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PIPOCA MODERNA: UM EXEMPLO DE PLANO DA EXPRESSÃO

COMO INSTAURADOR DE SIGNIFICADO

José Américo Bezerra SARAIVA


Universidade Federal do Ceará

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo mostrar que, em alguns casos, o significado constitui-
se como uma resultante do tratamento dado à expressão, isto é, o significado decorre fundamentalmente
do material empregado na expressão e de sua organização em texto. A letra da música Pipoca moderna,
de Caetano Veloso, será utilizada como exemplo do fenômeno, pois nela o significado é fundado
basicamente pelo como o plano da expressão se encontra estruturado.

PALAVRAS-CHAVE: Função sígnica; plano da expressão; significado.

No modelo clássico da semiótica greimasiana (consubstanciado em Greimas e


Courtés, 1979), o nível da manifestação é considerado, por alguns pesquisadores, como
um além do percurso gerativo do sentido (Barros, 1988 e 1990), ou, nos termos da
referida teoria, a expressão de conteúdos já elaborados nos níveis anteriores, que vão do
mais simples e abstrato, o nível fundamental, até o mais concreto e complexo, o nível
discursivo, passando pelo nível intermediário, o narrativo. Por conta de suas
materialidades específicas, os diversos meios de expressão oferecem, por um lado,
possibilidades de tratamento estilístico do conteúdo a ser expresso e, por outro,
restrições à expressão dos mesmos (Fiorin, 1994). No entanto, não são considerados
como instauradores de significação per se.
Na última década o edifício greimasiano passou por alguns rearranjos teóricos,
quando, por exemplo, foi enriquecido em mais um nível, o tensivo-fórico, que investiga
as primeiras modulações somáticas que fundam o sentido (Greimas e Fontanille, 1993).
Este novo enfoque, juntamente com as contribuições de Zilberberg, permitiu a Luiz
Tatit (1994, 1996, 1998 e 2001) desenvolver um método para o estudo da canção, tendo
como ponto norteador a erição de um procedimento heurístico que homologa o
tratamento categorial dado ao plano da expressão e ao do conteúdo.
Nesta nova fase, o plano da expressão vê-se novamente acolhido no percurso
gerativo do sentido, isto é, também fundando o sentido. Para mais detalhes, basta ver a
teoria da silabação proposta por Tatit (1994) a partir das observações de Saussure,
Hjelmlev e Zilberberg.
Não é propósito deste trabalho entrar em minúcias acerca das postulações de
Tatit nem examinar a melodia da canção ora em análise. Pretendemos tão-somente
apresentar um exemplo de “letra de música” em que o sentido parece fundar-se
primordialmente no plano de expressão. Vamos então à pipoca.
Pipoca moderna
e era nada de nem noite de negro não
e era nê de nunca mais
e era noite de nê nunca de nada mais
e era nem de negro não
porém parece que a golpes de pê
de pé de pão
de parecer poder
(e era não de nada nem)
pipoca ali aqui
pipoca além
desanoitece a manhã
tudo mudou

Do título
O título é uma notória referência à segunda parte da composição. O lexema
pipoca, com a seqüência de oclusivas orais, /p...p...k.../, sugere a explosão que marca o
momento de ruptura com um estado de coisa anterior, representado pela predominância
da nasal /n/1.
Pipoca, segundo o Aurélio, vem do tupi pï’ poka, e significa ‘estalando a pele’.
Segundo Tibiriçá (1984), o termo já significa em tupi o mesmo que em português:
‘milho rebentado’. Neste contexto em particular, o termo parece ainda significar ‘estalo,
estouro’, acepção esta reforçada pela aliteração da plosiva /p/, em toda a segunda parte
do texto, que vai do quinto ao décimo terceiro verso, e pelo seu emprego um tanto
ambíguo nos versos 9 e 10, em que a leitura verbal torna-se possível2. Veja-se, por
exemplo, que, numa leitura verbal, pipoca ali aqui / pipoca além é sujeito oracional em
relação ao predicado modalizador parece, verso 5. Por outro lado, numa leitura nominal,
o sujeito oracional deste predicado é desanoitece a manhã e pipoca passa a ser uma
retomada do título da canção, em que este lexema possui uma leitura nominal
inequívoca.
É, com efeito, essa dupla possibilidade de leitura, nominal e verbal, que faz o
autor preferir o termo pipoca a qualquer das duas formas pipoco e papoco, existentes no
léxico português. Ademais, não é de se desprezar a qualidade das vogais tônica e
postônica de pipoca, ambas abertas, claras, em contraste com as vogais de pipoco e
papoco3. As explosões ficam mais perceptíveis quando da passagem de uma oclusiva
oral para vogais abertas, donde resulta mais uma razão para a seleção lexical realizada.
Ao lexema pipoca vem adjungir-se o adjetivo moderna, que reforça a leitura
segundo a qual o texto trata da ruptura entre duas fases, uma primeira, negativa,
conforme veremos, à qual se opõe uma segunda, de afirmação, esta considerada
moderna em comparação com aquela. Moderna, neste caso, significa ‘dos tempos atuais
ou mais próximos de nós, recente’ (Aurélio)4.

