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Psicologia Jurídica

ensaios sobre a violência

Marcelo Ribeiro (org.)


Marcelo Ribeiro (org.)

Psicologia Jurídica
ensaios sobre a violência

2012
Marcelo Ribeiro (org.)
2012

Revisão:
Edilane Ferreira da Silva

Diagramação/Arte Final:
Ana Paula Arruda

Textos
Alzení Tomáz
Bruno Heim
Darlindo Ferreira de Lima
Franklin Barbosa Bezerra
Juracy Marques
Leonardo Sousa
Liércio Pinheiro de Araújo
Luiz Eduardo
Marcelo Ribeiro
Maria Elisa Pacheco de Oliveira Silva
Rita Luiza Garcia Rangel Britto
Robson Marques

Imagem da Capa:
Salomé com a cabeça de São João Batista (Andrea Solario), provavelmente c. 1506-7.
Óleo sobre madeira, 57,2 × 47 cm. The Friedsam Collection, doação de Michael
Friedsam, 1931. Fonte: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/32.100.81

P974 Psicologia Jurídica: ensaios sobre a violência / Marcelo Ribeiro


(org.). - Petrolina: Gráfica Franciscana, 2012.

116p.

Vários autores.
Contém bibliografia ao final de cada capítulo.

1. Psicologia Jurídica . 2. Violência . 3. Direito da criança I.


Personalidade criminal. II. Ribeiro, Marcelo (org.).

CDD 347.066019
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca - SIBI/UNIVASF
Sumário

Apresentação.................................................................................................... 05

A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica.................... 09

Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da


Profissão........................................................................................................... 17

Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos


Violentos e suas Perspectivas Compreensivas............................................ 37

Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos


Povos de Terreiros.......................................................................................... 57

Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar........................... 77

A Verdadeira Personalidade Criminal.......................................................... 95

Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer


Crítico.............................................................................................................. 103
Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 05

Apresentação

Já não podemos falar que a chamada Psicologia Jurídica é uma nova subárea
no campo das Ciências Humanas. Mesmo no Brasil, há inúmeras
experiências, muitas formações e uma considerável publicação no contexto
nacional. Apesar dessa consolidação e dos seus desdobramentos (na
Psicologia Forense, na Psicologia Policial e Criminal, na Psicologia da
Vítima etc.), há ainda uma miríade de possibilidades a ser explorada. Na
fronteira dos consagrados campos de saber da Psicologia, como a Saúde e a
Educação, a Psicologia Jurídica oferece profícuos espaços de reflexões e de
inserções para práticas nas quais os profissionais estão, cada vez mais,
ampliando suas ações em uma interdisciplinar.

O tema violência, que permeia, de uma forma ou de outra, os vários


capítulos deste livro, é um exemplo de como a Psicologia Jurídica emerge,
seja nas suas fronteiras com a Saúde, seja em suas fronteiras com Educação
ou, mesmo, em suas fronteiras no terreno da Cultura.

A partir das produções de docentes e profissionais que atuam em diversas


áreas, este livro foi forjado no seio da aventura de pensar a Psicologia Jurídica
enriquecida, sobretudo, nas fronteiras com outros campos de saber. A
temática “violência” foi o elo comunicante capítulos que compõem o livro.

No primeiro capítulo, no qual se discute a questão formação do profissional


do operador jurídico, é posto em foco a necessidade de uma atenção
particular, no que diz respeito à formação que privilegie a dimensão pessoal.
O autor nos faz refletir sobre a necessidade de revermos a qualidade dessas
formações iniciais, mas também de buscarmos rever as formações
cominadas...
06 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

O segundo capítulo traz uma discussão específica. Trata-se da reflexão sobre


a condição de ser delegada da mulher. A partir de uma abordagem que busca
apreender os sentidos e as vicissitudes dessa atividade, considerando todo
um background cultural e histórico, os autores abrem novas possibilidades
para que a Psicologia Jurídica seja contemplada em perspectiva
compreensiva, na qual o humano é revelado via suas experiências.

O capítulo intitulado “Imagens da violência: um ensaio sobre a


psicossociologia dos grupos violentos e suas perspectivas compreensivas”
oferece um estudo sobre os desdobramentos dos esforços de profissionais
e pesquisadores que se debruçam sobre a questão do chamado “grupos
violentos”. É apontando, após considerável discussão, que esses esforços
carecem da adoção de uma perspectiva multidisciplinar, para que possa dar
conta dos seus objetivos.

Em “Ecologia de sangue: interpretações jurídicas dos sentidos sagrados


dos povos de terreiros”, os autores desenvolvem uma original discussão,
base de uma peça jurídica, na qual a temática violência é duplamente
apresentada. Em um primeiro momento, a violência é abordada como uma
prática contra os animais e, portanto, merecedora de ser coibida via as
legislações que tratam dessa questão. Em um segundo momento, esse
ponto é tomado de maneira crítica, à medida que se põe em discussão o
direito à diversidade de crenças. Portanto, a questão da violência é
problematizada em um terreno da cultura, mas, ao mesmo tempo, servindo
(mesmo que indiretamente) de base para se pensar em possíveis
contribuições à Psicologia Jurídica.

O livro também apresenta uma discussão sobre a “violação dos direitos da


criança em idade pré-escolar”. A autora, a professora Maria Elisa Pacheco de
Oliveira Silva, aborda o desenvolvimento humano, concebido a partir da teoria
de Urie Bronfenbrenner, articulando condições e preparos da família e da escola
para o cuidar, o proteger e o educar. Este tema, apesar de não ser, originalmente,
fruto de preocupações da Psicologia Jurídica, parece ser fértil para uma série de
possibilidades de articular esta subárea com o campo educacional.

O penúltimo capítulo aborda estudos sobre o comportamento criminoso e


a relação na construção da chamada “personalidade criminal”. A dinâmica
afetiva familiar “deficiente” é posta em discussão como provável gênese da
violência.
Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 07

Por fim, “Psicologia e direitos humanos: contradições geradoras para um


fazer crítico”, discorre sobre alguns panos de fundo que podem estar
fundamentados em um modus vivendi do humano na atualidade. Assumido
uma perspectiva crítica, o capítulo propõe questionamentos sobre algumas
das bases que sustentam o atual processo civilizatório e também aponta,
indiretamente, algumas das possíveis raízes para os sentidos da violência.

Este livro, portanto, apresenta-se de maneira multiforme, tanto no que diz


respeito à diversidade dos autores, em relação às suas formações e áreas de
atuação, quanto às discussões desenvolvidas em cada capítulo. Entretanto, a
maneira multiforme revela também um propósito claro que atravessa toda a
obra. De maneira suscita e apresentativa, este livro visa legar ao leitor uma
perspectiva de interesse em visitar os vários campos do saber, enriquecendo
a construção da Psicologia Jurídica a partir de uma temática comum: a
questão da violência.

Marcelo Ribeiro
Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 09

A Formação Profissional no Âmbito


da Psicologia Jurídica

1
por Marcelo Ribeiro

Este texto visa refletir sobre as exigências e as produções das dimensões da formação
profissional no âmbito da psicologia jurídica, especificamente, a dimensão pessoal.
Acreditamos que essa dimensão da formação profissional é específica, à medida que seu
desenvolvimento não se dá como mera aplicação da teoria sobre a prática e que não está
garantida na qualificação técnica, sobretudo, oriunda da formação inicial.

Nossa empreitada será caracterizar a área de atuação daquele que lida com a chamada
psicologia jurídica. Antes de tudo, é importante dizer que não estaremos nos
restringindo aos profissionais psicólogos, mas estaremos englobando todos aqueles
profissionais que gravitam na ordem do direito e que necessitam de compreensões
psicológicas para efetivar suas diligências, interpretações e ações. Como exemplo,
poderíamos citar os operadores de direito, de modo geral, os assistentes sociais, os
educadores, os psicólogos, que atuam nas mais diversas áreas judiciais. Poderíamos
também acrescentar os policiais, investigadores, mediadores de conflitos, profissionais de
saúde atuando na área jurídica etc.

CARACTERIZANDO A ÁREA DA PSICOLOGIA JURÍDICA

A psicologia jurídica é comumente concebida como uma psicologia aplicada


à área do direito. Entretanto, como já sinalizado por César Coll (1996), o
1
Professor Assistente do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco –
UNIVASF. LETRANS
10 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

sentido de aplicação não pode ser reduzido à mera aplicabilidade de um


conhecimento sobre uma área de atuação. Na verdade, a própria interação
entre conhecimento e área de atuação passa a exigir e, ao mesmo tempo, a
produzir novos saberes e práticas específicas que, sem essa relação, não
seriam possíveis.

Com isso, podemos dizer que o profissional que necessita da psicologia


jurídica requer, tradicionalmente, conhecimentos, sobretudo, da psicologia
da personalidade, da psicopatologia e da psicologia social. É verdade que
essas três subáreas de conhecimentos não dão conta sozinhas das demandas
vividas por esse profissional. Outras áreas são também importantes, de
modo que a complexidade de conhecimentos não se esgota aí. Poderíamos
elencar, além dessas subáreas, como exemplos, a psicologia do
desenvolvimento e a psicologia da aprendizagem. Poderíamos também
acrescentar grandes áreas como a antropologia, a sociologia, a biologia e a
própria ciência do direito. Todos esses conhecimentos estão, portanto,
voltados para a específica área de aplicação. Entretanto, a mera
aplicabilidade desses conhecimentos não seria suficiente, como já
mencionamos. Quando o profissional está envolvido, quando ele atua,
quando ele vive suas experiências e reflete sobre o seu fazer, produz saberes
que extrapolam a simples aplicação de conhecimentos externos que carrega.

A partir do que já colocamos, podemos, em um primeiro momento, afirmar


que é exigido desse profissional um grande nível de conhecimento nas mais
diversas subáreas e grandes áreas, mas também uma capacidade de produzir
saberes singulares, sobretudo, a partir das especificidades da prática. Daí,
sugere-se um esforço do profissional em lidar com a complexidade
epistemológica própria da sua atuação. Entretanto, esse esforço parece não
ser suficiente para garantir a efetiva performance profissional. Dele serão,
também, exigidos conhecimentos tácitos, habilidades e outras
competências que não vão estar suficientemente garantidas através dos
conhecimentos teóricos.

Já é de conhecimento, na literatura específica, algumas dimensões como


relevantes para a boa formação profissional. São elas: a dimensão técnica, a
institucional e a pessoal. A primeira vai corresponder aos conhecimentos
adquiridos a partir das áreas de conhecimentos, normalmente, garantidos na
formação inicial do profissional. A segunda dimensão, a institucional,
corresponde à cultura profissional, à organização que o profissional está
A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica 11

engajado e à categoria profissional. A terceira dimensão, a pessoal, que não


está garantida na formação inicial, diz respeito à vivência das experiências
profissionais e aos seus recursos subjetivos. É nessa mescla de dimensões
que se constitui o que chamamos de identidade profissional.

Sem perder de vista a interação dessas três dimensões, a dimensão pessoal


da formação profissional carece demandar uma atenção maior, justamente,
por ser pouco contemplada nas formações, sejam elas formações iniciais ou
contínuas (também chamada de formação em exercício).

Isto se torna um desafio, à medida que gera a seguinte pergunta: como


preparar ou tentar preparar esses profissionais, contemplando, em suas
formações, a dimensão pessoal? É importante também dizer que, ao
falarmos de preparação, não estamos apenas nos restringindo à formaçao
inicial. Estamos também nos referindo à formação continuada. Muitos
estudos têm mostrado que, apesar da grande importância da formação
inicial no desempenho do profissional, esta não é suficiente. É necessário a
formação continuada, a formação em exercício2.

Um aspecto importante a ser levado em consideração, para responder tal


questão, ainda pouco levantada, é poder contemplar nas formações não só
os conhecimentos técnicos, mas, principalmente, as experiências dos
próprios profissionais, as suas histórias e os seus saberes. Essas experiências
dos profissionais em formação precisam ser levadas em consideração para a
construção de novos conhecimentos. A abordagem construtivista na
pedagogia vai, por exemplo, apontar para a necessidade de trabalhar os
novos conhecimentos que são inseridos a partir da experiência e de
conhecimentos prévios dos alunos, tomando-os como ativos nos seus
processos de construção do conhecimento.

A valorização dessas experiências, dos saberes tácitos e dos recursos da


subjetividade dos profissionais em formação, significa contemplar a
dimensão pessoal na formação. Isto, na verdade, nunca será uma garantia de
uma qualificação eficiente, mas suspeitamos que significa a possibilidade do
profissional estar mais apto a fazer frente aos desafios profissionais do
ponto de vista psicológico, afetivo, cognito (subjetividade).
2
A formação continuada é toda aquela que segue a formação inicial, mas a formação em exercício é um
pouco diferente. Além de ser pós a inicial, ela é intimamente ligada à atuação profissional e às situações do
cotidiano do profissional.
12 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Essa ressalva que fizemos, no sentido de uma formação que contemple a


dimensão pessoal não garantir a eficiência, é justificada pela própria
dinâmica das situações que os sujeitos estão expostos e, também, pelo
próprio processo de transformação que todos nós estamos sujeitos.
Entretanto, sustentamos a hipótese de que uma formação que contemple
a dimensão pessoal possa criar mais condições básicas para que os sujeitos
lidem com as situações, no caso, situações, muitas vezes, adversas ou
mesmo imprevistas.

A partir do que falamos anteriormente, sobre as características ou


condições de trabalho que vão exigir um nível de conhecimento (não só
conhecimento teórico), podemos dizer que esses profissionais que
“bebem” da psicologia jurídica vão lidar com situações que exigem
habilidades e competências específicas, constextualizadas e relacionadas
às suas práticas. Dentre algumas dessas situações, vão estar, por exemplo,
a questão da morte, de sentimentos diversos como a raiva, o medo, os
desejos inconscientes, os fenômenos de identicação etc.

Não se trata de inventariar todas as habilidades e competências


necessárias para que esses profissionais estejam totalmente preparados.
Até porque, isso não seria possível, na medida em que não é possível
prever todas as ações ou situações. Entretanto, é tangível caracterizar as
situações e condições de trabalho dos profissionais que lidam com o
crime, com os sofrimentos e com os dilemas humanos. Essas
caracterizações e condições de trabalho ajudam a trazer à tona toda uma
situação que esses profissionais podem estar expostos. Daí, há de se ter,
minimamente, uma ideia do que eles podem precisar para ter uma
formação mais consistente.

Em termos práticos, no que diz respeito à formação que contemple a


dimensão pessoal, é importante, por exemplo, que hajam espaços de
trocas de experiências, que esses profissionais possam falar de como
certos assuntos ou temas estudados chegam em suas vidas ou como eles
vivenciam ou experienciam o dia a dia do trabalho. Espaços como esses,
possibilitariam o partilhar de experiências, a mudança de percepção, o
desenvolvimento de conhecimentos tácitos etc. Além disso, e,
principalmente, tenderia a possibilitar o autoconhecimento. Esse ponto
relativo ao autoconhecimento, deve ser um tópico à parte, que iremos
desenvolver logo adiante.
A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica 13

A partir do foi dito, indagamos o seguinte: o que é mesmo importante em


termos de dimensão pessoal para o profissional que atua no âmbito da
psicologia jurídica?

Para responder a essa pergunta, faz-se necessário, antes de tudo, entender


quais são as condições desse profissional, com o que ele tem de lidar, quais
são seus desafios diários, que estresse está submetido e que recursos
subjetivos são requeridos?

De modo geral, podemos dizer que esse profissional, no contexto brasileiro,


lida, muitas vezes, com a bestialidade, com a barbaridade, com os crimes
horrendos ou com as situações de injustiças sociais. Essas situações que esse
profissional se depara podem fazer com que ele se sinta impotente diante de
uma realidade que insiste em agredi-lo, podendo levá-lo à indiferença
(insensibilidade diante do outro) ou a provocar fenômenos de identificações,
ao ponto de interferir no seu desempenho profissional. Tudo isso, levando a
algum tipo de sofrimento, estresse ou prejuízos crônicos na sua vida, como
um todo. Para dar um exemplo, imaginemos um profissional que vê uma
criança estuprada e imagina que poderia ter sido com o seu filho, ou se
depara com uma mulher que foi espancada pelo marido e vem a lembrança
do pai que batia em sua mãe, ou, até mesmo, a pobreza do menino que vive
na rua e a recordação de sua infância pobre e do sentimento de culpa por
viver um uma vida confortável quando se depara com a miséria do outro...
Além desses exemplos, há também o reconhecimento em si mesmo da
bestialidade e dos limites obscuros da humanidade. Esses profissionais se
deparam com a sua própria humanidade negada, seja via um processo de
exclusão social ou via um processo de exclusão de si mesmo (negando
sentimentos ou lembranças).

Assim, os desgastes, as dificuldades e o nível de estresse podem ser bastante


elevados para esse profissional. Além de conviver com situações como essas,
ele precisa saber lidar com tudo isso e levar seu trabalho a cabo. Essas agruras
fazem parte do seu ofício e podem até alimentar o seu profissionalismo, o
seu desenvolvimento profissional, a partir de aprendizagens enriquecidas
com as experiências. Longe de levá-lo à insensibilidade ou à desestruturação
completa, esse profissional pode aprender e se desenvolver a partir disso.

Como vimos, esse profissional se depara, constantemente, com o


sofrimento alheio, pode se identificar com o sofrimento do outro, pode se
14 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

indignar com a injustiça social, pode se revoltar contra um ato brutal e pode
perceber que muitas das desgraças e atrocidades fazem parte da dimensão e
capacidade humana, portanto, dele próprio.

Outro profissional que vai também lidar com o sofrimento alheio é o


terapeuta. A este respeito, Hycker (1995) comenta a profissão do terapeuta
dizendo que este seria uma espécie de “curador ferido”. A metáfora da
ferida, para o autor, significa que há uma história de sofrimento ou de dor na
vida desse profissional, que serve para que ele se sensibilize e se solidarize
com o sofrimento e a dor do outro. A ferida é algo importante para própria
relação terapêutica. Entretanto, ele alerta para um perigo da ferida. Caso
essa esteja “aberta ou mal curada”, o terapeuta pode se desestruturar ou não
suportar o sofrimento ou a dor do outro. Como exemplo, poderemos citar o
caso do terapeuta que não conseguiu resolver suas dificuldades infantis em
relação ao abuso sexual que sofria do seu pai e se deparou com uma cliente
que vivia, justamente, dificuldades sexuais com o marido.

ÚLTIMAS PALAVRAS - CUIDANDO DE QUEM CUIDA: POR


UMA FORMAÇÃO DA PESSOA

Alguns estudos3 têm apontado para necessidade de se criar condições de


cuidado para aqueles profissionais que cuidam de outros submetidos a
situações de estresse. Um dos exemplos desses estudos é a pesquisa sobre a
condição de trabalho dos profissionais que atuam no Conselho Tutelar da
Criança e do Adolescente do muncícipio de Petrolina – PE. Nessa pesquisa,
que pretendeu compreender o desgaste psicológico desses trabalhadores
que tinham que lidar com o sofrimento do outro, no caso, sofrimento das
crianças, dos adolescentes e dos seus familiares, foi observado a necesidade
que eles tinham de serem também cuidados.

Estudos como esse vêm mostrar a grande necessidade que os profissionais


que lidam, cotidianamente, com o sofrimento do outro e que, de certa
forma, prestam assistência, necessitam também de serem assistidos, de
terem algum tipo de apoio institucional para lidar com essas situações ou
3
Pude acompanhar esta investigação em 2007, na disciplina Processos de Investigação Científica, no curso
de psicologia da UNIVASF, na qual as alunas desenvolveram um projeto investigando, justamente, o
desgaste emocional dos profissionais que atuam no Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente do
município de Petrolina-PE.
A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica 15

mesmo de serem cuidados. Entretanto, insistimos que as formações


(inicial e continuada) precisam criar condições para uma qualificação que
contemple, além dos aspectos teóricos e técnicos, as experiências, histórias
de vida, em outras palavras, a dimensão da pessoa do profissional.

A racionalidade técnica não parece, minimamente, criar condições de


aprendizagem para profissionais que lidam, sobretudo, em condições de
estresse, de imprevisto e fortemente arraigados na relação com o outro.

O profissional que se inscreve no âmbito da psicologia jurídica toma como


espaço e condição de trabalho a relação com o outro. Nesse sentido,
podemos dizer que há uma dimensão ontológica ou inter-humana
fortemente presente no seu fazer profissional. Isto tem implicações
profundas e também exigências radicais para uma prática mais eficaz.

Donald Schön (2000) vai propor um “ensino prático reflexivo” para dar
conta de uma formação mais global, que inclua o aproveitamento das
experiências do cotidiano profissional, no qual se possa refletir sobre a
ação e na ação. Esse profissional reflexivo seria mais habilitado a lidar com
as situações de imprevistos e sempre se manteria atualizado, porque estaria
constantemente aprendendo com as suas experiências.

