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revista de cultura e política

2018 | Nº 103 ISSN 0102-6445

NACIONALISMO E
TENSÕES POLÍTICAS
SOBRE A REVISTA

Lua Nova tem por objetivo fazer a alta reflexão de temas


políticos e culturais, contribuindo assim para elevar o nível
intelectual do debate público. Em suas páginas, o leitor
encontrará elaboradas incursões nos campos da teoria polí­
tica (clássica e contemporânea), da teoria social, da análise
institucional e da crítica cultural, além de discussões dos
assuntos candentes de nosso tempo. Entre seus colabora­
dores típicos estão intelectuais, docentes e pesquisadores
das diversas áreas das ciências humanas, não necessaria­
mente vinculados a instituições acadêmicas.
Os artigos publicados em Lua Nova estão indexados no
Brasil no Data Índice; na America Latina no Clase – Citas
Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades, no
International Political Science Abstracts e na Redalyc – Red
de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España
y Portugal. A versão eletrônica da revista está disponível na
SciELO e no portal da Capes.
revista de cultura e política
2018 | Nº 103 ISSN 0102-6445

NACIONALISMO E
TENSÕES POLÍTICAS
LUA NOVA – REVISTA DE CULTURA E POLÍTICA
2018
Razão Social: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – CEDEC
Rua Riachuelo 217 – Sé – Cep: 01007-000 São Paulo, SP
Telefone: (11) 3871.2966 Fax: (11) 3871.2123
E-mail: luanova@cedec.org.br
CNPJ 48.608.251/0001-80- ISSN 0102-6445

Editor
Bruno Konder Comparato (Unifesp)

Comitê de redação
Bruno Konder Comparato (Unifesp)
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Rossana Rocha Reis (USP/Cedec)
Pedro Meira Monteiro (Princeton University)

Diretoria
Andrei Koerner
Diretor presidente
Bernardo Ricupero
Diretor vice-presidente
Bruno Konder Comparato
Diretor de Publicações
Cecilia Carmem Pontes Rodrigues
Diretor Secretário
Eduardo Garuti Noronha
Diretor Tesoureiro

Conselho editorial
Adrian Gurza Lavalle (USP), Álvaro de Vita (USP), Brasilio Sallum Jr. (USP),
Celi Regina Pinto (UFRGS), Celina Souza (UFBA),
Cicero Araujo (USP), Elide Rugai Bastos (Unicamp), Elisa Reis (UFRJ),
Gonzalo Delamaza (Universidad de Los Lagos), Horácio Gonzalez (Universidad de B. Aires),
John Dunn (University of Cambridge), José Augusto Lindgren Alves (Ministério das Relações Exteriores),
Leôncio Martins Rodrigues Netto (Unicamp), Marco Aurélio Garcia (Unicamp) (in memoriam),
Marcos Costa Lima (UFPE), Michel Dobry (Université Paris I-Sorbonne),
Miguel Chaia (PUC-SP), Nadia Urbinati (Columbia University), Newton Bignotto (UFMG),
Paulo Eduardo Elias (USP) (in memoriam), Philip Oxhorn (McGill University),
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Rossana Rocha Reis (Editora) (USP), Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp),
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Preparação e revisão de texto Projeto gráfico


Mônica Silva | Tikinet Maurício Marcelo | Tikinet
Dirceu Teixeira | Tikinet
Caique Zen | Tikinet
Editoração eletrônica
Karina Vizeu Winkaler | Tikinet
Robson Santos | Tikinet

O Cedec é um centro de pesquisa e reflexão na área de ciências humanas. É uma associação


civil, sem fins lucrativos e econômicos, que reúne intelectuais de diferentes posições teóricas
e político-partidárias.
Apoio:
APRESENTAÇÃO

O número 103 da revista Lua Nova traz nove artigos


enviados espontaneamente por seus autores e que foram
avaliados positivamente por nossos pareceristas, aos quais
muito agradecemos. Alguns dos trabalhos aqui apresenta­
dos abordam a temática do nacionalismo, como o artigo de
Ernani Oda, que abre a revista com uma análise sobre o
fortalecimento de discursos nacionalistas no Japão a partir
da década de 1990, bem como suas repercussões internas
e externas, assim como o texto de Alejandra Josiowicz, que
revela o lugar central da Guerra do Paraguai no processo
de consolidação do Estado nacional argentino na inter­
pretação de Domingo Faustino Sarmiento. Em seguida,
Leonardo Octavio Belinelli de Brito confronta a reflexão de
Raymundo Faoro sobre o Brasil com a hipótese formulada
por Gildo Marçal Brandão a respeito da existência de “linha­
gens do pensamento político brasileiro”. Em outro artigo,
Juliano de Souza apresenta a linhagem culturalista da socio­
logia do futebol brasileiro e demonstra a durabilidade his­
tórica das ideias-força caras a essa “família intelectual”. No
texto de Ricardo Juozepavicius Gonçalves é apresentado o
conceito de esfera pública jurídica nas produções de Jürgen
Habermas por meio do mecanismo institucional das audiên­
cias públicas do Supremo Tribunal Federal, em especial da
audiência sobre a constitucionalidade das cotas raciais para
ingresso no ensino superior. Em seguida, Cynthia Hamlin e
Gabriel Peters exploram o uso de temas feministas na publi­
cidade contemporânea, com ênfase na apropriação publici­
tária da noção de “empoderamento”. Por sua vez, Eugênio
Rezende de Carvalho discorre criticamente sobre os funda­
mentos da concepção do tempo, na abordagem holística e
processual de Norbert Elias, bem como alguns de seus pos­
síveis desdobramentos na compreensão desse conceito pelas
diversas áreas do conhecimento. Jefferson Oliveira Goulart
faz uma análise comparativa do marco institucional da polí­
tica urbana na Espanha e no Brasil. Por fim, Isabela Gerbelli
Garbin Ramanzini examina como o envolvimento gradual
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)
nas questões de justiça transicional sul-americanas contri­
buiu para moldar parâmetros institucionais e normativos do
sistema regional de direitos humanos.
Bruno Konder Comparato
é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp). Guarulhos, SP. Brasil.
E-mail: <bruno.comparato@unifesp.br>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-007008/103
SUMÁRIO

ARTIGOS
11 CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DO NACIONALISMO JAPONÊS
RECENTE
Ernani Oda
39 LA VIDA DE DOMINGUITO: CIUDADANÍA, PATERNIDAD Y
GUERRA EN DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO
Alejandra Josiowicz
69 RAYMUNDO FAORO E AS LINHAGENS DO PENSAMENTO
POLÍTICO BRASILEIRO
Leonardo Octavio Belinelli de Brito
103 A LINHAGEM CULTURALISTA DA SOCIOLOGIA DO
FUTEBOL BRASILEIRO
Juliano de Souza
135 O CONCEITO DE ESFERA PÚBLICA JURÍDICA E A
AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE COTAS RACIAIS NO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ricardo Juozepavicius Gonçalves
167 CONSUMINDO COMO UMA GAROTA: SUBJETIVAÇÃO E
EMPODERAMENTO NA PUBLICIDADE VOLTADA PARA
MULHERES
Cynthia Hamlin e Gabriel Peters
203 A CONCEPÇÃO HOLÍSTICA E PROCESSUAL DE TEMPO DE
NORBERT ELIAS
Eugênio Rezende de Carvalho
233 O MARCO INSTITUCIONAL DA POLÍTICA URBANA NA
ESPANHA E APONTAMENTOS COMPARATIVOS COM O BRASIL
Jefferson Oliveira Goulart
261 IMPACTOS DA JUSTIÇA TRANSICIONAL SUL-AMERICANA
NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini
APRESENTAÇÃO

10

Lua Nova, São Paulo, 102: - 10, 2017


11
CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DO NACIONALISMO
JAPONÊS RECENTE1
Ernani Oda
é pesquisador de pós-doutorado no Programa de Ciências Sociais da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp). Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: <ernanioda@yahoo.com.br>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-011038/103

Ao mesmo tempo que o leste asiático vem adquirindo


nas últimas décadas cada vez mais peso na economia e na
política mundial, cresce a preocupação de teóricos e ana­
listas sociais com as tensões recentes que têm marcado as
relações entre os países da região, principalmente tendo
em vista a proliferação de discursos de cunho nacionalista
não só nas classes governantes, mas também nas populações
civis (Moore, 2013; Tønesson, 2016). Nesse contexto, o caso
específico do nacionalismo japonês tem merecido grande
atenção, considerando a intensidade de suas repercussões.
Principalmente a partir da década de 1990, ele tem provo­
cado reações inflamadas em países como China e Coreia do
Sul, onde fortes protestos têm surgido tanto no nível diplo­
mático quanto em mobilizações populares, gerando dúvi­
das sobre a estabilidade na região (Glosserman e Snyder,
2015; Reilly, 2012). Meu objetivo neste trabalho é discutir as

1 
A pesquisa para a elaboração deste artigo foi realizada com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

características do nacionalismo japonês atual e as razões que


poderiam explicar seu surgimento.
Mas em que consiste esse nacionalismo? Seguindo a
interpretação clássica de Gellner (1983, pp. 1-7), o nacio­
nalismo representa uma ideologia ou um movimento preo­
cupado em promover integração política (geralmente
através da criação, defesa ou fortalecimento do Estado) a
partir de uma suposta base cultural comum. Os discursos
associados ao nacionalismo japonês atual também exibem
essa lógica, mas o fazem de uma maneira muito particular,
que nem sempre é devidamente explicitada, em parte por­
que as demandas desse nacionalismo tendem a ser bastante
diversas. Convém, por isso, mencionar algumas manifesta­
ções concretas do discurso nacionalista para daí extrair os
termos mais gerais em que ele articula integração política e
comunidade cultural.

12 Nacionalismo e revisionismo
Podemos tomar como primeiro exemplo os discursos
recentes de políticos e intelectuais que defendem o aumento
da capacidade militar japonesa e uma maior participação do
Japão na mediação de conflitos internacionais. Embora a
constituição japonesa de 1946 tenha restringido a capaci­
dade militar do país a fins defensivos, fazendo com que o
Japão evitasse por muito tempo se envolver diretamente em
confrontos fora de seu território, muitos têm argumentado
que tais restrições serviram apenas para minar a soberania
japonesa e enfraquecer a posição do país no cenário mun­
dial. Isso teria ficado evidente na Guerra do Golfo (1990-
1991), quando o Japão se recusou a enviar tropas para o
conflito e foi severamente criticado pelos países ocidentais.
Têm surgido, com isso, propostas no próprio governo de
rever os princípios da constituição e assumir uma postura
militar mais ativa para restaurar o prestígio do Japão na
comunidade internacional (Maslow, 2015; Soeya, 2011).

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Ernani Oda

Outro tipo de discurso de grande impacto diz respeito


ao conteúdo da educação escolar no Japão, especialmente
com relação ao ensino da história nacional. Segundo essa
tese, a história que os japoneses aprendem hoje na escola
tende a retratar o passado do país de maneira excessiva­
mente negativa, sobretudo quando trata da violência come­
tida durante o domínio colonial japonês sobre os demais
países da Ásia a partir da segunda metade do século XIX,
como o massacre de civis na cidade chinesa de Nanking em
1937, ou a exploração de escravas sexuais de origem coreana
durante a Segunda Guerra Mundial. Essa ênfase em ques­
tões negativas estaria sabotando o senso de autoestima dos
japoneses, e alguns chegam até a negar tais atrocidades.
Para eles, seria necessário reformar a educação japonesa a
fim de enfatizar aspectos mais positivos da história nacional.
Esse tipo de discurso ganhou ímpeto em 1997, quando se
formou uma associação para criar livros didáticos de história
que refletissem uma visão supostamente mais favorável do 13
passado japonês (Oguma e Ueno, 2003).
Um terceiro exemplo que merece ser mencionado diz
respeito à figura mais específica do primeiro-ministro japo­
nês. Trata-se da polêmica em torno de visitas por parte do
primeiro-ministro ao santuário xintoísta Yasukuni, um local
criado na cidade de Tóquio em 1869 com o propósito de
celebrar aqueles que morreram em combate pelo Japão, mas
que a partir de 1978 se tornou objeto de polêmica por pres­
tar homenagens também a líderes militares que foram con­
denados como criminosos de guerra após o fim da Segunda
Guerra Mundial. Devido a essa associação do santuário com
a memória do militarismo, muitos líderes japoneses passa­
ram a se afastar dele, ou então a apoiá-lo de forma menos
ostensiva. Mas em 2001 o então primeiro-ministro Junichiro
Koizumi passou a visitar o santuário todos os anos até o fim
de seu mandato, em 2006, apesar de receber fortes críticas.
Os simpatizantes do santuário aproveitaram a ocasião das

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

visitas para difundir o discurso de que o local seria um sím­


bolo da própria integridade e dignidade nacional, e deveria
ser honrado pela população e pelos chefes de governo, a
exemplo do que fazem as outras nações do mundo com seus
heróis de guerra (Breen 2004; Kuroki, 2013, pp. 91-127).
Seria possível mencionar ainda vários outros fenômenos
que vêm surgindo desde meados da década de 1990: o surgi­
mento de organizações xenófobas (Higuchi, 2014); o reno­
vado interesse em símbolos nacionais como a bandeira e o
hino japoneses (Ukai, 2005); o viés nacionalista de represen­
tações em desenhos animados e séries televisivas (Ohsawa
2011); ou então o agravamento de tensões sobre questões
territoriais com outros países (Toyoshita, 2012).
Mais do que acumular exemplos, porém, convém reto­
mar aqui a definição de nacionalismo proposta por Gellner
e destacar que em todos esses casos há, em primeiro lugar,
uma preocupação direta ou indireta com as ações e a ima­
14 gem do Japão enquanto comunidade política: sua capaci­
dade militar e seu prestígio internacional, a organização do
seu sistema educacional, o comportamento de seus chefes
de governo. Em segundo lugar, a manutenção dessa unidade
política é tida como diretamente relacionada a uma questão
cultural que seria, em tese, de interesse de toda a população
japonesa: uma reformulação simbólica da imagem pública
do Japão através do “revisionismo histórico”.
Esse revisionismo defende que, embora a recuperação
japonesa após a Segunda Guerra Mundial seja tradicional­
mente vista como uma história de sucesso, sobretudo do
ponto de vista econômico (e.g. Vogel, 1979), a partir desse
período teria havido na realidade uma ênfase exagerada nos
erros cometidos pelo Japão até então e, devido a essa ima­
gem distorcida, teriam sido implantados vários mecanismos
institucionais e simbólicos destinados a punir injustamente
o povo japonês, enfraquecendo assim a influência do país
no mundo. As restrições da constituição de 1946, os livros

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Ernani Oda

didáticos que retratam as atrocidades do colonialismo japo­


nês, e a negligência dos chefes de governo em honrar símbo­
los nacionais como o santuário Yasukuni ilustrariam essa ten­
dência. Apesar do crescimento econômico e da prosperidade
material alcançada desde então, as restrições do pós-guerra
teriam imposto aos japoneses uma identidade autodeprecia­
tiva, resultando numa postura passiva e submissa no cenário
internacional. Para superar essa situação, seria necessário
esclarecer primeiro que os erros cometidos pelo Japão até a
Segunda Guerra Mundial não teriam sido tão graves como
se costuma afirmar. A partir dessa consciência supostamente
mais correta da história, seria possível então rever aqueles
mecanismos castradores – : a constituição, os livros didáticos,
a hesitação dos chefes de governo etc.
Identificando, dessa forma, uma ideologia revisionista
como base cultural comum por trás das demandas políticas
do nacionalismo japonês atual, podemos não apenas orde­
nar melhor a diversidade de suas manifestações, mas tam­ 15
bém começar a entender por que esse nacionalismo tem
provocado reações tão fortes nos países vizinhos, especial­
mente na China e na Coreia do Sul. A maioria das supostas
distorções e inverdades históricas que o revisionismo japo­
nês se propõe a retificar está ligada a atrocidades cometidas
pelo colonialismo e pelo militarismo japonês justamente
nesses países, como o massacre de Nanking ou a exploração
de escravas sexuais. Não surpreende, portanto, que o dis­
curso revisionista de negar ou amenizar esses eventos seja
recebido com protestos por chineses e coreanos. É certo
que, como veremos, há outros fatores em jogo, e as reações
nesses países são na realidade mais complexas. Mas a indig­
nação causada pelo revisionismo é um elemento relevante.
Certamente não seria difícil mostrar como a maioria dos
“fatos” que esse revisionismo toma por objetivamente váli­
dos encontra na realidade pouco respaldo na historiogra­
fia sobre o Japão do pós-guerra (e.g. Dower, 1999; Oguma,

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

2002). No entanto, mais do que testar a veracidade do con­


teúdo desse discurso, o objetivo deste artigo é examinar
sua formação e seu desenvolvimento, sem entrar necessa­
riamente no mérito de suas teses. Independentemente dos
fundamentos empíricos duvidosos, o impacto desse discurso
na sociedade japonesa e no leste asiático como um todo é
bastante real, e a dinâmica de sua difusão merece uma aná­
lise mais detida.

Explicações para o nacionalismo: “ansiedade” versus


“confiança”
A primeira pergunta a ser feita é: por que esse tipo
de nacionalismo surge no Japão a partir dos anos 1990? A
causa mencionada com mais frequência é a atmosfera de
“ansiedade” que se estabeleceu no país nas últimas déca­
das, especialmente com o início da crise econômica decor­
rente do estouro da bolha financeira japonesa no começo
16
da década de 1990 (e.g. Nye, 2012; Takahara, 2010; Yoda,
2006). Segundo esse raciocínio, a estagnação da economia,
o aumento no nível de desemprego e a instabilidade política
decorrente da crise teriam ajudado a difundir na população
uma condição de insegurança, e o discurso inflamado do
nacionalismo, ao pregar a retomada de prestígio do Japão,
seria um meio de obter certo conforto emocional. O nacio­
nalismo funcionaria no fundo como um mecanismo de com­
pensação diante do relativo declínio da sociedade japonesa.
O apelo dessa interpretação é bastante forte, e pode­
mos encontrar a mesma lógica em estudos mais gerais sobre
discursos nacionalistas também fora do Japão (Appadurai,
2006; Beck, 2002). Trata-se de um argumento simples que
oferece uma explicação intuitiva sobre as causas do nacio­
nalismo, tanto no nível macro dos processos sociais (a crise
econômica), como no nível micro das motivações indivi­
duais (ansiedade e desejo de compensação emocional).

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Ernani Oda

No entanto, há um problema fundamental nessa inter­


pretação que costuma ser negligenciado: durante a década
de 1980, muito antes do estouro da bolha financeira, tam­
bém havia no Japão discursos e práticas revisionistas análo­
gos aos que foram mencionados até aqui. Em 1982 e 1986
foram travados intensos debates sobre os livros didáticos
de história usados nas escolas do país, especialmente com
relação ao modo como eles tratavam da dominação colonial
japonesa na Ásia. Além disso, em 1985 o então primeiro-mi­
nistro Yasuhiro Nakasone, considerado de orientação mar­
cadamente nacionalista, também decidiu visitar o santuário
Yasukuni, causando grande polêmica. E em 1987 a questão
do fortalecimento militar japonês e uma possível afronta
à constituição tornaram-se outra fonte de controvérsia,
porque o governo de Nakasone decidiu aumentar o orça­
mento militar japonês numa proporção maior que aquela
tida como limítrofe durante todo o período do pós-guerra.
Em todos esses casos se manifestou uma lógica claramente 17
revisionista, e é importante lembrar também que nessas oca­
siões houve fortes protestos tanto na China como na Coreia
do Sul (Nam, 2015, pp. 329-332; Reilly, 2012, pp. 60-75).
Ironicamente, os analistas da época explicavam esse
nacionalismo revisionista como consequência da “con­
fiança” dos japoneses na prosperidade de sua economia e
na estabilidade de sua estrutura política (Johnson, 1986,
p. 563; Muramatsu, 1987, p. 318). Temos, portanto, mais
uma explicação simples e intuitiva que articula de maneira
aparentemente coerente um conjunto de causas no nível
macro (estabilidade econômica) e no nível micro (con­
fiança e necessidade de autoafirmação). Mas o resultado
acaba sendo oposto à intepretação anterior, e em vez de um
mecanismo de compensação temos nesse caso um meca­
nismo de autoafirmação. Isso nos deixa num impasse: afi­
nal, a causa do nacionalismo e do revisionismo estaria na
confiança ou na ansiedade? Se ambos os fatores levam ao

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

mesmo resultado, o mais natural seria concluir que nenhum


deles tem na realidade um efeito muito relevante.
Creio ser possível evitar essa confusão se por um
momento deixarmos de lado termos como “ansiedade”
ou “confiança” e notarmos que, apesar das semelhanças
mencionadas acima, o nacionalismo da década de 1980 e
o nacionalismo que vem se intensificando desde os anos
1990 são no fundo fenômenos distintos. Embora haja uma
demanda revisionista em comum, os sujeitos, os efeitos e
principalmente o contexto social desses discursos são bas­
tante diferentes. Nas seções seguintes irei examinar mais
detalhadamente os principais pontos de divergência.
Cumpre adiantar aqui, porém, que esta análise irá pri­
vilegiar aspectos de caráter macro, relacionados a transfor­
mações mais amplas na sociedade japonesa e na política do
leste asiático. Não me aprofundarei na questão das moti­
vações individuais que teriam levado as pessoas a aderir ao
18 nacionalismo. Portanto, tomo a presença de indivíduos com
essa inclinação nas décadas de 1980 e 1990 como um pres­
suposto. A ênfase maior será em entender as diferentes con­
dições estruturais que permitiram a essas pessoas expressar
suas opiniões publicamente e de maneira organizada.
Não pretendo com isso sugerir que a motivação indivi­
dual seja menos relevante, nem que os motivos para que cer­
tos indivíduos adotem posições revisionistas tenham perma­
necido inalterados ao longo das últimas décadas. A questão
é sem dúvida importante e complexa, mas quando tratada
de maneira apressada ou superficial pode acabar gerando
apenas mais confusão, a exemplo do que ocorre com as
teses que tentam explicar o nacionalismo japonês recente
como consequência de “ansiedade” ou de “confiança”. Por
isso, uma análise de cunho estrutural sobre os diferentes
contextos em que surge esse nacionalismo pode servir como
ponto de partida para reflexões posteriores mais aprofunda­
das sobre a motivação concreta dos indivíduos.

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Ernani Oda

Trajetórias diferentes em períodos diferentes


Como sugerido acima, o nacionalismo revisionista que
ganha força a partir da década de 1990 tem precedentes na
década anterior, mas há uma diferença importante no modo
como ele se manifesta nesses dois períodos. Tal diferença não
está tanto no conteúdo da doutrina revisionista nem mesmo
no seu radicalismo, mas no tipo de recepção dessa doutrina na
esfera pública. Farei uma descrição mais detalhada nas seções
seguintes, mas em linhas gerais é possível dizer que na década
de 1980, embora as polêmicas em torno dos discursos naciona­
listas estourassem em diversas ocasiões e tivessem um impacto
profundo, elas costumavam ser contidas logo em seguida.
Havia, portanto, certa intermitência nas controvérsias. A partir
dos anos 1990, ao contrário, a tendência passou a ser não ape­
nas de tensão contínua, mas também de escalada dos conflitos.
O que explica a transição de uma atitude contempori­
zadora para uma postura de confronto? Reforçando o que
já foi mencionado na seção anterior, irei analisar a questão 19
a partir de condições estruturais mais amplas que caracte­
rizaram a sociedade japonesa nas décadas de 1980 e 1990.
Uma dessas condições se refere obviamente à diferença na
situação econômica nas duas épocas: enquanto na década de
1980 a economia japonesa exibia ainda crescimento e estabi­
lidade, a partir da década seguinte ela passou a se enfraque­
cer. Vimos que muitos analistas dão grande atenção a essa
perspectiva, cuja importância de fato não pode ser negada.
Mas há dois fatores igualmente cruciais, muitas vezes esque­
cidos, que, sem diminuir a relevância dos fatores econômicos,
podem ajudar a esclarecer como estes últimos influenciam na
difusão do nacionalismo. Trata-se, em primeiro lugar, da estru­
tura político-partidária japonesa, e em segundo, das relações
do Japão com outros países do leste asiático. Justamente por
serem negligenciados com frequência, concentrarei minha
análise nesses dois fatores, sem esquecer, porém, o modo como
eles interagem com as mudanças na esfera econômica.

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Mudanças no cenário político-partidário na década de 1980


Uma das características da política japonesa tem sido
o longo período de predomínio de um único partido, o
Partido Liberal Democrático (PLD). De 1955 a 1993, o par­
tido manteve sozinho o controle do parlamento, e apesar
de duas breves interrupções (de 1993 a 1994 e de 2009 a
2012), em ambos os casos o PLD logo voltou ao poder, ainda
que através de coalisões. Atualmente, continua a deter uma
maioria confortável nas duas casas do parlamento.
Por trás dessa continuidade, porém, há várias e profun­
das transformações pelas quais passou o PLD e a estrutura
político-partidária do Japão em geral. Como veremos, essas
transformações tiveram grande impacto na difusão de dis­
cursos nacionalistas e demandas revisionistas, especialmente
a partir da década de 1980.
Até os anos 1980 o PLD tinha a maioria no parlamento,
mas sua estrutura interna era causa de grandes preocu­
20 pações para seus líderes. Desde sua origem, o partido era
bastante divido, organizando-se em diversas facções que se
engajavam em intensas disputas internas (Kitaoka, 2008;
Park, 2001). Ao mesmo tempo, as várias facções sentiam
necessidade de centralizar o partido em torno de uma lide­
rança única, embora não houvesse acordo sobre qual das
facções deveria assumir esse papel; cada uma tentava assim
conquistar para si o controle do PLD.
Essa necessidade de centralização se fazia mais premente
tendo em vista o receio que os políticos do PLD tinham em
relação ao Partido Socialista Japonês (PSJ), principal oposi­
ção até a década de 1980. Embora o PSJ nunca tenha de fato
ameaçado a domínio do PLD, havia o receio de que a base
de apoio do PSJ pudesse eventualmente crescer e mudar
a configuração de poder partidário. A base de apoio tradi­
cional do PLD sempre esteve nos eleitores rurais, que até
a década de 1950 ainda eram parcela dominante da popu­
lação japonesa. Com a industrialização e a urbanização do

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Ernani Oda

Japão a partir desse período, entretanto, havia a perspectiva


concreta de aumento das classes industriais operárias, em
princípio mais favoráveis a uma agenda socialista (Nakakita,
2014, pp. 56-57).
Os anos seguintes, porém, não confirmaram essas expec­
tativas. Apesar da consolidação de uma sociedade urbana e
industrial, o PSJ não obteve mais apoio da população. Pelo
contrário, a afluência material e a diversificação dos valo­
res e das práticas culturais iniciada nos anos 1960 atuaram
para enfraquecer o apelo das antigas ideologias socialistas
(Nakakita, 2014, p. 86; Kitada, 2005). Isso beneficiou o PLD,
que podia ainda contar com uma base rural fiel, mas seus
membros perceberam que tinham a mesma dificuldade do
PSJ em alcançar os novos eleitores urbanos.
Em princípio, o PLD tentou lidar com essa deficiência
através de políticas pontuais voltadas a atrair os grupos urba­
nos, principalmente no campo dos benefícios sociais (Ide,
2013, p. 40). Mas outra iniciativa importante foi o trabalho de 21
lideranças dentro do partido para reformular a própria iden­
tidade do PLD. Se antes as disputas entre as diversas facções
eram tidas como um mal a ser eliminado, os novos ideólo­
gos passaram a defender que a força do partido estaria justa­
mente nessas divisões. Isso porque uma estrutura centralizada
seria rígida demais para dar conta de uma sociedade urbana e
industrial diversificada. As facções seriam mais eficientes nesse
sentido, podendo atender a uma variedade muito maior de
demandas e grupos de interesse, em troca, evidentemente, de
recursos para eleger seus respectivos membros e manter sua
influência no parlamento. É certo que os conflitos entre as fac­
ções continuaram a ser vistos como um problema a ser resol­
vido, mas a solução não estaria numa estrutura centralizada
ou no domínio de uma única facção, e sim num novo estilo
de barganha e concessões mútuas entre as diversas facções.
Foi essa visão que acabou predominando no PLD a partir da
década de 1980 (Nakakita, 2014, pp. 85-88 e 120-128).

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Podemos aqui retomar a questão do nacionalismo.


Entre as várias facções do PLD, sempre houve aquelas que
reuniam políticos de orientação nacionalista e revisionista,
defendendo a necessidade de reverter muitas das políticas
adotadas após a Segunda Guerra Mundial, especialmente
com relação às restrições militares. No entanto, entre as
décadas de 1960 e 1980 o partido esteve sob o controle das
facções mais pragmáticas e interessadas em promover o
crescimento econômico, o que deixava o revisionismo em
segundo plano (Kitaoka, 2008, pp. 115-116).
Porém, uma das consequências daquela nova lógica de
barganha entre as facções, consolidada a partir da década de
1980, consistiu justamente em dar mais espaço para as fac­
ções nacionalistas que haviam perdido influência nos anos
anteriores. Foi o que aconteceu com a facção de Yasuhiro
Nakasone, que não por acaso se tornou o principal defensor
da nova ideologia. Como já mencionado, Nakasone sempre
22 foi uma figura associada a ideias nacionalistas, mas liderava
uma facção menor dentro do PLD. Ele conseguiu chegar
ao poder e se tornar primeiro-ministro em 1982 graças a
uma aliança com a facção majoritária da época, liderada
por Kakuei Tanaka, muito embora essa facção não adotasse
o mesmo perfil nacionalista (Nakakita, 2015, pp. 117-128;
Wan, 2006, pp. 101-102).
Esse contexto ajuda, por um lado, a explicar por que na
década de 1980 havia mais espaço para a manifestação de dis­
cursos revisionistas. Para além de um estado psicológico de “con­
fiança” na sociedade japonesa, parece mais relevante enfatizar
que a nova estrutura do PLD permitiu que figuras nacionalistas
negociassem um espaço maior na esfera política para expressar
suas visões. Isso não significa, é claro, que o contexto de estabi­
lidade econômica fosse irrelevante. Para que os diversos grupos
de interesse na sociedade pudessem garantir os favores das várias
facções, era necessário que eles tivessem uma fonte confiável de
recursos, e a afluência da economia japonesa contribuiu para

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Ernani Oda

isso. Mas não se trata de motivação psicológica ou de “confiança”,


e sim das condições da cena política da época.
É importante ressaltar, no entanto, que a mesma bar­
ganha que beneficiava as facções nacionalistas impunha
também limites a elas. Como já mencionei, uma marca dos
discursos nacionalistas da década de 1980 é a rapidez com
que eram contidos. Agora é possível especificar que um des­
ses mecanismos de controle era exatamente a pressão das
facções mais moderadas do PLD.
No caso da visita de Nakasone ao santuário Yasukuni,
por exemplo, a pressão da facção majoritária de Tanaka foi
decisiva. Além de não exibir a mesma atitude nacionalista de
Nakasone, a facção Tanaka era tradicionalmente mais pró­
xima da China, sendo que muitos de seus membros manti­
nham vínculos fortes com líderes chineses. Por isso mesmo,
alguns deles ajudaram na mediação entre Nakasone e o
governo chinês. Este exigia que a visita não voltasse a ocor­
rer, o que de fato se confirmou (Hattori, 2012, pp. 180-183). 23
Em outros casos, como o dos livros didáticos, Nakasone
e seus ministros chegaram mesmo a tomar a iniciativa para
conter os nacionalistas. Em 1982 o governo criou uma regra
segundo a qual os livros didáticos aprovados pelo poder
público deveriam ser mais moderados e levar em conside­
ração possíveis repercussões negativas em países vizinhos.
Em 1986, ele praticamente vetou a publicação de conteúdos
revisionistas em um livro elaborado por grupos nacionalistas
(Kimura, 2014, pp. 126-128). Embora simpatizassem com os
nacionalistas, Nakasone e seus aliados precisavam contê-los,
visto que o apoio das outras facções poderia se enfraquecer.
É verdade que o papel de contenção das facções mais
moderadas não impediu Nakasone de aumentar o orça­
mento militar japonês em 1987. Por outro lado, isso não
resultou numa atuação mais ativa das forças japonesas, o
que ficou claro na recusa do Japão em enviar tropas para a
Guerra do Golfo em 1990-1991.

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Mudanças no cenário político-partidário a partir da


década de 1990
Uma nova mudança importante na estrutura político­
-partidária se deu a partir da década de 1990, em grande
parte porque a barganha entre as facções acabou gerando
problemas sérios para o PLD. Em primeiro lugar, a descen­
tralização do partido, com as diversas facções mantendo
relações cada vez mais próximas com diferentes grupos de
interesse, acabava favorecendo a corrupção. Foram revela­
dos nessa época vários escândalos que consolidaram uma
imagem extremamente negativa das facções (Nakakita, 2014,
p. 139). Em segundo lugar, embora a apologia das facções
fosse originalmente pensada como estratégia de diversifica­
ção para conquistar eleitores heterogêneos das áreas urba­
nas, o PLD nunca conseguiu fazê-lo, e com os escândalos
esse apoio se enfraqueceu ainda mais (Nakano, 2015, p. 77).
Nessa época começaram a se destacar no PLD figuras
24 que defendiam novamente o fim das facções e a formação
de uma estrutura centralizada, capaz de vigiar os canais de
corrupção, conquistar o eleitorado urbano e estabelecer
prioridades para a captação e distribuição dos recursos.
Porém, antes que tais figuras pudessem efetuar reformas
efetivas, a insatisfação popular levou à saída do PLD do
poder em 1993.
O novo governo tinha um discurso bastante crítico ao
regime anterior, mas muitos de seus líderes eram na rea­
lidade políticos que haviam acabado de deixar o PLD. Os
mais influentes compartilhavam até mesmo a crença de que
somente uma estrutura política centralizada poderia gerar
um regime governável, e com base nisso realizaram uma
profunda reforma no sistema eleitoral da câmara baixa do
parlamento em 1994. Embora promovida na época em que
o PLD estava fora do governo, essa reforma contribuiu para
o processo de centralização que muitos membros do pró­
prio PLD vinham propondo.

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Ernani Oda

Qual o teor da reforma? Até então os representantes


eram escolhidos por voto distrital, e cada distrito geralmente
elegia de três a cinco representantes. Por isso, o mesmo par­
tido podia indicar vários candidatos para cada distrito, o
que o PLD fazia com frequência. Mas isso favorecia a for­
mação de facções, cada uma selecionando, financiando e
controlando o próprio candidato. Com a reforma de 1994,
cada distrito passou a eleger apenas um representante, o
que enfraqueceu muito a influência das facções, pois o par­
tido poderia indicar apenas um candidato por distrito, e essa
decisão precisaria agora ser tomada de maneira integrada,
dando assim mais controle para a direção geral do partido
(Curtis, 1999, pp. 137-170).
Depois que o PLD voltou ao governo em 1994, esse pro­
cesso de centralização continuou, agora através de uma série
de reformas administrativas voltadas a aumentar os poderes
do primeiro-ministro, que, como líder do PLD, passaria tam­
bém a ter mais autonomia para unificar o partido. A criação 25
do Conselho de Política Econômica e Fiscal (Keizai Zaisei
Shimon Kaigi), órgão ligado ao primeiro-ministro e relati­
vamente imune à influência das facções, tornou-se um dos
símbolos da nova direção adotada (Takenaka, 2006).
Qual a influência da centralização do PLD no naciona­
lismo? O principal efeito nesse sentido foi que, ao diminuir
o poder das facções, a nova estrutura acabou enfraquecendo
justamente o principal mecanismo de contenção dos discursos
nacionalistas. Nos anos 1980, como vimos, as facções majoritá­
rias tinham um perfil relativamente moderado e procuravam
conter os excessos dos nacionalistas. Porém, foram essas mes­
mas facções que mais perderam com a centralização do par­
tido. Além disso, políticos com a ambição de consolidar a cen­
tralização do PLD passaram a ver aqueles grupos nacionalistas
minoritários como potenciais aliados contra as facções majo­
ritárias. Apoiar e incentivar discursos nacionalistas se tornava
assim um instrumento conveniente de projeção política.

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

O caso do primeiro-ministro Junichiro Koizumi a


partir dos anos 2000 é o exemplo mais sintomático dessa
lógica. Koizumi se tornou a maior imagem da nova estru­
tura centralizada do PLD, impondo sua agenda contra os
setores mais tradicionais do partido e conseguindo realizar
a antiga aspiração de conquistar o eleitorado urbano. Uma
das estratégias adotadas por ele para chegar à liderança do
partido foi justamente atrair o apoio dos grupos naciona­
listas dentro do PLD, sobretudo através das já mencionadas
visitas que passou a fazer ao santuário Yasukuni (Nakakita,
2014, p. 213).
É interessante notar que muito se discute sobre a posi­
ção pessoal de Koizumi com relação ao Yasukuni. Alguns
acreditam que ele fazia suas visitas por convicção (Wan,
2006, p. 241), enquanto outros argumentam que o motivo
era basicamente instrumental (Nakano, 2015, p. 126). No
entanto, mais do que indagar sobre a motivação pessoal de
26 Koizumi, creio ser relevante atentar para o modo como o
processo mais amplo de centralização do PLD criou con­
dições para que Koizumi fosse incentivado a se cercar de
figuras nacionalistas e revisionistas.
Uma vez no poder e sem a pressão de facções mais
moderadas, essas lideranças passaram a contribuir para a
escalada do discurso revisionista, seja com relação ao san­
tuário Yasukuni, ao fortalecimento militar do Japão, ou à
reforma dos livros didáticos, a fim de difundir uma imagem
supostamente mais positiva do passado japonês. A demanda
por material revisionista nas escolas não só passou a con­
tar com um movimento organizado a partir de 1997, como
teve um livro aprovado pelo governo em 2001; as visitas do
primeiro-ministro Koizumi ao santuário Yasukuni continua­
ram durante todo o seu mandato; e, como vimos, a questão
do fortalecimento militar tem avançado cada vez mais, com
propostas no próprio governo de reinterpretar ou mesmo
alterar a constituição.

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Ernani Oda

Mudanças no contexto do leste asiático na década de 1980


Ao analisar as mudanças na estrutura político-parti­
dária japonesa, restringi meu foco à esfera doméstica da
questão. É preciso, porém, atentar também para os efeitos
do nacionalismo japonês em suas relações internacionais.
Tendo em vista que uma das consequências mais sérias do
nacionalismo japonês recente são os fortes protestos que
ele provoca em países vizinhos, especialmente na China e
na Coreia do Sul, é relevante examinar também o efeito
que a relação do Japão com esses dois países vem tendo
sobre o discurso nacionalista. Como se sabe, com o fim da
Segunda Guerra Mundial e do domínio japonês na Ásia,
seguiu-se um longo período de interrupção nas relações
diplomáticas do Japão com a China e com a Coreia do
Sul. No entanto, em 1965 o Japão retomou relações com
a Coreia do Sul e em 1972 começou negociações com a
China. As diferentes fases desse processo de reaproximação
acabaram influenciando o nacionalismo que passou a se 27
manifestar no Japão nas décadas seguintes.
De modo geral, pode-se dizer que, embora no nível indi­
vidual sempre houvesse pessoas preocupadas em lembrar e
discutir o histórico da ação japonesa na Ásia, até a década
de 1980 havia condições estruturais que incentivavam os três
países a evitar polêmicas sobre os conflitos passados, o que
ajudava a conter discursos nacionalistas e revisionistas. Na
década de 1980 alguns desses fatores de contenção perde­
ram sua influência, o que ajuda a explicar por que nessa
época o revisionismo ganhou certa projeção. No entanto,
outros fatores de contenção continuavam atuantes e acaba­
vam restringindo o ímpeto nacionalista quando este chegava
a se manifestar.
O primeiro fator que contribuiu para conter polêmicas
nacionalistas até a década de 1980 foi obviamente o con­
texto da Guerra Fria. No caso da relação entre Coreia do
Sul e Japão, que integravam o mesmo bloco liderado pelos

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Estados Unidos, havia a preocupação em consolidar uma


parceria militar e econômica que permitisse aos dois países
resistir à influência da União Soviética, o que servia para
deixar em segundo plano o debate sobre pendências his­
tóricas (Glosserman e Snyder, 2015, p. 7). Algo semelhante
se deu também na relação entre China e Japão. Embora a
China se definisse como comunista, sua crescente resistência
à interferência da União Soviética sinalizava para os EUA e
seus aliados uma possível reaproximação com o lado chinês.
O Japão seguiu essa tendência nas negociações com a China,
de modo que a ênfase na ameaça comum soviética ajudou
também a diminuir o peso das disputas históricas entre os
dois países (Wan, 2006, pp. 86-88).
O outro fator de contenção das tensões nacionalistas era
a convergência dos interesses econômicos dos três países.
A intensificação do comércio japonês com a China e com a
Coreia do Sul contribuiu para expandir as três economias
28 (Lee, 2015; Osawa, 2012). Além disso, o Japão fornecia ajuda
financeira para China e Coreia do Sul, o que beneficiava os
programas de desenvolvimento e infraestrutura nessas regiões,
ao mesmo tempo que favorecia as empresas japonesas, via de
regra contratadas para a execução desses projetos (Kimura,
2014, p.73; Wan, 2006, pp. 263-272). As vantagens da coopera­
ção econômica suplantavam assim o apelo de debates morais
sobre as atrocidades do domínio colonial japonês.
Finalmente, um terceiro fator de contenção era a relativa
cumplicidade das elites políticas nos três países. No caso da
relação entre Coreia do Sul e Japão, essa cumplicidade se dava
principalmente no nível simbólico, através da figura do dita­
dor Park Chung-hee (1961-1979), que controlava na época o
governo sul-coreano. A imagem de Park era a de um militar
que, até o fim da Segunda Guerra Mundial, havia colaborado
com a dominação japonesa na Coreia, de modo que insistir
nas atrocidades das forças japonesas era algo que em princípio
minaria a autoridade não só de Park, mas do próprio regime.

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Ernani Oda

Havia, portanto, um contexto geral que favorecia a supressão


desse tipo de questionamento (Kimura, 2014, p. 50).
Quanto ao vínculo entre China e Japão, a proximidade
das classes dirigentes era ainda mais concreta. Havia uma
rede de contato e influência, muitas vezes sustentada por
relações pessoais entre a cúpula do Partido Comunista da
China e a do PLD. Estabelecia-se assim um elo entre figuras
proeminentes, como Deng Xiaoping e Zhou Enlai do lado
chinês, e a já mencionada facção Tanaka no lado japonês.
Esses políticos e burocratas do alto escalão atuavam para
melhorar a relação entre os dois países em grande parte
porque muitos deles tinham sua base de apoio nas elites eco­
nômicas que se beneficiavam da parceria econômica entre
China e Japão (Wan, 2006, pp. 99-105). Não era de interesse
desses líderes, portanto, que atritos a respeito de demandas
nacionalistas comprometessem tal cooperação.
No entanto, a partir da década de 1980 o cenário no
leste asiático começa a se alterar, o que traz implicações 29
importantes para a interação do Japão com seus vizinhos
chineses e sul-coreanos. Do ponto de vista da relação com
a Coreia do Sul, é importante ressaltar o fim do regime
de Park Chung-hee e o novo governo de Chun Doo-hwan
(1979-1988). O país continuou sob um regime autoritário,
mas Chun, ao menos formalmente, procurou se distanciar
do legado de Park e de outras figuras associadas ao Japão,
o que em princípio lhe permitia assumir uma atitude mais
crítica perante questões históricas envolvendo a memória
das atrocidades japonesas (Kimura, 2014, p. 108). Já no
caso da China, uma mudança importante a partir dos anos
1980 foi a relativa redução na tensão entre esse país e a
União Soviética. Com isso diminuía a dependência chinesa
de uma aliança com o Japão e com o bloco capitalista de
modo geral, o que acabava também abrindo maior espaço
para que a China adotasse posturas mais severas diante do
Japão (Wan, 2006, p. 89).

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Essa posição mais assertiva na China e na Coreia do Sul


se tornou visível quando passaram a surgir manifestações
cada vez mais explícitas do discurso nacionalista japonês,
como na polêmica sobre os livros didáticos de história, a
visita do primeiro-ministro Nakasone ao santuário Yasukuni
e o aumento do orçamento militar. A Coreia do Sul foi parti­
cularmente ativa no caso dos livros didáticos, exigindo expli­
cações do embaixador japonês e formando um grupo de
pesquisa para investigar melhor o conteúdo dos materiais
didáticos no Japão (Kimura, 2014, p. 86). A China, por sua
vez, teve um papel marcante na controvérsia sobre a visita
de Nakasone ao Yasukuni, criticando duramente o primei­
ro-ministro (Wan, 2006, p. 96).
Porém, como sugeri, muitos dos fatores que até então
haviam contido as tensões entre os três países ainda perma­
neciam de pé. Acima de tudo, os interesses econômicos em
manter a parceria comercial e os programas de ajuda ofi­
30 cial continuavam sendo preocupações centrais. Além disso,
as elites políticas ainda mantinham uma relação de relativa
cooperação. No caso da Coreia do Sul, por exemplo, embora
o regime de Chun procurasse se distanciar da figura de Park
e de vínculos com o Japão, havia ainda entre os aliados de
Chun líderes influentes, como Kim Jong-pil, que tinham
um histórico de colaboração com as lideranças japonesas,
de modo que um discurso de confronto aberto ao Japão não
era totalmente factível (Kimura, 2014, p. 173). Já no caso
da China, as redes de contato entre o Partido Comunista e
o PLD permaneciam ativas. Como já mencionado, uma das
condições que permitiram conter a crise iniciada pela visita
de Naksone ao Yasukuni foram justamente essas redes, que
após intensas negociações informais conseguiram conven­
cer o primeiro-ministro a desistir de continuar suas visitas
(Hattori, 2012, pp. 180-183).
A década de 1980 assistiu, assim, à formação de con­
dições que, se por um lado permitiam que o passado de

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dominação colonial do Japão passasse a ser mais discutido


e questionado do que havia sido até então, por outro, pre­
servavam ainda fatores de contenção que contribuíam para
evitar uma escalada nos níveis de tensão.

Mudanças no contexto do leste asiático a partir da


década de 1990
Uma das características mais marcantes nas relações do
Japão com a China e com a Coreia do Sul a partir de 1990
foi uma progressiva erosão dos antigos fatores de contenção
que permitiam controlar o impacto negativo do naciona­
lismo japonês na região.
Primeiramente, o fim da Guerra Fria eliminou o papel
estabilizador que a ameaça comum da União Soviética
desempenhava nas relações entre os três países. Sem essa
ameaça, tornava-se mais difícil colocar os conflitos desenca­
deados pelos discursos nacionalistas no Japão em segundo
plano (Glosserman e Snyder, 2015; Yahuda, 2014). 31
A segunda mudança foi uma reconfiguração dos interes­
ses econômicos nos três países. Embora se mostrassem ainda
dispostos a manter uma relação de cooperação, a posição
de cada um deles nessa parceria começou a se alterar com
o notável crescimento da Coreia do Sul e da China de um
lado, e o relativo declínio do Japão, de outro. Nesse pro­
cesso, embora a participação japonesa no comércio exterior
chinês e sul-coreano permanecesse importante em termos
absolutos, seu peso relativo diminuiu sensivelmente devido
à grande diversificação desses dois mercados, que passaram
a expandir suas parcerias. Ao mesmo tempo, a crise econô­
mica japonesa levou à redução e, por fim, à eliminação dos
programas de ajuda oficial para a Coreia do Sul nos anos
1990, e para a China em meados dos anos 2000. Isso serviu
para relativizar a interdependência econômica dos três paí­
ses, que passaram a se ver cada vez mais como concorrentes
e rivais (Kimura, 2014, pp. 69-71; Wan, 2006, p. 79).

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

Por último, é preciso destacar o enfraquecimento dos


antigos vínculos entre as lideranças políticas. O caso da rela­
ção entre China e Japão é representativo dessa tendência.
Na época, muitos dos políticos e burocratas do alto escalão
que intermediavam o diálogo entre o Partido Comunista da
China e o PLD começaram a se retirar de cena (Wan, 2006,
p. 279). E como foi exposto, a própria estrutura do PLD
sofreu uma profunda transformação, diminuindo radical­
mente a influência das antigas facções próximas ao governo
chinês.
As relações entre Coreia do Sul e Japão também pas­
saram a sinalizar um atrito maior entre suas elites políti­
cas. O processo sul-coreano de democratização, a partir do
final da década de 1980 e começo de 1990, foi o catalisador
das mudanças. Enquanto os regimes autoritários de Park
e Chun permaneciam reticentes em adotar uma postura
mais crítica diante do nacionalismo japonês, visto que seus
32 líderes tinham vínculos históricos com o Japão, os governos
democráticos que se seguiram foram se tornando cada vez
mais independentes da influência japonesa. Isso se fez espe­
cialmente visível a partir de 1993, com o governo de Kim
Young-sam, que procurou se afastar do legado dos regimes
autoritários anteriores, assumindo, ainda que muito gra­
dualmente, uma atitude mais crítica com relação ao Japão
(Kimura, 2014, p. 188-207).
Dessa forma, aqueles fatores de contenção que até os
anos 1980 ainda contribuíam para que os debates sobre o
passado de dominação japonesa na Ásia permanecessem em
níveis administráveis foram em grande parte eliminados. O
resultado disso foi a escalada dos conflitos a partir da década
de 1990, com discursos nacionalistas cada vez mais agressi­
vos no Japão e protestos cada vez mais indignados na China
e na Coreia do Sul.
As visitas do primeiro-ministro Koizumi ao santuário
Yasukuni foram um exemplo claro da ausência dos antigos

Lua Nova, São Paulo, 103: 11-38, 2018


Ernani Oda

fatores de contenção. Diferentemente do que havia corrido


com Nakasone em 1985, quando líderes chineses e japo­
neses conseguiram controlar a crise, no caso de Koizumi
esses canais já não tinham a mesma relevância. Membros da
antiga facção Tanaka ainda tentaram convencer Koizumi a
desistir de continuar suas visitas. Mas no novo contexto, a
facção já não tinha capacidade para intervir. E num mundo
em que Japão e China surgiam mais como rivais do que cola­
boradores econômicos, havia menos incentivos para que o
lado chinês contivesse suas críticas. As visitas de Koizumi não
cessaram, e a tensão continuou a se acentuar, a ponto de
que reuniões entre líderes do governo chinês e japonês fos­
sem canceladas (Wan, 2006, pp. 239-242; cf. Kamo, 2012).
As relações com a Coreia do Sul exibiram uma tendên­
cia semelhante, o que pôde ser visto com nitidez nos deba­
tes sobre a questão das escravas sexuais de origem coreana
recrutadas com a participação do exército japonês até a
Segunda Guerra Mundial. O tema veio a se tornar um dos 33
pontos mais controversos dos novos livros didáticos de histó­
ria elaborados por organizações nacionalistas japonesas na
década de 1990, quando os revisionistas passaram a negar
ou então minimizar os depoimentos dessas mulheres. Vale
notar que, quando a discussão começou de fato a ganhar
força no começo da década de 1990, o governo sul-coreano
ainda mantinha uma postura conciliatória em relação ao
Japão, o que muitas vezes frustrava os movimentos feministas
e as associações civis na Coreia do Sul. Havia até um projeto
para criar um fundo financiado pelo Japão com o objetivo
de encerrar os debates. Na Coreia do Sul, os ativistas eram
contrários a esse tipo de medida, mas o governo se mostrava
receptivo, pois embora o processo sul-coreano de democra­
tização já tivesse se iniciado, foi apenas em 1993 que se deu
a ruptura efetiva com os regimes autoritários anteriores. E
de fato, a partir dessa época o governo sul-coreano se tornou
mais assertivo perante o Japão quanto ao tema das escravas

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Condições estruturais do nacionalismo japonês recente

sexuais. A própria proposta japonesa para criar um fundo


acabou rejeitada pelo novo governo democrático, e os con­
flitos em torno da questão se agravaram nos anos seguintes,
dificultando as relações diplomáticas entre os dois países
(Kimura, 2014, p. 208; Park, 2015).

Conclusão
Argumentei neste trabalho que podemos entender
melhor o discurso revisionista do nacionalismo japonês
recente se, antes de falarmos em estados psicológicos de
“ansiedade” e “confiança”, atentarmos primeiro para as con­
dições estruturais que permitiram que esse discurso surgisse
de maneira intermitente na década de 1980 e ganhasse força
na década de 1990. Dentre tais condições, destaquei duas: a
transformação da estrutura político-partidária japonesa e as
mudanças nas relações do Japão com a China e a Coreia do
Sul.
34
Nos anos 1980, a estrutura descentralizada do PLD
deu mais espaço para que facções nacionalistas dentro do
partido expressassem sua visão revisionista. Além disso, os
vínculos entre China, Coreia do Sul e Japão, que vinham
se fortalecendo desde as décadas anteriores, passaram por
um período de revisão, com a troca de regime na Coreia do
Sul e mudanças na política de segurança chinesa. Isso abriu
mais espaço para que os três países voltassem a discutir a
responsabilidade do Japão por atrocidades cometidas contra
seus vizinhos asiáticos até a Segunda Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo, porém, havia ainda condições que
incentivavam os três países a conter os conflitos, como a
necessidade de cooperação econômica e a proximidade
entre suas elites políticas. Além disso, a mesma descentra­
lização do PLD que beneficiava as facções nacionalistas
as submetia à pressão de facções mais moderadas. Com
isso, embora houvesse mais manifestações do discurso

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Ernani Oda

revisionista, existiam também fatores de contenção que aju­


davam a impedir a escalada dos conflitos.
A partir da década de 1990, esses fatores de conten­
ção são praticamente eliminados. A centralização do PLD
é prejudicial às facções mais moderadas e favorece figuras
nacionalistas dentro do partido. No campo externo, a rivali­
dade entre China, Coreia do Sul e Japão se fortalece, tanto
do ponto de vista econômico quanto político. Nesse novo
contexto é mais difícil encontrar uma base comum para o
diálogo, e as tensões se tornam mais contínuas e intensas.
Como ressaltei anteriormente, a ênfase nessas condi­
ções estruturais não significa que as motivações individuais
não sejam relevantes na formação do nacionalismo japonês
atual. Sem dúvida, é importante indagar por que certos indi­
víduos ou certas facções no Japão adotam posições naciona­
listas, e por que determinadas pessoas e grupos nos países
vizinhos protestam contra tais posições. Esse tipo de ques­
tionamento está além da perspectiva adotada neste artigo, 35
mas creio que a análise das condições estruturais proposta
aqui pode servir de ponto de partida para reflexões mais
aprofundadas sobre as motivações individuais dos naciona­
listas, sem reduzi-las a impressões do senso comum sobre
“ansiedade” ou “confiança”.

Ernani Oda
É pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp). Guarulhos, SP, Brasil.

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38

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LA VIDA DE DOMINGUITO: CIUDADANÍA, PATERNIDAD
Y GUERRA EN DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO
Alejandra Josiowicz
é investigadora assistente no Instituto Interdisciplinario de Estudios de Genero
(IIEGE-FFyL/UBA) e do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET).
Buenos Aires, Argentina. E-mail: <alejandra.josiowicz@gmail.com>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-039068/103

Los estudios más relevantes sobre Sarmiento han pen­


sado su obra y su trayectoria a lo largo de un eje estructu­
rado por dos alternativas predominantes: Carlos Altamirano
y Beatriz Sarlo (1997) han subrayado su defensa de los valo­
res laico-burgueses, como autodidacta y self-made man, hijo
de sus obras, para el cual la educación – la lectura como
paradigma pedagógico –, constituye el resorte fundamental
de acceso a la ciudadanía, arma contra la barbarie y condi­
ción de la emancipación intelectual ante la sociedad tradi­
cional1. Por su lado, Halperín Donghi (1980, 1989, 1994) ha
subrayado su nostalgia por el pasado colonial, su concepción
de la educación como herramienta de conservación social y
su fe en una nobleza ilustrada dada por el linaje, de la cual
se presenta como heredero y que estaría destinada a ejercer
el poder político en Argentina. Este ensayo analiza la repre­
sentación del hijo como escenificación del encuentro de
ambas lógicas – de hecho, entrelazadas en el pensamiento

1 
De cualquier modo, los autores aclaran que Sarmiento le confiere a su recons­
trucción genealógica un sentido polivalente. Para una lectura más reciente, ver
Sarlo (2012).

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

de Sarmiento –: Dominguito encarna el modelo del joven


ilustrado, ciudadano en armas, que combina el protago­
nismo de una élite letrada y patriótica destinada a gobernar
– dada por la valentía y el arrojo militar – con la apertura de
la sociedad a una idea de valoración en base a las capacida­
des y voluntades individuales, en que la educación funcio­
naría como motor fundamental del acceso a la ciudadanía.
Así, el ensayo busca responder a la pregunta: ¿De qué modo
se relacionan filiación y política en Sarmiento, por muchos
considerado padre de la patria y de la escuela argentina?
¿Cuáles son los sentidos políticos del modo en que concibe
la paternidad y, particularmente, del modo en que repre­
senta a su hijo, en la biografía? ¿Cuál es la relación entre su
concepción de la infancia y la formación de una Argentina
moderna? Dado su legado duradero en el sistema de edu­
cación primaria argentina y en los discursos sobre la educa­
ción como núcleo de resolución de los problemas sociales
40 del país, el sentido en que Sarmiento concibió la infancia
y la juventud como modelos de ciudadanía adquiere una
singular relevancia. Si tenemos en cuenta que las dos últi­
mas décadas del Siglo XX implicaron drásticos cambios en
la composición de la población argentina, con la llegada
de olas masivas de inmigrantes, el crecimiento demográ­
fico, la creciente urbanización, la ampliación educativa y la
instauración de leyes de escolaridad pública y obligatoria
(Halperin Donghi, 1997, p. 291), responder esas preguntas
a partir de la escritura biográfica de La vida de Dominguito se
vuelve particularmente crucial.

Introducción: las dos versiones de La vida de Dominguito


La vida de Dominguito (1886) de Domingo Faustino
Sarmiento (1811-1888), un texto casi completamente olvi­
dado por los estudios críticos, es una biografía de su hijo
adoptivo, Domingo Fidel Sarmiento, nacido en Santiago
de Chile en 1845 y muerto en la Guerra del Paraguay en

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

1866. La crítica aún debate si Dominguito fue, de hecho


hijo biológico de Sarmiento, fruto de una unión extramatri­
monial con la madre o si, sin ningún lazo de sangre con él,
simplemente fue adoptado luego de fallecido su padre2. Lo
cierto es que, después de compartir algunos años en Chile,
Sarmiento y el hijo perderían contacto en 1861 cuando, ya
separado de su madre, el padre parte hacia San Juan y el
hijo prosigue hacia Buenos Aires. Poco tiempo después, el
joven es nombrado capitán en el ejército argentino de la
Guerra del Paraguay y fallece en 1866 en Curupaytí, mien­
tras Sarmiento se encontraba en Estados Unidos. Crucial
aquí son tanto el acto de adopción como la necesidad de
repensar el lazo paterno-filial a través de la biografía, cues­
tiones que serán retomadas a lo largo de este ensayo.
Existen dos versiones de La vida de Dominguito. La pri­
mera, un conjunto de apuntes que Sarmiento escribió en
1867 cuando actuaba como Ministro Plenipotenciario en
Washington, después de recibir la noticia de la muerte 41
del hijo, no fue publicada en vida del autor y continuó
inédita hasta hace pocos años3. La segunda fue publicada
por Sarmiento en 1886, con el extenso título de La vida
de Dominguito. In memoriam del valiente y deplorado capitán
Domingo Fidel Sarmiento muerto en Curupaití a los veinte años
de edad. Autor de varios escritos, biografías y correspondencias y
traductor de “París en América”. El texto apareció como un
tomo con motivo del vigésimo aniversario del fallecimiento
del hijo, dos años antes de la muerte de Sarmiento en 1888.

2 
Porfirio Fariña Nuñez (1934) discute extensamente la “dudosa” filiación de
Dominguito, y opta por atribuir la paternidad biológica a Sarmiento. Enrique
Anderson Imbert (1975) expone una hipótesis similar.
3 
Los manuscritos fueron editados con el título de La Vida de Dominguito en 2000
por el Fondo Nacional de las Artes a cargo de Javier Fernández. A partir de aquí,
cito la versión de 1867 como La vida de Dominguito y la de 1886 como La vida de
Dominguito. In memoriam. Por razones prácticas, para el análisis, citaré sobre todo de
la versión reeditada por A. Belin Sarmiento en 1900 como “Vida de Dominguito”.

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 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

Se trata de textos marcadamente distintos en su carácter


e intencionalidad, así como vinculados a momentos diferen­
tes de la trayectoria política e intelectual de Sarmiento: la
primera versión, escrita en el momento mismo del duelo,
en Estados Unidos, tiene un carácter íntimo y literario,
mientras que la segunda, de carácter público y patriótico,
responde a la búsqueda de un legado y de un modelo de
ciudadanía para la Argentina moderna. En la primera,
Sarmiento, inmerso en el dolor íntimo y personal por la pér­
dida del hijo, hace de la escritura biográfica un instrumento
del duelo, dotada de un poder consolatorio. El dolor del
duelo genera un quiebre en la subjetividad del autor: allí
el padre doliente aparece por sobre el hombre público y el
estadista. La primera versión de Vida de Dominguito se aden­
tra en el sentimiento paterno-filial a través de una noción
espiritualista de comunicación entre vivos y muertos, de una
celebración y sentimentalización de los lazos familiares y, en
42 particular, de la relación paterno-filial. Escribe Sarmiento
desde New York en carta a Mary Mann en 1866:

Tengo que conformarme, y ya estoy más resignado, aunque


el recuerdo de sus gracias infantiles, sus juegos conmigo
me haga llorar más que la idea de su trágica y sangrienta
muerte. No puedo recordarlo sino alegre y riendo y esto
me hace sufrir más. Estos días estaré más tranquilo. Le
agradezco su tierno interés y quedo su desconsolado amigo
(Sarmiento, 2000, p. 17).

Sarmiento exalta el sentimiento paterno, que se


encarna en el recuerdo cariñoso del padre entrelazado
con el niño en el juego. Como texto ligado al sentimiento
de afecto paterno-filial, la primera versión de Vida de
Dominguito adquiere un status casi clandestino en la obra de
Sarmiento (2000, p. 22). Sería una suerte de “fraude”, en
palabras de Sarmiento, por el cual el padre doliente intenta

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

restituir, como por una suerte de conjuro, al hijo perdido.


