que haveis de fazer por este arcebispa-


claro
do, tomando o pé atraz como Sebastião de Mat-
tos ^ mas não seja d'estas partes. Não sei se vos
poderão valer os foros das casas de Luiz de Miran-
da. O cavalleiro, se lhe chamam tardo, madru-
ga; se desbocado, cala-se; se demasiado, tem-
pera-se ; se adultero, abstem-se; se peccador,
emenda-se; mas, se é traidor á pátria, não ha
emenda nem desculpa. Sabei que a propriedade
d'este reino foi sempre não desobedecer nunca
ao seu rei, nem deixar-se mandar de tyrannos,
6 que vale mais pobre, dando pouco, que deses-
perado.
«De muito atraz trazemos por criação a distri-
buição de três cousas: a alma para Deus, o me-
lhor para nós, e a fazenda parael-rei; e quem se
viu n'isto, não duvida dar quartos, mas quintos
para quintas; e por vosso conselho não havendo
n'este reino quintaes (digo de arvores, que de
canella já nem sabemos de que cor é) solTre-se

mal. E se vós quereis excessos para a pátria, e

* Este Sebastião de Mattos é o arcebispo de Braga que


depois conspirou contra D. João iv, e morreu no cárcere.
«9

perraillir-se contra ella o favor que houve Nuno


Alvres para Pedralves traidor, a quem o eco sub-
verteu, haverá meninos em Évora para Gaspar
do Uego se abrazar.
«Por Ithaca, nobre ilha de ásperos penedos,
passou Ulysses immensos trabalhos. Disfarçado
el-rei Godro para libertar a pátria, se oíTerece á
morte; pela pátria renunciou o império; e Mu-
cio Screvola renunciou a esperança da vida por
a tirar á própria que como vós a perseguia '.

E os naluraes que a isto não se oppOe vem a aca-


bar n'el!a, como Annibal em Garthago e Gatilina
em Iloma. Attendei ao que diz o apostolo: An-
na mUitiic noslrie non suul carnalia, sed sfiiri-
fualiii. Sois christào, sois sacerdote, sois prela-
do, sois natural do reino: dizei d*elle o que n'el-
le vCdes, informai das necessidades ; e, se não
sabeis d'ellas, ahi amam a caridade, vereis de
quantas sois secretario, quantos fidalgos pade-
cem, quantos senhores acabam, quantas donzel-
las perecem. P^alta o ouro, a prata ; o contracto,
por que vós não fallaes, que nem Deus o quer
dar superlluo, nem o necessário se promette dar-
se. Perguntando-se a Alexandre para que queria

1 Nio nos parec« clara a redac<:áo, ou ha elisão de pa-


Livra no mfu trtslado.
UIBUOTUECA X." 0. 5
70

ser senhor de todo mundo, respondeu : Todas as


guerras que se levantam são por uma de Ires
causas ou por haver muitos deuses, ou por ha-
:

ver muitos reis, ou por haver muitos tributos


quero ser senhor de todo o mundo e rei para
que não haja n'elle mais que um Deus, neui se
conheça mais que um rei, nem se pague mais
que um tributo.
íiElle era pagão, e vós christão ; elle rei, e vós
bispo; elle creado na terra, e vós na igreja;

nunca ouviu o nome de Chrislo, c vós jurastes


defender o Evangelho. Parece que muilo diíTere
uma cousa das outras. Se o fazeis por fama, já
é geral, pois nós vos sabemos o nome. O vosso
nome Se o fazeis por inte-
é flagellum palrice.
resse, já basta o que tendes; se mais quizerdes,
já cá passamos signal; se nós podermos, com o
mais constará a pontualidade... Tende lastima
de ura reino que, sendo antigamente um mar, se
vai esgotando a Castella por um Rêgo. Nosso Se-
nhor vos converta, e vos traga a i>ossas mãos,
para augmento d'este reino, e vida e paz c quie-
tação de seu rei. Évora 27 de agosto de 1037.
Por mandado do povo todo junto

Manodinho Menino, »
71

A MORTE DE D. JOÃO

(por GUERKA JUNQUEIRO)