Outros autores (Anadon, 1997; Arroyo, 2000; Byington, 1996; Muszkat,


1996; Ribeiro, 2007) apontam a necessidade de se pensar e fazer valer uma
formação que assuma o processo identitário do profissional, que incluem
as dimensões técnicas, as dimensões pessoais, as dimensões
institucionais, as dimensões individuais e as dimensões coletivas (da sua
categoria profissional).

Em nossa experiência, temos constatado que os parceiros envolvidos nas


formações passam por profundos processos de aprendizagem, à medida
que se oportunizam espaços que valorizem as experiências e histórias de
vidas. Esses espaços adquirem um rico potencial transformador,
justamente, porque permitem reflexões sobre as práticas, vivências
pessoais, ressignificações de histórias vividas e produções de novos
sentidos para as ações profissionais.

Longe de transformar a sala de aula em um grande divã coletivo, esses


espaços têm demarcação própria, pois se circunscrevem nos limites das
16 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

atuações profissionais e as experiências, as histórias relatadas e


compartilhadas são elementos que nutrem a construção de conhecimentos
e produção de saberes profissionais. Portanto, uma formação4 que
contemple a dimensão pessoal, uma formação da pessoa, pode favorecer a
atualização ou renovação do fazer profissional, mesmo que seja um fazer
profissional sujeito aos desgastes profundos, como é o daqueles que atuam
no âmbito da psicologia jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANADON, M. et al.. La construction identitaire de l’enseignant sur le


plan professionnel: un processus dynamique et interactif. [S.l.]: [s.n.],
1997.

ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis:


Vozes, 2000.

BYINGTON, C. A. B.. Pedagogia simbólica: a construção amorosa do


conhecimento de ser. Rio de Janeiro: Record, 1996.

COLL, César. Psicologia e educação: aproximação aos objetivos e


conteúdos da psicologia da educação. In. Coll, César, Palacios, J. Marchesi
(orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação. Psicologia da
educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. v.2.

HYCNER, Richerd. De pessoa a pessoa. Psicoterapia dialógica. São


Paulo: Summus, 1995.

MUSZKAT, M. Consciência e identidade. São Paulo: Ática, 1996.

RIBEIRO, M. O processo identitário. Olinda, Livro Rápido, 2007.

4
Que não se limite na formação inicial, mas que seja também continuada e em exercício.
Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 17

Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos


Frente às Vicissitudes da Profissão

por Rita Luiza Garcia Rangel Britto1


e Darlindo Ferreira de Lima2

A violência se constitui como fenômeno presente no mundo em todas as civilizações e


nas diversas épocas históricas. Há, na evolução histórica das sociedades, diversos
modos de representação, desde as formas mais sutis até as mais cruéis, da violência,
sobretudo, na contemporaneidade. Sob suas diferentes formas, a violência passou a ser
discutida e tratada, como prioridade, por muitos governos em função da magnitude de
suas implicações. Nesse contexto, desde 1996, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) passou a considerá-la como o maior e mais crescente problema de saúde pública
que atinge o mundo atual.

Há diversos tipos de violência apontados pelos estudiosos (GIFFIN, 1994;


OLIVEIRA, 2000; SAFFIOTI, 2004), mas, dentre essas, a maior
visibilidade é dada a violência do tipo física, por vezes, as demais formas
parecem ser desconhecidas ou passam despercebidas até pelas próprias
vítimas. O mesmo costuma ocorrer em relação à violência de gênero, cujo
destaque se dá quando esta é acompanhada por agressão física,
principalmente, em ambiente doméstico. A noção de gênero se faz
presente, nesta discussão, por se constituir a partir de uma construção social
mais ampla, ou seja, que não se restringe às características sexuais dos
indivíduos, esse conceito engloba outras atribuições como: valores sociais,

1
Psicóloga Clínica e pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos e Práticas Transdisciplinares –
Letrans-Univasf.
2
Professor Adjunto do Colegiado de Psicologia da Univasf e pesquisador titular do Laboratório de Estudos e
Práticas Transdisciplinares – Letrans-Univasf.
18 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

noção de poder e força atribuída aos homens, como também a ideia de


fragilidade e subserviência atribuída às mulheres.

Segundo Saffioti (2004, p. 35), “As mulheres são ‘amputadas’, sobretudo no


desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder”, o que influência e
repercute na vida das mesmas, nos espaços por elas ocupados, e por todos
os seus relacionamentos interpessoais. No que diz respeito a essa questão,
algumas ações governamentais, sobretudo, nos últimos anos, têm buscado
maiores esclarecimentos e enfrentamento para a problemática da violência
de gênero. A lei nº 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da
Penha, pode ser considerada uma importante ferramenta que se propõe a
prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Essa lei conta com o apoio de um importante dispositivo de enfretamento
para a questão da violência, a saber: as Delegacias Especializadas em
Atendimento à Mulher (DEAM’s)3.

Os primeiros serviços da DEAM foram criados em São Paulo e


Pernambuco, respectivamente, em agosto e novembro de 1985, com o
objetivo de realizar investigações sobre crimes contra a mulher, com o
passar do tempo, pouco a pouco se firmaram como principal dispositivo da
política pública no combate à violência de gênero. Considerada pioneira no
mundo, esse tipo de delegacia serviu de modelo para outros países e, desde
que foi criada, tem expandido sua área de atuação, alcançando maior
aceitação perante o público. A procura pelo serviço, desde a sua criação,
demonstrou a existência de uma significativa demanda gerada pela violência
de gênero e favoreceu a ampliação do número de delegacias com esse perfil
(PASINATO e SANTOS, 2008). Ainda são insuficientes os estudos sobre
as DEAM’s e os profissionais nelas inseridos, o que dificulta uma avaliação
detalhada de suas formas de operacionalização e, consequentemente, a
formulação e/ou reformulação de novas propostas de atuação.

Há uma escassez de estudos sobre as identidades das policiais; a forma


como concebem a violência contra mulheres; como se relacionam com os
movimentos feministas e de mulheres; e até que ponto absorvem e aplicam
os ensinamentos dos cursos de capacitação em que participam
(PASINATO E SANTOS, 2008, p. 34).
3
O Estado de Pernambuco utiliza a nomenclatura “Delegacia de Policia de Prevenção e Repressão aos Crimes
Contra a Mulher”, no entanto, no nosso trabalho, seguindo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
Contras às Mulheres, utilizaremos o termo DEAM.
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 19

Nossa aproximação com o tema escolhido se deu a partir de uma relação


com o estágio obrigatório do curso de Psicologia da Universidade Federal
do Vale do São Francisco (Univasf), ocasião em que estagiamos nas
DEAM’s das cidades de Petrolina-PE e Juazeiro-BA. Durante o período de
um ano e meio, foi possível, dentre outras coisas, compreendermos a
necessidade de desenvolver estratégias e políticas diversificadas para os
profissionais dessas instituições, uma vez que o público atendido por eles
possui especificidades que requerem uma formação complexa que
possibilite a compreensão do fenômeno violência. Na busca por literatura,
deparamo-nos com a escassez de material referente ao tema, que motivou
esta pesquisa.
4
O objetivo deste trabalho é compreender como se dá à práxis de delegadas
das DEAMs de Pernambuco. Para tanto, buscou-se compreender como
realizam sua prática, quais os impactos para essas profissionais da com-
vivência diária com a violência de gênero, assim como elas constituem os
seus saberes para lidar com tal contexto e as possíveis influências do
ambiente profissional no seu saber fazer.

A profissão de delegada (o) de polícia está ligada à Polícia Civil. Segundo


Sadek (2003), desde 1998 sua formação requer a conclusão do curso de
Bacharel em Direito, aprovação em concurso público estadual seguido de
curso de formação profissional. Considerada, inicialmente, como profissão
predominantemente masculina, após a abertura das DEAM’s, houve uma
significativa ampliação no mercado de trabalho para o cargo de delegada,
uma vez que a orientação do governo federal foi para que o cargo fosse
ocupado, preferencialmente, por mulheres (PASINATO e SANTOS, 2008).

As DEAM’s possuem especificidades de público e de atendimento, que as


levam a sustentar a classificação de serviço especializado. No que se refere à
violência de gênero, é o lócus específico para esses atendimentos, sendo,
desde sua criação, subordinados e administrados pela Polícia Civil de cada
Estado. Existe uma variação de modelos de serviços nessas instituições,
entre outros motivos, propiciada pela diversidade de abordagens e práticas
policiais, que podem ser encontradas, até mesmo, em um único Estado.
4
Práxis do grego prattein (passar por, experienciar), refere-se à ação, fazer, prática, como sendo um exercício de
agir hábil de uma arte, ciência. Ao longo do tempo, assumiu o significado de conduta, costume ou hábito usual ou
convencional, embora, ainda diga respeito a trabalho, obra (opera) do latim, referindo-se a um fazer cotidiano
regular que, ao longo do tempo, pode ser tomado por habilidade (MORATO, 2008, p. 4).
20 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Pasinato e Santos (2008) ressaltam que, inicialmente, a função da


delegacia, de acordo com o Código Penal, seria de investigação de crimes
contra o gênero feminino; destacam também que “a grande novidade
destas delegacias consistia no reconhecimento inédito, pelo Estado, das
necessidades e dos direitos de grupos sociais frequentemente excluídos
do acesso à justiça” (p. 11), tornando-se, então, a “principal política
pública no enfrentamento à violência contra mulheres e atualmente são
reconhecidas como a única política de extensão nacional” (p. 12).

As políticas para o direito da mulher têm percorrido um longo caminho


em busca de consolidação. Seu marco inicial foi a criação do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, o primeiro órgão
do país a tratar sobre o assunto. Esse conselho não tinha poder de
execução e monitoramento das políticas públicas, mas formulava
propostas políticas para as mulheres, tendo contribuído também no
processo de construção da Constituição Federal de 1988 (PASINATO e
SANTOS, 2008).

Um importante passo foi dado nos anos seguinte (1994-1998/1999-


2002), quando o Brasil agrupou, no seu sistema jurídico-normativo
nacional, algumas normas internacionais de direitos humanos, como a
Convenção Americana dos Direitos Humanos, ratificada em 1992, e a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência
contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará,
ratificada em 1995 (PASINATO e SANTOS, 2008).

Outra conquista política, no trato da violência contra a mulher, foi a


criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), em 2003,
já que, antes disso, os conselhos estaduais e nacionais não conseguiram
formular uma política nacional que abrangesse o enfretamento da
violência contra a mulher (PASINATO e SANTOS, 2008). No mesmo
ano, a SPM lançou a Política Nacional de Enfretamento da Violência
contra a Mulher, cuja ação se deu visando prevenir, assistir e garantir os
direitos da mulher em diferentes campos.

A partir desse contexto, é possível perceber que as políticas públicas têm


sido ampliadas e/ou reformuladas com relativa frequência. Mesmo
assim, por vezes, parece haver um descompasso temporal entre as novas
determinações e as necessidades atuais. A dificuldade de se manter um
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 21

diálogo profícuo entre momento e ação parece estar relacionada à


insustentabilidade de formas predeterminadas e estáticas de
comportamento humano.

Para Giddens (1991), a sociedade moderna produziu transformações nos


modos de vida com uma velocidade jamais percebida em outras épocas,
envolvendo descontinuidade e mudanças tão intensas nos
relacionamentos humanos, que dificultam interpretações sobre
sistematização da organização social e nos leva a ideia de perda de controle.
O controle de tudo e de todos parece ter se tornado o objetivo a ser
alcançado na e pela sociedade, mas não há a possibilidade de sucesso nessa
busca, e o homem, sem acreditar nas próprias limitações, passa a se nutrir
dessa procura utópica.

Ainda sobre as formas sociais de relacionamentos atuais, Bauman (2001)


aponta a rapidez dessas transformações na sociedade contemporânea e as
consequências desse fenômeno nas relações humanas. Para o autor, há uma
“liquefação” das relações sólidas que fragmentam a sociedade e produzem
dissolução dos laços afetivos e sociais substituindo-os por desapego,
provisoriedade e liberdade, situações e sentimentos que tem provocado
diversos sintomas nos indivíduos e na coletividade, dentre os quais
destacamos a violência.

Partindo da ideia de que as relações se estabelecem em sociedade, daremos


um enfoque no que diz respeito à violência, em virtude desta já ter se
estabelecido veementemente na sociedade e já ter se tornado um problema
de saúde pública (OMS, 2002).

A princípio, buscamos abordar a violência, trazendo alguns sentidos, sem,


contudo, ter a pretensão de superar o assunto. Para a Organização Mundial
da Saúde (2002, p. 5), a violência pode ser definida como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em


ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um
grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico,
deficiência de desenvolvimento ou privação.

Sobre violência e saúde, Minayo (1997/1998, p. 520) ressalta que "a


violência afeta a saúde porque ela representa um risco maior para a
22 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz


enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade
próxima" (AGUDELO apud MINAYO, 1997/1998).

Ainda para Minayo (1997/1998, p. 514), “... a violência consiste em ações


humanas de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de
outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental
ou espiritual”. Além da pluricausalidade do tema, a autora também ressalta
que o mesmo é complexo, polissêmico, controverso, e propõe o tratamento
no plural para essa realidade, ou seja, tratá-la como e por violências. Sugere,
ainda, a criação de uma epidemiologia da violência, já que esta “inibe,
modifica e enfraquece tanto a qualidade como a capacidade de vida”
(MINAYO, 1997/1998, p. 521).

No mesmo sentido, na concepção de Chauí (CHAUÍ apud SANTOS e


IZUMINO, 2005, p. 149), a violência corresponde, portanto, a:

(...) ação que transforma diferenças em desigualdades


hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir. A
ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não
como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e
passivo. Nesse sentido, o ser dominado perde sua
autonomia, ou seja, sua liberdade, entendida como
‘capacidade de autodeterminação para pensar, querer,
sentir e agir’.

A partir desse contexto, a violência pode ser compreendida como toda ação
que cause ou possa causar dano e inferiorizar o sujeito, além de prejudicá-lo
em vários âmbitos, como físico, psíquico, social e mental. Isto posto,
reportamo-nos para a violência praticada contra as mulheres, mais
especificamente, em relação à violência doméstica contra a mulher e seus
desdobramentos, a qual a OMS (2002, p. 91) denomina de “violência
perpetrada por parceiro íntimo”.

No que se refere ao conceito de violência doméstica contra a mulher, de


acordo com a Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, 1994)
podemos compreender “... por qualquer ação ou conduta, baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado” (artigo 1º).
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 23

Em relação aos tipos ou formas de violência doméstica contra a mulher que


podem ocorrer, podemos denominar, pelo menos, cinco, descritas também
na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2008), que são: violência física, violência
psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral (artigo
7º, I a V, da Lei 11.340/06). Os cinco tipos de violência são descritas no
quadro 01.

Tipo de Violência Descrição

VIOLÊNCIA Entendida como qualquer conduta que


FÍSICA ofenda sua integridade ou saúde corporal.

Entendida como qualquer conduta que lhe


cause dano emocional, diminuição da
autoestima ou que vise degradar ou
VIOLÊNCIA controlar suas ações, comportamentos,
PSICOLÓGICA crenças e decisões, ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e
à autodeterminação.

Entendida como qualquer conduta que a


constranja a presenciar, a manter ou a
participar de relação sexual não desejada;
que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a
VIOLÊNCIA impeça de usar qualquer método
SEXUAL contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos.

Entendida como qualquer conduta que


VIOLÊNCIA configure retenção, subtração, destruição
PATRIMONIAL parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos
24 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

pessoais, bens, valores e direitos ou


recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades.

VIOLÊNCIA Entendida como qualquer conduta que


MORAL configure calúnia, difamação ou injúria.
QUADRO 01: Descrição dos tipos de violência contra a mulher. Fonte: BRASIL, 2008

De acordo com o quadro acima, pode-se compreender que os diversos


tipos de violência encontram-se imbricados. Nos casos de violência física,
por exemplo, esta não ocorre isoladamente. Ela pode estar associada à
violência de ordem psicológica, moral e/ou sexual, dando a entender que o
processo de violência acontece em progressão geométrica, aumentando de
intensidade e frequência, com o passar do tempo, até culminar na violência
física. (OMS, 2002; SILVA et al, 2007).

Questões como danos psicológicos, morais, sexuais e patrimoniais são


tão importantes quanto os danos físicos para serem considerados no
trato da violência doméstica contra a mulher, pois, além da própria
mulher como vítima, os outros tipos de violência, como a violência
psicológica, pode afetar, direta ou indiretamente, os outros membros da
família, que presenciam ou convivem no ambiente em que a violência
ocorre (SILVA et al, 2007).

A OMS reforça a ideia da coexistência de vários tipos de abuso em um


mesmo relacionamento, no entanto, reconhece que os estudos sobre
violência doméstica contra a mulher ainda são emergentes e que, por isso,
há escassez de dados sobre os variados tipos de violência de gênero, afora
sobre a violência física. A OMS (2002, p. 91) aborda que essa temática está
relacionada às questões de gênero, ao enfatizar que:

O fato de as mulheres em geral estarem emocionalmente


envolvidas com quem as vitimiza, e dependerem
economicamente deles, tem grandes implicações para a
dinâmica do abuso (...). Para muitas dessas mulheres, a
agressão física não foi um evento isolado, mas sim parte de
um padrão contínuo de comportamento abusivo.
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 25

A temática de gênero remete ao século XX, quando Simone de Beauvoir


escreveu o livro chamado “O Segundo Sexo” para abordar fatos e mitos
da condição da mulher (SAFFIOTE, 1999). O livro é considerado,
atualmente, um precursor da prática discursiva sobre gênero, por ter
originado questões sobre ambos os gêneros humanos, ter inaugurado a
discussão sobre a situação da mulher e ter trazido questões que
subsidiaram a construção social do feminino, elucidando em suas
páginas que: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.” (SAFFIOTE,
1999, p. 160).

Para a realização deste trabalho, foi utilizada a metodologia qualitativa,


com base na perspectiva Fenomenológica Existencial, fundamentada em
Heidegger (1999), a partir da analítica do sentido de Critelli (2006). Para
essa autora, que se baseia na fenomenologia existencial de Heidegger,
compreender no sentido fenomenológico significa apreender-com,
refletir sobre o homem a partir de seu modo de “ser no mundo”. Isso
requer: pensar, interpretar e apreender, lidando com o fenômeno que
emerge e que não se restringe a um objeto meramente concreto e
metafísico.

Foi utilizada a narrativa de Benjamin (1985), como instrumento que


permite ingressar no campo fenomenológico do outro. As experiências
das delegadas foram colhidas através dos seus relatos verbais, tomados
como a emergência do fenômeno, guardando em si o testemunho vivo da
experiência numa forma de comunicação.

Para a pesquisa, foi realizada uma entrevista aberta com cada delegada
titular das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, em
funcionamento, do Estado de Pernambuco. Como critério de exclusão, foi
vetada a participação de homens, caso houvesse algum ocupando o cargo
de delegado. Desse modo, apenas cinco (05) delegadas colaboraram com a
pesquisa, uma se encontrava de férias durante o período da colheita, sendo
substituída naquele momento por um delegado e outra se recusou a
participar, correspondendo a um total de 71,4% de todas as delegadas da
mulher de Pernambuco.

Este trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Estudos


Humanos da Univasf, seguindo as recomendações da Resolução 196/96
do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde (1996).
26 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

As entrevistas abertas se deram a partir da pergunta disparadora: “Como é


para você ser delegada na Delegacia da Mulher (DEAM)?”.

Após a colheita5 dos dados, foi realizada a transcrição literal das entrevistas
e, posteriormente, a literalização, que se constitui num processo de
transformação da narrativa transcrita numa narrativa literária. Em seguida,
a produção literária foi enviada às entrevistadas, por correio eletrônico, para
que elas pudessem verificar a literalização realizada, até que esta estivesse
em perfeito acordo com o sentido primeiro de sua fala. A etapa seguinte foi
a leitura das narrativas, a partir da qual foram anotados os agrupamentos de
sentidos, que brotaram em decorrência da nossa relação com as narrativas,
produzindo, então, as tematizações.

Compreendemos tematizações como a configuração das dimensões da


experiência que perpassaram as narrativas das colaboradas, emergentes
durante nossa relação com os depoimentos, uma vez que essas dimensões
são agrupamentos de ideias e sentimentos que apontaram para o sentido de
ser delegada de DEAM.

A análise das narrativas foi realizada a partir da analítica do sentido de


Critelli (2006), já que essa autora propõe uma forma de analisar as narrativas
numa perspectiva fenomenológica que dialoga com a ideia de experiência.
Utilizamos a perspectiva narrativa de Benjamim (1985) como referencial de
compreensão de experiência, ou seja, narrar é experienciar o “estar no
mundo”. A partir das tematizações, provocamos um diálogo entre o que
nos apropriamos das narrativas, com as leituras teóricas, e os autores
compreendidos acerca do fenômeno em análise.

Buscou-se analisar como as delegadas das DEAM’s de Pernambuco


compreendem e executam a sua práxis, ou seja, como constroem seus
saberes e se o ambiente de trabalho, permeado por violência, influencia em
seu desempenho profissional.