Es ese carácter casi ilícito lo que determina la resistencia de
Sarmiento a su publicación, y lo que lo distingue de modo
más agudo de la segunda versión.
En el texto de 1886, el núcleo principal no está en
el dolor por la pérdida, sino en la representación del fin
heroico del hijo en la batalla y de su muerte patriótica, como
modelo de civismo y figuración del legado de Sarmiento
para la Argentina futura. El texto emula, en su solemnidad,
la estructura de un monumento necrológico, formado por
una serie de documentos y testimonios que reconstruyen
la vida de Dominguito, destinados a exaltar su figura y a
conferir propósito e inteligibilidad a su muerte4. Se trata
de una estructura formada por tres secciones, todas ellas
enmarcadas por la voz de Sarmiento. La primera sección, de
29 páginas, presenta una serie de retratos de Dominguito:
un retrato pictográfico, una dedicatoria de Sarmiento, una
semblanza encomiástica escrita por Olegario Ojeda, a con­ 43
tinuación, una introducción de Sarmiento, seguida por una
serie de coronas fúnebres, notas de pésame y dedicatorias
de personalidades públicas y una conclusión del autor. La
segunda sección, que abarca 148 páginas, consiste en la
narración, por parte del padre, de las memorias de la infan­
cia y adolescencia de Dominguito y, para los sucesos poste­
riores a su último encuentro en San Juan, se apoya en cartas
y testimonios de su madre, de colegas de estudios y de com­
pañeros de la batalla, así como en fragmentos del cuaderno
de apuntes que llevaba en el momento en que murió, todos
materiales comentados por Sarmiento. La tercera y última
sección, que ocupa 174 páginas, recopila escritos del pro­
pio Dominguito: sus “Apreciaciones militares” (crónicas de
la Guerra del Paraguay aparecidas en los periódicos), sus

4 
Nicolás Rosa ha comparado al texto con un monumento necrológico: “La escri­
tura de la bio-grafía (sic) de Dominguito es escritura de un necro-logos: otra forma
de la inscripción lapidaria” (Rosa, 1990, p. 104).

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 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

ensayos de crítica literaria, el prólogo a su traducción de


“Paris en América” (de E. Laboulaye), ensayos de tipo bio­
gráfico, conferencias y discursos que pronunció y las actas
del club de Estudiantes en que participaba, seguidos de
un poema laudatorio de Agustín P. Justo. Los materiales
se presentan intercalados con las memorias de Sarmiento,
sus observaciones y explicaciones, que guían la narración.
Esta estructura, que enmarca la biografía en una serie de
testimonios y documentos públicos y privados, tiene como
propósito posicionar a Dominguito entre los grandes hom­
bres de su generación, a través de la cita de intelectuales
y hombres políticos que actúan como testigos y autorida­
des legitimadoras. De este modo, el aparato monumental y
documental legitima y corrobora las memorias paternas y, a
su vez, la narración del padre confiere significación a estos
materiales, como confirmación de la muerte patriótica del
hijo y consagración de ambos como héroes patrios, modelos
44 de gloria nacional.
Por otro lado, el texto pone en escena el impacto de
la Guerra del Paraguay (1864-1870) en el escenario históri­
co-político, sobre todo, el modo en que la guerra repercu­
tió en la consolidación del Estado nacional argentino – fue
su primera guerra moderna – y en el equilibrio geopolítico
entre las potencias de la región. La Guerra del Paraguay fue
el conflicto más sangriento y extenso del Siglo XIX después
de las contiendas por la emancipación y cerró el largo ciclo
de inestabilidad posterior a las independencias (Halperín
Donghi, 1980, p. 57). Se trató de un momento decisivo en la
construcción del Estado Nacional argentino, garantizando
la hegemonía del gobierno nacional sobre las provincias.
Por su carácter polémico y la falta de consenso inicial acerca
de su justificación y pertinencia, la Guerra hizo emerger una
serie de resistencias al proyecto centralizador del Estado
argentino. El gobierno de Mitre sufrió enormes dificultades
para conseguir que las provincias enviasen su proporción de

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

voluntarios para componer el ejército: parte de la población


se resistía a luchar contra Paraguay en alianza con Buenos
Aires, a punto tal que las sublevaciones y deserciones adqui­
rieron proporciones preocupantes (Doratioto, 2002). Si en
el caso del Imperio brasileño, el conflicto bélico generó
entusiasmo patriótico entre las masas populares, provenien­
tes de las provincias del Norte y del Nordeste, en el caso
argentino se dio una tendencia contraria, dado que el reclu­
tamiento tuvo éxito, sobre todo, entre la población porteña
y entre los jóvenes educados de las élites (Leuchars, 2002).
Sin embargo, a pesar de su carácter polémico, la guerra le
impuso al Estado argentino, y en particular a su aparato
militar, un ritmo de expansión tal que forzó la emergen­
cia de un nuevo tipo de hegemonía, propia de la nación
unificada y vinculada al nuevo consenso alcanzado por el
gobierno central (Halperín Donghi, 1980). La guerra tuvo
un papel decisivo en la posterior ampliación y moderniza­
ción del ejército – que ocurriría durante la presidencia de 45
Sarmiento – y contribuyó de modo definitivo a acelerar el
proceso de formación nacional.
Sarmiento fue un activo defensor de la causa bélica:
publicó en 1866, en Estados Unidos, un folleto de 48 pági­
nas titulado Revelations of the Paraguayan War and the Alliances
of the Atlantic and the Pacific – que apareció sin firma y sin
mención del autor – en el que defendía la posición de la
Triple Alianza contra las agresiones del Paraguay y caracte­
rizaba al Mariscal Francisco Solano López como un dicta­
dor corrupto y sanguinario. Asimismo, en otros textos de la
época, Sarmiento se presentaba como conductor exitoso de
la lucha militar contra los últimos caudillos y capaz de llevar
a buen término la Guerra del Paraguay, cuyo fin tuvo lugar
durante su presidencia. En la versión de 1886 de Vida de
Dominguito, Paraguay aparece como una “oscura y misteriosa
China americana” (Sarmiento, 1900, p. 246), nación bár­
bara, ciegamente obediente a la voluntad de Solano López y

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

su “disciplina del terror hereditario”, quien habría sido dés­


pota y demagogo: la guerra se justificaría, por lo tanto, por
la “necesidad de vengar agravios de un tirano atrabiliario”
(Sarmiento, 1900, p. 245).
La Vida de Dominguito, por otro lado, está íntimamente
ligado a los últimos años de vida de Sarmiento. En la
Argentina de 1880, Sarmiento adquiere una visión particu­
larmente pesimista de la vida política: se siente cuestionado
y rodeado de enemigos y se ve impelido a revindicar su
actuación político-militar durante la guerra civil y a resaltar
la faceta militar de su legado para la Argentina futura5. La
Guerra del Paraguay y el fallecimiento de su hijo en el con­
flicto bélico se ofrecen como modos de subrayar justamente
esa faceta y ese legado: firma el texto como D.F. Sarmiento,
“General de División” y lo dedica a los “amigos de infancia,
a los concolegas de estudios y a los compañeros de armas”
de Dominguito, apelando a los hombres de la Generación
46 de 1880 – que habían sido jóvenes en 1860 – entre quienes
se posiciona como antecedente y predecesor. Escribe en la
Introducción al texto:

¿No será disculpable su anciano padre ensordecido ya


por el fragor de instituciones que se derrumban, perdida
la voz a fuerza de predicar en el desierto sesenta años sin
tregua, si quiere recoger todavía, al borde de su propia
tumba, los fragmentos del rico vaso a que pensó trasegar
su pensamiento, para que continuara la obra otros tantos,
y que cayendo de manos del sacerdote que lo presentaba
al pueblo ante el altar de la patria se rompió? (Sarmiento,
1900, p. 182)

5 
Halperín Donghi ha descripto el pesimismo de la última etapa de Sarmiento y
su posición incómoda ante el ascenso de Julio A. Roca y su tradición federalista al
poder (1980).

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Alejandra Josiowicz

La vida de Dominguito pone en escena la percepción de


aislamiento político e ideológico que inundó a Sarmiento
en sus últimos años, así como la necesidad de reafirmar el
modo en que figurará en la memoria nacional. Sintiéndose
cercano a la muerte, desoído y carente de herederos o con­
tinuadores, escribe la biografía del hijo como un modo de
llenar ese vacío y esa falta y de darle forma, en la escritura,
a su legado para la Argentina moderna.

La vida de Dominguito: texto entre textos


La vida de Dominguito ocupa un lugar particular entre
los textos de Sarmiento: es la última de sus biografías, está
en relación de proximidad con su corpus autobiográfico
y se ubica en una zona cercana a sus textos pedagógicos,
así como a sus últimos discursos y necrologías. Como
texto que ahonda en lo paterno-filial, en la relación entre
Sarmiento padre y su hijo, La vida de Dominguito es tanto
un texto biográfico y autobiográfico como un texto peda­ 47
gógico y una metodología. Está ligado a sus traducciones
de textos morales y biografías pedagógicas, La conciencia
de un niño y Vida de Jesucristo, utilizados como literatura
escolar y pedagógica en las escuelas chilenas (Sarmiento,
1899, p. 20), así como a su Método de Lectura Gradual de
enseñar a leer el Castellano (1845). Dicho manual escolar
despliega la metodología para el aprendizaje de la lectura,
la ortografía y la gramática que sería aplicada en la educa­
ción de Dominguito, como modelo y método pedagógico:
varias de sus lecciones se hallan reproducidas en el texto.
Además, La Vida de Dominguito puede leerse junto con
sus textos de reflexión pedagógica: sus numerosos artícu­
los sobre métodos pedagógicos y sobre administración y
organización de la educación (Sarmiento, 1899), con De
la educación popular (1849) y Educación común (1855), en
que resalta el papel de la instrucción pública, primaria y
elemental en un régimen republicano.

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

Por otro lado, Vida de Dominguito también se relaciona


con las biografías de escritores y de políticos estadouniden­
ses que Sarmiento había leído y que consideraba centrales
en su propia formación: La vida de Benjamin Franklin y la
Vida de Abraham Lincoln. Sarmiento consideraba La Vida
de Franklin un texto modélico: afirma ser producto de su
lectura y emulación y declara que todo niño sudamericano
debía querer ser un “Franklincito”6. Es el texto cuya tra­
ducción le encarga a Juan María Gutiérrez el que lee a
Dominguito y utiliza como modelo fundamental para su
educación: “El nombre de Franklin resonó muchas veces
en los oídos infantiles del Capitán Sarmiento y sus doc­
trinas empezaron desde su adolescencia a formar parte
de su naturaleza” (Sarmiento, 1900, p. 309). Dominguito
aprende la “filosofía práctica” de Franklin, el “espíritu
moderno, industrial”, y lo emula como “escritor, como
republicano y como hombre de Estado” (Sarmiento, 1900,
48 p. 310). Por otro lado, Sarmiento escribe una biografía de
Lincoln, titulada Vida de Abraham Lincoln (publicada en
1866 en Nueva York por la editora Appleton & Company),
en que subraya la formación auto-didacta de Lincoln, su
pasión por el estudio, su búsqueda de superación personal
y la carencia de una formación escolar tradicional, caracte­
rísticas que sirven para narrar la infancia de Dominguito,
si bien en el caso de este último, como advierte Sarmiento,
el proceso aún incompleto de formación nacional dificulta
el avance del discípulo.
La biografía, para Sarmiento, funciona como una
suerte de pedagogía de la historia, cruce entre historia y
manual. Como Émile ou de l’éducation (1762), de Jean Jacques

6 
Sylvia Molloy ha observado al respecto: “He wished to put Franklin’s
Autobiography on school curricula, so that every student, on reading it, would
wish to be a little Franklin” (1992, p. 214). [“Deseaba incluir la autobiografía
de Franklin en los programas escolares, de modo que todo estudiante, al leerla,
deseara ser un Franklincito.”] (trad. del autor)

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

Rousseau, Vida de Dominguito narra la educación del discí­


pulo y funciona como un modelo de educación destinado
a la formación de formadores. La vida y educación de
Dominguito, de este modo, son pensadas en relación de
continuidad – y también de contraste – con las biografías
de hombres norteamericanos, en su carácter modélico, una
herramienta metodológica a la vez que un manual de ciu­
dadanía, que da cuenta de los conflictos y retrocesos en el
proceso de formación (tanto individual como colectiva).
Por otro lado, Vida de Dominguito se vincula también
con el corpus autobiográfico de Sarmiento, con Mi defensa
(1842) y Recuerdos de Provincia (1849-1850), dada la estrecha
ligazón entre biografías y autobiografías que la crítica ya ha
señalado en su obra. En Vida de Dominguito, la escritura de
la vida del hijo se entremezcla con la de la vida del padre,
una se extiende en la otra, lo que le confiere un marcado
carácter autobiográfico al texto. Se trata de una biografía
del hijo en que Sarmiento se lee a sí mismo, entretejiendo al 49
biografiado con el yo del biógrafo. El hijo hereda las glorias
del padre y el padre, a su vez, construye su propio legado
tomando como punto de partida las hazañas del hijo y la
relación paterno-filial7.
Así, si en Recuerdos de Provincia (1849-1850) Sarmiento
se construye como hijo y eslabón en una cadena de antepa­
sados prestigiosos, en Vida de Dominguito construye su pro­
genie y legado futuro a partir de la vida y la muerte del hijo.
Adopta al hijo, Dominguito, dándole el nombre, volvién­
dolo parte de su estrategia simbólica y motor de su escritura.
De este modo, reclama para Dominguito la pertenencia a

7 
Esta ha sido la característica del texto más señalada por la crítica: Nicolás Rosa
afirma que allí la propia vida se extiende en la del hijo; Sylvia Molloy advierte que
Sarmiento hace del hijo una copia de sí mismo, y de su biografía una especie de
autobiografía (1992, p. 144); Enrique Anderson Imbert la incluye en el corpus
de su obra autobiográfica y argumenta que el texto retrata a Sarmiento más que
a Dominguito (1967, p. 170). Otro de los contados estudios es el texto inédito,
mayormente fáctico y biográfico, de Brizuela Aybar (1988).

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

un linaje distinguido del cual se presenta como punto de


partida y fundador. Ahora bien, si en Recuerdos de Provincia,
Sarmiento se figuraba como heredero de una nobleza al
mismo tiempo democrática, de talento, y encarnada en el
linaje (Halperín Donghi, 1980, p. 24), en Vida de Dominguito
reclama para Dominguito una pertenencia análoga, como
heredero de un linaje de patriotismo e ilustración indispen­
sables para el buen gobierno. La pertenencia a un grupo,
la destreza gobernante y la ilustración van de la mano en
Vida de Dominguito, una confirma incesantemente a la otra,
leídas inclusive en los actos de indisciplina, los fracasos
escolares o intentos de transgresión del hijo, vistos como
inequívocas pruebas de audacia y voluntad de gobierno.
A la vez, Dominguito escenifica la emergencia de nuevos
modos democráticos de acceso a la ciudadanía a partir de las
capacidades individuales – la inteligencia, el ingenio, la des­
treza en las armas y el intelecto8. Se trata de una concepción
50 ambivalente de la paternidad, a la vez como transmisión de
una herencia y como lazo electivo y democrático que lleva
implícita una idea de autodeterminación.

Vida de Dominguito como biografía: historia, memoria y


manual
En términos teóricos, la biografía constituye un tipo
de escritura memorialística en que el autor registra e inter­
preta los recuerdos acerca de otro, evocando la propia sub­
jetividad en el pasado (Miceli y Myers, 2016). La biografía
moderna, en su avatar menos académico, se basa en el
recuerdo y la experiencia que el biógrafo ha tenido de su
objeto: es concebida en función del vínculo que establece
con el biografiado y, por lo tanto, está más cercana al uni­
verso de las memorias (Miceli y Myers, 2016). El género

8 
Esto ha sido analizado por Adolfo Prieto en la escena del ingreso escolar en
Recuerdos de Provincia (1996, p. 60).

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

biográfico responde al empeño de construcción del yo en


confrontación con un otro: en una suerte de gesto antro­
pofágico, el biógrafo se identifica y se nutre de la fuerza del
biografiado, implica su subjetividad y establece con él una
relación especular (Dosse, 2009). Como parte del proceso
de laicización de la memoria, el protagonista de la biogra­
fía moderna emerge como un héroe, un gran hombre que
encarna el alma nacional, que articula lo individual y lo
ejemplar, y cuyas virtudes suscitan un deseo de imitación
e identificación (Dosse, 2009). La biografía constituye, de
este modo, un modelo edificante que encarna y transmite
valores a las futuras generaciones, sean de tipo militar o
intelectual, de gestión política o capacidad creativa (Dosse,
2009). Esto es porque, como ya señaló Maurice Halbwachs,
la memoria biográfica y autobiográfica tiene su raíz en la
colectividad social, dado que es esencialmente social y
pública (Halbwachs, 1992). Por otro lado, como Philippe
Lejeune argumentó, la biografía y la autobiografía depen­ 51
den de un mismo pacto referencial, un contrato de identi­
dad que presupone un tipo de autenticidad y compromete
al autor con el lector (Lejeune, 1975). Ambas intentan dar
cuenta de la unidad profunda de una vida y ofrecen una
impresión de totalización, por lo que revelan una tensión
epistemológica entre el deseo de verdad (la voluntad de
reproducir la vida de un individuo real pasado) y la dimen­
sión estética e imaginativa, que le confiere valor artístico
(Lejeune, 1975; Dosse, 2009).
Como he afirmado, en Vida de Dominguito, Sarmiento
construye su propia imagen a partir de su relación con su
hijo: el biógrafo se nutre del biografiado, con el que esta­
blece una relación especular. La implicación subjetiva de
biógrafo y biografiado se intensifica debido al lazo pater­
no-filial, al ser una biografía que el padre escribe sobre el
hijo. Por otro lado, allí la escritura biográfica figura como
un ars moriendi, un modo de familiarizarse con la propia

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

muerte, de aceptarla poniéndose en el lugar de aquel que


desapareció (Dosse, 2009). Sarmiento reflexiona sobre la
muerte del hijo y sobre la propia mortalidad, que se figura
cercana, en el marco de una lógica patriótica y del valor
militar. Con base en su participación militar y en la de su
hijo, Sarmiento posiciona su legado entre los grandes hom­
bres de la patria. Vida de Dominguito imagina la transforma­
ción de padre e hijo en monumentos necrológicos, estatuas
de la historia, como parte de un linaje de grandes hombres
cuyo sacrificio aseguraría la consolidación nacional.
Por otro lado, la biografía no tiene una estructura
homogénea, sino ineluctablemente compuesta, en la cual
convergen relatos diversos, entrelazados unos con otros,
cuya hibridez y transversalidad la vuelven de difícil clasifi­
cación (Dosse, 2009). La Vida de Dominguito participa del
hibridismo constitutivo que, según François Dosse, seria
propio del género biográfico, situado siempre en el punto
52 de intersección de múltiples disciplinas. El texto instaura
un régimen de historicidad – dada su estructura basada en
el montaje y en la recopilación de testimonios y documen­
tos escritos –, se propone actuar como texto pedagógico
– que transmite valores y virtudes edificantes destinados a
la imitación e identificación – y es una memoria paterno-fi­
lial. En su carácter didáctico y ejemplar, presta atención al
público lector; se propone señalar a las próximas genera­
ciones los caminos de acceso a la ciudadanía y al heroísmo
patrio. Afirma Sarmiento: “A veces me viene la idea de
escribir una biografía de esta vida tan rica en incidentes,
tan instructiva como educación” (1900, p. 180) y agrega:
“para que estimen su nombre los padres que sobreviven
a sus hijos, los jóvenes que aman siempre a su patria y le
consagran sus desvelos y su vida” (1900, p. 183). El texto
es pensado en su carácter instructivo y pedagógico, como
legado para las jóvenes generaciones futuras, al mismo
tiempo que como memoria paterno-filial.

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

Como memoria, registra de un modo detallista los


hechos más cotidianos, anécdotas aparentemente insignifi­
cantes e íntimas de la infancia del hijo – sus palabras, ocu­
rrencias y rebeldías, su intelecto precoz, sus observaciones
ingeniosas, su atención inusitada, su carisma y su capacidad
de aplicar lo que lee y oye en el círculo paterno, así como
su temprano interés por cuestiones políticas. Vista a través
de una mirada microscópica, la infancia de Dominguito
pretende producir un efecto totalizante, que anticipa la tra­
yectoria y el carácter ejemplar del sujeto, que se proyecta,
así, sobre la gesta heroica del joven en la batalla. Sarmiento
lee en el niño, en germen, las destrezas del adulto: la inteli­
gencia del científico, la valentía del patriota, la sociabilidad
del hombre público y la gloria del estadista. Como en un
uso laico de la hagiografía, tradición literaria que le sirvió
de modelo a Sarmiento (Altamirano y Sarlo, 1997), Vida de
Dominguito postula todo en el origen, en el estado inicial:
sigue una concepción teleológica de la biografía que lo ve 53
dotado desde la infancia de todas las cualidades exigidas
para ser un individuo excepcional. Centrales son, en este
sentido, varios episodios iniciáticos de la infancia: el apren­
dizaje de la lectura y la escritura, la primera votación, el
aprender a montar a caballo, a disparar y el ejercicio de sus
dotes de caudillo entre los otros alumnos. Incluso cuando
se basa en testimonios y documentos históricos, el texto pri­
vilegia el carácter modélico, que une el héroe a su destino
providencial. Así, la infancia aparece como reveladora de la
efigie póstuma del hijo: Dominguito aparece entero, listo
desde el inicio para enfrentar todas las pruebas sin sufrir
esencial transformación. Una vez expuesto, el retrato se
vuelve ejemplo de vida y modelo a imitar.
Sin embargo, junto a este carácter en cierta medida
inmutable, Dominguito también es visto como un héroe
tensionado entre sus propios talentos y virtudes y la inte­
racción con fuerzas adversas, tanto internas como externas.

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

Así, su formación se frustra, una y otra vez, por su dificul­


tad de sujetarse a reglas, dada su personalidad marcada
por el exceso y la desmedida. Si en el colegio y la univer­
sidad exhibe sus dotes intelectuales y los conocimientos
que le vienen de lo que oye y ve en el círculo del padre, lo
cual lo posiciona como un líder carismático, sus estudios se
ven sistemáticamente interrumpidos ya sea por la rebeldía
del discípulo o por la atmósfera de inestabilidad política
que lo rodea. Como cabecilla de travesuras estudiantiles,
es castigado y expulsado de los colegios chilenos y argen­
tinos a los que asiste y, ya en la universidad, abandona los
estudios y se enrola en el ejército. La desmesura del héroe
aparece aquí en relación estrecha con el contexto político
de una nación en formación que arrastra, en la perspectiva
de Sarmiento, trazos heredados de barbarie (Sarmiento,
1900, p. 219). Esta suerte de imposibilidad de desarrollo,
que Sarmiento atribuye a una herencia defectuosa que
54 sería una marca de la nacionalidad, estaría en la base de
la formación fallida de Dominguito, nacido durante el
régimen de Rosas, seis años antes de la batalla de Caseros
(Sarmiento, 1900, p. 186). La amenaza que la barbarie
representaría al orden político nacional se traslada, por
una operación metonímica, al propio carácter del hijo.
Testigo de la inmadurez política que sería propia de los
“pueblos infantiles”, educado en sus “pasiones”, “terrores”
y “escándalos”, Dominguito padece de una inclinación
correlativa al desorden y a la inestabilidad (Sarmiento,
1900, p. 208). La vida de Dominguito encarna, así, el espí­
ritu de una época y sigue una ley inexorable de la histo­
ria: atravesado por la política desde la infancia, su destino
ineluctable es la guerra, el sacrificio por la causa nacional.
Vida de Dominguito pone en escena una concepción
de la biografía en la que el sacrificio heroico por la patria
cumple un papel fundamental: como “gran hombre”, su
muerte bélica se justifica como un paso en la consolidación

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

nacional. Como ha advertido François Dosse, en las biogra­


fías del Siglo XIX, la identidad patriótica exalta los valores
heroicos de ciertas figuras cuyo coraje en combate y dispo­
sición para el sacrificio nutren la idea de una República
próxima a la guerra (1900, p. 168). Para ilustrar el carácter
patriótico y ejemplar de la hazaña bélica de Dominguito,
aparecen citados numerosos testimonios, las cartas de su
madre, así como los apuntes y escritos del hijo. Sarmiento
se hace responsable y se inscribe en su destino providencial:
“Dios me lo perdone si hay que pedir perdón de que el hijo
muera en un campo de batalla, pro patria, pues yo lo vine diri­
giendo hacia su temprano fin” (1900, pp. 245-246). El padre
se presenta como artífice principal del sacrificio heroico de
Dominguito. Sarmiento le adjudica a Dominguito – y, con
él, a los jóvenes de las élites porteñas –, un rol providencial,
como representantes de la nación como un todo, defenso­
res de los ideales ilustrados y de un destino histórico patrio,
contra la barbarie heredada. Dominguito estaría destinado 55
a encontrar su vocación cívica y su genio en virtudes como la
elegancia, el heroísmo, la virilidad, todas vinculadas al papel
que le adjudica Sarmiento a las élites militares e ilustradas
en el proceso de consolidación nacional.

Modos de la ciudadanía: entre las armas y las letras


La categoría de ciudadanía, su definición y constitu­
ción, fue central en el proceso de consolidación del Estado
Nacional argentino en el período posterior a las inde­
pendencias, durante la segunda mitad del Siglo XIX. Se
trató de un proceso marcado por avances y retrocesos en
la expansión y desarrollo de los derechos políticos entre
camadas más amplias de la población. Así, la extensión del
“pueblo” fue objeto de debate entre las élites, que tenían
visiones distintas sobre las barreras de inclusión y exclu­
sión de esos derechos (Sábato, 2001). La Vida de Dominguito
pone en escena los impases en este proceso de definición

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

y expansión de los derechos políticos y de la ciudadanía.


El texto escenifica el papel relativamente marginal que, en
este momento del pensamiento de Sarmiento, le cabía a la
vía electoral, en comparación con la educación y con la par­
ticipación en círculos y clubes culturales y literarios, y sobre
todo, ante la relevancia que el camino militar y la interven­
ción armada poseían, para el autor, en la constitución de la
ciudadanía y como modo de acceso al poder. Pero además,
escenifica el modo restrictivo en que se define la ciudadanía
en el texto, lo que está relacionado con el papel protagónico
que Sarmiento le adjudicó a las élites en el proceso de con­
solidación nacional.
Son tres las escenas claves que ilustran el acceso a la
ciudadanía en el texto. La más breve y menos definitoria
para el destino futuro de Dominguito es la del voto. A los
seis años, oye discutir en el círculo del padre sobre las
elecciones y le pregunta cómo se vota y si puede votar. El
56 padre le explica y luego, súbitamente, el niño desaparece:
se ha ido a votar (Sarmiento, 1900, p. 193). Lejos de la
solemnidad de un acto de iniciación a la ciudadanía, el
evento de la votación aparece como una travesura infantil.
Está narrado en tono humorístico, que resalta el encanto
y la gracia del niño y la facilidad que tiene para ganarse el
favor de los adultos: en lugar de reprimirlo o castigarlo por
creerse munido de derechos que en realidad no posee, los
mayores entran en su juego. El pasaje, que pone en escena
el proceso de determinación y adjudicación del derecho
al voto y correlativamente, a la ciudadanía, revela no la
ampliación del acceso a los derechos cívicos sino la banali­
zación del sufragio, vuelto pantomima, “broma”, simulacro
jocoso. Allí la ciudadanía aparece no como la consecución
de una serie de derechos, sino como una “ilusión gene­
rosa”, una percepción puramente superficial producto del
juicio particular del sujeto que, sin conciencia de sus limi­
taciones, se juzga munido de derechos.

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

La segunda de las vías por las que Dominguito adquiere


ciudadanía es la alfabetización, la lectoescritura. Dominguito
aprende a leer y a escribir con su padre y desde niño par­
ticipa y asiste a los círculos culturales y de la sociabilidad
paterna lo que, mucho más que cualquier institución peda­
gógica y pública, lo inicia en la ciudadanía y en los sucesos
de la política nacional. La escena de la iniciación del hijo a
la letra es central en el texto, determinante del destino de
Dominguito y de su participación en los destinos del país.
El hijo aprende a escribir junto con el padre, que oficia de
maestro y guía:

A los tres años de edad y por vía de entretenimiento,


propúsose su padre enseñarle a leer, jugueteando, y
como medio de excitar su curiosidad e inteligencia que
se mostraba despierta y clara a tan temprana edad. […] el
niño de tres años iluminándosele el semblante con los rayos
de la inteligencia que asomaba a sus ojos – papá, dijo, a 57
que yo escribo Sarmiento? – a que no? – a que si; y escribió
en la página en blanco de un librito lo que va al frente
en facsímile. Esta es la copia exacta de aquella suprema
evidencia de la concepción del niño a los tres y medio
años. El librito en blanco existe en poder de la madre y es
guardado como una reliquia, pues que allí han quedado
rastros indelebles del pasaje de un alma que se despierta y
camina (Sarmiento, 1900, p. 185) (sic en el original).

El pasaje ilustra de modo significativo el sentido ini­


ciático del aprendizaje de la lectura: se trata de un verda­
dero despertar por el cual el padre atrae al niño al mundo
de las letras. Significativamente, aparece la escritura del
propio nombre, que también es el nombre del padre. La
primera firma del niño – incluida en el texto como imagen
litografiada – inscribe el nombre de ambos y representa el
aprendizaje como intercambio y desafío entre padre e hijo

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

“– papá, dijo, a que yo escribo Sarmiento? – a que no? – a


que si” (sic en el original). La imagen representa la escri­
tura imperfecta, tentativa, del niño. La firma, así como el
cuaderno del cual se la ha extraído, constituyen “reliquias”
de su despertar al mundo de las letras: es un rastro des­
ordenado, un “informe”, un verdadero “prontuario” que
funciona como huella del acceso del niño pequeño a la
ciudadanía letrada.

58

Sarmiento (1900, p. 185)

La firma constituye la marca de una escena de filiación,


el acto de dar y recibir el nombre, que reactualiza el reco­
nocimiento de la paternidad por parte de Sarmiento. El
nombre del padre se lee en la firma del hijo, volviéndose

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

indistinguibles uno del otro, lo que apunta a la lectoescri­


tura como modo de acceso a la ciudadanía y símbolo del
legado de Sarmiento.
Asociado a esta escena fundamental de aprendizaje
paterno-filial se halla el contacto con los círculos políticos,
culturales y de la sociabilidad del padre, junto a las múlti­
ples lecturas de revistas y enciclopedias europeas. Munido
de este capital cultural, el niño entra a la escuela, experien­
cia que resulta repetidamente fracasada o interrumpida:
“…se pervertía o se atrasaba en los colegios, y sólo yo tenía
poder para traerlo al buen camino, porque sólo yo cono­
cía el resorte de su alma que era la gloria, la estimación y
el aplauso.” (Sarmiento, 1900, p. 180). Poco contribuye la
institución escolar – mucho menos la educación pública
defendida por Sarmiento – al desarrollo del intelecto de
Dominguito: es sobre todo el influjo del padre que lo
conduce y lo estimula al aprendizaje. En contraste con el
carácter “vulgar”, “ordinario” “por mayor” de la enseñanza 59
escolar, la formación de Dominguito es un intercambio
entre dos, orientado por la búsqueda de gloria, estimación
y exaltación individual del discípulo.
Cuando entra en el Colegio y en la Universidad,
Dominguito adquiere un status privilegiado entre sus com­
pañeros por el contacto con los círculos y las lecturas a que
tiene acceso a través del padre (Sarmiento, 1900, pp. 225-
226). Forma parte de asociaciones y se rebela junto con
otros estudiantes, lo que le valdrá su expulsión de los cole­
gios a los que asiste en Santiago de Chile y en Buenos Aires.
Esto, lejos de ser leído por el padre como un fracaso, es visto
como confirmación de sus dotes de liderazgo (Sarmiento,
1900, p. 224). De este modo, el ámbito escolar, más que
un espacio de aprendizaje de materiales nuevos, es para
Dominguito un campo de prueba, ejercicio y exhibición de
las dotes políticas que le vienen dadas por herencia y for­
mación paterna. Como un verdadero caudillo carismático,

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

Dominguito lidera su círculo, se involucra en conspiracio­


nes y proclama ideas revolucionarias, gracias a su familia­
ridad con espacios, personajes y acontecimientos políticos.
Dominguito participa de clubes de estudiantes, ter­
tulias, salones literarios y sociedades, publica artículos en
periódicos y colecciones, interviene en la esfera pública y,
tentativamente, en la política. En la universidad, estudia
derecho y, si bien sus resultados académicos son medio­
cres, funda un Club de Estudiantes, el cual preside, escribe
piezas de crítica literaria y traducciones y forma varias
sociedades de jóvenes. Como letrado incipiente y hombre
público, forma parte de las múltiples modalidades de la
sociabilidad que servían como resortes fundamentales de
la formación de la ciudadanía, vías de iniciación al poder
político. Dominguito ocupa en ellas un lugar excepcional
y de liderazgo, de hombre notable entre otros notables, a
lo que contribuyen su origen y su capital cultural que lo
60 singulariza entre sus compañeros. Es en esos círculos de la
vida civil, más que en la educación formal, que sobresale
Dominguito, dada su desordenada formación universitaria
(Sarmiento, 1900, p. 239). Involucrado en la vida pública y
política, el Dominguito estudiante abandona o descuida su
pasaje por el Colegio y la Universidad.
La tercera vía de constitución de la ciudadanía es la
carrera militar, la participación en el ejército y la interven­
ción armada como modo de acceso a los derechos políticos.
Vida de Dominguito se revela, en este sentido, como un texto
en sintonía con su época, dado el rol crucial que, durante
las dos últimas décadas del Siglo XIX, y con el ascenso de
Julio A. Roca al poder, ocupó la cuestión militar y los líderes
militares en la política argentina9. Dominguito se vuelve ciu­
dadano activo cuando adquiere el derecho y la obligación

9 
David Viñas ha señalado la importancia del militarismo en la trayectoria y en la
obra de Sarmiento y sus conexiones con el ala conservadora de la Generación de
1880 (1994).

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


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de llevar armas para el país y es a partir del ejercicio de la vía


armada que pretende ganarse su lugar como líder político.
La vocación militar del hijo se prefigura ya en la infan­
cia, cuando aprende a montar, símbolo del dominio de lo
salvaje, modo fundamental de iniciación a la ciudadanía
en Hispanoamérica (Sarmiento, 1900, p. 199). Una vez en
Buenos Aires, se convierte en un “patriota anticipado”, un
“político imberbe”, a través de la vía de las armas:

Como de resistir a la imposición del nuevo orden de cosas


se trataba, necesitábanse soldados en número suficiente
para oponer a los que podía reclutar la Confederación, sin
peligro de oposiciones voluntarias en trece provincias, en
las que predominaban las clases abyectas. No pudiendo el
Estado de Buenos Aires extender a mayor radio de territorio
la ciudadanía, ni naturalizar de golpe extranjeros que recién
empezaban a acudir a sus playas, la ley habilitó la edad a los
púberes, admitiéndoles a la defensa del país a los 18 años de 61
edad, con el aditamento de poder ejercer los derechos de
ciudadanía. (Sarmiento, 1900, p. 222)

Sarmiento les adjudica a las élites porteñas un rol


providencial en el proceso de consolidación del Estado
Nacional argentino, como garantes de la hegemonía del
gobierno unificado sobre las “clases abyectas” de las provin­
cias, potencialmente díscolas. Es en virtud del papel de las
élites, constructoras de un nuevo consenso sobre el modo
de organización nacional, que los jóvenes educados, entre
ellos Dominguito, adquieren un rol central, como ciudada­
nos precoces y con derechos. El carácter inmaduro del pro­
ceso de formación nacional determina, en la perspectiva de
Sarmiento, el modo en que se define la ciudadanía, marcada
por características juveniles: fuerza, virilidad, entusiasmo,
abnegación y apasionamiento. En este sentido, Dominguito
aparece como representativo y coincidente con su época y

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

su “pueblo” – definido este de un modo altamente restric­


tivo, excluyendo a los inmigrantes y a la población de las
provincias –, como caracterizado por la vivacidad, la forta­
leza, la determinación y el patriotismo, pero también por la
falta de disciplina y el exceso.
Así, al enrolarse en el ejército como Capitán en la
Guerra del Paraguay, Dominguito encarnaría el rol que les
cabe a las élites porteñas en la defensa de los ideales ilustra­
dos, contrarrestando el ímpetu expansionista y tiránico que
caracterizaba, en la perspectiva de Sarmiento, al régimen de
Solano López (Sarmiento, 1900, pp. 245-246). Este destino
honroso de las clases altas porteñas tendría en la muerte
de Dominguito su emblema, no sólo por su participación
entusiasta en la guerra (“Dominguito fue el primero de los
enrolados”), sino también porque encarna una conjunción
de iniciativa personal con status y formación dada por el
padre. La vocación militar de Dominguito es producto tanto
62 de la voluntad férrea de “endurecerse”, de la abnegación y
el esfuerzo bélico, como de la formación paterna para la
vida pública y el gobierno (Sarmiento, 1900, p. 247). Se trata
de un ideal de hombre público y gobernante que considera
la destreza personal, la fuerza guerrera y la pertenencia a
un linaje como características entrelazadas y ligadas fuerte­
mente a la ilustración. La determinación que Dominguito
demuestra en su iniciación a las letras y a las armas viene
sólo a confirmar su destino de gobierno y la centralidad de
la propia herencia y formación paternas.

Ficciones de la paternidad y el buen morir


Con el propósito de reconstruir la escena de la muerte
del hijo, Sarmiento reúne una amplia cantidad de mate­
riales: cartas de pésame, noticias de diarios y testimonios.
También cita cartas de la madre y el cuaderno que llevaba
el hijo al morir, suerte de diario de guerra, de donde cita
sus últimas anotaciones: “Morir por su patria es vivir, es dar

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


Alejandra Josiowicz

a nuestro nombre un brillo que nada borrará” y a continua­


ción “Son las diez. Las balas de grueso calibre estallan sobre
el batallón. Salud mi madre!” (Sarmiento, 1900, p. 259) (sic
en el original). A través del montaje de estos materiales,
Sarmiento construye una representación de la muerte de
Dominguito como una “buena muerte”, una muerte glo­
riosa, valiente, viril10. Esta operación de inclusión y montaje
de cartas de condolencias, testimonios, anotaciones del dia­
rio de batalla y las últimas palabras responde al propósito
de conferir sentido y propósito a la pérdida, describiendo
los últimos momentos y funcionando como memento mori,
reliquias que representan y retienen el espíritu del fallecido.
Como ficción del “buen morir”, esta declaración mortuoria,
recuperada por Sarmiento en el epígrafe, relaciona el acto
de morir en la batalla con la iniciación a la ciudadanía. Y
apela, por otro lado, a la generación que había luchado en
la Guerra Paraguay, que eran los hombres públicos, inte­
lectuales y políticos de 1880, en quienes deposita la tarea 63
de la unificación nacional. De este modo, el sacrificio de
Dominguito funciona como símbolo de un nuevo tipo de
hegemonía y de un nuevo consenso, propio de la nación
unificada, que emerge como resultado de la Guerra del
Paraguay y se define a través de la lucha militar. Sarmiento
se coloca a sí mismo y a su hijo en el lugar de artífices y pre­
decesores de este proceso.
Como se ve, ante la ausencia del heredero, Sarmiento
construye y adopta, a través de la biografía de Dominguito,
un legado y una filiación escrituraria. En Sarmiento la pater­
nidad, lejos de un hecho únicamente individual, adquiere
un sentido político, íntimamente ligado a su proyecto de
construcción nacional y a un sentimiento patriótico y colec­
tivo. Sarmiento reinventa y reconstruye el lazo paterno-filial

Para el tema de las “ficciones del buen morir” o de la “buena muerte” en la


10 

Guerra Civil norteamericana, ver Faust (2008, p. 29).

Lua Nova, São Paulo, 103: 39-68, 2018


 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

en la escritura, y le confiere un sentido profundamente


patrio: es a partir de una matriz paterno-filial que piensa su
legado para la Argentina futura.
Central en este sentido es el tema de la adopción.
Afirma: “Nació Domingo Fidel Castro en Santiago de Chile
el 17 de abril de 1845 y pasando más tarde a segundas nup­
cias su madre, de procedencia argentina, fue por adop­
ción, cambiado su apellido por el de Sarmiento, que le fue
nombrado tutor, a fin de que nada enfriase los afectos de
la nueva familia.” (Sarmiento, 1900, p. 183). La escena de
filiación aparece como la formación de una “nueva fami­
lia” de “afectos”, que no parte de lazos biológicos, sino de
una elección voluntaria y deliberada, en la cual el padre
adopta al hijo, le da su apellido y se vuelve su maestro y
tutor. Se trata de una concepción de la familia dada no
por una obligación mutua, sino por mutua elección, “a
fuerza de hábito” – dice Rousseau en Du Contrat Social ou
64 Principes Du Droit Politique (1762) – ligada a una idea de
filiación contingente y contractual. Este esquema de filia­
ción lleva implícita una idea democrática de gobierno
que, en lugar de imponer una autoridad absoluta, es pro­
ducto de una mutua elección entre el gobernante y los
gobernados. El propio Benjamin Franklin había pensado
la cuestión de la adopción, ligada a su doctrina individua­
lista de construcción del sí mismo y de nuevos comienzos
(independiente de la herencia y de los lazos de sangre), y
conectada con su visión de la educación como motor de
mejoramiento personal y de autonomía11. Sin embargo,
Vida de Dominguito escenifica la formación del hijo menos
como producto del esfuerzo personal y más como profun­
damente determinada por la pertenencia al círculo, a la
genealogía y al linaje paternos, lo cual resulta paradójico

11 
Para un análisis de la representación de la adopción en la literatura del
Iluminismo y el Siglo XIX norteamericano, y en particular en Benjamin Franklin,
ver Singley (2011, p. 49).

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Alejandra Josiowicz

si consideramos su condición de adoptado. A pesar de los


vaivenes que sufre la relación entre padre e hijo, separa­
dos por la distancia geográfica, los puestos de gobierno
y la propia muerte, la identidad de Dominguito aparece
indeleblemente signada por la influencia y la autoridad del
padre que se inscribe permanentemente en su biografía.
Sarmiento aparece como punto de partida, origen y funda­
dor del linaje patriótico e ilustrado del que Dominguito es
señalado como heredero: su vida aparece como resultado y
confirmación de un legado que constantemente retrotraen
al padre como origen y sentido.

Conclusión
Ya en Recuerdos de Provincia (1849-1850), uno de los
primeros textos autobiográficos latinoamericanos en otor­
gar un lugar significativo a la infancia (Miceli y Myers,
2016), el niño ponía en escena el conflicto entre la nostal­
gia por el modo de vida colonial, representado por la casa 65
materna, y el nuevo modelo de ciudadanía democrática
al que Sarmiento accedía en la escuela recién fundada
(Prieto, 1996, p. 60). Esto sólo se intensifica en Vida de
Dominguito, en que la infancia ocupa un lugar aún más
central. Ya desde la escena de la adopción, el texto apunta
a un ideal democrático que concibe el lazo paterno-fi­
lial no como dado por la biología y la pertenencia a una
estirpe de sangre, sino como resultado de la mutua elec­
ción y el libre arbitrio. Sarmiento le da a Dominguito su
apellido y, al iniciarse en la escritura a los tres años, el
hijo estampa su firma, “Sarmiento”, señalando el carácter
de mutuo acuerdo, voluntario y contractual de la filia­
ción. La escena de iniciación en la lectoescritura, pro­
tagonizada por padre e hijo, representa el acceso a la
ciudadanía como instancia democrática fundamental de
formación a la vez intelectual y afectiva, a partir de las
capacidades individuales. Dominguito es un niño ávido

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 La vida de Dominguito: ciudadanía, paternidad y guerra en Domingo Faustino Sarmiento

de conocimiento, inteligente, carismático y valiente: es a


la vez un pequeño intelectual, un héroe militar, un hom­
bre público y futuro estadista.
Ahora bien, paradójicamente, estas virtudes, de las que
Dominguito aparece como precoz y excepcional portador,
están íntimamente asociadas a su pertenencia a un linaje
de antepasados prestigiosos del cual el propio Sarmiento se
presenta como punto de partida y fundador. Es así que los
frecuentes actos de indisciplina, excesos y rebeldías no gene­
ran reflexión, arrepentimiento o aprendizaje en el discípulo,
y son leídas por el padre como confirmaciones inequívocas
de su carácter excepcional, su aptitud como hombre público
y miembro de la élite gobernante. Esto es así porque allí la
virtud patriótica, la ilustración y la pertenencia a un linaje van
de la mano y ratifican una a la otra. Su muerte sacrificial y
patriótica, en lugar de refutar ese destino, lo confirma como
mártir de la consolidación de la Argentina futura y contribuye
66 a alejar los fantasmas de ascensión de las clases populares y de
las provincias a la nacionalidad. Esto distancia al protagonista
definitivamente del modelo de hombre moderno, práctico,
producto del propio esfuerzo: Dominguito se perfila, más
que como un self-made man, como un héroe militar, valeroso,
abnegado, pero también excesivo e indisciplinado. En la lec­
tura de Sarmiento, este carácter desmesurado del héroe sería
coherente con una Argentina aún inmadura, en que las élites
gobernantes serían las únicas capaces de asegurar la conso­
lidación nacional, y cuyo círculo debería excluir a las clases
populares y a las poblaciones de las provincias, que se consi­
deraban aún portadoras de trazos heredados de barbarie. Vida
de Dominguito es una biografía del hijo en que el lazo pater­
no-filial revela el legado ambivalente de Sarmiento, entre la
formación intelectual y afectiva en un modelo de ciudadanía
democrática y emancipación intelectual, y la pertenencia a un
linaje y a una élite gobernante que define de modo altamente
restrictivo los límites de la nacionalidad y de la ciudadanía.

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Alejandra Josiowicz

Alejandra Josiowicz
é investigadora assistente do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Tem expe­
riência nas áreas de Sociologia da Cultura e da Educação e de
Estudos Culturais na América Latina. Licenciada em Letras
pela Universidade de Buenos Aires (UBA), é mestre e doutora
em Spanish and Portuguese pela Princeton University (PU).
Realizou estágio de pós-doutoramento no Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS)
da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Foi professora
assistente no Programa de Estudos Latino-americanos da
Rutgers University (RU). Publicou artigos em revistas nacio­
nais e internacionais e recebeu bolsas da Princeton University,
da Cornell University (CU) e da CAPES/FAPERJ.

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69
RAYMUNDO FAORO E AS LINHAGENS DO
PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO1
Leonardo Octavio Belinelli de Brito
é mestre e doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).
São Paulo, SP, Brasil. E-mail: <belinelli.leonardo@gmail.com>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-069101/103

Introdução
Raymundo Faoro é tido como um dos grandes “intér­
pretes do Brasil”, epíteto que se deve à interpretação his­
tórica traçada em Os donos do poder, ensaio que publicou,
em sua primeira versão, em 1958. Contemporâneo de
Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, e Formação
da literatura brasileira, de Antonio Candido – ambos publica­
dos em 1959 – o principal ensaio de Faoro era já na altura
de sua publicação, de alguma forma, extemporâneo, pois
sua forma e sua ambição explicativa, que iam na contra­
mão da especialização acadêmica dos livros de Furtado e
Candido, colocavam-no mais próximo dos ensaios clássicos
dos anos 1930.

1 
Este artigo é fruto da dissertação de mestrado do autor, defendida na
Universidade de São Paulo (USP) em 2015, sob orientação do professor Bernardo
Ricupero. Uma primeira versão do artigo foi apresentada no 10º Encontro da
Associação Brasileira de Ciência Política, ocorrido em 2016 em Belo Horizonte,
Minas Gerais. Nessa ocasião, o texto foi comentado pelos professores Juarez
Guimarães (UFMG) e Jorge Chaloub (IBMEC-Rio), a quem o autor agradece.

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Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

Mas o principal traço da extemporaneidade do ensaio


faoriano residia na tese que sustenta: durante o auge do
período nacional-desenvolvimentista – processo econômico
e social que tomava o Estado como motor de desenvolvi­
mento do país e o populismo como sua forma política –,
o jurista gaúcho buscava as raízes dos males nacionais justa­
mente na atuação do Estado, em sua visão calcada na lógica
da dominação patrimonialista. Entre outros fatores, é pro­
vável que esta tese tenha sido decisiva para a pouca reper­
cussão do livro de Faoro (Ricupero, 2007), a despeito de sua
vitória no prêmio José Veríssimo, oferecido pela Academia
Brasileira de Letras (ABL) em 1959.
Foi durante o período de vigência da Ditadura Militar
inaugurada em 1964 que a percepção sobre o livro foi
modificada. Publicado em uma edição consideravelmente
ampliada em 1974 – que, como mostram Bernardo Ricupero
e Gabriela Nunes Ferreira (2008), alterava alguns pontos da
70 tese defendida em 1958 –, Os donos do poder passava a ser
considerado um livro de alto teor explicativo, pois tornava
inteligível o processo de autonomização do Estado brasileiro
em relação à sociedade, processo este que teria no regime
militar então vigente seu momento mais recente e dramá­
tico. Sinal dessa mudança de visão sobre o ensaio foi sua
adoção como uma das referências teóricas para as nascen­
tes ciências sociais brasileiras (Werneck Vianna, 1999, 2010;
Carvalho, 2011, Schwartzman, 1975, 1988, 2003), com des­
taque para a sua influência no campo disciplinar da ciência
política. Esse fato se deve, ao menos em parte, ao seu uso
pioneiro da sociologia da dominação de Max Weber, espe­
cialmente do conceito de “patrimonialismo”, para “explicar
o Brasil”2. Além disso, a militância de Raymundo Faoro pela
redemocratização brasileira e por tudo aquilo que deveria

2 
Foi Sérgio Buarque de Holanda quem primeiro utilizou o arcabouço metodoló­
gico de Weber para “explicar o Brasil”, mas, diferentemente de Faoro, não utilizou
sua sociologia da dominação. Para suas diferenças, ver Campante (2003).

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

acompanhá-la, bem como sua atuação midiática, também


emprestaram à persona pública do autor e ao seu principal
livro um novo status.
Por tudo isso, compreende-se os motivos que tornaram
o pensamento faoriano objeto de interesse acadêmico e polí­
tico, especialmente ao longo do processo de institucionali­
zação do campo de estudos conhecido como “pensamento
político e social brasileiro”. Entre os estudos sobre Faoro,
há uma constante busca por compreender se existe em Os
donos do poder, bem como nos demais escritos do autor, um
programa político para o Brasil e, em caso afirmativo, qual
seria sua natureza. Nesse sentido, cumpre observar que são
várias as teses sobre o tema, e que o próprio Faoro não tor­
nou mais fácil a missão de seus intérpretes. Por outro lado,
a tese faoriana sobre o Brasil é meridianamente clara. Como
entender, então, esse desencontro?
Embora se assente sobre esse terreno e, por isso mesmo,
dialogue com as teses que entendemos serem as principais 71
sobre a “utopia política”3 de Faoro, este trabalho tomará
a tese de Gildo Marçal Brandão (2007) como eixo de sua
discussão. Essa escolha se deve ao caráter provocativo da
formulação de Brandão, que lança a hipótese da existên­
cia de algumas linhagens do pensamento político e social
brasileiro – tese que busca tornar inteligível o desenvolvi­
mento aparentemente errático desse pensamento. Nesse
sentido, o autor vai além da própria obra faoriana e busca
compreendê-la como continuadora da linhagem que deno­
minou de “idealismo constitucional”, da qual fariam parte
autores como Tavares Bastos, Rui Barbosa, Assis Brasil,
Simon Schwartzman, Bolívar Lamounier etc. Se é verdade
que a discussão promovida por Brandão se direciona para a
identificação do que denominava “formas de pensar”, cabe

Tomo por empréstimo o termo usado por José Murilo de Carvalho (2005) em
3 

um de seus trabalhos sobre o pensamento político de Oliveira Vianna.

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Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

ressaltar que a dimensão dos fins políticos almejados por


esses autores está diretamente ligada à discussão sobre suas
utopias, pois ela é um dos elementos que caracterizam seus
pensamentos como “políticos”. Nesse sentido, este artigo
visa contribuir em dois planos distintos, mas articulados: ao
mesmo tempo em que busca oferecer uma nova interpre­
tação sobre a questão da “utopia política” de Faoro, almeja
também aprofundar a reflexão sobre a proposta de pesquisa
lançada por Brandão, a qual constitui uma das principais
formulações sobre a história do pensamento político bra­
sileiro, posição que ocupa ao lado dos estudos pioneiros
de Wanderley Guilherme dos Santos e Bolívar Lamounier
(Lynch, 2016).
Dessa forma, a nossa discussão sobre a “utopia política”
faoriana partirá das interpretações presentes na bibliografia
dedicada ao seu pensamento e de uma formulação nossa a
esse respeito; em seguida buscaremos discutir se Faoro se
72 enquadra na linhagem “idealista constitucional”, tal como
sugeriu Brandão. No entanto, cabe destacar que não pensa­
mos que o interesse em discutir tal questão esteja na formu­
lação de uma suposta taxionomia do pensamento político
brasileiro, cujo valor agregativo para o conhecimento seria
duvidoso, mas sim na possibilidade de refletir sobre as espe­
cificidades da “interpretação do Brasil” de Raymundo Faoro,
o que talvez torne possível compreender, simultaneamente,
os fundamentos de seu pensamento político e as leituras
feitas sobre ele. Assim, estaríamos em condições de ofere­
cer uma interpretação nas duas dimensões aludidas, que, a
nosso ver, deve conjugar os vários escritos faorianos, pois a
despeito da variedade de temas tratados, parece haver neles
uma problemática comum subjacente, resultando em uma
linha argumentativa firme que os costura. Por isso, em con­
traste com o caminho mais comum, que prioriza a análise
dos argumentos presentes em Os donos do poder, faremos uma
revisitação de trabalhos menos conhecidos do autor, o que

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

pode lançar nova luz a alguns problemas que a bibliografia


sobre o seu pensamento já destacou.
O artigo está organizado da seguinte maneira: na sua
primeira sessão, exporemos e discutiremos as principais
teses sobre a “utopia política” faoriana, para formular uma
interpretação do assunto; em seguida abordaremos a tese de
Brandão sobre a tipicidade de Faoro como representante do
“idealismo constitucional”. Por fim, faremos algumas consi­
derações sobre o que entendemos ser os principais impasses
da “interpretação do Brasil” de Faoro.

Liberal-conservador, republicano ou melancólico?


Leituras sobre a utopia política de Faoro e
uma interpretação
A questão a que chamamos de “utopia política” de
Faoro é intimamente ligada ao seu diagnóstico sobre a his­
tória brasileira. Talvez o trecho em que tal entrelaçamento
fique mais claro esteja em Existe um pensamento político brasi- 73
leiro?, texto no qual, como observou Luiz Werneck Vianna
(2009), as indicações sobre o projeto político faoriano ficam
mais bem expostas. Analisando o período de crise da domi­
nação lusitana sobre a sua principal colônia, Faoro destaca
da seguinte forma a emergência das ideias acerca da inde­
pendência desta última:

Uma vigorosa corrente subterrânea, que ameaçara aflorar


contra os emboabas, hesitante mas viva contra os mascates,
tímida e ativa na Inconfidência, emerge em 1817, no
Recife. Adensa-a uma constante, já homogênea no começo
do século XIX, estruturada na propriedade agrária, em
conflito com a cúpula burocrática, vinculada ao comércio
urbano e internacional, o comércio de raízes portuguesas.
A aliança entre propriedade agrária e liberalismo, visível
nos demagogos letrados, entrelaçada pelos padres cultos,
pelos leitores dos enciclopedistas e pelos admiradores

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

da emancipação norte-americana, ensaia seus primeiros


e vigorosos passos, que darão os elementos de luta nos
dias agitados de 1822 e expulsarão o imperador em 1831,
incapazes, todavia, de organizar o Estado à sua imagem.
1817 não sugere um movimento malogrado, mas a amostra
de uma tendência possível, como possível foi o processo de
independência e de fragmentação do mundo americano
espanhol (Faoro, 1987, p. 30).

Para os fins da discussão desse artigo, é decisivo o papel


que o liberalismo desempenha nessa “vigorosa corrente
subterrânea”. Por um lado, essa corrente adotará um libera­
lismo mais genuíno do que o esposado pelos realizadores do
processo de independência do Brasil que, em aliança com
o setor que Faoro denominou “estamento burocrático”,
formu­laram um “liberalismo de transação”. O primeiro
liberalismo seria “mais genuíno” porque se interessaria em
74 desconstruir o poder emanado da ordem política de matriz
lusitana, enquanto aqueles que sustentavam o “liberalismo
da transação” estavam mais interessados em construí-lo e
aperfeiçoá-lo. Por outro lado, o autor reconhece que os libe­
rais emancipacionistas componentes da corrente submersa
mencionada, ao passo que eram a chance da construção de
uma ordem política brasileira própria, eram na verdade for­
ças anárquicas (Cf. Faoro, 2008b, p. 304). A tensão própria
dessa corrente apareceria na conformação do pensamento
político brasileiro. Ainda em Existe um pensamento político
brasi­leiro?, Faoro a formula da seguinte forma:

o elemento nacional está no sentido certo; não se trata de


um pensamento nacional, de um país como Nação, mas
como núcleos não homogêneos, com um projeto – apenas
como projeto nacional. As circunstâncias – a dissolução
do sistema colonial, teriam configurado as bases de uma
consciência histórica, estamental e virtualmente de classe,

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

sem que se possa configurar uma situação revolucionária,


pelo menos no seu momento inicial, pela ausência de
projeto. Mas o quadro é um conjunto de possibilidades num
processo difuso. Trata-se de uma consciência possível (Faoro,
1987, p. 35, grifos do autor).

Para tornar mais complexo o quadro, vale lembrar a


observação de Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes Ferreira
(2008), que indicam a alteração de perspectiva faoriana
sobre as possibilidades emancipatórias do Brasil ao longo
do tempo: enquanto na primeira edição de Os donos do poder
Faoro parece mais distante dos ideais que seriam encarnados
pelo Partido Liberal do Segundo Reinado – partido que con­
teria alguns elementos da referida “corrente subterrânea”,
como a forte presença de senhores de terras –, na segunda
edição do ensaio, publicada em 1974, haveria maior simpa­
tia do jurista gaúcho com relação aos princípios esposados
pelos liberais do Império, embora vislumbrasse, nesta altura, 75
uma maior dificuldade para sua implementação.
Os trechos e argumentos citados acima ilustram a difi­
culdade de interpretar a relação entre a existência de um
programa político e a possibilidade de sua realização no
pensamento de Raymundo Faoro: ao passo que o autor
valoriza a corrente emancipacionista, não deixa de assina­
lar a sua incompletude e mesmo a suposta derrota de seus
epígonos na história política brasileira. Diante da dificul­
dade interpretativa que essa atitude desencantada impõe aos
historiadores do pensamento político brasileiro, surgiram
três interpretações sobre a maneira como esses dois polos
se relacionam em seu pensamento.
A primeira, e talvez mais influente, é a de Luiz Werneck
Vianna (1999, 2009), que é seguida por Jessé Souza (2000,
2015). Para o sociólogo carioca, Faoro representaria o
campo liberal do pensamento político brasileiro, incluída aí
a dimensão econômica. Nesse sentido, esse autor enfatiza a

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

proximidade das interpretações do Brasil de Faoro e Simon


Schwartzman, bem como a realização de seu programa
político a partir dos anos 1990, período em que foram
tomadas medidas para desconstruir o Estado brasileiro for­
mado no período desenvolvimentista inaugurado em 1930.
Em sentido diferente, Juarez Guimarães (2009) e Rubens
Campante (2003, 2009) sublinham a dimensão normativa
do pensamento faoriano, aproximando-o do que podería­
mos chamar, seguindo os termos dos debates contemporâ­
neos da teoria política, de republicanismo. Para Guimarães,
“[Faoro] foi o primeiro entre nós a construir uma narrativa
de longa duração a partir do critério de liberdade política,
entendida em sua chave republicana, como autogoverno
dos cidadãos autônomos” (2009, p. 80, grifo do autor).
Já a terceira posição é compartilhada por Ricupero
e Ferreira (2005; 2008) e Gildo Marçal Brandão (2007);
segundo eles, o pessimismo de Faoro, principalmente a par­
76 tir da segunda edição de Os donos do poder, impediria a for­
mulação de um programa político. Nos termos de Brandão:

Aqui [nos dois últimos parágrafos da primeira edição de


Os donos do poder] a cisão entre o que deve ser e o que
pode ser é completa, conclusão por assim dizer lógica
de um teorema analítico altamente formalizado, que só
consegue enxergar na realidade a dispersão do empírico,
a acidentalidade da existência contraposta à essência
imutável, e que em sua demonstração não procura ou
não encontra no objeto investigado determinações ou
indicações que permitam aproximar o imperativo categórico
das circunstâncias concretas que os homens não escolheram
para viver. Na ausência de mediações entre o que é e o que
deve ser, o passado é fardo, o futuro tempestade. Uma vez
que a esperança e razão, ética e história se desentendem,
não há meio-termo e daí o desespero, que leva a uma
posição revolucionária: fiat justitia pereat mundus. É bem

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

verdade que esse radicalismo abstrato, do qual se poderia


derivar ou uma Grande Recusa ou a aceitação resignada
do existente, vem atenuado na edição de 1973, na qual o
futuro é eliminado e o verbo, posto no passado, torna a
posição menos apocalíptica, mas nem por isso submetida
a menores tensões: o desespero cede lugar ao estoicismo e
à melancolia. Diante do presente eterno, a consciência sabe
que é inútil toda resistência e não obstante resiste, não se
dobra diante do inevitável (Brandão, 2007, pp. 144-145).