E' um livro de 330 paginas que eu li sem in-


tcrmiltencias.
A poesia o quasi sempre porlugueza e dos mais
altos quilates ; mas a substancia do livro é estran-
geira.
Aquellas podridões, desenhadas do vivo com
primorosa execução, n3o fermentam n'esle paiz
mais atrazado e menos devasso que o restante da
Europa.
E' verdade que ha crcaturas um tanto pútri-
das nos hospilaes, e lá se dissolvem : peor seria,
se não tivessem aquelle paradeiro onde a miseri-
córdia humana lucla com a fatalidade da morte á
beira do catre da agonia.
O D. João portugucz, por via de regra, aos
quarenta annos, tem a espinha dorsal amollecida,
caulerisa as frieiras e lima os callos. As Imperias,
entre nós, nãoacabam por tanger cornctim em
companhia de ursos; mas tem ursos e dromeda-
72

rios, uns Tenorios farináceos que lhes tornam a


velhice divertida e, ás vezes, serodiamente ho-
nesta.
Não obstante, eu, em Lisboa, conheci um D.
João, que, tirante a chalaça e o urso, era o D,
João de Guerra Junqueiro.
Conheci-o gentil, capitão de lanceiros, com
um appellido dos mais nobres do reino, bizarro,
petulante, fátuo, bandarreando com os seus ca-
vallos oriundos da Lybia alli pelo Chiado. Ama-
vam-no as burguezas e as princezas. Amavam-no
tão doudamente que se perderiam, se não estives-
sem perdidas quando elle as achava. Alli, em Lis-
boa, um D. João acha sempre uma D. Joanna tão
boa como elle.
Era isto em 1849.
Onze annos depois, estando eu na casa-da-
saúde, vi entrar, no quarto de certo doente, um
homem maltrapido, com o nariz rúbido, a cara
esvurmando brotoeja, os dentes ferruginosos, os
beiços esfoliados como escama de sarda de barri-
ca, os olhos broslados de malagueta, e a pupilla
oleosa. Era o capitão de lanceiros, que vinha alli

visitar um homem que costumava dar-lhe um tos-

tão para aguardente. E n'essa tarde levou o tos-


tão e roubou-lheum relógio de prata, um caldei-
rão que valia um quartinho í
Ta

— O meu relógio! — exclamava o pobre Sou-


sa Nelto— é o que me restava da minha moci-
dade!
Sousa Nelto orçava pelos sessenta e seis; linha
gota, iQlervallosde demência, iiavia sido lambem
D. João, e usava constantemente habito de Chris-
to no peito, mouras vermelhas nos pés, e um ca-
pacete de lontra na cabeça.
O outro, aquelle que encontrava Imperias no
paço, esphacellou-se na testada de uma taverna; os
luzanos da cova de certo taparam os seus narizes
microscópicos quando o esquife o vasou nas en-
tranhas da natureza, mãi carinhosa do cão po-
dre, do homem pOdre e de tudo que t' perfeito
n"este mundo.
O homem espoliado do caldeirão ensandeceu a
final, .abrazado em concupiscências que resfole-
gavam em colcheias, em decimas, em sonetos, que
me recitava a mim e a Matheus de Magalhães com
uns olhos tamanhos e tão accesos que parecia o
diabo de Santa Thereza de Jesus.
Estes dous typos lêem moldura no poema de
Cuerra Junqueiro.
74

As mais nervosas e engraçadas paginas de ver-


sos que eu tenho lido de lavra portugueza são a
parte d'este poema intitulado fíomanticismo, e a
outra chamada Os saltimbancos. São trovoadas de
talento. Paradoxos assombrosos que vos tiram do
diaphragma epilepsias de riso.
Ás vezes, magoa uma espécie de motejo que
parece rebellar-se contra tudo que grande parte
da sociedade respeita. Vem alli de camaradagem
com a ironia implacável do snr. Junqueiro o es-
tylete sarcástico de lord Byron e de Alfred de
Musset; mas o nosso poeta avanlaja-se na crueza
das invectivas contra o dogma, afistulando sober-
bos versos de um alheismo que de certo lhe não
está no coração, nem na educação nem nos irre-
prehensiveis costumes. Tirante isto, ahi é tudo
alegria; e até, quando a musa philosopheia por
transcendentes contemplações, lá surde a palavra
cómica, o simile galhofeiro, esta cousa moderna
que não tem nome, —
uma bella extravaganci3
que nos regosija. E assim é como se querem os
livros, porque lá diz Aristóteles no 2.» da Elhica,
cap. 12, que a melancolia corrompe a natureza e
faz pasmar o coração.
75

Eslc modo de] poetar será o hiral moderno?


E', com toda a certeza. Quando eu era rapaz, o
poeta ideal era o ethereo, o metaphysico, o es-
pirilualissimo. Por tanto, o ideal, segundo Taine,
não tem que vôr com o ideal, segundo Lamarline.
No livro do snr. Junqueiro, bem que os carnalis-
simos assumptos alli poelisados não pareçam
ideaes, abona-os o indeclinável legislador n'esla
matéria. A obra d'arte — dizTaine— põe o fito

em manifestar algum caracter essencial ou rele-


vante, mais perfeita e lucidamente do que os ob-
jectos reaes nol-o mostram. O artista, por tanto,
concebeu a idt-a doesse caracter, e, a sabor da sua
idéa, transformou o objecto real. Este objecto as-
sim transformado, sabe conforme á idva, ca, pa-
ra mellior o dizer —c o ideal. Assim, pois, pas-
sam as cousas do real ao ideal, quando o artista,

ao reproduzil-as, as altera a bcl-prazer da sua


idéa, etc. {L Ideal dans l'Arl).