Da composição e dos lexemas


O texto inicia-se com uma conjunção aditiva, sugerindo continuidade de um
estado de coisa anterior, que se perde no tempo, cujo princípio não pode ser delimitado.
Tal estado de coisa sofre uma ruptura a partir da qual se instaura uma nova fase. A
conjunção adversativa porém marca essa ruptura.
Nesta linha de raciocínio, o texto pode ser segmentado em três partes:
a) uma primeira que compreende os quatro versos iniciais: principiada pela
aditiva e, com verbo no pretérito imperfeito e aliteração da nasal /n/;
b) uma segunda que se estende do quinto ao décimo verso: iniciada pela
adversativa porém, com verbo no presente (parece, pipoca) e aliteração da
oclusiva oral /p/;
c) uma terceira que corresponde aos dois versos finais, que tematizam a
passagem de uma a outra fase: com dois verbos, um de valor terminativo
desanoitece, e outro designando ação acabada mudou; e sem aliteração.

O que nos chama em particular a atenção é o efeito aliterante dos lexemas do


primeiro e do segundo segmentos, através da reiteração da nasal /n/ e da plosiva /p/,
respectivamente.
Não se duvide da consciência da seleção lexical por parte de Caetano Veloso,
pois, além de ser patente, o texto ainda nos dá indícios claros disto. Há referência direta
aos fonemas oclusivo nasal dento-alveolar, /n/, e oclusivo bilabial surdo, /p/, através das
formas nê e pê, modo pelo qual eles são vulgarmente designados. A intenção de tratar
os dois fonemas como formas opostas, com o fito de estabelecer um contraste entre a
primeira e a segunda fase do texto, constitui um dos fatores norteadores da seleção
lexical operada pelo autor. Veja-se, por exemplo, a oposição não/pão. Como justificar a
escolha do item lexical pão, senão em virtude do fato de ele constituir um par mínimo
com não, favorecendo assim o contraste entre os dois fonemas?
Assim, não há negar a intenção notória do autor em usar o potencial expressivo
destas formas ao selecionar, para compor o primeiro segmento do texto, lexemas dos
quais conste pelo menos um fonema nasal, preponderantemente /n/. O mesmo se diga
quanto à plosiva /p/, no segundo segmento da composição.
Já no terceiro segmento não se constata a presença sistemática de nenhuma
destas consoantes, fato que o distingue dos dois outros precedentes.
O primeiro segmento do texto, que vai do primeiro ao quarto verso,
caracteriza-se pela atualização de formas de valor negativo: nada, nem, não e nunca. O
substantivo noite e o adjetivo negro também se enquadram nesta valoração negativa, em
virtude do sintagma em que se inserem: nem noite e negro não.
O primeiro e o terceiro versos permitem leituras variadas, de acordo com a
estruturação sintática que se atribua a eles. A ausência de sinais de pausa ou de
conjunções coordenativas contribuem para isto. Por exemplo, no que concerne ao
primeiro verso, temos, entre outras, as seguintes possibilidades interpretativas:
1) uma estrutura com dois predicativos coordenados:

nada de nem
e era
noite de negro não
2) uma estrutura com dois SPs coordenados:
de nem noite
e era nada
de negro não