Como observação preliminar, vale notar que a inter­


pretação de Werneck Vianna ressalta a coerência do pensa­
mento faoriano, a qual teria um diagnóstico eminentemente
político (Werneck Vianna, 1999, 2009) para os males brasi­
leiros e uma terapêutica correspondente e inversa à doença
política que aflige o país: reduzir o espaço do Estado para
permitir o fortalecimento da sociedade. Já Guimarães e
Campante tendem a sublinhar os “fins” de Faoro, posição 77
oposta à de Ricupero e Ferreira, que se apegam à narrativa
histórica traçada pelo autor aqui estudado.
A nosso ver, a interpretação de Werneck Vianna é mais
robusta no que se refere às possíveis implicações ideológi­
cas das teses faorianas, mas não é firme o suficiente para
encontrar respaldo nas letras de Os donos do poder ou de
outras obras. No que se refere às implicações ideológicas,
bastam dois exemplos para que o argumento seja com­
provado. O primeiro é a tentativa de filiação que Antonio
Paim (2000), elaborador do curso de formação política do
partido Democratas (DEM)4 e adepto de posições liberais­
-conservadoras, tenta fazer entre a sua narrativa sobre a
formação patrimonialista do Brasil e a narrativa faoriana.
O segundo é citação feita por Joaquim Levy, economista

4 
A informação se encontra disponível em: <https://goo.gl/L1Zfjj>. Acesso em:
22 mar. 2018.

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Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

ortodoxo formado na Universidade de Chicago e ex-minis­


tro da Fazenda do segundo governo Dilma Rousseff, da tese
de Faoro para embasar o seu programa de reformas econô­
micas (Levy, 2016). Já no que se refere às posições do jurista,
o argumento de Werneck Vianna fica fragilizado quando
lembramos as críticas de Faoro ao neoliberalismo (Faoro,
1993).
Por outro lado, tanto as formulações de Guimarães/
Campante como as de Ricupero e Ferreira/Brandão pare­
cem seguir traços que podem ser rastreados nos diversos
escritos faorianos. Por isso, é mandatório explicar como
essas duas interpretações diferentes são simultaneamente
razoáveis para interpretar o pensamento faoriano.
Nesse sentido, convém salientar que, como observam
Brandão (2007) e Ricupero e Ferreira (2008), Faoro ter­
mina a segunda edição de Os donos do poder escrevendo
com os verbos no passado, o que é determinante para
78 a sensação de pessimismo passada pela obra. Por outro
lado, os demais escritos faorianos – entre os quais se des­
taca Assembleia constituinte: a legitimidade recuperada (Faoro,
2007) – parecem mais distantes dessa posição. A diferença
das disposições anímicas das duas obras citadas pode ser, ao
menos parcialmente, explicada pelos diferentes papéis que
o jurista desempenhava nos momentos nos quais as redigiu:
enquanto Os donos do poder é obra de um intelectual que visa
interpretar o sentido geral da evolução sócio-histórica do
Brasil, Assembleia constituinte é um texto de um publicista em
ação contra o seu presente. Essa diferença é decisiva para
que compreendamos adequadamente os diferentes papéis
que os clássicos da teoria política desempenham nos seus
escritos. Como afirma Faoro em Os donos do poder, “estão
presentes, nas páginas que se seguem, os clássicos da ciên­
cia política, Maquiavel e Hobbes, Montesquieu e Rousseau,
relidos num contexto dialético” (Faoro, 2008b, pp. 13-14).
Quer dizer isso, salvo erro, que as teses desses autores foram

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lidas, simultaneamente, positiva e negativamente; ou seja, o


jurista procurava compreender de que maneira a formação
política ibero-brasileira se encaixa nos exemplos, positivos e
negativos, fornecidos pelos clássicos da teoria política. Para
ficarmos no exemplo de Montesquieu, vale observar que o
patrimonialismo ibérico se aproxima do despotismo orien­
tal teorizado pelo autor de O espírito das leis, principalmente
porque em tal tipo de dominação não existem corpos inter­
mediários – que poderiam ser os donos de terra liberais,
segundo a narrativa faoriana –, o que, por sua vez, facilita
o processo de dominação arbitrária. Não escapa ao leitor
de O espírito das leis a percepção de que há no livro certa
contraposição entre Inglaterra (exemplo positivo) e Oriente
(negativo). No caso de Os donos do poder, a constância da
aproximação do caso luso-brasileiro com as características
avaliadas negativamente pela tradição do pensamento oci­
dental já foi apontada de maneira crítica por Jessé Souza
(2000) e Rubens Campante (2009). 79
Com isso, queremos dizer que os clássicos da teoria polí­
tica aparecem, com signo diferencial em Os donos do poder,
como ferramentas para a reflexão histórica. Já em Assembleia
constituinte e Existe um pensamento político brasileiro?, os clássicos
aparecem como balizas da discussão normativa empreendida
pelo autor. É claro que no caso de uma reflexão com as carac­
terísticas das de Faoro, não existe uma diferença essencial
entre “reflexão histórica” e “reflexão normativa”. O mais cor­
reto seria pensar que os diferentes escritos contêm diferentes
gradientes desses elementos, sem que nunca um se sobrepo­
nha completamente sobre o outro. Sinal disso é que, se em
Os donos do poder a reflexão normativa é deixada em segundo
plano em prol da narrativa histórica, embora forneça o sen­
tido de sua interpretação, ela aparece com mais força quando
o jurista se debruça sobre aquelas que entende como as deter­
minações do pensamento político brasileiro (Faoro, 1987) e
atinge o seu ponto culminante no texto sobre a Constituinte.

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Como já indicamos, uma pista promissora para desven­


darmos o programa político faoriano e sua posição diante
dele está nas evidentes simpatias que Faoro nutria pelo
liberalismo de matriz local que não chegou a ser formar
completamente no Brasil ao longo do século XIX. Vimos
que nesse período, para ele, vigoravam dois liberalismos no
Brasil: o que continha um “elemento nacional” – esposado
pelos donos de terras locais que defendiam um regime polí­
tico descentralizado e republicano – e aquele que continha
“elementos reacionários” – sustentado pelos comerciantes
portugueses e pela burocracia estatal.
Segundo Faoro, o liberalismo nacional era fruto da crise
do Sistema Colonial e se expressou num ciclo de revoltas
de intensidades variadas, que começou pela Inconfidência
Mineira (1789), passou pela repressão no Rio de Janeiro
(1794) e pela Revolução dos Alfaiates na Bahia (1798) e se
irradiou na primeira metade do século XIX, chegando até
80 a Revolta Praieira (1848) (Cf. Faoro, 1987, p. 35). Como já
observamos, embora enfatize a incompletude da formula­
ção dos pensamentos dos revoltosos, o jurista saudará o seu
sentido político, pois ia na contramão das posições defen­
didas pelo Liberalismo que tinha como matriz a Revolução
Portuguesa de 1820.
Um ponto especialmente digno de nota no interrom­
pido processo de formação do pensamento político autenti­
camente liberal no Brasil teria sido a Inconfidência Mineira,
movimento político organizado por senhores de terras que
buscavam articular um projeto político em seu próprio bene­
fício. Os revoltosos mineiros liam os confederalistas norte­
-americanos, bem como as constituições da Pensilvânia,
Virgínia, Massachussets, New Jersey, Delaware e Maryland.
Os conspiradores, que não estavam completamente cientes
do desenvolvimento político norte-americano, cogitavam
arranjo semelhante com São Paulo e Rio de Janeiro, “sem a
ideia nacional”, propondo um regime de viés municipalista.

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Em suma: para Faoro, os senhores de terras locais


sofriam o peso do antigo Sistema Colonial, que então
entrava em colapso e permitia, assim, brechas de resistên­
cia aos seus opositores. Reconhecendo que não se tratava
de um movimento político popular, o jurista gaúcho argu­
menta que seu eventual sucesso teria aberto as portas para
um desenvolvimento posterior, marcado pela incorporação
dos segmentos mais fragilizados da população. Esse é um
passo decisivo para compreender a argumentação faoriana.

A ausência de Liberalismo […] estagnou o movimento


político, impedindo que, ao se desenvolver, abrigasse
a emancipação como classe da indústria nacional. Seu
impacto revelaria uma classe, retirando-a da névoa
estamental na qual se enredou. […] O Liberalismo, ao se
desenvolver autenticamente, poderia, ao sair da crisálida
da consciência possível, ampliar o campo democrático
que lhe é conexo, mas pode ser-lhe antagônico. Por 81
meio da representação nacional – que é necessária
ao Liberalismo – amplia-se o território democrático e
participativo, conservando, ao superar, o núcleo liberal.
[…] O socialismo, numa fase mais recente, partiria de
um patamar democrático, de base liberal, como valor
permanente e não meramente instrumental (Faoro, 1987,
p. 55, grifos do autor).

Apesar da crise do antigo Sistema Colonial, a chegada da


família real em 1808 teria selado o destino do pensamento
político nacional, pois teria marcado a transação desigual,
com o predomínio dos elementos reacionários, entre os dois
liberalismos. Entretanto, o

elemento nacional […] permaneceu vivo, apesar de não-


dominante. Ele atua, na prática, no cerne do pensamento
político, com a irrealizada superação. Irrompe, no curso

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da história, nos dois séculos, na dobra de todas as crises de


sistema e de governo. A conjectura de um veio inesgotado
permanece, portanto, atual e inexplicada, truncando o
desenvolvimento de um pensamento político nacional,
dinamicamente autônomo e capaz de levar a um estágio
pós-liberal. (Faoro, 1987, p. 38)

Assim, se os inconfidentes liam os contratualistas e os


enciclopedistas, além dos resultados concretos de seus pen­
samentos, corporificados na Declaração da Independência
dos EUA e na Declaração dos Direitos do Homem – compo­
sição que Faoro chamará de “liberalismo radical” –, havia
também os que o autor denominará “liberais irados”, que se
encontravam no Norte do país. Na Inconfidência Baiana de
1798, teria havido o surgimento de vozes populares, embora
minoritárias, que ecoavam o jacobinismo francês. “Desta vez
não haveria ambiguidades acerca da escravidão: todos seriam
82 livres” (Faoro, 1987, p. 40). Existiam insatisfações de setores
discriminados, artesões, pardos, que viam como possível a
aliança com os escravos. A revolta contestava a supremacia
real, bem como reivindicava o comércio livre – a partir da
inspiração de Adam Smith, lido pelo futuro Visconde de
Cairu. Ademais, os senhores de engenho se manifestaram
contra a exploração do capital usurário dos comerciantes
portugueses. Sempre segundo Faoro, as leituras que funda­
mentavam tais demandas eram contrabandeadas em Minas,
Rio, Pernambuco e Bahia. Lia-se Raynal, Condillac, Mably,
Voltaire, os enciclopedistas e Júlia ou a nova Heloísa, de
Rousseau. Em suma: “O extremo limite das reivindicações
repousa na igualdade de direitos para todos, o que afasta
qualquer precocidade socialista” (Faoro, 1987, p. 41).
Mas essas reivindicações teriam sido travadas com a vinda
da família real em 1808, a qual impactaria também no des­
tino do liberalismo nacional. Com a abertura dos portos, ins­
pirada em Adam Smith – autor também revindicado pelos

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“radicais” e pelos “irados” –, houve o desligamento da rela­


ção entre liberalismo e emancipação nacional. Para Faoro,
isso fez com que a “ala esquerda do Liberalismo” perdesse
sua bandeira para a sua “ala direita” – “desligar-se-ia, desta
sorte, a causa nacional da causa liberal” (Faoro, 1987, p. 42).
A independência nacional, com o consequente problema de
reconstrução do poder político do recém-fundado Estado
brasileiro, reafirmaria o descolamento das duas causas. É bem
verdade que houve resistências liberais ao projeto absolutista
de Estado, como evidenciam as atuações de Cipriano Barata
e Frei Caneca, que fundamentou sua resistência à carta cons­
titucional de 1824 com base em Locke, Montesquieu e em Os
federalistas. Caracterizando esse liberalismo, diz nosso autor:

Aí estará o radicalismo, cuja essência é o Liberalismo


norte-americano e europeu, socialmente conservador.
O que importa acentuar é que esse Liberalismo não pôde,
em nenhum momento, compatibilizar-se com o Estado 83
brasileiro. Os liberais têm, com o poder, uma relação
tempestuosa e ambígua: serão potenciais ou realmente
sediciosos, ou, sem tocar no Estado, farão a política
conservadora. Esta cisão está na base do pensamento
político brasileiro e terá consequências que impedem
o desenvolvimento, a adequação do pensar e o fazer.
Melhor: de incorporar ao fazer o pensar (Faoro, 1987,
p. 47, grifo do autor)5.

Aqui é preciso retomar o argumento do qual lança­


mos mão anteriormente: Faoro avalia de maneira positiva
esse liberalismo – também conservador – porque identifica
nele uma abertura em seus fundamentos para uma ordem
social mais justa. Porém, o liberalismo que vigorará no Brasil

5 
Faoro sublinha o caráter não democrático da Declaração de Independência dos
Estados Unidos e da Declaração dos Direitos do Homem em Assembleia constituinte:
a legitimidade recuperada (Faoro, 2007).

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será outro, o qual não conteria tais frestas. Segundo Faoro,


um dos seus representantes será o Conde de Palmela, que
desfrutou da convivência e do aprendizado de Benjamin
Constant e Madame de Staël. Ele será o formulador do
“Liberalismo como tática do Absolutismo” (Faoro, 1987,
p. 52). Essencialmente, nem ele, nem José Bonifácio, nem
Hipólito da Costa, seriam liberais. São duas as marcas desse
liberalismo não liberal: a ênfase na construção do Estado
– na construção do Poder, portanto – e a busca por cindir
Liberalismo e Democracia – fresta aberta pelos jusnatura­
listas e seus descendentes (Faoro, 1987, p. 54).
Em suma:

a ossificação do modelo liberal, o absolutismo mascarado


de D. João VI e de D. Pedro I, pela voz de seus intérpretes,
desclassificou todas as concepções liberais autenticamente
liberais. O Constitucionalismo, que se apresentou como
84 sinônimo de Liberalismo, seguiu outro rumo específico,
particularmente na Carta outorgada de 1824. O ciclo se
fecha: o absolutismo reformista assume, com o rótulo,
o Liberalismo vigente, oficial, o qual em nome do
Liberalismo, desqualificou os liberais. Os liberais do ciclo
emancipador foram banidos da história das liberdades,
qualificados de exaltados, de extremados, de quiméricos,
teóricos e metafísicos […]. Seu liberalismo foi afastado,
mas não superado, nem ultrapassou o estágio de consciência
possível. Que significará a exclusão, hoje irrecuperável,
em virtude de mudança da estrutura, da sugerência que
o tornou um dia necessário? (Faoro, 1987, p. 54)

A relação entre Constitucionalismo e Liberalismo de


matriz democrática reaparecerá em Assembleia constituinte:
a legitimidade recuperada (Faoro, 2007), texto escrito quando
Faoro era presidente do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados (OAB) do Brasil e lutava contra a proposta do

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general Ernesto Geisel, segundo a qual a transição do regime


militar para o Estado de Direito seria feita por emendas à
Constituição de 1967. Para demonstrar a inadequação da
proposta do regime, o jurista realizou um estudo em que
buscava defender os pilares do constitucionalismo moderno,
que seriam as bases do regime democrático. Para o autor,
no Brasil ocorreria o oposto: as constituições seriam meras
armas de legitimação do poder político constituído. Faoro
caracterizará essa situação como marcada pelo que chama de
“constituição semântica”, isto é: “Embora se aplique na sua
plenitude, sua realidade não é senão a formalidade escrita da
situação do poder político existente para o benefício exclu­
sivo dos detentores de fato do poder, que dispõem, para exe­
cutá-la, do aparelhamento coativo do Estado” (Faoro, 2007,
p. 173). Por isso mesmo, aliás, este tipo de constituição não
limita o poder, mas o estabiliza. Como se vê, aqui reencon­
tramos a mesma estrutura-tese do “liberalismo de transição”.
Como uma variação da constituição “semântica”, tería­ 85
mos aquele que Faoro denomina de constituição “nominal”,
a qual também serve para esconder o autoritarismo:

Há, neste caso, a desarmonia entre a situação de fato – a


constituição social – e as normas constitucionais, tidas por
prematuras, na versão conhecida da menoridade do povo.
Com o tempo, pelo desenvolvimento de condições reais, a
constituição viria a ser aplicada, reduzida, no presente, a um
manual educativo. […]. Enquanto esse dia não chega, os
detentores do poder mandam e desmandam, também eles
envoltos na confortável – confortável para eles – esperança
do futuro, seja do país grande potência, do país rico ou do
país educado (Faoro, 2007, p. 173).

Desse ângulo se compreende a ênfase dada pelo jurista


ao conceito de “poder constituinte”, usualmente deixado
de lado, devido ao seu viés democratizante, nos debates

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constitucionais brasileiros. “No fundo do movimento cons­


titucionalista reside a preocupação de desmascarar o despo­
tismo – todas as formas de autocracia – pela identificação
dos males e riscos do arbítrio” (Faoro, 2007, p. 174). Disso
decorre, naturalmente, a preocupação com a legitimidade
das leis, que só pode existir num processo constitucio­
nal em que haja harmonia entre o poder constituinte e o
poder constituído.
Por sua vez, como se sabe, os autoritários costumam ser
cientes da necessidade de legitimar o exercício do poder
a que servem. Nesse registro, é especialmente instrutiva a
análise que Faoro faz do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril
de 1964. Lê-se no documento citado: “A revolução se distin­
gue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se
traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o inte­
resse e a vontade da Nação” (BRASIL, 1964). Interpretando
esse trecho, afirma o autor:
86
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela
revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical
do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como
Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o
governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo
governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao
Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que
nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória.
Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças
Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o
Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que
o Povo é o único titular (Faoro, 2007, p. 180).

Em contraposição às recorrentes usurpações da sobe­


rania popular, única fonte legítima de legitimidade, o pro­
grama político faoriano parece ser o de instituir uma ordem

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política que assente sua legitimidade na democracia. Nesse


sentido, parecem corretas as caracterizações de Guimarães
e Campante sobre o liberalismo de matriz democrática de
Faoro; ao mesmo tempo, fica evidente o desencanto do
autor acerca das possibilidades nacionais em Os donos do
poder e no conjunto de entrevistas reunidas em A democra-
cia traída (Faoro, 2008a), confirmando também as teses de
Ricupero e Ferreira e de Brandão. Assim, a conclusão de
Brandão, segundo a qual o fim de Os donos do poder é mar­
cado por uma disjunção radical entre o “ser” e o “dever ser”,
pode ser ampliada para a totalidade resultante das reflexões
de Faoro.
Em trecho desligado da articulação histórica, o jurista
deixa mais claro o sentido normativo de seu pensamento.

A liberdade natural funda-se de maneira negativa:


confunde-se à ausência de toda sujeição social e política.
No momento em que a liberdade natural se converte 87
em liberdade política, a exclusão alcança apenas uma
categoria especial de vínculos, perdendo a sua significação
qualificadamente negativa. A questão da liberdade política
recebe, dessa maneira, uma formulação definida: como
será possível sujeitar-se a uma ordem social e permanecer
livre? Só uma resposta é possível, resposta que suscita uma
solução democrática, ao estabelecer a medida em que a
liberdade individual se harmoniza com a vontade coletiva,
concretizada em uma ordem social. A liberdade política não
se reduz a outra realidade senão à voluntária participação
no universo das relações sociais. O que entendemos por
liberdade política é, dessa forma, no fundo, a autonomia.
A autodeterminação só porque é autonomia se expressa pelo
consentimento, embora sofra limites e restrições necessárias. A
mais importante dessas restrições se refere ao princípio da maioria,
na qual a decisão se fundamenta. Como já se assinalou, o
princípio majoritário não se identifica com o domínio

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absoluto da maioria, em uma ditadura que, se instalada,


anularia sua própria base. Autonomia, como decantação da
liberdade, no ponto que prevê a aprovação e o consentimento,
sugere a existência da opinião pública, que, por sua vez, reclama,
para existir, as liberdades de palavra, de imprensa e de cultos,
com o suporte na liberdade básica entre todas, a liberdade física.
Democracia se compatibiliza, por obra da necessidade conceitual,
com o liberalismo político, desligado, nesse raciocínio, do liberalismo
econômico (Faoro, 2007, pp. 212-213, grifo nosso).

Para utilizarmos os termos de Isaiah Berlin (2002),


Faoro argumenta que a “liberdade negativa” só pode ser
adquirida pelo uso legítimo da “liberdade positiva”, o que
o aproxima daquilo que a teoria política contemporânea
chama de “republicanismo” (Silva, 2008). Assim, no pen­
samento faoriano há uma contraposição básica entre
liberdade/poder legítimo versus poder despótico/falta de
88 liberdade. Desse ponto de vista de torna compreensível
o necessário casamento, para o jurista, entre liberalismo
e democracia.

O idealismo constitucional e o “lugar” de Faoro


nessa tradição
Para iniciarmos a discussão sobre o “lugar” de Faoro no
chamado “idealismo constitucional”, convém destacar a for­
mulação de Brandão sobre o assunto:

A primeira delas [hipóteses a serem investigadas] é se é


possível – sem prejuízo de suas mediações internacionais e
sem deixar de atentar seja para a especificidade teórica de
cada um desses autores, seja para a diversidade de contextos
históricos nos quais eles atuam – situar o liberalismo atual
em uma linha de continuidade que vem do diagnóstico de
Tavares Bastos sobre o caráter asiático e parasitário que o
Estado colonial herdou da metrópole portuguesa, passa pela

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tese de Raymundo Faoro segundo a qual o problema é a


permanência de um estamento burocrático-patrimonial que
foi capaz de reproduzir secularmente, e desemboca, como
sugere Simon Schwartzman e outros “americanistas”, na
proposta de (des)construção de um Estado que rompa com
sua tradição “ibérica” e imponha o predomínio do mercado,
ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação
sobre os de cooptação, populismo e “delegação” (Brandão,
2007, pp. 33-34).

A partir desse modo, é possível extrair algumas carac­


terísticas básicas dos “idealistas constitucionais”: i) enfati­
zam uma explicação política para a má formação do Brasil,
pois atribuem ao Estado o papel de vilão de nossa história;
ii) como consequência, acentuam a importância de uma
reforma do Estado, o que iii) ressalta a crença que têm na
força das leis, que poderiam mesmo reformular as práticas
que lhe contrariam; iv) ainda como consequência do diag­ 89
nóstico, valorizam as instâncias não-estatais – sociedade e/
ou mercado – como locus das virtudes e daí Brandão, utili­
zando um conceito reformulado por Werneck Vianna, deno­
minar essa utopia como “americanista”. Vistas em conjunto,
não é difícil identificá-las como teses que regeram boa parte
do ideário liberal que prevaleceu nos anos 1990 no Brasil.
Brandão também assinala que entre o pertencimento
dos autores às linhagens do pensamento político brasileiro
que identifica e as suas posições ideológicas não há necessá­
ria correspondência. Em outros termos:

Podemos ver em situações como estas misturas menos ou


mais consistentes de ética de esquerda com epistemologia
de direita, e vice-versa, polarizações ambíguas ou
conciliações produtivas, sublimes coerências ou ecletismos
maltemperados, mas o importante é não transformar
as “afinidades eletivas” entre idealismo orgânico e

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Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

conservadorismo, entre idealismo constitucional e


liberalismo, entre materialismo histórico e socialismo,
em vias de mão única, relações de causa e efeito ou
homologias entre ideologias e posições políticas – até
porque toda concepção de mundo é um campo de forças,
mantém relações e ramificações em vários grupos sociais e
manifestações espirituais (Brandão, 2007, p. 39).

Pensamos, no entanto, que essa ressalva de Brandão não


se sustenta plenamente no caso do idealismo constitucio­
nal, pois a estrutura de reflexão desses autores os conduz
para o ideário liberal. Por outro lado, “liberalismo” é um
conceito amplíssimo e, nesse sentido, é plenamente possí­
vel que idealistas constitucionais adotem versões diferen­
tes, e mesmo opostas, de liberalismos. Daí a necessidade de
discutir o conteúdo de seus pensamentos. Ainda assim, é
possível destacar algumas características que circunscrevem
90 um “conteúdo mínimo” do que se poderia chamar generi­
camente de liberalismo: a) ênfase na igualdade jurídica for­
mal; b) simpatia pelo capitalismo com “espírito” moderno;
c) defesa do regime liberal-democrático representativo e
d) defesa da descentralização do poder político, com vistas
à sua contenção.
Esquematizando provisoriamente: o termo “idealismo
constitucional” não designa imediatamente uma “utopia
política”, mas a contém na medida em que é uma forma de
pensar que articula um diagnóstico das razões da má forma­
ção nacional e os meios necessários para a sua superação;
nesse sentido, tem afinidade com o que poderíamos chamar
genericamente de “liberalismo”, esse sim uma utopia polí­
tica tout court.
Sinais desse vínculo estão nas simpatias dos autores
vinculados ao “idealismo constitucional” pela experiência
sociopolítica norte-americana, que é convertida em modelo
para país. Sem se confundir com o “liberalismo” e com o

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“idealismo constitucional”, o “americanismo”, tomado na


formulação de Werneck Vianna (1997), em certo sentido
contempla também uma reflexão em torno de uma utopia
política. Tanto é assim que a reflexão desses intelectuais
sobre o Brasil costuma assumir a seguinte forma: como repe­
tir o sucesso norte-americano? – Via de regra, os idealistas
constitucionais argumentam que seria necessário romper­
mos com a nossa matriz política ibérica, vista como susten­
tadora de uma ordem política na qual o Estado ocupa o
lugar central.
Esclarecidos alguns conceitos, é preciso que nos volte­
mos, novamente, para a narrativa histórica de Faoro sobre o
desenvolvimento da relação entre liberalismo e a vida polí­
tica nacional. Como vimos, a Independência foi, ao lado
da vinda da família real em 1808, um dos momentos nos
quais se divorciaram o liberalismo político e o liberalismo
econômico, agora adotado pelas camadas do estamento
burocrático. Algo análogo ocorre, segundo Os donos do 91
poder, no caso da Primeira República. Note-se que embora
Faoro seja um crítico do liberalismo econômico, argumenta
que, em dados momentos da história, ele se conjugou, de
maneira progressista, com o liberalismo político. Assim,
num primeiro momento, ambos deveriam se realizar para,
em seguida, as suas contradições serem resolvidas pela pre­
valência das dimensões democráticas do liberalismo polí­
tico sobre as dimensões antidemocráticas do liberalismo
econômico. Disso poderia surgir o “estágio pós-liberal”. De
passagem e com cautela, talvez fosse o caso de aproximar
essa posição de Faoro de uma certa herança hegeliana. Em
favor da hipótese, anotemos um trecho de uma entrevista
concedida a Jair dos Santos Júnior, na qual conta sobre o
período em que escreveu a segunda edição de Os donos do
poder: “É que naquele período quando eu escrevi o livro eu
estava muito hegeliano. Talvez perceba isso em relação ao
livro A lógica, do Hegel. E eu devorei aquilo” (Faoro; Santos

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Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

Júnior, 2009, p. 110). Isso porque há certa filosofia da histó­


ria informando o seu pensamento. Vejamos.
Se observarmos com atenção, poderemos notar que o
caminho percorrido pelo liberalismo político na Europa
Ocidental moderna informa de maneira decisiva a maneira
como a qual Faoro interpreta os descaminhos do libera­
lismo no Brasil. Tomemos o caso inglês como exemplo. Lá,
a liberdade política – ainda elitista – e a liberdade econô­
mica foram fatores chaves para a dinamização do processo
capitalista e para a implantação dos valores políticos, sociais
e culturais modernos. Com a contradição entre o desenvol­
vimento capitalista e as condições precárias da vida das mas­
sas populacionais, surgiram movimentos reivindicativos que
apelavam para os valores cristalizados pela modernidade
como fundamentos para impedir o avanço indiscriminado
da exploração capitalista. Ou seja, para a realização dos valo­
res prometidos pela modernidade, era preciso reorganizar
92 a ordem social, incluindo nela a democratização do poder
político e o acesso a bens materiais.
No Brasil essa relação não existiu, pois o liberalismo
econômico estaria no campo dos “modernizadores”, isto é,
do estamento burocrático, enquanto o liberalismo político,
semente da qual pode florescer a emancipação, estaria iso­
lado. Assim, Faoro assinala que patrimonialismo e liberalismo
econômico podem coincidir na realidade, apesar de seus
princípios serem contrapostos (Faoro, 1993) – “O liberalismo
econômico, para salvar seus fins, divorcia-se frequentemente
do liberalismo político, entregando, em renúncia à autode­
terminação, aos tecnocratas e à elite a condução da econo­
mia” (Faoro, 2007, p. 197). Ou seja, o autor vai na contramão
daqueles que veem a implantação de medidas economica­
mente liberais como solucionadoras de nossos dilemas. É
este casamento frustrante o responsável pelo pessimismo fao­
riano, corretamente assinalado por vários autores (Brandão,
2007; Ricupero; Ferreira, 2008; Guimarães, 2009).

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

A partir desse eixo analítico podemos compreender


a diferenciação que o jurista faz entre “modernização” e
“modernidade”, com ambos os termos sendo tomados em
sentidos propriamente políticos. Enquanto na “moderniza­
ção” as medidas políticas surgem no Estado e são tomadas
sem fundamentação social – movimento, portanto, análogo
ao da usurpação da soberania popular –, na “modernidade”
as medidas são tomadas pelo caminho oposto; isto é, são
construídas socialmente até chegarem ao Estado (Faoro,
1992), de maneira que é fácil perceber a sua afinidade com
a ideia de soberania popular.
Percebe-se, então, que a explicação faoriana sobre a
má formação social brasileira é política, mas não é, ao nosso
ver, institucional, como afirmam Werneck Vianna (1999) e
Campante (2005). Isto porque o termo “institucional” pode­
ria não só restringir o alcance da ideia de “política”, como
poderia sugerir a impressão de uma suposta escolha meto­
dológica de Faoro. Na verdade, ocorre que o tom normativo 93
e filosófico de Faoro nos leva para outros lados, os quais um
recorte do tipo sugerido pelo institucionalismo não daria
conta. Por exemplo, como observa Campante, Faoro “ana­
lisa as questões políticas, econômicas e sociais da história
brasileira sob a ótica dos direitos intrínsecos e inalienáveis
do homem” (2009, p. 126).
Nesse sentido, pode-se aproximar Faoro do “america­
nismo”, no que também se aproximaria de certos valores
compartilhados pelos idealistas constitucionais. Com efeito:
em seu pensamento existem ênfases nos direitos individuais,
na defesa da ideia moderna de soberania popular – base para
uma política efetivamente democrática, na aposta numa
certa dimensão civilizatória do capitalismo moderno, com
suas ressalvas, e a ideia de uma esfera privada alargada. Ao
mesmo tempo, existe a ênfase na soberania popular e na sua
dimensão de prática à moda da “liberdade positiva”, o que
certo liberalismo negará (Constant, 1985). Nesse sentido,

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

Faoro valorizará o espaço público como instância mediadora


entre o Estado e o espaço privado e disso decorre sua ênfase
na ideia de “sociedade civil”. Por outro lado, no âmbito
econômico, o autor não se aproxima dos “americanistas”
latino-americanos, que, como Tavares Bastos, apostavam no
agrarismo como via modernizadora. Por isso, parece-nos
equivocada a aproximação feita por Werneck Vianna (2009)
entre Faoro e o autor de Os males do presente e as esperanças do
futuro, pois embora criticasse, como o publicista alagoano,
a forma dependente do Estado de nossa industrialização,
Faoro tomava o partido da indústria moderna e não da
indústria agrária.
Para sintetizar: no que se refere à proximidade com
o idealismo constitucional, em Faoro encontramos uma
explicação política para os males do país, mas não encon­
tramos uma aposta acrítica nas possibilidades de reformas
institucionais como soluções para nossos problemas. Isso
94 porque, em certo sentido, essa tese não dá conta da possibi­
lidade de que tais reformas sejam feitas para que tudo con­
tinue como antes, para usarmos a ideia clássica formulada
por Giuseppe Tomasi di Lampedusa em O gattopardo (Di
Lampedusa, 2007). Em outras palavras, o ceticismo faoriano
acerca das modernizações brasileiras parece não combinar
inteiramente com a fé dos idealistas constitucionais no papel
exercido pelas leis. Isso porque Faoro enfatiza a centralidade
da forma de surgimento das reformas necessárias, pois é ela
que determinaria o grau de ruptura com a matriz ibérica
de nossa formação. Ou seja: o liberalismo brasileiro, como
exemplifica o caso do “liberalismo da transação”, sinalizaria,
repetidamente, com falsas rupturas. Por esse ângulo, che­
gamos à conclusão de que Faoro sugere que o liberalismo
e o patrimonialismo não se opõem estritamente e podem
se combinar na prática, ainda que a teoria exponha algo
diverso. Em seus momentos mais sombrios, nosso autor
parece sugerir que essa combinação é responsável por uma

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

corrupção irreversível do poder político brasileiro. Desse


modo, podemos sublinhar, seguindo as pistas de Werneck
Vianna (2009), o contraste entre Faoro e Tavares Bastos, que
enxergava na descentralização do poder – via instituição do
federalismo – uma solução para a má organização política do
país. É claro que se pode atribuir às diferentes experiências
históricas vividas pelos dois autores tal diferença de posicio­
namento. Em outros termos: Tavares Bastos não podia tomar
posição similar à de Faoro porque não viu a evolução his­
tórica que o jurista gaúcho analisou. Ainda assim, convém
sublinhar a diferença entre ambos, porque ela pode abrir
caminho para refletirmos os impasses históricos que as for­
mas de pensar enfrentam ao serem atualizadas pelos autores.
Para a complexificação da compreensão do pensamento
faoriano, parece fazer sentido trazer à tona a formulação de
Brandão sobre o que chamou de “pensamento radical de
classe média” (Brandão, 2007). Embora não tenha desenvol­
vido com mais profundidade os traços dessa outra linhagem 95
do pensamento político brasileiro, citar sua caracterização:
“talvez não seja exagerado caracterizar esse pensamento demo­
crático como socializante, quase sempre socialista, de matriz
liberal, por vezes constitucionalista” (Brandão, 2007, p. 38).
Dito isso, vale notar que o pensamento de Faoro contém uma
ênfase democrática, bem como uma certa aposta num estágio
“pós-liberal” (um socialismo liberal?)6, é de matriz liberal e é
substantivamente constitucionalista. Talvez se possa assinalar
que, em contraste com a ênfase do liberalismo no idealismo
constitucional, o pensamento radical de classe média tem sua
marca definidora na democracia e, dessa maneira, talvez vis­
lumbre, ainda que de maneira dispersa, uma ordem social
regida por valores humanistas e sem a prevalência dos ditames

6 
Como recorda Luiz Bernardo Pericás (2010, p. 39), o liberal italiano Piero
Gobetti também compreendia que haveria uma sequência lógica entre liberalismo
e socialismo, de maneira que seria interessante, para estudo futuro, comparar essa
postura com a de Faoro.

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

da modernização capitalista. Voltando ao âmbito da análise


do pensamento político brasileiro, cabe ainda destacar que,
como assinala o mesmo Brandão, “tais formas de pensamento
não foram ou nem sempre são necessariamente excludentes
entre si” e que “em vários [autores] vivem almas contrapostas
e nem sempre a proclamada é a real” (Brandão, 2007, p. 38).
Este parece ser precisamente o caso de Faoro.

Alguns impasses da “interpretação do Brasil”


de Raymundo Faoro
Como é natural a todo pensamento político, o faoriano
também é objeto de críticas variadas. Dentre elas, são espe­
cialmente interessantes aquelas que, partindo de observa­
ções “internas” ao seu pensamento, sublinham alguns limites
que interessam entender não só por se tratar de um desafio
da história intelectual, mas também por dizer respeito ao
processo histórico-político brasileiro de modo mais amplo.
96 Nesse sentido, destaca-se a observação de Campante
segundo a qual a interpretação de Faoro sobre o Brasil é
baseada em uma

visão essencialista, que absolutiza as experiências históricas e


que, incorporando as noções eurocêntricas de tradição e de
modernidade, aposta tudo no conceito de patrimonialismo
estamental tradicional para explicar nossa realidade,
deixando de perceber algumas nuanças e especificidades de
nosso passado e presente (2009, p. 126).

Jessé Souza (2000) segue linha de raciocínio similar


para argumentar que Faoro teria uma explicação negativa
do país, isto é, analisaria a trajetória nacional como um caso
desviante da rota ocidental moderna, de maneira que não
haveria uma compreensão “interna” a essa própria trajetória.
Sem negar completamente essas argumentações, vale
registrar que os pilares dos direitos civis, políticos e sociais

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

modernos foram formulados na Europa Ocidental durante


a chamada Época Moderna, e se são tomados como referen­
ciais analíticos para estudar a história do Brasil, parece ser
inevitável a referência do exemplo. Mais especificamente, se
a “liberdade política” é tomada como critério central para
pensar sobre o país, a reflexão negativa não é arbitrária,
dado que é imposta pela matéria analisada. Por outro lado,
parece ser um reducionismo desprezar a dimensão negativa
como motor analítico e explicativo – embora essa dimensão
não deva ser a única.
Pensamos que a reflexão multifacetada de Faoro sobre
o Brasil chegou à “inteligência da forma”7 de uma explica­
ção de matriz liberal sobre o país, e não à toa tem, como
observou Renato Lessa (2009), a forma de um pesadelo. Em
outros termos: trata-se de uma análise que busca investigar
os motivos das repetições das mesmas estruturas de poder,
dos mesmos problemas e das mesmas soluções. Ora, é dessa
imagem que surge a ideia de uma “viagem redonda”, título 97
da sessão final de Os donos do poder. Ocorre que, às vezes,
a métrica, a história e as aspirações políticas não se com­
binam e a análise desse desencontro pode ser um ganho
intelectual ao seu modo. Assim, a coerência e as tensões
do pensamento faoriano podem ser mais bem apreendidas
se tivermos em mente a dificuldade que um pensamento
liberal-iluminista enfrenta para analisar os desdobramentos
históricos luso-brasileiros. Faoro foi um liberal que com­
preendeu que o liberalismo estava, para usar uma expressão
consagrada, “fora de lugar” (Schwarz, 2012). Nesse sentido,
se aproxima mais de Francisco José de Oliveira Vianna do
que, por exemplo, de Rui Barbosa, liberal como ele. Porém,
ao contrário de Oliveira Vianna, esse diagnóstico – e eis um
ponto de sua originalidade – não o leva a abandonar o ideá­
rio liberal iluminista, o que lhe custa a oscilação entre o

7 
O termo é de Roberto Schwarz (1997), que o aplicou em contexto diverso.

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Raymundo Faoro e as linhagens do pensamento político brasileiro

niilismo e a radicalidade progressista. Assim, a negatividade


faoriana é prova de consequência com seus próprios pressu­
postos – coerência que se demonstra na disposição de cho­
cá-los com a dura realidade dos fatos. Se se pode apontar
que há certo “principismo” na sua posição, o que poderia
ser reprovado caso o autor fosse um político, não é menos
exato sublinhar que Faoro está no lugar da crítica da ordem
social brasileira e não da sua apologia, como sugere, por
exemplo, Souza (2015). Nesse sentido, ainda que a narrativa
histórica faoriana não seja pontualmente exata, é difícil con­
testar que, ao seu modo, o jurista gaúcho atingiu um ponto
nevrálgico do mal-estar dos brasileiros com sua política.
Ainda no campo das possibilidades, cabe pensar que tal­
vez venha daí a popularização do termo “patrimonialismo”
para pensar a cultura política brasileira – chave de pesquisa
que pode, por assim dizer, “atualizar” os insights faorianos
(Carmo, 2011).
98 Mesmo levando isso em conta, cumpre registrar que a
marginalização de temas como o exclusivo agrário e a escra­
vidão parece comprometer a análise histórica de Faoro.
Aliás, frise-se que é possível pensar que tanto o problema
agrário como o da integração social dos negros e índios
são, em parte, frutos de um poder político autocrático que
logrou se manter efetivo ao longo do tempo, a despeito das
variações de sua forma. A ausência de reflexões nesse sen­
tido torna a narrativa faoriana como que tematicamente
incompleta e, por isso, parcial. De algum modo, seguindo a
ideia de Werneck Vianna (1997, 2009), é possível dizer que
Faoro se prendeu talvez demasiadamente à esfera política e
não avançou em seus impactos sociológicos.
Ainda assim, cabe destacar que a profundidade da refle­
xão do jurista sobre o liberalismo brasileiro é bastante par­
ticular, principalmente por estar justamente no seu campo.
Trata-se, em suma, de um liberalismo crítico. E se Faoro
logrou formalizar a narrativa liberal mais consistente sobre

Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


Leonardo Octavio Belinelli de Brito

o Brasil – afirmação que tem como prova a gama de segui­


dores que ela conquistou e a sua importância no debate aca­
dêmico e político brasileiro –, a constatação da impotência
da ordem liberal no país e de seu constante oportunismo a
torna, também, uma de suas melhores críticas.

Leonardo Octavio Belinelli de Brito


é mestre e doutorando em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (USP). É o autor de Dilemas do
patrimonialismo brasileiro: as interpretações de Raymundo Faoro e
Simon Schwartzman (Alameda; Fapesp), no prelo.

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Lua Nova, São Paulo, 103: 69-101, 2018


103
A LINHAGEM CULTURALISTA DA SOCIOLOGIA DO
FUTEBOL BRASILEIRO
Juliano de Souza
é professor associado do programa de pós-graduação em educação física da Universidade
Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Maringá, PR, Brasil.
E-mail: <julianoedf@yahoo.com.br>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-103134/103

Introdução
Este texto recupera, expõe e atualiza parte das discussões
de minha tese de doutoramento (Souza, 2014). A hipótese
que aqui procuro desenvolver é que a leitura culturalista
do futebol brasileiro, pensada, sistematizada e rotinizada
no campo intelectual e nas demais esferas de produção cul­
tural no país ao longo do século XX, tem pais e herdeiros,
constituindo, portanto, uma “família intelectual”. Inspirado
assim no quadro teórico de Brandão (2005), construído na
esteira do programa para a sociologia do conhecimento de
Mannheim (1967, 1976), procuro restituir o “cordão invisí­
vel” através do qual autores e produtores culturais – de gera­
ções distintas e tempos históricos diferentes – se apropriaram
de uma série de ideias-força que, embora mobilizadas sob
múltiplas roupagens teóricas em seus empreendimentos ana­
líticos em relação ao futebol, e até mesmo com outras cono­
tações, reportam a um núcleo argumentativo comum, a saber,
que o futebol no Brasil é uma instituição social sui generis,
supostamente apropriada de forma singular no país, propor­
cionando uma dinâmica de sociabilidade que se crê ímpar.

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

É oportuno notar que, no exercício de desvelar como


ideias-força desse tipo foram acionadas e articuladas no
interior dessa “família intelectual”, é prática rotineira atri­
buir ao antropólogo Roberto DaMatta o desenvolvimento
de proposições inéditas e originais neste campo de estudo.
No entanto, as coisas não ocorreram exatamente dessa
forma, e o projeto de interpretar as relações estabelecidas
entre futebol e sociedade brasileira no âmbito dessa linha­
gem encontra nos esforços de Gilberto Freyre e de Mário
Rodrigues Filho suas bases primeiras de sustentação. Meu
posicionamento, portanto, se assenta no entendimento
de que DaMatta cumpre o papel de sistematizador dessas
ideias, devendo a Freyre a maneira como interpreta a paisa­
gem social brasileira e a Mário Filho o modo como concebe
as relações raciais constituídas no âmbito do futebol.
Além de demonstrar a durabilidade histórica das ideias­
-força caras a essa “família intelectual”, assumo também como
104 objetivos norteadores: (a) restituir algumas das particulari­
dades analíticas dessa linhagem e (b) apontar alguns efeitos
sociais da circulação de suas ideias na lógica de reiteração
da identidade nacional. Para isso, divido o texto em três par­
tes denominadas de atos. No primeiro ato revisito, em linhas
gerais, o empreendimento fundador de Gilberto Freyre e
Mário Filho no tocante à interpretação culturalista do fute­
bol brasileiro. No segundo, recupero o modelo teórico de
DaMatta e defendo o caráter sistematizador de suas análises
no âmago dessa “família intelectual”. No terceiro, por fim,
forneço algumas pistas acerca da rotinização da leitura cul­
turalista do futebol no Brasil e sua repercussão naturalizada.

Primeiro ato: fundação


Conforme observo em minha tese (Souza, 2014), o fato
de Gilberto Freyre ter sido um dos intelectuais mais geniais
que a sociedade brasileira conheceu não impediu a recep­
ção controversa de sua obra no meio acadêmico brasileiro.

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

Ademais, poucos autores das ciências sociais no Brasil tiveram


suas ideias tão duramente combatidas como Freyre. Dentre
algumas das críticas mais contundentes endereçadas à sua
obra destacam-se: (a) o desenvolvimento de um modelo teó­
rico cuja aplicabilidade e alcance se limitaria apenas à região
Nordeste do Brasil (Holanda, 1979); (b) a ênfase de suas aná­
lises apenas na escravidão doméstica, negligenciando, nesse
particular, o trabalho escravo no eito e sobretudo na lavoura
(Cardoso, 1962; Ianni, 1962); e (c) o caráter ideológico e
mistificador de suas teses (Fernandes, 2008; Souza, 2006).
Sem dúvida, esse último aspecto crítico, dentre aqueles
associados à obra freyreana, é o mais incisivo e polêmico
no que se refere à divulgação e circulação de suas ideias no
Brasil, até porque a denúncia do suposto caráter ideológico
das teses de Freyre implica reconhecer ou ao menos cogitar
que o autor não apenas construiu um modelo macroexpli­
cativo da sociedade brasileira, mas um modelo que faz, e de
certa forma refaz, essa realidade. 105
É importante ressaltar que Freyre, como outros auto­
res clássicos do pensamento social brasileiro, também se
propôs a pensar o processo de modernização da sociedade
brasileira em termos de continuidade com Portugal. Em
Faoro (1979), por exemplo, esse projeto foi levado a cabo
na medida em que a experiência patrimonialista brasileira
se fazia devedora da relação histórica mantida entre metró­
pole e colônia, ao passo que, em Holanda (1995), o cha­
mado “homem cordial” e familisticamente emotivo teria
sido formado com base na ordem cultural portuguesa. Na
obra de Freyre, por sua vez, a noção de continuidade orgâ­
nica com Portugal foi pleiteada no propósito de explicar,
por um lado, o encontro cultural das raças, favorecido pela
suposta “plasticidade” do homem português e, por outro,
para sustentar a centralidade da família tutelar na dinâmica
estrutural e estruturante das relações políticas e culturais da
sociedade brasileira (Souza, 2003).

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

É oportuno reconhecer que o projeto freyreano de


interpretação da paisagem social brasileira não foi cons­
truído ou pensado a partir das dinâmicas institucionais
ancoradas no Estado, no mercado ou na Igreja. Dito de
outro modo, a abordagem de Freyre se constituiu de forma
contrária ao pensamento dominante da época na qual redi­
giu Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos, de modo a
não enfatizar o papel das instituições mencionadas na aná­
lise da sociedade supostamente singular que aqui teria se
formado. Ao invés disso, o autor elegeu a família patriar­
cal – em seus termos, uma dessas “grandes forças perma­
nentes” em torno da qual “os principais acontecimentos
brasileiros giraram durante quatro séculos” (Freyre, 2003a,
p. 78) – como elemento explicativo central de sua agenda.
Em suma, a família tutelar, nessa arquitetura teórica, seria a
base estrutural e emocional sobre a qual se organizou a vida
política, social e cultural no Brasil.
106 Ademais, para Freyre (2003a, 2006), a constituição de
uma família polígama em torno dos patriarcas decorreria
da necessidade de ampliação do núcleo familiar, bem como
do povoamento das terras. Paralelamente a essa leitura, o
autor também ponderou que existiria uma perspectiva de
mobilidade social para o negro no interior desse sistema,
mobilidade esta que, em última instância, seria representada
pela emergência da figura do mestiço resultante do “encon­
tro afetivo” entre o senhorzinho e a escrava “fazedora de
quitutes”. A perspectiva de ascensão em meio a esse universo
de contrastes, segundo Freyre (2006), teria sido garantida
pelo fato de que muitos filhos mestiços foram educados
no espaço da casa-grande com os filhos de nhonhô e iaiá,
tendo, portanto, a real possibilidade de se tornarem legíti­
mos ao se apropriar da cultura legítima em voga.
Há que se reconhecer que Freyre, ao inventariar essa
gama de relações que, embora fossem hierárquicas – como
ele próprio destacou ao longo de sua obra – também

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Juliano de Souza

favoreciam uma espécie de camaradagem horizontal entre


opostos, não as idealizava nem as retomava de forma essen­
cialista. Em que pese, portanto, seu ecletismo metodológico,
sua sensibilidade antropológica e sua recusa à divisão do tra­
balho intelectual, o autor também enfatizou em seus textos
uma visão objetivista da sociologia. Em outros termos, Freyre
não partilhou apenas de uma visão subjetivista do trabalho
sociológico, que se centra somente em evocar a sensibili­
dade dos atores, haja vista que, ao tecer suas análises, levou
em conta a existência de um complexo estrutural que supor­
taria os raios de ação e comportamento de personagens
ideais típicos – complexo estrutural representado esquema­
ticamente pela “casa-grande” e o “sobrado”, acompanhados
de seus correspondentes “senzala” e “mucambo”.
Por sinal, na introdução à segunda edição de Sobrados e
mucambos, Freyre (2003a, p. 91) diz não conhecer símbolos
mais adequados que “casas-grandes e senzalas” e “sobrados
e mucambos” para explicar a expansão do sistema patriar­ 107
cal no Brasil e as diferenças de status entre as personagens
centrais de sua trama, isto é, o senhor branco e o escravo
negro. Ao reconstruir o “todo socioestrutural significativo”
da economia patriarcal brasileira, Freyre, como assevera
Cardoso (2006, p. 21), recorreu à esfera íntima, sexual e
afetiva, tomando os comportamentos em seu núcleo de ação
efetivo, e não apenas como padrões culturais. Esse tipo de
reconstrução, por sua vez, foi garantido na obra do autor
na medida em que a estrutura da “casa-grande e senzala” –
noutro momento, de “sobrados e mucambos” – funcionaria
como mecanismo regulador tanto da vida quanto da perso­
nalidade dos brasileiros (Souza, 2014).
Com todo o risco de ter fornecido uma visão teórica sim­
plificada e mesmo incompleta da arquitetura teórica mobi­
lizada pelo sociólogo, é oportuno ressaltar, à maneira de
síntese, que a tese da miscigenação e da democracia racial
são as principais ideias-força de seu modelo interpretativo

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

da formação social brasileira, posteriormente sendo solicita­


das pelo autor (e por outros autores que o sucederam) para
pensar o papel e valor do futebol no Brasil. Em outras pala­
vras, Freyre priorizou em sua leitura da formação societária
brasileira o encontro cultural das raças e a perspectiva de
mobilidade social para os negros, estando essas duas dimen­
sões intimamente concatenadas em suas análises.
Essas duas dimensões são acentuadas pelo próprio
Freyre ao pensar a suposta singularidade do futebol brasi­
leiro, conforme documentam estudiosos que se dedicaram
a reconstituir e problematizar a interpretação do sociólogo
acerca dessa prática esportiva trazida de terras inglesas
(Barreto, 2004; Capraro, 2011a; Maranhão, 2006; Morais e
Ratton Júnior, 2011; Soares, 2003). Estariam postas, nesse
caso, as bases teóricas que levaram Freyre a pensar o futebol
brasileiro como uma variante sui generis e sem equivalentes
no mundo, ou seja, estabelecido enquanto tal basicamente
108 por conta da híbrida gramática social que haveria favorecido
uma apropriação cultural distinta da prática esportiva no
país. Ao saudar o pioneirismo de Freyre nos estudos socio­
lógicos do futebol no Brasil, DaMatta indaga:

Haveria, neste uso exclusivo dos pés que caracteriza o football


association, uma relação inconsciente com o jogo de capoeira
que os escravos africanos trouxeram para o Brasil? Jogo onde
as armas de luta não são os punhos, mas os pés? Gilberto
Freyre, que é o único dos interpretes clássicos da sociedade
brasileira a tocar no futebol, responde afirmativamente,
salientando no famoso cap. XI de Sobrados e mocambos que o
pé pequeno do mulato brasileiro ajudava os passos rápidos
tanto do samba quanto da capoeira. Samba que o levava para
dentro do sistema como dançarino alegre, capoeira que o
marginalizava e sinalizava seu lado rebelde. Ambos, contudo
apaziguados, como remarca Gilberto Freyre, pelo futebol
“dionisíaco” – esse instrumento privilegiado de ascensão do

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

negro e do mulato dentro da sociedade brasileira. O fato é


que esse jogo britânico do “pé na bola” foi reinterpretado
no Brasil como a arte da “bola no pé”, o que mudou tudo.
Num caso a bola é um atrapalho a ser rebatido, despachado
ou chutado com o pé que, afinal, foi feito para isso mesmo;
no outro, entretanto, descobre-se uma afinidade inusitada
entre o pé e a bola que agora tem com esse pedaço do corpo
humano uma séria afinidade e atração que é uma das marcas
mais importantes do futebol brasileiro. Pois por meio dele
e, acima de tudo, com ele, a bola transforma-se em objeto
feminino e desejável, e o pé transforma-se em instrumento
que segura, prende, acaricia, domina, controla, prende e
“come” a bola (DaMatta, 2006, p. 157).

Esse excerto é revelador de que DaMatta estabelece


interlocução com Freyre de modo a conferir legitimidade a
suas explicações sobre a recepção do futebol no Brasil, mar­
cado, no entendimento dessa “família intelectual”, por uma 109
reapropriação cultural distinta, que culminaria na invenção
de um estilo brasileiro de praticar o esporte e, assim, na
emergência do “futebol-arte”. No entanto, esse tipo de posi­
cionamento, antes de DaMatta, já se fazia presente – com
algumas ressalvas e especificidades – em O negro no futebol
brasileiro, de Mário Rodrigues Filho.
A primeira versão de O negro no futebol brasileiro foi
publicada em 1947, e sua estrutura original era composta
de quatro capítulos. Em 1964, Mário Filho acrescentou
dois novos capítulos ao livro, que assim tomou sua forma
definitiva. De um modo geral, o texto se caracteriza como
uma narrativa histórica do futebol brasileiro (tendo como
ponto de partida a trama social específica ao futebol
carioca) endossada por uma infinidade de arranjos sociais
recuperados pelo autor através de pesquisa em atas, súmu­
las, jornais, álbuns e, principalmente, por via de uma tra­
dição oral atenta a fatos não registrados nas fontes oficiais,

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A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

de forma a potencializar o descortinamento de alguns


processos esquecidos ou ocultados na história do futebol
brasileiro e em sua construção historiográfica (Rodrigues
Filho, 2003, pp. 20-23).
Se não bastasse essa variedade de fontes históricas que o
qualificam, o livro de Mário Filho ainda fornece pistas socio­
lógicas importantes sobre a formação da sociedade brasi­
leira, em especial no que diz respeito à construção de uma
identidade nacional compartilhada (da qual a própria obra
em tela é depositária e refratária), alavancada na ideia da
mestiçagem como característica virtuosa do povo formado
aqui nos trópicos. Além disso, uma leitura mais cuidadosa
do livro mostra que Mário Filho problematizou uma série
de mecanismos de mobilidade social presentes na socie­
dade brasileira, assim como as distâncias e barreiras raciais e
sociais erguidas como critérios estruturantes da ação e como
pressupostos valorativos que classificam os indivíduos e os
110 grupos sociais no Brasil (Souza, 2014).
Entre as influências teóricas que nortearam Mário Filho
na escrita de seu texto, se encontram, como já afirmei, as
formulações clássicas de Freyre e o debate racialista em voga
entre a intelectualidade nacional do período (Souza, 2014).
Cabe frisar, quanto à alusão de Mário Filho às ideias freyrea­
nas, que a academia não tem dificuldades em reconhecer
esse fato e tecer suas considerações (Capraro, 2011a, 2011b,
p. 218; Soares, 2003). O próprio prefácio escrito por Freyre
para a primeira tiragem do livro, ou mesmo o reconheci­
mento implícito dessa filiação por Mário Filho na nota à
primeira edição, bem como uma série de argumentos que
percorrem e se repetem por todo o livro são bons indicativos
da conjectura que estamos tecendo. Excertos como os que
seguem não me deixam mentir:

Falar em futebol era falar na derrota do Vasco. Veio outra


semana, o Vasco continuou a vencer, não perdeu mais até

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

o fim do campeonato. A vitória do Flamengo tinha dado a


ilusão de que tudo ia voltar a ser o que era dantes, os times
de brancos sempre levantando campeonatos, os times de
pretos perdendo sempre. A ilusão durou pouco, os clubes
finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um
fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times
de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era
campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos
não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de
ser da boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz
de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em
igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto,
o mulato e o preto, pra ver quem jogava melhor. Era uma
verdadeira revolução que se operava no futebol brasileiro.
Restava saber qual seria a reação dos grandes clubes
(Rodrigues Filho, 2003, p. 126).

Porque com o profissionalismo não fazia mal o Fluminense 111


botar um mulato, um preto no time, contanto que fosse um
grande jogador. Melhor branco. Mulato ou preto, só grande
jogador (Rodrigues Filho, 2003, p. 193).

Ameaçado de perder seus amadores, os seus brancos, o


Botafogo foi para cima dos jogadores dos outros clubes, sem
ligar mais à cor. Tirou Leônidas do Vasco, Waldemar do São
Paulo. Pouco importava que fossem pretos. Eram pretos,
mas eram os maiores atacantes do futebol brasileiro. Assim
não faziam mal, só podiam fazer bem (Rodrigues Filho,
2003, p. 205).

Mas o Flamengo ainda não era um clube do povo. Fazia


a mesma questão de cor do Fluminense. Virou clube do
povo quando acabou com a estória de só branco no time.
Abrindo a porta da Gávea para os pretos (Rodrigues Filho,
2003, p. 210).

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

Mário Filho corrobora a tese da democracia racial nes­


ses excertos, na medida em que narra a ascensão social de
negros e mestiços nos quatro principais clubes cariocas,
sendo o Vasco da Gama o pioneiro nessa iniciativa ao ganhar
o campeonato estadual de 1923 com negros, mulatos e
pobres compondo seu escrete, ao passo que nos outros três
grandes clubes essa experiência só se concretizaria quase
uma década mais tarde, a partir dos anos 1930. É sempre
importante frisar que por trás desse tipo de narrativa subjaz
a ideia de que o futebol – na condição de microcosmo social
dotado de pouca autonomia, ao menos a partir do ponto
de vista teórico culturalista – refletiria um movimento de
democratização racial operado mais amplamente na socie­
dade brasileira como um todo.
Ademais, Mário Filho – conforme analisei com maior
profundidade na pesquisa que dá origem a este texto
(Souza, 2014) – estabelece uma tentativa de correspondên­
112 cia entre miscigenação racial – a suposta “reapropriação
cultural dionisíaca” que se operou no futebol brasileiro por
conta dos negros e mulatos que o praticavam – e a ascen­
são social das populações de cor no contexto futebolístico
nacional, instituindo uma dinâmica analítica particular que
aos ouvidos de Freyre parecia soar como música, como ele
mesmo reconheceu: “era natural que o futebol, no Brasil, ao
engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse tam­
bém o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o
mestiço” (Freyre, 2003b, p. 25).

Segundo ato: sistematização


Como argumentei até aqui, a leitura culturalista do fute­
bol brasileiro teve sua gênese em Freyre e Mário Filho. A par­
tir de agora, demonstrarei como DaMatta deu continuidade
a esse empreendimento, tornando a tese da democracia
racial mais dialógica e reconvertendo-a na tese da demo­
cracia social. Vale pontuar então que DaMatta, assim como

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

Freyre, não elegeu o Estado, o mercado ou a Igreja como


pontos de partida para suas reflexões, cujo propósito maior
seria trazer à tona “o que faz o brasil, Brasil”. Ao invés disso,
em seu clássico livro Carnavais, malandros e heróis, publicado
originalmente em 1979, DaMatta procurou acessar o uni­
verso social brasileiro e interpretá-lo a partir de alguns de
seus principais ritos: o carnaval, os desfiles cívicos, o futebol
etc. (DaMatta, 1997).
Para levar com rigor seu projeto de compreender os
caminhos que tornam a sociedade brasileira única e singu­
lar, DaMatta se vale de um rigoroso esquema conceitual no
qual as noções de “indivíduo” e “pessoa” merecem maior
atenção, porque são justamente esses elementos que dão
suporte ao desenvolvimento da categoria “dilema brasileiro”
ou “jeitinho brasileiro”. A inspiração dumontiana, nesse
quesito, é particularmente visível. Note-se que “indivíduo”,
para DaMatta, trata daquele sujeito fruto do liberalismo, que
se conforma aos ideais de mercado e age impessoalmente 113
segundo as regras que governam a vida moderna, ao passo
que a “pessoa” seria aquele tipo de sujeito que age amparado
em favores e camaradagens provenientes de seus núcleos de
contatos íntimos e pessoais, algo típico de um contexto de
ação social pré-moderno ou tradicional (DaMatta, 1997).
O “dilema brasileiro”, nesse sentido, é mobilizado por
DaMatta para sintetizar o fato de que, no Brasil, haveria
um predomínio das relações pessoalistas sobre as relações
impessoalistas, dos comportamentos típicos da casa sobre os
comportamentos típicos da rua. Prova disso, dentre outras
coisas, seria o rito verbalizado do “Você sabe com quem está
falando?”, constantemente evocado na vida pública brasileira
(ainda que os indivíduos que se valham do rito sintam-se
comumente embaraçados por isso) para restabelecer ou
reforçar as hierarquias tradicionais por conta de se pertencer
a determinada família de influência na sociedade ou então
por se ter um primo político etc. Nos Estados Unidos, por

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

sua vez, quando os indivíduos se deparam com uma situação


conflituosa, recorrem, com vistas a estabelecer a igualdade,
ao rito “quem você pensa que é?” (DaMatta, 1997, p. 197).
É sobre essa ótica específica, segundo Souza (2001), que
DaMatta procura ensaiar uma explicação sui generis para a
desigualdade brasileira, muito embora sua preocupação
maior seja trazer à luz aqueles elementos que contribuíram
para a conformação de um tipo singularmente cultural de
sociedade, que só poderia ser desvelado quando visto de
forma positiva, otimista, e não a partir da hipótese nega­
tivista do atraso. Não é por acaso, portanto, que DaMatta
elege o carnaval, o jogo do bicho, as procissões religiosas,
as paradas cívicas e especialmente o futebol como chaves
interpretativas para avançar em seu empreendimento.
É necessário frisar que esses objetos eleitos pelo autor
se situam no domínio do mundo social extraordinário, ao
passo que as rotinas de seriedade são encaradas como per­
114 tencentes ao raio de ação do mundo social ordinário. De
acordo com o autor, é no domínio do mundo social extra­
cotidiano que o Brasil se revela e, portanto, permite-se ler
como sociedade, pois nesses momentos é que seriam dra­
matizadas, sob a forma de ritos, as principais características
estruturais e afetivas que orientam nossa sociedade em seu
cotidiano (DaMatta, 1997).
Os ritos pensados e estudados em suas manifestações
coletivas por DaMatta (1997) preencheriam algumas fun­
ções nesse tipo de formação social e, para tanto, se classifi­
cariam do seguinte modo: (a) ritos de reforço que reiteram a
estrutura e a hierarquia de poder; (b) ritos de inversão, nos
quais os papéis sociais são invertidos de modo a propiciar,
no plano mimético, uma experiência de igualdade, justiça
e democracia; e (c) ritos de neutralização, nos quais se veri­
fica uma alternância entre as duas primeiras tipologias de
ritos. Sendo assim, o rito emerge como categoria heurís­
tica na abordagem damattiana, já que é pela dramatização

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

inerente ao rito que os homens “tomariam consciência das


coisas” e então passariam a “vê-las como tendo um sentido,
vale dizer, como sendo sociais” (DaMatta, 1997, p. 36). É,
portanto, no lastro desse esquema exposto que o autor teo­
riza sobre o futebol.
Cabe notar que o futebol brasileiro, em DaMatta, é
exclusivamente interpretado como um rito de inversão que
denota um “drama por justiça social” e, em seguida, como
um rito de reforço que fortalece os vínculos e sentimentos
nacionais. É importante considerar que esse tipo de diag­
nóstico está presente em vários textos de DaMatta (1982a,
1982b, 2003, 2006), reiterando, ao longo do tempo e de
sua obra, a ideia do futebol como uma “escola da vida” ou
“aula de democracia”:

No futebol e pelo futebol, o povo aprendeu que pode


vencer seus problemas sem salvacionismos messiânicos ou
ideológicos. Com ele, o Brasil teve uma grata e apaziguante 115
experiência com a vitória, com a excelência, com a
competência, com a paciência e com o amor, esses valores
sistemática e significativamente ausentes dos projetos
políticos. Nesses papéis, ao contrário do futebol, a sociedade
brasileira surge como uma entidade vazia de valores,
destinada a ser reeducada e transformada pelo Estado.
É, pois, o futebol que engendra essa cidadania positiva e
prazerosa, profundamente sociocultural, que transforma o
Brasil dos problemas, das vergonhas e das derrotas, no país
encantado das lutas, da competência e das vitórias. Uma
coletividade que pode finalmente contar com suas próprias
forças e talento. Com o futebol, o Brasil não nos enche de
vergonha – como ocorre no discurso dos políticos –, mas
de orgulho, carinho e amor. Viva o carnaval! Viva o futebol!
E viva o povo brasileiro que generosamente permite que o
Brasil campeão resgate o Brasil que tem ódio de si mesmo
(DaMatta, 2006, p. 124).