Quer dizer, ao que parece, que o ideal é uma


modificação do real a taiantc do artista; por ma-
neira que o sobrepor misérias imaginarias ás mi-
sérias positivas — e.xulcerar desgraças inevitáveis
cora a imprecação de desgraças ficlicias —é o
Ideal.
Em fim, são seitas, e o impugnal-as quando
76

ellas ainda verdejam é perigoso: o melhor é dei-


xal-as apodrecer.
O que ha de ficar e sobreviver ás escolas
(porque o snr. Guerra Junqueiro de certo não crê
em Taine, e é realista na máxima latitude da pa-
lavra) são estas paginas da Morle de D. João, alu-
miadas pelos relâmpagos do génio. Esle livro se-
rá lido por aquelles mesmos que o malsinarem
de propagador de peçonha em cálices de ouro.
E' a obra prodigiosa de uns annos muito em flor.

Quando a mão do tempo, a desgraça dos annos,


e algumas noites de meditação dolorosa, levarem
á consciência do admirável poeta a imagem da
Justiça, enquadrada na moldura fatal em que ha
seis mil annos a conhecemos na historia, então
os poemas do snr. Guerra Junqueiro serão por
igual bem versejados, mas muitíssimo mais con-
solalivos para os infelizes que elle deplora com
generoso coração.
77

POETAS E PROSADORES BRAZILEIROS

Seis livros de variada leitura me vieram ali-


geirar as horas da aldeia, n'esle inverno de ju-
nho; que no decantado Minho já não ha prima-
vera nem estio, nem melros nem rouxinoes.
Doesta farailia de cantores tão gabados nas eglo-
gas de Sá de Miranda e Diogo Bernardes abalou-
se a espécie, desde que o Minho, policiando-se
do agro primitivo da sua natureza alpestre, es-
Irondra com o caboucar das vias-ferreas e o es-
tridor das diligencias. De rouxinoes restam-nos
apenas aquillo que os francezes chamam Houssi-
gnol a gland, e lioussijnol dArcadie. Estou a
vôr se me desmente o meu presado amigo D. An-
tónio da Costa no seu promettido livro das deli-
cias do Minho.
Eu por mim, quero convencer-me que es-
se
tou na sazão do calor e das llúres, mando abra-
zar o fogão, accendo a michina do café, espalho
uma abada de rosas no estrado, cubro-me com
um cobertor, imagino que estou no junho de
Fernão d^Alvares do Oriente, e, com o nariz
78

de fora, e espirrando, exclamo, em nome do


poeta:

Pomona e Flora
Seus dons vem pelos campos espalhando,
Cantando espalha Fauno a voz sonora.

Fazem doce harmonia os arvoredos


Que o vento bole, e as aguas derivadas
Das ásperas entranhas dos penedos.

As aves tcm,as d'outras namoradas


Enchem de saudosa queixa o monte
X'urn desconcerto alegre concertadas.

Boninas varias vai regando a fonte


Que convida, correndo manso e manso,
O rouxinol, que su'xs magujLS conte.

A qualquer parte, pois, que os olhos lanço


Matéria me offerece de alegria
Tudo quanto co'a vista alegre alcanço.

Etc, ctc.

E, ao mesmo tempo, vou aconchegando os


pés do varandim do fogão, e fazendo-mc um es-
tio interior de café de Moka.
70

N'esla situarão, deixa-se a natureza aos na-


que vem ao campo
luralislas; e a genle, cm cala
de brisas olorosas, nâo salie de casa, e 16 sem-
pre, a fim de desviar a lenlação ao suicídio in-
glez, que é a congestão fulminante do tcedium
viUv.
Tenho, pois, seis livros de escriptores brazi-
leiros, a quem devo a fineza de m'os enviarem
a esta região de gelas.
Os Idyllios do snr. doutor Caetano Felguei-
ras. As Tetèvas, em prosa do mesmo poeta.
Os Apontamentos de viagem do snr. J. C. da
Gama e Abreu (1.° tomo). O I*antiieon mara-
nhense (!." tomo). SCIENGIAS E LETRAS. APON-
TAMENTOS PARA A HISTORIA DOS JESUÍTAS NO Dra-
ziL (1.° tomo). As Ires ultimas obras são do mes-
mo aulbor, o snr. dr. António Henriques Leal.
Ha annos que o snr. Felgueiras me enviou a
sua Kpistola n Machado de Assis. Era a revela-
ção de um espirito antigo no alTeclo tás maviosas
cousas do campo. Versos (]ue recendem o tomi-
lho e a madre-silva. Desenhos correctos da cor-
poratura gigante das arvores americanas. Humo-
rejos dosmeandros que serpejam na tige das bo-
ninas. O estridor das cascatas que ruem estre-
pitosas. A suavidade dos jardins. O verde das
arvores, e os pomos a lourejal-as. E, depois,
80