Desse modo, emergiram três tematizações, a partir da análise das narrativas,


foram: 1) Sentidos de ser delegada da mulher; 2) A formação: um desafio a
ser (re)pensado; 3) A experiência que (trans)forma a profissional delegada.
5
O termo colheita refere-se à ideia do pesquisador como um “recolhedor de experiências” que, segundo Schimidt
(1990, p. 70), “deve se inspirar mais pela vontade de compreender do que como um analisador à cata de
explicações”.
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 27

As narrativas apontam em direção aos prazeres e as dificuldades


profissionais encontradas na função de chefia em um serviço, no qual a
violência se interpola de forma significativa.

Sentimentos contraditórios como frustração, raiva e desesperança se


intercalam a outros como, por exemplo: orgulho, realização e satisfação,
num movimento constante que pode contribuir para a construção de
modos no desempenho da função, bem como possíveis transformações
nos mesmos. A convivência diária das delegadas com as mulheres vítimas
de violência, que buscam o serviço, parece possibilitar a emergência dessa
profusão de sentimentos, a partir da relação de aproximação que se
estabelece entre elas. Diante disso, os sentimentos transitam entre
polaridades extremas, como pode ser percebido nas narrativas abaixo:

Assumir essa função foi um desafio muito forte (...) mas sempre quis trabalhar com
mulheres (...) nós somos tudo para quem nos procura, na verdade, somos psicólogas,
amiga, protetora e delegada de polícia. (...) Ser delegada da mulher não é nada fácil, não
é qualquer uma que encara isso. [Delegada I]

Ser delegada da mulher é maravilhoso! (...) é um trabalho diferente porque fazemos


parte da vida daquelas pessoas. Poder mudar a história de violência de uma família é o
mais gratificante. (...) dá para se envolver pessoalmente e atender cada uma das vítimas,
não é impossível, inclusive, é o esperado de uma delegada de uma delegacia da mulher,
que ela tenha esse contato com a vítima. (...) É preciso ter perfil para permanecer no
cargo. [Delegada II]

Diniz e Angelim (2003) indicam que profissionais, que no seu ambiente de


trabalho convivem com a temática da violência, em suas mais variadas formas
de manifestação, parecem estar sujeitos a desenvolverem vários sentimentos,
como “... o espanto, o horror, a incredulidade.” (p. 24), não só relacionadas à
situação em si, como também nas relações e pessoas envolvidas. Outra
dimensão, desvelada nas narrativas, aponta para as afetações que perpassam o
profissional, posto que a convivência constante com fenômenos amplos e
complexos, que necessitam de intervenções muito intensas, tendem a exigir
adaptações, transformações e criatividade diferenciadas, que permitam
conviver nesse contexto. (ALVES, MORATO, CALDAS, 2009)

Entretanto, a ambivalência de sentimentos, que se faz presente no dia-a-dia dessas


profissionais, parece se atenuar ou se tornar menos impactante com o passar do
28 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

tempo. As afetabilidades passam a ser controladas em benefício da própria saúde


mental e/ou como atributo necessário para um melhor desempenho, sem,
contudo, deixar de exigir, dessas delegadas, atenção e empenho constantes para a
manutenção desse comportamento considerado “adequado”.

Para Dejours (1992), o trabalhador lança mão de uma série de estratégias


defensivas para minimizar o sofrimento presente em determinadas
funções, com o objetivo de evitar que se transformem em patologias. Talvez
esse seja um dos maiores desafios enfrentados no exercício profissional,
como nos mostram os depoimentos a seguir:

No início (...) tive que fazer uma terapia porque chegava em casa muito estressada. Com o
passar do tempo, aprendi a vir para o trabalho, ouvir o que está aqui e deixar aqui mesmo,
não levar nada para casa. [Delegada I]

Às vezes chegava a chorar junto com as mulheres. Então, me envolvia mesmo, mas agora
consigo me preservar mais, acho que é um distanciamento necessário. [Delegada II]

Para lidar com a violência no dia-a-dia (...) não pode ser aquela pessoa fragilizada,
porque senão vai trazer problemas, não só para si, mas para a pessoa que está sendo
atendida... [Delegada IV]

Parece ser essa combinação de desafios e conquistas que alicerça essas


profissionais no desempenho de suas funções, pois, ao mesmo tempo em
que elas se sentem frustradas com determinadas situações, também buscam
alternativas para superá-las. Assim, as delegadas parecem adquirir e usufruir
de novos conhecimentos e experiências com as situações vivenciadas.

A experiência parece assumir aspecto relevante no desempenho


profissional, nas narrativas das delegadas, ao ser citada como componente
complementar à formação acadêmica, pois acrescenta às profissionais
maior amplitude nas formas de atendimento, além de promover
dispositivos de proteção psíquica das mesmas para a manutenção da
integridade de sua saúde mental.

Não sei como é que aprendi, na verdade, acho que, com o tempo, fui me acostumando. O
que me proporcionou aprendizado mesmo foi o tato. Não estudamos uma teoria de como
lidar com mulheres vitimizadas... Não temos essas teorias, entendeu? Então, acho que
vem muito da experiência mesmo. [Delegada I]
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 29

Entretanto, mais especificamente sobre minha atuação, acho que adquiri traquejo no dia
a dia. [Delegada II]

Carneiro (2009, p. 79) ressalta que “existe um saber de ofício que passa pela
experiência pessoal”, e se soma ao conhecimento científico e à prática, na
resolução de uma demanda. O conhecimento nomeado, por alguns autores,
como tácito, (FIGUEIREDO, 1993; POLANYI, 1891; SAIANI, 2004
apud CARNEIRO, 2009) costuma ser pouco valorizado pela academia,
devido à dificuldade encontrada para sua transmissão, uma vez que suas
origens “não se fundamentam em operações explicitamente lógicas” (p.77).
Esses dois conceitos, saber acadêmico e conhecimento tácito, parecem se
complementar e, ao mesmo tempo, indicar que situações semelhantes a
outras já vividas podem ser solucionadas mais facilmente.

Figueiredo (2004, p. 116) define o conhecimento tácito como


“Conhecimento incorporado às capacidades afetivas, cognitivas, motoras e
verbais de um sujeito. O que caracteriza esse conhecimento é ser de
natureza eminentemente pré-reflexiva”. Ou seja, é um conhecimento
agregado aos saberes teóricos, que permite uma melhor relação e resolução
da problemática.

Quando se ingressa na polícia, há um curso de preparação inicial do quadro de servidores,


realizado na Academia de Polícia. Com a prática, o profissional adquire experiência e
uma visão mais amadurecida dos fatos. [Delegada III]

Trabalhos anteriores foram uma escola (...) fui e vi que aprendi e, agora, sou capaz de ir
para qualquer especializada, que vou saber fazer o trabalho. [Delegada V]

As narrativas das delegadas corroboram no sentido de que há uma


complementação entre conhecimento explicito e tácito, ou seja, “... o
conhecimento que se torna disponível na forma de sistemas de
representação, como é o caso de uma teoria” (FIGUEIREDO, 2004, p.
117), embora essa complementação não se mostre, por completo, suficiente
para o exercício da profissão.

Fazendo uma analogia com um iceberg, Nonaka e Takeuschi (1997 apud


CARNEIRO, 2006) comparam o conhecimento explícito como a ponta
visível desses blocos de gelo, em que a parte submersa e mais volumosa
pode ser definida como conhecimento tácito, lembrando que, o que hoje
30 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

está exposto já foi um dia submerso, como também o que ainda está
submerso pode tornar-se visível a qualquer momento.

Dessa forma, compreende-se que o tempo de serviço, citado pelas


delegadas como benéfico para o desempenho profissional, pode ser
analisado como a incorporação de conhecimento tácito aos seus saberes
acadêmicos. Essa junção de saberes pode se tornar um aliado das delegadas
no desempenho de suas funções, sobretudo, se for colocado,
constantemente, em diálogo e produção de novos conhecimentos sobre
sua prática.

A formação inicial para o cargo de delegado(a) não se difere entre as


diversas delegacias existentes - especializadas ou gerais. Após a aprovação
em concurso e período de treinamento na Academia de Polícia Civil
(ACADEPOL - PE), segundo as depoentes, os policiais podem passar, ou
não, por um treinamento específico para ocupar as delegacias
especializadas – narcotráfico, turista, idosos, criança e adolescente etc.

Para o trabalho em DEAM, faz-se necessário, dentre as competências e


habilidades a serem desenvolvidas, um conhecimento específico voltado
para lidar com as questões relativas à violência de gênero. Entretanto, a
partir dos depoimentos, esse tema parece não ter sido contemplado
durante a formação de algumas das profissionais delegadas. Segundo
Pasinato e Santos (2008), os cursos de capacitação para profissionais
policiais dependem de articulação política entre Secretaria de Segurança
Pública e governos e, apesar de se verificar um aumento na oferta de
palestras, cursos e seminários, ainda não foi possível avaliar o alcance e o
impacto dos mesmos nas diversas delegacias do país. No entanto, observa-
se que a formação continuada no estado de Pernambuco tem recebido
atenção governamental.

Hoje a academia está preparando muito melhor do que preparava na minha época. Se
compararmos os policiais de antigamente com os de hoje, veremos uma diferença gritante
com relação a tudo: ao tratamento, à formação. (...) [Delegada I]

A formação profissional, atualmente, dá mais subsídios para a atuação como delegada


(...) a formação foi melhorada. Somos uma delegacia bem nova (...) desse modo, os agentes
já possuem outra formação, tiveram formação na academia e fizeram um curso antes de
serem lotados aqui. [Delegada II]
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 31

Existe necessidade de conhecimento e aprendizagem de outras áreas para exercer a função


de delegada. Há uma preocupação, tanto pessoal quanto do departamento, para a
qualificação profissional através da realização de cursos. [Delegada IV]

Ainda sobre o mesmo tema, o investimento em formação continuada revela


sua importância, frente à constatação das próprias delegadas, ao indicarem
que a atualização de conteúdos e informação, através de cursos ou
minicursos, é um dispositivo importante na tarefa de contribuir para a
execução de seus papéis, pois a formação por si só não pode garantir a
sustentabilidade da atividade profissional.

É importante constante busca por aperfeiçoamento. [Delegada III]

Todos os policiais daqui têm cursos na área de violência doméstica e também participamos
dos cursos periódicos da SENASP. Vários cursos são oferecidos. Agora mesmo estamos
no meio de um curso... [Delegada IV]

É muito importante, gosto muito, digo que é agregar conhecimento. Por mim, teríamos
treinamento de seis em seis meses, uma espécie de reciclagens. Mas não espero só pelo
departamento, procuro fazer cursos que são oferecidos pelo SENASP. Para o exercício
da profissão há uma necessidade de busca pessoal. [Delegada V]

As narrativas e as visitas realizadas às DEAM’s de Pernambuco


possibilitaram a identificação de, pelo menos, três tipos de formação
diferenciados entre as profissionais que, no período da colheita de dados,
ocupavam o cargo de delegadas: o primeiro refere-se às profissionais cuja
formação aconteceu há mais de 25 anos, período em que ainda não existiam
as referidas delegacias no país; o segundo grupo foi representado pelas
profissionais que têm 10 e 25 anos de formação; o terceiro grupo, sendo o
mais numeroso, foi composto por mulheres que concluíram a academia
dentro dos últimos dez anos.

A relação tempo-formação foi ressaltada pelas delegadas e observada


pelas pesquisadoras como um diferencial que imprime características
específicas na forma como elas executam e/ou compreendem sua
função e, consequentemente, desdobram-se nas formas de atendimento
oferecido à vítima que procura o serviço. Desdobramentos que podem
ser identificados desde a preocupação com o espaço físico limpo,
organizado e o mais acolhedor possível, até a forma como conduzem e
32 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

orientam os atendimentos a serem realizados por sua equipe, como


demonstram as falas a seguir:

Acho que, na verdade, todas as delegacias deveriam ser acolhedoras, independente de


serem especializadas da mulher ou não. (...) Quando tem atendimento de criança, temos
que fazer em uma sala reservada, que não haja barulho, nem interrupção, porque é
complexo fazer oitiva de criança vítima de abuso sexual. Temos brinquedos na delegacia
para ajudar nesse atendimento. [Delegada IV]

Gosto de orientar meu pessoal, até porque os policiais são como o esboço da delegada.
Ela é o exemplo, se ela for ruim, então, aqueles policiais vão procurar se espelhar nela.
(...) Digo aos meus policiais: perguntem o que a mulher está precisando. Não quero
saber de nenhuma mulher saindo dessa delegacia reclamando de atendimento.
[Delegada V]

Para algumas das delegadas, existe a preocupação e o cuidado de verificar


como seus funcionários estão atendendo ao público que os procura. Essas
profissionais parecem corroborar com a ideia das pesquisadoras de que as
instalações e a forma como os serviços são oferecidos espelham o
desempenho de suas gestoras.

Tornar-se profissional envolve um entrelaçamento complexo, dimensões


que não podem ser integralmente controlados pelo humano.
Compreendemos que o sentido de ser delegada, para as depoentes,
constitui-se frente à manutenção da tensão entre conhecimento
acadêmico e conhecimento tácito, transformada em uma práxis que se
aprimora a partir de aprendizagens agregadas, cotidianamente, à
profissão. O diálogo entre os saberes supracitados requer do profissional
abertura para novas aprendizagens, que se fazem necessárias frente aos
serviços, em especial, onde a violência de gênero surge como principal
componente das demandas que ali se apresentam.

O convívio permanente, em contexto permeado por violência, provoca


afetações e reações diferenciadas nos profissionais do setor, que costuma
acompanhá-los, até mesmo, nos momentos de folga. Sobre essa questão,
algumas alternativas são buscadas individualmente, mas a complexidade e a
intensidade do problema fazem com que ele mereça ser priorizado e
considerado uma necessidade coletiva do meio de trabalho, a ser cuidada
desde o período da formação. Nesse sentido, existem propostas que podem
Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão 33

ser trabalhadas de maneira eficaz para preservar a saúde psíquica do


trabalhador através de suporte psicológico.

Foi possível percebermos que, no estado de Pernambuco, as delegadas da


mulher participam de uma mudança gradual e constante concernente a
formas de compreensão sobre as questões relacionadas ao gênero que,
consequentemente, refletem na forma de atendimento destinada às
usuárias do serviço. Dentre os aspectos que colaboram para as mudanças,
destaca-se, nos últimos anos, o investimento pessoal de cada profissional e
o crescente empenho do Departamento da Mulher (DPMUL-SDS-PE)
como, por exemplo: padronização, aparelhamento das delegacias,
capacitação e apoio aos profissionais.

Finalmente, queremos registrar que foi perceptível, durante a colheita de


dados, o empenho das delegadas de DEAM’s e do governo de Pernambuco
na implantação e subsídio de novas propostas que buscam melhoria na
eficácia do seu trabalho e na erradicação da violência doméstica.

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do trabalhador: experiências e olhares acerca do (des)cuidado de
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Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 37

Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a


Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas
Perspectivas Compreensivas
por Liércio Pinheiro de Araújo1

Nos últimos anos, temos acompanhado um aumento da atenção dada aos grupos
violentos de rua. Profissionais e pesquisadores esforçam-se para compreender e
neutralizar os efeitos de participação dos jovens nesses grupos. No entanto, apesar de uma
riqueza de quadros teóricos e resultados empíricos, mesmo em questões fundamentais,
como uma definição consensual, continuam a nos iludir. Consideramos, neste trabalho,
algumas das estruturas teóricas mais influentes e resultados empíricos associados e
descobrimos que, tal como está, o nosso conhecimento sobre esses grupos violentos é ainda
limitado. Sugerimos que os caminhos futuros devem adotar uma abordagem mais
multidisciplinar para o estudo dos grupos de jovens violentos. Para este fim,
argumentamos que há um papel para a psicologia nesta importante obra, e que sua
participação vai nos fornecer uma compreensão mais profunda e mais significativa das
gangues e dos jovens que se juntam a elas.

No ano de 2010, presenciamos um fenômeno específico da violência nas


ruas das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, grupos homofóbicos,
gangues violentas que, num frenesi desmedido, espalharam o terror na praia
de Copacabana, que, no linguajar brasileiro, são denominados “arrastões”, e
grupos de jovens de classe média que apresentam reações violentas contra a
diversidade sexual. No entanto, precisamos compreender tal fenômeno
como algo universal, dado que grupos violentos de rua facilitam o
1
Psicólogo, Mestre em Cognição, Doutor em Gestão do Comportamento, professor universitário e Coordenador
do Programa de Pós-graduação em Psicologia Jurídica do Centro Universitário CESMAC. E-mail:
lierciopinheiro@hotmail.com
38 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

comportamento destrutivo e não é apenas uma associação com seus pares


agressores. Consequentemente, os grupos violentos de rua representam
problemas para qualquer sociedade ordenada e digna de atenção de
pesquisa. O objetivo deste trabalho é compreender as teorias existentes e
pesquisar a violência de rua como atividades em que estão envolvidos
estudos dentro da psicologia, sociologia e criminologia.

Diversos sociólogos e psicólogos têm produzido uma abundância de


excelentes trabalhos, mas a ampliação da participação dos estudos da
psicologia da violência possui o objetivo de ampliar o conhecimento de uma
forma que só pode beneficiar a compreensão psicossocial do fenômeno da
violência. E, assim, apresentamos também o argumento de que os
pesquisadores precisam se tornar mais envolvidos no estudo de grupos
violentos de rua.

É impossível, neste trabalho, a cobertura de todas as investigações sobre


violência, pois a literatura é extremamente vasta. Os primeiros trabalhos
sobre grupos violentos, produzidos por Thrasher (1929) e Short e
Strodtbeck (1965), são tão relevantes hoje como eram historicamente e
devem ter um lugar em qualquer teorização. A maioria das pesquisas foi
realizada nos EUA e, posteriormente, outros trabalhos foram
desenvolvidos em outros países. No entanto, tentar extrair alguma coesão
para os debates em curso em torno da literatura, a respeito de grupos
violentos de rua, é produzir mais ideias e indicações do que as abordagens
multidisciplinares para a investigação de grupos violentos podem abraçar.

Antes de podermos começar a examinar qualquer fenômeno devemos


ter uma definição clara dos conceitos que o abrange. Partimos do
principio de que os fenômenos estudados não estão claramente
definidos e são susceptíveis de serem repletos de mal-entendidos, que
poderiam torná-los, contextualmente, sem sentido. Um breve olhar
sobre a literatura referente a grupos violentos de rua mostra que a falta
de consenso sobre o que constitui uma gangue tem perseguido a
literatura durante grande parte do século passado (Bursík & Grasmick,
1993; Esbensen, Winfree, Ele, &Taylor, 2001; Spergel ver, 1995). Klein
(1991) observa que, durante a década de 1960, os grupos violentos de
rua foram considerados genéricos, eles pareciam iguais e membros
agiam da mesma forma. Havia pouca pressão para assistir atentamente
às questões de definição como, por exemplo, o que é uma quadrilha,
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 39

quando um grupo não é uma gangue, o que constitui grupos violentos de


rua ou de diferentes níveis de participação nesses grupos. No entanto,
sem uma definição precisa e parcimoniosa do que constitui um grupo
violento de rua, é impossível separar o fato da ficção (Bursík &
Grasmick 1995). Definições precisas pode nos iludir, porque muitos
interessados (por exemplo, pesquisadores, acadêmicos, políticos, mídia
etc.) podem operar em definições diferenciais (Esbensen et al, 2001;.
Esbensen & Weerman, 2005; Spergel, 1995) que levam à mídia
distorcida (Horowitz, 1990).

Vários autores tentaram elaborar definições de modelos explicativos


sobre o fenômeno em pauta. Por exemplo, Sharp (2006: 2), em estudo
realizado no Reino Unido, define grupo violento de rua como:

Um grupo de três ou mais que gasta muito tempo em


espaços públicos, tem existido por um período mínimo de
três meses, exerceu atividades delinquentes nos últimos
12 meses, e tem pelo menos uma característica estrutural,
ou seja, um nome de líder, código ou regras.