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

Como exemplarmente revela o excerto, DaMatta eleva


o futebol ao nível de fenômeno quase etéreo, que permitiria
à sociedade brasileira acertar as contas com ela mesma. Para
o autor, o futebol, assim como o carnaval, inverteria uma
ordem social repleta de injustiças, dissolvendo, mesmo que
por um instante, as distâncias objetivas que se construíram
no Brasil em termos de classe, raça, religião etc. Além disso,
pelo futebol, a população brasileira teria uma possibilidade
real de se descobrir mais alegremente como parte de uma
coletividade, encontrando uma fonte de energia para voltar
ao cotidiano. Desse modo, o futebol seria importante

não porque ele faça esquecer as mazelas e as mistificações


rotineiras, mas porque a experiência com a vitória, com
a excelência, com o esforço e o sacrifício coletivos, com o
entregar-se de corpo e alma a uma camisa-causa, permite voltar
ao trabalho com novas disposições (DaMatta, 2006, p. 126).
116
Em suma, o argumento de DaMatta é que o futebol
em particular e o esporte em geral trouxeram em si, num
primeiro momento, os germes de uma lógica individualista
moderna, por se tratarem, a rigor, de fenômenos de origem
inglesa que remontam à metade final do século XIX. Num
segundo momento, por sua vez, essas práticas – ao serem con­
trastadas com uma sociedade como a brasileira, marcada pelo
predomínio de relações pessoalistas e pela troca de favores,
onde só teriam vez os poderosos – produziram, por meio de
um rito de inversão, uma experiência singular de democra­
cia e igualdade. Aí residiria, para DaMatta, a explicação de o
futebol ter se popularizado de forma transclassista no Brasil.
Com relação aos pressupostos teóricos que subjazem a
essa proposta interpretativa da relação entre futebol e socie­
dade brasileira, colocada em termos quase endêmicos, para
não dizer endógamos, DaMatta (1982b, p. 55, grifo meu)
argumenta que:

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

A questão está em descobrir que vivemos numa sociedade


que relaciona intensa e funcionalmente dois sistemas:
um de mercado, acoplado a um aparato legal, fundado
em leis universais e no indivíduo como sujeito; e outro,
de redes imperativas de relações pessoais, que funcionam
hierarquicamente, mantendo os velhos privilégios elitistas.
O problema não seria ter capitalismo em excesso mas ter
capitalismo pela metade. Isto é, um sistema onde o mercado
e as leis universais somente operam para baixo, no sentido
dos que não têm uma representatividade por meio do
nome, das relações ou dos bens de família. A raiz do nosso
autoritarismo, deste modo, estaria nesta simultaneidade ou
nesta capacidade de relacionar laços de família, amizade
e compadrio […] e um sistema de leis universais que são
constantemente colocadas em xeque pela lógica dos laços
pessoais. Penso que é neste quadro social que poderemos interpretar
a popularidade e a importância de um esporte como o futebol.
117
É importante atentar ao fato de que o que DaMatta
chama de “quadro social”, com vistas a conferir maior cre­
dibilidade a seu modelo, não se trata propriamente de um
quadro social, mas de um quadro teórico sob o qual ele
mesmo e seus continuadores se incumbiram de ler o fute­
bol brasileiro. Trata-se de um quadro teórico personalista
que, em certa medida, foi prenunciado em Freyre, Holanda
e, no caso específico do futebol, em Mário Filho. É desse
quadro teórico, portanto, que emanam as categorias das
quais DaMatta se vale, sob uma roupagem híbrida, para
interpretar o futebol brasileiro e outros fenômenos cul­
turais à luz das supostas “especificidades” dessa formação
social, antevistas teoricamente pela geração da qual ele é o
porta-voz mais influente.
Outro aspecto a ser pontuado quanto à proposta de
tratamento sociológico do futebol em DaMatta, é que o
autor – apesar de reconhecer a importância de desenvolver

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

um modelo teórico cujo pressuposto principal fosse encarar


esporte e sociedade como “duas faces de uma mesma moeda
e não como o telhado em relação aos alicerces de uma casa”
(DaMatta, 1982a, p. 23) –, acaba muito mais realizando leitu­
ras dessa prática esportiva segundo os princípios supostamente
estruturantes da dinâmica das relações sociais no país do que
propriamente ler a sociedade brasileira por via dessa prática
esportiva ou então procurar estabelecer uma postura mais
relacional nesse exercício, conforme ele mesmo recobrou.
Independentemente, no entanto, dos diferentes níveis
de articulação entre dimensões micro e macrossocial remeti­
dos pelo modelo, o que insurge de mais relevante para argu­
mentação que estou desenvolvendo é que as ideias damattia­
nas, incrustadas ao propósito de recompor as singularidades
nacionais, influenciaram a leitura que não somente uma
geração seguinte de estudiosos faria sobre o futebol brasi­
leiro, mas também as leituras que a imprensa esportiva –
118 seja ela escrita ou televisionada –, os campos de produção
cultural e o próprio senso comum retroalimentado pelo
ofício desses especialistas da cultura teceriam e imporiam
acerca da circulação dos bens e das práticas futebolísticas no
Brasil. Uma das consequências sociais mais marcantes desses
esforços conjuntos historicamente datados foi a construção
de uma percepção hegemônica do futebol brasileiro que
favoreceu a invisibilização e o ocultamento de uma série de
contraprocessos atuantes no contexto de ação futebolístico
(Souza, 2014).

Terceiro ato: rotinização


A partir do início dos anos 1990, vários pesquisadores
das mais diferentes áreas se dedicaram ao estudo do futebol
no país a partir de um ângulo sociocultural, produzindo tra­
balhos que, em alguma medida, foram influenciados pelas
ideias-força de DaMatta. Uma variedade de exemplos poderia
ser citada, mas não havendo espaço para tanto nesta ocasião,

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

elegi para essa interlocução crítica os textos mais expressivos


de Luiz Henrique de Toledo e Arlei Sander Damo.
Cabe inicialmente esclarecer, antes de retomar a título
ilustrativo alguns dos aspectos desses textos, que esses inter­
locutores, apesar de muitas vezes se reportarem de forma
crítica ao modelo teórico de DaMatta, ainda permanecem
presos a algumas de suas ideias por duas razões íntimas:
(a) porque tais autores, talvez pela falta de um distancia­
mento maior em relação ao referido modelo e suas impli­
cações epistemológicas e sociais, reatualizaram as categorias
damattianas no próprio ato de questioná-las; (b) porque
mesmo se valendo das contribuições de toda uma literatura
da vanguarda sociológica e antropológica internacional
para trilhar caminhos teórico-metodológicos alternativos,
no final das contas, tais estudiosos apresentaram conclusões
muito próximas às de DaMatta.
Em Toledo (2000a, 2000b, 2008), percebo sua participa­
ção no modo de pensar da linhagem culturalista na medida 119
em que pleiteia um acesso estruturalista e totalizante ao con­
texto de ação futebolístico brasileiro como um lócus de “signi­
ficações flutuantes”. Tais significações, por conseguinte, seriam
motivo de restituição por parte do investigador social de modo
a trazer à tona as expectativas que atores de diferentes segmen­
tos e níveis de envolvimento com o futebol constroem nessa
prática, ou seja, considerando a forma como vivem e a inter­
pretam em seus campos de ação (Guedes, 2003).
Na esteira dessa análise, vale então ressaltar que, para
Toledo (2000a, 2000b), variados contextos de apropriação
do futebol produziram técnicas corporais diferenciadas por
conta da variação na interpretação e aplicação das regras do
futebol. É, inclusive, desse ponto de partida que o pesquisa­
dor procurou interpretar o “estilo futebolístico brasileiro”,
devedor, segundo ele, à heterogeneidade étnico-social e ao
processo de resistência das populações negras na formação
societária brasileira (Toledo, 2000b, p. 34).

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

Como discuti com mais rigor em outro momento


(Souza, 2014), esse tipo de explicação veio a ser aprofundada
no modelo das “formas-representações” (Toledo, 2008), no
qual o conjunto de regras preestabelecidas (igualitárias e
universais), as formas (performances corporais treinadas)
e as representações, numa espécie de relação interativa (de
contiguidades e oposições) que envolve vários atores (pro­
fissionais, especialistas, torcedores), acabariam por definir
estilos de jogo específicos, como o brasileiro ou europeu,
ou o jogar à la Corinthians ou Grêmio (Toledo, 2000a). As
passagens que seguem remetem bem ao modelo:

Nos treinos, observa-se, portanto, um embate dinâmico


entre os atores – torcedores reivindicando gols e melhor
aprimoramento das performances dos atletas, especialistas
tentando desvendar os “segredos” dos times através do
trabalho das comissões técnicas e dos próprios jogadores, e
120 estes últimos, os profissionais, buscando uma forma ou padrão
que, se consolidado com sucesso em campo, atingirá, no
plano simbólico, às representações do jogar, referendadas
por todo um socius (Toledo, 2000a, p. 163, grifos do autor).

Espera-se de qualquer jogador, na apreciação de suas


qualidades sensíveis, estilo e técnica, ou dos técnicos, no
exame dos “segredos” e “filosofias” de seu jogo, os padrões
ou formas por eles experimentados, certas compatibilidades
com as representações já inscritas e muitas vezes consolidadas
no imaginário coletivo torcedor e propagado pela imprensa
esportiva. Assim, um atleta ou até mesmo um técnico de
um time como o Corinthians ou o Grêmio, por exemplo,
deveriam jogar ou propor formas de jogo onde a garra, a
vontade, a luta, independentemente das suas qualidades
profissionais, capacidade, posição, função ou atribuições
táticas pré-determinadas, sejam contempladas (Toledo,
2000a, p. 165, grifos do autor).

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

Desse modo, as representações de estilos e formas de jogo se


conformam de modo preexistente ao raio de ação primária dos
atores, sejam eles torcedores, profissionais ou jornalistas. Nesse
sentido, o esforço desses agentes consiste em se movimentar
“ativamente”, “voluntariamente”, ou mesmo sem o saberem,
de acordo ou desacordo com essas representações instituídas
no imaginário coletivo. O modelo estrutural em tela conduz,
portanto, à sensação de que as representações se impõem como
realidade objetivamente externa que constrange os atores
sociais. Em outras palavras, o modelo supõe que os atores se
arranjam e desarranjam no âmago do fenômeno futebolístico
brasileiro, como marionetes relativamente presas à “regra de
ouro” reivindicada sob o estatuto de “lógicas do futebol”. A
assertiva que segue é esclarecedora dessa proposta:

Portanto, poderia afirmar que se trata não tanto


de ler o Brasil pelo futebol, como se ele fosse uma
autorrepresentação a-histórica, num sentido estrutural, 121
mas ler também o futebol pela sociedade brasileira, nas
suas múltiplas dimensões, identificadas, de um ponto de
vista típico-ideal, na atuação dos especialistas, profissionais
e torcedores que, por sua vez, investem, nem sempre de
maneira consensual, na promoção e consolidação de nossa
autoimagem, representada na englobante expressão Futebol
Brasileiro (Toledo, 2000a, p. 31, grifo do autor).

Algumas questões imediatamente insurgem desse


excerto: que sociedade brasileira é essa que Toledo chama
à existência para ler o futebol? Que representações foram
produzidas e têm sido atualizadas e reinventadas não só por
profissionais, especialistas e torcedores, mas também pelos
próprios intelectuais, acerca da sociedade brasileira e da
função social que os bens esportivos e culturais exercem no
país? Quais os inconvenientes de ler o futebol a partir de
um consenso social teoricamente orientado, através do qual

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

se reproduziu uma “ilusão compensatória” de singularidade


apesar de todos os problemas?
Parar clarear esse quadro e lançar luz a essas questões é
importante ressaltar, na esteira da análise proposta por Jessé
de Souza (2006), que o personalismo e o patrimonialismo,
em suas versões “puras” ou “híbridas”, têm colonizado a
percepção que a sociedade brasileira conserva dela mesma,
tanto no campo acadêmico quanto no âmbito do senso
comum. Para esse autor, se no patrimonialismo veicula-se
uma interpretação pseudocrítica da realidade brasileira, no
personalismo institui-se uma verdadeira aversão aos confli­
tos (Souza, 2003, 2006). Como diz DaMatta (2004, p. 28) ao
rebater a tese do futebol como “ópio do povo”: “Só se pode
mudar aquilo que se ama. Eu achava que a teoria do ‘quanto
pior, melhor’ para mudar o Brasil não era uma boa teoria.
A teoria para mudar o Brasil é quanto melhor fazemos e
sentimos que as coisas melhoram, mais queremos mudar”.
122 Por essas e outras razões, sempre ocultas e nunca devi­
damente tematizadas, é que a linhagem culturalista da
sociologia do futebol atribui um valor residual aos conflitos
sociais. Toledo envereda por esse olhar culturalista reticente
aos conflitos quando alude à transição do futebol amador
para o profissional no Brasil em seu livro No país do futebol:

A distinção social foi paulatinamente transfigurada em símbolo de um


processo de identificação de nacionalidade experimentado pelos mais
variados grupos sociais em todo o país. Futebol: símbolo brasileiro
que ultrapassa as fronteiras nacionais, tal como se nota através
da notoriedade alcançada por inúmeros jogadores, sobretudo
Pelé, que condensa na imagem de “atleta do século” o estilo
brasileiro de jogar (Toledo, 2000b, p. 9, grifo meu).

Toledo não chega ao ponto de dizer que no futebol


vivenciamos uma experiência sem equivalentes de demo­
cracia, muito embora entenda que a distinção social foi

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

reconduzida na transição do amadorismo para o profissio­


nalismo de modo que, no lugar dela, segundo seu entendi­
mento, passou a atuar um vínculo de solidariedade nacional
reforçado, dentre outros meios, por via da modalidade do
“futebol-arte” – categoria nativa instável da qual Toledo
se vale, respaldado na voz dos atores que pesquisou, para
explicar (a) as formas de jogo que se adaptariam ou não às
enunciações; (b) as cobranças e motivações dos torcedores
guiadas por esse nível de interação simbólica; e (c) as análi­
ses tecidas pela imprensa esportiva especializada no sentido
de preservar esses códigos ou deles destoar.
Na continuidade de construção desse percurso, outro
autor que – resguardados todos os avanços que seus investi­
mentos representam para a sociologia do futebol brasileiro
– também participa, em alguma medida, do modo de pensar
caro à “família intelectual” em tela neste artigo é Arlei Damo.
Tanto em sua dissertação de mestrado quanto em sua tese de
doutorado (Damo, 1998, 2005), o autor menciona a existên­ 123
cia de um “estilo futebolístico brasileiro” que, para além de
suas aparentes e/ou possíveis funções ideológicas, açambar­
caria elementos materiais e simbólicos manifestos sob a forma
de habitus constituídos a partir do encontro conflituoso entre,
de um lado, o nacionalismo e, de outro, o regionalismo.
Para Damo (2005, p. 335), “A originalidade do estilo
brasileiro, habitus constituído a partir do arranjo entre
a cultura futebolística e as culturas locais, só é eficaz na
medida em que estão dadas as condições sociais para que
ele seja aprendido e aperfeiçoado”. Nesse particular, o
“estilo futebolístico gaúcho” se constituiria por referência e
oposição ao estilo brasileiro de “futebol-arte”, ao passo que
este último se constituiria também por referência e opo­
sição ao “futebol-força” europeu. A materialização desses
estilos ou sua corporificação se deve, para Damo, ao fato de
as condições sociais (no caso de Toledo, as representações)
estarem postas e serem acionadas de modo consciente ou

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A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

inconsciente pelos atores. Esse tipo de “solução teórica”


antevista faz toda diferença em seu argumento, tal como
revela o excerto a seguir:

O público aplaude e vaia determinados gestos, individuais


e coletivos e, assim sendo, marca sua disposição estética
e, acredita-se, isso interfira nas ações dos jogadores que,
por certo, preferirão, sempre que possível, os aplausos
e, portanto, a realização de movimentos apreciados pelo
público. Que isso não seja um processo mecânico é mais
fácil de demonstrar teoricamente do que através de
elementos etnográficos. Como disse anteriormente, os
dados já haviam sido lançados quando estava em campo,
razão pela qual decidi seguir em frente, indagando, aqui
e ali, pelo tal de futebol-arte, um pouco como Quesalid, o
cético aprendiz de feiticeiro que, no intuito de desmistificar
a magia acaba mistificado por ela – Quesalid é personagem
124 de Franz Boas, mas ficou famoso através de Lévi-Strauss
(Damo, 2005, p. 325).

Há que se indagar, nesse sentido, a inexistência de uma


crítica à dimensão da doxa, por exemplo ao problemati­
zar – como o faz Bourdieu (1989), um autor importante
em seu argumento – porque o mundo social se constrói de
uma determinada forma, e não de outra qualquer. Em vez
disso, Damo (1998, 2005) substitui essa preocupação com a
maneira pela qual se naturaliza a identidade nacional atra­
vés do futebol pela temática das identidades regionais, no
sentido de apontar que estas talvez sejam mais decisivas e
fortes para o entendimento do “fascínio coletivo” que o fute­
bol alcançou no país.
Para levar adiante esse escopo, Damo (1998, p. 192)
sugere certa vulnerabilidade da “identidade futebolística
brasileira”, de modo a garantir um espaço sobre o qual se
assentariam as diversidades regionais, étnicas e raciais. Desse

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Juliano de Souza

modo, o que estaria em jogo em sua análise não se resume


somente ao desvelamento de um futebol unitário marcado
por um “único estilo”, seja nacional ou regional, mas no tra­
tamento daquilo que veio a ser denominado pelo autor na
condição de “futebóis”, ou seja, práticas futebolísticas endos­
sadas por inúmeras significações e estilos que se devem tanto
às técnicas corporais em voga quanto ao ethos de cada uma
das comunidades a que dizem respeito (Damo, 2005).
No lastro dessa argumentação, o autor ainda sugere
que o futebol se divide em quatro matrizes: a bricolada, a
espetacularizada, a escolar e a comunitária. Aqui importa
se voltar por um instante à matriz bricolada, até porque,
no intuito de compreendê-la, Damo (2005) parece atri­
buir um tratamento positivo à dimensão da “rua”, origi­
nalmente vista no arcabouço teórico de DaMatta como o
reino da impessoalidade, da competição e, portanto, da
“negatividade da vida”. Ao etnografar os meninos e meni­
nas praticantes dessa variante de futebol em um bairro de 125
classe média baixa da cidade de Porto Alegre, Damo tece as
seguintes considerações:

O prazer estético dado pela ressemantização dos sacos de


lixo, da bola murcha, das traves com sacos de folha secas,
pelo jogo jogado no paralelepípedo, em meio aos carros
estacionados, sem o calçado adequado, enfim, todos esses
ingredientes de bricolagem característicos das peladas
da Leão XIII poderiam ser tomados como signos que
denotam um estilo de vida e mesmo uma representação de
mundo. Todos os elementos referidos poderiam também
ser tomados como indicativos das carências brasileiras,
da falta de equipamentos adequados ao lazer, aos direitos
das crianças e adolescentes, mas eles não são apenas isso.
São, em certo sentido, intencionalmente engendrados,
incorporados ao jogo e até mesmo imprescindíveis a ele,
na medida em que constituem-no como verossímil em

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A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

relação às representações generalizadas de que é assim


que se aprende a jogar futebol “à brasileira” ou, como é
definido entre nós, é assim que se faz o futebol-arte. A
arte residiria, precisamente, na capacidade de contornar
o incontornável, no jogo de cintura, no bricolar com o
corpo, com a moralidade, a estética e assim por diante. O
futebol seria uma extensão ou quem sabe a concretização
desse imaginário. O que não se deve fazer, no entanto,
é romantizar estes estilos, esquecendo-se que nele há
conflitos, fluxos de poder e violências como em outros
contextos (Damo, 2005, p. 147).

Os efeitos extracientíficos desse tipo de observação, con­


forme já assinalei em minha tese (Souza, 2014), são questio­
náveis e alvo potencial de indagação para qualquer adepto
de uma perspectiva teórica mais crítica. No entanto, o que
interessa sublinhar desse relato é que a matriz futebolística
126 aludida no texto – matriz na qual prevalece a informalidade
e o improviso –, vai ao encontro daqueles atributos estéticos
reconhecidos no mundo social como inerentes ao “estilo fute­
bolístico brasileiro”, ou seja, ao denominado “futebol-arte”. A
primeira conclusão que se extrai, portanto, é que esse “estilo”,
além de existir objetivamente, permearia uma prática a prin­
cípio “desinteressada” do futebol na esfera do lazer.
A segunda conclusão passível de ser visualizada nesse
relato de Damo é que a “arte” atribuída aos brasileiros de
“contornarem o incontornável” seja com “a bola nos pés”
ou então em seus “cotidianos intensos e dramáticos” a par­
tir de um “jeitinho tendencialmente próprio”, também é
acionada para praticar o futebol bricolado. A meu ver, essa
leitura acaba estabelecendo uma relação de “causa-efeito”
entre uma suposta conduta ética e uma suposta conduta
estética do brasileiro na prática do futebol. Ao denotar esse
tipo de conexão, a proposta se reconcilia com uma tradição
intelectual que faz da busca pelas singularidades brasileiras

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

a “pedra angular” de suas reflexões e, no caso do futebol,


reivindica, em primeiro lugar, uma explicação para o sig­
nificado social dessa prática a partir dos “estilos de jogo” e,
em segundo lugar, uma leitura com base na crença desse
lócus como espaço para vivência, ainda que provisória, da
democracia. Observe-se como a tradição damattiana ganha
contornos reestilizados na argumentação de Damo:

O Gre-Nal, por exemplo, é uma “aula de democracia”, sem


dúvidas. Quando o Inter vence, vencem todos os colorados
e, vale recordar, há entre eles pessoas de todas as classes
sociais. Ou será que quando o Grêmio ganha apenas a elite
comemora? Não, a vitória é de todos os gremistas, inclusive
dos negros que a ele pertencem. O que faz do Gre-Nal uma
“aula de democracia”, e diga-se de passagem, absorvente,
são os cânticos, xingamentos e outras tantas manifestações
que permitem expressar, coletivamente, determinados
sentimentos acerca do “outro”. Talvez porque não existam 127
outros fóruns para tal, ou porque tais sentimentos tenham
de ser expressos de uma maneira tal que só o futebol
permite, à medida que faz a “seriedade” passar-se por
“brincadeira” (Damo, 1998, pp. 230-231).

Por não romper radicalmente com a interpretação


damattiana, Damo é levado a analisar aquilo que se associa
muito mais ao domínio de uma violência simbólica no fute­
bol gaúcho e brasileiro a partir de uma lente antropológica
aparentemente “positiva” e “neutra”, atenta muito mais ao
discurso politicamente correto da alteridade e da diversi­
dade do que ao desvelamento crítico dessas relações. Além
disso, ao considerar que o futebol, ainda que não à maneira
originalmente prevista por DaMatta, se constitui em uma
“aula de democracia”, Damo acaba por circunscrever essa
prática no âmago dos chamados ritos de inversão, onde o
mundo pode então ser celebrado de “cabeça para baixo”.

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

A dimensão de consenso outra vez prevalece, e o futebol


passa a ser visto como espaço que fornece uma liberdade de
expressão e de dizer coletivamente o que os indivíduos pen­
sam a respeito dos outros, o que se assemelha em muito com
a totalização da experiência da democracia em DaMatta.
Mas, até aí, nenhum problema, considerando as múltiplas e
legítimas possibilidades de explicar o mundo social.
Do ponto de vista da sociologia do conhecimento, o ele­
mento complicador e motivo de uma análise crítica mais
circunstanciada é que essas ideias partilhadas pela linhagem
culturalista informam a realidade, e não apenas a capturam
ou retratam. Aliás, o efeito subversivo do poder simbólico
dessa linhagem em trazer à existência a coisa nomeada por
meio de ritos de instituição (Bourdieu, 1998) é ainda maxi­
mizado pelo fato dessas ideias “caírem” no campo dos espe­
cialistas do marketing, legitimando a partir do mercado essa
ou qualquer outra visão hegemônica de mundo. Uma pro­
128 paganda da Mastercard referente à Copa de 2002, veiculada
na edição especial da revista Veja de julho daquele ano ilus­
tra bem o que aqui estou argumentando: “Molecagem em
58: uma estrela; ginga em 62: duas estrelas; futebol-arte em
70: três estrelas; raça em 94: quatro estrelas; ter uma seleção
cinco estrelas: não tem preço”1.
É imperativo ressaltar que essas ideias não são um pre­
sente dos céus. Antes, foram originalmente tecidas pelos
intelectuais e, por via do mercado e do trabalho dos espe­
cialistas culturais, se espalharam para a sociedade como um
todo. A noção de “futebol-arte”, apanágio e sustentáculo
da identidade brasileira, é um exemplo elucidativo disso.
Pensada pioneiramente por Freyre, acionada em Mário
Filho, sistematizada em DaMatta e empregada como cate­
goria analítica por vários dos estudiosos atuais do futebol,
essa noção ganhou o “coração” dos brasileiros através de

1 
Propaganda da Mastercard na edição n. 1578a de 2002 da revista Veja, p. 37.

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

sua exposição constante no campo midiático e nas demais


esferas de produção e circulação cultural no país.
No cenário futebolístico recente, o suporte palpável e
tangível desse investimento que consiste em descobrir os
genes do “futebol-arte” nacional encontra-se em Neymar,
revelado pelo Santos Futebol Clube e jogador da seleção
brasileira. Em outros tempos não tão remotos, os “suportes”
desses signos foram jogadores como Robinho, Ronaldinho
Gaúcho, Ronaldo, Romário, Zico e, de modo um tanto para­
digmático, Sócrates, como é possível notar na propaganda
da Coca-Cola divulgada na revista Veja em maio de 1993:

Calcanhar (Do Bras. dar de calcanhar) s. m. 1. Lance


artístico do futebol, em que o jogador que tem a bola
entre os pés surpreende seu adversário passando-a,
inesperadamente, para um companheiro de equipe,
com um toque sutil de calcanhar. Esta jogada de classe,
que pipoca a torto e a direito nos campos de futebol no 129
Brasil, foi aperfeiçoada pelo jogador Sócrates. O “doutor
Sócrates”, como era conhecido, lançava a bola com
ambos os calcanhares, confundindo seus marcadores que
ficavam sem eira nem beira, zonzinhos da silva. Daí surgiu,
provavelmente, a expressão “não chega ao nosso calcanhar”,
referente aos jogadores internacionais que não têm a
malícia, a criatividade e o talento dos brasileiros. 2. Parte
posterior do pé que passou a ser mais valorizada depois da
invenção do lance (1). A Coca-Cola, patrocinadora oficial
da seleção brasileira juvenil, júnior, feminina e profissional,
acredita e investe no futebol arte, o único no mundo capaz de
criar jogadas tão geniais como o calcanhar2.

É insofismável a força desse tipo de interpretação que per­


corre o campo acadêmico, atravessa os campos de produção

2 
Propaganda da Coca-Cola na edição n. 1289 de 2002 da revista Veja, p. 60. Grifo meu.

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A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

dos bens culturais, chega ao senso comum e completa seu ciclo


de rotatividade sendo devolvida ao campo acadêmico através
de pesquisas atentas em desvelar, por um lado, as motivações
“conscientes” dos atores e, por outro, em fazer uso reificado das
fontes sem um exame crítico e rigoroso. Completado o ciclo,
uma nova sequência é posta em movimento e, com isso, o con­
junto de ideias vai sendo cotidianamente atualizado no sentido
de garantir uma “utilidade social” para o futebol, qual seja a de
veicular e reiterar tão eficazmente a identidade nacional.
Nessa trama, vai sendo produzido e cristalizado um sen­
timento de unidade nacional convergente a certos interes­
ses, ainda que esse agenciamento não seja planejado. Entra
década, sai década, e essa leitura culturalista do futebol, ao
mobilizar conjuntamente, num sentido de complementa­
ridade, o esforço acadêmico, a produção dos especialistas
culturais e o próprio senso comum – que aciona de forma
pré-reflexiva ou reflexiva esses códigos –, termina por consti­
130 tuir as próprias condições sociais necessárias a seu prestígio,
visibilidade e, acima de tudo, rotinização. Em outras pala­
vras, o que ocorre com essa linhagem, em uma proporção
talvez maior do que nas outras que estudei alhures (Souza,
2014), é um casamento bem-sucedido, e por isso pouco pro­
blematizado, entre teoria e senso comum.
Nesses termos, não seria uma suposta natureza em si
do futebol ou o uso calculista que políticos ou elites fize­
ram dele que teriam a predisposição de transformá-lo num
produto de caráter ideológico, conforme analisaram, por
exemplo, os adeptos da linhagem marxista da sociologia do
futebol (Souza e Marchi Júnior, 2017). Em vez disso, a tenta­
tiva bem-sucedida de superestimar a dimensão de consenso
na sociedade em detrimento da dimensão de conflito, deve­
-se, dentre outras coisas, e conforme procurei aqui demons­
trar, à ênfase analítica conferida aos aspectos nacionalistas
e aos elos identitários que supostamente se reinventariam e
se atualizariam no país pelo futebol.

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


Juliano de Souza

Considerações finais
A contribuição da linhagem culturalista da sociologia
do futebol no projeto de construção histórica da identidade
nacional é insofismável. Ao concorrer para que o futebol se
conformasse aos ideais de nação vislumbrados pelos princi­
pais intérpretes do país, essas pesquisas, de forma natura­
lizada, constituíram um movimento consensual de preser­
vação e atualização de um “mundo social invertido”, com
efeitos decisivos no obscurecimento dos “fios” que estrutu­
ram as dinâmicas sociais em uma sociedade periférica como
a brasileira; uma sociedade que, assim como qualquer outra,
fez uso social de passatempos, jogos e, no advento da moder­
nidade, dos esportes.
Assim sendo, se esse mundo “suspenso”, “liminar”
e “extraordinário” que o futebol institui se levanta de
tempo em tempo, ou de semana em semana no Brasil,
não é de estranhar que seja habitado por “mocinhos” e
“bandidos”, por “heróis” e “malandros”, e que, além disso, 131
por via de seus porta-vozes da academia ou da mídia, ape­
teça-lhe ser reconhecido por sua “ginga”, sua “arte” e seu
estilo “genuinamente” nacional. Em certa medida, e guar­
dadas as particularidades ou mesmo exceções à regra, os
estudos culturalistas aqui mencionados, ao materializa­
rem uma série de análises através de um uso crítico ou
acrítico de categorias como “futebol dionisíaco”, “fute­
bol-arte”, “futebol gingado”, “futebol moleque”, “pátria
de chuteiras”, “país do futebol”, “estilo nacional”, “paixão
nacional”, “jeitinho brasileiro” etc., não apenas concorre­
ram para restituir cientificamente as dinâmicas estrutu­
rantes do contexto de ação futebolístico, como pensaram
seus proponentes, mas também contribuíram para a pre­
servação das tradições e raízes identitárias dessa prática
esportiva no Brasil (Souza, 2014).
Por fim, ressalto que não foi possível explorar todas
as particularidades analíticas abertas por essa linhagem,

Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


A linhagem culturalista da sociologia do futebol brasileiro

embora o mais importante para meu argumento tenha sido


exposto, a saber, o fato de que determinados autores, por
conta das conclusões mais generalistas de suas pesquisas e
das categorias analíticas que evocaram em seus empreendi­
mentos, são os atuais herdeiros da linhagem culturalista da
sociologia do futebol em uma lógica de trabalho intelectual
que mobiliza, por um lado, uma série de aspectos identitá­
rios e emocionais e, por outro, mantêm vivas as ideias de
Freyre, Mário Filho e DaMatta. Levados a um nível maior de
radicalidade, é possível afirmar que certos estudos contri­
buem para que seja preservada – por intermédio da influên­
cia que o campo acadêmico exerce sobre o debate público
nacional – a própria ideia de nation-building brasileira nas
relações que cabem ao futebol nesse processo.

Juliano de Souza
é professor associado do Programa de Pós-Graduação em
132 Educação Física da Universidade Estadual de Maringá e da
Universidade Estadual de Londrina (PPGEF-UEM/UEL).

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Lua Nova, São Paulo, 103: 103-134, 2018


135
O CONCEITO DE ESFERA PÚBLICA JURÍDICA E A
AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE COTAS RACIAIS NO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL1
Ricardo Juozepavicius Gonçalves
é doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: <ricardojg@usp.br>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-135166/103

Introdução
A partir do advento da Constituição Federal de 1988, ini­
ciou-se no Brasil um período de aprofundamento democrático
mediante o aumento de participação social em diversas insti­
tuições. O Judiciário, apesar de ser considerado um espaço
reservado aos especialistas e técnicos em direito, também foi
alvo desse movimento2. Novas modalidades de participação
social foram praticadas neste período para enfrentar as limita­
ções das formas jurídicas diante de questões sociais complexas
e do tradicional déficit democrático dessa instituição.

1 
Este artigo é resultado parcial dos temas trabalhados na dissertação de mestrado
intitulada O conceito de esfera pública jurídica entre Jürgen Habermas e Axel Honneth
(Gonçalves, 2017).
2 
Conforme José Rodrigo Rodriguez: “com o processo de redemocratização do país,
seguiu-se um intenso processo de reivindicação de direitos pela sociedade perante
o Poder Judiciário com o fim de tornar efetivas as normas constitucionais. A assim
denominada ‘constituição cidadã’, que nasceu de um intenso processo de debate
na sociedade civil com ampla participação popular em sua confecção, tornou-se
referência necessária para a luta dos diversos movimentos sociais” (2013a, p. 104).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

Uma das formas de conectar o Judiciário com a


sociedade tem sido a utilização do instrumento jurídico
das audiências públicas no âmbito do Supremo Tribunal
Federal (STF). Nestes procedimentos, representantes
da sociedade civil envolvidos nas demandas por direitos
podem sustentar seus argumentos e posicionamentos sobre
o caso discutido.
Analisaremos este recente espaço de deliberação no
STF, observando suas características e potenciais democrá­
ticos para possibilitar uma maior conexão entre a institui­
ção e os pleitos da sociedade através das regras do Estado
Democrático de Direito. Conduzimos nossas observações
para a experiência da audiência pública que ocorreu no
âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 186, sobre políticas afirmativas de
ingresso no ensino superior realizada em 2010, prática que
foi julgada constitucional pela Corte na oportunidade.
136 Para tanto, analisamos brevemente a argumentação uti­
lizada na audiência pública pelos representantes dos movi­
mentos sociais e da sociedade civil que tiveram espaço e voz
na Corte mais alta do Judiciário, levando suas experiências e
este pleito dos movimentos sociais até lá, visando influenciar
e subsidiar a decisão final.
A ADPF nº 186 é um caso exemplar para observarmos
o funcionamento da audiência pública judicial, por tratar
de um tema de grande repercussão e participação de diver­
sos atores, dentre eles importantes movimentos sociais, os
quais discutiram questões estruturantes da sociedade brasi­
leira que levaram à tematização de experiências de desres­
peito, argumentos de reconhecimento, de redistribuição3 e

3 
Reconhecimento e redistribuição constituem tema polêmico no âmbito da teoria
crítica, principalmente com o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth (2003).
Por meio deste debate também é possível traçar outras possibilidades de estudos
sobre os diferentes tipos de pleitos sociais e de argumentações e suas recepções no
âmbito de uma audiência pública jurisdicional.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

à discussão de que as desigualdades sociais estariam conec­


tadas com a existência de um racismo estrutural no Brasil.
Para compreender o espaço e a argumentação que lá ocorre,
delimitamos na teoria social de Habermas o conceito de esfera
pública jurídica capaz de explicar o significado e a dinâmica
dessa participação social numa instituição jurídica aberta à tal
prática. Esse conceito possui potencial para compreender um
dos momentos em que um pleito social é capaz de invadir o
Judiciário, bem como o potencial influenciador desses argumen­
tos em fortalecer a ligação entre as instituições e a sociedade.
Contudo, quais são as principais características desta ligação?
Em que medida o procedimento é realmente democrático? Os
argumentos e pleitos sociais tematizados nas audiências públicas
são capazes de influenciar as decisões da Corte?
O diagnóstico que permeia este trabalho expõe que nas
últimas duas décadas houve uma mudança de consciência
sobre o potencial do direito e do direcionamento das lutas
sociais pela efetivação de seus pleitos4 ao buscar igualdade 137
pelo reconhecimento das diferenças de indivíduos e de
grupos, que é justamente o fator que os coloca em posição
subalterna. Conforme afirma Boaventura de Sousa Santos:

Longe de se limitarem a chorar na inércia, as vítimas deste


crescente processo de diferenciação e exclusão cada vez
mais reclamam, individual e coletivamente, [para] serem
ouvidas e organizam-se para resistir. Esta consciência de
direitos, por sua vez, é uma consciência complexa, por
um lado, compreende tanto o direito à igualdade quanto
o direito à diferença (étnica, cultural, de gênero, de
orientação sexual, entre outras); por outro lado, reivindica o
reconhecimento não só de direitos individuais, mas também

4 
Além de permear a obra de Boaventura de Sousa Santos (2003, 2011), diag­
nóstico semelhante também pode ser encontrado em Leonardo Avritzer e Sérgio
Costa (2004, pp. 708-710), neste último (Costa, 1994, pp. 42-48), em José Rodrigo
Rodriguez (2006, pp. 156-174) e em Rúrion Melo (2015).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

de direitos coletivos (dos camponeses sem terra, dos


povos indígenas, dos afrodescendentes, das comunidades
quilombolas etc.). É essa nova consciência de direitos e a sua
complexidade que torna o atual momento sócio-jurídico tão
estimulante quanto exigente (Santos, 2011, p. 9).

Além dessa mudança de consciência sobre o potencial


do direito, esses atores sociais também passam gradativa­
mente a observar o direito como uma opção efetiva de cap­
tação e de resposta às suas lutas, utilizando suas funções,
símbolos e dando novos sentidos a essas lutas conduzidas em
arenas institucionais:

É possível utilizar instrumentos hegemônicos para fins não


hegemônicos sempre e quando a ambiguidade conceptual
que é própria de tais instrumentos seja mobilizada por
grupos sociais para dar credibilidade a concepções
138 alternativas que aproveitem as brechas e as contradições do
sistema jurídico e judiciário (Santos, 2011, p. 22).

Com a elaboração da construção teórica, apresentamos


uma interpretação de que tanto as lutas de grupos sociais
para inserir seus pleitos no Judiciário quanto o papel das
audiências públicas como captadoras desses pleitos consis­
tem em uma possibilidade de aprofundar a conexão entre
centros decisórios e problemas sociais complexos. Apesar de
toda a construção teórica, o centro deste trabalho se encon­
tra nas demandas sociais e nos atores que tematizam suas
experiências de injustiça e que buscam, da forma que têm
alcance, conectar as instituições decisórias com a realidade
social, buscando uma vida mais justa e igualitária.

O conceito de esfera pública jurídica


Na teoria social habermasiana, o conceito de esfera
pública se destaca. Desde que começa a tratar do tema,

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

Habermas coloca nele um viés político em seus escritos, ela­


borando sua teoria social da ação comunicativa nos anos
1980, tornando-o categoria central de sua teoria política da
democracia deliberativa na década seguinte.
Em uma perspectiva inicial, a obra Mudança estrutural da
esfera pública estabelece o que é público em oposição ao que
é privado, tomando o primeiro como um espaço para o uso
público da razão, baseado na igualdade entre os indivíduos,
ampliando as questões discutidas e possibilitando a partici­
pação social na tematização de novas questões por meio de
um processo racional de discussão (Lubenow, 2012, p. 16).
A esfera pública pode ser compreendida como uma
estrutura de comunicação que permite elaborar temas,
questões e problemas politicamente relevantes emergentes
da esfera privada e informal da sociedade civil que não pos­
suiriam intervenções “reificantes”. O conceito é apresentado
como um conjunto de fluxos comunicativos de horizontes
139
abertos, permeáveis e deslocáveis, adequados à disseminação
de conteúdos, opiniões e tomadas de posição entre públicos
amplos e dispersos.
Na esfera pública, os fluxos comunicativos são filtrados
e sintetizados a ponto de se condensar em opiniões públicas,
validando uma tomada de decisões que atinge toda a cole­
tividade. É o espaço onde as pessoas são capazes de discutir
fundamentos da vida pública e social, permitindo à socie­
dade influenciar os centros decisórios.
A categoria da esfera pública passou por diversas mudan­
ças teóricas desde sua ideia inicial, dos anos 1960, e a produção
habermasiana dos anos 1990. O momento da transição e confi­
guração teórica que nos embasa se encontra no prefácio à edi­
ção de Mudança estrutural da esfera pública de 1990. Habermas
reformula o conceito, reposicionando-o em um contexto teó­
rico mais amplo que guie sua teoria política de democracia
deliberativa, em que o direito terá papel fundamental.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

Em Facticidade e validade, Habermas toma a ideia do


Estado Democrático de Direito como o alvo de suas críti­
cas, dado que as instituições jurídico-democráticas possuem
uma posição central na caracterização das possibilidades e
bloqueios ao aproveitamento dos potenciais comunicativos
liberados na modernidade. O modelo crítico desta obra pos­
sui uma nova compreensão da emancipação social, pautada
nas condições necessárias a um entendimento livre de coer­
ções e um núcleo considerado normativo centrado nas pre­
tensões radical-democráticas de auto-organização de uma
comunidade jurídica, a qual expressa a expectativa de uma
regulação autônoma da vida social por meio de procedi­
mentos deliberativo-decisórios que podem ser considerados
radicalmente inclusivos (Silva, 2011, p. 316).
A distinção dual da sociedade – entre sistema e mundo
da vida – também é fundamental na compreensão da con­
cepção habermasiana mais recente de esfera pública. O sis­
140 tema corresponde ao domínio da vida social em que ocorre
a “reprodução material da sociedade”, que exige atividades
racionais estratégicas e instrumentais pautadas na coordena­
ção dos indivíduos para atingir determinada finalidade calcu­
lada. Já o mundo da vida é o espaço informal orientado pelas
atividades racionais comunicativas, ou seja, o âmbito da vida
social no qual se desenvolvem formas de interação baseadas
no entendimento comunicativo, que se reproduz baseado em
significados universais atribuídos previamente aos falantes.
O modelo das eclusas, diferentemente do modelo
de sitiamento5 presente em Teoria da ação comunicativa
(Habermas, 1984) que norteia as produções anteriores
aos anos 1990, revela a possibilidade de uma abertura nos
centros sistêmicos relacionada e permitida por uma esfera
pública capaz de captar influxos sociais. Trata-se de uma

5 
Neste modelo, o autor considera que a esfera pública pode apenas “sitiar” o
sistema, objetivando conter seus avanços, possuindo uma função predominante­
mente passiva.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

esfera pública sensível e permeável capaz de infiltrar, nos sis­


temas político, jurídico e administrativo, os conflitos existen­
tes na vida social (Repa, 2008, p. 69). Este modelo se ancora
em um conceito amplo de democracia procedimental e
deliberativa intimamente conectado aos processos iniciados
pela formação da opinião e da vontade nas esferas públicas
informais, que acaba infiltrando, de modo procedimental,
as instâncias formais de deliberação e decisão.
Os processos jurídico-democráticos alimentam a
expectativa de transformar o poder comunicativo, gerado
nas bases sociais do mundo da vida em imperativos efica­
zes frente não apenas a seus destinatários, como também
aos sistemas econômico e político. Evidenciam também a
possibilidade de inverter o fluxo de poder na direção não
habitual da periferia ao centro sistêmico, por meio das dife­
rentes estruturas comunicativas presentes na sociedade civil
orientadas aos centros decisórios:
141
Os fluxos comunicativos que são gerados nas esferas
públicas informais da sociedade civil buscam formar uma
opinião pública a respeito de algum problema ou polêmica
levantada ainda no nível da periferia. Graças às eclusas
dos procedimentos próprios à democracia e ao Estado
de direito, aquela opinião pública pode tentar lutar por
influência política e buscar interferir no comportamento
eleitoral das pessoas, na formação da vontade dos
complexos parlamentares, governos e tribunais. Assim,
a ligação do direito com o poder político permite que a
formação de um direito legítimo abra o núcleo sistêmico do
poder administrativo aos fluxos comunicativos advindos da
periferia (Neves e Lubenow, 2008, p. 254).

Com a iniciativa de atores que os lançam em fóruns


públicos informais, os fluxos comunicativos podem ser devi­
damente elaborados, condensados na forma de temas e

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

posições firmadas a seu respeito e dramatizados como ques­


tões de relevância pública, tendo a chance de influenciar os
centros decisórios e transformar a agenda oficial de proble­
mas (Silva, 2011, p. 322).
As contribuições da esfera pública se chocam com o
pano de fundo de saberes especializados pressupostos no
funcionamento habitual das instituições jurídico-decisórias,
saberes estes que caracterizam as questões sociais levadas a
tais contribuições segundo formas paradigmáticas de sua
interpretação. Contudo, uma esfera pública jurídica que
não limita a argumentação em torno de um tema, pode não
obter um enquadramento dogmático já padronizado, ao
menos acerca do conteúdo a ser tematizado.
Diante da reconstrução teórica habermasiana apresen­
tada, delimitamos um conceito de esfera pública jurídica
no interior da teoria dual de sociedade de Habermas, cuja
característica central é ser um espaço propício à formação
142 da opinião e da vontade de um público, porém no contexto
de discussões sobre direitos dentro das instituições jurídicas.
A esfera pública jurídica se localiza na fronteira entre
sistema e mundo da vida, ou seja, na “periferia sistêmica”,
área de encontro entre os dois campos do social, conside­
rados por Habermas como desacoplados nas sociedades
modernas, embora tais conexões se revistam de um caráter
procedimental próprio e necessitem inevitavelmente de ins­
titucionalização para que sejam jurídicas:

Tão logo tratamos de um problema como problema


jurídico, trazemos imediatamente à baila um conceito de
direito moderno que nos obriga – ao menos por razões
conceituais – a operar com a arquitetônica do Estado de
direito, ela mesma muito rica em pressupostos. Isso também
traz consequências para o tratamento do problema da
igualação jurídica e do igual reconhecimento de grupos
culturalmente definidos, ou seja, de coletividades que se

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

distinguem de outras – seja pela tradição, forma de vida,


proveniência étnica etc. (Habermas, 2002, p. 243).

A esfera pública jurídica pode ser entendida como a


fronteira entre as instituições jurídicas e a sociedade. Este
espaço possui maior sensibilidade aos novos e urgentes
problemas sociais, podendo captá-los e identificá-los antes
das instituições centrais. Uma das formas desta inserção de
energia social nas instituições formais se daria mediante
pleitos de grupos sociais por direitos, que encontrariam
neste espaço um canal para influenciar as decisões e alterar
a realidade social conforme suas demandas.
Essa ideia discursiva de democracia que acompanha
o conceito se baseia na mobilização política e no aprovei­
tamento da força produtiva da comunicação, sendo que o
esclarecimento de questões políticas, no que diz respeito
ao seu cerne moral, depende da institucionalização de uma
prática de argumentação pública: 143

O direito é aplicado uma vez mais sobre si mesmo: ele


ainda precisa assegurar o modo discursivo segundo
o qual os programas jurídicos devem ser criados e
aplicados sob as condições da argumentação. Isso implica
a institucionalização de procedimentos jurídicos que
garantam um cumprimento aproximado dos exigentes
pressupostos da comunicação nas negociações equitativas e
nas argumentações sem coerção (Habermas, 2014, p. 76).

Em Mudança estrutural da esfera pública, esta conexão


entre sociedade e Estado se referia ao uso da razão das
pessoas privadas reunidas em um espaço público; já nas
produções mais recentes de Habermas, repousa na “institu­
cionalização dos processos comunicativos do mundo da vida
nas estruturas jurídicas do Estado democrático de direito”
(Voirol, 2008, p. 41).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

Segundo esta concepção, o funcionamento do sistema


administrativo possui autonomia em relação aos processos
comunicativos; apesar disso, seu funcionamento também
deve ser submetido às redefinições propostas por tais pro­
cessos manifestados no mundo da vida. Assim, uma esfera
pública jurídica existente, ativa e aberta, pode pressionar pro­
cessos jurídico-democráticos para afastar ou frear a ação colo­
nizadora dos sistemas político, econômico e administrativo:

Basta tornar plausível que os atores da sociedade civil,


até agora negligenciados, podem assumir um papel
surpreendentemente ativo e pleno de consequências,
quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito,
apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca
capacidade de ação e das desvantagens estruturais, eles
têm a chance de inverter a direção do fluxo convencional
da comunicação na esfera pública e no sistema político,
144 transformando destarte o modo de solucionar problemas de
todo o sistema político (Habermas, 1997, v. 2, p. 115).

O direito seria capaz de influenciar os subsistemas


colonizadores, conforme Habermas: “O peso e abrangên­
cia do aparelho do Estado dependem da medida em que a
sociedade se serve do medium do direito para influir cons­
cientemente em seus processos de reprodução” (1997, v. 1,
p. 171). O modo como a sociedade utiliza o medium do
direito está diretamente conectado à existência, abrangên­
cia e amplitude de uma esfera pública jurídica, ou seja, de
um Judiciário “poroso”, que permita tematizações dentro de
uma ideia democrática procedimental:

O paradigma jurídico procedimental procura proteger,


sobretudo, as condições do procedimento democrático. Elas
adquirem um estatuto que permite analisar, sob outra luz,
os diferentes tipos de conflito. Os lugares antes ocupados

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

pelo participante privado do mercado e pelo cliente das


burocracias do Estado de bem-estar social são assumidos por
cidadãos que participam de discursos públicos, articulando
e fazendo valer interesses feridos, e colaboram na formação
de critérios para o tratamento diferenciado de casos
diferentes. […] O fardo desta legitimação suplementar
poderia ser assumido pela obrigação de apresentar
justificações perante um fórum judiciário crítico. Isso
seria possível através da institucionalização de uma esfera
pública jurídica capaz de ultrapassar a atual cultura de
especialistas e suficientemente sensível para transformar as
decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas
(Habermas, 1997, v. 2, pp. 183-184).

A sociedade civil pode emanar opiniões públicas pró­


prias capazes de influenciar, por exemplo, o Legislativo,
obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder
oficial. Porém, apesar dos agrupamentos da sociedade civil 145
possuírem maior sensibilidade para os problemas sociais,
seus pleitos e seus impulsos por mudanças são, normal­
mente, “muito fracos para despertar a curto prazo processos
de aprendizagem no sistema político ou para reorientar pro­
cessos de decisão” (Habermas, 1997, v. 2, p. 107). Portanto,
os grupos sociais e os sujeitos necessitam de uma estrutura
mediadora entre seus pleitos e as instituições, amplifican­
do-os e traduzindo-os para que infiltrem os centros decisó­
rios. Esta seria a função e o potencial emancipatório de uma
esfera pública jurídica em Habermas.
Porém, o direito, na teoria de Habermas, possui uma
ambiguidade inerente (Silva, 2013). Apesar de possuir
potencial transformador das relações entre sistema e mundo
da vida, também atua como colonizador:

De um lado, ele é a voz da administração e do sistema, em


que norma e sanção são inseparáveis uma da outra, ou

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

seja, em que o direito aparece como coerção, ainda que


coerção legítima. De outro lado, o direito é expressão,
simultaneamente, de um processo de formação coletiva
da opinião e da vontade, sem o qual seria apenas um
estabilizador de expectativas de comportamento e não a
expressão da autocompreensão e da autodeterminação de
uma comunidade de pessoas de direito que ele também é
(Nobre, 2008, p. 27).

A reformulação teórica do autor, no que tange à nova dinâ­


mica de comunicação entre sistema e mundo da vida, recebe
inúmeros questionamentos sobre a idealização de seu modelo
de esfera pública, em particular a respeito de um de seus pres­
supostos, o da possibilidade equânime de todas e todos parti­
ciparem de uma deliberação coletiva. A simples observação de
uma situação comunicativa na vida social demonstra:

146 a desigual participação em uma deliberação, o desequilíbrio na


expressão dos pontos de vista, os processos de imposição das
opiniões, a recusa do acesso à esfera de discussão, a dominação
linguística ou ainda a posse desigual dos recursos simbólicos
indispensáveis para a argumentação pública. Tais constatações
invalidariam, segundo os críticos, o modelo de esfera pública.
Habermas responde a esses argumentos dizendo que o
princípio de publicidade seria uma ficção política e que,
mesmo se restam dúvidas quanto à sua realização efetiva, o
princípio orienta as práticas sociais e inspira as reivindicações
políticas e, desse modo, moldou e continua a moldar a
instituição da esfera pública (Voirol, 2008, p. 43).

Neste sentido, as audiências públicas podem ser con­


sideradas como uma associação formadora da opinião, em
torno da qual pode se cristalizar uma esfera pública jurídica.
Essa associação se forma no interior do Estado democrático
de direito, e deve garantir a participação e argumentação

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

de acordo com seus pressupostos, evitando ao máximo as


desigualdades de participação sob pena de não cumprir seu
fundamento de existência.
A esfera pública jurídica seria um espaço de conexão
direta das instituições jurídicas com a sociedade civil no
centro sistêmico, uma área de encontro em que ocorrem
trocas entre o sistema e o mundo da vida – considerados
por Habermas como tradicionalmente desacoplados. Essas
trocas ocorreriam pelas lutas sociais que visam inserir seus
pleitos no campo do direito.

As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal


A realização da primeira audiência pública no STF ocor­
reu em 20 de abril de 2007. Pela primeira vez em mais de
180 anos de história, a Corte mais alta do Judiciário brasi­
leiro abriu suas portas e seus microfones e convidou a socie­
dade civil para o debate, reunindo mais de vinte especialistas
e representantes de setores sociais interessados na consti­ 147
tucionalidade de pesquisas científicas com células-tronco
embrionárias6 (Marona e Rocha, 2014, pp. 56-57).
A convocação de uma audiência pública no âmbito das
ações de competência exclusiva do STF remete à publicação
da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julga­
mento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e da
Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) perante
o órgão, e em seu art. 9º, §1º, possibilita ao presidente da
Corte, ou ao ministro relator das ações de caráter objetivo,
convocar audiências públicas para contribuir com os minis­
tros/as em seu julgamento. Também há tal previsão na Lei
nº 9.882/99, que dispõe sobre o processo e julgamento
da ADPF em seu art. 6º, §1º. Em 2009, o procedimento
das audiências públicas foi regulamentado no próprio

6 
Na ADI nº 3510, que impugnava dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei
nº 11.105/2005).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

Regimento Interno do STF, em seu art. 13, incisos XVII e


XVIII, art. 21, incisos XVII e XVIII, e art. 154, este último
dispondo sobre o procedimento das audiências públicas.
Apesar do tema estar disciplinado há quase 18 anos, o
instrumento foi utilizado em poucas oportunidades: a par­
tir da primeira experiência em 2007 até o segundo semes­
tre de 2017, contam-se 21 audiências públicas sobre os mais
diversos temas de repercussão geral e de interesse público7,
direcionadas ao STF em ações de controle de constituciona­
lidade, intensificando o uso deste mecanismo institucional
ao longo dos anos. Como afirma José Rodrigo Rodriguez:

há mecanismos novos que começam a promover a


participação popular no processo decisório, por exemplo, as
audiências públicas e o oferecimento de amicus curiae. Ainda
que estes mecanismos de participação direta sejam incipientes,
por meio deles pode-se ampliar a quantidade de opiniões que
148 influem sobre a decisão final, garantindo-se que a votação
que culmina na decisão não resulte apenas da opinião de um
pequeno grupo de pessoas (Rodriguez, 2013a, p. 109).

As questões que envolvem a realização das audiências


públicas não são complexas apenas juridicamente: tratam de
temas polêmicos das mais diversas áreas de conhecimento,
que impactam profundamente a sociedade brasileira, como
as pesquisas com células-tronco embrionárias e a possibili­
dade de aborto em caso de fetos anencéfalos, questões estas
que envolvem o debate em torno do direito à vida e que
se encontram em meio às lutas contemporâneas do movi­
mento feminista global.
Outro exemplo da complexidade de temas é a discussão
sobre a política de ações afirmativas para ingresso no ensino

7 
A lista completa dos temas tratados nas audiências públicas realizadas até o momento
no STF está disponível em <https://goo.gl/Pg4LDQ>. Acesso em: 28 mar. 2018.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

superior, em que foram levantados argumentos relativos à


igualdade material, desigualdades sociais, racismo, genética,
história do Brasil, escravidão, entre outros. Além disso, ques­
tões ambientais e do sistema de saúde pública também já
foram pautas de audiências públicas.
A audiência pública jurisdicional consiste na participa­
ção da sociedade civil no julgamento de questões de grande
repercussão submetidas ao STF em um feito específico. É
um instrumento jurídico que se insere dentro da ideia polí­
tica da democracia deliberativa e participativa, visando pro­
mover um debate aberto e plural e enfrentar dois déficits
tradicionais e permanentes da jurisdição constitucional: o
da falta de legitimação democrática e de expertise científica
para temas complexos. Nos encontros das audiências públi­
cas, os/as ministros/as do STF presentes assumem o papel
de ouvintes, enquanto os protagonistas são representantes
da sociedade civil e de órgãos do governo relacionados à
demanda, especialistas nos temas debatidos e atores direta­ 149
mente envolvidos com o caso.
Em geral, as audiências públicas iniciam com uma fala
de abertura do relator, que passa a palavra para o represen­
tante do Ministério Público apresentar suas considerações.
Em seguida, os expositores se manifestam de acordo com
a ordem previamente estabelecida pelo relator. Do modo
como vêm sendo praticadas pelo STF, as audiências públicas
ainda variam em relação ao seu formato – considerando a
ampla liberdade do Relator em definir os participantes e as
regras de interação entre os expositores – e seus possíveis
usos e efeitos na decisão final da demanda.
Todos os atores direta ou indiretamente interessados
na discussão podem pleitear a participação e o direito de
fala mediante pedido fundamentado no processo que a ori­
ginou, diretamente ao/à ministro/a relator/a responsável,
que analisará a fundamentação para a participação na causa,
aceitando ou recusando o pleito. Caberá ao/à ministro/a

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos


habilitados, determinar a ordem dos trabalhos e fixar o
tempo para a manifestação dos participantes.
Os expositores podem ser classificados de acordo com
a origem da sua indicação, como: a) agentes estatais, indica­
dos por um dos três poderes da República, ou pelo represen­
tante do Ministério Público; b) sociedade civil, sendo repre­
sentantes de associações, entidades de classe, movimentos
sociais, conselhos de políticas públicas ou associações volta­
das para a defesa das causas em discussão; ou c) especialistas,
que não representam uma posição oficial das instituições e
entidades das quais fazem parte, mas dividem experiências
e conhecimento do tema, como pesquisadores ou como
ocupantes de cargos em instituições importantes da área.
São ouvidos durante as audiências especialistas em questões
técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e
jurídicas, expondo seus argumentos no intuito de auxiliar os
150 votos dos/as ministros/as.
O objetivo das audiências públicas é, por meio de um
mecanismo institucional jurídico, incluir uma dimensão
social de participação e deliberação no controle de constitu­
cionalidade. Este instrumento jurídico visa o debate público
de matérias de grande importância social e que suscitam
inúmeros questionamentos e entendimentos a respeito das
questões discutidas. Essas informações contribuem para o
conhecimento da matéria pelos/as ministros/as e para a
incorporação de um maior teor de legitimidade social e
democrática à decisão final, uma vez que a sociedade subsi­
dia a Corte para uma tomada de decisão mais consciente e
completa sobre a questão em análise.
A despeito da previsão de decisão individual do/a
ministro/a relator/a na formação do quadro de participan­
tes, a convocação de uma audiência pública busca garan­
tir a presença de diferentes pontos de vista, interesses e
valores mediante participantes diversificados. No tocante

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

aos argumentos sustentados, há amplo espaço para a apre­


sentação de posicionamentos de ordem técnica, histórica,
relativa a valores, prática, distributiva, e até mesmo emocio­
nal. Também são aceitas evidências das mais diversas, como
as técnico-científicas, as de autoridade, de testemunho, ou
mesmo de senso comum. As sessões são organizadas em
blocos, de acordo com o setor social do participante e com
o posicionamento que este pretende defender, buscando
o equilíbrio entre os diversos setores sociais e as posições
diante do tema discutido.
Em nenhuma audiência pública foi permitido aos parti­
cipantes dirigirem a palavra uns aos outros, sob o argumento
de que se tratavam de audiências de caráter instrutório, e
até mesmo as menções de um expositor à argumentação
de outros eram reguladas. Ainda assim, verifica-se o inter­
câmbio indireto de ideias e a troca de informações pois, em
geral, os envolvidos parecem já conhecer os principais argu­
mentos uns dos outros e visam reforçá-los ou questioná-los 151
com a apresentação de outros argumentos e evidências.
As audiências são transmitidas pela TV Justiça e pela
Rádio Justiça e, no âmbito do Tribunal, o número de especta­
dores é limitado apenas pela capacidade do local de sua reali­
zação. As sessões também são transmitidas em tempo real na
internet, sendo disponibilizadas no portal do STF as transcri­
ções das falas ocorridas, bem como os demais comunicados
e documentos que o/a ministro/a que preside a audiência
entender relevantes para a publicidade da discussão.
Concluída a audiência pública e realizados os debates
orais das partes no plenário do STF, os julgadores proferem
seus posicionamentos e votos sobre a demanda discutida. Os
argumentos levantados a favor e contra o pleito objeto de
deliberação podem ser levados em consideração direta ou
indiretamente nos votos dos/as ministros/as.
Contudo, tratando-se de uma prática institucional muito
recente, há várias críticas à dinâmica das audiências públicas

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

no STF. Primeiramente, o procedimento pode ser considerado


parcialmente deliberativo, já que nem todos que pleiteiam
espaço na audiência pública têm seu pleito deferido8, pois há
análise e critérios de seleção prévios, sendo essa decisão do/a
ministro/a irrecorrível. As arenas deliberativas também refle­
tem as assimetrias de poder observadas na realidade, como
o uso de linguagem excessivamente técnica, a intimidação
por alguns participantes ocuparem posições institucionais de
poder, e outros relativos a coerções e desigualdades no discurso
público, fatos que demonstram uma necessidade de blindar
estes espaços contra as assimetrias de poder e desigualdades
de participação9 para que o potencial deliberativo seja maior.
Outra crítica é que, a despeito da abertura para a parti­
cipação social diversificada, a consideração dos argumentos
debatidos nas audiências e a decisão final sobre a demanda
discutida cabem exclusivamente aos/às ministros/as da Corte.
A participação social pode ser uma forma efetiva de influência,
152 mas o poder decisório permanece concentrado e não há qual­
quer obrigação por parte dos julgadores de enfrentar as ques­
tões debatidas ou as utilizar na fundamentação de seus votos.
Apesar das deficiências de um modelo ainda em aper­
feiçoamento, os participantes do processo contribuem for­
necendo informações diversificadas para a abordagem dos
temas. O atual exemplo das audiências públicas no STF
demonstra que no órgão mais alto do Judiciário há algum
espaço para o aumento de sua “porosidade”, para a inserção
de pleitos sociais tematizados pelos próprios envolvidos e
interessados na discussão, com a possibilidade de influên­
cia destes argumentos neste centro decisório e no debate
público nacional sobre o tema em análise.
As audiências públicas, embora destinadas a esclarecer
questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas
8 
Normalmente, por “falta de representatividade” ou por realizar o pedido fora do
prazo estipulado pelo/a ministro/a relator/a do caso.
9 
Sobre esse tema, ver Fraser (1992).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

e jurídicas, se tornaram, de acordo com o entendimento


da Corte, um instrumento de legitimidade democrática,
não tanto pelos argumentos manifestados, mas por propi­
ciar a participação de atores que, de algum modo, repre­
sentariam a sociedade na solução jurídica no controle da
constitucionalidade, reduzindo o isolamento do Tribunal
e promovendo sua aproximação com a sociedade civil, os
movimentos sociais e a comunidade científica.