O espirito da alegria no sorriso da paz a co-


lher as bênçãos que Deus cruza por sobre as al-
mas modestas que se alam até Elle, desde o es-
trado de seus pés, desde as maguificencias da
terra até aos estrellados silêncios do céo. Esta
formosa poesia vem entre osIdyllios, que se lhes
irmanam na alteza do pensamento e no primor
da plirase.
Não me agradam por igual as suas prosas
(Tetèyas). Sobram ahi arabescos de linguagem:
muito rendilhado, muita filagrana, que enreda a
idéâ, e accusâ o escopo muito moroso de Ceilini.
Sei que o snr. J. de Alencar tem dado o exem-
plo d'este esmerilhar da phrase, que, a meia vol-
ta, se desaira no amaneirado. Isto não é pobre-
za da lingua: é um luxo vicioso da abundância.
Augmentemos, porém, quanto ser possa o con-
curso dos que nos percebam, e imaginemos sem-
pre que até os mais cultos nos agradecem a sim-
plicidade de Luiz de Sousa, o nitido puritanismo
dos Castilhos, e a correcção chã, sem plebeis-
mo, de Teixeira de Vasconcellos.
Os Apontamentos de viagem do snr. Gama e
Abreu é um livro muito bem escripto, com resal-
tos de humorismo discreto, graça anecdotica a
interpôr-se nos usuaes fastios das descripçòes de
viagens; apreciações de Portugal na maior parte
81

benévolas, e, por excepção, reparáveis; a Fran-


ça e as suas recentes desventuras atiladamente
compendiadas em poucas paginas, que se revali-
dara com bem cabidas noticias históricas. K um
livro de cunho moderno, com o superior quilate
da despretençáo, sem desvanecimento, por onde
se nos antolha óptima lição, bom discernimento,
critica despreoccupoda, lhaneza de apreciação, e
excellentes predicamentos de espirito. Os subse-
quentes volumes hão de corresponder ao titulo

que amplia as viagens desde o Amazorvis ao Sc-


íw, Nilo, Ikisphoro e Dauuhio.
O Pantheon maranhense, do snr. dr. Henri-
ques Leal, como do titulo se transluz, é um se-
lecto feixe de biographias de homens, que se il-

lustraram no Maranhão, por prendas da intelli-

gencia. Este livro é tanto mais de estimar entre


portnguezes quanto nós andamos arredados da
convivência de escriptores brazileiros. O snr.
Leal, que reside em Lisboa, ha annos, é o escri-
plor a quem os seus conterrâneos mais devem no
pregão incessante das eminências intellectuaes
do K vrr o esplendido, e. ainda mnl, que
nrazil.
incompleto, vestíbulo que elle erigiu como en-
trada para as obras completas de Gonçalves Dias,
o portentoso poeta, o prosador inviolável na pu-
reza da dicrào.
82

Larga resenha da lilteratura brazileira nos


dá o snr. Leal no seu livro intitulado Locubra-
çÕES. Ahi se queixa judiciosamente das graves
iniquidades coin que alguns syndicos, sem legiti-
ma alçada na critica, desdenham dos escriptores
não lhes sabendo sequer o nome de
brazileiros,
baptismo. Que quer o illustre escriptor? A ne-
cedade impa de petulância. A barateza dos pre-
los, a profusão dos periódicos e a mingua de es-
criptores escorreitos abriram praça a todo o ad-
venticio, tanto monta que elle proceda das covas
de Salamanca como do café da Áurea. Gonçalves
Dias, apoucado pela ignara bitola de um zoilo ves-
go, tem dous monumentos um de mármore na sua
:

pátria, outro nos livros que são d'ella, que são nos-
sos, que os temos na memoria do coração desde
a mocidade. Mas a nossa mocidade era tão amo-
ravel com os seus contemporâneos, quanto res-
peitosa com os antepassados. Nós não ousaria-
mos descrer dos mestres, e desacatar-lhes as
cãs aureoladas sem que o longo estudo, sem que
a consciência nos desse a intima certeza de que
não éramos tão néscios e tão ignorantes quanto
hoje se faz mister para abrir barraca de morda-
cidades, mascaradas em critica.
Derivemos d'este mau trilho para as plácidas
e serenas regiões do livro chamado AroNTAMEN-
83

TOS PARA A HISTORIA DOS JESUÍTAS NO BrAZIL.