Outros têm sugerido que um grupo de jovens pode ser considerado uma
quadrilha se identificar o seu grupo como unidade coletiva, se outras
pessoas também identificá-los como um grupo e se o grupo considera a
atividade antissocial ou criminal como uma norma de grupo (Hakkert,
van Wijk, Ferweda & Eijken, 2001). Por outro lado, alguns pesquisadores
(Bennett & Holloway, 2004) não consideram a criminalidade como um
critério necessário para a definição de uma gangue, enquanto outros têm
argumentado que a ausência de criminalidade faz com que a definição de
uma gangue seja muito ampla (Klein & Maxson, 1989; Howell, 1998). Se
a atividade criminosa não é um pré-requisito para a definição de uma
quadrilha, então, inevitavelmente, haverá "bons" e "maus" grupos (ou
seja, aqueles envolvidos em atividade criminosa e os que não são). O
resultado disto é que, simplesmente, agrava a confusão que já contamina
parte da literatura. Por exemplo, Araújo (2006) observa que, em São
Paulo, no Brasil, grupos de jovens que foram rotulados como "gangues",
relataram que a principal razão de eles estarem juntos era ficar longe de
problemas. Outros observam a dificuldade em identificar membros de
gangues e os medos de que as referências ao "gang" sejam entendidas
como princípio para estigmatizar os jovens e criar um "gangster" de
identidade (Bullock & Tilley, 2008).
40 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Se a definição não é imposta por aqueles que analisem um fenômeno,


talvez pudesse vir de todos os envolvidos, ou seja, de autoindicação. Um
estudo longitudinal, realizado no Canadá, pediu a jovens que
respondessem a seguinte questão: "Durante os últimos 12 meses, você foi
parte de um grupo ou gang que fez atos condenáveis?" (Gatti, Tremblay,
Vitaro & McDuff, 2005, p. 1180). No entanto, mesmo se os jovens
entendessem o significado da palavra "condenável", no sentido moral do
termo, é possível a relativização da percepção subjetiva do que é
condenável. Nos EUA, pesquisadores, utilizando a lógica do "se anda
como um pato, fala como um pato, é um pato", simplesmente perguntaram
aos participantes se eles eram membros de uma gangue e que atividades
relacionadas com gangues têm estado envolvidas (Esbensen, 2001).
Membros de gangues autodeclarados possuem maior envolvimento em
comportamentos delinquentes e atitudes antissociais.

Uma vez que existem muitas diferenças entre e dentro de grupos (Fagan,
1989), alguns defendem o abandono do termo "gang" completamente (Ball
& Curry, 1997). Outros argumentam que uma definição precisa não é
possível nem vantajosa, desde que gangues, como qualquer outro grupo,
não pode ser caracterizada por uma definição única que iria perdurar ao
longo do tempo e do local (Goldstein, 1991). Goldstein (1991) argumenta
que muitas das definições que foram oferecidas, ao longo dos últimos 80
anos, todos são muito corretos e o que constitui uma quadrilha varia de
acordo com as condições políticas e econômicas, com as diversidades
culturais e o sensacionalismo gerado pelos meios de comunicação ou com a
indiferença em relação à lei.

No entanto, existem diferenças fundamentais entre grupos de jovens


violentos participantes de gang e violência juvenil. Os membros de gangue
são 20 vezes mais prováveis do que jovens em situação de risco para
participarem de um tiroteio, dez vezes mais propensos a cometerem um
homicídio, oito vezes mais propensos a cometerem roubo, e três vezes mais
propensos a cometerem assalto em público (Huff, 1998). Mesmo os jovens
considerados violentos podem aumentar os seus níveis de violência,
dramaticamente durante a permanência em grupo e, em seguida, diminuem
quando deixam a gang (Bendixen, Endresen & Olweus, 2006). A ligação
entre gangues e violência é tão profunda que as flutuações nas taxas de
assassinatos e crimes violentos em cidades dos EUA, tais como Chicago
(Curry, 2000), Cleveland e Denver (Huff, 1998), Los Angeles (Howell &
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 41

Decker, 1999), Miami (Inciardi & Pottieger, 1991), Milwaukee (Hagedorn,


1994) e São Luís (Miller & Decker, 2001) têm sido atribuídas às variações
nas atividades da gangue.

Pesquisadores europeus, ao contrário dos seus homólogos americanos,


chegaram a um consenso sobre a definição de grupos violentos de rua.
(Weerman, Maxson, Esbensen, Aldridge, Medina, & van Gemert, 2009).
Reconhecendo que uma definição consensual é fundamental para a
investigação comparativa, devemos fazer uma importante distinção entre
gangues, delinquência e quadrilha. Estabelecermos definidores é essencial
para caracterizar um grupo como uma gangue. Essa definição não deve ser
permeada por características consideradas simples, por exemplo, a etnia,
idade, sexo, vestuário especial, localização, nomes de grupo, padrões de
criminalidade, e assim por diante (Klein, 2006). Na definição específica,
um grupo violento de rua ou gangue tem quatro componentes que os
definem: a durabilidade (pelo menos vários meses), orientação de rua, (fora
de casa, no trabalho e escola), juventude (média de idade na adolescência
ou vinte anos) e identidade, através de atividades ilegais.

Em geral, o argumento de que a violência ou a criminalidade deve ser um


critério necessário para definir uma gangue é convincente. Como tal, faz
sentido que um comportamento criminoso deve ser incluído como um
critério necessário para a definição de um grupo violento de rua, apesar de
pesquisadores norte-americanos ainda não chegaram a um consenso sobre
a definição de grupo violento e delinquência juvenil.

Precisarmos de uma definição clara e abrangente, que esclareça o que é um


grupo violento de rua. É também necessária uma teoria abrangente para
orientar o trabalho empírico e fornecer uma síntese para explicar por que as
pessoas se tornam membros de uma gangue. Explicações teóricas de
participação de jovens em gangues existem há quase um século e nos
fornece uma vasta literatura. Nesta perspectiva, devemos analisar algumas
das proposições teóricas mais influentes de envolvimento no crime e
considerar o seu valor para explicar a participação de jovens em grupos
violentos de rua.

Uma das primeiras concepções é conhecida como teoria da desorganização


social. Embora o interesse no início de gangues foi, principalmente,
descritiva, Thrasher (1927) abriu o caminho para a explosão de pesquisas e
42 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

seu desenvolvimento foi baseado em concepções que levaram a uma série


de especulações sobre como os jovens se tornaram membros de gangues.
Thrasher (1927) argumentou que a desestabilização econômica contribuiu
para a desorganização social que, por sua vez, levou à desagregação das
tradicionais instituições sociais, como a escola, a igreja e, mais importante, a
família, que "não conseguiu segurar o interesse do garoto, negligenciá-lo ou
realmente obriga-o para a rua" (p.340). A erosão gradual dos
estabelecimentos convencionais significava que eles eram fracos e incapazes
de satisfazer as necessidades das pessoas, de tal forma que eles perderam,
gradualmente, a capacidade de controlar o comportamento da população da
área. Thrasher afirmou que uma razão pela qual as instituições sociais não
conseguiram satisfazer as necessidades da população era porque várias
pessoas estavam vivendo em áreas desorganizadas, eram imigrantes.

Os imigrantes eram incapazes de ajudar seus filhos a se adaptar à sua nova


cultura, devido à falta de familiaridade com os costumes locais. Além disso, a
falta de apoio da ordem social estabelecida, como as escolas, não conseguiu
compensar esta ignorância dos pais. Thrasher (1927) ordenadamente
definia o fracasso das instituições convencionais, em oposição à emoção e
entusiasmo oferecidos por instituições não-convencionais, que ofereceram
às crianças "a emoção e as raspas de participação em interesses comuns,
mais especialmente a ação das empresas, na caça, captura, conflito, voo e
escape " (p. 32-33). Para Thrasher (1927), uma quadrilha existia quando o
grupo se tornou organizado, adotada uma estrutura formal, tornou-se
anexado ao território local e se envolveu em conflito. O conflito era uma
noção fundamental para Thrasher (1927), o qual argumentou que resultou
na formação de quadrilhas, criando conflito com outras gangues e com a
ordem social convencional, as quais se opuseram a eles.

As observações de Thrasher (1927), sobre a desorganização social,


conduziram a uma sucessão de investigações de gangues que se seguiram.
Shaw e McKay (1931, 1942) comentam as ideias desenvolvidas por
Thrasher (1927), argumentando que os bairros socialmente desorganizados
culturalmente possuem famílias pobres e que, em áreas urbanas, têm baixos
níveis de autoridade funcional sobre os filhos, que, uma vez expostos às
tradições delinquentes, tendem a sucumbir a comportamentos
delinquentes. Nesse clima cultural, as gangues tornam-se uma alternativa
satisfatória para insatisfatórias convenções legítimas. Se a família, escola,
igreja e governo não fornecem adequadamente aos jovens, estes formam
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 43

grupos nativos, como as gangues, que proporcionam um sistema de apoio


social nas comunidades socialmente desorganizadas (Spergel, 1995; Hill,
Howell, Hawkins & Battin-Pearson, 1999; Lane & Meeker, 2004;
Papachristos & Kirk, 2006). Esta formação do grupo e a criminalidade que
emana dele são passadas de geração para geração, através da socialização,
motivando os jovens a se desviarem das normas convencionais. Por outro
lado, o convencionalismo domina áreas de classe média, e jovens dessa
classe, talvez, fiquem expostos às tradições delinquente e estão
adequadamente controlados pelos pais em um ambiente estável. Em
consequência, para Shaw e McKay (1931), é o ambiente e não a identidade
étnica do indivíduo que determina a participação no crime.

Sutherland (1960) reconhece que o comportamento criminoso é


predominante em todas as classes e desenvolveu uma teoria da associação
diferencial, na qual os jovens tendem a desenvolver atitudes e habilidades
necessárias para se tornarem descumpridores de uma norma estabelecida,
associando com pessoas que são "portadoras" de comportamentos
desviantes (Sutherland, 1937).

A essência da associação diferencial é que o comportamento criminoso é


aprendido e a parte principal do aprendizado vem de dentro de importantes
grupos de pessoal (Sutherland e Cressey, 1960). A exposição a atitudes de
membros de grupos, que querem favorecer ou rejeitar códigos legais,
influencia as atitudes do indivíduo. E as pessoas vão continuar a cometer
crimes, se eles são mais expostos a atitudes que favorecem a violação e
expostos à atitudes de transgressão da lei no início da vida. Exposto a
atitudes delinquentes por um período prolongado de tempo. Uma vez que
as atitudes infracionais têm desenvolvido, os jovens aprendem as
habilidades de criminalidade da mesma maneira como eles aprendem todas
as habilidades, pelo exemplo e pela tutela. Sutherland (1937) alegou que a
parte principal desse processo penal de aprendizagem é derivada de
pequenos grupos sociais, tais como gangues.

O apelo da associação diferencial é que não se deve olhar só para o meio


ambiente para obter explicações sobre o comportamento criminoso e
explicar as diferenças nas populações que outros pesquisadores, como
Shaw e McKay (1931, 1942), tinham ignorado. Sutherland (1937) também
considerou a transmissão e desenvolvimento de construções psicológicas,
tais como atitudes e crenças sobre o crime. No entanto, as ideias de
44 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Sutherland também têm seus críticos. Uma das críticas é que elas não
conseguem especificar o quanto as pessoas necessitam para favorecer o
crime, antes que se tornem influentes no sentido pró-penal, uma vez que,
geralmente, as pessoas têm crenças que justificam o crime apenas em
determinadas situações (Agnew, 1995; Akers, 1997). A associação
diferencial também foi criticada por dizer, simplesmente, que as atitudes
pró ou anticriminal pode ser desenvolvida através da associação com outras
pessoas, sem explicar como esse processo funciona (Akers, 1997).
Expandindo as ideias da associação diferencial, aproveitando a teoria dos
processos de aprendizagem social, Akers (1997) propõe que o crime é
aprendido graças ao desenvolvimento de crenças de que ele é aceitável em
algumas situações, o reforço positivo de envolvimento criminal (por
exemplo, a aprovação dos amigos, ganhos financeiro) e da imitação do
comportamento criminoso dos outros.

A riqueza de evidências empíricas corrobora com as proposições da


criminologia, como desorganização social (Shaw e McKay 1930, 1942;
Thrasher 1927), a transmissão cultural das normas criminógenas (Shaw e
McKay 1930, 1942) e Associação Diferencial (Sutherland 1937). Quando
há gangues de rua também há probabilidade de ser a pobreza, a vitimização,
o medo e a desorganização social (Chin, 1996; Goldstein, 1991; Howell &
Decker, 1999; Howell, Egley & Gleason, 2002; Huff 1996, Klein 1995;
Knox 1994; Spergel, 1995) e status socioeconômico baixo (Chettleburgh,
2007; Rizzo, 2003). Os jovens que vivem em bairros com altos índices de
pobreza são mais propensos a cometerem atos delinquentes, e membros de
gangues têm maior taxas de delinquência que grupos que nunca se
envolveram em gangues (Eitle, Gunkel, e van Gundy, 2004; Esbensen,
Huizinga e Weiher, 1993; Gordon, Lahey, Kawai, Loeber, Stouthamer-
Loeber & Farrington, 2004). Além disso, as crianças e jovens que são
incapazes de integrar as instituições sociais são mais susceptíveis de se
tornarem inadimplentes e participarem dos grupos de pares desviantes,
como resultado (Dukes, Martinez, & Stein, 1997, Hill et al, 1999).

Observam-se evidências de que, em muitas cidades do mundo, onde a


forma de governo é fraca e a insegurança, assim como a instabilidade,
dominam, grupos organizados tendem a "reinar" (Sullivan, 2006). Em
muitos desses casos, quadrilhas evoluíram para complexos, as gangues de
terceira geração que têm sofisticadas agendas políticas e sociais (Sullivan,
2006). Citamos por exemplo, a guerra nos morros cariocas.
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 45

Apesar de vários estudos que parecem apoiar os conceitos propostos pelas


teorias descritas acima, os críticos são rápidos em apontar as deficiências
conceituais desta escola de pensamento. A teoria de Sullivan (2006) foi
acusada de conceber as pessoas como motivacionalmente vazias, sem
escolha, e como vasos simples para serem preenchidos com as imposições
da sociedade (Emler & Reicher, 1995). Há também indícios de que não
existe qualquer ligação entre status socioeconômico baixo e gangues (Eitle
al. Al, 2004), e que estas podem tão facilmente vir de famílias mais ricas
(Spergel, 1995). No entanto, o conceito de desorganização social é também
acusado de ser tautológico, explicando a delinquência em termos de
desorganização, quando a delinquência é um critério de desorganização
(Emler & Reicher, 1995). Caulfield (1991) argumenta que os teóricos
subculturais tentam criar imagens de monstros e demônios que devem
"atender a certos critérios - tais como estando na extremidade inferior de
classe, raça e hierarquias de gênero." (p. 229).

É, realmente, uma ironia que os teóricos culturais, tentando destacar as


desigualdades da estrutura social, também podem reforçar estereótipos
negativos do trabalho da classe dos povos e dos imigrantes.
Consequentemente, o foco da investigação sobre gangues e grupos
violentos de rua nos oferece poucas garantias de que os locais onde as
gangues são encontradas são representativos de locais de gangues ou
lugares semelhantes que não têm gangues (Tita, Cohen & Engberg, 2005).
Se os pesquisadores sociais se concentrarem em áreas em que os
socioeconomicamente desfavorecidos e as populações étnicas vivem, há
o perigo de que as explicações de participação na gangue serão
enquadradas, exclusivamente, pela privação socioeconômica e étnica. É
evidente que precisamos de uma perspectiva mais ampla, se quisermos
explicar adequadamente por que as pessoas se unem a gangues e tornam-
se grupos violentos.

Outra perspectiva é a teoria da tensão. O conceito central dessa teoria é que


a sociedade define metas universais para a sua população e, em seguida,
oferece a possibilidade de alcançá-las a um número limitado de pessoas. A
desigualdade de oportunidade resultante provoca uma pressão sobre os
objetivos culturais. Este, Merton (1938) propõe, leva à anomia (Durkheim
1893), uma quebra na estrutura cultural, devido a uma aguda divisão entre
normas culturais prescritas e a capacidade dos membros para agir em
conformidade com elas (Merton, 1938). A consequência da anomia é que as
46 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

pessoas se adaptam à sua situação através da adoção de uma forma


específica de comportamento (Merton, 1938). Cohen (1955) descreve os
membros de gangue, jovens de classe que experimentam tensão resultante
de frustração de status. Frustração de Status pode ser resolvida pelos
jovens, associando com outras semelhantes, a fim de se afirmarem contra
os ideais da classe média e seus padrões. Por sua vez, isso leva à formação de
uma subcultura delinquente, na qual gratificação instantânea, brigas e
comportamento destrutivo vão se tornando os novos valores. É uma
rebelião considerada certa, justamente, porque está contra as normas da
cultura maior. Cohen (1955) argumenta que uma criança experimenta
frustração de tensão devido à desigualdade de oportunidades oferecidas
em uma sociedade meritocrática, que pretende operar em princípios
igualitários da igualdade de oportunidades. Tomamos, por exemplo, de
socialização inadequada os recursos da comunidade pobre de uma dada
população e a carência de brinquedos educativos. A criança, enfrentando
essas privações sociais, gradualmente, deposita-se no fundo da hierarquia
educacional e experimenta sentimentos de frustração de status,
envolvendo auto-ódio, culpa, perda de autoestima, autorrecriminação e
ansiedade. A criança atribui a si mesmo pelo fracasso e lida com ela,
buscando caminhos alternativos para a realização de status como membros
de gangues de rua (Cohen 1955).

Tomando uma perspectiva diferente sobre a mesma questão, Cloward e


Ohlin (1960) constataram que os membros do grupo culparam o sistema,
ao invés de a si mesmos, por seu fracasso social, e "em guerra" contra a
sociedade, por meio de expressões de raiva e de combate. Esta teoria,
conhecida com oportunidade diferencial, é frequentemente citada como
uma teoria geral da delinquência, que começou como uma teoria de gangues
(Knox, 1994). Tal disponibilidade diferencial de meios ilegítimos, para
resolver a tensão, significa que crianças de classe média têm a oportunidade
de aprender a afrontar. Crianças de classe baixa têm esta oportunidade e,
assim, afrontar com mais frequência. Cloward e Ohlin (1961) argumentam
que Shaw e McKay (1939, 1942) não observaram um diferencial na
oportunidade para aprender a afrontar e, portanto, simplesmente assumida
(erradamente) que as classes médias tinham menos tendência a ofender a
ordem estabelecida. Cloward e Ohlin (1961) concordaram com as ideias de
Sutherland (1937), afirmando que os jovens aprendem a afrontar através
das ações dos mais velhos, os delinquentes mais experientes. Agnew (1992)
afirma que a teoria da tensão é desenvolvida por meio da identificação de
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 47

formas específicas de pressão (independentemente da classe): (1) os


fracassos reais ou previstos para alcançar metas positivamente valorizada,
(2) a remoção, real ou antecipada de estímulos positivamente valorizada, (3)
a apresentação real ou antecipada de estímulos negativos". Cada uma destas
perspectivas pode ter um efeito crescente sobre a delinquência e, assim,
haverá diferenças individuais em resposta à tensão vivida.

Pesquisas mostram que as quadrilhas compensam a tensão através de meios


ilegítimos para alcançar objetivos que não são alcançáveis devido às
carências de emprego e educação (Klemp-Norte, 2007). Os membros de
gangue são susceptíveis de ter perdido modelos positivos, uma vez que,
muitas vezes, vêm de famílias desorganizadas e muitos perderam o contato
com um dos pais por morte, separação ou divórcio (Klemp-Norte, 2007).
Os membros de gangue também estão mais expostos a influências
negativas, tais como drogas e companhias delinquentes (Sirpal, 2002;
Klemp-Norte, 2007). Exposição ao estresse tem sido identificada como um
fator de risco para a participação na gangue (onde age como um mecanismo
de desvio de enfrentamento para as metas inatingíveis, Eitle et al, 2004).
Dessa forma, torna-se uma estratégia de enfrentamento das emoções
negativas, como raiva, frustração e ansiedade (Eitle et al, 2004;. Klemp-
Norte, 2007), a necessidade de desenvolvimento pessoal (Spergel, 1995) e
uma falta de confiança e autoestima (Dukes, Martinez, & Stein, 1997).
Alguns pesquisadores afirmam que não há relação entre gangues e
autoestima (Bjerregaard & Smith, 1993).

Um problema com a teoria da linhagem é que, embora explique algumas


das razões pelas quais os jovens podem ingressar em gangues, deixa de
explicar por que a maioria da juventude de classe baixa, eventualmente,
pode levar uma vida obediente à lei, embora o seu estatuto econômico
permaneça estático (Goldstein, 1991), ou por que muitos jovens não
experiência essa transgressão (Webster, et. al., 2006). Trinta e três por
cento dos jovens que vivem em áreas carentes e que nunca tinha
transgredido à lei, tinham experimentado um trauma significativo, como o
divórcio dos pais não criminal, violência doméstica, a institucionalização
dos pais em unidades prisionais ou de saúde mental, distanciamento da
família de irmãos (Webster, et. al, 2006). Além disso, longe de se rebelar
contra as normas da classe média, muitos membros de gangues, realmente,
endossam os valores da classe média (Klein 1995; Sikes, 1997). Em um
estudo etnográfico de membros de gangues femininas, Sikes (1997)
48 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

observou como a maioria dos membros manifestou o desejo de ingressar


em várias profissões, como enfermagem e docência, apesar de uma baixa
frequência na escola, um registo criminal variado e uma possibilidade real
de serem mortos, enquanto engajados na atividade de grupo. Muitos
membros do grupo também gastam uma grande parte do seu tempo
envolvidos em atividades convencionais, tomando medidas para
encontrar um emprego, participar de esportes e fazendo planos para o
futuro, tal como se alistar na Marinha (Hughes & Short, 2005).