Breve análise da audiência pública sobre cotas raciais


A esfera pública jurídica pode ser concebida como um
espaço aberto em uma área tradicionalmente pouco democrática,
permitindo a participação de atores sociais que normalmente
estariam fora do Judiciário e possuiriam pouco ou nenhum
poder na deliberação sobre suas demandas por direitos. Uma
esfera pública jurídica com intenções críticas e funções políticas
ativas deve estar forte e intimamente conectada com o centro
sistêmico, no sentido de que seus procedimentos influenciariam 153
as decisões institucionais e alterariam a realidade jurídico-social,
sendo esse o potencial emancipatório deste espaço.
Para demonstrar na realidade jurídica brasileira a exis­
tência e as características de um espaço institucional como
o descrito, apresentamos uma breve análise da audiência
pública sobre cotas étnico-raciais realizada no STF durante
o julgamento da ADPF nº 18610, que culminou no reconhe­
cimento de políticas afirmativas pleiteadas por um grupo
social historicamente marginalizado no Brasil, ao considerar
constitucional a inserção das cotas raciais em processos sele­
tivos para ingresso no ensino superior.
O motivo da escolha desta audiência pública específica é
que nela encontramos uma luta histórica por direitos, sobre

10 
A audiência pública está disponível na íntegra em vídeo (em: <https://goo.gl/
HQAKfT>. Acesso em: 28 mar. 2018) e transcrita em nota taquigráfica (em: <https://
goo.gl/txSwhD>. Acesso em: 28 mar. 2018), assim como o acórdão final, também
utilizado para a pesquisa (em: <https://goo.gl/rQZDL7>. Acesso em: 28 mar. 2018).

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

questões estruturais do Brasil que levaram inevitavelmente à


tematização de experiências de desrespeito, argumentos de
reconhecimento e redistribuição e, principalmente, à dis­
cussão de que as desigualdades sociais brasileiras estariam
diretamente conectadas com a existência de um racismo
estruturante de nossa sociedade. Conforme a análise de
Adilson José Moreira sobre o discurso jurídico e sua apro­
priação para legitimação de narrativas culturais:

Esses atores sociais formulam argumentos que articulam


interpretações do princípio da igualdade, concepções
de raça, definições de racismo, representações da nação
brasileira e teorias sobre o papel do Estado. Embora esses
temas sejam igualmente tratados pelas partes envolvidas,
eles são associados a partir de perspectivas distintas, sendo
que cada uma delas afirma que a interpretação por elas
defendida melhor representa os interesses da Nação. Tendo
154 em vista o fato de que os tribunais têm a última palavra na
determinação dos sentidos das normas constitucionais, eles
se tornaram no passado recente um espaço de batalhas entre
posições favoráveis e contrárias à manutenção de certas
hierarquias sociais. O aspecto político dessas controvérsias
jurídicas nos convida a analisar decisões judiciais a partir
de um ponto de vista diferenciado como sugerem autores
ligados à tradição crítica do direito (Moreira, 2017, p. 832).

A ADPF nº 186 foi ajuizada pelo partido Democratas


(DEM), visando à declaração de inconstitucionalidade de
alguns atos da Universidade de Brasília (UnB) que instituí­
ram o sistema de reserva de vagas com base em critério étni­
co-racial (20% de cotas étnico-raciais) em seu processo de
seleção para ingresso de estudantes.
Em síntese, as alegações para a inconstitucionalidade
da política de ação afirmativa foram que: a) as cotas imple­
mentariam um “Estado racializado” no Brasil; b) a adoção

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

de políticas afirmativas racialistas não seria necessária no


Brasil; c) o conceito de minoria apta a ensejar uma ação
afirmativa difere em cada país; d) no Brasil, ninguém é
excluído apenas pelo fato de ser negro, e sim pela condição
econômico-social; e) as cotas gerariam consciência estatal de
raça, promoveriam ofensa arbitrária ao princípio da igual­
dade, gerando discriminação reversa em relação aos brancos
pobres, além de favorecerem a classe média negra; f) teria
sido institucionalizado, na UnB, um verdadeiro tribunal
racial para definir quem é negro e quem não é, questio­
nando os critérios utilizados para esse fim; e g) não se pode
responsabilizar as gerações presentes por erros cometidos
no passado, e seria impossível identificar os legítimos bene­
ficiários dos programas de natureza compensatória.
A questão fundamental examinada pela Corte e deba­
tida na audiência pública foi definir se os programas de
ação afirmativa que estabelecem um sistema de reserva
de vagas com base em critério étnico-racial para acesso ao 155
ensino superior estariam ou não em consonância com a
Constituição Federal.
Na audiência pública, ocorrida nos períodos da manhã
e da tarde dos dias 3 a 5 de março de 2010, além das partes
interessadas e de alguns dos/as ministros/as do STF, parti­
ciparam representantes de órgãos públicos, especialistas em
educação, direitos humanos e sociologia, representantes de
universidades públicas estaduais e federais e das diversas
organizações da sociedade civil que atuam na temática de
questões raciais11. O ministro Ricardo Lewandowski, relator
da ADPF nº 186, habilitou 43 participantes para argumen­
tar. No primeiro dia, foi dado a palavra às instituições esta­
tais responsáveis pela regulação e organização das políticas
nacionais de educação e de combate à discriminação étnica

11 
Programação completa e lista dos participantes disponíveis em: <https://goo.
gl/PyZMgG>. Acesso em: 28 mar. 2018.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

e racial, bem como ao Instituto de Pesquisas Aplicadas


(IPEA). No segundo dia, houve a argumentação entre os
defensores da tese da constitucionalidade e da inconstitucio­
nalidade das políticas de reserva de vagas para o acesso do
ensino superior, com cinco representantes de cada posição.
No último dia, ocorreu a continuidade do contraditório e
apresentação das experiências das universidades públicas
relativas à aplicação das políticas de ação afirmativa desti­
nadas a ampliar o acesso de estudantes ao ensino superior.
Passamos à análise das argumentações dos participantes da
audiência pública, focando nos argumentos levantados pelos
representantes de movimentos sociais ligados à questões étni­
cas12. Interessante notar que algumas entidades optaram por
escolher seus representantes entre profissionais e acadêmicos
simpatizantes e com atuação ligada às questões étnico-raciais,
sendo esses os mais indicados para traduzir suas demandas e se
aproximar da questão jurídica debatida, mesmo com suas falas
156 não tratando estritamente de argumentos jurídicos ou técni­
cos, tematizando também experiências de desrespeito ligadas
à questão debatida e ao movimento que representaram.
Nessas argumentações, menciona-se diversas vezes que
a desigualdade social está diretamente ligada a um racismo
que é estruturante da sociedade brasileira e, por esse motivo,
as políticas de ações afirmativas estariam em consonância
com a Constituição no que tange a redução das desigualda­
des sociais, a não discriminação e a promoção da igualdade.
Essa argumentação nos parece se ligar diretamente a uma
luta por reconhecimento de um direito à igualdade material,
como é possível depreender da fala de José Vicente, presi­
dente da Afrobras e reitor da faculdade Zumbi dos Palmares:

12 
Principalmente nas falas dos representantes do Centro de Estudos Africanos
da USP, Afrobras, Educafro, Fundação Cultural Palmares, Ação Educativa,
Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Movimento Negro
Socialista, Instituto da Mulher Negra de São Paulo: Geledés, Movimento-Pardo
Mestiço Brasileiro e da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia, e do
Movimento contra o desvirtuamento do espírito da reserva das cotas sociais.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

O caso dos negros brasileiros, Excelência, é um caso


evidente, profundo e angular de desigualdade estrutural.
Foram mais de trezentos anos de escravidão sem qualquer
tipo de reparação. Por quase quatro séculos, homens,
mulheres e crianças negras foram sequestradas, subjugadas,
seviciadas, torturadas e assassinadas em praças públicas,
com a complacência e indiferenças das muitas instituições
sociais do nosso país, naquela época, com a omissão e
mesmo participação do Estado, e no mais das vezes com o
beneplácito da própria Justiça (Brasil, 2010, pp. 251-252).

Sustentou-se também que, no Brasil, o preconceito está


ligado com a aparência dos sujeitos e que a abolição da
escravidão deixou um legado de desigualdade para a pos­
teridade, sendo que os números sobre educação, trabalho
e renda da população negra comparada com os brancos
demonstram essa ligação.
Para fundamentar a desigualdade alegada, os participan­ 157
tes também invocaram dados socioeconômicos da população,
demonstrando a necessidade do reconhecimento do racismo
estrutural, argumento sustentado, por exemplo, pelo profes­
sor Fábio Konder Comparato, representante da Educafro:

No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e


escolaridade, negros e pardos recebem, em média, quase a
metade dos salários pagos aos brancos. Em nossas cidades,
mais de dois terços dos jovens assassinados entre quinze e
dezoito anos são negros. No ensino médio, 58,4% (cinquenta
e oito vírgula quatro por cento) dos alunos são brancos, e
37,4% (trinta e sete vírgula quatro por cento) são negros – no
ensino médio –, mas no ensino superior essa desigualdade
é escandalosa. Na Universidade de São Paulo, a maior
universidade do Brasil, temos menos de 2% (dois por cento)
de alunos negros (BRASIL, 2010, p. 268). […] a adoção
das cotas raciais está em plena harmonia, compatibilidade,

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

consonância com a ordem internacional e com a ordem


constitucional. As cotas são o imperativo democrático a louvar
o valor da diversidade. São imperativos de justiça social a
aliviar a carga de um passado discriminatório e a fomentar
transformações sociais necessárias. Devem prevalecer as
cotas em detrimento desse suposto direito à perpetuação
das desigualdades estruturais que tanto comprometem a
sociedade brasileira (Brasil, 2010, p. 277).

Argumento semelhante também é sustentado na fala da


representante do Instituto da Mulher Negra de São Paulo –
Geledés, doutora Sueli Carneiro:

Os que vislumbram o futuro acreditam que se as condições


históricas nos conduziram a um país em que a cor da pele
ou a racialidade das pessoas tornou-se fator gerador de
desigualdades, essas condições não estão inscritas no DNA
158 nacional, pois são produto da ação ou inação de seres
humanos e, por isso mesmo, podem ser transformadas,
intencionalmente, pela ação dos seres humanos de hoje
(Brasil, 2010, pp. 304-305).

Esse argumento que consideramos central – de que, no


Brasil, as desigualdades raciais estão conectadas intrinseca­
mente com a desigualdade socioeconômica – foi repetido
por diversos participantes a favor das cotas, enfrentado no
acórdão da decisão final (Brasil, 2012) e um dos fundamen­
tos para a decisão de constitucionalidade dessa política de
ação afirmativa, como demonstra a fala de Denise Carreira,
representante da Ação Educativa:

Em decorrência de todo esse quadro e da dimensão do


problema caracterizado por desigualdades e discriminações
raciais da educação básica à educação superior,
entendemos que o Estado brasileiro, em busca de justiça

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

social, deve avançar com relação ao enfrentamento do


racismo como questão estruturante da educação brasileira
(Brasil, 2010, p. 284).

Da mesma forma, Marco Antônio Cardoso, represen­


tante da Coordenação Nacional de Entidades Negras,
sustenta:

a nossa luta pelas ações afirmativas e por cotas raciais no


Brasil tem uma perspectiva de futuro, porque para nós o
racismo não escolhe tempo, nem espaço, nem lugar. O
racismo é mais que uma ideologia, é uma instituição em
si, constituída na História. O racismo se realimenta, se
retroalimenta cotidianamente, pois se reforça no apoio
incondicional das elites econômicas, movidas que são pelos
seus privilégios e pelo que o eurocentrismo legou à ciência e
ao mercado. As doutrinas eurocêntricas influenciaram, além
de formar parte significativa dos intelectuais brasileiros, 159
influenciaram, sim, as instituições do Estado e as instituições
privadas, e sobretudo as instituições educacionais. […]
nós do movimento negro brasileiro sabemos que explicitar
o racismo e, porventura, os conflitos étnicos e raciais, é
necessário e fundamental para evidenciar a desigualdade
entre campos de poder e romper com a cristalização e
a naturalização das desigualdades raciais na sociedade
brasileira (Brasil, 2010, p. 289).

Alguns dos participantes também referenciaram argu­


mentos dos defensores da inconstitucionalidade das cotas
que defenderam a inexistência de racismo no Brasil, e que
a desigualdade seria puramente econômica, declarando que
essas afirmações desqualificariam a experiência de vida das
pessoas discriminadas, negando a sua realidade vivida.
No debate, também se considerou a recuperação da
identidade racial como fator importante para a emancipação

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

através do reconhecimento jurídico, medida esta que pode


ser efetiva para o “empoderamento”, tanto psicológico como
social e material, das minorias (Honneth, 2009). Outro argu­
mento levantado foi o resultado das políticas de ações afir­
mativas para a criação de lideranças em grupos discrimina­
dos, capazes de lutar pela defesa de seus direitos, além de
servirem como paradigmas de integração e ascensão social.
Além disso, algumas falas salientaram a importância do
ganho em publicidade e relevância do tema no debate público
para que se forme uma consciência pública da questão, já que
as decisões dos temas de significativo interesse nacional neces­
sitam de apoio público e de divulgação dos argumentos.
Por meio desta breve análise das falas da audiência
pública, observamos que o pleito pelo direito foi ligado a
uma desigualdade social estruturante da sociedade brasileira.
A demanda por reconhecimento de direito à igualdade mate­
rial foi sustentada pela demonstração do racismo estrutural,
160 fundamentando a constitucionalidade das cotas étnico-raciais
como forma de justiça redistributiva. Como observa Adilson
José Moreira sobre o tema e o julgamento do caso:

a decisão que afirmou a constitucionalidade de cotas raciais


em instituições de ensino superior segue uma interpretação
da igualdade de caráter progressista que contém muitos
elementos de uma teoria chamada de antissubordinação.
Ela afirma o compromisso com a justiça substantiva
e a compreensão da igualdade como um mecanismo
de emancipação social. De forma similar aos tribunais
inferiores que apoiaram medidas racialmente inclusivas,
a decisão afirmou que o atual paradigma constitucional
contém uma concepção transformadora da igualdade.
[…] O princípio da igualdade material tem importância
instrumental para o alcance desse objetivo porque impõe
uma obrigação ao Estado de eliminar as disparidades
entre grupos raciais. A ação afirmativa tem o potencial de

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

atingir o objetivo de promover os ideais de emancipação


consagrados na Constituição Brasileira, pois esses programas
tentam corrigir injustiças históricas. Na oferta de educação
e de oportunidades profissionais para afrodescendentes e
ameríndios, essas iniciativas materializam a cidadania entre
grupos raciais no Brasil (Moreira, 2017, p. 861).

Ao analisar esta audiência pública específica, observa-se


a importância da tradução de temas tradicionalmente não
jurídicos para a forma jurídica e, no caso estudado, para a
discussão sobre questões estruturantes em nossa sociedade.
Segundo o professor Boaventura de Sousa Santos sobre a
relação entre teoria e prática das lutas sociais:

Em vez de uma teoria que unifique a variedade imensa de


lutas e movimentos, do que precisamos é de uma teoria
da tradução – ou seja, uma teoria que, mais do que tentar
criar outra realidade (teórica) por sobre os movimentos 161
e à margem deles, procure promover entre eles uma
compreensão mútua, uma inteligibilidade mútua, para que
todos eles possam beneficiar das experiências dos demais
e com eles colaborar. Os procedimentos da tradução
dispensam as nossas descrições rarefeitas, baseando-se antes
em descrições espessas. Na verdade, a especificidade dos
relatos de dois ou mais movimentos ou lutas nunca é tanta
que garanta uma tradução não-problemática entre elas
(Santos, 2003, p. 33).

Ainda conforme Santos, o direito pode alterar as estru­


turas de poder, assim como também tornar mais rígidas as
trocas entre poderes e reproduzir a exclusão. O caso inter­
pretado a partir da filosofia habermasiana pode pontuar
a contribuição do direito para a igualdade nas relações
de poder, visando reduzir a exclusão social ou elevando a
possibilidade e a qualidade da inclusão e da luta política

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

pela democratização da possibilidade de coordenar os fins


sociais, e consequentemente diminuir o monopólio estatal
sobre tal coordenação – em outras palavras, a luta reflete
em um pleito por desenhos institucionais alternativos, e o
direito pode ser utilizado como um recurso para fins eman­
cipatórios (2003).
Portanto, nosso principal objetivo foi demonstrar a
importância e o potencial de influência da argumentação
de atores sociais envolvidos na causa em discussão em um
centro decisório jurídico aberto para recebê-los. Observa-se
também a importância da tematização de questões tradicio­
nalmente “não jurídicas” traduzidas para a forma jurídica
e, no caso estudado, para a discussão sobre a constitucio­
nalidade de uma ação afirmativa. Um Judiciário conside­
rado democrático deve ser aberto aos atores sociais e ter
instrumentos para traduzir razões do mundo da vida para o
código do direito, aprofundando a conexão entre as institui­
162 ções e a realidade social.

Conclusão
Buscamos demonstrar neste artigo que a construção
teórica sobre as características do espaço das audiências
públicas do STF ligado ao referencial teórico habermasiano
da esfera pública jurídica indicam o funcionamento deste
novo mecanismo institucional, permitindo a troca de ener­
gias sociais tradicionalmente ausentes em uma arena jurí­
dica como o STF.
Segundo Marcos Nobre, para Habermas, o procedi­
mento é o formato do processo em questão – que seria
“capaz de permitir o surgimento do maior número possí­
vel de vozes, de alternativas de ação e de formas de vida,
garantindo seu direito de expressão e de participação”
(2008, p. 18), e que não teria conteúdo definido e nem
poderia ser guiado por concepções já determinadas; sua
forma é apenas regulamentada.

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


Ricardo Juozepavicius Gonçalves

A deliberação democrática indica “quem” deve partici­


par e “como”, mas não “qual” seria o preenchimento correto
dos conteúdos, sobre “o que” deve ser decidido. Os proce­
dimentos de audiências públicas não fornecem nenhuma
orientação e nem garantem o “conteúdo” das deliberações
e como estas podem afetar as decisões. A importância cen­
tral não recai sobre a pauta debatida, tanto no sentido do
tema (cotas, aborto, drogas ilícitas, saúde pública, questões
ambientais etc.) como no sentido dos tipos de argumentos
utilizados pelos participantes (históricos, científicos, jurídi­
cos etc.), mas sim no mais importante, o próprio procedi­
mento democrático e seu potencial de responder à altura
das demandas sociais.
Nas audiências públicas, as deliberações podem ser con­
sideradas exemplos de formação democrática da vontade
no interior de uma arena formal e de que há, em alguma
medida, uma esfera pública jurídica aberta e atuante em
intermediar as demandas sociais e as decisões dos centros 163
formais, permitindo aos mais diversos atores sociais tradi­
cionalmente localizados às margens dos sistemas decisórios
utilizá-la para ampliar e/ou efetivar direitos.
A análise dessas experiências particulares é fundamental
para compreender a extensão da legitimidade democrática
do Judiciário, sendo que não basta apenas observar o poten­
cial emancipatório do direito ou definir princípios de justiça
abstratos; é preciso observar as instituições e procedimen­
tos existentes a fim de diagnosticar e compreender quais
práticas podem ser consideradas democráticas e que pos­
suem potencial de aumentar a participação social mediante
as audiências públicas e a “porosidade” do Judiciário para
captar seus pleitos.
Apesar da construção teórica, o elemento mais impor­
tante deste trabalho se constitui pelas pessoas que lutam por
direitos. A energia social produzida por experiências de des­
respeito, por injustiça e pela organização de movimentos

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais

sociais em esferas públicas informais possui potencial eman­


cipatório quando há espaço para se infiltrar nos centros de
decisão. Esses procedimentos são significativos aos grupos e
indivíduos socialmente marginalizados, que nunca tiveram
voz nas instituições para discutir suas próprias experiências
e as maneiras que acreditam ser justas para sanar esses pro­
blemas, visando uma mudança social efetiva.

Ricardo Juozepavicius Gonçalves


é doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(2018). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
mesma instituição (2017), com estágio de pesquisa na Freie
Universität Berlin (Lateinamerika-Institut). Advogado ins­
crito na OAB/SP e graduado em Direito pela Faculdade de
Direito de São Bernardo do Campo (2013). Exerce estágio
docente na Faculdade de Direito da Universidade de São
164 Paulo, na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito.

Bibliografia
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166

Lua Nova, São Paulo, 103: 135-166, 2018


167
CONSUMINDO COMO UMA GAROTA: SUBJETIVAÇÃO
E EMPODERAMENTO NA PUBLICIDADE VOLTADA
PARA MULHERES1
Cynthia Hamlin
é Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, Brasil.
E-mail: <cynthiahamlin@hotmail.com>

Gabriel Peters
é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, Brasil.
E-mail: <gabrielpeters@hotmail.com>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-167202/103

Introdução
Os estudos sobre consumo constituem um campo privi­
legiado para pensar a relação entre cultura e subjetividade.
Com a chamada “virada cultural”, esses estudos reforça­
ram os aspectos comunicativos, expressivos e, mais recen­
temente, subjetivantes do consumo. Embora autores como
Veblen (1987 [1899]) já houvessem alertado para a dimen­
são simbólica do consumo conspícuo ou ostentatório entre
as classes abastadas do século XIX, no “capitalismo tardio”
o consumo e seu principal veículo, a publicidade, têm assu­
mido um papel sem precedentes na mediação de identi­
dades, poderes e mesmo direitos. Ao atrelar determinados

1 
Uma versão resumida deste trabalho foi apresentada no GT de Sociologia da
Cultura do 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, em julho de 2017, e deverá
constar de seus anais. Agradecemos aos professores Edson Farias e Maria Celeste
Mira pela oportunidade. Também agradecemos a Maria Eduarda Rocha, Gabriel
Cohn, Frédéric Vandenberghe e aos membros do Grupo de Estudos em Teoria
Social e Subjetividades (GETSS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Pernambuco (PPGS-UFPE) pelas valiosas críticas e suges­
tões ao texto, em particular: Aloízio Barbosa, Amarildo Malvezzi, Dayra Batista,
Fernanda Fonseca, Mariana Pimentel, Rodrigo Mota, Suzy Luna e Thiago Panica.

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

bens e serviços a estilos de vida e formas de identidade, a


propaganda parece apostar em muito mais do que na for­
mação de consumidores pela criação e satisfação de neces­
sidades: o que está em jogo é uma concepção de consumo
tanto como expressão de uma subjetividade quanto – mais
radicalmente – como uma via para a sua construção.
Essa questão se coloca de forma particularmente evidente
no chamado femvertising (numa tradução literal, “publicidade
fem”): um tipo de publicidade baseado em uma proposta de
emancipação feminina concebida como “empoderamento”.
Parte do problema é que “empoderamento” consiste em um
termo altamente polissêmico: ora definido como autocontrole
e autoconstrução, ora em termos de influência social, poder
político ou direitos sociais, o conceito vem sendo indistinta­
mente aplicado aos níveis individual, organizacional e societal,
com pouca ou nenhuma atenção às relações de continuidade
e de ruptura entre agência individual, ação coletiva e transfor­
168 mação estrutural (Aranha, 2014; Sardenberg, 2008).
De uma perspectiva do mercado, contudo, o femver­
tising tem se mostrado estratégia eficiente. Uma enquete
sobre o fenômeno, realizada com 628 mulheres pela revista
SheKnows, revelou que: 92% das respondentes se lembra­
vam de pelo menos uma marca “pró-mulheres”; 52% com­
prou um produto porque gostou da forma como as mulhe­
res eram representadas nos seus anúncios; e 46% seguiu
uma marca em mídias sociais devido à mensagem de empo­
deramento por ela veiculada (Stampler, 2014).
Um dos mais bem-sucedidos exemplos desse fenômeno
é uma “campanha pelo empoderamento de meninas” que,
desde 2014, vem ganhando notoriedade ao tentar pro­
mover o aumento da autoconfiança entre adolescentes.
Cerne de uma campanha publicitária dos absorventes
Always, da Procter & Gamble, o vídeo “Como uma garota”
(Like a girl), produzido pela documentarista canadense
Lauren Greenfield para a agência Leo Burnett, ganhou

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

diversos prêmios importantes da área, incluindo o Grand


Prix e o Glass Lions (categoria para promover a igual­
dade de gênero) do prestigioso Cannes Lions, o Festival
Internacional de Criatividade. Mas é a difusão nas mídias
digitais que nos dá a real dimensão de seu alcance. De
acordo com dados apresentados no Festival, até junho de
2015, a hashtag “like a girl” havia obtido 4,58 bilhões de
reações no mundo inteiro2. Até a redação deste texto, o
vídeo da propaganda alcançara quase 100 milhões de
visualizações apenas no canal oficial da marca no Youtube.
Juntamente com a campanha dos produtos da Dove “pela
beleza real”, lançada em 2004, enfatizando a autoestima
feminina, a campanha da Always vem sendo considerada
um dos marcos do femvertising. Como veremos, o discurso
veiculado nessa propaganda possui, se não alusões implíci­
tas, pelo menos ressonâncias notáveis com reflexões acadê­
micas influentes no feminismo da segunda onda, como os
estudos da filósofa Iris Marion Young (2005 [1980]) sobre o 169
“lançar como uma garota” e os da psicóloga Carol Gilligan
(1993 [1982]) sobre o desenvolvimento moral infantil, mar­
cado por um decréscimo da autoconfiança na passagem da
infância à adolescência entre meninas.
Na forma de slogans ou de documentários curtos em
que a mensagem de empoderamento assume o primeiro
plano em relação ao próprio produto3, esse tipo de campa­
nha ilustra uma estratégia publicitária descrita por Maria
Eduarda Rocha (2009) em seu trabalho sobre “a nova retó­
rica do capital”, narrativas que legitimam certas concepções
de “vida plena” associadas ao grande capital no período

2 
“CASSIES Grand Prix: Always strikes a chord”. Disponível em: <http://strate­
gyonline.ca/2016/02/12/cassies-grand-prix-always-strikes-a-chord/>. Acesso em:
23 fev. 2018.
3 
Não há, por exemplo, qualquer menção a absorventes na propaganda da Always;
“não é só cacho, não é só cor, é mais poder”, limita-se a afirmar a publicidade de
uma linha de tintura para cabelos da Garnier Nutrisse.

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

neoliberal. Na publicidade essas narrativas são estruturadas


a partir de “conceitos” que traduzem determinados valo­
res, identificados por meio de pesquisas de mercado, na
forma de “uma ideia básica sobre a qual assenta a relevân­
cia do produto ou serviço na vida do consumidor” (Rocha,
2009, p. 24). Em sua excelente análise da publicidade bra­
sileira contemporânea, a autora identificou os conceitos
de “qualidade de vida” e “responsabilidade social” como
cernes da concepção de vida plena mobilizada na passa­
gem do desenvolvimentismo para o neoliberalismo no final
da década de 1980. No caso do femvertising, o empode­
ramento feminino é explicitamente apresentado como o
valor fundamental em torno do qual a imagem do produto
ou da marca se estrutura.
De Jameson (1991) a Boltanski e Chiapello (2007),
diversos autores já notaram que o capitalismo das últimas
décadas exibe uma imensa capacidade de apropriar à sua
170 própria lógica manifestações ideológicas que lhe são estra­
nhas ou mesmo francamente opostas. O percurso no qual o
conceito de empoderamento feminino passa de uma acep­
ção francamente “coletivista” a uma versão individualizada
pode ser situado naquela dinâmica mais ampla do capita­
lismo tardio. A questão principal colocada para nós neste
artigo é: que sentidos o conceito de empoderamento pôde
assumir a fim de possibilitar a articulação de valores tão dís­
pares – como a emancipação feminina com vistas à constru­
ção de um mundo mais justo, igualitário e livre, de um lado,
e as novas formas de distinção, opressão e subordinação asso­
ciadas ao capitalismo global, flexível ou neoliberal, de outro?

O “feminismo da mercadoria”: o estranho casamento


entre feminismo e publicidade
A relação entre feminismo e publicidade não é nova.
Como argumenta Pauline Maclaran (2015, todas as ondas
do feminismo tiveram algum tipo de relação com o mercado

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

e com a publicidade4. Partindo de uma crítica ao que hoje


denominamos “cultura de consumo”, foi o romancista Émile
Zola, em O paraíso das damas (2008 [1883]), quem primeiro
atentou para as lojas de departamento como um espaço
por onde as mulheres de meados do século XIX podiam
circular livremente, sem a companhia de um homem. Não
por acaso, muitas mulheres do movimento sufragista inglês
se reuniam em lojas de departamento como a Selfridges,
cujo dono, Gordon Selfridge, apoiava o movimento. Nesse
contexto a publicidade era frequentemente percebida pelo
movimento sufragista do final do século XIX e início do XX
como algo positivo para a visibilidade de suas campanhas
(Maclaran, 2015).
As relações entre feminismo e publicidade foram
mais contenciosas entre os anos 1960 e 1980, período que
caracteriza a segunda onda do movimento. Para além de
suas diferenças, feministas liberais, como Betty Friedan, e
feministas radicais, como Germaine Greer, criticaram forte­ 171
mente as ideologias que manipulavam os desejos e os cor­
pos das mulheres, de forma a confiná-las à esfera doméstica.
Reforçadas pelas representações da mulher na publicidade
em termos estereotípicos e negativos, tais ideologias enfatiza­
vam os papeis de mãe e de esposa e infundiam nessas mulhe­
res desejos, demandas e normas culturais que, na visão de
feministas marxistas, estimulavam o ciclo de consumo do
capitalismo (Maclaran, 2015; Eichner, 2016). Desde então
a crítica feminista à representação das mulheres em termos
objetificantes na mídia e na cultura pop tem sido mobilizada
por uma infinidade de agentes culturais (Zeisler, 2016).
É justamente essa mobilização que dá origem ao que se

4 
Dado que nosso propósito não é fornecer um sistema classificatório relativo às três
ondas do feminismo, mas meramente ilustrar as relações gerais entre feminismo e
publicidade, nossa caracterização das três ondas inevitavelmente apresenta simplifica­
ções que desconsideram as nuances internas a cada uma delas. Isso, contudo, não deve
obscurecer o fato de que alguns temas e questões centrais relativos a cada onda condi­
cionaram a forma como a relação entre feminismo e publicidade tornou-se possível.

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

conhece por “feminismo da mercadoria”, conceito crítico,


fruto da virada cultural nas ciências sociais e nas humani­
dades que, em larga medida, inspirou as teorias de terceira
onda do feminismo.
Em alusão à noção de “fetichismo da mercadoria”
cunhada por Marx, a ideia de “feminismo da mercadoria”
designa os modos pelos quais propostas e símbolos feminis­
tas são apropriados por interesses comerciais. A propaganda
aparece aqui como a principal instância dessa instrumen­
talização mercadológica (Gill, 2008, p. 583). A primeira
formulação detalhada do conceito aparece no livro de
Robert Goldman, Reading ads socially (1992, p. 132-156).
Concentrando-se na indústria cultural estadunidense,
Goldman observou que, por volta da segunda metade dos
anos 1980, as campanhas publicitárias nos EUA foram pres­
sionadas a se reinventar em resposta a três desafios: a) “a
fadiga do signo”, isto é, a de-sensibilização da receptividade
172 dos consumidores em face da overdose diária de informa­
ções e imagens publicitárias na cultura de consumo “pós­
-moderna”; b) o crescimento de uma audiência cética, cuja
experiência no trato com as mídias levava a suspeitar dos
estratagemas da publicidade para fazê-la consumir; e c) a
reação hostil de um alto contingente de mulheres à estereo­
tipificação sexualizante da feminilidade que era traço recor­
rente nas campanhas publicitárias.
O último fenômeno refletia justamente o impacto
das críticas que o feminismo da segunda onda vinha, há
muito, dirigindo à transformação da mulher em objeto de
consumo visual na publicidade. A força dessa crítica ideoló­
gica era incrementada por um fator de cunho econômico:
a crescente autonomia financeira das mulheres, resultado
da maciça entrada feminina no mercado de trabalho que
marcara as décadas anteriores (Castells, 1999, pp. 179-286).
Para além do impacto ético-político da crítica feminista,
os veículos de publicidade tinham uma razão puramente

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

estratégica para modificar o feitio de suas mensagens: “mos­


trar uma mulher deitada em… um carro”, por exemplo, não
é a melhor estratégia “se o objetivo é vender tal carro para
mulheres” (Gill, 2008, p. 583). Segundo Goldman (1992), o
feminismo da mercadoria foi a resposta engenhosa da publi­
cidade à nova conjuntura: introduzir temáticas feministas
nas mensagens publicitárias pela via estetizante típica da
propaganda, na qual os produtos anunciados são vinculados
a signos expressivos de liberdade, independência e autono­
mia, valores centrais daquilo a que David Harvey (2005) se
refere como a dimensão ética do neoliberalismo.
Portanto, a ideia de feminismo de mercadoria serve
como um contrabalanço crítico às visões que sustentam, sem
maiores ressalvas, que a publicidade contemporânea estaria
se “tornando” feminista ou “refletindo” o impacto do femi­
nismo na sociedade. O influxo marxista da noção aponta
para o que Fredric Jameson (1991, p. 18) caracterizou como
a capacidade “canibalizadora” do “capitalismo tardio”, isto 173
é, sua habilidade de explorar comercialmente as próprias
manifestações ideológicas de resistência a ele (por exemplo,
a imagem de Che Guevara, o anarquismo do movimento
punk, os best-sellers de Slavoj Žižek).
A ideia do “feminismo publicitário” também pode ser
criticada, no entanto, a partir de preocupações “interio­
res” ao movimento feminista. Gill (2008, p. 584) nota, por
exemplo, que uma das principais estratégias semióticas do
feminismo da mercadoria consiste em articular os “novos
signos feministas” de sucesso e autonomia (o carro, a pasta
e o tailleur da alta executiva) aos “velhos signos de feminili­
dade” (maquiagem, cabelos longos e outros traços da atrati­
vidade feminina convencional). Ao sugerir que não haveria
qualquer tensão entre ser profissionalmente realizada e ser
atraente para os homens, a publicidade constrói a ideia da
“super-mulher: poderosa, respeitada, bem-sucedida, assim
como, sem esforço, linda e atraente (e, em alguns casos,

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

também uma mãe perfeita)” (Gill, 2008, p. 584). Tais estra­


tégias caracterizam uma dimensão central dos discursos
midiáticos contemporâneos em torno das mulheres: a mis­
tura de ideias feministas e antifeministas na produção de
subjetividades gendradas (Gill e Scharff, 2011).
Nesse sentido, em que pese a crítica à noção não nuan­
çada de que a publicidade contemporânea estaria simples­
mente se tornando feminista, também é necessário rejeitar a
ideia de que ela esteja completamente dissociada do próprio
feminismo. De modo correlato, uma análise crítica da publi­
cidade pode reconhecer seus ardis ideológicos sem supor
que eles neutralizem quaisquer efeitos “progressistas” ou
“emancipatórios” de suas mensagens (p. ex., o despertar do
interesse sobre temáticas feministas em parte da audiência).
No que toca a este como a outros temas da teoria social
crítica, é recomendável a manutenção de uma sensibili­
dade ambivalente, isto é, simultaneamente consciente de
174 estruturas de dominação e de alternativas de emancipação
(Vandenberghe, 2009, p. 290). Essa recomendação nos
parece particularmente útil para tratar das relações entre a
publicidade e o feminismo de terceira onda.
Grandemente influenciada pela virada cultural na
década de 1990, a terceira onda do feminismo reconheceu
o impacto mútuo de diferentes sistemas de opressão – como
classe, raça, gênero, etnicidade e sexualidade –, mas tam­
bém celebrou as diferenças com base no reconhecimento
da fluidez e instabilidade das categorias identitárias. De
modo explícito ou implícito, a dominação cultural ten­
deu a ser considerada um fator mais importante na pro­
dução de injustiças do que a exploração de classe, com a
luta política por reconhecimento da própria identidade/
diferença ganhando primazia sobre a redistribuição econô­
mica (Fraser, 1995). De uma perspectiva teórica e política,
portanto, a guinada cultural nos estudos feministas diz res­
peito àquilo a que Michèle Barret (1992, p. 215) se referiu

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

em termos de uma “virada paradigmática” que deslocou as


antigas preocupações com a estrutura social, as desigualda­
des materiais e a opressão, em favor de questões relativas a
“sexualidade, subjetividade e textualidade”.
Para autores como Jameson (1991), se vista de uma
perspectiva histórica, a virada cultural refere-se ao fato de
que, nas sociedades do capitalismo tardio ou “pós-moder­
nas”, a esfera da cultura tornou-se coextensiva à sociedade
de mercado, em um processo de “culturalização da eco­
nomia” – ou, o que vem a dar no mesmo para o autor,
“mercadorização da cultura” – que abarca até as esferas
mais recônditas da vida cotidiana: compras, atividades pro­
fissionais, lazer, publicidade, espaço doméstico, sonhos,
imaginação, fantasias. E nada teria sido tão benéfico ao
capitalismo tardio quanto a celebração das diferenças que
a virada cultural trouxe consigo: as identidades passaram a
ser vendidas e compradas em um mercado que promovia
uma infinidade de estilos de vida, dentre os quais se inclui 175
o empoderamento feminino. À medida que a rebeldia do
movimento foi sendo cooptada pelo mercado, o feminismo
(particularmente o ambíguo “pós-feminismo”) tornou-se
palavra de ordem na cultura popular, aparentemente rele­
gando questões de desigualdade e injustiça a um passado
distante (Maclaran, 2015).
Foi assim que na última década, nos termos de Andi
Zeisler (2016), o feminismo, ao menos em sua versão pop,
tornou-se cool. De algo que não ousava dizer seu nome fora
de certos círculos, o feminismo passou a uma espécie de
identidade mainstream, iconoclasta, divertida e, sobretudo,
acessível a qualquer um pela via do consumo. Consumir é
empoderar-se e, a crermos na publicidade dirigida a mulhe­
res, o empoderamento feminino tornou-se tão ubíquo a
ponto de a entrevista fictícia publicada pela revista satírica
The Onion (Women now empowered…, 2003) nos fornecer
um retrato fiel de parte significativa do imaginário popular:

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

“[…] Do que ela come no café da manhã à forma como


ela limpa sua casa, a mulher atual vive em um estado de
empoderamento quase constante”, disse Barbara Klein,
professora de estudos de mulheres no Oberlin College
[…] “Há apenas 15 anos, uma mulher só poderia se sentir
empoderada ao ter sucesso em um mundo do trabalho
dominado por homens, ao afirmar seus próprios desejos e
necessidades sexuais, ou ao forçar uma voz mais forte na
política”… [A] compra de roupas, antes considerada uma
ação mundana de poucas implicações sociopolíticas, é agora
uma declaração feminista ousada… “Possuir e usar dúzias de
pares de sapatos é uma maneira de uma mulher anunciar
que é forte e independente, e que ela pode se calçar sem
ajuda de um homem. Ela está dizendo, ‘cuidado, mundo
dominado por homens, aqui venho eu e meus sapatos’”.

Mas será que é só isso? A própria mudança nas repre­


176 sentações femininas, fruto da denúncia das feministas de
segunda onda, não apontaria para a possibilidade de for­
mas distintas de subjetivação de meninas e mulheres? Há
nesse processo algum tipo de “empoderamento” em curso?
Já mencionamos que o conceito de “empoderamento” é
tremendamente polissêmico. A análise de suas mutações
ao longo das últimas quatro ou cinco décadas revela, no
entanto, uma nítida tendência semântico-ideológica: a pas­
sagem de um sentido associado a uma pauta coletivista de
transformação política para uma acepção crescentemente
individualizada, associada a ideais de realização, sucesso e
autonomia pessoal conformes à dinâmica do capitalismo
neoliberal. É desse processo que nos ocuparemos agora.

O pessoal é político
Embora de uso recente nas ciências sociais, o termo
“empoderar” e seus correlatos remetem ao inglês “to
empower”, utilizado desde meados do século XVII com o

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

sentido jurídico de “autorizar, investir de autoridade” e, mais


tarde, derivando para o sentido de “habilitar ou permitir”
(McLaughlin, 2016, p. 2). A partir da década de 1980, seu uso
foi inspirado pelo legado dos movimentos sociais e políticos
dos anos 1960 e 1970, a exemplo dos grupos de libertação
de mulheres, do movimento Black Power e da Pedagogia do
Oprimido formulada por Paulo Freire. O que essas aborda­
gens têm em comum é a negação da ideia, contida no sentido
original do termo, de que o poder pode ser simplesmente con­
cedido ou autorizado a um indivíduo. Tal ideia é substituída
pela tese de que o poder deve ser conquistado – não ape­
nas individualmente, mas a partir da ação coletiva voltada à
transformação estrutural. Ao mesmo tempo que acentuavam
essa dimensão coletiva, tais correntes sustentavam que, se a
dominação se imiscui nos domínios mais íntimos da existên­
cia social, a luta contra os seus mecanismos opressivos teria de
ser desempenhada também nesses domínios.
Embora ainda não fizessem referência ao termo “empo­ 177
derar”, uma das contribuições mais significativas do femi­
nismo radical para o desenvolvimento do conceito está encap­
sulada no famoso slogan “o pessoal é político”. O registro da
presença do “político” no domínio do “pessoal” pressupõe
que as lutas de poder e as relações de dominação não existem
somente no âmbito da “política” como esfera institucional,
mas atravessam o conjunto da sociedade, incluindo-se aí as
arenas privadas da vida familiar e das relações erótico-afetivas.
Como instrumento de uma agenda empoderadora,
emancipatória, contudo, a ideia de que “o pessoal é polí­
tico” não reduz uma política da transformação do mundo
social a uma ética da autotransformação. Um dos elementos
centrais dessa agenda estava associada aos chamados “gru­
pos de conscientização” para gerar uma compreensão das
diversas formas de opressão a que as pessoas estão submeti­
das “enquanto negras, trabalhadoras, inquilinas, consumido­
ras, crianças e também mulheres” (Sarachild, 1970, p. 80).

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

Assim, embora a tomada de consciência fosse o elemento


central dos grupos de conscientização de mulheres, diversas
autoras enfatizavam que esses grupos não eram “terapêuti­
cos”, no sentido de voltados a transformações individuais
desconectadas de transformações sociopolíticas: “proble­
mas pessoais são problemas políticos. Não há soluções pes­
soais no momento. Existe apenas a ação coletiva para uma
solução coletiva” (Hanisch, 1970, p. 77). De fato, pensar a
libertação feminina em termos terapêuticos era amplamente
considerado uma forma de sucumbir a uma “falsa consciên­
cia” segundo a qual as mulheres poderiam passar ao largo
do combate político às estruturas sociais de sua opressão e
“encontrar soluções individuais para os problemas, já que
essa é a função da terapia” (Peslikis, 1970, p. 81).
Concepção semelhante aparece nos trabalhos de Paulo
Freire, que, diferentemente das feministas radicais, já utiliza
o termo “empoderamento”, embora com ressalvas, em mea­
178 dos dos anos 19805. Para o autor, o termo não faz sentido
se utilizado como “autoempoderamento pessoal”: “eu não
acredito em autolibertação. A libertação é um ato social”
(Freire e Shor, 1987, p. 109). Isso porque, para Freire, a
conscientização não é uma condição suficiente para a liber­
tação. Nos termos de Guareshi (2010, p. 147):

Empoderamento é […] para Freire um processo que


emerge das interações sociais em que nós, seres humanos,
somos construídos e, à medida que criticamente
problematizamos a realidade, vamos nos “conscientizando”,
descobrindo brechas e ideologias; tal conscientização nos dá
“poder” para transformar as relações sociais de dominação,
poder esse que leva à liberdade e à libertação.

5 
Salvo engano, o próprio Freire só faz uso do termo na década de 1980, mas
em alguns países, como é o caso do Canadá, seu conceito de “conscientização”,
contido em obras das décadas de 1960 e 1970, foi traduzido como empowerment
(Guareshi, 2010, p. 147).

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Cynthia Hamline Gabriel Peters

A partir da década de 1980, autoras ligadas ao femi­


nismo negro, como Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill
Collins, também adotam explicitamente o termo “empo­
deramento”, embora sem maiores preocupações com sua
definição. Davis, por exemplo, ao afirmar que a noção
de empoderamento já está presente na luta de mulheres
afroamericanas desde a primeira onda, defende que suas
estratégias mais eficientes de empoderamento se baseiem
no slogan da Associação Nacional de Clubes de Mulheres
de Cor do final do século XIX: “Lifting as we climb”
(“levantando enquanto subimos”), i.e., “devemos subir
de tal forma a garantir que todas as nossas irmãs, inde­
pendentemente de classe social, de fato, todos os nossos
irmãos, subam conosco. Esta deve ser a dinâmica essencial
de nossa busca pelo poder” (Davis, 1988, p. 349). O empo­
deramento de mulheres negras depende, portanto, de um
ativismo político que leve em consideração as associações
íntimas entre racismo, classismo e sexismo – o que aponta, 179
mais uma vez, para a dimensão estrutural do problema
e suas soluções coletivas. Já Hill Collins (1990, p. xi-xii)
caracteriza sua “política de empoderamento” em termos
da necessidade de encontrar sua própria voz, uma que
substitua “as definições externas de minha vida, veiculadas
por grupos dominantes, pela minha própria perspectiva,
autodefinida”. Como nos casos precedentes, Collins não
estava preocupada com uma voz meramente subjetiva, mas
“individual e coletiva, pessoal e política, que reflita a inter­
seção entre minha biografia única com o significado mais
amplo de meu tempo histórico” (Hill Collins, 1990, p. xii).
Inspirada em autores como Paulo Freire e Frantz Fanon,
a autora defende ainda um processo de conscientização
que coloque em evidência a supressão do conhecimento
produzido por grupos subordinados, um processo que leva
à internalização, por parte desses mesmos grupos, das ide­
ologias dominantes.

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Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

O que qualificamos acima como uma pauta coletivista


de ação política revela que as primeiras formulações da
noção de empoderamento se baseavam em uma lingua­
gem identitária e continham um componente político
radical. Em que pese a importância analítica e ético-polí­
tica da ênfase no caráter composto das opressões e em hie­
rarquias de poder cada vez mais complexas, a consciência
da “interseccionalidade”, no dizer de Kimberle Crenshaw
(1989), levou a um impasse de difícil manejo: uma lógica
de decomposição de categorias sociais em um número cada
vez maior de subgrupos – por exemplo, das mulheres às
mulheres negras, das mulheres negras às mulheres negras
lésbicas etc. Nesse sentido, a despeito das aspirações eman­
cipatórias que animaram o conceito de empoderamento,
aquilo que James Heartfield chamou de “o etcetera sem fim
da diferença” acabou operando como um instrumento de
dissolução de alianças coletivas, contribuindo para a subs­
180 tituição da ideia de um sujeito político robusto, capaz de
alterar a si mesmo e à sociedade, por identidades frágeis,
vulneráveis e voltadas para si mesmas, o que altera a face
de uma parcela importante do ativismo político contempo­
râneo (McLaughlin, 2016). Não obstante, ainda que essa
seja uma das fontes da profunda transformação por que
passou o conceito de empoderamento nas últimas décadas,
as raízes históricas de tal transformação, como veremos, são
muito mais complexas e multifacetadas.

O político é pessoal
As transformações estruturais que atravessaram a(s)
sociedade(s) capitalista(s) nos últimos cinquenta anos
foram analisadas pela sociologia sob a égide de uma plura­
lidade de rótulos, como “modernidade tardia” (Giddens),
“segunda modernidade” (Beck), “modernidade líquida”
(Bauman) e “pós-modernidade” (Lyotard), dentre vários
outros (Vandenberghe, 2013, p. 246). Tais diferenças

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terminológicas revelam, sem dúvida, discordâncias impor­


tantes nos retratos sociológicos atrelados a esses rótulos.
Ao mesmo tempo, os mais diversos “diagnósticos de época”
dirigidos à fase contemporânea da modernidade convergem
no registro de uma série de tendências sócio-históricas, tais
como a passagem de um regime econômico fordista para
um regime de “acumulação flexível” (Harvey, 1990, p. 141),
a flexibilização das relações de trabalho, a crise do estado de
bem-estar social e a pluralização das formas de vida familiar.
Autores como Bauman, Beck e Giddens também concordam
quanto ao fato de que a operação conjunta dessas transfor­
mações leva a uma “sociedade individualizada” (Bauman,
2001) na qual os indivíduos são crescentemente impelidos,
pela força de suas circunstâncias, a encontrar soluções bio­
gráficas para problemas sistêmicos (Beck, 1992, p. 137).
Segundo o argumento que Bauman desenvolve em
diversas publicações (e.g., 2000), a fase “líquida” da moder­
nidade introduz uma profunda disjunção entre trajetórias 181
biográficas desenhadas a partir de escolhas pessoais e o
ordenamento sistêmico de sociedades inteiras. Por um lado,
devido aos processos de liberalização, flexibilização e “fluidi­
ficação” que afetam tantos domínios da existência individual
(da trajetória profissional ao cuidado com o próprio corpo;
da alimentação aos relacionamentos erótico-afetivos), os
indivíduos não são apenas imbuídos da “oportunidade” de
tornar seus percursos biográficos um projeto reflexivo; eles
são obrigados a fazê-lo e em circunstâncias de significativa
incerteza quanto ao seu sucesso ou fracasso. Por outro lado,
a liberdade de iniciativa que os habitantes do mundo líqui­
do-moderno encontram nas trajetórias individuais não se
traduz em projetos coletivos de transformação da ordem
social como tal. Ainda que os indivíduos tenham de res­
ponder de modo reflexivo e inventivo aos desafios que a
modernidade líquida lhes impõe, eles respondem àqueles
desafios como indivíduos e não como “cidadãos”. Em outras

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Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

palavras, as condutas desses agentes não se articulam em


projetos coletivos de transformação das condições econô­
micas e políticas mais amplas nas quais estão imersos. Nos
termos de Aristóteles, a busca da “boa vida” tornou-se desco­
nectada da procura pela “Cidade justa”.
A “individualização” crescente das respostas a proble­
mas sistêmicos na modernidade tardia, com o correlato esva­
ziamento da dimensão política de tais respostas, pode ser
observada em uma série de domínios, como as condições de
trabalho ou o acesso a serviços de saúde. Seguindo a pista
de autoras como Nancy Fraser (2013) e Cecília Sardenberg
(2008), gostaríamos de explorar o modo pelo qual essa
individualização despolitizante afetou os impactos e as apro­
priações de pautas feministas na sociedade moderno-tardia.
Em particular, importa enfatizar que, à medida que o con­
ceito de empoderamento foi apropriado por organizações
e governos, terminou por legitimar práticas que, de uma
182 perspectiva feminista, estão longe de empoderar mulheres
(Sardenberg, 2008, p. 18). Autoras como Angela McRobbie
(2009) chegam mesmo a argumentar que, contemporanea­
mente, determinadas concepções de liberdade, empodera­
mento e escolha têm sido oferecidas às mulheres como uma
espécie de substituto à política e transformação feminista.
A tese de que o capitalismo é capaz de integrar ao pró­
prio funcionamento ideias e práticas que, de início, lhe são
opostas ganha concretude histórica na análise de Boltanski e
Chiapello sobre o que denominam O novo espírito do capi­
talismo (2007). Nessa obra os autores conectam as transfor­
mações estruturais do capitalismo à inter-relação dinâmica
entre suas ideologias de autojustificação e as críticas de que
o sistema foi objeto. Nesse sentido, por exemplo, o rear­
ranjo do capitalismo em linhas fordistas e keynesianas a par­
tir dos anos 1930 pode ser lido, em parte, como resultado
da incorporação da “crítica social” (Boltanski e Chiapello,
2007, p. 38) dirigida ao capitalismo liberal desde os seus

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primórdios. Como é sabido, a crítica social do capitalismo


ataca o sistema como produtor de desigualdades distributi­
vas e da exploração de uma maioria pobre por uma minoria
rica. Se os mecanismos de proteção social próprios ao estado
de bem-estar mitigaram parcialmente a “crítica social”, o
capitalismo estatalmente organizado foi contundentemente
atacado por outra modalidade de anticapitalismo: a “crítica
artística”. Tal crítica fustigou as megaestruturas da econo­
mia industrial e da burocracia estatal como sufocadoras
da autenticidade, da criatividade e da espontaneidade dos
indivíduos. Com base em uma análise da literatura geren­
cial produzida entre as décadas de 1960 e 1990, Boltanski
e Chiapello concluem que a reestruturação neoliberal do
capitalismo a partir dos anos 1970 e 1980 se inspirou nos
temas ventilados pela própria crítica artística. O desmantela­
mento dos mecanismos regulatórios do “capitalismo organi­
zado” passou a valer-se, assim, de uma apropriação particular
das demandas de outrora por espontaneidade, autonomia, 183
flexibilidade e criatividade nos domínios da economia e do
trabalho. Boltanski e Chiapello não têm muito a dizer a res­
peito de como as relações de gênero estiveram implicadas
em tais mutações estruturais do capitalismo, mas o contorno
geral de seu argumento se aplica a uma reflexão recente
de Nancy Fraser (2013) sobre o destino socioideológico do
feminismo da segunda onda.
Tal como Boltanski e Chiapello notam em relação à crí­
tica artística, Fraser observa que as críticas do feminismo da
segunda onda ao capitalismo keynesiano e fordista termina­
ram por alimentar sua reconfiguração neoliberal, flexível e
individualizante a partir dos anos 1970. Nas suas fontes ati­
vistas no feminismo da segunda onda, os ideais de ampliação
da autonomia individual e do poder de escolha das mulhe­
res nas mais diversas esferas (reprodução, família, trabalho,
sexualidade etc.) caminhavam a par e passo com projetos
de incremento na solidariedade social e na democracia

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Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

participativa. No novo capitalismo, em contraste, a apropria­


ção ideológica das demandas feministas por liberdade e ini­
ciativa individual se fez, em larga medida, à custa daqueles
ideais. Em primeiro lugar, o capitalismo organizado tinha no
arranjo familiar “marido provedor, esposa dona de casa” um
de seus sustentáculos, criticado pelas feministas como fonte
e justificativa material da opressão das mulheres na esfera
doméstica. Se a entrada maciça das mulheres no mercado
de trabalho serviu para desestabilizar parcialmente aquele
pilar de opressão, a mesma narrativa do empoderamento
feminino, diz Fraser (2013), tem sido mobilizada para justi­
ficar regimes de trabalho que são eles próprios opressivos:

níveis salariais reduzidos, segurança no trabalho diminuída,


padrões de vida declinantes, aumento precipitado no
número de horas de trabalho por domicílio, exacerbação da
jornada dupla – agora, frequentemente uma jornada tripla
184 ou quádrupla – e aumento da pobreza, crescentemente
concentrada em domicílios chefiados por mulheres.

De acordo com Fraser, o segundo ingrediente da agenda


feminista incorporado ao ethos neoliberal conecta-se à rela­
ção entre reconhecimento e redistribuição, tema que desen­
cadeou o debate altamente publicizado da autora com Axel
Honneth (Fraser; Honneth, 2003). Contra um olhar restri­
tivo sobre a luta pela emancipação, o qual não ia muito além
de desigualdades econômicas, o feminismo da segunda onda
jogou luz sobre uma série de opressões irredutíveis à econo­
mia, tais como estigmas culturais acerca da feminilidade que
produzem, por si só, sofrimentos psíquicos para as mulheres.
Na era do capitalismo desorganizado, entretanto, o dese­
quilíbrio entre as agendas da redistribuição econômica e
do reconhecimento cultural se inverteu. Segundo Fraser, a
crítica a manifestações culturais sexistas terminou por eclip­
sar demandas por igualdade distributiva, justamente num

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período em que a “flexibilização” do capitalismo tende a


acirrar desigualdades socioeconômicas em diversos países do
mundo. Por fim, e de modo articulado, os ataques do femi­
nismo da segunda onda aos componentes paternalistas do
estado de bem-estar social, ataques originalmente pensados
como parte de uma estratégia para o empoderamento dos
cidadãos e uma partilha mais democrática do poder polí­
tico, foram instrumentalizados na dissolução neoliberal do
“estado-babá”. Como exemplo dessa tendência, Fraser men­
ciona a crescente substituição de macroprogramas (inter)
governamentais de combate à pobreza por estratégias palia­
tivas e individualizantes como os chamados “microcréditos”
– pequenos empréstimos bancários a mulheres pobres do
Terceiro Mundo. Sendo mais um pacote de “soluções” indi­
viduais para problemas sistêmicos, tais iniciativas particula­
rizam a ideia de empoderamento, desligando-a de qualquer
agenda macropolítica que busque combater as raízes estru­
turais da pobreza e da desigualdade. Não é fortuito o uso 185
de termos como “zonas de empoderamento” para designar
programas que, na realidade, dizem respeito à privatização
dos serviços públicos (McLaughlin, 2016).
Foi dessa dimensão individualizante das pautas feminis­
tas que os discursos midiáticos se apropriaram, em particu­
lar a publicidade. De acordo com Rosalind Gill e Christina
Scharff (2011, p. 4), esses discursos refletem uma espécie de
sensibilidade cultural (associada ao pós-feminismo) com as
seguintes características:

a feminilidade é cada vez mais pensada como uma


propriedade corporal; uma mudança da objetificação
para subjetivação na forma como (algumas) mulheres
são representadas; uma ênfase na autovigilância,
no automonitoramento e na disciplina; um foco no
individualismo, na escolha e no empoderamento; a
dominância do paradigma da transformação [estética e

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cosmética]; um ressurgimento das ideias de diferença


sexual natural; uma marcada ressexualização dos
corpos das mulheres; uma ênfase no consumismo e na
mercantilização da diferença.

Não por acaso, a beleza, que foi frequentemente denun­


ciada como um mecanismo de sujeição feminina pelo femi­
nismo de segunda onda, tem sido ressignificada como “direito”
das mulheres (e.g., no título de um dos livros do cirurgião plás­
tico Ivo Pitanguy, Direito à Beleza); em termos meritocráticos
(“porque eu mereço”, diz a propaganda da Elseve, da L’Oréal);
como sustentáculo da autoconfiança (“tudo pode acabar,
menos sua autoconfiança”, ensina a campanha “Acredite na
beleza”, de O Boticário). Não se trata, portanto, de mera esteti­
zação de motifs feministas, como afirma Goldman (1992), mas
da introdução de valores relativos a um ethos neoliberal que,
dentre outros elementos, fundamenta-se em uma concepção
186 de sujeito em termos de autogoverno, autonomia, empreende­
dorismo e performance (cf. Ehrenberg, 2010). É nesse sentido
que a “individualização” das pautas do movimento feminista
promove a transformação de objetivos sociopolíticos em esco­
lhas individuais de estilo de vida, desarmando parte impor­
tante de seu aspecto político.
Como já afirmamos, manter uma postura crítica em
relação à apropriação publicitária de pautas feministas não
significa negar a existência de qualquer potencial ou com­
ponente “emancipatório” nessas propagandas. Ainda que
por motivos meramente comerciais, não se pode negar que
a publicidade tem absorvido grande parte da crítica à repre­
sentação de mulheres em termos objetificantes, e isso tem
consequências para o processo de socialização de crianças e
mesmo de adultos6. Em compasso com o que Vandenberghe

6 
A importância da dimensão socializadora da publicidade é enfatizada por auto­
ras como Susan Bordo (1999). Em sua análise do efeito de imagens da mídia em
concepções de beleza e de normalidade, a autora menciona, por exemplo, um

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chama de teoria crítica “multidimensional” (2009) acredi­


tamos que é possível articular, em um mesmo registro, o
diagnóstico crítico da reprodução de formas de dominação
com a identificação de aspectos emancipatórios nas configu­
rações sociais contemporâneas.
De forma a ilustrar os argumentos desenvolvidos acima
efetuaremos agora uma espécie de descrição densa do vídeo
“Como uma garota”, que inaugurou a campanha pelo empo­
deramento de meninas da marca de absorventes Always. Ao
basearmos nossa descrição em dois trabalhos centrais ao
feminismo de segunda onda, nosso propósito é evidenciar
como é possível se apropriar ideologicamente de deman­
das feministas por liberdade e iniciativa individual em detri­
mento de ideais associados ao incremento da solidariedade
social e da participação política. Em outros termos, trata-se de
evidenciar a individualização e despolitização das pautas do
feminismo de segunda onda no “feminismo da mercadoria”.
187
“Como uma garota”: breve estudo de caso
De acordo com um estudo de mercado desenvolvido
pela D&AD7 o objetivo da campanha “Como uma garota”
era apelar para uma nova geração de consumidoras. Na
visão do estudo, enquanto a Always continuava enfatizando
a performance do produto, a competição vinha adotando
outras estratégias, como o engajamento emocional dos con­
sumidores e o uso das mídias sociais. Nesse sentido, a marca
demandou das agências publicitárias o desenvolvimento
de uma campanha que acentuasse seu apoio ao empode­
ramento de meninas, um compromisso que supostamente

estudo em que meninos e meninas de onze anos foram solicitados a classificar uma
série de desenhos que retratavam crianças com diversos tipos de “deficiência”.
Surpreendentemente, os desenhos de crianças gordas geraram mais desconforto
e desaprovação do que os de crianças sem mãos ou com desfiguramento facial.
7 
“Always: #LikeAGirl”. Disponível em: <https://digitalcasestudies.wordpress.
com/2015/03/11/always-likeagirl-2/>. Acesso em: 27 fev. 2018.