N'este complexo de rápidas biographias, narrati-
vas, e, esclarecida analyse das chronicas da com-
panhia de Jesus, e onde a forma, a execução e o
castiço da linguagem se aprimoram mais, de en-
volta com a rirjueza das noticias históricas. É
trabalho de mão experimentada, de consulta de-
tençosa, e juizo muito attento. Quando o tomo
2.0 me vier satisfazer o desejo de o lér, formarei
mais dilatado e completo conceito d'esta impor-
tante publicação do abalizado escriptor.

ACERCA DE JOAQUIM 2.

'resposta a uma cabta)

A carta, a que respondo, veio do Porto. E o


período respondido reza assim:
84

Asseveram-me que o teu Plutarco, aumin-


ciado na Actualidade, é o Joaquim de Vascoucellos,
que tem batido á porta dos teus antigos inimigos,
pedindo factos e calumnias para urdir a tua bio-
graphia. Se isto é tão verdade como é verdadeira a
pessoa que m'o afiançou, prepara-te para despre-
zar a offronta, e veste arnez de aço que rebata o
ferro do couce. Alguém lhe perguntou que motivo
teve para te provocar; respondeu que apenas te co-
nhecia de vista; eu, porém, se a memoria me não
falha, já te ouvi dizer que este Joaquim de Vascon-
ccllos foi teu hospede em S. Miguel de Seide, etc.

RESPOSTA

Tens boa memoria. Joaquim de Vasconcellos


foi meu hospede em S. Miguel de Seide mas pro- ;

cedeu honradamente, e logo te direi a razão que


tenho para te affirmar que se houve briosamente
na hospedagem que lhe dei.
Foi assim o grão caso. Um dia, no anno do
1870, me escreveu de Guimarães o maestro Fran-
cisco de Sá Noronha, prevenindo-me que viria a
S. Miguel de Seide apresentar-me um seu amigo
de grande talento, notável theorisla musical, edu-
85

cado era Allemanha, e litlerato de muita? espe-


ranças. Alvoroçou-me a noticia, tanto pela visita
do celebre violinista, como pela apresentação de
um moço prendado das bellas cousas do coração
6 do espirito, que todas brotam de seu onde o
amor das amenidades lilterarias edas deleitações
da harmonia lhes aquece os germens.
Em uma alegre manhã de julho chegaram os
snrs. Noronha, e Vasconcellos a esta casinha, á
volta da qual os sylphos da poesia borboleteam,
desde que o visconde de Castilho e Thomaz Ri-
beiro por aqui estiveram.
Recebi o snr. Joaquim de Vasconcellos com
quanta cordealidade e lhaneza cabia nas minhas
posses de aldeão. Dei-lhe o iogar de honra na
minha mesa. Ouvi-lhe attenciosamentc por espa-
ço de dez horas as suas idéas republicanas, sem
Uras impugnar, e as suns theorias sobre musica
sem uras jierceber, e os seus dislates em litlera-
tura sem llfos contrariar.
Ao cahir da tarde, o snr. Vasconcellos, que
não podia demorar-se, fez-me o obsequio de acei-
tar o meu cavallo, que leve a honra de o levar á
estrada do Porto. Ao despedir-se de mira, o meu
alTavel hospede abraçou-me com eíTusâode vehe-
menlissimo jubilo por me haver conhecido e de-
vido alegres horas tão ra[)idamente passadas.
DlULIOTIIEC.i N." G. O
86

Devolveu-se um anno, sem que eu tornasse a


vêr o snr. Vasconcellos; não obstante, a imagem
d'este cavalheiro, uma vez por outra, acudia ás
minhas reminiscências d'aquelle dia Ião liliera-
rio, tão cheio de palavras, de systemas, em fim,
de mutuas promessas, que me faziam esperar
d'aquelle moço alguma cousa menos cruel que
um inimigo.
Eis que o snr. Vasconcellos dá á luz um livro
de critioa á versão do Fauslo, pelo snr. visconde
de Castilho; e, ainda antes de o lôr, já eu sabia
que o meu hospede tão graciosamente recebido,
me insultava como escriptor e como homem, en-
xovalhando-me com vilipendiosas aleivosias, co-
mo se não bastasse ao seu injusto rancor malsi-
nar-me de ignorante.
Aqui tens, meu caro amigo, repetido o assi-
gnalado successo do advento do snr. Vasconcellos
a esta quinta de Seide.
Como elle está escrevendo os escândalos da
minha que naturalmente veio espionar quan-
vida,
do cá entrou, bom seria que elle dissesse que eu
tenho grandes infâmias na minha historia lendá-
ria, e uma das mais graúdas foi recebel-o em mi-
nha casa.
Falta-me explicar-te onde está o procedimen-
to honroso do snr. Vasconcellos na hospedagem
87

que lhe dei. Está no seguinte: quando elle sahia


da minha mesa, contaram-se as colheres de pra-
ta, e não faltava nenhuma Honra
! lhe seja I

Teu do coração,

EU.