Uma crítica da teoria da linhagem é que a pesquisa mostra que os jovens


que têm mais dinheiro fornecido pela família são, muitas vezes, aqueles
que se envolverem em gangues (Knox, e Tromanhauser 1991). Esta
pesquisa vai questionar o conceito de que, quanto menor o status
econômico do indivíduo, maior probabilidade existe de sua filiação
subcultural. A pesquisa também mostra que as famílias dos jovens
membros de gangue não são mais propensas a ajudar seus filhos com a
lição de casa (Knox et al., 1992), o que pode significar que o tempo dos
pais, em vez de dinheiro, é um fator de proteção para que os jovens
tornem-se participantes de grupos violentos.

Claramente, a teoria da linhagem não dá conta de muitas das conclusões


relativas à participação na gangue. É importante referenciar o trabalho
realizado por Strodtbeck (1965) que compara às gangues brancas, as
gangues negras, jovens de classe baixa e jovens de classe média (mais de
500 entrevistados em cada grupo estudado). Os dados foram coletados a
partir de múltiplas fontes, usando uma variedade de metodologias,
incluindo a observação sistemática, entrevistas com gangues e membros
de grupos de não gangue, e os relatórios dos participantes do grupo.
Assim, a premissa central da teoria de tensão é a presença de
relacionamentos negativos no desenvolvimento da delinquência.

Em outra perspectiva teórica, a teoria de controle concentra-se na


ausência de relações-chave (Agnew, 1992; Klemp-Norte, 2007). Como a
teoria de deformação e teoria da desorganização social, postula a teoria de
controle que as comunidades com uma estrutura de deterioração social
são um terreno fértil para a delinquência. A tese central da teoria de
controle é que as pessoas são inerentemente dispostas a afrontar e
transgredir. Isso porque oferece ganhos a curto prazo (por exemplo, o
dinheiro imediato), e o objetivo central das pessoas com disposições ao
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 49

crime é satisfazer os desejos da forma mais rápida e simples possível


(Gottfredson & Hirschi , 1990). A transgressão é impedida pelo vínculo
social, que opera em construtos psicológicos, como a consciência do
indivíduo. Contudo, uma avaria em vínculos sociais durante a infância
deixa uma criança livre para agir em suas inclinações naturais, sem
repercussões emocionais negativas.

Inicialmente, a teoria de controle enfatizou o poder de restrição que o


sistema de justiça tinha sobre a delinquência (Gottfredson & Hirschi,
1990; Hirschi, 1969), e é, portanto, fundamentalmente, amarrado com
as teorias da dissuasão. No entanto, os teóricos que propoem a teoria de
controle, em geral, concordam que a estrutura social legítima não
ocorre simplesmente porque as normas sociais são impostas às pessoas
através de processos sociais. As normas sociais são eficazes, porque as
pessoas podem internalizá-las através de um processo de socialização
no qual as sanções formais são reforçadas por sanções informais (Fagan
& Meares, 2008).

Gottfredson e Hirschi (1990) explicam, em sua teoria geral do crime, que a


causa do baixo autocontrole e, portanto, a delinquência, é a criação
inadequada dos filhos e pode ocorrer em qualquer classe social. A
adequada educação infantil inclui: monitorar o comportamento da criança
e reconhecer e punir os comportamentos desviantes. O resultado será
"uma criança mais capaz de adiar a gratificação, mais sensíveis aos
interesses e desejos dos outros, mais independente, mais dispostas a
aceitar restrições à sua atividade e mais improvável do uso da força ou da
violência para atingir seus fins." (p 97).

A adequada educação dos filhos é vulnerável a obstáculos, incluindo: os


pais que não cuidam de seus filhos, os pais que se importam, mas que são
incapazes de prover supervisão adequada, os pais capazes de fornecer
tanto cuidado e vigilância, mas que são incapazes de identificar um
comportamento como errado, ou os pais que estão pouco dispostas ou
incapazes de fornecer a punição para o comportamento (Gottfredson &
Hirschi, 1990). Para seu crédito, os autores ressaltam que a fiscalização e a
punição devem ser conduzidas de uma forma amorosa, e que a decepção
dos pais é um mecanismo de controle mais eficaz do que os castigos
corporais. Assim, eles não endossam as sanções severas e punitivas que os
teóricos do controle têm sido acusados de favorecer (Currie 1985).
50 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Gottfredson e Hirschi (1990) sugerem que a maioria das casas em risco de


produzir filhos delinquentes é aqulea que possui pais criminosos, porque
eles não reconhecem o comportamento dos filhos como infratores e as
famílias monoparentais, porque a família monoparental é incapaz de
monitorar adequadamente o comportamento da criança e falta apoio
psicológico a partir de outro adulto. Apresentando um padrasto, pode não
melhorar a situação como novo membro da família, pode ter pouco tempo
ou afeto para a criança, que irá criar discórdia familiar e faz muito pouco
para aliviar os problemas de educação infantil. As mães que trabalham
também podem colocar as crianças em risco, porque elas não podem
supervisionar adequadamente seus filhos. As escolas podem ajudar a
socializar as crianças, mas somente se os pais não se opõem a qualquer
tentativa de incutir autodisciplina para a criança.

Apesar de Gottfredson e Hirschi (1990) não abordarem diretamente o


envolvimento dos jovens nas gangues, a teoria de controle social tem sido
usada para prever o aparecimento de gangues (Thornberry, 2006) e foi
encontrada a possibilidade de prognosticar os níveis de delinquência
(Huebner & Betts, 2002). A falta de compromisso com um futuro positivo é
evidenciado por membros de grupos violentos, mostrando pouco ou
nenhum comprometimento na escola (Hill et al, 1999;. Brownfield, 2003).
Os membros de gangue também tendem a experimentar a ausência de
modelos parentais, desorganização familiar (Klemp-Norte, 2007) e baixa
capacidade de gestão dos pais (Eitle et al, 2004; Hill et al, 1999; Sharp et al,
2006; Thornberry et al., 2003).

Jovens de famílias monoparentais, famílias com um dos pais e outros


adultos e jovens sem pais são mais propensos a se tornarem membros de
gangues do que jovens de ambos os pais (mesmo padrasto), famílias (Hill,
Howell, Hawkins & Battin-Pearson, 1999) parece apoiar a teoria de
controle. No entanto, variáveis de processo de família foram encontrados
para jogar um papel muito menor na gangue (Thornberry, et.al, 2003),
sugere a teoria de controle. A pesquisa mostra também que os laços com os
pais (anexo) e gestão de famílias pobres não são tão fortemente
relacionados com gangues, como a estrutura familiar (Hill, et.al, 1999).
Mesmo que a supervisão dos pais se refira à participação em gangues, o
relacionamento é muito modesto (LeBlanc & Lanctot, 1998). Isto sugere
que o controle familiar não é um fator tão essencial nas gangues, como a
teoria de controle indica. Mesmo em famílias nas quais os pais tentam
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 51

controlar seus filhos, a disciplina não é uma solução simples para a


delinquência, uma vez que pode levar a uma maior probabilidade de
inadimplência, independentemente das relações parentais (Wells & Rankin,
1988). De fato, muitos membros de gangues afirmam que, muitas vezes,
eram castigadas fisicamente pelos pais autoritários, até que eles saíram de
casa, ou retaliaram com agressividade semelhante (Klein, 1995).

Há também evidências de que, mesmo dentro de grupos legítimos, normas


sociais continuam a ser reconhecidas. Por exemplo, membros de gangues
prestarem auxílio financeiro (apesar dos lucros do comércio de drogas) para
comunidades carentes e prestação de serviços à lei e à ordem, escoltas de
segurança para os programas de lazer e ajudarem as famílias pobres com o
fornecimento de mantimentos, transporte gratuito e mão de obra
(Venkatesh, 1997). É também paradoxal que, enquanto membros de
gangues podem ser considerados a ocorrer por causa de uma avaria em
formais e informais de controle social, a pesquisa nos oferece exemplos de
grupos que fornecem controle social. Por exemplo, os objetivos comuns de
líderes de gangues e os cidadãos honrados em bairros de classe média têm
resultado em um ambiente mais estável e seguro, porque as gangues
oferecem o controle social para a comunidade.

Além disso, embora a teoria proponha que o controle informal quebra do


controle social para baixo e ofender os resultados, a teoria não consegue
explicar adequadamente como o controle social informal pode ser
reestabelecida. Por exemplo, alguns teóricos do controle social
argumentam que uma propensão para o envolvimento criminal é estável ao
longo da vida e da desistência do crime, só ocorre quando há uma mudança
em oportunidade para o crime (Gottfredson & Hirschi, 1990). Entretanto, a
evidência mostra que é o efeito do controle social que incita as pessoas a
pararem de ofender. Por exemplo, membros de gangues deixam o grupo em
favor da paternidade (Moloney, Mackenzie, Hunt & Joe-Laidler, 2009), do
emprego, serviço militar e do casamento, tudo contribui para uma cessação
de ofender (Sampson e Laub, 2001). Parece, portanto, que os controles
sociais podem ser mais flexíveis do que a teoria de controle e sugere que,
mesmo que de forma informal, que o controle social é dissolvido na medida
em que os jovens se envolvem em delinquência. Isto apoia o argumento de
que as teorias convencionais não conseguem incorporar uma dimensão
social contextual para o estudo das gangues (Bursík & Grasmick, 1993;
Spergel, 1995; Jankowski, 1991).
52 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Alguns pesquisadores examinaram as características psicológicas dos


membros de gangues, por exemplo, olhando para os efeitos de interação
de vizinhança e de traços de personalidade dos membros da gangue.
Jovens que vivem em bairros desorganizados (ou seja, com uma alta
rotatividade de moradores) e que têm tendências psicopatas (com
maiores níveis de hiperatividade e menores níveis de ansiedade e
tendências pró-sociais) têm cinco vezes mais probabilidade de se
tornarem membros de gangues de jovens do que grupos que não
apresentam essa configuração de traços (Dupéré, Lacourse, Willms,
Vitaro & Tremblay, 2006). Esses jovens também são menos sensíveis às
tentativas dos pais de supervisão (Dupéré al. al, 2006). Participação em
gangues é ainda mais provável se esses jovens vivem em um ambiente
familiar adverso (Lacourse, Nagin, Vitaro, Côté, Arseneault & Tremblay,
2006). Fatores de risco para a participação na gangue também apontam
para as diferenças individuais, tais como níveis mais baixos de QI
(Spergel, 1995), dificuldades de aprendizagem e problemas de saúde
mental (Hill et al, 1999.) e baixa autoestima (Dukes et al, 1997).

Mais recentemente, a Teoria Interacional (Thornberry, 1987;


Thornberry & Krohn, 2001) elaborou hipóteses criminológicas,
propondo que a participação em grupos violentos tem relação recíproca
entre o indivíduo e as estruturas sociais, tais como bairro pobre e família
carente, enfraquecimento dos laços sociais e um ambiente de
aprendizagem que promove e reforça a delinquência (Hall, Thornberry
& Lizotte, 2006). A teoria Interacional também reconhece que, mesmo
dentro de gangues, nem todos os membros são iguais. Por exemplo,
alguns membros do grupo são transitórios e alguns são estáveis. Por
conseguinte, as diferenças individuais parecem estar a ganhar
importância no desenvolvimento conceitual da teoria dos grupos
violentos de rua e, como tal, há um papel para a psicologia como um
processo compreensivo, contribuindo para um desenvolvimento teórico.

É evidente que precisamos entender mais sobre esses grupos violentos


de rua. Por exemplo, são gangues femininas, meros satélites de gangues
masculinas, como eles são frequentemente considerados (Hagedorn &
Moore, 2006) ou são entidades independentes, que têm seu próprio
conjunto de motivações para a adesão? Essas são motivações
semelhantes ou não aos dos seus colegas do sexo masculino? Além disso,
por que o abuso sexual em casa é maior antecedente para a gangue do sexo
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 53

feminino do que para os membros do sexo masculino (Chesney-Lind,


Sheldon & Joe, 1996)? Além disso, precisamos entender mais sobre a
mudança na estrutura dos grupos violentos. Por exemplo, porque muitas
gangues são cada vez mais multirraciais e multiétnica (Howell Egley &
Gleason, 2002; cf Howell, 2007; Starbuck, Howell & Lindquist, 2001).

Outras pesquisas teóricas têm conclusões que oferecem algum insight,


mas pouco fazem para se unir com a literatura e expandir a nossa
compreensão global da etiologia dos grupos violentos de rua. Por que
formar gangues? Elas provavelmente se formam como uma
possibilidade de satisfazer as necessidades que os adolescentes têm: a
amizade entre colegas, o orgulho, o desenvolvimento da identidade,
reforço da autoestima, a emoção, a aquisição de recursos (Goldstein,
2002). Eles podem oferecer um forte sentido psicológico de
comunidade, um bairro físico e psicológico, uma rede social e apoio
social (Goldstein, 1991). A psicologia social oferece uma variedade de
teorias abrangentes para explicar a dinâmica desses grupos e cada um
oferece um potencial para a pesquisa frutífera em questão de formação de
quadrilha (Goldstein, 1991, 2002). Por exemplo, a teoria social de troca
(Kelley & Thibaut, 1978; Thibaut & Kelley, 1959), em que membros do
grupo são avaliados de acordo com seus benefícios e custos. Outras
teorias, como a teoria da identidade social (Tajfel & Turner, 1986), a
teoria da dominância social (Sidanius & Pratto, 1999) e a teoria do
conflito realista (Sheriff, 1966), oferecem-nos um potencial para explicar
o conflito entre gangues (Goldstein, 2002). No entanto, nenhuma teoria,
criminológica ou psicológica, tem o potencial para explicar
completamente a etiologia das gangues. Um referencial teórico
específico para a participação na gangue, que integra perspectivas
sociológicas, criminológicas e psicológicas, seria muito importante para
orientar a pesquisa e desenvolver mais a teoria.

Uma boa teoria deve ser capaz de explicar e prever o comportamento


(por exemplo, Newton-Smith, 2002). Deve ser coerente, consistente e
unificadora dos aspectos de um fenômeno que parece ser diverso para
fornecer uma explicação clara e compreensível do mundo. Uma teoria
integrada da gangue deve reunir as boas ideias contidas nas teorias atuais
em um modelo que fornece o poder explicativo e hipóteses testáveis.
Esse modelo vai facilitar a análise de aspectos específicos das gangues e
do desenvolvimento da teoria.
54 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Com a possibilidade de organizarmos um modelo integrado de gangues,


apresentamos, neste trabalho, um quadro muito preliminar dos grupos
violentos de rua. Este quadro reúne conceitos da teoria criminológica e integra-
os com relevantes fatores psicológicos. Inclui conceitos de modelos
semelhantes (por exemplo, Howell & Egley, 2005) para fornecer um quadro
mais abrangente, com hipóteses testáveis, que podem ser utilizadas para orientar
os exames empíricos de por que a juventude pode ou não ingressar em gangues.
Ilustrando o caminho para a criminalidade e/ou de gangues, juntamente com
uma via alternativa para comportamentos não-criminais e caminhos para sair da
criminalidade e das gangues, este modelo proporciona uma conceituação mais
versátil da criminalidade, gangues e participação criminosa ou não. E é a
inclusão de vias alternativas, em conjunto com os principais fatores psicológicos
e criminológicos, que o distingue de outros modelos similares.

Para concluirmos, esta análise considera o papel da teoria e pesquisa para


entender porque os jovens se unem a gangues e possibilitou identificar um
grande número de questões problemáticas que precisam ser superadas. As
pesquisas sobre grupos violentos de ruasão marcadas pela dificuldade de
definição e que as atuais abordagens teóricas têm tanto valor e apresentam
limitações. Como resultado, a investigação empírica, que é guiada por cada uma
das abordagens teóricas que temos revisto, reflete tanto o seu valor e suas
limitações. No entanto, a investigação de gangues de rua nos proporcionou uma
riqueza de achados empíricos que nos presenteia com muita coisa a considerar.
Assim, um dos problemas com tal riqueza de trabalho é a confusão que resulta
dos pesquisadores de grupo de rua e os esforços para selecionar o melhor
caminho teórico para um processo efetivo de compreensão do fenômeno
abordado. Isso pode resultar no que parece ser mais de uma competição entre
as teorias do que um esforço concentrado para desenvolver e mesclar as
melhores proposições teóricas. Os argumentos apresentados mostram que
temos as lacunas na literatura e sugerimos como uma abordagem
multidisciplinar pode ligá-los. Há um papel para a psicologia na investigação de
grupos violentos de rua, e caso os psicólogos e criminologistas trabalharem
juntos para identificar as razões pelas quais os jovens ingressam em gangues,
vamos ampliar nosso conhecimento e desenvolver explicações mais detalhadas
do que as atualmente disponíveis. Com isto em mente, apresentamos diversos
modelos teóricos de como os jovens podem estar envolvidos em gangues.
Pesquisar os grupos violentos de rua é vital e, por isso, não se pode dar ao luxo
de ser marginalizado por qualquer disciplina que poderia ter uma luz teórico-
metodológica para compreender alguns dos seus múltiplos fatores.
Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas 55

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Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 57

Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos


1
Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros

Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada.


(Foucault)

A humanidade sempre se impressiona com o que faz. Há um mecanismo analítico, a


negação, que permite a qualquer pessoa conviver com o que lhe incomoda: fingido que viu,
mas não acredita existir sabendo de sua existência. Eis o sentido para as incômodas
interpretações sobre o sacrifício de animais, quer para sobrevivência biológica, quer
associado a práticas sagradas, duas dimensões abismais. Este ensaio, baseando-se num
processo de violação de direitos e judicialização de um terreiro na cidade de Petrolina (Tenda
de Umbanda Estrela da Guia, da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa), analisa como, em
nome das interpretações jurídicas, estabelecem-se formas judiciais de negação de direitos.

Palavras-Chave: Candomblé, Ecologia de sangue, Sacrifício de animais, crueldade.

INTRODUÇÃO

O que surpreende o humano? Estamos, plasticamente, analisando o


espanto e, para alguns, a incômoda estética dos corpos sacrificados dos
animais nas culturas humanas. Como no tempo dos suplícios,
genialmente analisado por Foucault em “A Verdade e as Formas Jurídicas”
(2002) e “Vigiar e Punir” (2010), se evitadas suas teatralizações e

1
Autores (as): Juracy Marques (Pós-Doutor em Antropologia, Prof. da UNEB e FACAPE); Alzení Tomáz
(Estudante de Direito, Coord. do LAPEC/NECTAS); Leonardo Sousa (Estudante de Direito e Técnico do
NECTAS/UNEB); Bruno Heim (Advogado, Prof. da UNEB); Luiz Eduardo (Advogado, Prof. da FACAPE);
Robson Marques (Estudante de Educação Física, integrante do NECTAS).
58 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

publicidades, pouco se tem a dizer se alguma espécie foi tolhida da sua


condição de existência, quer seja animal, vegetal ou mineral.

Radicalmente, se estamos ancorados numa dimensão ética, precisamos


nos valer dos seus mais nobres fundamentos, dantes lavas a serem
erodidas dos adormecidos vulcões das verdades jurídicas. Não podemos,
nem devemos, imaginar que nos corpos dos vulcões há apenas lavas
adormecidas, nem, terminalmente, interpretar seus sistemas a partir de
suas cinzas. Portanto, temos que nos apartar das comoções frente à morte
dos animais dos adoradores de carne: “não suporto vê sangue, não
consigo entrar num açougue, acho um absurdo sacrificarem um animal,
mas adoro um churrasco”. Há uma dimensão abismal, portanto, oceânica,
entre o sacrifício de animais em rituais sagrados e as demandas
alimentares das sociedades de consumo. A morte como produto de uma
ação, quer seja de animal, de um vegetal ou de um ser humano, não pode
ser relativizada pela hipocrisia discursiva das autoideologias. Antes, morte
é morte. Discutimos, pois, seus sentidos, significados e justificativas.

Do ponto de vista ético, qual a efetiva diferença da morte de um animal


abatido nos frigoríficos do mundo para alimentar as pessoas e um animal
abatido em práticas ritualísticas de sociedades culturalmente
diferenciadas? Encolher essa complexa resposta à ideia de reduzir o
sofrimento do ser que morre ou apenas mobilizar forças para proibi-la em
cultos religiosos, quer de grupos afrodescendentes, mulçumanos, judeus,
ou de qualquer outra cultura, deságua num fundamento racista.

Se o abate do animal for a questão a ser superada pela humanidade, o


princípio é proibi-la na sua totalidade. Se apenas se prima para a redução
de sofrimento dos animais a serem abatidos, a questão é normatizar as
práticas nos diferentes espaços onde estas acontecem. Neste nosso
estágio civilizacional, as normas jurídicas rezam que só é proibido o abate
de animais silvestres, e proibidos por lei. Apenas o espírito
antropocêntrico das leis é capaz de encarnar, nas letras das verdades
jurídicas, que uma morte sem dor seja legítima frente ao desaparecimento
da vida, mesmo a dos animais. Como, nestes casos, tipificar a crueldade?
Estamos diante de um complexo sentido ético com rebatimento sobre o
campo jurídico-formal.
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 59

ECOLOGIA DE SANGUE

O sacrifício de animais é uma prática cultural que segue a humanidade desde


os primórdios. Não sabemos precisar quando essa atividade se vincula a
uma dimensão do culto ao sagrado. Nem de longe é uma atividade exclusiva
das tradições africanas. Observamo-la entre os mulçumanos e judeus, além
de outros povos, em sociedades tradicionais, capitalistas e socialistas. Em
2
Cuba, por exemplo, o sacrifício de animais é “livre” . Em países da Europa,
essa atividade é tipificada, em alguns casos, como crime. No Brasil, se quer
os Povos de Terreiro são considerados na estatística oficial, como
demonstra o quadro abaixo.