3) uma estrutura com um bloco predicativo único em que um SP se encaixa em


outro:
e era nada de nem noite
De negro não

Ademais, nada pode receber uma leitura quantificadora5, substantiva ou


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adjetiva , conforme se o considere como núcleo sintagmático ou, acrescido da
preposição de, como especificador, o que amplia as possibilidades interpretativas dos
aludidos versos.
Tal plurivocidade de leitura, decorrente das diversas possibilidades de
estruturação sintática, contribui para o efeito geral de caoticidade, dominante nesta
primeira fase do texto.
Acrescente-se a isto que noite e negro aproximam-se em termos semânticos
por apresentarem a propriedade comum ‘escuridão’. Ora, se se admitir que ‘escuridão’
está para ‘negação’, assim como ‘claridade’ está para ‘afirmação’, os lexemas noite e
negro podem ser reunidos, juntamente com os outros lexemas desta primeira parte, sob
o mesmo traço genérico: ‘negação’.
Os únicos lexemas que, neste primeiro segmento, não sugerem a noção geral de
‘negação’ desempenham, na verdade, função discursiva bastante clara.
A conjunção inicial, como já dissemos, sugere que o texto é a continuação do
que o precede. A forma verbal era, no imperfeito, além de ser utilizada na indicação da
noção aspectual de duração, se comparada ao perfeito (cf. Camara, 1984, verbete
modo), lembra a expressão era uma vez, consagrada como introdução de narrativas
infantis.
Todos estes detalhes parecem contribuir para um único efeito: a instauração, no
discurso, de uma fase primeira, algo imprecisa, envolta numa aura de irrealidade, cujo
princípio não se pode determinar; uma fase confusa, nebulosa, marcada pela ‘negação’.
A reiteração da nasal /n/ tem por função tornar a seleção lexical ainda mais
motivada, uma vez que as consoantes nasais produzem um ‘efeito de véu’ (Delas e
Filliolet, 1975), reduzindo a sonoridade das oclusivas orais homorgânicas, tornando-as
mais escuras. Assim, também a seqüência fônica reforça o conteúdo e o signo torna-se
ainda mais motivado.
No segundo segmento do texto, prepondera a plosiva /p/, como a marcar o
momento de ruptura com a fase anterior. Não é por acaso que esta segunda parte
principia pela adversativa porém, assim como não foi casual a presença da aditiva no
início da primeira. A seleção desta adversativa em particular obedece à organização
sônica geral da mensagem, que prima por priorizar lexemas aliterantes. No caso
específico deste segundo segmento, a plosiva bilabial sugere o momento de ruptura.
A opção por palavras que aliteram é indubitavelmente consciente por parte do
autor. Vejam-se, por exemplo, as pistas que ele faz questão de deixar no texto. Além da
já mencionada oposição entre nê e pê e do par não/pão, que salienta esta oposição, o
sintagma preposicional a golpes de pê revela a consciência do autor acerca do poder
sugestivo das oclusivas, que podem simular golpes, pancadas.
É, pois, a golpes (de pê de pé de pão, monossílabos aliterantes simuladores das
pancadas) que a pipoca moderna parece poder romper com a fase anterior, referida
neste segundo segmento através da inserção parentetizada da frase e era não de nada
nem, que retoma os três lexemas de valor negativo do primeiro verso e não se sujeita a
uma leitura semântica pela soma dos lexemas presentes, como acontece no primeiro
segmento, não obstante a diversidade de leitura a que este se submete. O contraste entre
as duas fases, o momento de ruptura (pipoca ali aqui) e o com que ele rompe, é mais
uma vez acentuado.
Repare-se que os advérbios ali e aqui, juntos, reforçam a puntualidade da ação
verbal, localizando-a em termos espaciais, segundo a perspectiva do enunciador. O par
opõe-se, em termos estruturais, a além, porque aquele conecta-se a uma das ocorrência
do lexema pipoca, ao passo que este, à outra. Ali aqui e além opõem-se também
semanticamente, pois, a nosso ver, se a intenção fosse estabelecer a distribuição espacial
do pipocar em relação à pessoa do enunciador, o advérbio mais apropriado seria o lá,
em virtude de ele, segundo Pontes (1992: 15), indicar o ponto mais extremo no
continuum espacial, que vai, em termos de proximidade-distância em relação ao
enunciador, do aqui ao lá, passando pelo ali7. Além, portanto, neste contexto, parece
significar a transição definitiva para a fase posterior.
Os dois versos finais resumem este processo de transição de uma para outra
fase. Veja-se, por exemplo, o verbo desanoitece, de valor ‘terminativo’, formado a
partir do incoativo anoitece. É interessante observar que o prefixo de negação des-,
quando adjungido à forma anoitece, faz com que o processo verbal seja flagrado não
mais em seu começo mas em seu término, isto é, o estado de noite encontra-se em seu
fim. A intenção parece ser evidente: desanoitece é uma forma cognata de noite, o que
garante a referência ao estado anterior (e era noite) e à conseqüente gradativa saída dele
(des - anoitece).
Tudo, no verso final da composição, contrapõe-se à quantificação negativa
nada. O verbo mudou contrasta com a forma verbal era, por revestir-se de caráter
perfectivo.
Vale salientar que esta análise tem como eixo principal o como foi organizado
o plano da expressão. Não fosse essa a organização do material fônico o efeito de
sentido não teria sido assegurado. Tem-se aqui um caso claro em que o sentido do texto
é fundamentalmente gestado na confluência dos dois planos da linguagem (conteúdo e
expressão), com predominância da expressão. Segundo Eco (1986), casos há em que o
plano da expressão prescinde do do conteúdo. Se isto se dá efetivamente é caso para
investigação futura.