P. S. Se o snr. Joaquim de Vasconcellos, de-


pois da publicação doesta carta, entender que me
deve pagar o aluguer da cavalgadura, o almoço
e o jantar, aulhoriso a lhesoureira das Velhas
do Camarão a receber a importância, e passar
recibo.
88

ESTÚPIDO E INFAME

(Á ACTUALIDADE)

Alguns rapazes sem habilidade, nem estudo


que lhes supprisse a incapacidade do engenho,
appareceram ahi a pinchar na vaza das letras co-
mo sapos de lameiro em tarde trovejada de ju-
lho. O mais sapo nas verdes podridões, consoante
o phrasear colorido do snr. Guerra Junqueiro, é
este marau da Actualidade.
Veio de Lisboa assoldadado para a imprensa
do Porto, em serviço de um ignóbil aventureiro.
Pôz o seu pulso á disposição do estômago, e avil-
tou a probidade de homem no começo da vida
publica, prestando-se a dar vaias, —
piadas no
calão fadista do birbante que o estipendia — a pes-
soas que pareciam respeital-o com o seu despre-
zo silencioso.
Fui eu, desde muito, insultado em livros e
89

folhetos por esle gandaieiro da vadiagem lisboe-


ta. Perguntei ura dia quem era o enxovôdo, e
que razões lhe teria cu dado para rjão perder
lanço de me cíTender. Respondcram-me que era
um dos Báihvlos do Joaquim Theophilo; e que
ura dia, o sórdido Anachreonte, que poetara
amores de Gomorrlia na Visão dos tempos, des-
embuçára-se da mascarrada chlamyde, e dera á
luz esle safado pinto que sahiu grôlo do ovo.
Já sabem d'onde elle vem.
Disseram-me, outro sim, que um escriptor
brioso, chamado Santos Nazareth, jogara com
elle a bilharda nas pontas das botas em pleno
café-Marlinho; de modo que nenhuma pessoa
medianamente briosa pôde hoje rorar-lhe na
cara a palma de uma luva. A parte, portanto,
que porvindouramente me houvesse de caberem
despiques de pundonor, essa — aviso á i4f/ua/í-
dade — pertence á alrada do meu gallego.
Não sei se o publico portuense tem reparado
que os seus bons escriplores ou morrem ou fo-
gem. O visconde de Benalcanfor, Ricardo Gui-
marães, aquelle dorido talento que disputou a
Lopes de Mendonça as galanterias do folhetim;
— Ramalho Ortigão, o prosador elegantissimo, o
fidalgo (la graça senhoril, a revelação mais assi-
gnalada que ainda tivemos do espirito francez ;

90

Alberto Pimentel, a quem se estão desentranhan-


do em fino ouro os minérios mais copiosos da
vernaculidade; Sousa Viterbo, dulcíssimo poeta e
prosador correcto, estes, que seriam para o Porto
bastantes padrões de sua litteralura, passaram
para Lisboa; —e Silva Pinto, a escoria da cain-
çada litterateira de Lisboa, baldeou-se no Porto.
É sorte funesta
Entra o homem na íiscalisação de uma senti-
na jornalística; e, apenas me vô a sombra na
pagina de um livro, insulta-me. Lanço mão do
ferro, carmeio-lhe parte da lã, almofaço-lhe a
carepa, e deixo-o. O leitor das Noites bem viu.
Mostrei ao insolente que não sabia portuguez
nem francez; que não estava na plana dos crí-
ticos; que a sua ignorância, com alguma modés-
tia, poderia grangear a caridade publica; emfim,

este sentimento da compaixão ia manietar-me,


quando elle, sacudindo o aziar, volveu a espojar-
se-me na testada da casa.
O desgraçado resvalou á ignominia. Como não
teve que redarguir contra as tagantadas littera-
rias que lhe verberei á ignorância, ameaça-me
com devassar os actos da minha vida particular.
São-lhe franqueados os umbraes da minha vida.
Pôde entrar o infame.
Ahi está o homem que denigre e deshonra
9i

as pugnas lilterarias. Estrangulado pela critica


severa, resfolegará ainda pela vilta da calum-
nia.
Veja-se o n.» 9i da Actualidade.
Ao mesmo passo (leia (role) que me insulta, es-
polia-me o ratoneiro. Cotejemos, e veja-se que
aló lhe escasseia o brio para se desforçar com
palavras de lavra sua. Em um folhetim meu,
intitulado a Coroa de ouro, publicado em 187-2,