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caracterizaria a marca há várias décadas, mas que as velhas


estratégias publicitárias não deixavam evidente. Fazia-se
necessário, então, “compreender os problemas enfrentados
atualmente por meninas na puberdade”8.
Com base nisso, encomendou-se em 2014 uma enquete
nacional nos EUA, que compreendeu uma amostra de
1300 jovens mulheres, entre 16 e 24 anos, sendo 150 afro­
americanas e 150 latinas (“de origem hispânica”) (“new
social experiment”). Os principais resultados da pesquisa
foram publicados no site oficial da Procter & Gamble e
sugerem que a enquete foi construída com base em duas
categorias centrais: autoconfiança e feminilidade (cujo
indicador principal diz respeito aos significados associa­
dos à expressão “como uma garota”)9. Cerca de 56% das
entrevistadas afirmaram ter experimentado uma queda na
autoconfiança durante a puberdade, particularmente no
período da primeira menstruação e no início do ensino
188 médio. As maiores taxas de queda da autoconfiança foram
reportadas por meninas de origem hispânica (60%), segui­
das por caucasianas (sem dados) e por afrodescendentes
(50%). No que diz respeito ao significado de “como uma
garota”, a maioria das entrevistadas (89%) concordou que
as palavras podem machucar, especialmente as meninas.
Apenas 19% associaram a expressão com algo positivo;
57% concordaram com a afirmação de que deveria haver
algum tipo de movimento para mudar a percepção nega­
tiva associada a ela; e 81% afirmaram apoiar a iniciativa da
Always para a criação de tal movimento.

8 
Disponível em: <https://digitalcasestudies.wordpress.com/2015/03/11/
always-likeagirl-2/>.
9 
Dado que a descrição da metodologia se resume à especificação do tamanho da
amostra, não temos como avaliá-la do ponto de vista de sua validade. No entanto,
os resultados obtidos são compatíveis com a tese de Gilligan (1993) de que meni­
nas experimentam uma queda na autoconfiança em torno da puberdade.

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O movimento assumiu a forma de uma série de “experi­


mentos sociais”, captados sob a forma de “documentários”. O
primeiro vídeo da série10, datado de 2014, tinha pouco mais
de três minutos e foi posteriormente editado para ser exibido
na abertura do Super Bowl. Ambas as versões foram ampla­
mente divulgadas no Youtube e compartilhadas nas redes
sociais. Na abertura da versão longa do vídeo, o tema do
“documentário” é ancorado por meio da seguinte legenda:
“o que significa fazer algo ‘como uma garota’?”. Na sequên­
cia solicita-se, individualmente, que jovens adultos (em torno
dos vinte anos) e um menino desempenhem uma série de
ações (correr, lutar, arremessar). O resultado revela-se na
forma de movimentos corporais estereotipados e fracos: uma
corrida interrompida por um “ai, meu cabelo”, tapas desfe­
ridos com os braços tão próximos ao próprio corpo que não
chegam a alcançar o alvo, um objeto arremessado com tão
pouca força que cai perto demais dos próprios pés de quem
arremessa, gerando um “ah” de frustração. 189
Ainda que isso não seja mencionado nos estudos que
informam a campanha publicitária da Always, os movimen­
tos estereotipicamente associados à expressão “como uma
garota” foram objeto de uma análise detalhada feita pela filó­
sofa Iris Marion Young (2005) em um ensaio originalmente
publicado no início da década de 1980. Com base em articu­
lação criativa entre as fenomenologias existenciais de Simone
de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty, Young descreve três
características centrais nos modos como as mulheres na
modernidade ocidental conduzem seus corpos: “transcendên­
cia ambígua”, “intencionalidade inibida” e “unidade descon­
tínua” consigo e com o ambiente circundante (2005, p. 35).
Ela parte do exemplo do “lançar como uma garota”: quando
uma garota arremessa uma bola, ela não engaja seu corpo

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lM6hSM29HTc>. Acesso


10 

em: 25 abr. 2017.

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Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

inteiro no movimento. Em vez do giro para trás seguido da


projeção para a frente, típicos dos meninos, as meninas utili­
zariam somente o antebraço (2005, p. 27). Segundo Young,
o mesmo padrão seria encontrado em outros movimentos de
meninas, como no correr, no escalar, no sentar e no socar:
as meninas não mobilizam o corpo como um todo em favor
de um movimento otimamente expansivo, mas confinam
seu movimento a uma parte do corpo, contendo sua própria
expansão no espaço – o que é expresso de forma estereoti­
pada na primeira parte do vídeo da Always.
Tal estilo de se movimentar seria signo de um ser-no­
-mundo marcado pela timidez e pela hesitação, bem como
por uma experiência do corpo menos como um instrumento
prático de efusão ativa de si sobre o mundo do que como
um objeto vulnerável que necessita de proteção. A expan­
sividade parcial e autocontida desses movimentos expres­
saria uma ambivalência constitutiva da existência feminina
190 no Ocidente moderno. Ainda que os propósitos do ensaio
de Young sejam eminentemente descritivos, ela obviamente
não atribui essa ambivalência a fatores naturais ou a qual­
quer espécie de “essência” da mulher, mas sublinha com
vigor as fontes histórico-culturais de tais modos “femininos”
de condução do próprio corpo.
O que Merleau-Ponty chamou de “transcendência” do ser
humano em relação ao mundo consiste na capacidade de se
projetar ativamente no ambiente circundante e nele produ­
zir efeitos. Segundo a “fenomenologia gendrada” de Young,
a “ambiguidade” dessa transcendência nos movimentos cor­
porais de mulheres deriva do grau em que a efusão ativa do
próprio corpo sobre o mundo permanece, entre elas, emper­
rada, hesitante, tímida e autocontida. Nos seus movimentos,
o corpo é exteriormente visto e internamente experimentado
menos como “sujeito expansivo” capaz de produzir efeitos no
mundo e mais como um “objeto vulnerável”, que não deve
ser forçado aos seus limites e precisa ser abrigado de riscos

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externos. Um exemplo disso é a auto-objetificação envolvida


no comentário “ai, meu cabelo!”, feito por uma mulher adulta
correndo “como uma garota” no início da propaganda.
Essa referência ao próprio cabelo permite conectar a
propaganda a um dos momentos em que Young vai além da
descrição fenomenológica e oferece pistas para explicar por
que “a existência corporal feminina é uma intencionalidade
inibida que, simultaneamente, busca um fim projetado com
um ‘eu posso’ e contém seu compromisso corporal pleno com
um ‘eu não posso’ autoimposto” (2005, p. 36). A concepção
do próprio corpo como objeto, mais do que como sujeito,
não deriva apenas do fato de que mulheres são ensinadas a
subestimarem suas forças físicas, mas também do grau em que
o juízo social sobre seus corpos se concentra muito mais em
sua aparência do que em suas capacidades. Não precisamos
ir muito longe na interpretação para concluirmos que o “ai,
meu cabelo!” não exprime vulnerabilidade à dor, mas a pre­
ocupação com a “desarrumação”. Para Young, com efeito, 191
quando a monitoração externa da aparência física é interio­
rizada via socialização, os movimentos corporais são sempre
contidos por uma automonitoração dirigida à aparência como
objeto. A autorreferência corpórea explica também o último
atributo listado por Young: a “unidade descontínua” consigo
e com o ambiente. A efusão intencional plena do corpo sobre
o mundo supõe que o corpo todo seja vivido como sujeito.
A vivência de si como objeto condena parte do corpo a per­
manecer imóvel, isto é, a não contribuir com o movimento
tencionado (p. ex., somente o braço lança a bola, enquanto as
pernas permanecem fincadas no chão). Além disso, enquanto
a projeção intencional de si no mundo envolve um senso de
apropriação ativa (no caso do vôlei citado por Young, ir à bola
como um objeto da minha força), a percepção de si como
objeto entre objetos leva à passividade ou a meros movimen­
tos de proteção (p. ex., defender o rosto diante da bola que
vem com velocidade na minha direção).

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Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

O texto de Young cinge-se à descrição das formas típi­


cas de movimento entre as mulheres ocidentais, sem ofe­
recer um programa para uma reconfiguração eticamente
motivada da condução do próprio corpo pelas mulheres.
Com efeito, em momento posterior de sua carreira, a pró­
pria autora atacou o ensaio por supostamente mostrar as
mulheres apenas em termos de vulnerabilidade e tomar
implicitamente os estilos masculinos de movimento como
padrão normativo (Bartky, 2009, p. 49-51). Em uma defesa
de Young contra a própria Young, Bartky sustenta, contudo,
que uma teoria crítica voltada a práticas emancipatórias
poderia tomar como pontos de partida suas investigações
detalhadas dos efeitos da dominação masculina sobre o ser­
-no-mundo corpóreo das subjetividades gendradas como
“femininas”. Em um segundo momento, no entanto, a
crítica deveria partir dessas investigações para descortinar
caminhos de transformação dos hábitos corporais que cons­
192 tituem a interiorização da dominação de gênero. A agenda
feminista conectar-se-ia, nesse sentido, a uma espécie de
reeducação corporal emancipatória voltada, por exemplo,
a tornar “inambígua” a transcendência do corpo e a “desini­
bir” sua intencionalidade, para usar o vocabulário fenome­
nológico-existencial de Young.
Essa ressignificação dos movimentos corporais comu­
mente associados à expressão “como uma garota” é o obje­
tivo autodeclarado da propaganda da Always. Nesse sentido,
poder-se-ia dizer que a propaganda possui um componente
emancipatório, no sentido de uma reconfiguração da condu­
ção da própria corporeidade – reconfiguração que envolve­
ria, por exemplo, tomar o próprio corpo como um “sujeito”
que se projeta no mundo (em vez de um “objeto” vulnerá­
vel) ou realizar movimentos plenamente expansivos (em vez
de parciais e autocontidos) e assim por diante. Já afirmamos
que é possível fazer tal apreciação normativa da propaganda
sem deixar de contrabalançá-la com considerações acerca

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

da força “canibalizadora” do capitalismo atual e da indivi­


dualização crescente de pautas políticas ao longo das linhas
desenhadas pelo ethos neoliberal (autonomia, iniciativa,
empreendedorismo, culto da performance etc.).
Tais considerações se tornam mais inteligíveis no res­
tante do vídeo, agora buscando ressonâncias com outro
clássico da literatura feminista: o trabalho de Carol Gilligan
sobre o desenvolvimento de meninas (Gilligan, 1993 [1982]
e 1990; Gilligan e Brown, 1992)
Vimos anteriormente que, em resposta à pergunta “o
que significa fazer algo ‘como uma garota’?”, adultos da
faixa de vinte anos, além de um menino mais novo, reali­
zaram movimentos caricaturalmente fracos e inibidos, ao
estilo daqueles que foram tão bem analisados por Young.
Em seguida a essa cena, o vídeo traz uma nova legenda:
“Pedimos a mesma coisa a meninas jovens”. Em contraste
com os adultos, as meninas executam seus movimentos
de modo vigoroso e confiante, sem quaisquer afetações 193
de ineficiência e frustração. Logo depois, o significado da
expressão, antes representado por movimentos corporais,
é solicitado pela diretora do documentário em termos ver­
bais: “o que significa para você quando eu digo ‘corra como
uma garota’?”. “Significa ‘corra o mais rápido que puder’”,
afirma a menina que aparenta cerca de seis anos de idade.
Nova legenda, numa clara alusão ao desenvolvimento infan­
til: “quando foi que fazer algo ‘como uma garota’ tornou-se
um insulto?”. Agora, a diretora estabelece um breve diálogo
com o único menino (aparentando cerca de dez anos) a
figurar no vídeo: “Então, você acha que acaba de insultar
sua irmã?”. “Não!”, ele responde de forma enfática, e se
contradiz, constrangido, mas reticente: “quer dizer, sim…
eu insultei meninas, mas não minha irmã”. E voltando-se a
uma das meninas, que aparenta a mesma idade do menino,
a diretora pergunta: “[A expressão] ‘como uma garota’ é
algo bom?”. “Na verdade eu não sei se é uma coisa boa ou

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

ruim”, hesita a menina, sem perder a assertividade, “soa


como se você tivesse querendo humilhar alguém”. A mistura
de dúvida e autoconfiança é então contrastada com uma
nova legenda: “a autoconfiança de uma menina despenca
na puberdade” e “a Always quer mudar isso”. O foco num
discurso verbal, possivelmente numa tentativa de melhor
ancorar a mensagem pretendida, continua nas perguntas
dirigidas às jovens mulheres que apareceram anteriormente:
“Quando estão em sua fase mais vulnerável, entre os 10 e
os 12 anos, você acha que isso afeta [as meninas] quando
alguém diz ‘como uma garota’ como um insulto?”. “Eu acho
que isso definitivamente abaixa sua autoconfiança e real­
mente as coloca para baixo, porque durante esse período
elas estão tentando descobrir quem são, e quando alguém
diz ‘você rebate como uma garota’, é como se dissesse …
que elas são fracas e que não são tão boas quanto os outros”.
Embora a queda na autoconfiança de meninas durante
194 a puberdade não constituísse o foco inicial do trabalho de
Gilligan, o fenômeno foi por ela observado em uma série
de trabalhos empíricos relativos ao desenvolvimento moral.
Seu livro Em uma voz diferente, originalmente publicado
em 1982, consistiu em uma crítica a teóricos do desen­
volvimento infantil, particularmente a seu ex-orientador
Lawrence Kohlberg, que argumentou que as mulheres não
atingiam o que ele concebia como o último estágio de desen­
volvimento moral, o estágio 6, baseado no uso de raciocínios
abstratos relativos a princípios éticos universais e à ideia de
justiça. Resumidamente, o argumento de Gilligan é o de que
a definição do desenvolvimento moral em termos da evolu­
ção de selves autônomos, capazes de aplicar princípios abs­
tratos universais, não dá conta do todo da experiência moral
humana. Isso porque alguns problemas morais decorrem
não da “competição entre direitos” que requerem um tipo
de pensamento formal e abstrato, mas da “competição entre
responsabilidades”, o que requer um tipo de pensamento

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

“narrativo e contextual”. Mais especificamente, os dilemas


morais identificados nos últimos estágios de desenvolvimento
– caracterizados em termos de como definir fronteiras claras
entre os indivíduos e protegê-los dos conflitos ou, em ter­
mos mais abstratos, de como exercer os próprios direitos sem
interferir nos direitos dos outros – precisam ser expandidos
a fim de incluir outro tipo de questão: o de como restaurar
as fraturas que podem ocorrer nas relações humanas con­
cretas e particulares de forma responsável (consigo e com
os outros) (Gilligan, 1993 [1982], p. 21). Embora isso tenha
sido frequentemente formulado em termos de uma relação
(às vezes de oposição) entre uma ética da justiça e uma ética
do cuidado, autoras como Susan Hekman (2014, pp. 56-76)
e Susan Bordo (1999, pp. 204-207) apontam para uma con­
sequência mais ampla dessas considerações: uma concepção
alternativa de self, pensado não mais como sujeito autônomo
e universal, mas como um sujeito relacional, formado por
195
suas relações com outros e a partir de suas experiências (no
caso, gendradas). Em acordo com outras teóricas das relações
objetais, Gilligan explica a diferença a partir da forma como
meninos e meninas são socializados: dado que, ao contrário
dos meninos, as meninas não são encorajadas a se separarem
de suas mães, elas tendem a “desenvolver habilidades relacio­
nais” e a pensar a autonomia como “algo problemático”; já os
meninos são socializados no sentido de temer as relações e
desenvolver habilidades relativas à autonomia.
De acordo com Gilligan (1990), o encontro dessas
lógicas distintas tende a se apresentar às meninas durante
a adolescência, com consequências devastadoras para sua
autoconfiança. Ao confrontar aquilo que a autora deno­
mina de “o muro da cultura ocidental” (outro termo para
a cultura patriarcal), meninas que aos onze ou doze anos
se expressavam de maneira assertiva e autoconfiante pas­
sam a se apresentar de maneira conformista, hesitante e a

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

opor menos resistência àquilo que consideram moralmente


injusto:

quando trazido para o mundo público, o saber de meninas


é frequentemente desconsiderado como trivial ou visto
como transgressivo, com o resultado de que as meninas
são reiteradamente instadas a não falar, a não dizer nada,
ou pelo menos a não falarem em público sobre o que elas
sabem (Gilligan, 1990, p. 520).

Em um sentido importante, o que as meninas aprendem


na passagem da socialização primária para a secundária (e
os meninos, ainda na socialização primária) é que ser “uma
boa mulher” nas sociedades ocidentais é renunciar a seu
próprio conhecimento sobre o corpo e sobre as relações,
conformando-se à concepção dominante de sujeito: abs­
trato, racional, descorporificado, solipsista. Paradoxalmente,
196 aponta a autora (Brown e Gilligan, 1992, p. 217), essa renún­
cia ocorre como uma tentativa de manter as relações com os
outros, mas agora sob a forma de evitação do conflito: o que
antes era considerado pelas meninas como honestidade na
resolução de conflitos interpessoais (p. ex., o ato de dizer
abertamente o que pensa ou de intervir em favor de alguém
com base em características específicas e particulares), passa
a ser interpretado em termos de egoísmo, maldade, rudeza
ou simplesmente estupidez. Haveria, assim, uma tendência,
na passagem da infância para a adolescência, “de uma resis­
tência que é essencialmente política” – uma insistência em
saber o que se sabe e uma vontade de falar o que se pensa
– “para uma resistência psicológica: uma relutância em se
saber o que se sabe e um temor de que tal saber, se falado,
colocará suas relações em risco e ameaçará sua sobrevivên­
cia” (Gilligan, 1990, p. 501).
Essa resistência psicológica, entendida no sentido
de uma estratégia de sobrevivência diante de realidades

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

relacionais incomensuráveis, é mais tarde retratada em ter­


mos de formas diversas de dissociação: entre a psique e o
corpo, os sentimentos e os pensamentos, os pensamentos e
a voz (Brown e Gilligan, 1992). Assim, se as reflexões iniciais
de Gilligan sobre a relação entre resistência psicológica e
resistência política visavam salvaguardar o potencial emanci­
patório da primeira (no sentido de que, mesmo sob o signo
da repressão, aquilo que foi reprimido poderia um dia se
tornar uma “resistência pública”), seu trabalho com Brown
aponta para uma conclusão muito mais pessimista: a de que
“o movimento em direção ao mar da cultura ocidental” é
um “movimento de perda psicológica profunda” (1992,
p. 180). Isso, por um lado, desautoriza qualquer tentativa de
reduzir ou mesmo de fundamentar a resistência política na
resistência psicológica; por outro, constitui uma forte crítica
a concepções abstratas de self e de direitos. De fato, como
sugere Bordo (1999), o que a diferença de gênero enfati­
zada por Gilligan proporciona é basicamente uma porta de 197
entrada para uma crítica cultural – uma dimensão que não
pode ser excluída quando consideramos a propaganda da
Always. Contudo, há uma diferença significativa no ethos
considerado: enquanto Gilligan enfatiza a existência de
valores ligados às relações e uma concepção relacional de
self, a publicidade enfatiza valores ligados à performance, ao
sucesso individual e à autonomia – algo amplamente explo­
rado por meio das metáforas esportivas.
O restante do “documentário”, em que a diretora esta­
belece uma série de diálogos com as mulheres que figu­
raram na primeira parte do anúncio, fornece uma pista
importante para o ethos que está em jogo. À pergunta da
diretora “O que você aconselharia a meninas jovens quando
elas ouvem que correm como uma garota, chutam como
uma garota, nadam como uma garota?”, a “entrevistada” res­
ponde: “Continue fazendo isso, porque está funcionando.
Se alguém lhe disser que correr como uma garota ou chutar

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres

como uma garota ou atirar como uma garota é algo que


você não deveria fazer, isso é problema deles. Porque se você
ainda está marcando pontos, ainda está chegando na bola a
tempo e ainda está chegando em primeiro lugar, você está
fazendo a coisa de forma certa, não importa o que digam…”.
“Se eu lhe pedisse para correr como uma garota agora,
você faria diferente?”, pergunta a diretora a outra das mulhe­
res que havia desempenhado as ações solicitadas no início.
“Eu correria como eu mesma”, responde a moça, sugerindo
a recuperação imediata da autoconfiança e da autenticidade
perdidas. “Você gostaria de tentar de novo?”. A isso se segue
uma série de imagens das mesmas mulheres que antes desem­
penharam os movimentos estereotipados – que agora se movi­
mentam de forma fluida, ampla, eficiente – acompanhadas
de novas legendas que enfatizam o nome da campanha e
sua hashtag: “Vamos fazer #comoumagarota significar coisas
incríveis” e “junte-se a nós para promover a autoconfiança
198 de meninas na Always.com”. Por fim, o convite à ressignifica­
ção por parte de uma das jovens mulheres – “Por que ‘correr
como uma garota’ também não pode significar ‘vença a cor­
rida’?” e a legenda: “reescreva as regras Always [sempre]” 11.
Reescrever as regras, ao que tudo indica, depende simples­
mente de seguir os “imperativos do self empreendedor” (Rose,
1996) a fim de vencer a corrida. Como argumentado ao longo
deste trabalho, em lugar da crítica às estruturas de dominação,
da importância dos laços sociais e das estratégias coletivas de
luta política, enfatizam-se a autoconsciência, o autogoverno, a

11 
Esses elementos são também enfatizados no segundo vídeo da campanha, sob
o título de “unstoppable”. Ao enfatizar que “72% das meninas sentem que a socie­
dade as limita” e que “a Always quer mudar isso”, meninas são solicitadas a escrever
em grandes caixas de papelão as limitações a que elas se sentem submetidas. As
principais: “sem valor”, “fraca”, “covarde”, “feia”, “meninas não podem jogar bas­
quete”, “bonita”, “mandona”, “submissa”, “pequena”, “chorona”, “não pode ter
músculos”. Essas caixas são depois atacadas pelas próprias meninas, em movimen­
tos certeiros e fluidos, seguindo-se o convite a nos juntarmos à campanha para
o aumento da autoconfiança de meninas. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=VhB3l1gCz2E>. Acesso em: 25 abr. 2016.

Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


Cynthia Hamline Gabriel Peters

eliminação da dependência, a competição, o sucesso individual


e a liberdade para fazer escolhas. Revelam-se, assim, o alcance
e os limites do empoderamento no feminismo da mercadoria.

Cynthia Hamlin
é Doutora em Pensamento Político e Social pela
Universidade de Sussex (1997) e professora associada do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), onde coordena o Grupo de Estudos
em Teoria Social e Subjetividades (GETSS).

Gabriel Peters
é Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-
UERJ) e professor adjunto do Departamento de Sociologia
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Colabora
com o Grupo de Estudos em Teoria Social e Subjetividades
199
(GETSS) na UFPE e com o Núcleo de Pesquisa em Filosofia
das Ciências Sociais (Sociofilo) no IESP-UERJ.

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Lua Nova, São Paulo, 103: 167-202, 2018


203
A CONCEPÇÃO HOLÍSTICA E PROCESSUAL DE TEMPO
DE NORBERT ELIAS1
Eugênio Rezende de Carvalho
é Professor Titular da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil.
E-mail: <eugeniodecarvalho@gmail.com>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-203231/103

… o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo,


uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo.
Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a
mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.
Machado de Assis, Esaú e Jacó

De acordo com as reflexões sobre o tempo do sociólogo


alemão Norbert Elias (1897-1990), as tradições filosóficas do
objetivismo e do subjetivismo e as teorias tradicionais do conhe­
cimento – que tendiam a conceber o mundo a partir de uma
infinitude de antíteses não processuais – seriam responsáveis
pelas divisões conceituais dicotômicas entre objeto e sujeito,
natureza e sociedade, mundo físico e social, tempo objetivo e
subjetivo, tempo físico e social, tempo da natureza e da cons­
ciência, tempo cosmológico e fenomenológico etc. como partes
existencialmente independentes e inconciliáveis. Por isso, o
esforço teórico de Elias se concentrou em elaborar uma síntese
processual para o problema do tempo que refutasse dualismos

A investigação que resultou na presente publicação recebeu o apoio do Conselho


1 

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

e conectasse numa unidade pares dicotômicos – não apenas


como uma mera soma, mas como uma articulação necessária –,
apoiando-se no reconhecimento da interdependência e imbri­
cação mútua entre os níveis físico, biológico, social e individual,
sem o qual – para Elias – o enigma que envolve o conceito de
tempo continuaria sem solução.
As bases teórico-filosóficas – e, destacadamente, episte­
mológicas – da investigação de Elias sobre o tempo podem
ser buscadas principalmente em seus clássicos O processo civi-
lizador2 (2011, 1993) – especialmente o primeiro volume,
publicado originalmente em 1939 – e A sociedade dos indiví-
duos (1994a) – as duas primeiras partes, escritas em décadas
anteriores à publicação do livro em 1987 –; assim como em
Envolvimento e alienação (1998a), em suas entrevistas e notas
biográficas (1994b, 2001) – publicadas pela primeira vez em
1984 e posteriormente reunidas e transformadas em livro –
e, sobretudo, em The symbol theory3 (Teoria do símbolo, 1991), o
204 último livro publicado por Elias antes de sua morte. As refe­
rências de Elias – diretas ou indiretas – à problemática con­
ceitual do tempo foram raras em suas primeiras obras e um
pouco mais frequentes em seus últimos estudos. Todavia,
indubitavelmente, a mais importante fonte de investiga­
ção do conceito de tempo de Norbert Elias é constituída
basicamente de uma série de ensaios reunidos e publica­
dos em 1984 no livro Über die zeit (Sobre o tempo).4 É com a

2 
Elias estabeleceu alguns vínculos importantes entre seu estudo sobre o tempo
e investigações anteriores sobre o processo de civilização, notadamente no que se
refere ao sentido das mudanças no uso do tempo, tanto na esfera social quanto na
dimensão física do universo, como meio de orientação e de regulação da conduta
humana. Ver, a propósito, Elias e Dunning (1992, p. 44).
3 
Obra sem tradução para o português. Utilizamos, neste artigo, a tradução espa­
nhola (Elias, 1994c).
4 
A primeira parte dos manuscritos desses ensaios foi redigida em inglês e publicada
em holandês na revista De gids, entre 1974 e 1975, sendo que o restante foi escrito
diretamente em alemão, quando da publicação em forma de livro, em 1984, de
todo o conjunto desses 46 ensaios apenas numerados – incluindo a tradução para o
alemão da primeira parte. Utilizamos neste artigo a edição brasileira (Elias, 1998b).

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

publicação desse livro que Elias entraria definitivamente no


debate filosófico sobre o caráter do tempo.
Conquanto esse tenha sido um assunto de certa forma mar­
ginal quando comparado a tantas outras temáticas que integra­
ram sua teoria sociológica mais geral, as reflexões de Elias sobre
o tempo alcançaram nas últimas décadas uma grande difusão
e repercussão, tornando-se leitura obrigatória para quem quer
que se proponha ao estudo do tema. A importância maior de
sua contribuição ao debate acerca da natureza do tempo reside
principalmente em sua visão holística e processual do fenô­
meno temporal, uma visão que busca não apenas se afastar da
dicotomia entre as abordagens objetivistas e subjetivistas, mas
superá-la, de forma a melhor compreender e elucidar o pro­
blema filosófico, epistemológico, social e histórico do tempo.

O tempo como um símbolo social, uma síntese


conceitual de alto nível
Em seu esforço de propor uma compreensão do tempo 205
que abrisse caminho entre as alternativas filosóficas tradi­
cionais do subjetivismo e do objetivismo, do nominalismo e
do realismo, Elias deixou clara a necessidade, para tanto, de
fornecer “elementos de interpretação dos símbolos sociais”.
Nesse sentido, seu estudo acerca do tempo integrou uma
investigação mais ampla – em parte realizada posteriormente
à publicação de seu livro Sobre o tempo – que visou à elaboração
de uma teoria geral do símbolo, já que para ele o tempo seria
um símbolo relacional e socialmente comunicável (Elias, 1998b, p.
27). Assim, a investigação de Elias sobre o tempo, nas déca­
das de 1970 e 1980, motivou-o a desenvolver uma teoria mais
geral a respeito dos símbolos, o que resultou na elaboração
e publicação, em 1989, do seu livro The symbol theory, uma
fonte fundamental para compreender sua abordagem do
tempo. Junto a outras obras como Sobre o tempo e Envolvimento
e alienação – publicados originalmente em 1984 e 1983, res­
pectivamente –, esse livro integra o que poderíamos chamar

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

de grupo de escritos eliasianos sobre sociologia do conheci­


mento, nos quais ele incorpora certos fundamentos – embora
não todos – da sociologia do conhecimento do húngaro Karl
Mannheim (1893-1947), de quem foi amigo e colaborador.
Em Teoria do símbolo, Elias se propôs a detalhar sua teo­
ria, a qual visaria, em síntese, colocar e resolver a questão da
natureza do conhecimento em sua conexão indissolúvel com
a linguagem e o pensamento (Elias, 1994c, p. 171). Nota-se
nesse livro uma convergência significativa das teses de Elias
com as ideias a respeito dos símbolos formuladas pelo filósofo
Ernst Cassirer em Filosofia das formas simbólicas (2001, 2004,
2011) e pelo semiólogo Umberto Eco em Semiótica e filosofia
da linguagem (1991) – o que é corroborado na obra por meio
das referências explícitas a esses autores. Aliás, foi Cassirer
quem mais tarde afirmou que antes de se definir o homem
como um animal racional, ele deveria ser definido como ani-
mal symbolicum (Cassirer, 1994, p. 50). Ao ressaltar o caráter
206 simbólico do tempo, Elias lembrou, antes de tudo, que os
símbolos sociais são a forma dominante de comunicação
humana, e que os homens se inserem num mundo de sím­
bolos que eles mesmos criaram e dos quais são dependentes.

O fato de os homens deverem e poderem se orientar em


seu mundo adquirindo um saber, e de, com isso, sua vida
individual e coletiva depender totalmente da aprendizagem
de símbolos sociais, é uma das particularidades que
diferenciam o ser humano de todos os outros seres vivos.
Ora, o tempo faz parte dos símbolos que os homens são
capazes de aprender e com os quais, em certa etapa da
evolução da sociedade, são obrigados a se familiarizar, como
meios de orientação (Elias, 1998b, p. 20).

Segundo Elias, os instrumentos de medição do tempo,


por exemplo, seja qual for a sua natureza, sempre nos trans­
mitem mensagens. De modo que, quando afirmamos que

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Eugênio Rezende de Carvalho

os instrumentos de mensuração do tempo – como os reló­


gios – indicam o “tempo”, isso significaria que eles o fazem
por meio de uma emissão de mensagens, de uma produção
contínua de símbolos, que funcionam como meios de orien­
tação. Para que um processo físico se convertesse num ins­
trumento de determinação do tempo, seria necessário que
ele se associasse a um símbolo social móvel, sob a forma de
informação ou regulação, inserido no sistema de comunica­
ção das sociedades humanas. Isso não significa, entretanto,
que poderíamos simplesmente separar a dimensão simbó­
lica de um instrumento de mensuração do tempo de suas
propriedades físicas. Para Elias, o tempo enquanto símbolo
não seria inconciliável com o seu caráter de dimensão do
universo físico (Elias, 1998b, p. 16). Dessa maneira,

as configurações móveis que servem para a determinação


temporal dos acontecimentos são transformadas pelos habitus
sociais dos espectadores em representações simbólicas de 207
momentos puros do escoamento de um “tempo imaterial”.
E este, segundo a expressão consagrada, parece “seguir seu
curso”, independentemente de qualquer movimento físico e
qualquer testemunho humano (Elias, 1998b, p. 97).

Daí o tempo ter se tornado, paulatinamente, uma


representação simbólica de uma ampla rede de relações,
que envolvem processos variados. Mas seria necessária
uma ação humana ordenadora, uma “síntese consciente­
mente aprendida”, para que tais processos fossem captados
no espaço e no tempo. Diante disto, de acordo com Elias,
a noção de tempo representaria, em seu estágio atual de
desenvolvimento, uma síntese conceitual de altíssimo nível,5

5 
Elias preferiu a expressão “sínteses de alto nível” ao emprego do termo mais
costumeiro, “abstrações”, por considerar a “falta de clareza” desse último, tal como
ocorre na polaridade conceitual “abstrato-concreto”, que lhe seria aparentada. Ver
Elias (1998b, p. 138).

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

exatamente por relacionar posições ou durações, seja no


desenrolar dos eventos físicos, na dinâmica social ou mesmo
no curso de uma vida individual (Elias, 1998b, p. 17). Em
consonância com tal abordagem, a percepção do tempo exi­
giria seres dotados de um poder de síntese – uma particu­
laridade da espécie humana –, acionado e estruturado pela
experiência individual e coletiva, capaz de elaborar uma
imagem mental que reunisse, numa única representação,
eventos sucessivos não simultâneos:

para se orientar, os homens servem-se menos do que


qualquer outra espécie de reações inatas e, mais do
que qualquer outra, utilizam percepções marcadas pela
aprendizagem e pela experiência prévia, tanto a dos
indivíduos quanto a acumulada pelo longo suceder das
gerações (Elias, 1998b, p. 33).6

208 Por essa razão, em conformidade com a teoria socio­


lógica configuracional, processual e de longo prazo de
Norbert Elias – tradicionalmente designada de sociologia
evolutiva (Elias, 1994c, p. 60 e 68)7 –, os símbolos que pres­
supõem um alto nível de generalização e síntese, como é o
caso do tempo, por serem resultantes de um longo processo
social de aprendizagem e experiência, pertenceriam a um
estágio relativamente avançado na evolução não apenas dos
símbolos humanos, mas das instituições sociais correspon­
dentes (Elias, 1998b, p. 108). Daí o conceito atual de tempo

6 
Aqui Elias contrapõe o adquirido, o aprendido pela experiência, ao inato, embora
se possa dizer que tal contraposição não é absoluta, na medida em que o inato e
o adquirido de certa forma andam juntos. Se for verdade, por exemplo, que a
capacidade de linguagem é inata e que toda língua é aprendida, deve haver algum
tipo de articulação entre ambas.
7 
Embora Elias tenha estabelecido a distinção entre os termos evolução e desenvol-
vimento, limitando o primeiro ao significado de símbolo dos processos biológicos
de transmissão genética, e o segundo aos processos humanos não evolutivos de
transmissão simbólica intergeracional em suas diversas formas.

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

requerer um vasto patrimônio social de saber acumulado,


construído e transmitido – eventualmente aperfeiçoado –
ao longo de gerações, o que se torna mais claro quando o
contrastamos com as noções de tempo utilizadas por nos­
sos ancestrais ou pelos indivíduos de formações sociais mais
simples. Um dos problemas das epistemologias tradicionais,
segundo Elias, seria exatamente que a maioria delas pouco
diz sobre a transmissão de conhecimento de pessoa a pessoa,
e praticamente nada a respeito da transmissão de conhe­
cimento entre gerações (Elias, 1994c, p. 137). Em Sobre o
tempo, podemos encontrar uma demonstração, recheada
de exemplos, do processo de desenvolvimento – e não pro­
gresso – da percepção humana do tempo ao longo da histó­
ria; do processo de como o conceito de tempo, com o passar
dos séculos, foi se modificando através das distintas civiliza­
ções até atingir o grau de complexidade que o caracteriza
nas sociedades contemporâneas.
209
Alguns problemas decorrentes do caráter simbólico do
tempo
Ao ressaltar o caráter enigmático que reveste nossa noção
cotidiana do tempo, Elias afirmou que o seu estatuto onto­
lógico permanecia obscuro: “O tempo é um objeto natural,
um aspecto dos processos naturais, um objeto cultural? Ou
será em virtude de o designarmos por um substantivo que nos
iludimos com seu caráter de objeto?” (Elias, 1998b, p. 14).
Cumpre em seguida refletir sobre alguns aspectos que,
segundo nosso autor, contribuiriam para reforçar e manter
esse aparente mistério em torno do caráter do tempo.
Ao analisar a antítese filosófica sobre a essência do
tempo, Elias ressaltou que as duas posições antagônicas –
objetivista e subjetivista – acabavam por apresentá-lo como
um dado natural. Muitas das confusões e embaraços à com­
preensão do tempo teriam origem precisamente nessa ten­
dência à sua naturalização, ou seja, à naturalização de algo

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

que, enquanto uma síntese conceitual e um símbolo social,


não é natural, no sentido de independente dos seres humanos
e de suas experiências com os outros homens e com o mundo
não humano. Assim, segundo tal perspectiva, o enigma que
envolve a ideia de tempo decorreria em grande parte do seu
caráter simbólico e, consequentemente, das questões ligadas
à própria linguagem. Conforme pensava Elias, grande parte
do problema residiria no fato de empregarmos cotidiana­
mente o termo tempo como substantivo, em lugar de verbo, o
que acaba contribuindo para a sua reificação.

Inúmeras locuções familiares sugerem que o tempo seria


um objeto físico. Já o simples fato de evocar a ação de
“medir” o tempo parece assemelhá-lo a um objeto físico
mensurável, como uma montanha ou um rio. A expressão
“no correr do tempo” parece implicar que os homens, e
talvez o universo inteiro, flutuariam no tempo como num
210 rio. Neste e em muitos outros casos, a forma substantiva
que se dá à noção de tempo contribui muito, com certeza,
para criar a ilusão de que ele seria uma espécie de coisa “no
espaço-tempo” (Elias, 1998b, p. 39).

A reflexão sobre a questão do tempo ficaria assim difi­


cultada exatamente pela forma substantiva de que se reves­
tiria esse conceito. A prática de se pensar e falar com o
auxílio de substantivos reificadores, de personificar abstra­
ções, para Elias, era uma convenção que restringia imen­
samente a percepção dos nexos entre os acontecimentos.
É o caso, por exemplo, de quando se utiliza expressões do
tipo “o vento sopra”: mas não seria o vento a própria ação
de soprar? Acaso há um vento que não sopre? O mesmo
ocorreria com o conceito de tempo, quando dizemos que
ele “passa”, quando em realidade o que “passa”, ou o que
flui, são os processos específicos e tangíveis, sejam eles
individuais, sociais ou naturais. Tais hábitos linguísticos de

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

substantivação contribuiriam assim para distorcer a reflexão,


fortalecendo “o mito do tempo como uma coisa de certo
modo presente, existente e, como tal, determinável e men­
surável pelo homem, ainda que não se deixe perceber pelos
sentidos”. Desse modo, tal problema se ligaria em grande
parte à natureza simbólica do tempo. Como os símbolos
temporais, de modo análogo aos símbolos matemáticos,
poderiam servir para relacionar sequências bastante diver­
sas, teria se criado a falsa impressão de que o “tempo” existe,
ou de que pudesse existir, independentemente de qualquer
uma dessas sequências específicas e tangíveis. E quanto mais
complexa e diferenciada a sociedade, maior seria tal impres­
são (Elias, 1998b, pp. 37-38 e 84).
Outra dificuldade derivada do fato de o tempo ser uma
relação entre processos muito variados é que se cria uma
tendência a atribuir-lhe algumas propriedades desses mes­
mos processos. Esse seria um exemplo da maneira como um
símbolo largamente empregado, como uma síntese concei­ 211
tual de altíssimo nível, poderia, a partir da sua desvincu­
lação dos processos que ele compara, adquirir autonomia
na linguagem e no pensamento humano, alcançando, por
vezes, o status de uma segunda natureza.8 Ou um exemplo
de como, num universo socio-simbólico como o nosso, é
habitual “a linguagem corrente reificar os símbolos mais
abstratos e lhes conferir vida própria”. E mais, quando tais
símbolos chegam a alcançar um elevado grau de adequação
à realidade – como é o caso do tempo, nas configurações
sociais mais complexas da atualidade –, seria cada vez mais
frequente, conforme Elias, os homens os confundirem com
a própria realidade (Elias, 1998b, p. 11, 57 e 97).

8 
Em seu livro Introdução à sociologia, publicado originalmente em 1970, Elias
explorou mais detalhadamente esse tema ao abordar a pressão social das estruturas
verbais e conceituais, que atuam por vezes como entidades ou forças extra-huma­
nas exercidas sobre as pessoas, como se fossem “objetos”. Ver Elias (2008, p. 21)

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

O tempo como um símbolo puramente relacional


Além de se constituir num símbolo social comunicável,
uma síntese conceitual de alto nível, aquilo a que chamamos
tempo se configuraria ainda, para Elias, como uma espécie
de relação, evidentemente que de cunho social e simbólico.
Nesse sentido, a palavra tempo designaria simbolicamente

a relação que um grupo humano, ou qualquer grupo de


seres vivos dotado de uma capacidade biológica de memória
e de síntese, estabelece entre dois ou mais processos, um
dos quais é padronizado para servir aos outros como quadro
de referência e padrão de medida (Elias, 1998b, pp. 39-40).

Essa concepção de tempo como uma relação ou compa­


ração teve uma de suas principais formulações em Espinosa,
quem afirmou: “para determinar a duração nós a compa­
ramos com a duração daquelas coisas que possuem um
212 movimento certo e determinado. Esta comparação chama­
-se tempo” (Espinosa, 1983, p. 12). Nessa perspectiva, num
hipotético universo “monódromo”, ou seja, que comportasse
uma única sequência de mudanças, não teria qualquer sen­
tido a pergunta sobre quando aconteceu algo, ante a ausência
de uma segunda sequência de mudanças a partir da qual se
pudesse estabelecer a relação – a não ser que a referência fosse
intrínseca ou interna à própria sequência. Analogamente,
não poderíamos falar de tempo num universo em que tudo
ficasse imóvel, ou em que as sequências de mudanças não
apresentassem uma estrutura contínua, independente de suas
diferenças de natureza (Elias, 1998b, pp. 59-60).
Assim, sendo o tempo uma relação, seria mais vanta­
joso, para sua melhor compreensão, conforme a sugestão
de Elias, se pudéssemos modificar os hábitos linguísticos e
transformar o substantivo “tempo” em um verbo – em algo
como “temporalizar” –, pois na realidade se trataria disso:
de uma ação que visaria ao estabelecimento de comparações

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Eugênio Rezende de Carvalho

entre posições ou durações; mais do que uma relação, seria


o ato de colocar em relação – nesse sentido, uma ação de
sincronizar. Assim, o enfoque eliasiano considera que esse
ato de relacionar diferentes durações exigiria a presença de,
no mínimo, três elementos: os sujeitos humanos, autores da
relação, além de duas ou mais durações, entre as quais uma
funcionaria como padrão de referência.9 Ou seja, desses ele­
mentos depende o conceito ou significado de tempo. É rele­
vante observar aqui que tal caráter relacional do tempo tam­
bém se aplicaria ao espaço, com a diferença de que no caso
do tempo os padrões de medida seriam móveis, enquanto
no caso do espaço os padrões de medida seriam estáticos.
Gottfried W. Leibniz (1646-1716) havia afirmado que o
espaço e o tempo eram relativos – ao contrário da perspec­
tiva absolutista de seu contemporâneo inglês, o físico Isaac
Newton (1643-1727). Para o filósofo e cientista alemão, “o
espaço é algo puramente relativo, como o tempo; a saber,
na ordem das coexistências, como o tempo na ordem das 213
sucessões” (Leibniz, 1983, p. 177).
Diante da impossibilidade de se confrontar diretamente
a duração de sequências que se desenrolam uma após outra
e visando a atender suas necessidades de orientação, os
seres humanos teriam lançado mão, historicamente, de uma
segunda sucessão de processos para comparar as suas dura­
ções de forma indireta – processos esses socialmente padro­
nizados e regulares, como os ciclos do movimento aparente
do Sol ou do ponteiro de um relógio (Elias, 1998b, p. 13).

Portanto, o que chamamos “tempo” significa, antes de mais


nada, um quadro de referência do qual um grupo humano —
mais tarde, a humanidade inteira — se serve para erigir,

9 
Como bem lembrou nosso autor, coube a Einstein reforçar ainda mais esse cará­
ter relacional do tempo ao colocá-lo como dependente do ponto de referência do
observador, revisando assim toda a noção newtoniana do tempo como um fluxo
objetivo e absoluto. Ver Elias (1998b, p. 38).

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

em meio a uma sequência contínua de mudanças, limites


reconhecidos pelo grupo, ou então para comparar uma
certa fase, num dado fluxo de acontecimentos, com fases
pertencentes a outros fluxos, ou ainda para muitas outras
coisas (Elias, 1998b, p. 60).

Em síntese, Elias qualificou o tempo, entre outros aspec­


tos, como um símbolo puramente relacional, da mesma
categoria dos símbolos matemáticos, no sentido de que as
relações que ele representa simbolicamente não remetem
a um ou outro objeto ou acontecimento particular.10 Assim
concebido, esse conceito de tempo pôde ser aplicado a con­
tínuos evolutivos de qualquer espécie – do cozimento de um
ovo ao nascimento e desaparecimento das estrelas e galáxias
–, bastando apenas que houvesse a padronização social de
uma sequência que funcionasse como modelo, fosse ela de
ordem física ou social (Elias, 1998b, p. 107).
214
A distinção entre conceitos temporais “estruturais” e
“experienciais”
Na abordagem eliasiana, o tempo designaria simboli­
camente uma relação, uma comparação indireta estabele­
cida por um grupo humano entre posições ou intervalos de
duração de uma determinada sequência evolutiva e regular
de mudanças – recorrente ou não –, tomada como referen­
cial, e outras posições ou intervalos de duração de outra(s)
sequência(s) de acontecimentos, sejam elas naturais, bioló­
gicas, sociais ou pessoais. Exemplos de sequências evolutivas
de mudanças, regulares e socialmente padronizadas – nesse
caso também recorrentes –, seriam os ciclos do movimento

10 
A título de exemplo, o símbolo representado pelo algarismo quatro, por si só,
não significa nada caso não seja relacionado a um objeto específico, como em
“quatro maçãs”. Justamente por essa razão os símbolos matemáticos podem ser
aplicados a inúmeros objetos diferentes, analogamente ao símbolo do tempo. Ver
Elias (1998b, p. 107).

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aparente do Sol ou da Lua em torno da Terra, origem das


unidades padrão de medida ano e mês, respectivamente;
ou ainda os ciclos do ponteiro de um relógio, que nos dão
a unidade de medida hora. Mas o tempo poderia designar
também, além de comparações indiretas entre posições ou
intervalos de duração de diferentes processos, relações no
âmbito de uma única e mesma sequência de eventos, entre
o que ocorreu “mais cedo” e o que ocorreu “mais tarde”,
entre o “antes” e o “depois”. Evidentemente que, nesse caso,
o ponto de referência situar-se-ia no interior da mesma
sequência evolutiva (Elias, 1998b, p. 61). Daí

uma das chaves essenciais para resolver os problemas


suscitados pelo tempo e por sua determinação é a
capacidade, característica da espécie humana, de apreender
num relance e, por isso mesmo, ligar numa mesma
sequência contínua de acontecimentos aquilo que sucede
“mais cedo” e o que sucede “mais tarde”, o “antes” e o 215
“depois”. A memória desempenha um papel decisivo nesse
tipo de representação, que enxerga em conjunto aquilo que
não se produz num mesmo momento (Elias, 1998b, p. 61).

Tal capacidade de síntese, de ligar o “antes” e o “depois”


numa mesma sequência de eventos, expressaria a habilidade
dos homens de presentificar para si o ausente e ligá-lo ao
que se encontra efetivamente presente – é essa possibili­
dade de referência de algo presente a algo não presente
que normalmente caracteriza a noção de signo que, em
seu sentido convencional (caso dos símbolos matemáticos),
seria sinônimo de símbolo. Os conceitos de antes e depois
traduziriam, nesse caso, “a capacidade humana de abarcar
numa só representação acontecimentos que não ocorrem ao
mesmo tempo, e que tampouco são experimentados como
simultâneos”. Elias destaca, por exemplo, que não haveria
sentido na afirmação “são quatro horas”, sem a consciência

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

simultânea de que antes “eram duas horas” e, depois, “serão


seis” (Elias, 1998b, pp. 61-62). Assim, o problema do tempo
representaria uma complexa relação instrumental

entre sequências de acontecimentos, a qual é estabelecida,


com certos objetivos, por grupos humanos mais ou menos
solidamente organizados, entre ou dentro de contínuos
evolutivos observáveis, podendo essa operação incluir ou
não o continuum constituído por esses próprios grupos
(Elias, 1998b, p. 62).

Acrescentaríamos, seguindo a perspectiva do autor:


podendo incluir ou não a capacidade humana de elaborar
sínteses conceituais, bem como podendo incluir ou não a
dimensão da experiência vivida. Nesse ponto, pode-se inferir
da análise de Norbert Elias que a existência de inúmeras e
diferentes expressões temporais criadas e empregadas pelos
216 homens – tais como “ano”, “mês”, “hora”, “antes”, “depois”,
“mais cedo”, “mais tarde”, “agora”, “hoje”, “passado”, “pre­
sente”, “futuro” etc. – decorreria, entre outros aspectos, do
fato de considerarmos as relações entre ou dentro de contí­
nuos observáveis, de incluirmos ou não, na elaboração dessa
conceituação, a capacidade humana de efetuar sínteses e,
sobretudo, a experiência vivida pelos homens.
Segundo Elias, em razão da falta de clareza sobre aquilo
que os diferenciaria e aquilo que os aproximaria, a função e
a significação desses conceitos temporais permaneciam mal­
-entendidas (Elias, 1998b, p. 62). Com o propósito de melhor
esclarecê-las, ele relacionou, num primeiro momento, os con­
ceitos mais simples, de caráter serial, tais como ano, mês e
hora, com os mais complexos, de passado, presente e futuro:

Enquanto os conceitos pertencentes à primeira categoria


representam a estrutura temporal da sequência de
acontecimentos como tal, o conteúdo de significação dos da

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segunda inclui a atividade humana de síntese que considera


essas sequências e sua estrutura temporal. O enigma que
eles [conceitos de passado, presente e futuro] colocam
diante de nossa inteligência repousa, acima de tudo, no
caráter oscilante de sua ordenação da estrutura temporal das
sequências: o futuro de hoje é o presente de amanhã, e o
presente de hoje é o passado de amanhã (Elias, 1998b, p. 62).

Para solucionar tal enigma, Elias sustentou que bastaria


lembrar o modo específico de ligação encontrado nos estu­
dos da experiência humana, tomando em conta o aparelho
categorial exigido para a representação simbólica de tal
experiência: notar-se-ia que “passado”, “presente” e “futuro”
designariam os conceitos necessários para a representação
desse modo de ligação. A significação desses conceitos encon­
trar-se-ia em constante evolução, em razão de que “os pró­
prios homens a quem esses conceitos remetem e dos quais
eles traduzem a experiência estão em constante evolução”. 217
Nessa perspectiva, conceitos como “ano”, “mês” ou “hora”
não integrariam a aptidão humana de vivenciar como simul­
taneidade o que não ocorre na simultaneidade, ainda que
pudessem pressupô-la em seu sentido. Eles seriam categorias
que expressam simplesmente sequências evolutivas de dura­
ção diversa, utilizadas com êxito na descrição de sistemas de
relações que se manifestam no plano físico; porém, categorias
inapropriadas para a compreensão das relações no plano da
prática dos homens. Inversamente, os conceitos de passado,
presente e futuro denotariam a relação estabelecida entre
uma série de acontecimentos e a vivência que um indivíduo
ou grupo tem dela (Elias, 1998b, p. 62-64).

Um determinado instante no interior de um fluxo contínuo


só adquire um aspecto de presente em relação a um ser
humano que o esteja vivendo, enquanto outros assumem
um aspecto de passado ou de futuro. Em sua qualidade

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

de simbolizações de períodos vividos, essas três expressões


representam não apenas uma sucessão, como “ano” ou
o par “causa-efeito”, mas também a presença simultânea
dessas três dimensões do tempo na experiência humana
(Elias, 1998b, p. 63).

E, em seguida, Elias conclui que essas três palavras, “pas­


sado”, “presente” e “futuro”, embora diferentes, poderiam
constituir-se num único e mesmo conceito – aproximando­
-se, ao menos nesse ponto, da interpretação do tempo de
Santo Agostinho, que resume essas três dimensões tempo­
rais em presente das coisas passadas (lembrança), presente
das presentes (visão) e presente das futuras (esperança)
(Agostinho, 1984, p. 222). Isso se torna tanto mais patente
quanto consideramos a reiterada ideia eliasiana acerca da
capacidade humana de presentificação, ou seja, de experi­
mentar como simultaneidade o não simultâneo.
218 Prosseguindo a sua argumentação, num segundo
momento Elias relaciona os conceitos de passado, pre­
sente e futuro com as expressões temporais “mais cedo” e
“mais tarde”. Não obstante tanto estas como aqueles pode­
rem se relacionar com as mesmas sequências de mudan­
ças, ele advertiu que a simples classificação de um evento
como “anterior” ou “posterior” independeria dos sujeitos
de referência, já que, num único continuum evolutivo, o
que ocorre “mais cedo” seria sempre anterior ao que ocorre
“mais tarde” – a relação de ordem entre essas expressões
seria fixa, sem qualquer referência a seres humanos deter­
minados. Nesse ponto, evidentemente, Elias abstrai de sua
argumentação as implicações da teoria da relatividade de
Einstein, tanto no que diz respeito à irreversibilidade tempo­
ral quanto no que se refere ao caráter relativo – dependente
do observador – atribuído por essa teoria ao conceito de
simultaneidade e, portanto, às noções de anterioridade e
posterioridade (Elias, 1998b, pp. 160-161).

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Em contrapartida, segundo nosso autor, os conceitos de


passado, presente e futuro se ligariam às relações temporais
que um grupo humano vivo estabeleceria entre uma série de
mudanças qualquer – seja de ordem pessoal, social ou física
– e o devir ao qual estaria submetido esse mesmo grupo.
Tratar-se-iam, portanto, de conceitos temporais dependen­
tes dos sujeitos de referência: um dado acontecimento é pas­
sado, presente ou futuro, sempre, para algum ser humano
vivo determinado, considerado em seu devir. Ademais, tais
conceitos teriam alguma significação mais clara apenas se
considerados conjuntamente presentes na consciência dos
homens (Elias, 1998b, pp. 64-65).
Após estabelecer tais distinções entre esses tipos de con­
ceitos temporais,11 Elias apontou ainda uma diferença essen­
cial entre as séries de fenômenos sociais e as outras séries
alheias ao ser humano, constituídas por eventos puramente
biológicos ou físicos. Naquelas, ao contrário destas, “a expe­
riência vivida das sequências de acontecimentos é parte 219
integrante, na ordem social, do próprio desenrolar dessas
sequências”. Donde ele conclui que os conceitos de pas­
sado, presente e futuro, em razão de seus vínculos diretos e
exclusivos com tais vivências humanas, não seriam aplicáveis
ao âmbito dos processos físicos, de modo que não haveria
qualquer significado na divisão de sequências contínuas de
eventos do mundo “natural” em sequências passadas, presen­
tes e futuras. A não ser, advertiu Elias, que as sequências de
eventos que se desenvolvem nesse âmbito guardem alguma
relação de importância com a experiência vivida de seres
humanos que remetem para si próprios esses eventos, numa
espécie de identificação de cunho antropomórfico – é o caso
de quando falamos do “futuro do Sol”, por exemplo, para

11 
Vale ressaltar que esses dois grupos de conceitos temporais correspondem às
duas séries temporais analisadas pelo filósofo inglês John McTaggart (1866-1925)
em sua célebre e controversa tese sobre a inexistência do tempo, publicada no
início do século XX. Ver McTaggart (1988).

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A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

nos referirmos a uma fase “futura” da sequência evolutiva de


mudanças, de caráter sempre causal, a que está submetido
esse tipo de estrela em nosso universo (Elias, 1998b, p. 65).
Mas os físicos falam normalmente de um passado ou de
um futuro do universo. Segundo eles, na teoria de Newton, o
passado existiria como uma série infinita de eventos, indepen­
dente de qualquer observador. Dispondo de dados completos
sobre o presente, as leis newtonianas – numa perspectiva deter­
minista, apoiada no princípio de causalidade – permitiriam
calcular um quadro integral do passado. Entretanto, segundo
a maioria dos físicos teóricos contemporâneos, a física quân­
tica teria alterado profundamente essa concepção, ao dizer­
-nos que, por mais detalhada que seja nossa observação do
presente, o passado e o futuro seriam sempre indefinidos e
apenas espectros de possibilidades. Desse modo, segundo a
teoria quântica, o universo não teria um, mas infinitos passa­
dos e histórias; o passado de um sistema físico não teria uma
220 forma definida pois esse passado é afetado pelas observações
desse sistema, feitas no presente. Esse princípio tem sido esten­
dido ao âmbito da cosmologia, com a ideia de que o universo
não teria uma história única independente do observador, mas
diferentes histórias para diferentes estados possíveis no tempo
presente: “criamos a história pela nossa observação, em vez
de a história nos criar”. Em suma, para a física newtoniana,
existiria um passado, independente do observador; para a
física quântica, infinitos passados, dependentes do observador
(Hawking; Mlodinow, 2011, pp. 61-62 e 103).
Diante do exposto, talvez fosse o caso de ponderar a
afirmação de Elias de que não haveria qualquer significado
na divisão de sequências evolutivas de fenômenos físicos em
sequências passadas, presentes e futuras – especialmente no
caso de fenômenos físicos microscópicos. Essa afirmação é
válida talvez menos em função dos vínculos diretos e exclusi­
vos desses conceitos com as experiências humanas vividas, já
que o ato de observar uma sequência evolutiva de fenômenos

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

físicos poderia se constituir numa forma de experiência vivida,


integrante dessa sequência, na medida em que o sujeito obser­
vador estaria afetando e moldando tanto o presente quanto o
passado dessa própria sequência. Assim, tal afirmação é válida
quiçá muito mais em virtude da relação de ordem causal – que
conecta os eventos das sequências evolutivas de fenômenos
físicos – não se encaixar nos conceitos de passado, presente e
futuro, apesar de o caráter absoluto dessa ordem temporal sobre
a qual se apoiam as relações causa-efeito dos processos físicos
ser também uma questão já debatida contemporaneamente no
campo da física quântica em investigações teóricas e empíricas
em curso. Por outro lado, muito antes, o filósofo escocês David
Hume (1711-1776) já havia questionado o fato da causalidade
ser deduzida simplesmente da sucessão (Hume, 2001).
A propósito, o próprio Elias, ao tratar da relação entre
dois acontecimentos sucessivos, destacou que, na experiên­
cia dos homens, o que ocorreu antes poderia ser colocado
como causa do que ocorreu depois (consequências); porém, 221
ao mesmo tempo, na experiência das gerações posteriores,
o que ocorreu depois (consequências) teria uma repercus­
são sobre o sentido no qual o que ocorreu antes é “vivido”
(Elias, 2001, p. 112) Ao contrário da ordem causal implícita
na relação causa-efeito, tal como a vivenciamos na esfera do
universo físico, nesse caso, surpreendentemente, se admiti­
mos que o passado seja algo que de alguma maneira “ante­
cede o futuro”, essa ordem temporal poderia ser subvertida,
no sentido de que o futuro, ou seja, “o que vem depois”,
pode “interferir no passado”, ou melhor, na forma como
esse passado é vivido. Por essa razão, as relações causais não
se aplicam aos conceitos temporais de passado, presente e
futuro. De qualquer modo, para Elias, teríamos duas espé­
cies de conceitos temporais utilizados pelos seres humanos:

Por um lado, eles utilizam noções que remetem a


sequências evolutivas que são objeto de uma apreensão

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

consciente, sem dúvida, mas sem serem designadas como


uma experiência deste ou daquele sujeito determinado na
própria conceituação, e, por outro, utilizam noções como a
maneira pela qual os seres humanos — que eventualmente
fazem parte delas — vivem essas sequências na própria
formação da conceituação (Elias, 1998b, p. 66).

Em suma, a distinção básica entre tais conceitos temporais


estaria relacionada à inclusão ou não da experiência vivida no
processo de conceituação. Embora reconhecendo a dificuldade
de se construir uma tipologia adequada à diferenciação desses
dois grupos de conceitos temporais, Elias acabou sugerindo o
contraste entre conceitos “estruturais” e conceitos “ligados a
uma experiência”. Embora fosse preciso, segundo ele, levar
em conta as modificações no conceito de tempo ou nos con­
ceitos temporais, decorrentes dos diferentes níveis atingidos no
desenvolvimento das formações sociais, já que tais conceitos se
222 encontrariam continuamente em evolução. Ainda que tanto os
conceitos estruturais quanto os experienciais representassem
simbolicamente relações ou sínteses aprendidas, tais sínteses
seriam de tipos diferentes. Apesar de ambos designarem o
caráter anterior ou posterior dos eventos num continuum evolu­
tivo, ao contrário dos outros conceitos temporais – como “mais
cedo” e “mais tarde”, por exemplo –, os conceitos de passado,
presente e futuro constituiriam sínteses relativas a relações não
causais entre tais eventos, ou, em outras palavras, eles formariam
sínteses conceituais que incorporariam “certa maneira de viver
as sequências de acontecimentos” (Elias, 1998b, p. 66, 115).