Religião 1980 1991 2000


Católicos Apostólicos Romanos 89,0 83,0 73,6
Evangélicos 6,6 9,0 15,4
Sem Religião 1,9 5,1 7,4
Espíritas 0,7 1,1 1,3
Afro-brasileiros 0,6 0,4 0,3
Outras Religiões 1,2 1,4 1,8
Nota: Invisibilidade dos povos de Terreiros no Brasil. Fonte: Recenseamentos demográficos do IBGE de 1980,
1991, 2000.

Segundo as leis observadas no Antigo Testamento, o sacrifício animal era


uma exigência de Deus aos humanos como forma de obtenção do perdão
do “pecado”. No livro de Gênesis, observamos passagens em que a morte
dos animais serviu para cobrir o pecado de Adão e Eva. Das suas ofertas a
Deus, Caim foi rejeitado porque apresentou a Ele frutas, enquanto Abel foi
agraciado, pois ofereceu ao Criador partes de animal. Noé, após o dilúvio,
sacrifica animais para Deus. É, portanto, a substituição do sacrifício de
Isaac, a ser feita por seu pai Abraão para Deus, por um cordeiro, a história
mais “nobre” da imolação de um animal que “salva vida”. Segundo a
tradição cristã, Deus deixa de exigir sacrifícios de animais, quando seu Filho,
Jesus Cristo, é crucificado para curar a humanidade dos pecados: “eis o
Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo” (JOÃO: 1-29).
2
Destaca-se que, fora das discussões da Santeria, o abate de um bovino, sem autorização do Estado, pode ser
punido com pena de 10 anos de cadeia. Isso tem a ver com a escassez desse tipo de alimento na Ilha.
60 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Mas há algo que se confunde quando estamos falando de matança animal:


quando ela está associada à demanda de alimento para a sobrevivência
material, biológica, e quando ela se ancora na dimensão simbólica, nas
expressões humanas sobre o sagrado. Segundo Yannick Alves, «existe uma
sutileza entre matar e sacrificar um animal. O sacrifício ritual de animais é
uma prática com fundamentos milenares e mágicos, representando um
dogma para estas religiões. Este não ocorre a qualquer momento ou por
qualquer motivo».

Em algumas culturas, o sagrado tem forte relação com o sangue, também


conhecido como «amenga» ou «ajé». É o caso de algumas tradições de
matriz africana, como o canbomblé: «para haver o sagrado tem que haver
sangue, mas sangue não é apenas a força dos animais, mas também a seiva das
3
plantas e a água dos rios» (Babalorixá Toni, 2010). Fernandes Portugal , alerta
que “para a Religião Africana tudo o que a natureza produz é "sangue", é o
Axé. Utilizamos vários tipos de sangue para formar o Axé, visando ampliar,
acumular e distribuir o mesmo, que é essencial para existência humana”.

A Ecologia do Candomblé é uma ecologia de sangue? O filme “Jardim das


Folhas Sagradas”, de Pola Ribeiro, serve para respondermos a esta pergunta:
esta obra de arte do cinema baiano, discute a instituição, em Salvador, de um
terreiro de Ossain, orixá das matas, das folhas, com certo “tom de
modernidade” e “discordante” das tradições. Bonfim, babalorixá
responsável pelo terreiro, radicaliza, opondo-se à matança de animais e se
pendura na crença de que seu Orixá, por ser da natureza, não pode ser a favor
de tais sacrifícios. A trama do filme desenrola-se nesse limiar entre a
possibilidade ou não de que o Candomblé, possa, um dia, nas suas práticas
sagradas, evitar o sacrifício de animais. Portugal, que também é babalorixá,
fala sobre essa possibilidade:

Eu acho que imaginar, pode-se imaginar tudo, mas não vejo,


esses cultos perderiam todo o sentido sem o sacrifício
animal. O Sacrifício Animal é um dogma da cultura Yorubá,
que foi transplantado no Brasil pelos Africanos. É inviável,
jamais vai se atingir esse ponto. Não consigo imaginar o que
as pessoas imaginam quando anunciam “Candomblé sem
sacrifício”. O sacrifício da pessoa em dormir na esteira? O
Candomblé sem o sacrifício animal, não é candomblé.

3
In « Sacrifício de Animais em Rituais de Religiões de Matriz Africanas (Yannick Yves Andrade Robert).
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 61

INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DOS DIREITOS AO SENTIDO


SAGRADO

Enquanto essas reflexões não ganham novos contornos, apesar dos avanços
jurídicos na proteção dos direitos culturais, imateriais, práticas tradicionais,
que fazem uso do sacrifício de animais em seus rituais sagrados, têm sido
motivo de muitas ações judiciais em diversas partes do Brasil e do Mundo.
Nestes casos, direitos e garantias fundamentais, com substratos diversos,
entram em conflito.

a) O Caso da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa (Tenda de Umbanda


Estrela da Guia):

O caso a ser analisado é o da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa, cujo Templo


de Candomblé encontra-se inserido no município de Petrolina-PE. Seu
Terreiro, Tenda de Umbanda Estrela da Guia, no dia 10 janeiro de 2012, foi
invadido pela Vigilância Sanitária do município de Petrolina – PE, após
denúncias. Em visita ao local, o servidor Jarbas Costa de Oliveira afirmou ter
encontrado animais abatidos, com carcaças completas de caprinos e um
garrote, sendo que a pele de um dos garrotes estava estendida no portão de
entrada.

Mãe Estela (2012), integrante do Terreiro, relata que estava no local na hora da
chegado do referido Servidor e que, perguntando a ele sobre que autorização
tinha para entrar no Terreiro, teve a resposta de que ele tinha “19 denúncias”.
Diz que o mesmo entrou e começou a fotogravar partes dos animais que
tinham sido abatidos no Terreiro. Desabafou: “nos sentimos invadidas”.

A narrativa do Servidor da Vigilância Sanitária descreve que o chão do


ambiente possuía sangue dos animais e havia bacias de alumínio e plástico
com as vísceras em cima da carroceria de uma caminhonete Ranger. Com
relação às pessoas presentes, informa que estas estavam descalças e com suas
roupas sujas de sangue proveniente do abate. Mãe Estela disse que já havia
sido feita a limpeza da “amenga” e que os bodes estavam para ser guardados
no refrigerador.

A proprietária, senhora Renilda Bezerra (2012), afirmou que o local era um


templo religioso, uma casa de Candomblé, cujo abate fazia parte do ritual,
sendo este uma oferenda religiosa. Ocorre que, mesmo tendo a proprietária
62 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

afirmado o caráter sagrado dos abates dos animais, a vigilância sanitária


informou ao Ministério Público sobre o acontecido e este notificou a
“Yalorixá” Renilda Bezerra para prestar esclarecimentos acerca de suposto
“maus tratos e abatimento clandestino de animais”.

Dona Renilda relata que, quando menos esperou, o Servidor da Vigilância


Sanitária já estava em sua sala e que, além de fotografar tudo, entrou em
lugares sagrados do Terreiro, afirmando que alí era um “abatedouro
clandestino”.

Em decorrência dessas observações da Vigilância Sanitária, a Yalorixá foi


intimada a comparecer no Ministério Público de Petrolina para prestar
esclarecimentos. Relatou que a Promotora disse que ela, a partir daquela
data, não iria mais fazer sacrifício de animais, sob pena de sofrer processo
judicial. Diz que, naquela circunstância, não tinha o que fazer a não ser
concordar com a Doutora. A Promotoria de Justiça encaminhou oficio à
Vigilância Sanitária do município, solicitando que esta realizasse visitas
periódicas ao local e lhe enviasse relatórios sobre a situação. Indignada,
afirmou, perante vários terreiros de Petrolina: “se eu não cortar mais,
nenhum terreiro vai também matar”.

Esse procedimento motivou os Terreiros de Petrolina a discutir, com órgãos


de proteção de direito humanos, particularmente povos de terreiros,
universidades e o próprio Ministério Público, sobre os rumos e sentidos de tal
decisão. Vera Baroni (2012), Yalorixá e Bacharel em Segurança do Trabalho,
afirma que este caso pode ser pensado dentro da lógica do racismo
institucional: “sabemos que a Vigilância Sanitária de Petrolina não invadiu um
“abatedouro clandestino”, invadiu um Templo Sagrado. Não podemos mais
aceitar práticas de racismo institucional.” Diz que, ao que lhe ocorre, a
interpretação do Ministério Público de Petrolina sobre o caso deságua num
entendimento pessoal e não traduz o entendimento institucional do
Ministério Público de Pernambuco, por exemplo. Como Povo de Santo, diz:
“a proibição instituída ao Terreiro de Mãe Renilda é uma proibição instituída a
todos nós, Povos de Terreiros”.

b) A Proteção Constitucional das Religiões Afrobrasileiras

A Carta Magna de 1988 atribuiu diversos instrumentos que são aplicáveis


às religiões afrobrasileiras. O primeiro direito, o qual se pode alertar, é o
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 63

da liberdade religiosa. Tal direito é aplicável a toda e qualquer religião e


está previsto no artigo 5º da Constituição, em seu inciso VI, que assim
prescreve: “[...] é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da
lei, a proteção aos locais de cultos e a suas liturgias”.

Perceba que tal direito, atualmente, subdivide-se em três formas de


manifestação: a liberdade de crença; a liberdade de culto e a liberdade de
organização religiosa (SILVA, 2005). A liberdade de crença é o direito que
o individuo possui de crer (ou não) em algo com fé e convicção.

A liberdade de culto vai além do aspecto subjetivo do ser em crer em algo,


estando mais ligado à possibilidade do individuo de exteriorizar seus atos
de fé em casa ou fora dela. Citando Pontes de Miranda, “Compreende-se
na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das
manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de
recebimento de contribuições para isso” (apud SILVA, 2005, p. 249).

Já com relação à liberdade de organização religiosa, pode-se afirmar que é


a possibilidade da instituição de templos religiosos e de como estes se
relacionam com o Estado, podendo o Estado ter uma relação de
confusão, separação ou de união. O Estado Brasileiro, desde o Decreto
119-A, promulgado em 7 de janeiro de 1890, de autoria de Ruy Barbosa,
separa a religião do Estado, afirmando ser o Brasil um Estado laico
(SILVA, 2005).

Valer ressaltar que, para os Constituintes de 1987, não bastou à previsão


do livre exercício dos cultos religiosos, pois estes tiveram ainda o cuidado
de, no artigo 19, em seu inciso I, vedar, expressamente, o Poder Público
de realizar qualquer atitude que viesse a embaraçar o funcionamento de
algum culto religioso. A atual Constituição mantém norma semelhante no
seu art. 19, I, ao dispor que fica vedado ao Estado: “estabelecer cultos
religiosos ou ig rejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento”. Novamente socorremo-nos em Pontes de Miranda
(1970, p. 185 apud SILVA, 2005, p. 249), que interpretando igual
dispositivo do Texto constitucional de 1967, vocaciona: “embaraçar o
exercício dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou
restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou
manifestações de pensamento religioso”.
64 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Em se tratando de Candomblé, Umbanda, ou quaisquer outras


manifestações religiosas afrobrasileiras, é imprescindível destacar o fato
de que além da proteção à própria religião, recebem guarida
constitucional em capítulo destinado à cultura, proporcionando assim,
uma dupla proteção. Deste modo, afora os dispositivos acima
mencionados, é também aplicável aos cultos afrobrasileiros o artigo 215,
parágrafo 1º, que estabelece como dever do Estado a proteção às
manifestações culturais populares, especificamente as manifestações
afrobrasileiras.

Ratificando tal entendimento, afirma Fiorillo (2011, p. 437) que:

Claro está que a liberdade de crença vinculada ao livre


exercício dos cultos religiosos se adapta a toda e qualquer
religião que, na condição de bem de natureza imaterial,
seja portadora de referência à identidade, à ação, à
memória de quaisquer dos grupos formadores da
sociedade brasileira mencionados no art. 215, § 1º, da
Carta Magna.

A dupla proteção constitucional não está restrita somente às religiões


afro-brasileiras, sendo aplicável, portanto, a todas as formas de cultos
religiosos realizados por grupos participantes do processo civilizatório
nacional.

Entretanto, a proteção jurídica da religiosidade, bem como da


manifestação cultural, não é irrestrita, pois inexiste, em nosso
ordenamento, um direito em absoluto. Especialmente com relação ao
direito à religiosidade, merece destaque a afirmação de Branco (2009, p.
460) que “A lei deve proteger os templos e não deve interferir nas
liturgias, a não ser que assim o imponha algum valor constitucional
concorrente de maior peso na hipótese considerada” (destaque
nosso). Portanto, caberá aos interpretes do direito, em cada caso, realizar
a sua mensuração.

c) A Proteção da Fauna no Direito Brasileiro

A fauna brasileira era tratada como Res nullius, fato que atribuía à mesma a
natureza de direito privado, pois se observava o animal apenas como
objeto passível de ser propriedade. Contudo, esta concepção privatista
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 65

da fauna foi superada, a partir do momento em que o direito passou a


proteger não o animal em si, mas as características e funções que este
animal possui para a manutenção do meio ambiente sadio, adquirindo
assim, uma natureza jurídica de bem ambiental (FIORILLO, 2011).

O legislador Constituinte traçou linhas gerais, ao determinar que, “na


4
forma da lei”, deve ser protegida a fauna , vedando condutas que
ameacem sua função ecológica, possam levar à extinção de espécies e que
sejam cruéis com animais (art. 225, §1º, VII). A norma de eficácia
limitada, segundo consagrada classificação de José Afonso da Silva
(1998), demanda preenchimento do legislador ordinário, para definição
5
de sua eficácia , carecendo, portanto, de aplicabilidade imediata.

A definição de fauna oriunda da Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna),


recepcionada pela Constituição, por ser com ela compatível, determina
no art. 1º, caput:

Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu


desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do
cativeiro, constituindo fauna silvestre, bem como seus
ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do
Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição,
destruição caça ou apanha.

Fica evidenciado pelo artigo acima transcrito, que o conceito de fauna


previsto na legislação infraconstitucional não engloba a fauna
doméstica, restringido seu âmbito de aplicação à fauna silvestre. O
objetivo do legislador infraconstitucional de proteger apenas à fauna
silvestre, deriva do fato de que somente esta corre o risco de modificar a
função ecológica do habitat ou entrar em extinção.

Contudo, o aspecto de proteção à crueldade de que trata o artigo,


diferente do que acontece com a função ecológica ou a extinção, é uma
proteção de todo e qualquer animal, sendo este silvestre ou não
(FIORILLO, 2011). Mas, o que é ser cruel?
4
Art. 225 [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
5
A demanda da lei ordinária ou complementar para emprestar eficácia à norma constitucional não significa que
seja desprovida de efeitos jurídicos. Como salienta o próprio autor, elas informam a concepção do Estado e da
sociedade, estabelecem dever para o legislador, vinculando conteúdo da legislação futura, condicionam a
atividade discricionária da administração pública e judiciário, entre outros (SILVA, 1998).
66 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

c) O Conceito de Crueldade no Art. 225 da Constituição

A doutrina apóia-se no melhores dicionários para compreensão de


“crueldade”. Neste sentido, de acordo com o dicionário Aurélio Buarque
de Holanda o termo crueldade “significa aquilo que se satisfaz em fazer o
mal, duro, insensível, desumano, severo, rigoroso, tirano” (apud
FIORILLO, 2011, p. 273). Já o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa define-a como “a característica ou condição do que é cruel;
prazer em derramar sangue, causar dor” (apud MACHADO, 2011, p.149)

Há, portanto, um aspecto doloso na caracterização de um ato cruel, tendo


em vista que a pessoa que pratica a crueldade se satisfaz com isso. Tem-
se aqui o prazer de um ser humano em maltratar, simplesmente, porque
assim o quer.

Fato a ser destacado, é o de que a previsão do art. 225, 1º, VII, da Carta
Magna, que proíbe os atos cruéis contra os animais, deriva do fato do ser
humano, ao buscar planificar as suas relações sociais, valorou que o ato de
submeter o animal a um mal além do necessário, afronta a “saúde psíquica
do ser humano”, pois este não consegue ver, “em decorrência de práticas
cruéis, um animal sofrendo”. Com isso, a “tutela da crueldade contra os
animais fundamenta-se no sentimento humano” (FIORILLO, 2011, p. 273).

Assim, como poderíamos interpretar o caso da Yalorixá Renilda Bezerra?


Veja que este é um caso polêmico, haja vista tratar, aparentemente, de
um conflito de direitos “fundamentais”, ou seja, no caso em questão,
tem-se, de um lado da balança, a proteção da vida dos animais, previsto
no artigo 225, ao vedar às práticas que submetam os animais à crueldade;
do outro lado, tem-se o direito à religiosidade de um povo tradicional,
previsto no artigo 5º, inciso VI, no artigo 19, conjuntamente com o
artigo 215, em seu parágrafo 1º e o artigo 216, todos estes
constitucionalmente previstos.

A ritualística de religiões afro-brasileiras, como o candomblé, não


carrega qualquer intenção deliberada de “fazer o mal” ou “causar dor”
aos animais. Seu propósito é dar de alimento primeiro aos deuses e
objetos necessários ao culto, expressando a dimensão simbólica do
sacrifício e das oferendas e, em segundo momento, aos humanos que
presenciam o ato.
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 67

Samuel Vida (2006), professor de direito da Universidade Federal da Bahia


e praticante de religiões afro-brasileiras, afirma que a necessidade de
impor sofrimento aos animais não compõe a cosmo-visão das religiões
afro-brasileiras, diferente do que talvez aconteça com outras religiões. Em
suas palavras:

Não há qualquer lugar do ponto de vista teológico, do ponto


de vista ritualístico, nas religiões de matrizes africanas para o
sofrimento dos animais, o sofrimento pelo sofrimento.
Talvez isto exista na tradição cristã, que precisa expiar
pecados. Talvez isto se coloque na tradição judaica, em que
há uma relação de substituição. Onde a susbtituição é feita,
se substitui o pecador, imolando o animal em seu nome, e, se
ele sofre, entende-se que ele deve sofrer como forma de
expiação de pecados. Talvez por isto, a mitologia sobre a
morte de Cristo seja tão sanguinária. Foi preciso sofrimento
para expiar o pecado dos cristãos. Não há esta dimensão,
absolutamente, na tradição religiosa de matriz africana
(2006, p. 297-298).

Os animais são peça fundamental no culto religioso, sendo imprescindível


seu sacrifício, sob pena de extirpar a própria prática religiosa, pois, como
sustenta um dos principais estudiosos da cultura africana no Brasil, Roger
Batisde (2001), sem axé não há candomblé. O pesquisador afirma que no
Brasil “axé” é acumulo de força sagrada, significando, em primeiro lugar, os
alimentos oferecidos às divindades. Como alimento, o sangue desempenha
papel fundamental, pois “é por meio do banho de sangue que se
estabelecem, no mundo africano da Bahia, todas as relações entre os
objetos, os seres humanos e os orixás; fazem-se todas as participações,
todas as mudanças de força” (2001, p. 77). Por fim, arremata Batisde: “o
sangue, muito mais do que o alimento, é o princípio da vida, e as divindades
não podem passar sem ele” (2001, p. 110).

Neste sentido, a morte de animais para oferenda não tem o condão de


maltratá-lo, pelo contrário, sua morte é fonte de vida, seu sangue anima os
seres divinos, os seres vivos e as coisas do mundo. O animal oferecido é
respeitado e colocado em condição de dignidade, sendo alçado do local
profano em que se encontra como animal doméstico, à condição de ser
sagrado. Compreendemos isto a partir da própria noção de sacrifício, que
etimologicamente “se aproxima da noção de consagração, de remoção do
secular para a esfera do sagrado” (LIMA, 2010, p. 117). Com o mesmo
68 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

entendimento, Vida (2003, p. 298) prefere denominar a morte dos animais


em religiões afro-brasileiras como “sacralização” e não um “sacrifício”.

d) O Novo Paradigma Interpretativo do Direito

O ser humano sempre teve a utopia de, através do método científico, chegar
ao conhecimento verdadeiro sobre um objeto. Este sonho também
impregnou o modo de pensar e conceber o direito, sendo esta filosofia
jurídica denominada de positivismo jurídico.