escrevera eu as seguintes linhas: ... Uns taescujo


nome infame ha de sobrevirer ás produrções gafa-
das, e cuja probidade é tão somente a necessária
para não serem enforcado^, como dizia Molière...
Os magarefes da carne pútrida que lhes sobeja
nas alcocas... E vai elle, o fscroc litterario, com
pouca alteração, como o Uitor ahi viu, faz suas,
assignalando-as em grypho para lhes imprimir
energia, essas mesmas phrases.
Este bargante, se um ganhar a vi-
dia vier a
da esfaqueando a gente, rouba primeiro a nava-
lha á victima. Lacénaire foi muito mais intelli-
gente e honrado era melhor cscriplor, e com-
:

prava as facas com (jue escrevia as suas locaes


no redenho do próximo. E Pasquino, quando in-
juriava, era com palavras próprias.
Supponhamos, por«'m, que o traste O origi-
nalmente insultador. Que motivos lhe dei para o
92

insulto? Dissera-lhe eu que elle estupidamente


chamara trilogia a três cómicos. E defendeu-se
elle d'essa arguição, que era o ponto da con-
tenda?
Veja o leitor a defeza. Primeiramente attri-
bue a erro do lypographo a bestidade. Que vil-

que lhe compôz o artigo, tives-


lão! Se o artista,
se bastante dignidade ou independência, devia
desfazer-lhe o original na cara. Eu de mim creio
que na oflicina da Actualidade não ha lypographo
tão soez como o gamenho que a redige.

Depois (veja o leitor a meio da columna) ne-


ga que houvesse escriplb a noticia como eu a in-
terpretara. E escreve que eu alludira ao seguinte
período de uma local do seu n.» 28 : Estão enisce-
na Robespierre, Marat e Danlon, a trilogia col-
lossal (com três 1. / —
Nem orthographia t)
E acrescenta:
O chapado ignorante que só serve para fabri-
car descomposturas, não percebeu o porquê da
trilogia applicada aos três nomes que representam
três quadros distinctos da tragedia da Revolu-
ção.
*
í>

Nega, pois, que chamasse trilogia aos três ar-


tistas; ou menos desmemoriado,
e o leitor mais
ou indeciso a respeito da lealdade da minha cri-
tica, fica talvez imaginando que eu distendera
93

iniiiuamenteas orelhas elásticas da besta, calum-


niando-a.
Ali! não. Eu vou dar á respeitável opinião
publica o fiel traslado da asneira em litigio.

c Actualidade» n.° 51 de 7 de abril de iS7í.

« Baquet. — Corre que estão escriplurados, on


que vão sel-o, naquelle Ihealro os actores Polia e
Pinto de Campos, e actriz Maria das Dures, de
Lisboa.
tE' uma Pfiplendida arquisirão para aqudle
iheatro a da trilogia que acima fic3. X^onramog
bellas noites ao publico e á empresa. i>

Que que leu isto? Vai cx-


faz o leitor depois

trahir da própria noticia uma palavra composta


de duas syllabas. H ura passatempo que tem seu
tanto ou quô de philologico. Procuremos as duas
palavras com pachorra, visto que a temos para
as charadas novíssimas. Eu ponho em vcrsalo-
tes as syllabas quando fòr tempo. Vamos lá tE' :

uma esplendida acquisirão (diz elle) para aquelie


Iheatro a trilogia que acima fiCA. AGOuramos ^'/í-.i

O publico depois de comiiòr a torpíssima palavra,


entendeu mentalmente, e de si comsigo, que o
94

escriptor previu o que o leitor lhe faria na repu-


tação.

Agora, canalha ! levanta-te d'ahi, e senta-te


n'uma tripeça ! Antes que faças da penna faca
de sicário, converte-a em sovella.
E tu, divino ApoUo, que uma vez escorchas-
te Marcyas, permitte que eu te deponha nas aras
este fétidissimo bode esfolado.

CARTA AO SNR. CONSELHEIRO VIALE

III.^^ e exc:^^ snr.

Não sei se v. exc^éassignante d'estas Noites


DE INSOMNIA. A ccrteza affirmaliva ser-me-hia
por tanta maneira estimulo de desvanecimento
95

que eu nilo ouso preluzir-me a hypolhese de que


V. exc* conlribue com deus toslOes para a minha
gloria. Quero antes, absorvendo as fama«\is da
vaidade, prefigurar-mc que v. exc* nunca se apou-
cou al(' ás futilidades dos meus livros. Na modes-
ta conjectura, pois, de que estes folhetos lhe são
menos conhecidos que as lyricas inéditas de Am-
pliiSo, filho de Júpiter e Antiope, afouto-me ate
á temeridade de enviar-llie este n.^ (3 das Xailes,
solicitando da sua cortezia a graça de ra'o lêr des-
de paginas 88 até paginas 94.
O bode que eu ahi oflereço a Apollo, á imila-
ç3o do ciiUrarius dos sacrificios antigos, chama-se
fulano de Silva Pinto, e diz que foi discípulo de
V. exc em historia antiga, depois de ter escriplo
que uma actriz e dous actores eram uma trilo-
gia.
Tenho a honra, exc.™*» snr., de trasladar, para
escarmento de tio erudito professor, as textuaes
palavras d'este seu discipulo, estampadas no n.»
Oi da Aclualidade: ...i\us mercccmo.'; a honra de
obter do professor Viale of/iciaes informações em
aula de litteratura antiga.
Realmente, snr. conselheiro, este sujeito foi