A quinta dimensão simbólica da experiência ou


consciência humana
E aqui chegamos, finalmente, ao ponto culminante do
esforço de elaboração e síntese teórica que Norbert Elias
empreendeu a fim de oferecer uma abordagem que permitisse,
segundo sua ótica, desfazer o aparente mistério acerca do caráter

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

do tempo, gerado pela antítese filosófica entre subjetivismo


e objetivismo, bem como pelas dicotomias dela decorrentes,
intrínsecas às teorias tradicionais do conhecimento. Trata-se
da sua ousada e complexa evocação de um universo de cinco
dimensões.12 Com o surgimento da realidade especificamente
humana, uma quinta dimensão viria a se somar – embora não
numa mera justaposição – às quatro dimensões do universo
físico, formadas pelo espaço e pelo tempo. Elias a denominou
de dimensão da experiência vivida ou da consciência, ou ainda de
símbolos socialmente aprendidos – como é o caso do tempo – que
servem aos humanos como meios de comunicação, orientação
e identificação (Elias, 1998b, pp. 66-67). Ao detalhar melhor
essa imagem de um mundo de cinco dimensões, sobretudo em
seu livro Teoria do símbolo, Elias procurou mostrar

o caráter duplo do mundo da nossa experiência, como um


mundo independente de nós, mas que nos inclui, e como
um mundo do qual nosso entendimento é intermediado 223
por uma rede de representações simbólicas elaboradas
pelo homem, predeterminadas por sua constituição
natural, que se materializa apenas com a ajuda de
processos sociais de aprendizagem, podendo chegar a ser
mais ou menos congruente com a realidade. Podemos
experienciar esse mundo e experienciar nós mesmos
dentro dele no instante presente, de forma direta, como
uma entidade tangível, como um momento em uma
situação de mudança, hoje normalmente representada
como um processo nas quatro dimensões espaço-
temporais13 (Elias, 1994c, p. 195, tradução nossa).

12 
Elias demonstrou desde cedo um grande fascínio pelo tema mais geral das
“dimensões” do universo e suas representações, o que certamente concorreu para
a construção dessa alegoria pentadimensional, conforme se pode ver no relato de
uma experiência de viagem a Florença, em 1925. Ver Elias (2001, p. 50).
13 
“[…] el carácter doble del mundo de nuestra experiencia como un mundo
independiente de nosotros pero que nos incluye y como un mundo del que
hace de intermediaria para nuestro entendimiento una red de representaciones

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

Consoante com tal perspectiva, o fato de que tudo que


tem lugar no tempo e no espaço tenha também lugar na
quinta dimensão não seria de modo algum inconciliável
com o fato de que tudo que se situa na dimensão simbó­
lica também se situa nas quatro dimensões formadas por
tempo e espaço. E o tecido constituído pelos símbolos pode­
ria muito bem ser concebido como outra dimensão, exa­
tamente por abranger tudo o que existe, analogamente à
trama espaço-temporal (Elias, 1994c, pp. 153-170).
Antes de prosseguir com a exposição e a interpretação da
alegoria da quinta dimensão sugerida por Elias – e quem sabe
para melhor compreendê-la –, talvez seja útil recorrer a uma
analogia, de um lado – segundo Elias – entre o que o tempo
representa na relação da quinta com a quarta dimensão e,
de outro – de acordo com os físicos –, o que ele significa na
relação da quarta com a terceira dimensão de nosso universo
físico. Pelas teorias da relatividade, de Einstein, e do eletro­
224 magnetismo, de Maxwell, o tempo não poderia ser tratado
separadamente das três dimensões do espaço, sendo neces­
sário juntar a elas uma dimensão temporal, formando assim
uma unidade, o espaço-tempo, que os físicos convenciona­
ram chamar de quarta dimensão. Uma nomenclatura que
pode se prestar a equívocos, pois, na verdade, o tempo não
representa nela mais uma dimensão separada das três espa­
ciais. Em lugar de uma justaposição, há uma interconexão
essencial, mediante uma espécie de onipresença do tempo
nas dimensões espaciais (Hawking; Mlodinow, 2011, p. 74).
O que Elias pretendeu destacar com seu modelo foi preci­
samente essa interconexão entre as cinco dimensões, de modo

simbólicas hechas por el hombre, predeterminadas por su constitución natural,


que sólo se materializa con ayuda de procesos de aprendizaje social. Puede llegar
a ser más congruente con la realidad y menos. Podemos experimentar este mundo
y experimentamos a nosotros mismos dentro de él en el instante presente directa­
mente como una entidad tangible, como un momento en una situación de cambio
normalmente representada hoy como un proceso en las cuatro dimensiones de
tiempo y espacio” (Elias, 1994c, p. 195).

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

que o tempo seria algo integrante, sem qualquer contradição,


tanto do universo pentadimensional quanto do universo qua­
dridimensional. Assim, o que chamamos tempo designaria
uma das dimensões constitutivas do universo físico quadridi­
mensional, que representa a totalidade do mundo perceptível,
no sentido de que “tudo o que é perceptível, inclusive a rea­
lidade humana, ocupa uma posição em cada uma das quatro
dimensões formadas pelo espaço e pelo tempo”. Contudo,
paralelamente, o tempo seria também um símbolo social e,
enquanto tal, um “representante do mundo humano de cinco
dimensões”. Diante dessa “estranha vida dupla do tempo”,
Elias formulou as seguintes perguntas: qual seria a relação
recíproca entre essas duas determinações do tempo? Seriam
elas conciliáveis? (Elias, 1998b, p. 31). O nosso autor daria
início ao esforço de responder essas questões afirmando que

existem acontecimentos que podem ser percebidos como


tais no fluxo do devir, e portanto, no tempo e no espaço, 225
sem que aqueles que os percebem levem em consideração
o caráter de símbolos do tempo e do espaço. Nesse caso,
não levamos em conta, por não nos apercebermos dele, o
fato de que uma atividade humana ordenadora, uma síntese
consciente aprendida, é necessária para que os processos
perceptíveis sejam captados como algo situado no espaço e
no tempo (Elias, 1998b, p. 31).

Em outras palavras, os seres humanos, ao perceberem


certos fatos situados nas dimensões espaço-temporais, nem
sempre seriam conscientes do caráter simbólico do tempo
e do espaço, pois não se dão conta de que, para tanto, seria
necessária “uma atividade humana ordenadora”, “uma síntese
consciente aprendida”. Daí decorre que, ao observar e perce­
ber um universo quadridimensional, num primeiro momento
os homens ainda não se incluiriam a si próprios como sujeitos
da observação e da percepção. Assim, prossegue Elias, estariam

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

dadas as condições para se alçar um patamar na escala da


consciência. Com a introdução de uma quinta dimensão no
campo de visão dos observadores – representada pelos homens
que ordenam e apreendem os acontecimentos percebidos no
tempo e no espaço – estes passariam a ver a si próprios no
nível imediatamente abaixo dessa escala. Mediante tal “distan­
ciamento” e dotados de uma espécie de “lentes pentadimen­
sionais”, esses observadores passariam a enxergar não apenas
o devir quadridimensional como tal, mas também o caráter
simbólico das quatro dimensões, na sua função de instrumen­
tos de orientação humana no seio do fluxo incessante do devir.
Ou seja, a especificidade simbólica das quatro dimensões se
manifestaria quando ascendêssemos a um patamar superior
do saber e a humanidade passasse a ser incluída, como sujeito,
nesse mesmo saber (Elias, 1998b, pp. 31-32). Assim, Elias con­
cluiria sua resposta às perguntas formuladas anteriormente,
sobre a natureza dual do tempo – pertencente simultanea­
226 mente à quarta e à quinta dimensão–, dizendo que

O tempo, que só era apreendido, no patamar anterior, como


uma dimensão do universo físico, passa a ser apreendido,
a partir do momento em que a sociedade se integra como
sujeito do saber no campo da observação, como um símbolo
de origem humana e, ainda por cima, sumamente adequado
a seu objeto (Elias, 1998b, p. 31).

Como os conceitos temporais “experienciais” do tipo


passado, presente e futuro se caracterizariam precisamente
por estruturar “a experiência do devir em função de sua
relação com o continuum evolutivo representado pelos gru­
pos humanos que vivem essa experiência”, conclui-se que
tais conceitos integrariam efetivamente essa quinta dimen­
são simbólica, formada por tempo, espaço, linguagem, pen­
samento, conhecimento, memória, consciência etc. (Elias,
1998b, p. 66).

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

A despeito de Elias denominar essa quinta dimensão sim­


bólica de dimensão da experiência vivida ou da consciência,
ele não explicita em sua obra o significado de tais conceitos
de forma detalhada. Deduz-se, no primeiro caso, que não se
trata de uma experiência qualquer, mas de uma experiência
vivida e, enquanto tal, de uma experiência viva, uma vivência.
Poderíamos dizer, de forma geral, que tal conceito remete à
ideia da vida experimentada, lembrada e, portanto, à consciên­
cia que se toma e que se conserva da vida. Nesse sentido, pode­
ria designar certa expressão da consciência – como um pensa­
mento que se pensa reflexivamente, uma ciência de si junto a
uma ciência de algo (Comte-Sponville, 2011, pp. 122-123, 634).
Praticamente tudo o que foi aqui dito a respeito da essên­
cia do tempo se aplicaria igualmente ao espaço, enquanto
dimensão do universo físico e, simultaneamente, símbolo
social forjado pela humanidade. O que o espaço é para a
extensão o tempo é para a duração. Tempo e espaço repre­
sentariam ambos uma síntese conceitual de alto nível, rela­ 227
ções de ordem puramente posicional entre acontecimentos
observáveis. A diferença é que, enquanto o tempo remeteria
a relações posicionais determinadas no interior de um fluxo,
considerando seus deslocamentos e mudanças contínuas, o
espaço remeteria a relações posicionais entre acontecimen­
tos móveis com a abstração de seus movimentos e mudanças
efetivas. Mas essas relações posicionais seriam absolutamente
inseparáveis umas das outras, de modo que toda mudança
no tempo seria uma mudança no espaço e vice-versa. Por
considerar tão evidente essa unidade, Elias dispensou, nesse
ponto, a evocação da própria história da unificação concei­
tual do tempo e do espaço no âmbito das teorias científicas,
que teria culminado, em Minkowski14 e Einstein, no conceito

14 
Hermann Minkowski (1864-1909), matemático alemão que contribuiu sobre­
maneira para a divulgação da teoria da relatividade de Einstein – a propósito, seu
ex-aluno em Zurique –, ao propor, em 1908, a compreensão dessa teoria a partir da
introdução do conceito de “espaço-tempo” como uma unidade de quatro dimensões.

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

de uma única unidade espaço-tempo, enquanto um contí­


nuo quadridimensional15 (Elias, 1998b, pp. 80-82).
Por fim, essa imagem da quinta dimensão simbólica
experiencial evocada por Elias revelou não apenas a essên­
cia do seu conceito de tempo – e de espaço – como um sím­
bolo social, mas, sobretudo, seu esforço de oferecer uma
alternativa às conceituações antitéticas e dicotômicas que
tendiam a dividir o tempo em objetivo e subjetivo, físico e
social etc. Elias lamentou não apenas a carência e insufi­
ciência de pesquisas sobre essa dimensão “experiencial” do
real ou sobre o “tempo vivido” – dimensão propriamente
humana e social – mas, principalmente, o fato de tais estu­
dos ficarem facilmente entregues à esfera da especulação
ou da metafísica, apontando como exemplo as abordagens
de Bergson e Heidegger (Elias, 1998b, pp. 68-69). Em seu
livro Envolvimento e alienação, de 1983, ao reiterar seu com­
promisso com os estudos dessa dimensão, ele afirmou que
228 a sua sociologia configuracional se centraria exatamente
sobre “uma imagem pentadimensional da pluralidade dos
seres humanos que inclui os aspectos comportamentais
quadridimensionais diretamente visíveis e o ‘vivencial’…”
(Elias, 1998a, p. 264).

Considerações finais
Com a imagem das cinco dimensões, Norbert Elias
conseguiu construir e oferecer uma alternativa criativa às
abordagens do tempo oferecidas pelas filosofias ou epis­
temologias tradicionais, que alimentavam – e talvez sigam
alimentando, ainda que em menor medida – a contro­
vérsia acerca do caráter objetivo ou subjetivo do tempo.

15 
As descobertas transcendentais de Einstein sobre a natureza do espaço-tempo
não implicam, todavia, que antes dele ninguém tivesse se dado conta de que não é
possível situar um acontecimento no espaço sem situá-lo juntamente no tempo. O
valor de Einstein, segundo Elias, foi ter demonstrado e expressado isso cientifica­
mente. Ver, a propósito, Elias (1994c, p. 34).

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

Abordagens essas que, segundo Elias, tendiam a conceber o


mundo a partir de uma infinitude de antíteses não proces­
suais, sendo responsáveis pelas cisões entre objeto e sujeito,
natureza e sociedade, mundo físico e mundo social e, con­
sequentemente, entre tempo físico e tempo social, tomados
como existencialmente independentes e inconciliáveis.
O esforço teórico de Elias se concentrou em elaborar
uma síntese complementar e processual para o problema
do tempo, que conectasse numa unidade esses pares dico­
tômicos, não apenas como uma mera soma, mas como uma
articulação necessária. Sua ideia de uma quinta dimensão
simbólica romperia, assim, com o antagonismo entre tempo
físico e tempo social e tantos outros que o acompanham,
exatamente por considerar que a dimensão simbólica não
é incompatível com a dimensão do universo físico, havendo
uma interligação entre elas. Assim, tempo físico e tempo
social seriam apenas exemplos das múltiplas noções em que
229
o conceito de tempo se dividiu, em antíteses, em partes jus­
tapostas, sem qualquer nível de articulação. O tempo sim­
bólico, integrante da quinta dimensão da consciência, da
experiência, constituiria tal síntese.
Nesse sentido, não obstante sua abordagem ter des­
considerado certos aspectos essenciais proporcionados
pelos avanços mais recentes nos campos da física relati­
vística e da física quântica – notadamente no que diz res­
peito à influência e ao papel do observador na determina­
ção do tempo –, a conceituação do tempo de Elias pode
ser considerada uma alternativa instigante e, em certa
medida, original, frente aos esquemas objetivistas e sub­
jetivistas da gnosiologia tradicional. Sua abordagem pode
ter contribuição frutífera para o entendimento e eluci­
dação do problema filosófico do tempo, na medida em
que permite esclarecer – ainda que parcialmente – certos
aspectos do enigma que envolve esse termo, colaborando

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


A concepção holística e processual de tempo de Norbert Elias

assim – como expressado pelo próprio Elias – com a com­


preensão da condição humana.
Daí que sua crítica à dicotomia entre tempo físico e
tempo social, mais do que uma reflexão sobre o tempo,
pode fornecer um subsídio importante para o debate tanto
no âmbito da problemática epistemológica – das complexas
relações entre objeto e sujeito, entre natureza e sociedade
e, consequentemente, entre as ciências físico-naturais e as
ciências humanas e sociais – quanto na esfera da lingua­
gem – do melhor conhecimento das funções dos símbolos
sociais, como é o caso do tempo, como meios de comunica­
ção e orientação humana. Sem contar ainda sua fértil con­
tribuição para a reflexão acerca da essência e das relações
entre os diferentes conceitos temporais, que pode abrir
possibilidades úteis para se pensar outras noções tempo­
rais – como a de tempo histórico – enquanto parte de uma
investigação sobre as articulações entre as várias noções em
230 que o conceito mais geral de tempo se fragmentou.
Por fim, se a formação do universo pentadimensio­
nal, de acordo com a elaboração conceitual de Elias, teria
marcado o início da aventura especificamente humana,
a quinta dimensão eliasiana poderia representar, parafra­
seando Machado de Assis, o tecido invisível onde se borda
tudo o que é exclusivamente humano: uma linguagem,
um pensamento, um conhecimento, uma consciência,
uma experiência vivida, um símbolo de espaço e um sím­
bolo de tempo. Em suma, um tecido sem bordas no qual,
além dos conceitos de uma flor, um pássaro, uma dama,
um castelo ou um túmulo, se poderia bordar um conceito
de tecido, um conceito de invisível e, até mesmo, um con­
ceito de nada.

Eugênio Rezende de Carvalho


é Professor Titular da Faculdade de História da Universidade
Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil.

Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


Eugênio Rezende de Carvalho

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Lua Nova, São Paulo, 103: 203-231, 2018


233
O MARCO INSTITUCIONAL DA POLÍTICA URBANA NA
ESPANHA E APONTAMENTOS COMPARATIVOS COM O
BRASIL1
Jefferson Oliveira Goulart
é professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
E-mail: <jgoulart@faac.unesp.br>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-233259/103

A configuração constitucional
A constituição espanhola de 1978 sintetiza os fundamen­
tos do modelo territorial, da organização do Estado e das
competências dos níveis de governo quanto à política urbana
(Título VIII). São quatro os níveis de organização territorial:
o próprio Estado (governo central), os municípios, as provín­
cias e as comunidades autônomas, e todos “gozam de autono­
mia para a gestão de seus respectivos interesses” (artigo 137).
Municípios e províncias têm “personalidade jurídica própria”
(artigos 140 e 141)2. No caso das comunidades autônomas, se

1 
Este artigo apresenta resultados de pesquisa pós-doutoral desenvolvida no
Departamento de Sociología II (Ecología Humana y Población) da Universidad
Complutense de Madrid, Espanha. Agradecimentos do autor à Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo pela concessão de Bolsa de Pesquisa no Exterior
(Processo Fapesp 2015/11625/7) e a Luis Cortés Alcalá, pela acolhida generosa.
Versão modificada deste trabalho foi apresentada no XVII Encontro da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.
2 
As províncias se limitam ao agrupamento supramunicipal e à divisão ter­
ritorial, não têm competências administrativas ou recursos para implantação
de políticas públicas ou para manutenção de infraestrutura urbana. Portanto,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

reconhece o “autogoverno” (artigo 143), solução encontrada


para responder às renitentes reivindicações nacionalistas e
independentistas de algumas identidades regionais, casos
mais agudos do País Vasco (Euskadi) e da Cataluña – além
da Galícia, a terceira “comunidade histórica”.
A Espanha não é rigorosamente um Estado unitário, na
medida em que tem quatro níveis de organização político­
-territorial com algum grau de autonomia, e tampouco é
uma federação com um correspondente sistema de freios e
contrapesos que efetivamente assegure alto coeficiente auto­
nômico aos governos subnacionais. Ademais, não há refe­
rência constitucional detalhada às competências dos entes
governamentais em matéria de política urbana.
Não obstante as atribuições conferidas às esferas locais
e autonômicas de governo, em termos de distribuição
orçamentária a estrutura estatal se mantém relativamente
234 centralizada: “los gobiernos locales de las ciudades pade­
cen un déficit crónico de recursos en la distribución del
gasto público” (Blanco; Subirats, 2012, p. 25), dispondo
de aproximadamente 14% de todo o gasto público do
país. O levantamento de Salgado (2011) demonstra que a
porcentagem do gasto público era distribuída da seguinte
maneira: Estado – 83%; governos regionais – 7%; governos
locais – 10%. Houve uma reconcentração de recursos em
relação ao ano de 1983, pois os governos regionais e locais
regrediram do patamar de 17% para 14% do gasto público
no período atual.
Embora o arranjo institucional mencione a “exclusivi­
dade” das comunidades autônomas em urbanismo e regu­
lação territorial, há um sistema compartilhado em que os
governos autonômicos dispõem de recursos privilegiados,

não serão consideradas como nível de governo com atribuições na gestão de


políticas urbanas.

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

no entanto, os municípios também têm responsabilidades


na execução de políticas públicas dessa natureza.
A Espanha conta com dezessete comunidades autôno­
mas, que constituem as principais esferas governativas além
do Estado3. Se aos municípios e às províncias dedica-se pouca
tinta, a constituição é mais generosa com as comunidades
autônomas, cujas competências mais importantes estão dis­
postas no artigo 148: responsabilidade pela “ordenação do
território, urbanismo e habitação”. Na prática, cabe às comu­
nidades autônomas legislar e organizar o processo de ordena­
mento territorial e desenvolvimento urbano, tanto no plano
municipal quanto em escala regional4. Nesse contexto, polí­
ticas urbanas não se resumem às ações dos governos locais,
e o marco institucional espanhol se distingue por expressivo
poder das comunidades autônomas. Também por essa razão,
os temas da descentralização e da autonomia são recorrentes,
e ganham força a cada impulso autonomista ou separatista.
A constituição é genérica quanto à política urbana e se 235
limita a enunciar princípios gerais, sem instituir correspon­
dentes instrumentos para torná-los efetivos. Os dois prin­
cípios fundamentais são a regulação do solo urbano para
conter a especulação imobiliária e o reconhecimento de que
a ocorrência de mais-valia urbana implica correspondente
contrapartida dos entes privados (orientados pela lógica da
acumulação) ao Estado (orientado pelo interesse público).

3 
São elas: Galícia, Principado de Astúrias, Cantabria, País Vasco (Euskadi),
Navarra, Aragón, Cataluña, Castilla y León, La Rioja, Comunidad de Madrid,
Extremadura, Castilla-La Mancha, Comunidad Valenciana, Islas Baleares,
Andalucía, Murcia e Islas Canarias. Ademais, as cidades de Ceuta e Melilla (encla­
ves situados no Marrocos) gozam de estatuto autonômico especial.
4 
As comunidades autônomas ainda têm competências quanto a: alterações ter­
ritoriais dos municípios; obras públicas; organização dos sistemas de transporte
rodoviário e ferroviário; disposição de equipamentos como portos e aeroportos;
gestão de políticas de meio ambiente; gestão de projetos de recursos hidráulicos;
saúde e saneamento. (<http://www.senado.es/web/conocersenado/normas/cons­
titucion/index.html>, acesso em: 14 out. 2017).

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

Tais conflitos terão vazão político-jurídica na legislação


infraconstitucional e nas competências dos governos autonô­
micos. O arranjo institucional da política urbana ganha mais
nitidez no âmbito infraconstitucional, particularmente nas
competências e políticas públicas operadas pelas comunidades
autônomas e nas normas de regulação do território urbano
com base na Ley de Suelo e nos Planes de Ordenación Urbana.

Evolução urbana e a Ley de Suelo


O desenvolvimento urbano da Espanha no século XX
teve elementos distintivos: pela forma politicamente auto­
ritária e regionalmente discricionária com que o regime
franquista conduziu o país; pela tentativa de acelerar a
modernização da economia por meio do processo de indus­
trialização a partir da década de 1950; pelas clivagens regio­
nais que diferenciaram áreas economicamente mais dinâ­
micas (industriais, turísticas etc.) de outras mais atrasadas
236 (rurais e vinculadas à agropecuária), com distintos graus
de urbanização; e pelas mudanças na distribuição espacial
da população resultantes de migrações do campo rumo às
grandes aglomerações urbanas.
De forma sintética, a evolução urbana na Espanha a
partir da segunda metade do último século enseja um per­
curso marcado por quatro etapas (Costa et al., 2013). O
primeiro momento, situado nas décadas de 1960 e 1970,
registra forte migração interna rumo às cidades decorrente
do impulso ao padrão de desenvolvimento urbano-indus­
trial, movimento desigual em termos espaciais pela con­
centração de complexos industriais em territórios restritos
(Cataluña e Euskadi, sobretudo).
A segunda fase tem como marco a democratização, a par­
tir de 1979, e se estende a meados da década seguinte, regis­
trando a emergência de diversos movimentos citadinos (Castells,
1980) que desafiaram o regime autoritário e lidaram com
uma complexa agenda de problemas urbanos (infraestrutura,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

habitação, mobilidade etc.), além de registrar a adesão do país


à Comunidade Econômica Europeia, em 1986.
Na terceira etapa, basicamente ao longo dos anos 1990,
de crise do padrão fordista, de mudança de modelos pro­
dutivos e de ascensão do capital financeiro, são registrados
os movimentos de metropolização e terceirização da econo­
mia, elevando-se a importância do terceiro setor, chamado
a integrar a governança urbana.
A quarta fase tem início no final dos anos 1990 e segue
até o período contemporâneo, coincidindo com a adesão
plena do país à União Europeia. Os destaques dessa etapa são
a precedência do eixo econômico na agenda urbana, a migra­
ção de origem externa para o mercado de trabalho de baixa
qualificação, a intensificação do espraiamento horizontal das
cidades, a relativa estabilização demográfica dos grandes cen­
tros urbanos e a acentuação da especulação imobiliária.
A urbanização espanhola tem se caracterizado por um
modelo de desenvolvimento impulsionado por uma forte 237
bolha imobiliária que, além de incrementar a construção civil,
contou com o suporte de uma legislação permissiva. Algumas
das principais consequências desse processo foram (i) a ocu­
pação indiscriminada e ampliação do território urbano, sob
a pressão do mercado imobiliário e do argumento da neces­
sidade crescente de prover serviços e bens públicos (infraes­
trutura, moradia etc.), e (ii) o aumento abusivo do preço da
terra urbana e da habitação (Parellada, 2009).
A principal norma de ordenamento do território urbano
é a Ley de Suelo, cuja primeira versão é de 1956. Esse marco
legal instituiu três categorias de solo – “urbano”, “urbani­
zável” e “não urbanizável” –, cuja caracterização compete
ao poder público. No direito urbanístico espanhol conside­
ra-se “solo urbanizável todo aquele solo que não foi classifi­
cado pelo Plan General de Ordenamiento como urbano (tecido
urbano consolidado) ou como não urbanizável (solos protegidos)”
(Alfonsin, 2008, p. 67, grifos do autor).

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

A Ley de Suelo reconheceu as plusvalias urbanas e ins­


tituiu o princípio da participação da comunidade nos
benefícios gerados pela ação do poder público, ou seja,
ao mesmo tempo que reconhece o solo como mercado­
ria também impõe algum grau de compensação do ganho
privado, instituindo o princípio genérico de que a proprie­
dade privada e os empreendedores imobiliários devem
restituir ao erário parte de seus ganhos obtidos com os
investimentos estatais.
A primeira reforma do texto da lei se deu em 1976, moti­
vada pelo cenário de transição para a democracia, pelos pro­
cessos de adensamento nas grandes cidades e em suas zonas
centrais, pela desordem urbanística com crescente ocupa­
ção periférica das cidades e pela elevação especulativa do
preço do solo urbano. A classificação tipológica do solo se
manteve inalterada: urbano, urbanizável e não urbanizável.
Em 1992, nova mudança, considerada uma “lei de passa­
238 gem” pela expectativa de adaptação às grandes transforma­
ções em curso – ideológicas (onda neoliberal), geopolíticas
(fim da Guerra Fria) e econômico-urbanísticas (crise do
padrão industrial e emergência do setor terciário) – e pelo
pouco tempo de vigência (seis anos depois haveria nova
mudança) ou, ainda, pela contestação de inconstitucionali­
dade apresentada por sete comunidades autônomas, cujos
itens mais controversos eram o aproveitamento lucrativo das
áreas de superfície e a definição institucional sobre as com­
petências de gestão da política urbana. O aspecto institucio­
nal mais relevante dessa reforma foi o reconhecimento da
autonomia conferida às comunidades autônomas na agenda
do planejamento urbano. A sentença 61/97 do Tribunal
Constitucional deliberou pela competência “exclusiva” das
comunidades autônomas em matéria de política urbana.
Em 1998, nova modificação, cuja vigência coincide com o
ciclo mais intenso de urbanização e modernização econômica
do país e com o ambiente hegemônico de desregulamentação

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

no continente europeu: legislação de abertura irrestrita ao


processo urbanizador, cuja concepção liberalizante se ampa­
rava na escassez de solo urbanizado edificável e de oferta de
moradia, bem como na elevação crescente dos preços do solo.
Assim é criada a figura jurídica do “Agente Urbanizador”,
ente privado para o qual o poder público poderia transferir a
responsabilidade de promover urbanização (Parellada, 2009).
O estudo da implantação do “Agente Urbanizador” no caso
valenciano evidencia que “trata-se de um instrumento jurídico­
-urbanístico que separa o direito de propriedade imobiliária
do direito de urbanizar a gleba, permitindo que a urbanização
possa ser proposta por um empreendedor não proprietário”
(Alfonsin, 2008, p. 63). Apesar de se tratar de responsabilidade
estatal e de função pública, a urbanização é transferida para
terceiros, o que obviamente chancela uma concepção merca­
dológica desse processo à medida que qualquer empreendedor
só o assumirá se isso for economicamente recompensador.
A reforma de 1998 é o emblema da tendência liberali­ 239
zante daquele período e transcorreu no governo conserva­
dor de José María Aznar, do Partido Popular (PP). O argu­
mento consistia em dispor de um tipo de regulação que
não limitasse a ação do capital, separando as atribuições do
proprietário e as do urbanizador, e o solo da construção.
Em consequência, sob amparo legal a expansão urbana
atinge o limite do solo rústico protegido. A tipologia ado­
tada – “Suelo urbano consolidado e no consolidado”; “Solo
urbanizable: delimitado y no delimitado”; “Solo no urba­
nizable” – admite a urbanização de áreas protegidas com
base em caracterização e critérios excepcionais convenientes
aos empreendedores imobiliários. Na prática, todo territó­
rio passou a ser considerado “em princípio urbanizável”, o
que contraria o próprio enunciado da regulação urbanística
quanto à autoridade restritiva do Estado sobre a ação do
mercado imobiliário. A definição residual do solo urbanizá­
vel constitui o tema-síntese de uma reforma que pretendeu

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

se adaptar às mudanças econômicas decorrentes da crise do


modelo fordista de produção para uma expansão urbanís­
tica inspirada pelos princípios neoliberais (Rullan, 1999).
Em 2007, mais uma reforma na tentativa de atualizar a
legislação. Nessa ocasião ficaram evidentes os conflitos entre
as pressões para o crescimento econômico e uma visão de
desenvolvimento sustentável retoricamente estimulada na
União Europeia. A contradição é expressa no reconheci­
mento do solo como “recurso natural, escasso e não renová­
vel”, mas também como “recurso econômico”. Essa reforma
ratificou a concepção desenvolvimentista e subordinou o
planejamento urbano ao crescimento econômico, o que
se traduziu em maior permissividade à transformação do
solo não urbanizável em seu oposto (urbanizável). Tal pers­
pectiva ganhou nova nomenclatura, distinguindo-se basica­
mente dois tipos de solo: urbanizado, definido como todo
aquele no qual já se construiu ou com determinado grau de
240 aporte urbanístico, e o rural, entendido como solo natural,
protegido, de reserva e também como bem econômico.
A modificação mais recente ocorreu em 2015 (Real
Decreto Legislativo nº 7/2015), em texto refundido que
promoveu uma justaposição conceitual e adequação jurídica
da lei nº 20/2014, do decreto legislativo nº 2/2008 e da lei
nº 8/2013, que trata da reabilitação, regeneração e renova­
ção urbanísticas. A nomenclatura herdada de 2007 se man­
teve, havendo basicamente dois regimes de solo: urbanizado
e rural (artigo 21 da referida lei).
Apesar das várias modificações legais (Quadro 1), houve
um acelerado processo inflacionário no mercado imobiliário,
uma vez que “a regra básica do jogo (a valorização artificial do
solo urbano segundo seu potencial urbanístico) não foi alte­
rada” (Alfonsin, 2008, p. 70). Vale a pena lembrar o emble­
mático caso valenciano: “o valor do solo passa de 6€ para
300€ o m2 com a aprovação da normativa urbanística que lhe
transforma em ‘solo urbanizável’, ainda que o proprietário

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

não tenha realizado nenhum investimento” (Alfonsin, 2008,


p. 70). Tais normas agravam a crise urbana, pois alimentam
a especulação imobiliária, elevam o valor da terra urbani­
zada e concorrem para pressionar o poder público a ampliar
o escopo de “terras urbanizáveis” através das Leis do Solo
autonômicas e dos Planes de Ordenación Urbana.

Quadro 1
Evolução cronológica da Ley de Suelo
ANO MARCO LEGAL
Legislação original: Ley sobre Régimen del Suelo y Ordenación Urbana LS/56
1956 Classes de solo: Suelo urbano; Suelo de reserva urbana; Suelo rústico
Cenário político: VI governo da ditadura de Francisco Franco

Real Decreto 1346/1976, que aprova o Texto Refundido de la Ley sobre


Régimen del Suelo y Ordenación Urbana (TRLS/76)
1976 Classes de solo: Suelo Urbano; Suelo Urbanizable; Suelo no urbanizable
Cenário político: governo de Adolfo Suárez (Unión de Centro Democrático
– UCD)

Real Decreto Legislativo 1/1992, que aprova o Texto Refundido de la Ley


sobre el Régimen del Suelo y Ordenación Urbana (TRLS/92)
241
1992 Classes de solo: Suelo Urbano; Suelo Urbanizable; Suelo no urbanizable
Cenário político: governo de Felipe González (Partido Socialista Obrero
Español – PSOE)

Ley de Suelo 6/1998, de Régimen del suelo y valoraciones (LS/98)


Classes de solo: Suelo urbano consolidado e no consolidado;
1998
Solo urbanizável; delimitado e não delimitado; Solo não urbanizável
Cenário político: governo de José María Aznar (Partido Popular – PP)

Ley de Suelo 8/2007 (LS 8/07) e posterior regulamentação com o Real


Decreto Legislativo 2/2008, que aprova o Texto Refundido de la Ley de Suelo
(TRLS/08)
2007/2008 Classes de solo: Suelo urbanizado (suelo usado);
Suelo rural (suelo para usar + suelo protegido)
Cenário político: governo de José Luiz Zapatero (Partido Socialista Obrero
Español – PSOE)

Real Decreto Legislativo 7/2015, pelo qual se aprova o texto refundido de La


Ley de Suelo y Rehabilitación Urbana: resultado da fusão da Ley 20/2014, do
Real Decreto Legislativo 2/2008 e da Ley 8/2013 (reabilitação, regeneração e
2015
renovação urbanas)
Classes de solo: suelo urbanizado e suelo rural (artigo 20)
Cenário político: governo de Mariano Rajoy (Partido Popular – PP)
Fonte: elaboração própria.

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

Esse processo de urbanização no derradeiro quartel do


século XX é inseparável da observação de Rullan (1999),
segundo a qual a internacionalização da economia espa­
nhola fez com que houvesse um deslocamento do capital
nacional, do setor produtivo para o imobiliário: o ingresso
de investimentos transnacionais em segmentos industriais
e de serviços ensejou uma transferência de controle sobre
essas atividades e estimulou o capital nacional a migrar
rumo ao setor imobiliário. Isso fez com que o capital dispo­
nível não só não ficasse imobilizado, mas também impossibi­
litado de obter maior lucratividade em iniciativas rentáveis,
tais como incorporações, urbanização, empreendimentos
imobiliários e até estocagem de glebas à espera de futuras
valorizações decorrentes da expansão urbana e das fortes
pressões sobre o poder público para ampliar continuamente
o escopo das terras urbanizáveis.
O problema estrutural (ampliação das terras urbanizá­
242 veis) encontra amparo no direito urbanístico espanhol, ou
seja, “por atividade urbanística se entende a toda atividade
pública destinada a promover a adequada transformação de
um solo rural em solo urbano” (Araujo Jr., 2013, p. 893-894).
Essa proposição guarda estreita sintonia com a inter­
pretação de Harvey (2013): a raiz da crise estaria precisa­
mente na sua própria incapacidade de absorver exceden­
tes de capital, ou seja, crises de sobreacumulação gerariam
desvalorização e destruição de algumas regiões e constru­
ção de outras, ensejando um fenômeno de “acumulação
por espoliação” que, por definição, concentra capital e
priva a maioria da sociedade de seus direitos. Ou seja, o
deslocamento de parte do capital rumo às atividades imo­
biliárias foi determinado por essa sobreacumulação e pela
participação do capital financeiro, o que contribuiu decisi­
vamente para a bolha imobiliária que se revelou altamente
rentável para seus empreendedores. Esse movimento foi
possível pela permissividade da legislação urbanística,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

particularmente da Ley de Suelo e suas sucessivas reformas,


o que condicionou as legislações autonômicas e pautou a
formatação dos planos urbanísticos.

Os Planes de Ordenación Urbana


Se a Constituição enuncia os preceitos gerais da ordena­
ção urbana (função social da propriedade, plusvalias urba­
nas e competências governamentais), se a Ley de Suelo institui
a tipologia de solos (urbano e rural) e organiza as regras de
regulação urbanística, e se as leis autonômicas do solo se
adaptam à legislação estatal em seus territórios, a adequa­
ção e a aplicação dessas normas competem ao Plan General
de Ordenación Urbana (PGOU), aqui tratado como Plan de
Ordenación Urbana5 (Quadro 2).
A primeira versão da Ley de Suelo, de 1956, já previa que
o planejamento era a base necessária e fundamental de
toda ordenação urbana – e que o Plan de Ordenación Urbana
constituía um instrumento privilegiado para tanto –, pre­ 243
dizendo a elaboração e execução de planos territoriais de
várias escalas: nacional, provinciais, comarcais e municipais.
Tais planos podem ter abrangência espacial variada, interes­
sando neste estudo, inclusive para efeitos comparativos com
o cenário institucional brasileiro, aqueles de escala local.
Planes de Ordenación Urbana são atribuições dos governos
autonômicos. Essa modelagem institucional impõe duplici­
dade jurisdicional na medida em que, embora sejam propos­
tos pelos governos locais (ayuntamientos) – que também têm
atribuições aplicativas complementares –, os Planes devem
ser submetidos à apreciação e aprovação das administra­
ções autonômicas. Planos urbanísticos são avaliados técnica
e politicamente no âmbito das comunidades autônomas

5 
A nomenclatura a respeito do mesmo instrumento é variada, refletindo a diver­
sidade cultural e linguística do país. Em Andalucía, Castilla y León e Valencia, é
Plan General de Ordenación Urbanística (PGOU); na Cataluña, Pla d’Ordenació Urbana
Municipal (POUM); na Galicia, Plan Xeral de Ordenación Municipal (PXOM).

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

pelos órgãos tecnocráticos de planejamento e pelos corres­


pondentes foros institucionais de diferentes denominações:
Asamblea (Madri), Generalitat (Valencia), Xunta (Galícia),
Junta (Andalucía) e assim sucessivamente.

Quadro 2
Sequência hierárquica de aplicação da legislação urbanística na
Espanha
Constituição [abrangência nacional – foro decisório: Congreso de los Diputados
e Senado]

Ley de Suelo Estatal [incidência nacional – foro decisório: Congreso de los
Diputados]

Legislação setorial [incidência nacional – foro decisório: Congreso de los
Diputados]

Leyes de Suelo das comunidades autônomas [incidência autonômica – foro
decisório:
Asambleas autonómicas]
244 ↓
Plan de Ordenación Urbana [incidência local – foro decisório: Asambleas
autonómicas]
Fonte: elaboração própria.

Consideradas a legislação urbanística e as decisões arbi­


tradas pelo Tribunal Constitucional quanto ao conflito de
competências dos diferentes níveis de governo, sobretudo
as sentenças 61/97 e 164/01 após a controversa reforma
da Ley de Suelo de 1990, ao Estado (governo central) cabe
estabelecer diretrizes gerais da política urbana, enquanto
as comunidades autônomas têm competências “exclusivas”
(legislativas) em matéria de urbanismo. Tais prerrogati­
vas, na verdade, são compartilhadas (na dimensão aplica­
tiva) com os municípios (ayuntamientos) à medida que estes
detêm funções regulatórias consagradas pela Ley de Bases
de Régimen Local (lei nº 7/1985), dentre as quais merecem
registro a autoridade em “planejamento, gestão, execução e

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

disciplina urbanística; proteção e gestão do patrimônio his­


tórico; promoção e gestão da habitação de proteção pública
com critérios de sustentabilidade financeira” (artigo 25, 2a).
Está correta a perspectiva que interpreta a política urbana
espanhola como um caso “multinível”, no sentido de um
arranjo institucional complementar em que diferentes esfe­
ras e níveis de governo têm competências complementares
nesse âmbito (Blanco; Subirats, 2012). No sistema espanhol
outras regulações setoriais também têm bases decisórias no
domínio do Estado ou das comunidades autônomas. É o caso
das normas sobre uso, ocupação e controle das regiões de
costas marítimas, recursos hídricos e autoridade hidráulica,
logística (sistemas de rodovias, ferrovias e transporte aéreo
de carga e passageiros), organização territorial supramunici­
pal etc. Portanto, Planes de Ordenación Urbana devem levar em
conta, respeitar e não afrontar tais regulações, do contrário
podem ser contestados juridicamente (Medrano, 2015).
Ganhar expressão jurídica não representa necessaria­ 245
mente granjear efetividade, pois políticas públicas expri­
mem a face real do Estado e podem alterar ou manter o
status quo (Souza, 2007). Toda regulação deriva de alguma
forma de arbitragem de conflitos sociopolíticos e implica
o estabelecimento de normas, as quais traduzem determi­
nado consenso dotado de legitimidade. Isso significa que
a sobreposição de diferentes órgãos e níveis de governo
em um mesmo tema torna mais complexa a implantação
de qualquer política pública, pois compreende múltiplas
dimensões negociais que envolvem as diferentes autoridades
correspondentes e os públicos atingidos.
Ainda que planos urbanísticos possam ter baixa eficá­
cia e não se realizarem plenamente, cumprem um papel
determinante como ideologia, ou seja, como instrumento
de dominação e imposição de determinada concepção
de mundo e de organização urbana que se legitima como
aspiração de toda a sociedade (Villaça, 2004). Portanto, a

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

potência do urbanismo transcendeu sua capacidade efeti­


vamente transformadora do espaço urbano precisamente
porque sua força ideológica residia na projeção idealizada
da cidade. Assim, a lógica dos modernistas “acabaria desem­
bocando na concepção mecanicista do urbanismo e da habi­
tação, a casa como machine à habiter, no aforismo que logo
popularizaria Le Corbusier” (De La Rosa, 2014, p. 154).
A partir da democratização política e da promulgação
dos estatutos de autonomia nas décadas de 1980-1990, proli­
feraram legislações autonômicas de ordenação do território
e Planes de Ordenación Urbana. A generalização dessa prática,
contudo, não pode ser associada à efetividade em razão da pre­
valência de uma concepção generalista que postulava diretrizes
e, por isso mesmo, era refém de grandes dificuldades opera­
cionais impostas aos planos urbanísticos (De Córdoba, 2007).
A influência modernista, a concepção generalista e a
baixa capacidade reguladora contribuíram decisivamente
246 para forjar a sensação de impotência do urbanismo e a per­
cepção de ineficácia dos planos urbanísticos, os quais coinci­
dem com a crise do modelo fordista de produção capitalista,
com a difusão do ideário neoliberal e com a emergência de
um novo paradigma: o “planejamento estratégico das cida­
des”. Nesses termos, “sem uma estratégia de políticas urba­
nas própria, sem processos de implicação social, os governos
locais veem submetidas suas dinâmicas a agentes externos
que ditam projetos e ritmos” (Blanco; Subirats, 2012, p. 24).
O colapso do modelo fordista expôs o confronto entre
duas concepções de ordenação econômica (Clarke, 1991).
A primeira, orientada pela tradição keynesiana, é marcada
pela perspectiva de dotar as instituições nacionais de maior
capacidade para enfrentar situações de crise, com base em
um novo equilíbrio entre produção e demanda por meio de
um forte papel regulador exercido pelo Estado na expecta­
tiva de promover um cenário de pleno emprego – concep­
ção que se confundiu com as experiências do welfare state.

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

A segunda orientação, nomeada como monetarista, advogava


a impossibilidade de manutenção do Estado do bem-estar e
a adoção de um modelo liberal que encontraria seu equilí­
brio na espontaneidade das forças do mercado, cuja estabi­
lidade seria alcançada por meio de políticas e instrumentos
monetários, mediante a supressão do papel regulador do
Estado. Não por acaso, essa doutrina econômica encontrou
sua expressão ideológica no pensamento neoliberal.
Essas mudanças na ordem econômica também se refle­
tiram nas concepções urbanísticas e na gestão das cidades a
partir da crise das cidades industriais, emergindo crescentes
demandas por governos locais empreendedores. Assim, ocorre
uma alteração importante na atribuição desses governos,
que deixariam de ser responsáveis pela provisão de infraes­
trutura, bens e serviços urbanos (gerenciadores) para se tor­
narem empreendedores econômicos incumbidos de pro­
porcionar a modernização de negócios em seus respectivos
territórios; enfim, o empresariamento das cidades (Harvey, 247
1996). Para radicalizar o argumento, as cidades seriam redu­
zidas à dimensão mercadológica, e governos locais deveriam
assumir atribuições antes conferidas aos níveis superiores
(Castells; Borja, 1996). Supondo que as cidades competem
entre si para atrair investimentos, nada mais coerente que
tratá-las como autênticas mercadorias, em conformidade
com a hegemonia neoliberal. O empresariamento das cida­
des é a expressão de uma forma sofisticada de “reificação
(coisificação) da cidade” (Harvey, 1996, p. 53), e no caso
espanhol essa tendência coincidiu com o boom imobiliário
da última década do século XX e primeiro decênio do XXI.
O amparo legal para essas mudanças na concepção
do planejamento urbano foi encontrado no ordenamento
institucional, nos planos urbanísticos e na implantação de
projetos arquitetônicos e urbanísticos de grande impacto.
Coerente com essa visão mercadológica da cidade, emergiu
a tentativa de conferir atualidade e eficácia aos planos, isto é,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

a crítica implícita à impotência e à ineficácia do urbanismo


convencional abriu espaço para se disseminar a concepção
do planejamento estratégico das cidades. Nesta acepção, o
contexto institucional e a realidade sociopolítica são substi­
tuídos por modelos dirigidos à competição e à mercantiliza­
ção da cidade em suas múltiplas dimensões.
A narrativa neoliberal se tornou amplamente hegemô­
nica também na literatura especializada sobre planejamento
urbano (Blanco; Subirats, 2012; Griggs; Blanco; Sullivan,
2010; Rullan, 1999) e, embora essas concepções tivessem
calorosa recepção e mesmo outras formulações na Espanha,
sua matriz teórica está nos Estados Unidos e no paradigma
da cidade como legítima máquina de crescimento, ou growth
machine (Arantes, 2000; Logan; Molotch, 1987).
Isso não significa que os planos urbanísticos foram
inteiramente malsucedidos, mas que seus postulados origi­
nais (de ordenação e regulação do solo) foram colocados
248 em xeque porque não se concretizariam integralmente e
porque a agenda do desenvolvimento urbano migrou para a
temática econômica diante da crise das cidades industriais.
Nesse sentido, qualquer avaliação sobre os planos urbanís­
ticos deve considerar suas diferentes dimensões e fases que
envolvem sua concepção e execução (De Córdoba, 2007).
Reagir à crise econômica e forjar novos paradigmas de
desenvolvimento urbano não significou reagir à desindus­
trialização, em sentido estrito, com a consequente transpo­
sição ou mesmo fechamento de plantas industriais (embora
esse fenômeno tenha ocorrido). Na verdade, o que ocor­
reu em meio às transformações gerais da economia capita­
lista desse período foi a afirmação da primazia do capital
financeiro, uma grande expansão do segmento terciário e
dinamização do setor imobiliário. As cidades não deixaram
de abrigar indústrias, mas se converteram em lócus privile­
giado de sobreposição destas ao pujante setor de serviços,
com destaque para o peso crescente do capital imobiliário.

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

Há casos emblemáticos de grandes projetos urbanos que


mudaram a própria identidade urbanística e econômica de
algumas importantes cidades espanholas, como Valencia,
Barcelona e Bilbao, nas quais a indústria não “desapareceu”,
embora tenha se enfraquecido. É provável que o exemplo
mais proeminente seja o da siderurgia vasca. A propósito, a
expansão do setor de serviços no último período é extraor­
dinária na Espanha, passando de 46% em 1970 para 75% do
Produto Interno Bruto nacional em 2015. No mesmo período
a participação da indústria regride praticamente pela metade,
de 34% para 17,1% do PIB. A evolução da estrutura do
emprego no mesmo ciclo ratifica o enfraquecimento do peso
relativo da indústria: os postos de trabalho ocupados nesse
setor regridem de 25,3% para 13,6%, ao passo que no setor de
serviços há enorme crescimento, o qual mais que duplica esse
percentual, indo de 36,5% para 76,2% (Pampillión, 2016).
A expansão do setor terciário e o aquecimento do mercado
imobiliário foram possíveis pela oferta de crédito disponibilizada 249
pelo capital financeiro. Novamente convém recorrer a Harvey
(2013) e à sua explicação da crise capitalista contemporânea:
estaríamos diante de um movimento de sobreacumulação cuja
expressão urbana seria o desmoronamento de alguns espaços
econômicos e a edificação de outros ou, ainda, de reconversão
daqueles decadentes por meio de crédito do sistema financeiro
e de inversões do capital imobiliário altamente rentáveis. A
consequência foi um padrão de desenvolvimento territorial­
mente desigual, em que “a localização do empreendimento
é vital para que sua utilidade seja socialmente verificada, pois
grandes edifícios sem a proximidade de um mercado consumi­
dor estão sob o risco de ser um fiasco” (Botelho, 2014, p. 87).
As transformações econômicas e urbanísticas e os projetos
urbanos de grande impacto que se implantaram nas cidades
mencionadas não atropelaram os governos locais e autonômi­
cos – não obstante resistências localizadas, eles próprios foram
seus entusiastas e/ou promotores –, pelo contrário, estes foram

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

contagiados pela magnitude e pelo impacto de inúmeros pro­


jetos urbanos, tanto de requalificação de áreas “degradadas”
quanto de outras intervenções urbanísticas “inovadoras” ou de
reconversão e gentrification. Como essas iniciativas se relaciona­
ram com os planos urbanísticos? Na verdade, não foram estes que
previram e projetaram tais inciativas, mas se adaptaram a elas.
Em Valencia, o Plan General de Ordenación Urbana, de
1991, trata da divisão urbanística e do regime geral do solo e
enuncia a subordinação hierárquica às suas regras e diretrizes.
Não há contradição entre um plano de caráter geral e outros
específicos de qualificação ou requalificação urbana, con­
tudo, salta aos olhos que as intervenções e os grandes proje­
tos urbanos sejam solenemente ignorados (Ayuntamiento…,
2007). Fato é que a flexibilização da categoria de solo “não
urbanizável”, a adoção do paradigma Agente Urbanizador –
que abriu espaço à ação agressiva de grupos imobiliários – e
os grandes projetos implantados (como da Ciutat de les Arts i
250 les Ciències6) tiveram mais influência na produção do espaço
urbano do que qualquer plano urbanístico.
O caso de Barcelona parece mais complexo, pela configu­
ração político-institucional da cidade (referência de conflitos
territoriais históricos), por sua importância socioeconômica
histórica (região de industrialização mais dinâmica do país) ou
ainda pela expressiva tradição tecnocrática de planejamento
preexistente. Chama atenção, em primeiro lugar, que neste
caso a escala vá além do municipal, isto é, há um plano “metro­
politano” aprovado em 1976, com sucessivas atualizações7. Esse
percurso pode ser mais bem compreendido em sua dimensão
acentuadamente mercadológica: a ambição de alçar a cidade à

6 
Projeto assinado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, um dos ícones do
mainstream da arquitetura contemporânea, associada a estéticas e projetos arrojados
e a intervenções urbanísticas de grande impacto. Outro símbolo desta “escola” é o
arquiteto canadense Frank Gehry, autor dos projetos do Peix (escultura símbolo da
Barcelona pós-olímpica) e do Museu Guggenheim, em Bilbao.
7 
Texto legal do Plan General Metropolitano de Barcelona (PGMB) (<http://www.amb.
cat/es/web/territori/gestio-i-organitzacio/numamb>, acesso em: 19 maio 2016).

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

condição de metrópole mundial foi sistematizada pelo “Plano


Barcelona 2000”, e nesta receita “um pouco de tudo: das gen­
trificações de praxe às exortações cívicas endereçadas aos
chamados atores urbanos, que de recalcitrantes se tornariam
cada vez mais cooperativos em torno dos objetivos comuns
de city marketing…” (Arantes; Vainer e Maricato, 2000, p. 54).
Também nesse caso os megaprojetos subordinaram os planos.
No País Vasco constituiu-se em 1992 a Bilbao Ría 2000,
instituição responsável por articular e organizar as ações desti­
nadas à recuperação e reconversão dos antigos espaços indus­
triais e à transição das atividades portuárias para uma transfor­
mação urbana declaradamente orientada para os “serviços, a
cultura e novas indústrias”. Trata-se de uma sociedad anónima
de capital público, cujas principais fontes de recursos têm ori­
gem na alienação de antigos terrenos industriais e em proje­
tos de requalificação urbana executados em parceria com o
capital privado8. A política de reconversão urbana teve um
estatuto próprio, cuja institucionalização pautou as políticas 251
de desenvolvimento e seu Plan General de Ordenación Urbana,
ou seja, o particular (a reconversão econômica) condicionou
e ajustou o geral (regras e diretrizes da regulação urbanís­
tica). Resultado: o referido Plan General, aprovado em 1994,
não só não alude aos projetos do Bilbao Ría 2000 como não
adota as premissas e prioridades deste. Na verdade, o segundo
se impôs ao primeiro. A síntese urbanística dessa reconversão
econômica foi a instalação do Museu Guggenheim.
Em todos esses casos, os Planes de Ordenación Urbana ou
não idealizaram as normas urbanísticas e projetos urbanos ou
tiveram que absorvê-los uma vez implantados, de modo que a
normativa urbanística foi subordinada à agenda da reconver­
são econômica. Para além de qualquer abstração, eis os exem­
plos categóricos de autênticas máquinas de crescimento.

8 
(<http://www.bilbaoria2000.org/ria2000/cas/home/home.aspx>, acesso em:
19 maio 2016).

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

A fragilidade dos planos urbanísticos reflete o marco insti­


tucional da política urbana, cuja raiz reside na Ley de Suelo e na
tendência de generalizar solo urbano ou urbanizável nos Planes
de Ordenación Urbana. Ademais, espelha a primazia da dimen­
são econômica na agenda do desenvolvimento urbano, que se
traduziu na adesão ao empresariamento urbano e na lógica das
cidades como máquinas de crescimento, caracterizada, de um
lado, por políticas destinadas à promoção urbana e ao desen­
volvimento do mercado imobiliário e, de outro, pela articula­
ção de agentes das elites locais (governamentais e privados).
A legislação enuncia que o Plan General de Ordenación
Urbana é o instrumento básico para a formulação de políti­
cas urbanas, ao qual compete a classificação do solo, a fixação
das bases de um planejamento sustentável, a preservação do
solo não urbanizável e a previsão de projetos de renovação
ou reabilitação urbana. A realidade revela cenário oposto à
normativa, uma vez que os planes de maneira geral não só têm
252 perdido sua centralidade como instrumento de planejamento,
mas também são ofuscados ou neutralizados por projetos e
ações que contrariam seus postulados. A consequência social
desse paradoxo institucional é a intensificação dos contrastes
urbanísticos entre a “cidade dos ricos” e a “cidade dos pobres”.
A “injustiça espacial” que essa polarização enseja emerge como
a grande questão urbana contemporânea (Secchi, 2015).

Hipóteses comparativas: Espanha-Brasil


Sintetizado o quadro institucional da política urbana
espanhola, resta esboçar alguns parâmetros comparati­
vos com o cenário brasileiro. Antes, um registro: não há
na literatura uma avaliação sistematizada e comparativa
sobre os Planes de Ordenación Urbana na Espanha, o que
limita um esforço de síntese na medida em que se cons­
tatam a existência de estudos particulares de várias disci­
plinas (urbanismo, direito, economia, sociologia urbana,
ciência política), a adoção de diferentes referenciais

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

teórico-metodológicos e o exame relativamente insulado


de distintas experiências.
Diante dessa lacuna, a hipótese adotada é que o fenô­
meno crescente de mercantilização urbana – em um con­
texto de crise e transformação do padrão fordista de produ­
ção – foi impulsionado pela hegemonia do ideário neoliberal
(Rullan, 1999) e pela estrutura institucional do direito
urbanístico (Alfonsin, 2008), ou seja, o objetivo de tornar
as cidades economicamente mais competitivas, o caráter fle­
xível das normas urbanísticas e as pressões pela ampliação
da oferta de terra urbanizada fizeram com que municípios e
comunidades autônomas aderissem à lógica da cidade como
máquina de crescimento, e daí para o empresariamento urbano
foi um salto rápido e coerente (López; Rodríguez, 2010).
Nesse cenário, o poder regulatório dos planos urbanísticos
tem sido cada vez menor, uma vez que a ordenação urbana é
determinada por outras políticas, normas e projetos, os quais
condicionam os Planes de Ordenación Urbana. 253
Assim, a estrutura institucional se adapta e se submete às
forças de mercado, com notável proeminência do segmento
imobiliário (Márquez; Naredo, 2011), e à orientação de gover­
nos que forjam normas flexíveis para facilitar a consecução
desses objetivos. Mas é preciso ressaltar que as bases jurídicas
dessas normas constam do próprio arcabouço institucional: a
Ley de Suelo prevê basicamente dois tipos de solo (urbanizado
ou rural), isto é, a própria legislação induz à irrefreável ten­
dência de expansão do solo urbanizável (artigo 21.2.b).
Em termos normativos, a legislação brasileira é mais
incisiva quanto aos instrumentos de direito à cidade (Quadro
3). A Constituição Federal (CF) não só dedica um capítulo
específico à política urbana, como em um único enunciado
subordina o direito de propriedade à sua função social, reco­
nhece o município como ente federativo responsável pela
política urbana e elege o Plano Diretor como instrumento
fundamental (artigo 182): “a política de desenvolvimento

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

urbano, executada pelo poder público municipal, conforme


diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar
o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantir o bem-estar de seus habitantes”; depois “§1º O
plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório
para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instru­
mento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana”; finalmente, “§2º A propriedade urbana cumpre sua
função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Há uma importante diferença política entre os dois paí­
ses na história recente de seus processos de democratização.
A transição espanhola se distinguiu por um caráter altamente
pactuado que se traduziu em soluções de compromisso que
conferiram um conteúdo bastante genérico à sua ordenação
constitucional. Essa foi a fórmula predominante de concerta­
ção em virtude da correlação de forças e da disposição para
254 consensos manifestada por todas as forças e partidos políti­
cos, da direita à esquerda (Maues e Santos, 2008).
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 não
só é acusada de demasiado detalhismo por sua extensão,
como é reconhecidamente avançada em termos de legiti­
mação e expansão de direitos sociais, civis e políticos. Essas
distinções se refletiram nas definições da política urbana e
na ordenação institucional do princípio participativo, tanto
que as normas brasileiras são bem mais generalizadas (em
várias áreas de políticas públicas) e específicas (detalhadas).
Convém lembrar que o texto constitucional brasileiro tem
origem em emenda de iniciativa popular (nº 63), organizada
pelo Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU),
tendo coletado 133.068 assinaturas (Michiles et al., 1989).
Nesses termos, não surpreende que o regramento e a
institucionalização também tenham sido reproduzidos no
arcabouço do planejamento urbano da legislação infracons­
titucional que regulamenta os princípios constitucionais,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

notadamente em sua principal normativa, o Estatuto da


Cidade (lei federal nº 10.257, de 18 de novembro de 2001),
o qual também disponibiliza uma expressiva variedade de
instrumentos jurídicos e urbanísticos para tornar efetivos os
princípios da reforma urbana.
Recentemente o Brasil também aprovou normas pró­
prias para a gestão das grandes concentrações urbanas,
o Estatuto da Metrópole (lei federal nº 13.089, de 12 de
janeiro de 2015), que “estabelece diretrizes gerais para o
planejamento, a gestão e a execução das funções públicas
de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglo­
merações urbanas instituídas pelos Estados…”. Na Espanha
não há legislação estrita análoga, e a normativa mais próxima
provavelmente seja a Ley de Medidas para la Modernización del
Gobierno Local (Ley 57/2003), cujos objetivos principais consis­
tem em “atender à necessidade de uma liderança clara e diá­
fana diante da sociedade, o que exige executivos com grande
capacidade de gestão para atuar rápida e eficazmente”. Tal 255
legislação visa superar o “excessivo uniformismo”, admitindo
padrões de planejamento específicos e regras de desenvolvi­
mento urbano particulares às grandes cidades e metrópoles.
Se na Espanha a efetividade dos Planes de Ordenación
Urbana é baixa pelas razões mencionadas, no Brasil ocorre
fenômeno parecido com os Planos Diretores (Santos Jr.;
Montandon, 2011; Rolnik, 2009), cuja eficácia é comprome­
tida tanto pela insuficiência dos dispositivos institucionais
quanto pela ação política de atores desinteressados em sua
vigência (sejam governamentais, sejam privados). A despeito
das muitas diferenças sociais, institucionais e urbanísticas que
os separam, há aspectos comuns aos dois países. Os princi­
pais deles são: atividade imobiliária altamente rentável; pre­
sença hegemônica de um ideário mercadológico da cidade;
e difusão de concepções de gestão urbana que alastraram
as teses da cidade como máquina de crescimento e do empresa-
riamento urbano (Arantes; Vainer; Maricato, 2000; Maricato,

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


O marco institucional da política urbana na Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil

2011). Nos dois países os planos urbanísticos têm se tornado


instrumentos litúrgicos, com baixa incidência sobre o plane­
jamento das cidades. Parcela de responsabilidade desse cená­
rio pode ser atribuída às fortes pressões por administrações
austeras do ponto de vista fiscal, a escassez e adversidades
orçamentárias e às insuficiências do ordenamento institucio­
nal, mas é evidente que há determinações políticas, ideológi­
cas e econômicas muito mais poderosas na conformação da
política urbana, razão suficiente para que os estudos de mar­
cos institucionais não se limitem ao exame de regras normati­
vas. Normas importam sempre, mas o contexto sociopolítico
diz muito sobre políticas urbanas e seus impactos.

Quadro 3
Comparativo do Marco Institucional da Política Urbana: Espanha/Brasil
REFERÊNCIA
ESPANHA BRASIL
INSTITUCIONAL
Enunciados Princípios da Política Social e Capítulo da Política Urbana
256 Constitucionais Econômica (artigo 47) (artigo 182 e artigo 183)
Ley de Suelo (LS) –
Principal Legislação Estatuto da Cidade (EC)
Ley 20/2014
infraconstitucional Lei nº 10.257/2001
Real Decreto Legislativo 7/2015
Ley 57/2003
Legislação específica Lei Federal nº 13.089/2015
(Ley de Modernización del
para grandes cidades (Estatuto da Metrópole)
Gobierno Local)
Concepção normativa Plusvalia é reconhecida e admitida Subordinação à função social
da propriedade (CE e LS); função social tênue (CF e EC)
Artigo 148 da CE: competência
Artigo 182 da CF: “política
“exclusiva” das comunidades
de desenvolvimento urbano
autônomas pela “ordenación del
Competência pela executada pelo poder
territorio, urbanismo y vivienda”,
efetivação da política público municipal”; sistema
mas há compartilhamento com
urbana federativo impõe gestão
municípios (Ley 7/1985 – Ley
compartilhada e cooperativa
Reguladora de las Bases del
em políticas públicas
Régimen Local)
Principal instrumento Plano Diretor obrigatório
de ordenamento para municípios com
Planes de Ordenación Urbana
territorial e de população superior a 20 mil
(LS)
regulação do uso e habitantes
do solo (CF e EC)
Fonte: elaboração própria.