Com o objetivo de alcançar a neutralidade e objetividade contidas nas


ciências exatas e naturais, o positivismo jurídico utilizava-se do método da
subsunção como forma de se definir qual o direito aplicável ao caso
concreto. Este método, basicamente, consiste em identificar os fatos do
caso, levantar as normas jurídicas aplicáveis a este, e, a partir de um
raciocínio silogístico, colocar as normas como premissa maior, os fatos
como premissa menor e a conclusão é o direito.

No entanto, a neutralidade tão almejada pelos positivistas começa a perder


credibilidade com os estudos sobre o papel do intérprete e a necessidade de
relacionar o todo com a parte e a parte com o todo, constituindo, assim, um
círculo hermenêutico. Essa mudança decorre do fato de que, a partir dos
estudos hermenêuticos, em especial a contribuição de Hans-Georg
Gadamer, o ser humano passa a entender que

O mundo não nos revela suas estruturas, sua natureza,


simplesmente para que nossas teorias as reproduzam ou
“representem”; a verdade de nossas teorias não era um
reflexo das entidades objetivas da realidade do mundo, mas
sim o resultado de um ato interativo de nossas faculdades
interpretativas enquanto dedicávamos à atividade prática de
viver no mundo e pertencer ao mundo (MORRISON,
2006, p. 498).

Além do fato da impossibilidade desse método objetivo e neutro, que tanto


buscava o positivismo, essa prática, ao ser aplicada ao direito, acabava
neutralizando a sua vinculação com os valores da justiça e eticidade,
gerando, assim, atos abomináveis do ponto de vista humanístico; no
entanto, do ponto de vista jurídico, totalmente legais. Exemplo histórico
destes fatos é o caso do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 69

Segundo Barroso (2009), estes foram os fatos emblemáticos para a


decadência do positivismo jurídico.

Surge, assim, uma nova corrente teórica que busca estabelecer uma relação
adequada entre o direito, os valores, os princípios e as regras da sociedade,
utilizando-se, para tanto, dos estudos da nova hermenêutica constitucional
e dos direitos fundamentais, de forma que a aplicação do direito retome aos
laços anteriormente cortados com a justiça e com a ética. A esta nova forma
de pensar o direito, foi dada a nomenclatura de pós-positivismo
(BARROSO, 2009).

Esse novo paradigma jurídico utiliza as regras para garantir a segurança


jurídica e dos princípios para a flexibilização do direito, de forma que
possibilite a aplicação da justiça ao caso concreto (BARROSO, 2009).
Diante disso, o método subjuntivo da tradição positivista não é adequado
para realizar tal atividade, sendo necessária a construção de um novo
método aplicável a esta nova forma de pensar o direito.

Na busca da construção de um método que comportasse tais objetivos,


merece destaque as contribuições de Ronald Dworkin, sendo,
posteriormente, desenvolvidas por Robert Alexy. O primeiro teve a grande
contribuição ao mudar de foco o olhar do filósofo do direito, de modo que
não observasse somente o direito em si, mas o intérprete na aplicação do
direito nos hard case. Nas lições de Morrison (2006, p.503-504):

Dworkin define a tese positivista como uma concepção de


direito como “simples questão de fato” (...) na verdade, em
busca de uma resposta à pergunta “o que é direito?” ao se
defrontarem com um certo conjunto de fatos simples que
dão uma resposta já pronta e de fácil entendimento. De
maneira instigante, Dworkin pergunta se essa é uma imagem
adequada ou realista do direito. Em seguida nos leva a outra
questão, esta mais profissional, à qual se chega através da
pergunta “de que modo, nos tribunais, os advogados
argumentam com os juízes, e de que modo um juiz ‘descobre
o direito’?” Dworkin afirma que, em particular, nos “casos
difíceis”, juízes e advogados [...] utilizam critérios que não
funcionam como regras, mas operam diferentemente, como
princípios, políticas e outros tipos de critérios. (DWORKIN
apud MORISSON).
70 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Desta maneira, Dworkin, a partir da interpretação de diversos casos


difíceis, chega à conclusão do papel dos princípios e dos valores contidos
em uma ordem jurídica que orienta toda a sua aplicação. Exemplo clássico
é o fato do fracasso do positivismo jurídico em responder a demandas que
entram em conflito com os direitos igualmente constitucionais, a
exemplo, o caso ora analisado no presente artigo.

Robert Alexy, desenvolvendo a teoria de Dworkin, cria um método de


aplicação dos princípios no caso concreto, sendo este denominado de
ponderação de interesses,

Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a


análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as
variáveis fáticas presentes no problema enfrentado
afiguram-se determinantes para a atribuição do “peso”
específico a cada princípio em confronto, sendo, por
conseqüência [sic], essenciais à definição do resultado da
ponderação.

A relevância conferida às dimensões fáticas do problema


concreto, porém, não pode jamais implicar na
desconsideração do dado normativo, que também se revela
absolutamente vital para a resolução de tensões entre
princípios constitucionais. Afinal, a Constituição é, antes de
tudo, norma jurídica, e desprezar a sua força normativa é
desproteger o cidadão da sua garantia jurídica mais
fundamental. (...)

Por outro lado, a ponderação de interesses constitucionais


não representa uma técnica amorfa e adjetiva, já que está
orientada em direção a valores substantivos. Estes valores,
que não são criados mas apenas reconhecidos e
concretizados pela ordem constitucional (dignidade da
pessoa humana, liberdade, igualdade, segurança etc.), guiam
o processo de ponderação, imprimindo-lhe uma irrecusável
dimensão axiológica.

Pode-se, então, afirmar que a ponderação de interesses, pelo


menos na versão ora defendida, ostenta uma estrutura
tridimensional, pois compreende os três elementos em que
se decompõe o fenômeno jurídico: fato, norma e valor.
(SARMENTO apud BARREIROS NETO, 2011, p. 134).

Portanto, o intérprete, ao utilizar a teoria da ponderação de interesses, deve


Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 71

passar por três etapas (BARROSO, 2009). A primeira e segunda etapas são
comuns a todo processo interpretativo, devendo o hermeneuta,
primeiramente, definir o sistema de normas relativas ao conflito e estabelecer
uma interação dos fatos com as respectivas normas.

Aplicando estas etapas no caso do sacrifício de animais em cultos de religiões


afrobrasileiras e entre a proteção animal, em especial, ao caso da Ialorixá Renil
B. Bezerra, é possível ter duas visões diferentes.

A primeira visão é que, apesar de problematizado anteriormente, não há


conflito de interesses, pois não possui nenhum elemento normativo que
impeça o ser humano de sacrificar um animal. O sacrifício nos rituais sagrados
incorpora um contexto totalmente diverso da proibição ora cominada.

Repetimos: o sacrifício ritual de animais é prática com fundamentos milenares


e religiosos, de cura espiritual, numa conexão entre o sujeito e o animal. Desta
forma, não ocorre o sacrifício de qualquer jeito ou por qualquer motivo. Está
contido o elemento da troca de energia com a finalidade de tirar as forças
negativas, que passa do sujeito para o animal, a serem entregues para a
entidade religiosa, ou mesmo, sendo feita com a finalidade precípua de
alimentar a comunidade. Neste último caso, não se refere a um tratamento
associado ao orixá, mas se estrutura pelos mesmos fundamentos de demanda
de proteína para os corpos biológicos, também simbólicos.

No caso de religiões de matriz africana, o sacrifício de animais não é feito


por qualquer pessoa, mas pelo “axogum”, autoridade indicada pelos orixás,
responsável pelo “corte” com os cuidados necessários, preparado para não
cometer erros. Desse modo, percebe-se que há uma grande distância do
sacrifício para fins religiosos e a concepção de crueldade, prevista no artigo
225, 1º, VII, da Constituição que, conforme dito no item anterior, busca a
defesa de um interesse coletivo em proibir a crueldade com os animais, o
que não é o caso.

Já uma segunda visão, compreende ser o sacrifício de animais uma crueldade,


independente da forma como estabelece a morte do animal, entrando em
conflito aqui a proteção à fauna e o direito a liberdade religiosa, bem como o
da manifestação cultural, um caso típico de conflito de interesses
constitucionalmente protegidos. Assim, pergunta-se: como identificar qual a
norma que deve ser aplicada neste caso?
72 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Resposta a tal pergunta é a terceira etapa do método ponderativo. Esta é a


grande novidade do método proposto por Alexy, já que, nesta fase,
dedicada à decisão,

[...] os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos


ao caso concreto estarão sendo examinados de forma
conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser
atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o
grupo de normas que deve preponderar no caso. Em
seguida, é preciso ainda decidir quão intensivamente esse
grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve
prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível
graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda
decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução
deve ser aplicada (BARROSO, 2009, p. 361).

A diferença basilar deste método é que, diferente da análise do conflito de


normas-regras, na qual se aplicava à máxima tudo ou nada, a inserção dos
princípios dá uma abertura para a interpretação do direito em
conformidade com o contexto em que ele está sendo aplicado, de forma a
possibilitar o ideal de justiça. Assim, diante de um caso pode uma norma-
principiológica retirar, momentaneamente, a aplicação de outra norma,
sendo ela principiológica ou regra, para que os objetivos maiores, tratados
na Constituição, sejam alcançados. Para realizar tais ponderações, o direito
possui princípios instrumentais cujo objetivo é auxiliar na ponderação de
tais direitos. Um destes princípios é o da dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana funciona como princípio legitimador de


toda a ordem jurídica constitucional brasileira. Nas lições de SARLET
(2011, p. 91), vê-se que,

[...] o princípio fundamental da dignidade da pessoa


humana, destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser,
simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido
e legitimidade a uma determinada ordem Constitucional,
constituindo-se, de acordo com a significativa fórmula de
Haverkate, no “ponto de Arquimedes do estado
constitucional”.

Desta maneira, no conflito de interesses igualmente protegidos


constitucionalmente, deve-se realizar uma atividade interpretativa, que terá
como parâmetro a pessoa como o fundamento e o fim da sociedade e do
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 73

Estado, típica noção kantiana de dignidade humana, ou seja, tratar o


homem e a mulher como o fim em si mesmo (SARLET, 2011). Óbvio que
esta percepção, antes antropocêntrica, está na contramão dos novos
constitucionalismos vivenciados em alguns países da América Latina, que
asseguram direitos à Natureza e não apenas uma espécie dela: os humanos.

Volta-se, então, ao conflito do sacrifício de animais e da preservação das


religiosidades afrobrasileiras. Ponto crucial para a ponderação destes
interesses é observar o papel da espiritualidade para a constituição do ser
humano. Definindo o direito à vida, afirma SILVA (2005, p. 198) que:

A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no


art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e
psíquicos) e imateriais (espirituais). [...] Por isso é que ela
constitui fonte primária de todos os outros bens jurídicos.
De nada adiantaria a Constituição assegurar outros
direitos fundamentais, com a igualdade, a intimidade, a
liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num
desses direitos.

Pode-se afirmar, assim, que o direito à religiosidade está intimamente ligado


ao direito à vida, de modo que garantir a religiosidade para o ser humano é
garantir o seu direito à existência, sem mencionar a garantia do direito à
religiosidade e às manifestações culturais, anteriormente tratado.

Já do outro lado, ao analisar a proteção à fauna, com a vedação ao


tratamento cruel aos animais, no caso do sacrifício nos cultos afro-
brasileiros, deve-se lembrar que, atualmente, são utilizados somente
animais domésticos, normalmente animais cujo consumo é comum para a
maioria dos seres humanos, a exemplo, do boi, da galinha, do bode, não
havendo aqui nenhum desequilíbrio na função ecológica da fauna nem a
possibilidade de extinção de alguma espécie. Aliás, cabe destacar que a
defesa dos animais é reflexo indireto da defesa do homem (FIORILLO,
2011), de modo que não é racional estes direitos se sobreporem ao direito à
vida, à religiosidade e à defesa ao patrimônio imaterial.

Tensão analóga foi motivo de ação judicial no Rio Grande do Sul. Ao ser
criado o Código de Proteção Ambiental do Estado do Rio Grande do Sul
(Lei n. 11.915 de 2003), não havia referência às práticas de sacrifícios de
animais para rituais religiosos. Todavia, em 22 de julho de 2004, entrou em
74 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

vigor a lei n. 12.131, que acrescentou ao Art. 2º. da lei 11.915, um parágrafo
único que, expressamente, diz : "não se enquadra nessa vedação o livre
exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana".

Esta inovação legal foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade


de Nº 70010129690, perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Após amplo debate sobre esse assunto, chegou-se à conclusão, por maioria,
de que o sacrifício de animais não pode ser comparado à ética dos maus
tratos aos animais, como prevê o Art. 32 da lei 9.605 de 1998, devendo ser
analisado, especificamente, em cada caso, se há ou não a crueldade, o que
não é o caso da situação em tela.

CONCLUSÃO

Percebe-se que as tensões da passagem das tradições culturais para as


tradições jurídicas é algo que requer muita habilidade quando da
interpretação jurídica dos sentidos sagrados associados às práticas
religiosas dos Povos de Terreiros.

Apesar de preocupados com o que aconteceu com Mãe Renilda Bezerra,


percebe-se que há uma crença das pessoas de Terreiros de Petrolina nos
instrumentos jurídicos. Dona Alda (2012), também integrante de Povo de
Terreiro, diz que “somos livres para produzir os milagres que queremos e
desejamos e a lei deve nos garantir isso”.

Tudo que foi pensado aqui está assentado sobre a percepção sagrada, ou
não, dos sacrifícios de animais. A Yalorixá Edneusa (2012) esclarece:

E o sacrifício da fome? Você tem que matar o animal para


alimentar a fome. Os mais antigos já fazia sacrifício e
somente Deus recebia o sacrifício, então tem que mudar os
tempos passados pra corrigir o futuro? O sacrífico para nós
é homenagear o encantado. O sangue é a vida para um deus.
Além, de matar a fome dos encantos, alimentamos e doamos
pra comunidade. A vida tem valor para nós. Não se dar um
animal cego, nem emprenhado, nem doente, tem que ter
uma carne saudável e ainda podemos alimentar a
comunidade. Precisa conviver com o povo de terreiro pra
poder julgar. Nós sacrificamos o animal para o bem do
humano, doamos o sangue para salvar muitas pessoas e
liberta de doenças contagiosas e do mal lhe causado. Damos
Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros 75

uma vida para salvar a vida de um ser humano, quando o ser


humano precisa... Mau trato é no matadouro pra o
mercado... Para estes animais agente não entrega seu sangue
aos espíritos. O que fazemos, fazemos para agradar aos
espíritos e nos curar.

Enquanto não existe jurisprudência sobre a questão legal a respeito desse


assunto, aguarda-se pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o
mesmo, sabe-se que, esta lacuna, deixa, de certa forma, margens para
diversas interpretações e práticas discriminatórias. O caso analisado no Rio
Grande do Sul, tonou-se uma referência nacional para análise de tensões
como a que é analisada neste ensaio.

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Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 77

Violação dos Direitos da Criança


em Idade Pré-escolar

1
por Maria Elisa Pacheco de Oliveira Silva

Refletir o que leva a família e escola a não cumprirem os direitos da criança pré-escolar,
assegurados pela Lei Nº 8.069/90, e quais as repercussões dessas violações para o
desenvolvimento integral da pessoa é o foco deste trabalho. Dados oficiais da Secretaria
Especial de Direitos Humanos - SIPIA, quando confrontados com os documentos
legais a favor dos direitos da criança, apontam a família, a escola e o Estado como os seus
principais agentes violadores. A leitura interpretativa das condições contextuais
violadas são discutidas à luz da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano
de Urie Bronfenbrenner, possibilitado uma profícua discussão sobre as condições e
preparos da família e da escola para cuidar, proteger e educar.

O principal foco deste trabalho é refletir sobre a violação dos direitos da


criança na família e na escola infantil, violação aqui compreendida como
crime, delito, transgressão, desrespeito e como os diversos tipos de maus
tratos, negligência, intimidação e fraude contra o que lhe é assegurado
universalmente nos textos legais, porém com menor visibilidade quando o
quadro não inclui a violência física (LEVÈFRE, 1993).

O interesse pelo tema, violação dos direitos da criança nos


microssistemas sociais, família e escola, surgiu em decorrência da
trajetória profissional da autora, primeiramente atuando como

1
Professora Assistente de Psicologia da Educação da UEFS, Mestre em Educação - UFBA, Doutorando Em
família e Sociedade Contemporânea (Universidade Católica do Salvador) UCSAL. Email: mel@uefs.br
78 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

professora, coordenadora e diretora pedagógica de escolas infantis,


quando observava mudanças nos comportamentos das crianças e
supostamente as relacionava à situações de desassistência, omissão, maus
tratos, negligência, entre outras ações prejudiciais ao desenvolvimento
delas. Posteriormente, como docente dos cursos de formação de
professores, supervisora de estágio curricular, consultora pedagógica do
ensino fundamental, e orientadora de alunos dos Cursos de Pedagogia,
acolhia várias queixas acerca do rendimento escolar, adaptação social,
desinteresse e desmotivação, fatores que estimularam a buscar
compreender como se dão os cuidados e a atenção que a criança demanda
da família e da escola.

No presente estudo a concepção de desenvolvimento adotada é abstraída


da abordagem Bioecológica de Urie Bronfenbrenner, porque concebe
vários fatores presentes na vida da pessoa, interferindo no
desenvolvimento, e assim sendo, não se considera apenas uma relação
causal, mas uma gama de fatores sociais, situacionais e psicológicos
(ALVES; EMMEL, 2008).

Para Bronfenbrenner (1996), os ambientes que moldam o percurso do


desenvolvimento humano são criados pelo próprio homem, ou seja, suas
ações e os vínculos que estabelece, físico, cultural, afetivo e social formam
os ambientes, tornando o homem também responsável por esse processo.

Mentor de um modelo teórico que orienta o estudo do desenvolvimento


humano, centrado nos contextos interrelacionados, desde o mais próximo
onde o sujeito se insere corporalmente até os mais abrangentes e
simbólicos, Bronfenbrenner possibilita-nos pensar em uma relação
concreta e subjetiva que permite analisar violação de direitos e
desenvolvimento da criança como um fenômeno produzido por múltiplos
e recíprocos fatores. A teoria de Bronfenbrenner alberga a nossa crença de
que seus fundamentos são necessários para identificar a imbricação e a
indissociabilidade entre o ser humano e o contexto onde vive.

Concordamos com o pressuposto de que o desenvolvimento humano


está imerso em uma relação bidirecional e multifacetada, pois não resulta
de relações causais, seja do ambiente sobre ele ou vice-versa. Ambos,
homem e ambiente se mantêm em constantes atualizações recíprocas por
trocas físicas e simbólicas, e essa dinâmica, no que toca ao
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 79

desenvolvimento da criança violada afeta seu potencial intelectual, afetivo


e social de maneira que reflete nas relações posteriores estabelecidas com
a escola, a família e outros grupos sociais.

A violação dos direitos da criança se traduz no descumprimento da atenção


e dos cuidados necessários ao seu desenvolvimento físico e psicológico.
Ocorre quando se desrespeita a lei vigente, se pratica atos ilícitos, como os
de violência, assédio moral, veemente intimidação, fraudes e abusos contra
a vontade da pessoa, refletindo de alguma forma negativamente em sua vida
(AZEVEDO, 2000).

A preservação e o respeito aos direitos da criança é consenso para a


sociedade e lei para o campo jurídico que os considera prioridade em
conformidade com os direitos fundamentais: direito à vida, saúde,
alimentação e educação; direito ao lazer, à profissionalização e cultura;
direito à dignidade e ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária. O Art. 227 da Constituição Federal de 1988 - CF/88
(BRASIL, 1988) determina que a criança seja salvaguardada de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
proposições que sofrem violações em diversas formas e graus.

Cabe ao Estado, família, escola e sociedade civil o dever de assegurar os


direitos da criança conforme o conjunto de leis vigentes, a saber: a CF/88; o
Estatuto da Criança e Adolescente, Lei 8.069/90 (ECA); a Declaração
Universal dos Direitos Humanos; Ass. Geral das Nações Unidas/48; e a
Convenção sobre os Direitos da Criança, Decreto nº 99.710/90. Mas as leis
não tem sido suficientes para inibir a violação independentemente da classe
social, credo e raça. As ameaças concretas advêm da ausência de políticas
públicas; da qualidade dos serviços de saúde e de educação; da precariedade
das condições financeiras e econômicas da população; dos meios de
comunicação alijados da formação cultural, moral e ética; e da própria família
que tem sustentado os altos índices de violência doméstica, (BRASIL, 2004),
quando lhe caberia juntamente com a escola a função de cuidar, proteger e
educar, e assim promover a integração/adaptação da criança à sociedade, do
contrário sobrevêm a desestrutura, a violência e a mortalidade.

A violação dos direitos da criança é um tema recorrentemente atual, com


repercussões concretas no cotidiano da família e da escola, espaços onde os
direitos são negligenciados, seja porque faltam recursos e infra-estrutura
80 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

para cuidar, proteger e educar, ou porque são motivados por crimes


bárbaros (esganaduras, esquartejamentos, estupro, cárcere privado),
tornando-os conteúdos de matérias sensacionalistas que denunciam as
condições de vulnerabilidade/risco a que as crianças estão expostas.