disripnlo de v. exc* em historia antiga? No caso


affirmativo, deu-lhe v. exc.^ a tal citada honra de
o informar officialmente?
96

E' de esperar que v. exc^^ me não responda


todavia ouso pedir-lhe que ao menos se digne íq-
dicar-mecomo devo interpretar o seu silencio; a
não querer v. exc.-^ antes, em carta confidencial ao
seu discipulo, dizer-lhe em grego: ^^-^^ -'•''^••"',

ao mesmo tempo que eu cá lh'o digo a elle em


portnguez.
Ponho á disposição de v. exc* a minha igno-
rância com as informações officiaes de que sou
digno, e a relevante bravura com que entro ao
circo qual outro bjstiariíis (er.fi0u.a7T.;), a arcar com
esta besta fera que sahiu da escola que v. exc.=» tão
vantajosamente rege.

De V. exc.»

Ill.™° eexc."^»snr. conselheiro António José Viale

devoto humílimo e derreado admirador

Etc.
97

QUINTA-ESSENCIA DE MALANDRIM

(A ACTUALIDADE)

Trala-se de Silva IMnlo.


Este piíio e lalrinario jornaleiro da Acíunli-
dadí\ escreveu, no dia 11, que eu pedira que me
apresentassem a Caslellar, no Ihealro.
No dia IG 6 17, publicaram o Commcrcio do
Porto e o Primeiro de Janeiro a seguinte corres-
pondência:

DECL.VRAÇÀO

Constando ao snr. Camillo Castcllo Branco que


uma local inserta na Actualidade, de 11 do corrente,
com a epijjjraplie — EUe — 6C refere á, entrevistai que o

referido senhor teve com o snr. Emílio Castcllar no


theatro do Principe Real, d'e8tii cidade, na qual se in-
verti»a verdade dos factos, apressamo-nos, como tes-
temunhas prescnciaes, a declarar com toda a impar-
cialidade como as coiuas se pasmaram.
98

Achando-no3 n'um do3 intervallos do espectáculo


ein companhia do sor. Camillo Castello Branco, junto
á varanda que separa a orcliestra da plateia, appare-
ceu alli o snr. D. Marcos Arguelles a convidar o snr.
Camillo para uma entrevista com o notável orador, o
snr. Castellar. O snr. Camillo, depois de agradecer
as attenções do snr. D. Marcos, pediu-lhe escusa,
apresentando para isso algumas razoes muito dignas
o a circumstancia de nâo estar n'aquelle momento
com um vestuário próprio para uma tal apresentação.
O D, Marcos continuou, porém, a insistir e, co-
snr.
mo o snr. Camillo persistisse na sua recusa, disse-lhe
por ultimo que, se era preciso, ia chamar o cônsul hes-
panhol para o convidar, e que o snr. Castellar já es-
tava no salão á sua espera para o comprimentar. Foi
entào que o snr. Camillo se resolveu a aceitar o con-
vite do snr. D. Marcos.
Eis aqui a narração fiel de tudo quanto alli se
passou, com relação a este facto e que está em com-
pleta contradicçào com a local da Actualidade, se com
cffeito o que n'ella se affirma, se refere ao sm*. Ca-
millo Castello Branco.

Porto, 15 de junho de 1874.

João Pereira d' Albuquerque.


António Nicolau d' Almeida Júnior.

Ahi fica O perfil do mariola, e a torpe vida


que se vive n'aquella gazeta.
99

No dia seguinte, a Aclualidade injuriava a


probidade d'essas duas assignaluras que me hon-
raram com o seu testemunho.

Já ouvi dizer a certas pessoas incautas que


este Silva era um bom rapazinho, forçado pela
fome a rabiscar diíTamaçOes.
Não pôde ter bondade quem, de animo frio,
divulga aleivosias: o mais que pôde ter é fome.
Desista o snr. Silva de trocar calumnias por
meios-bifes, que eu lhe prometto obler-lhe entra-
da no asylo dos Carolos desamparados ; e, desde
já, escrevo ao snr. David, da rua de Santo An-
tónio, para que o vista de novo; e, pois que a sua
liyndiocrasia é o couce, recommendarei que lhe
deixe bem folgada a retranca.

FIM DO 6.0 NUMERO


:íí . y
--^r?^
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.':• IJrf' 3
^
PQ 3astello Branco, 3amillo
^261 Noites de inso^mia

V.4--6

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