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


Jefferson Oliveira Goulart

Jefferson O. Goulart
é professor do Departamento de Ciências Humanas da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisador do
Cedec e líder do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento
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259

Lua Nova, São Paulo, 103: 233-259, 2018


261
IMPACTOS DA JUSTIÇA TRANSICIONAL SUL-
AMERICANA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS
Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini
é Doutora em Relações Internacionais (IRI-USP), Fellow do Carr Center for Human Rights
Policy, Harvard Kennedy School e Professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: <isabelagarbin@hotmail.com>
http://dx.doi.org/10.1590/0102-261284/103

Introdução1
A maioria dos Estados sul-americanos esteve sob o
comando de regimes ditatoriais entre as décadas de 1970 e
1980, período que singularizou a história regional pelas diver­
sas violações de direitos humanos praticadas de forma siste­
mática como políticas de Estado. Os processos de transição
democrática foram – e continuam sendo, em muitos casos –
bastante diversos em termos do tratamento estatal conferido
aos prismas da justiça, da verdade e da reparação. Entretanto,
um denominador comum entre aqueles que lutam pela pre­
dominância dos valores democráticos na região consiste no
receio à impunidade. O enfrentamento aos passados auto­
ritários na América do Sul experimentou uma diversidade
de métodos e práticas, judiciais (processos criminais) e não
judiciais (comissões da verdade, por exemplo), conduzidos
tanto no plano doméstico, quanto no internacional.

1 
Agradeço os comentários e sugestões de Kathryn Sikkink, Rossana Rocha Reis,
Bruno Boti Bernardi e Marcelo Torelly a este texto.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

No âmbito internacional, o Sistema Interamericano


de Direitos Humanos (SIDH) teve um papel significativo
para a justiça transicional nas Américas. Arquitetado em
momento anterior à instauração de ditaduras militares, o
sistema desenvolveu-se, desde o início, centrado no ideal
democrático (Acevedo; Grossman, 1996; Sikkink, 2014).
Com a implementação de seu primeiro órgão em 1959, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),
o sistema regional encontra os elementos formais iniciais
para lidar com os abusos de direitos humanos cometidos
pelas ditaduras vigentes. Contudo, um enfrentamento obje­
tivo destas violações, pautado em processos institucionais,
somente se verifica nos anos 2000, com a formação de uma
jurisprudência própria no assunto. Se as violações de direi­
tos humanos decorrentes de passados autoritários foram – e
são – tão representativas para a realidade de direitos huma­
nos da região, quais razões explicam a demanda de quase
262 quatro décadas para o SIDH enfrentar, de forma objetiva,
os casos de justiça de transição nas Américas?
Os estudos sobre as normas globais – os quais tangenciam
temas de justiça de transição – evoluíram tanto no entendi­
mento dos atores (redes transnacionais de advocacy) e dos
mecanismos (padrão bumerangue, cascata de justiça) que
promovem transformação no comportamento estatal, quanto
nos impactos da normativa internacional e dos atores trans­
nacionais sobre os governos/Estados (Finnemore; Sikkink,
1988; Lutz; Sikkink, 2000; Sikkink; Walling, 2010). Esta litera­
tura nos dá elementos para compreender o porquê, embora
os Estados nem sempre reconheçam as normas e decisões
internacionais, em especial as de direitos humanos, cada vez
mais se torna crescente a demanda e a referência às mes­
mas. Além disso, nos estudos mais específicos sobre justiça
de transição, a avaliação dos processos internacionais revela
que os Tribunais Internacionais têm sido elementos funda­
mentais para criar novos incentivos aos processos domésticos

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini

(Sikkink, 2005). Em que pese o avanço destes trabalhos, veri­


ficamos poucas análises que procuram identificar como e em
que medida as próprias instituições internacionais também
podem ser impactadas pelas normas globais. Destas, as rela­
tivas à justiça de transição são um bom caso para se analisar
o impacto institucional, pois ao lidarem com os valores da
justiça, da verdade e da reparação individual, acabam por
transformar, em última análise, a essência estatal nos sistemas
internacionais de direitos humanos, prevalecente na vontade
política ou responsabilidade subsidiária estatal em dar cum­
primento às decisões internacionais, por exemplo.
Neste ponto, pretendemos verificar o modo pelo qual
o SIDH se posicionou perante a questão da justiça transi­
cional na América do Sul e quais os resultados deste pro­
cesso para o próprio sistema. Para cumprir esse objetivo, o
trabalho se estrutura do seguinte modo: na primeira seção,
faremos uma retrospectiva do desenvolvimento institucional
do SIDH como forma de entender os avanços institucionais 263
do regime de direitos humanos ao longo de sua existência.
Na seção seguinte, adentraremos, em específico, no trata­
mento interamericano em relação à justiça transicional. Na
seção final, contrabalancearemos a perspectiva adotada com
dados sobre o desenvolvimento dos processos domésticos
internos de enfrentamento aos passados autoritários e a con­
solidação das redes transnacionais de advocacy na região. Em
seguida, passaremos às considerações finais.

Sistema Interamericano de Direitos Humanos: trajetória


institucional
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem
como objetivo principal regular a região no que se refere
à observância dos padrões internacionais de direitos huma­
nos. Encontra-se vinculado à Organização dos Estados
Americanos (OEA), instituição multifuncional que engloba
uma complexa estrutura de normas e instituições. Uma

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

revisão da trajetória normativa e institucional – balanceada


com noções da conjuntura internacional – revela que o
sistema regional se desenvolveu com base e em reação aos
obstáculos (políticos, financeiros, institucionais) interpostos
pelos Estados da região e pela própria OEA. Pretendemos
demonstrar que, nas diversas contendas, o SIDH mostrou
habilidade em explorar eventuais janelas de oportunidade
para ultrapassar os limites institucionais originários, as pres­
sões estatais e os constrangimentos estruturais da OEA, de
modo a buscar autonomia para levar adiante suas missões e
seus interesses, no sentido de se manter como uma instância
apta a conduzir as questões relativas aos direitos humanos no
âmbito regional (Cavallaro; Brewer, 2008; Goldman, 2009;
Engstrom; Hurell, 2010; Thede; Brisson, 2011). Esta seção,
portanto, analisa os principais movimentos institucionais
tendentes a modificar funções e atividades dos órgãos inte­
ramericanos como forma de ampliar as garantias de respon­
264 sabilização estatal frente às violações de direitos humanos.
Como a literatura aponta, o SIDH erige de uma base
normativa bastante frágil (Carta da OEA e Declaração
Americana de Direitos Humanos, ambas de 1948), mas sufi­
cientemente genérica para permitir um desenvolvimento
normativo e institucional que poucos poderiam prever
(Medina, 1990; Buergenthal, 2005). Essa idiossincrasia per­
mite considerar que a intenção inicial de alguns Estados e da
própria OEA quanto ao futuro do SIDH poderia ser apenas
retórica, decorrente das aspirações de reconstrução do pós­
-Segunda Guerra Mundial. Contudo, as tensões políticas no
Caribe e, sobretudo, a Revolução Cubana durante a Guerra
Fria demandaram à OEA a previsão de meios formais para
garantir a manutenção da ordem “democrática”, ainda que,
na prática, isso significasse manter a região livre das investi­
das comunistas. Por meio da Resolução VIII de 1959, a OEA
arquitetou a criação da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (IDH), com a missão de promover os direitos

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humanos na região. Contando com um mandato vago e des­


tinação orçamentária bastante restritiva, a Comissão IDH
recebeu atribuições originárias muito limitadas, como a ela­
boração de estudos sobre as condições de direitos humanos
nos Estados. Nesse exercício, o objetivo da CIDH não corres­
pondia, necessariamente, à investigação de violações indivi­
duais; todavia, tanto a OEA quanto os Estados-membros não
conseguiram antecipar alguns efeitos decorrentes dessa ativi­
dade inicial. O apelo normativo do órgão alcançou públicos
domésticos vinculados às vítimas das violações de direitos
humanos, pois tão logo se tomou conhecimento das ativi­
dades empreendidas pela CIDH, indivíduos começaram a
enviar denúncias sobre violações de direitos humanos em
seus Estados. Buscando legitimar de alguma forma a possi­
bilidade de empreender esforços de proteção (e não apenas
de promoção, conforme mandato originário), a Comissão
IDH criou um procedimento para “tomar conhecimento”
das denúncias individuais, tratando-as como fonte de infor­ 265
mação para o registro das sistemáticas violações de direitos
humanos na região. O amparo normativo para esta nova ati­
vidade decorria de uma autointerpretação extensiva do man­
dato da CIDH, realizada já na primeira sessão do órgão, em
1960. Ato contínuo, a Comissão IDH solicitou ao Conselho
da OEA que tornasse explícito, por meio das normas regio­
nais, estas ampliadas competências do órgão, que incluíam
o poder de “tomar conhecimento”, implicitamente já auto­
-assegurado pela CIDH (Goldman, 2009).
A competência para lidar com as denúncias individuais
foi formalizada em 1965, por meio da Resolução XXII,
documento que expandiu as funções e poderes da Comissão
IDH, permitindo que o órgão pudesse “examinar”, isto é,
investigar e emitir opinião sobre violações individuais de
direitos humanos. A estratégia da Comissão para trans­
passar a ausência de cooperação estatal nos processos de
investigação e para ampliar sua abrangência para todos os

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Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

direitos previstos na Declaração Americana foi interpretar


a Resolução XXII da OEA em conjunto com o mandato
inicial do órgão, firmando entendimento de que: a garan­
tia do poder de “examinar” comunicações individuais não
poderia diminuir o poder da Comissão de “tomar conheci­
mento” de denúncias sobre os demais direitos protegidos
pela Declaração Americana (atribuído pelo mandato origi­
nal) (Farer, 1997). Assim, a Comissão realizou tal manobra
para preservar seus poderes amplos de identificar graves
e sistemáticas violações de direitos humanos e, ao mesmo
tempo, colher informações que pudessem amparar as
denúncias individuais. Este movimento foi importante para
o desenvolvimento institucional da Comissão IDH, pois o
procedimento para “tomar conhecimento” mais tarde se
transformou no processamento de casos contenciosos no
SIDH. Todavia, com escassos recursos humanos e financei­
ros, a Comissão IDH se viu obrigada, por muito tempo, a
266 concentrar suas atividades no exame de situações gerais de
direitos humanos nos Estados, deixando os casos individuais
para segundo plano.
A transformação do SIDH num sistema protetivo depen­
deu da aprovação da Convenção Americana de Direitos
do Homem (CADH), em 1969. Esta foi considerada o ins­
trumento de direitos humanos mais ambicioso e amplo
já desenvolvido por um sistema internacional de direitos
humanos (Medina, 1990; Farer, 1997; Goldman, 2009), pois
além de ampliar consideravelmente o conteúdo2, modifi­
cou inequivocamente a estrutura do SIDH com a previsão
de uma Corte regional. Na época da adoção da CADH, a
maioria dos Estados sul-americanos se encontrava sob regi­
mes ditatoriais, o que parece explicar a procrastinação
da entrada em vigência deste tratado regional que previa

2 
A CADH passou a incluir novos direitos civis e políticos (como o direito à inde­
nização, o direito de retificação ou de resposta e o direito ao nome) e direitos
econômicos e sociais (como o direito ao desenvolvimento progressivo).

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a criação de um órgão cuja função consistia em responsa­


bilizar os governos por violações de direitos humanos – a
Convenção somente entrou em vigência em 19783.
Este momento coincide com o início de alguns dos processos
de transição democrática na região, e ao mesmo tempo marcou
um momento de transição para o formato final da CIDH. A
previsão de estabelecimento de uma Corte regional colocou em
xeque a exclusividade e a própria continuidade da Comissão
em assuntos de direitos humanos na região. Antevendo riscos,
a CIDH começou a delinear a versão de um novo Estatuto e
Regulamento consistentes com uma interpretação própria e
autointeressada dos dispositivos da CADH, em que entendeu
como única modificação promovida pela entrada em vigor da
Convenção a adição de uma nova competência para o órgão,
específica para atuar nos procedimentos contenciosos, em con­
junto com a Corte IDH (Farer, 1997). Neste caso, a Comissão
manejou tanto para subsistir como órgão do sistema regional,
quanto para controlar as atividades da Corte IDH. 267
A Corte IDH levou dez anos para entrar em funciona­
mento, isso porque, como dito, a maior parte dos governos
nas Américas Latina e Central, na época, estava sob coman­
dos militares; não havia um ambiente favorável às instituições
internacionais autoritativas de direitos humanos. O tribunal
tinha capacidade originária para exercer dois tipos de funções:
a competência contenciosa (julgamento e responsabilização) e
a competência consultiva (interpretação e orientação). Entre
1979 e 1987 a Corte IDH centrou-se no objetivo interno de
organização gradual4 de sua estrutura normativa e institu­
cional, mesmo porque, após seu estabelecimento efetivo, a

3 
A vigência da CADH teve início quando ratificada por 11 Estados: Colômbia,
Costa Rica, El Salvador, Equador, Honduras, Haiti, Granada, Guatemala, Panamá,
República Dominicana e Venezuela. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/
Basicos/Portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm>. Acesso em: 4 abr. 2018).
4 
Relatórios anuais da Corte IDH de 1980 a 1987. Disponível em: <http://www.oas.
org/es/cidh/informes/anuales.asp>. Acesso em: 4 abr. 2018.

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Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

relação entre os órgãos interamericanos de direitos huma­


nos não transcorreu em bases amistosas, muito em razão das
desconfianças mútuas quanto à divisão de funções e poderes.
Enquanto a CIDH relutava em enviar ao tribunal casos con­
tenciosos, a Corte IDH trabalhou, basicamente, com poucas
opiniões consultivas, propostas por Estados e pela Comissão.
O tribunal se valeu da oportunidade de trabalho nas opiniões
consultivas para: ampliar a abrangência de seu mandato para
outros tratados internacionais5; chamar atenção da opinião
pública internacional6; e firmar parceria com a CIDH para
resolver casos de graves violações de direitos humanos, mesmo
quando o Estado-denunciado não fosse parte da CADH7. A
tendência de não envio de casos ao tribunal somente se modifi­
cou quando a Comissão passou a ser pressionada pelos comen­
taristas, advogados e governos (O’Donnel, 1986; Farer, 1997).
Modificando gradualmente a sua postura, a nova frente de
trabalhos da CIDH nos casos contenciosos transcorreu para­
268 lelamente às visitas in loco e relatorias estatais ainda que, sob a
influência da nova competência, o foco dessas últimas ativida­
des passou às relatorias temáticas8.
Estas relatorias constituíram um turning point para
reconstituição da identidade deste órgão interamericano,
uma vez que, por meio deste mecanismo, a CIDH enten­
deu que mantinha um papel único na região: o desenvol­
vimento de novos parâmetros substantivos sobre os direitos
humanos; a articulação entre Estados, Organizações Não

5 
Na Opinião Consultiva nº 3, de 8 de setembro de 1983, a Corte IDH firmou
entendimento extensivo de que poderia se referir a quaisquer outros tratados
internacionais que a possibilitassem interpretar os instrumentos interamericanos.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_03_esp.pdf>.
Acesso em: 28 ago. 2014.
6 
Em razão do Caso Schmidt, opinião consultiva nº 5 de 13 de novembro de 1985,
que envolvia a discussão sobre liberdade de impressa em regimes democráticos.
7 
Idem.
8 
De 1990 até 2001, a CIDH mantém onze relatorias temáticas. A diversidade de
temas trabalhados está disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/mandato/
relatorias.asp>. Acesso em: 16 mar. 2018.

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Governamentais (ONGs) e órgãos da OEA; e, a habilidade


em chamar a atenção pública. Esta nova identidade da
Comissão, reforçada pelo reconhecimento normativo de
suas tarefas institucionais, permitiu que a ampla discricio­
nariedade do órgão sobre a decisão de enviar casos à Corte
IDH, exercida por mais de duas décadas, fosse revista em
2001. A partir deste momento, os papéis institucionais já
se encontravam bastante definidos: a CIDH se ocupava das
investigações e apurações formais iniciais das violações de
direitos humanos, enquanto o tribunal concentrava suas ati­
vidades no julgamento dos casos.
Entre 1988 e 1994 a Corte IDH julgou seus primeiros
casos, desenvolvendo rapidamente um conjunto de decisões
sobre importantes aspectos substantivos e procedimentais
do sistema interamericano9. Um dos motivos para a Corte
dar ênfase nos casos contenciosos em detrimento das opi­
niões consultivas decorreu do interesse do tribunal em con­
solidar uma jurisprudência própria. O conjunto de enten­ 269
dimentos da Corte IDH chancelava costumes (que algumas
vezes extrapolavam as competências originais) do tribunal,
dando-lhe margem para atuar com um pouco mais de auto­
nomia institucional. De 1998 até recentemente, desenvol­
veu-se a fase mais inovadora da Corte IDH: além da intensa
produção jurisprudencial, o tribunal passou a empreender
diversas reformas e parcerias estratégicas com os governos
nacionais e grupos da sociedade civil organizada. Neste pro­
cesso, a Corte renovou seus papéis, buscando maior legiti­
midade e autonomia institucional. A partir dos anos 2000,
a Corte IDH se utilizou de reformas regulamentárias para
reforçar a legitimidade perante organizações da sociedade
civil internacional: abriu possibilidade de participação direta
das vítimas e representantes em cada fase procedimental

9 
Relatórios anuais da Corte IDH de 1988 a 1994. Disponível em: <http://www.
oas.org/es/cidh/informes/anuales.asp>. Acesso em: 28 ago. 2014.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

do julgamento10, solicitou a participação ativa destes grupos


no processo de consulta sobre as reformas regulamentárias,
criou um fundo de assistência legal às vítimas e a defensoria
interamericana. Além disso, a Corte continuou a inovar por
meio da jurisprudência11, dando interpretações extensivas e
dinâmicas aos direitos civis e políticos de modo a enfrentar,
indiretamente, questões coletivas relativas a direitos econô­
micos, sociais e culturais12. Neste momento também é que
a Corte IDH avança mais diretamente sobre as questões da
justiça de transição, temática em que a jurisprudência intera­
mericana revela sua abordagem mais inovadora e expansiva
da proteção dos direitos humanos (Neuman, 2008; Binder,
2011; Mejía-Lemos, 2014).
Em síntese, a sequência dos principais desdobra­
mentos institucionais da CIDH e da Corte IDH revela
que, diante de constrangimentos estruturais e conjuntu­
rais, ambos organismos agiram para modificar suas fun­
270 ções, papéis e identidades ao longo de suas existências,
se valendo de autointerpretações extensivas e combinadas
de seus mandatos, de uma série de reformas regulamen­
tárias e de entendimentos jurisprudenciais expansivos
para se manterem como instâncias aptas a lidar com as
questões de direitos humanos no hemisfério. O caso das
jurisprudências sobre justiça transicional mostra um novo
avanço da Corte IDH, desta vez no sentido de transformar
a responsabilização estatal (essência do sistema regional

10 
Antes dessa reforma, os peticionários não participavam diretamente no proces­
samento do caso. Era a CIDH quem desempenhava o papel ambivalente de árbitro
imparcial durante a fase de processamento perante a Comissão e parte oposta ao
Estado-denunciado na fase de processamento perante a Corte IDH.
11 
Uma das inovações mais importantes foi a adição da competência supervi­
sora pela Corte IDH do cumprimento estatal de suas decisões. Neste sentido, ver
Ramanzini (2014).
12 
Nos últimos anos, a Corte IDH cumulou importantes decisões sobre discrimina­
ção por razões de orientação sexual, direitos das pessoas portadoras de deficiência,
direitos de paternidade e direitos reprodutivos, entre outras.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


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de direitos humanos) em responsabilização individual pela


prática de violações de direitos humanos.

Sistema Interamericano de Direitos Humanos: a justiça


de transição
Como observado na seção anterior, um dos obstáculos
inerentes ao pleno funcionamento do SIDH, a princípio,
decorre da intrincada relação com os governos ditatoriais
da região. Afinal, o sistema regional, criado no impulso
renovador pós-Segunda Guerra Mundial, haveria de lidar,
inequivocamente, com uma série de violações sistemáticas
de direitos humanos que se tornaram práticas comuns no
hemisfério durante a Guerra Fria. O processo construído
pelo SIDH para lidar com os crimes praticados durante as
ditaduras militares revela que, para além do enfrentamento
objetivo da causa, os resultados repercutem no próprio for­
talecimento normativo e institucional do sistema regional.
A apropriação (e permanência) da agenda da justiça de 271
transição pelos órgãos interamericanos representa mais
um elemento para se verificar formas pelas quais o sistema
regional tem buscado autonomia para se manter como ins­
tância singular de interpretação e aplicação dos direitos
humanos na região.
Uma narrativa sobre a questão da justiça transicional
no SIDH pode ser sistematizada a partir dos objetivos per­
seguidos pelos órgãos interamericanos em dois momentos
históricos distintos: a transição democrática e a consolidação
democrática. Os marcos do eixo “transição democrática”
abrangem desde os trabalhos iniciais da CIDH no assunto,
enquanto ainda era instância única de direitos humanos na
região, até o envolvimento direto da Corte IDH no tema por
meio dos casos contenciosos. Já no eixo da “consolidação
democrática”, encontram-se contemplados a expansão dos
parâmetros jurisprudenciais da Corte em termos quantitati­
vos (spill over effect para outros casos/Estados) e qualitativos

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

(abrangência dos julgados), bem como o atrelamento


das questões/parâmetros transicionais a outros temas.
Percebe-se, portanto, que a agenda da justiça transicional
nas Américas sempre se fez presente no SIDH13, apesar do
enfrentamento da questão nem sempre ter sido direto. Em
que pese o argumento de que as atuais violações de direi­
tos humanos na região ainda sejam reflexos dos passados
autoritários (O’Donnel, 1986), existem razões de natureza
diversa que também ajudam a explicar a manutenção desta
agenda no sistema regional: o interesse institucional em
expandir competências, funções e influências na região,
consolidando uma ordem de direitos humanos pautada na
CADH. Eis o que pretendemos demonstrar a seguir.
Nos primeiros anos de atividade, o SIDH, ainda não
organizado a partir da Convenção Americana, se deparou
com sérios problemas de ordem conjuntural e institucio­
nal: de um lado, a maior parte dos Estados se encontrava
272 sob governos ditatoriais e, de outro, a CIDH, como único
órgão de direitos humanos na região, contava com funções
bastante limitadas14. Neste momento, a solução para lidar
com as graves violações de direitos humanos praticadas
pelos regimes militares operou-se via investigações in loco15,

13 
Neste ponto, cabe mencionar que as raízes do tema da justiça de transição na
região podem até mesmo serem mais profundas e anteriores à institucionalização
do sistema regional de direitos humanos. Sikkink (2014) propõe que o engaja­
mento diplomático de Estados latino-americanos nos anos 1940, no que tange à
inclusão do direito à justiça (baseados nas leis regionais de amparo ou tutela) nas
normativas internacionais, sugere um protagonismo normativo do Sul em relação
ao Norte Global.
14 
Sobre a ingerência de membros de regimes militares na CIDH, Lima (2012,
p. 196) nota que mesmo quando os membros da Comissão não estavam ligados aos
regimes militares, a asfixia política no interior dos Estados era tanta que tornava
até inadequada a submissão de casos individuais à CIDH, dado que os Estados não
participavam de forma alguma da litigância, nem mesmo indicando provas para
negar os fatos narrados.
A CIDH realizou investigações in loco no Chile em 1974 e na Argentina em 1976.
15 

Disponível em: <https://goo.gl/6DDLpe>. Acesso em: 16 mar. 2018.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


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relatórios por país16 e relatórios anuais à OEA17, os quais não


chegavam a imprimir uma tônica de responsabilização aos
governos. Estes eram os meios disponíveis para documentar
e legitimar as denúncias, de modo a expor e, de certa forma,
desgastar internacionalmente as imagens dos ditadores.
Mesmo diante das possibilidades reais de encerramento dos
regimes militares na região – vislumbradas pela aprovação
das leis de anistia18 – a posição do SIDH no assunto mostra­
va-se vacilante19.
No momento em que o SIDH se reestrutura a partir da
Convenção Americana – e passa a contar com um aparato
institucional um pouco mais definido – nenhum dos regi­
mes autoritários da região era signatário desta norma. Após
o início dos processos de reestabelecimento democrático, o
ambiente se torna favorável à adoção não só da CADH, como
também de outras normas relevantes para o tratamento do
tema, como a Convenção Interamericana contra a Tortura,
de 198520. Contudo, nesta fase, o SIDH acompanhou os 273
processos políticos de tratamento do passado autoritário
ainda dando primazia a mecanismos que não confronta­
vam diretamente as práticas estatais (Engstrom, 2011; Lima,
2012). Neste sentido, a Corte IDH encontrava-se limitada a

Relatórios de 1974, 1976 e 1977 sobre Chile e relatório de 1980 sobre a


16 

Argentina. Disponível em: <https://goo.gl/DzWcUa>. Acesso em: 16 mar. 2018.


Relatório Anual da CIDH 1979-1980. Disponível em: <https://goo.gl/BbsdaV>.
17 

Acesso em: 16 mar. 2018.


18 
Vale notar que o momento da promulgação das leis de anistia variou entre os
Estados: algumas anistias ocorreram antes do encerramento da ditadura militar
(Brasil, Peru), outras durante a transição (Chile) e outras após a transição demo­
crática (Argentina, Uruguai).
19 
Evidência deste fato consta no Relatório de 1985-1986 da CIDH, que chegou a
enunciar a legitimidade de algumas formas de anistia, quando os próprios respon­
sáveis pelas violações as decretem previamente. Disponível em: <https://goo.gl/
XcixTa>. Acesso em: 16 mar. 2018.
20 
Neste assunto, ver Moravcsik (2000).

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Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

emitir pareceres consultivos relacionados ao habeas corpus e


às garantias judiciais em estado de emergência21.
Esse tratamento ganha novos traços quando a Corte IDH
passa a receber os primeiros casos contenciosos, momento
que lança a oportunidade para o tribunal desenvolver uma
doutrina de investigação e responsabilização por crimes
cometidos nas ditaduras militares. Os entendimentos juris­
prudenciais começam a ser elaborados no bojo do problema
dos desaparecimentos forçados, em que a Corte declara que
a impunidade representa por si só uma violação de direitos,
exigindo a punição dos autores da violação22. Contudo, é
importante salientar que, nestes julgamentos, a doutrina inte­
ramericana não faz conexão explícita entre os crimes come­
tidos e a responsabilização individual. A Corte IDH opta por
relacionar a ausência de investigação criminal à fragilidade
dos sistemas nacionais de justiça e não propriamente à exis­
tência de obstáculos estatais deliberadamente implementa­
274 dos para impedir a responsabilização individual nos casos de
violações perpetradas por regimes autoritários (Lima, 2012).
Na década de 1990, o SIDH passou a dar passos mais lar­
gos rumo ao enfrentamento das violações cometidas pelos
militares. A Comissão emitiu em 1992 um parecer onde decla­
rou a inconsistência das leis de anistia com a proteção dos
direitos humanos23. Essa posição foi questionada por parte
da Argentina e do Uruguai, mediante opinião consultiva à
Corte IDH no ano seguinte, vez que os Estados questiona­
vam a competência do órgão para fazer declarações sobre as
leis domésticas. A década também ficou marcada pelo avanço
no substrato normativo regional a envolver questões refe­

Pareceres Consultivos da Corte IDH nº 8/87, de 30 de janeiro de 1987 e nº 9/87,


21 

de 6 de outubro de 1987, respectivamente. Disponível em: <https://goo.gl/


dbz4b8>. Acesso em: 16 mar. 2018.
Caso contencioso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Disponível em: <https://
22 

goo.gl/9oYFnw>. Acesso em: 16 mar. 2018).


Relatório nº 29/92 da CIDH sobre o Uruguai. Disponível em: <https://goo.gl/
23 

DzWcUa>. Acesso em: 16 mar. 2018.

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rentes ao passado autoritário, com a adoção da Convenção


Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado, em 1994.
Em 1997 também houve um implemento normativo quanto
às obrigações democráticas dos Estados da região, providen­
ciado pelo Protocolo de Washington à Carta da OEA.
É somente nos anos 2000 que ocorre uma grande
virada no tratamento da justiça transicional pelo SIDH: há
o enfrentamento direto de casos contenciosos cujo objeto
remete aos crimes ditatoriais; expande-se, consideravel­
mente, a interpretação da CADH no assunto; e consolidam­
-se julgados condenatórios em diversos Estados sul-ameri­
canos, formando uma jurisprudência que congrega todos
e cada um dos Estados da região. Por meio do julgamento
de casos paradigmáticos, a Corte IDH afirmou a invalidade
das leis de anistia e a obrigação de punir (Barrios Altos v.
Peru e La Cantuta vs. Peru), firmando um forte precedente
de que esses tipos de lei impedem a responsabilização de
indivíduos, o conhecimento da verdade e a reparação de 275
vítimas e familiares.
A vedação da anistia extravasou para outros casos nos
anos seguintes, forjando, com o passar dos anos, um qua­
dro completo de tratamento da justiça transicional entre os
Estados sul-americanos24. Dentre os contenciosos mais signi­
ficativos, destacam-se Bulacio vs. Argentina, em que a Corte
IDH expande qualitativamente os limites da jurisprudência
no assunto, afirmando

a obrigação de punir todas as violações de direitos humanos


– e não apenas as graves e sistemáticas – a rejeição a
qualquer instituto jurídico – não só aqueles citados no caso

A vedação da anistia foi ressaltada diretamente em casos tratando da Guatemala


24 

(Myrna Mack Chang, Massacre Plan de Sánchez, Carpio Nicolle e outros, Massacre
de las dos Erres), El Salvador (Hermanas Serrano Cruz, Contreras e outros),
Suriname (Comunidade Moiwana), Uruguai (Gelman) e Brasil (Gomes Lund e
outros) (<https://goo.gl/2VMGyZ>, acesso em: 16 mar. 2018).

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Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

Barrios Altos – que sejam identificados como obstáculos


para a punição e a prioridade dos direitos das vítimas se
confrontados com os direitos do réu (Basch, 2007, p. 207).

Dessa forma, a regra de responsabilidade criminal indi­


vidual não está ligada apenas aos casos de violações graves e
sistemáticas, mas expande-se a qualquer ofensa de direitos
enunciados na CADH. Atualmente, tampouco o entendi­
mento da investigação e punibilidade individual ficou ads­
trito às questões da democracia, havendo se expandido para
liberdade de expressão, liberdade de imprensa, disputas
territoriais e condições precárias de detenção. Mais recen­
temente, o caso Almonacid Arellano vs. Chile dá início à
inovadora doutrina de controle de convencionalidade, que
pretende obrigar juízes nacionais a deixar de aplicar dispo­
sições legais domésticas (refratárias de um passado autoritá­
rio) em desconformidade com a CADH e com as interpreta­
276 ções/decisões da Corte IDH. Nesse caso, a inovação se opera
via descentralização do controle da Convenção, tradicional­
mente exercido pelo tribunal interamericano, de modo que
essa decisão promove efeitos para além dos casos julgados.
Assim, a Corte passa a exercer influência nos Estados, inde­
pendentemente de um julgamento prévio.
Analisando-se a trajetória traçada pelos órgãos do SIDH
para lidar com a justiça transicional seria possível afirmar que
a CIDH e, sobretudo, a Corte IDH cumpriram papéis essen­
ciais na busca pela reparação, pela verdade e pela respon­
sabilização individual, tendo declarado os princípios gerais
de tratamento no assunto e, de certa forma, estabilizado
parâmetros normativos regionais, dando apoio aos esforços
nacionais na luta contra a impunidade (Torelly, 2013). De
outro lado, críticos ponderam que foi exatamente no desen­
volvimento da jurisprudência interamericana sobre justiça de
transição que se criou um modus operandi mais inovador e
(muito mais) expansivo das competências da Corte (Binder,

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2011; Mejía-Lemos, 2014). Todavia, a expansão de funções e


competências dos órgãos interamericanos a partir da temá­
tica da justiça de transição não representa, necessariamente,
uma exceção dentro da trajetória institucional mais ampla do
SIDH (Ramanzini, 2014). Pelo contrário, avaliamos que a jus­
tiça transicional foi encarada como mais uma oportunidade
para que o SIDH pudesse se afirmar, com relativa segurança,
como instância apta a lidar, cada vez mais autonomamente,
com as questões de direitos humanos na região.

Processos domésticos e Redes de Advocacy nos casos de


justiça transicional
Pelas duas seções anteriores buscamos demonstrar que
os órgãos interamericanos de direitos humanos somente
avançam, de forma inequívoca, na sensível questão da jus­
tiça de transição quando atingem um nível de instituciona­
lidade razoável, a qual pode ser entendida pela instituição
da Corte IDH e subsequente divisão de competências entre 277
a CIDH e o tribunal, pelo desenvolvimento de uma juris­
prudência específica no assunto e, pelo estabelecimento
de marcos normativos correlatos à transição e consolidação
democrática. Para controlar o peso da variável internacional
(SIDH) na análise, estabeleceremos aqui breves considera­
ções sobre os processos domésticos de justiça de transição
(programas de reparação, comissões da verdade e proces­
sos penais internos) e sobre o estabelecimento das redes de
advocacy na região.
Conforme exposto anteriormente, os constrangimentos
da Guerra Fria e a fragilidade do sistema regional de direi­
tos humanos impuseram um bloqueio nas alternativas inter­
nacionais para lidar com as graves e sistemáticas violações
de direitos humanos cometidas pelos governos militares na
América Latina, em especial na América do Sul. Sem sólido
respaldo internacional à epoca, empreenderam-se diferen­
tes formas de lidar domesticamente com a presença e os

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

legados autoritários, ainda que sob o imperativo das leis de


anistia25. Em geral, um dos primeiros esforços constituiu nos
programas de reparação às vítimas, os quais visaram ofere­
cer certa contrapartida financeira como forma de promo­
ver uma sutil justiça entre vítimas e anistiados. Na América
do Sul, Argentina, Brasil e Chile optaram, em momentos
históricos distintos, por estes mecanismos (Torelly, 2013).
Em seguida, tornaram-se métodos comuns as comissões da
verdade, grupos oficiais que tinham como objetivo inicial
reunir e registrar informações capazes de demonstrar a exis­
tência de crimes e a responsabilidade do Estado durante
a ditadura. As comissões da verdade foram instituídas em
todos os países da América do Sul que passaram por dita­
duras militares, apesar de algumas delas terem sido defla­
gradas já no início da transição democrática na década de
1980 e outras apenas nos últimos anos, como no caso do
Brasil. Com os primeiros julgamentos da Corte IDH, em
278 1988, houve uma crescente influência do plano internacio­
nal sobre os processos domésticos. Em alguns Estados, essa
referência jurisprudencial contribuiu para a transição entre
o paradigma estatal de responsabilidade e o individual ante
os abusos militares. Verificou-se, a partir desses julgamen­
tos interamericanos, um reforço internacional nos esforços
domésticos para anulação de leis de anistia e para a instau­
ração de processos criminais internos26. Assim, o desenvol­
vimento de normas regionais e jurisprudência interameri­
cana relativas à justiça de transição, em momento posterior
à deflagração dos processos internos, foi recebido domesti­
camente como um reforço positivo aos esforços nacionais,

25 
Da mesma forma que existiam diferenças regionais nos padrões de violações de
direitos humanos durantes as “guerras sujas”, consequentemente, os esforços para
lidar com os abusos do passado também variaram em toda região (Engstrom, 2011).
26 
Existe uma exceção a ser considerada. Na Argentina, por exemplo, os processos
judiciais foram iniciados pouco depois da transição, e continuam sendo realizados
vinte anos depois.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini

o que naquele momento tornou alguns sistemas judiciais


internos mais permeáveis às normas do SIDH27.
De igual maneira, a emergência das ONGs de direitos
humanos na América Latina foi impulsionada pela insur­
gência de golpes militares e a instauração de governos
ditatoriais. Embora antes destes eventos houvesse impor­
tantes precursores dos movimentos dos direitos humanos
na região como a Anistia Internacional, não se apontava
ainda a existência de uma rede de advocacy abrangente. As
primeiras ONGs28 surgem entre 1973 a 1981, voltadas para
o trabalho de documentação e de denúncia de violações
direitos humanos cometidas pelos governos militares. A
realização deste trabalho se mostrou bastante relevante
naquele momento, pois as ONGs constituíam uma das
poucas fontes de autoridade no assunto capazes de pro­
duzir informações dotadas de credibilidade29. Nos anos
seguintes, de 1981 a 1990, consolida-se a rede de advocacy
em direitos humanos, uma vez que os contextos interna­ 279
cional e regional de atuação haviam mudado substantiva­
mente, permitindo tais entidades lidarem com as questões
da justiça de transição junto às organizações internacio­
nais e regionais de direitos humanos, com a denúncia de
casos perante a CIDH. É, inclusive, na questão da justiça
transicional que as ONGs sul-americanas experimentaram

27 
A decisão do caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, por exemplo, foi aplicada
diretamente na Argentina, em 2001, declarando as leis “Ponto Final e “Obediência
Devida” inconstitucionais. Chile e Uruguai também processaram graves violações
sob a influência das decisões interamericanas. De outro lado, no caso do Brasil,
o judiciário parece não ter sido tão receptivo, havendo ainda debates sobre as
formas de implementação da sentença Gomes Lund e outros. Neste sentido, ver
Malarino (2007).
28 
America’s Watch, International Human Rights Law Group, Lawyers Committee
for Human Rights e Washington Office on Latin America.
29 
Vale ressaltar que, neste momento, a CIDH não era vista com bons olhos
perante as lutas domésticas, tendo em vista que o órgão se encontrava sob inge­
rência ou era até mesmo composto por membros representantes das forças mili­
tares estatais.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

seus mais importantes sucessos neste período, como as


condenações por parte do tribunal interamericano e
o apoio de importantes governos, como o dos Estados
Unidos. Desde 1990 até então, as ONGs de direitos huma­
nos nas Américas têm passado por uma fase de reorienta­
ção e restrição: como muitas das suas demandas iniciais
foram incorporadas por políticas governamentais e orga­
nizações internacionais, a situação passou a ser percebida
como menos dramática quando completado o processo
de transição democrática. Atualmente, com diversas difi­
culdades, essas ONGs têm trabalhado pela permanência
das questões da democracia na agenda regional, espe­
cialmente, para resolver os problemas da qualidade e do
conteúdo da democracia em regimes formalmente eleitos
(Sikkink, 1996; Keck Sikkink, 1998).
Em suma, as evidências fáticas e cronológicas suportam
a afirmação de que a atuação decisiva dos órgãos intera­
280 mericanos nas questões de justiça transicional é posterior
aos processos domésticos de responsabilização pelos crimes
cometidos pelos militares e ao estabelecimento das redes
de advocacy na região. Essa atuação decisiva posterior dos
órgãos interamericanos produziu dois efeitos relevantes
para o SIDH: os reconhecimentos domésticos em relação
aos julgamentos interamericanos dos abusos militares, o
que, em certa medida, facilitou a abertura das sociedades e
dos Estados às normas do SIDH; e a parceria com as ONGs
de direitos humanos para o provimento de informações crí­
veis sobre os fatos levados a julgamento, reduzindo os custos
(políticos e não políticos) das investigações in loco levadas a
cabo pelo próprio sistema. Se, de um lado, a atuação poste­
rior dos órgãos interamericanos nas questões da justiça de
transição se deu, em boa medida, em razão das dificuldades
para o estabelecimento institucional do sistema de direitos
humanos na região, de outro, revela-se interessante pensar
o envolvimento estratégico do SIDH no assunto enquanto

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini

ator internacional. Neste sentido, as questões da justiça de


transição constituíram uma ampla janela de oportunidade
para o SIDH avançar com os seus objetivos na região.

Considerações finais
Parte da literatura mais recente sobre os arranjos inter­
nacionais de direitos humanos tem se mostrado pouco
otimista quanto à eficácia em modificar práticas estatais
(Hathaway, 2002; Hafner-Burton; Tsutsui, 2005; Neumayer,
2005), um achado geralmente atribuído à baixa capacidade
de enforcement das instituições internacionais. Este artigo, vol­
tado para a questão do tratamento internacional da justiça
de transição, demonstrou que os regimes internacionais de
direitos humanos, sob determinadas condições, podem ter
um papel relevante não só no processo de transformação do
comportamento estatal, como também podem se apropriar
estrategicamente de determinadas questões sensíveis aos
Estados para se autotransformarem, visando maior autono­ 281
mia e influência institucional.
As evidências apresentadas demonstram que o litígio
estratégico das redes transnacionais de advocacy no SIDH
produziram efeitos para além do demandado nos casos
contenciosos. O estímulo à produção de processos jurídi­
cos na Corte IDH suscitou interpretações expansivas da
CADH, norma da qual o tribunal deriva seus poderes e
competências conferidos pelos Estados-partes do SIDH.
Neste processo de definição de standards jurisprudenciais
em matéria de justiça transicional, a Corte IDH não só
enfrentou objetivamente questões relativas à justiça tran­
sicional (leis de anistia, reparação, punição, direito à ver­
dade e à memória), como revisou seu posicionamento
quanto à responsabilização estatal e lançou um dos seus
mais amplos poderes, o controle de convencionalidade, na
pretensão de tornar os sistemas jurídicos nacionais cada
vez mais permeáveis ao SIDH.

Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


Impactos da justiça transicional sul-americana no sistema interamericano de direitos humanos

Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini


é professora de Relações Internacionais da Universidade
Federal de Uberlândia, onde coordena o Núcleo de
Pesquisa e Estudos em Direitos Humanos. Possui doutorado
pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade
de São Paulo. Atualmente, realiza pesquisa pós-doutoral no
Carr Center for Human Rights Policy, Harvard Kennedy
School. Também é advogada, com experiência de litigância
em justiça juvenil no Brasil.

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Lua Nova, São Paulo, 103: 261-284, 2018


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285

CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DO NACIONALISMO JAPONÊS


RECENTE
ERNANI ODA
Resumo: Este artigo analisa o fortalecimento de discursos
nacionalistas no Japão a partir da década de 1990, bem
como suas repercussões internas e externas. Embora seja
comum interpretar esse nacionalismo como um mecanismo
psicológico de compensação para lidar com a “ansiedade”
deflagrada pela crise econômica que passou a afetar a socie­
dade japonesa na época, este trabalho argumenta que pode­
mos compreender melhor o fenômeno como o resultado de
mudanças recentes nas condições estruturais mais amplas da
sociedade japonesa. Serão discutidos dois fatores estruturais
em particular: no âmbito interno, o cenário político-parti­
dário japonês, e, no âmbito externo, a posição do Japão no
contexto do leste asiático, tendo em vista especialmente sua
interação com a China e com a Coreia do Sul.
Nacionalismo; Revisionismo; Japão; Ásia;
Palavras-chave:
Tensões Regionais.

THE STRUCTURAL CONDITIONS OF CURRENT


JAPANESE NATIONALISM: PARTY POLITICS AND THE
REGIONAL CONTEXT
Abstract: This article examines the intensification of nationalist
discourses in Japan since the 1990s and their effects at both the
domestic and the international level. Although this trend is often
interpreted as a psychological mechanism to compensate for the
“anxiety” provoked by the economic crisis that started in Japan
during this period, it is argued that this process is better understood
as the result of recent changes in the more encompassing structural
conditions pervading Japanese society. Two of these conditions
merit special attention: at the domestic level, Japanese party politics,

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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and at the international level, Japan’s position in the East Asian


regional context, particularly in regard to China and South Korea.
Keywords: Nationalism; Revisionism; Japan; Asia; Regional tensions.
Recebido: 23/11/2017  Aprovado: 02/04/2018

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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287

LA VIDA DE DOMINGUITO: CIUDADANÍA, PATERNIDAD Y


GUERRA EN DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO
ALEJANDRA JOSIOWICZ
Resumen: Este artículo analiza La vida de Dominguito (1886) de
Domingo Faustino Sarmiento, biografía del hijo adoptivo,
Domingo Fidel Sarmiento, muerto en la Guerra del Paraguay.
La vida de Dominguito está ligada a la última etapa de la trayectoria
intelectual y política de Sarmiento y escenifica el lugar central
de la Guerra del Paraguay en el proceso de consolidación del
Estado nacional argentino. La vida de Dominguito es examinada
en relación con los textos biográficos, autobiográficos y peda­
gógicos de Sarmiento. La biografía del hijo revela los desafíos
en el proceso de consolidación nacional, el papel central que
Sarmiento adjudica a las élites militares e ilustradas y las tensio­
nes de su ideal democrático de educación. El foco del análisis
es la representación del acceso precoz del hijo a la ciudadanía,
a partir de tres modalidades fundamentales: el sufragio, las
armas y las letras. En la conclusión, se reflexiona sobre el sen­
tido histórico-político de la paternidad, la infancia y la filiación.
Domingo Faustino Sarmiento; La vida de
Palabras clave:
Dominguito; Ciudadanía; Paternidad; Guerra del Paraguay;
Pensamiento Social.

LA VIDA DE DOMINGUITO: CIDADANIA,


PATERNIDADE E GUERRA EM DOMINGO FAUSTINO
SARMIENTO
Resumo: Este artigo analisa La vida de Dominguito (1886),
de Domingo Faustino Sarmiento, biografia de seu filho adotivo,
Domingo Fidel Sarmiento, morto na Guerra do Paraguai. La vida
de Dominguito está ligada à última etapa da trajetória intelec-
tual e política de Sarmiento e revela o lugar central da Guerra do
Paraguai no processo de consolidação do Estado nacional argentino.

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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La vida de Dominguito é examinada em relação aos textos bio-


gráficos, autobiográficos e pedagógicos de Sarmiento. A biografia
do filho revela os desafios no processo de consolidação nacional, o
papel central que Sarmiento adjudica às elites militares e letradas,
e as tensões de seu ideal democrático de educação. O foco da análise
é a representação do acesso precoce do filho à cidadania a partir de
três modalidades fundamentais: o sufrágio, a iniciação às armas e
às letras. A conclusão, inclui uma reflexão sobre o sentido histórico-
-político da paternidade, a infância e a filiação.
Palavras-chave:Domingo Faustino Sarmiento; La vida de
Dominguito; Cidadania; Paternidade; Guerra do Paraguai;
Pensamento Social.

LA VIDA DE DOMINGUITO: CITIZENSHIP,


FATHERHOOD AND WAR IN DOMINGO FAUSTINO
SARMIENTO
Abstract: This article examines La vida de Dominguito (1886),
by Domingo Faustino Sarmiento, the biography of his adopted
son, Domingo Fidel Sarmiento, who died in the Paraguayan
War. La vida de Dominguito is linked to the last period of
Sarmiento’s intellectual and political life, and reveals the centrality
of the Paraguayan War in the Argentinian process of national
consolidation. This article considers La vida de Dominguito in
relation to Sarmiento’s biographies, autobiographies and pedagogical
texts. His son’s biography reveals the challenges in the process
of national consolidation, the central role he adjudicates to the
military and lettered elites and the tensions of his democratic ideal
of education. The analysis focuses on the representation of his son’s
precocious access to citizenship through three different channels: the
vote, the military and education. Finally, it reflects on the historical
and political signification of paternity, childhood and filiation.
Keywords: Domingo Faustino Sarmiento; La vida de Dominguito;
Citizenship; Fatherhood; Paraguayan War; Social Thought.
Recebido: 20/02/2017   Aprovado: 11/12/2017

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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289

RAYMUNDO FAORO E AS LINHAGENS DO PENSAMENTO


POLÍTICO BRASILEIRO
LEONARDO OCTAVIO BELINELLI DE BRITO
Resumo: O artigo parte da hipótese formulada por Gildo
Marçal Brandão sobre a existência de “linhagens do pen­
samento político brasileiro”, em especial a que denominou
“idealismo constitucional”, composta por autores que iden­
tificariam na suposta centralização política e administrativa
do Estado luso-brasileiro o cerne explicativo da má forma­
ção social brasileira; em consequência, proporiam medidas
políticas descentralizadoras e economicamente liberalizan­
tes. Segundo Brandão, Raymundo Faoro seria um dos maio­
res exemplos desta linha de reflexão sobre o Brasil. Visando
discutir essa tese, em termos sucintos argumentamos que há
elementos na obra de Faoro que o aproximam desta linha
de argumentação, mas há outros que dela o afastam, permi­
tindo reinterpretar o sentido da sua contribuição ao pensa­
mento político social e brasileiro e, por consequência, seu
lugar nele.
Raymundo Faoro; Idealismo Constitucional;
Palavras-chave:
Pensamento Radical; Liberalismo Brasileiro.

RAYMUNDO FAORO AND THE LINES OF BRAZILIAN


POLITICAL THOUGHT
Abstract:The article starts with the hypothesis formulated by Gildo
Marçal Brandão on the existence of “lineages of Brazilian political
thought”, in particular the one he called “constitutional idealism”,
which is composed of authors who would find in the supposed polit-
ical and administrative centralization of the Portuguese-Brazilian
State the main explanatory point of Brazilian social malformation
and, consequently, would propose decentralization and economically
liberal political measures. According to Brandão, Raymundo Faoro

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


Resumos | Abstracts

would be one of the main examples of this line of thought on Brazil.


In brief terms, we argue that there are elements in Faoro’s work that
approximate his ideas to this line of argumentation, but also ele-
ments that differ from it, allowing for reinterpreting the meaning
of his contribution to Brazilian social and political thought and,
consequently, its place in it.
Keywords:Raymundo Faoro; Constitutional Idealism; Radical
Thought; Brazilian Liberalism.
Recebido: 31/03/2017  Aprovado: 18/03/2018

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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291

A LINHAGEM CULTURALISTA DA SOCIOLOGIA DO FUTEBOL


BRASILEIRO
JULIANO DE SOUZA
Resumo: Neste texto procuramos apresentar a linhagem cul­
turalista da sociologia do futebol brasileiro e demonstrar a
durabilidade histórica das ideias-força caras a essa “família
intelectual”. Também temos por objetivo restituir algumas
das relativas particularidades analíticas inerentes a essa
linhagem, bem como apontar alguns efeitos sociais da cir­
culação dessas ideias na lógica de reiteração da identidade
nacional. O texto foi dividido em três atos: no primeiro,
revisitamos, em linhas gerais, o empreendimento fundador
de Gilberto Freyre e Mário Filho no tocante à intepretação
culturalista do futebol brasileiro; no segundo, recuperamos
o modelo teórico de DaMatta e defendemos o caráter siste­
matizador de suas análises no âmago dessa “família intelec­
tual”; e, no terceiro, fornecemos algumas pistas acerca da
rotinização dessa leitura culturalista do futebol no Brasil e
de sua repercussão naturalizada nesta sociedade.
Sociologia do Futebol; Sociologia do
Palavras-chave:
Conhecimento; Brasil.

CULTURALIST LINEAGE OF THE BRAZILIAN SOCCER


SOCIOLOGY
Abstract: In this paper, we seek to present the culturalist lineage of the
Brazilian Soccer Sociology and demonstrate the historical endurance
of force-ideas crucial to this “intellectual family”. We also aim to
restore some of the relative analytical peculiarities inherent to this
lineage, as well as to point out some social effects of the circulation
of these ideas in the logic of national identity reiteration. The
text is divided into three acts. In the first, we revisited in general
lines the founding enterprise of Gilberto Freyre and Mário Filho

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


Resumos | Abstracts

regarding the culturalist interpretation of Brazilian football; in the


second, we recover the theoretical model of DaMatta and defend
the systematizing character of its analysis at the heart of this
“intellectual family”; and, in the third, we provide some clues on
the routinization of this culturalist reading of football in Brazil and
its naturalized repercussion in this society.
Keywords: Sociology of Football; Sociology of Knowledge; Brazil.
Recebido: 19/02/2015   Aprovado: 08/12/2017

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


Resumos | Abstracts

293

O CONCEITO DE ESFERA PÚBLICA JURÍDICA E A


AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE COTAS RACIAIS NO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
RICARDO JUOZEPAVICIUS GONÇALVES
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de
esfera pública jurídica nas produções de Jürgen Habermas
e exemplificá-lo através do mecanismo institucional das
audiências públicas do Supremo Tribunal Federal, tra­
tando, ao final, da audiência sobre a constitucionali­
dade das cotas raciais para ingresso no ensino superior.
Apresentamos o conceito habermasiano buscando expli­
car uma arena institucional com um diferente potencial
democrático deliberativo no interior do Judiciário, bem
como melhor compreender as trocas de energia social
que podem influenciar posicionamentos nos centros deci­
sórios jurisdicionais.
Palavras-chave: Teoria Crítica; Jürgen Habermas; Esfera Pública
Jurídica; Audiências Públicas; Cotas Raciais.

THE CONCEPT OF LEGAL PUBLIC SPHERE AND THE PUBLIC


HEARING ON RACIAL QUOTAS WITHIN THE SUPREME COURT
Abstract: The purpose of this paper is to present the concept of
legal public sphere in Jürgen Habermas’ work, exemplifying
it through the institutional mechanism of public hearings
that occur within the Brazilian Supreme Court, ultimately
discussing the public hearing on the constitutionality
of racial quotas for admission to higher education. We
present this Habermasian concept seeking to explain an
institutional arena with a different deliberative democratic
potential within the Judiciary, as well as to better understand
the social energy exchanges that can influence positionings
in judicial decision-making centers.

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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Keywords: Critical Theory; Jürgen Habermas; Legal Public


Sphere; Public Hearings; Racial Quotas.
Recebido: 08/02/2018  Aprovado: 23/03/2018

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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295

CONSUMINDO COMO UMA GAROTA: SUBJETIVAÇÃO E


EMPODERAMENTO NA PUBLICIDADE VOLTADA PARA MULHERES
CYNTHIA HAMLIN
GABRIEL PETERS
Resumo: O artigo explora o uso de temas feministas na publicidade
contemporânea, com ênfase na apropriação publicitária da noção
de “empoderamento”. A análise desse “feminismo da mercadoria”
demonstra que, a despeito de potenciais aspectos emancipatórios,
os usos publicitários do conceito de empoderamento revelam um
sentido individualizante que se afina ideologicamente com o ethos
do capitalismo tardio e com formas de subjetivação que enfatizam
a autoconsciência, o autogoverno, a independência, o sucesso
individual e a liberdade para fazer escolhas. Tal inflexão destoa
dos compromissos coletivistas com transformações estruturais
antes atrelados ao conceito pelo feminismo de segunda onda.
Se o slogan feminista de que “o pessoal é político” vinculava a
autotransformação individual à transformação social, a proposta
de empoderamento veiculada no femvertising esvazia aqueles
compromissos através da sugestão implícita de que “o político é
pessoal”. O artigo ilustra tais argumentos com o exame de uma
campanha publicitária promovida pela marca de absorventes
Always, enfatizando como a dimensão política do feminismo de
segunda onda, presente em reflexões como as de Carol Gilligan e
de Iris M. Young, pode ser apropriada de forma a compatibilizá-la
ao ethos neoliberal e suas formas específicas de subjetivação.
Palavras-chave: Feminismo; Publicidade; Empoderamento;
Subjetivação.

CONSUMING LIKE A GIRL: SUBJECTIVATION AND


EMPOWERMENT IN ADS TARGETING WOMEN
In this paper we explore the use of feminist themes
Abstract:
in contemporary advertisement campaigns, emphasizing

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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their appropriation of the notion of empowerment. The


analysis of this “commodity feminism” shows that, despite
its potential emancipatory aspects, the uses of the notion
in advertisement reveal an individualizing meaning that is
ideologically compatible with the ethos of late capitalism
and with forms of subjectivation that emphasize self-
consciousness, self-government, independence, individual
success, and freedom to choose. Such conception is at
odds with the collective commitment to structural changes
that characterized the notion of empowerment developed
by second wave feminists. If the feminist slogan according
to which “the personal is political” linked individual
self-transformation to social transformation, the idea of
empowerment advanced in femvertising negates that
commitment to structural changes by implying that “the
political is personal”. We illustrate these arguments with
the analysis of an advertising campaign developed by the
brand Always. Here we show how the political dimension in
theories of second wave feminists such as Carol Gilligan and
Iris M. Young can be appropriated in a way that make their
ideas compatible with a neoliberal ethos and their specific
forms of subjectivation.
Keywords: Feminism; Advertising; Empowerment; Subjectivation.
Recebido: 01/06/2017  Aprovado: 28/07/2017

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297

A CONCEPÇÃO HOLÍSTICA E PROCESSUAL DE TEMPO DE


NORBERT ELIAS
EUGÊNIO REZENDE DE CARVALHO
Resumo: O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990),
em suas reflexões sobre o tempo, definiu-o como um sím­
bolo social e relacional, integrante de uma quinta dimen­
são simbólica, a da experiência, ou consciência humana.
Tal imagem eliasiana de um universo pentadimensional se
apoiou no reconhecimento da interdependência e imbri­
cação mútua entre os níveis físico, biológico, social e indivi­
dual, sem o qual – para esse autor – o enigma que envolve
o conceito de tempo continuaria sem solução. Assim, Elias
propôs uma síntese, de caráter processual, que conectasse
numa unidade os pares dicotômicos que tradicionalmente
tinham – e ainda têm – permeado as abordagens filosóficas
sobre o tempo: tempo objetivo e subjetivo, tempo da natu­
reza e da consciência, tempo físico e social, tempo cosmoló­
gico e fenomenológico etc. Este texto explora criticamente
os fundamentos da concepção eliasiana do tempo, em sua
abordagem holística e processual, bem como alguns de seus
possíveis desdobramentos na compreensão desse conceito
pelas diversas áreas do conhecimento.
Norbert Elias; Tempo; Conceitos Temporais;
Palavras-chave:
Tempo Simbólico; Tempo Relacional.

NORBERT ELIAS’ HOLISTIC AND PROCEDURAL CONCEPTION


OF TIME
Abstract: The German sociologist Norbert Elias (1897-1990)
defined time as a social and relational symbol, belonging to a
fifth symbolic dimension, the human experience or consciousness.
This eliasian image of a five-dimensional Universe is based on
the understanding of the interdependency and mutual overlap

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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among the physical, biological, social, and individual levels of


integration, without which, the enigma surrounding the concept
of time would remain without a solution for this author. Thus,
Elias proposed a procedural synthesis that connects as a unit the
dichotomous pairs that traditionally – and still – permeate the
philosophical approaches about time: subjective and objective time,
time of nature and time of consciousness, physical and social time,
phenomenological and cosmological time, etc. This article critically
examines the foundations of the eliasian idea of time in its holistic
and procedural approach, as well as some of the possible outcomes
in the understanding of this concept by different areas of knowledge.
Keywords: Norbert Elias; Time; Time Concepts; Symbolic Time;
Relational Time.
Recebido: 08/06/2016  Aprovado: 23/03/2018

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299

O MARCO INSTITUCIONAL DA POLÍTICA URBANA NA ESPANHA


E APONTAMENTOS COMPARATIVOS COM O BRASIL
JEFFERSON O. GOULART
Resumo: O marco institucional da política urbana com­
preende normas que regulam o uso do solo, o ordena­
mento territorial e as competências dos diferentes níveis de
governo. Na Espanha temos o governo central, as comuni­
dades autônomas (comparáveis aos estados no Brasil) e os
ayuntamientos (correspondentes às prefeituras). Esta análise
ainda inclui a Ley de Suelo e os Planes de Ordenación Urbana,
tomados como referência privilegiada para que o estudo
não se limite aos aspectos normativos do arranjo institucio­
nal. Apesar das diferenças e aspectos particulares, a análise
comparada do cenário espanhol com o arranjo institucio­
nal da política urbana no Brasil permite identificar impasses
comuns, como a presença hegemônica de um ideário mer­
cantil da cidade e concepções de gestão urbana que dissemi­
nam as teses do empresariamento urbano.
Política Urbana; Ley de Suelo; Planes de
Palavras-chave:
Ordenación Urbana; Espanha; Brasil.

THE INSTITUTIONAL FRAMEWORK OF URBAN POLICY IN


SPAIN AND COMPARATIVE NOTES WITH BRAZIL
Abstract: The institutional framework of urban policy includes norms
that regulate the actions of the State regarding land use, territorial
planning and the competences of varying levels of government. In
Spain, we have the central government, the comunidades autônomas
(like the states in Brazil) and the ayuntamientos (local government).
This analysis also includes the Ley de Suelo and Master Plans,
taken as a privileged reference so that the study is not limited to
the normative aspects of the institutional framework. Despite the
differences and distinct aspects, this comparative analysis between

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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Spain and the Urban Policy in Brazil allows us to identify common


impasses, such as the hegemonic presence of a mercantile ideology of
the city and urban management concepts that have spread the theses
of urban entrepreneurship.
Keywords: Urban Policy, Law of ground; Master Plans, Spain;
Brazil.
Recebido: 09/08/2017   Aprovado: 13/03/2018

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301

IMPACTOS DA JUSTIÇA TRANSICIONAL SUL-AMERICANA NO


SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
ISABELA GERBELLI GARBIN RAMANZINI
Resumo: O objetivo deste artigo consiste em examinar como
o envolvimento gradual do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos (SIDH) nas questões de justiça transi­
cional sul-americanas contribuiu para moldar parâmetros
institucionais e normativos do sistema regional de direi­
tos humanos. Serão analisados os principais movimentos
da trajetória institucional dos órgãos interamericanos e os
casos considerados paradigmáticos. Os resultados indicam
que, na temática da justiça transicional, a atuação interame­
ricana revela uma abordagem mais inovadora da proteção
dos direitos humanos ao suscitar interpretações expansivas
da Convenção Americana de Direitos Humanos, norma da
qual se derivam poderes e competências conferidos pelos
Estados-partes do SIDH.
Sistema Interamericano de Direitos Humanos;
Palavras-chave:
Justiça Transicional; Estados Sul-americanos; Redes de
Advocacy.

IMPACTS OF SOUTH AMERICAN TRANSITIONAL JUSTICE IN


THE INTER-AMERICAN SYSTEM OF HUMAN RIGHTS
The aim of this article is to examine how the gradual
Abstract:
involvement of the Inter-American Human Rights System
(IAHRS) in South American transitional justice issues has
contributed to shape institutional and normative parameters
of the regional human rights system. It analyzes the main
movements of the institutional trajectory of Inter-American
bodies and the cases considered paradigmatic. The results
indicate that, in the area of transitional justice, the Inter-
American role presents a more innovative approach to the

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018


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protection of human rights by raising expansive interpretations


of the American Convention on Human Rights, a norm from
which powers and competences originate, being conferred by
the States members of the IAHRS.
Keywords: Inter-American Human Rights System; Transitional
Justice; South American States; Advocacy Networks.
Recebido: 19/02/2015  Aprovado: 08/12/2017

Lua Nova, São Paulo, 103, 2018

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