Fortaleza, outubro de 1999.

REFERÊNCIA BLIOGRÁFICA

BARROS, Diana Luz Pessoa de (1990). Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática.
__________ (1988). Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual.
CAMARA Jr., Joaquim Mattoso (1984). Dicionário de lingüística e gramática.
Petrópolis: Vozes.
__________ (1991). Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes.
DELAS, Daniel e FILLIOLET, Jacques (1975). Lingüística e poética. Tradução de
Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Cultrix/EDUSP.
ECO, Umberto (1986). Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (1986). Novo dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
FIORIN, José Luiz (1994). Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto.
GREIMAS, A. J. e COURTÉS, J. (1979). Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix.
GREIMAS, A. J. e FONTANILLE, J. (1993). Semiótica das paixões. São Paulo: Ática.
MATEUS, Maria Helena Mira et alii (1989). Gramática da língua portuguesa. Lisboa:
Caminho.
PONTES, Eunice (1992). Espaço e tempo na língua portuguesa. Campinas: Pontes.
SCHIMÍTI, Lucy Maurício (1889). Caetano Veloso: memória e criação. Assis:
Universidade Estadual Paulista (Dissertação de Mestrado).
TATIT, Luiz (1994). Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta.
__________ (1996). O cancionista. São Paulo: EDUSP.
__________ (1997). Musicando a semiótica. São Paulo: Annablume.
__________ (2001) Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê.
TIBIRIÇÁ, Luiz Caldas (1984). Dicionário Tupi-Português. Santos: Traço.
VELOSO, Caetano (s/d). Alegria alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca.

Notas:
1
Cumpre observar que a nasalidade tem o poder de causar um ‘efeito de véu’ (Delas e Filliolet, 1975:
157), responsável pelo apagamento das sonoridades orais correspondentes às oclusivas homorgânicas,
efeito este a que se costuma atribuir culturalmente a idéia de escuridão.
2
A propósito desta canção, Schimíti (1989: 209) afirma que se trata de uma letra não-discursiva e que
permite ver-se ‘claramente o espoucar de efeitos sonoros, dominando a composição e abafando o
estabelecimento do nexo semântico’.
3
Obviamente não estamos desprezando o caráter menos aberto de /a/ em sílaba postônica, em relação ao
/a/, realizado em sílaba tônica. O que salientamos é que, dos vocóides em posição postônica, este é o mais
aberto.
4
Note-se que moderno é, neste particular, o elemento regional, uma vez que pipoca moderna é, segundo
o próprio autor, uma referência à banda de pífaros de Caruaru, de cuja informação musical nasceu o
germe para o movimento tropicalista, capitaneado sobretudo pelas figuras de Caetano Veloso e Gilberto
Gil. A esse respeito, Caetano Veloso diz, em seu livro Alegria, Alegria (s/d: 160-1): ‘Em 67 Gil passou
um tempo no Recife. De lá ele trouxe o pique para o tropicalismo. E, principalmente uma fita cassete com
o som da banda de pífaros de Caruaru. Desde então, a pipoca moderna ficou em nossa cabeça, alguma
coisa transando entre os neurônios, umas joiazinhas de iluminação. De lá até aqui não perdi a esperança.
(...) Sou feliz na pipoca desse canto e isso é muito firme. Estou inteiro quando há esse canto de pipoca
moderna.’
5
Assim entendido, nada pertence à classe dos quantificadores, que, segundo Mateus et alii (1989: 192-5),
é um especificador que serve, como o próprio nome deixa ver, para quantificar os nomes. Incluem-se
nesta classe os pronomes indefinidos e os numerais da gramática tradicional.
6
Os termos substantiva e adjetiva são aqui utilizados na acepção que lhes atribui Camara (1991: 77-80),
que considera o nome sob uma tríplice perspectiva funcional: substantiva, adjetiva e adverbial.
7
A autora, à página 16, oferece o seguinte quadro representativo das relações semânticas que vigoram
entre os advérbio aqui, aí, ali e lá, em função da pessoa e da distância:
Pessoa Distância
1ª aqui
2ª aí
3ª ali lá

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