O elenco dos direitos da criança é tratado segundo o valor que se atribui a


cada ato violador. Assim, dá-se mais importância aos casos que envolvem a
violência sexual e física e ao abandono de crianças do que a outros que
somente o conhecimento dos direitos e a sensibilidade para apreendê-los
poderão caracterizá-los como atos violadores, a exemplo da privação de
espaço para brincar ou falta de vagas nas escolas. Para Lefèvre (1993),
quando não configura um tipo de violência mais brutal, a violação é
tolerada, pois implica em um ato imoral, mas como não se constitui em um
escândalo, provoca, no máximo, indignação e revolta à sociedade, como
deixar uma criança sozinha em casa, subtrair-lhe o afeto e a atenção ou
retirá-la da escola, diferentemente dos casos de pedofilia, homicídio, tortura
física, entre outros.

Mas, pensar a violação como um fato sem visibilidade e sem implicações no


desenvolvimento da criança encontra contradição quando confrontado
com o texto legal do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL,
1990), onde a criança é denominada como um ser em desenvolvimento e
designa a família, a comunidade, a sociedade, e o poder público como
responsáveis por seu desenvolvimento. Assim, as instituições sociais
tornam-se responsáveis por criar oportunidades para que o
desenvolvimento da criança alcance todas as dimensões humanas, quais
sejam, a física, psicológica, afetiva, moral, social, garantindo as condições de
vida com liberdade e dignidade.

Algumas vezes a violação da criança no ambiente familiar acaba


transcendendo este espaço e se estendendo à escola que ignora a carência
ou sofrimento dela. Nesse caso, a escola torna-se também um agente de
violação, uma vez que se abstém de cumprir os objetivos pedagógicos
que lhe requisitam cuidar, proteger e educar (MIGUEL, 2008). Assim,
seja na família ou na escola, quando a criança ainda é de tenra idade,
dificilmente entenderá que está sendo tratada inadequadamente e terá
dificuldade para denunciar e se proteger, o que reforça a necessidade de
uma atenção especial ao problema. Em síntese, ações ou omissões de
cuidados que provoquem danos ao bem-estar, à integridade física e
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 81

psicológica, à liberdade e ao desenvolvimento da criança constitui uma


violação aos seus direitos.

A família e a escola são os contextos mais próximos da vida da criança, nos


quais se pressupõe deva existir as bases para sua formação, de maneira que a
partir desses microssistemas sociais é preciso discutir as bases legais dos
direitos da criança e observar os aspectos e as possibilidades concretas da
escola e da família os preservar. Para tanto, outros requisitos preventivos
precisam ser objeto de atenção, tais como:
• identificar os indicadores de violação dos direitos da criança e
analisá-los segundo as especificidades contextuais;
• identificar os conflitos e os obstáculos no processo de
desenvolvimento da criança na escola de educação infantil, e
suas possíveis relações com a atenção e os cuidados recebidos
da família.

DEVERES / VIOLAÇÕES NOS MICROSSISTEMAS SOCIAIS

A família, instituição social intergeracional, onde as pessoas se ligam e se


constituem por vínculos de pertencimento, e onde também o cuidado e a
proteção se traduzem em atenção, orientação e afetividade revela-se,
algumas vezes, como um locus violador contra seus próprios membros,
repercutindo em sua organização e dinâmica interna e em outras
instituições sociais.

Estudos realizados sobre a violência contra crianças no ambiente familiar,


reconhecem que a sociedade brasileira assimilou uma cultura que dificulta
ou mesmo impede reconhecer no outro um sujeito de direito, de maneira
que o método para disciplinar mais usual, desde os tempos coloniais, tem
sido o castigo físico, reproduzindo a idéia de que a família tem o direito de
assim proceder, com fins a educar os filhos para o convívio social
(AZEVEDO, 1989); (AZEVEDO; GUERRA, 1995; 1998; 2000; e 2001).

Os registros atualizados por um sistema online da Secretaria Especial de


Direitos Humanos, em Brasília, a partir de 1997 já computou 1 milhão de
violações dos direitos da criança e do adolescente. O Governo Federal
disponibiliza para os Conselhos Tutelares de todo o país, o Serviço de
Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) registrar os dados
82 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

referentes que possibilitam identificar e ilustrar o panorama nacional


2
dessas violações , incluindo a família e a escola como os grupos sociais
mais violadores.

Segundo o SIPIA a mãe, o pai e a escola também se constituem agentes


violadores, e revela que o direito mais violado é o de convivência familiar e
comunitária, direito previsto no Art. 16 do Estatuto da Criança e
Adolescente. Quanto aos sujeitos mais violados há uma leve predominância
do sexo masculino sobre o sexo feminino, 59% contra 62%. O percentual
de violações dos direitos da criança é pouco mais elevado do que o
percentual de violações contra adolescentes, variando em 1,06%. Chama
atenção nos dados do SIPIA a escola despontar como o lugar público com
maior número de violações, e a discrepância dos números entre os estados
brasileiros não expressar a realidade das violações, mas a ausência de
denúncias, porque o Sul e o Sudeste aparecem com números de registros
maiores que as demais regiões do país, todavia atribui-se que essa diferença
deve-se a ausência de denúncias e não de casos de violação.

Os modelos das relações familiares algumas vezes encobrem as


ocorrências que protagonizam a violação dos direitos da criança e que
podem ser compreendidos a partir de diversos pontos de vista
conceituais, por exemplo, Koller e De Antoni (apud ALMEIDA;
SANTOS; ROSSI, 2006, p.279), por exemplo, citam alguns fatores
adversos que caracterizam o âmbito familiar, tornando-o um reduto
impróprio à criança, são os seguintes:

[...] a história anterior tanto da vítima como do abusador,


bem como a ausência de recursos terapêuticos e de
conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente; o
sentimento de solidão e de insegurança no ambiente familiar
somados aos segredos da família, problemas por estresse,
saúde e questões financeiras, o desemprego e o
empobrecimento; baixa auto-estima, comunicação
ineficiente na família, somadas às práticas disciplinares
punitivas com a naturalização e a banalização da violência e a
aceitação da punição corporal pela sociedade; e, ainda,
fatores relativos à cognição e à educação [...].

2
Quadro das violações em todo o território nacional; principais violações e os agentes violadores. SIPIA –
Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 83

Além dos fatores adversos que aumentam a incidência de violação aos


direitos da criança, outros estudos confirmam os dados oficiais dos
Conselhos Tutelares do país, como os realizados pela Universidade do Rio
Preto, em São Paulo, com a participação efetiva de 55 famílias, detectando
os seguintes índices: sobre a modalidade de violência física, as mães atingem
23% contra 5,5% por parte dos pais; todavia a associação da violência física
com a sexual o progenitor alcança 15,5% e 16% e quando se trata de
negligência; as mães fazem mais uso da violência psicológica e da
negligência, com índices de 27% (BRITO et al, 2005).

É importante saber de quem parte a violação porque a presença mais


constante pode estar determinando as condutas dos genitores. O referido
estudo não encontrou em nenhuma família a ausência total de algum tipo
de violação dos direitos, de modo que as modalidades conjugadas
apareceram em maior índice, e os tipos isolados em menor número. Neves
e Romanelli (2004, p.121) concluíram estudos sobre a violência dos pais
contra os filhos ponderando:

O pai e/ou a mãe que espanca, viola o corpo do outro sim,


mas, bate, espanca, agride e até mata em nome de tentativas
que precisam ser decodificadas. Em geral, eles reafirmam,
[...] bato para educar, bato para a polícia não bater amanhã, bato
porque amo meu filho. Batem, mas dimensionam o amor e o
espancar como se constituíssem um mesmo campo de afeto,
sem diferenciar o seu desejo e o desejo do outro, menor,
submisso, passivo.

Essas pesquisas revelam que a visão do violador pode estar distante do


que significa a violação dos direitos para a vida da criança, da família e da
sociedade. As experiências boas e más passam a fazer parte das histórias
pessoais e as famílias podem não saber o quanto e como essas marcas irão
influenciar os indivíduos, e assim os atos violadores tornam-se
silenciosos e passam a ser considerados comuns e banais. São diversos os
fatores que podem atingir as famílias e torná-las ameaças concretas contra
os direitos dos seus membros, sobremodo dos mais indefesos: idosos,
mulheres e crianças. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA) apresenta dados preocupantes sobre o
sofrimento de 6,5 milhões de crianças vitimadas anualmente no país,
dentro dos seus próprios lares e por seus familiares (AZEVEDO, 2000;
AZEVEDO; GUERRA, 2001).
84 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

A família lidera o “ranking” de maus tratos contra as crianças e as causas


externas ou agravos foram as principais causas de seus óbitos com idades
entre 1 a 9 anos, conforme dados do Ministério da Saúde em 2006. A partir
desses dados buscaram-se políticas de prevenção à violência e a promoção
da cultura da paz, cuidados para garantir o desenvolvimento da criança sem
comprometer seus valores para o futuro.

Mas, segundo Matias e Bazon (2005), nem mesmo os Conselhos Tutelares


têm números exatos da prevalência de ações contra crianças pequenas, pois
os casos acompanhados pela agência oficial de proteção infantil são
inferiores aos números que compõem a realidade. Para elas “urge a
necessidade de desenvolver ações de detecção e intervenção precoces” (p.
295). Elas declaram-se convictas da importância e necessidade de novos
estudos que postulem detalhar as variáveis sobre esse assunto para ajudar a
reconfigurar o quadro adverso às crianças.

O Ministério da Saúde, através de uma política de atenção integral à criança,


desenvolve, atualmente, uma linha de cuidados que abrange atenção ao
recém-nascido, promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno,
investigação do óbito infantil e ações de enfrentamento à violência. Essas
ações são motivadas por estudos e levantamentos de números referentes às
suspeitas ou confirmação de maus tratos, morbimortalidade por acidentes e
violências à criança em situação de violência, e pretende estender o apoio às
famílias, fortalecendo a rede de proteção social à criança (BRASIL, 2006).

A rede de proteção à criança se constitui pelas conexões interorganizacionais


dos seus agentes, representantes da família, escola, sociedade civil, entidades
governamentais, instituições de saúde, de segurança pública, jurídica, que em
diferentes períodos e de forma dinâmica se articulam com a finalidade de
garantir os direitos da criança assegurados por lei, prestando serviços de
pronto atendimento. Entretanto, as redes de proteção nem sempre tem
atuado de maneira a garantir o que se propõe, apresentando problemas
como os encontrados na pesquisa pelo IPEA/CONANDA (SILVA, 2005),
e sobre violação do direito de convívio familiar e comunitário, acusam-se:

Ausência de integração entre os atores que atuam nos vários


âmbitos da rede (promoção, defesa e controle), o que anula as
potencialidades do modelo sistêmico e gera ações
concorrentes entre os atores; falta de complementaridade
entre as medidas de proteção especial e a rede de serviços
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 85

sociais básicos, o que inviabiliza a garantia dos direitos de


crianças e adolescentes abrigados; atuação passiva dos órgãos
de assistência social em relação as crianças e adolescentes
abrigados e a suas famílias (AQUINO, 2004 p.367).

Na escola, no que diz respeito à proteção da criança é preciso pensar na


capacitação dos professores, investimentos em recursos humanos e
materiais, na conscientização do papel do profissional da educação em
relação às medidas preventivas contra a violação dos direitos da criança,
tais como: o diálogo com a família; a implantação de projetos de
valorização da afetividade na família e de sua inserção na escola; e a
inclusão de temáticas relacionadas aos cuidados com a criança discutidos
coletivamente (ASSIS, 1994; MIRANDA, 2003; 2004).

Os abusos contra a criança, sua incidência e intensidade leva-nos a


repensar sobre a relação da violação dos seus direitos e o seu
desenvolvimento. A criança pequena para livrar-se de ações violadoras
precisa da ajuda do adulto, mas na maioria das vezes os pactos de silêncio
que alimentam a impunidade se sustentam na tolerância, no medo ou na
conveniência que configuram o entorno dela. O silêncio nesses casos
funciona como proteção ao violador, e enquanto isso os demais
permanecem impotentes para cuidar e garantir o bem-estar da criança
(FALEIROS, 2000; OLIVEIRA, 2003; QUEIROZ, 2003).

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2000; 2001)


declara que o direito da criança tem sido violado mundialmente e sob
vários aspectos. Revela que apesar da Convenção dos Direitos da
Criança, realizada em 1989, a exploração, os abusos, a falta de saúde, as
doenças sexualmente transmissíveis, o trabalho infantil, o tráfico de
drogas, o deslocamento com armamento, as violências de modo geral
continuam presentes na vida das crianças. Nos países em
desenvolvimento, a cada ano, 51 milhões de nascimentos não são
registrados; 218 milhões de crianças a partir de 5 anos de idade estão
envolvidas no trabalho infantil; a cada ano 1,2 milhão de crianças são
traficadas; 300 mil crianças, com idade média de 8 anos, servem como
soldados em conflitos armados em 30 países; até os anos 90, 2 milhões de
crianças morreram servindo em ambientes de guerra; 70 milhões de
mulheres e meninas vivas sofreram mutilações genitais; 2 milhões de
crianças tornaram-se prostitutas; e 40 milhões de crianças sofrem de
abusos e negligências.
86 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Como a escola e a família se posicionam frente a esses dados? Qual o


compromisso que têm em relação ao respeito e cumprimento dos direitos
da criança? “Os artigos 13, 56 e 245 do Estatuto da Criança e do
Adolescente estabelecem que profissionais das áreas de educação e saúde
são obrigados a notificar (comunicar oficialmente) aos órgãos
competentes todos os casos suspeitos ou confirmados de maus tratos
contra crianças e adolescentes” (FALEIROS; FALEIROS, 2006, p. 96).

Isso posto, indagamos quais as causas e as motivações da família e da escola


para descumprirem os direitos assegurados à criança pela Lei 8069/90, e
quais as repercussões dessas violações para o desenvolvimento infantil?
Sabemos que para compreender as variáveis que se apresentam nos
microssistemas sociais é preciso considerar as interrelações entre o
processo, a pessoa, o contexto e o tempo (BRONFENBRENNER, 1996;
TUGDE, apud MOREIRA; CARVALHO, 2008).

A abordagem bioecológica admite que haja influência da criança nos seus


próprios ambientes, seja por sua cotidianidade, seja através de uma nova
atividade que passe a desenvolver, ou porque estabeleça novos vínculos
com outras pessoas e então ocorra o que ele denomina de bidirecionalidade,
ou seja, influências recíprocas entre a criança e o ambiente, aqui entendido
também como pessoas, objetos e símbolos (BRONFENBRENNER,
1996; SIFUENTES; DESSEN; OLIVEIRA, 2007).

Isso significa deduzir que quando a criança sofre algum tipo de violação,
como privação social, material, emocional, restringe seu universo de
significação à medida que também diminui suas possibilidades de
convivência com a diversidade de familiares, de espaços sociais e de
referências com pessoas que simbolicamente têm importância em sua vida,
havendo restrições no seu desenvolvimento natural.

A pessoa, o processo, o contexto e o tempo (PPCT) são aspectos


multidericionais interrelacionados, objetos de observância e análise do
desenvolvimento. Ao observar o aspecto pessoa atenta-se para as
constâncias e mudanças na vida da criança, considerando as características
pessoais dela (personalidade, interesses, objetivos, motivações), e
compreendendo que tais características influenciam os tipos de contextos
em que as pessoas se inserem e na maneira que neles vivem suas experiências.
(BRONFENBRENNER, 1996, MARTINS; SZIMANSKI, 2004).
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 87

Nesse modelo de desenvolvimento há ênfase nas características


biopsicológicas, porém nenhuma característica isoladamente exerce
influência determinante na vida da pessoa. Há destaque para três tipos de
características que influenciam e moldam o curso do desenvolvimento,
são elas: as disposições pessoais da pessoa que impulsionam e
operacionalizam os processos proximais - aqueles de interação recíproca
e cada vez mais complexa, que ocorrem entre o ser humano em
desenvolvimento com as pessoas, objetos e símbolos nos ambientes mais
imediatos, nos microssistemas; os recursos bioecológicos de habilidade,
experiência e conhecimento; e as demandas que incidem nas reações do
contexto social e interferem na operação dos processos proximais
(BRONFENBRENNER, 1996; MATURANO, 2006).

Martins e Szimanski (2004) defendem que o processo tem relação com os


papéis e as atividades cotidianas da pessoa em desenvovlimento. Assim, o
desenvolvimento está atrelado à participação ativa, requerendo, pois, para
adultos e crianças, uma interação progressiva com regularidade no tempo.
O terceiro aspecto do PPCT é o contexto e este envolve o microssistema,
o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema, ou
contexto imediato, pode ser ilustrado pelo ambiente familiar, onde o ser
humano deve receber cuidados básicos, constituindo-se no primeiro
sistema com o qual interage. Ali as relações se dão face-a-face e se
pressupõe que sejam estáveis e repletas de significados. Alves (1997, p.2)
assim caracteriza as relações no microssistema:

[...] reciprocidade (o que um indivíduo faz dentro do


contexto de relação influencia o outro, e vice-versa),
equilíbrio de poder (onde quem tem o domínio da relação
passa gradualmente este poder para a pessoa em
desenvolvimento, dentro de suas capacidades e
necessidades) e afeto (que pontua o estabelecimento e
perpetuação de sentimentos - de preferência positivos - no
decorrer do processo), permitindo em conjunto vivências
efetivas destas relações também em um sentido
fenomenológico (internalizado).

O contexto na abordagem bioecológica do desenvolvimento humano, o


mesossistema, a exemplo, compreende as interrelações entre dois ou
mais microssistemas, nos quais a criança participa ativamente; o
exossistema corresponde a outros ambientes onde a pessoa não participa
88 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

ativamente, mas de alguma maneira tanto afeta como é afetado pelo o que
acontece nesses espaços; e, por fim, o macrossistema que pode ser
pensado como consistências e regularidades que estão presentes nos
demais ambientes e fazem parte ou poderão fazer da sub-cultura ou da
cultura. Os sistemas de crenças, valores e ideologia é um exemplo. No
modelo PPCT, contexto de desenvolvimento é o meio global onde o ser
humano está inserido e onde ocorrem os seus processos de
desenvolvimento em todos os ambientes, do mais imediato ao mais
remoto (ALVES, 1997; MARTINS; SZIMANSKI, 2004).

Essa imbricação dos ambientes que a pessoa participa em seu processo


de desenvolvimento repercute na vida diária de maneira perceptível ou
não. O plano do dia da criança, a escolha da escola e do turno de estudo, o
cuidado com os objetos, a comanda dada, a recomendação ou o aviso, as
explicações concedidas, as lições diárias tanto formam como
deformam, como é no caso do convívio com o adulto violador dos
direitos da criança.

O último aspecto do PPCT, o tempo, se relaciona à maneira como as


mudanças ocorrem na vida das pessoas. As idéias de Bronfenbrenner e
Moris (1998) alertam para que se observe acerca das marcas e
transformações na vida das pessoas a partir dos eventos históricos,
inclusive interferindo e alterando o desenvolvimento de pessoas e
populações. Há também nessa abordagem uma ênfase nas estruturas
interpessoais para explicar como nas relações entre as pessoas perpassam
as transformações no processo de desenvolvimento (MARTINS e
SZIMANSKY, 2004).

Assim, não se pode olvidar a existência de relações entre crescer,


desenvolver, integrar socialmente a criança e formá-la como um sujeito
de direito que é. Logo, é preciso incorporar o significado dos fatos, a
subjetividade presente nas relações entre os sujeitos e entre as
instituições sociais, escola e família, além de enfatizar a pessoa enquanto
aquele ser que protagoniza sua história e assim reflete seu próprio
contexto (MYNAIO, 2008). Ao arrolar a escola e a família, instituições
que sofrem influências de diversos fatores e conjunturas, e por envolver
no centro de ambas a criança em desenvolvimento, torna-se
imprescindível ouvi-las e conhecê-las, verificar suas estruturas e
Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar 89

funcionamentos, suas potencialidades e dificuldades, também segundo


s u a s p r ó p r i a s p e r c e p ç õ e s ( B RO N F E N B R E N N E R 1 9 9 6 ;
BRONFENBRENNER e MORRIS, 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aproximação com os microssistemas sociais, família e escola a fim de


compreender a relação entre a violação dos direitos da criança e seus
processos educativos é uma tarefa complexa, e isso porque, por um lado
envolve a preservação de uma condição protetiva delegada às duas instâncias
educativas, e por outro, transparece atitudes acusatórias, embora balizadas
por análises macro e micro sociais, ao se levantar as possibilidades concretas
desses microssistemas responderem favoravelmente ao cumprimento dos
direitos estabelecidos à criança. A observação, então, mostra-se como uma
via propícia à apreensão dos agentes e fatos violadores, porque as pessoas
estarão sob o foco contextual, tanto quanto os processos por elas vividos,
enquanto o tempo e a frequência das ocorrências adversas e ou positivas nas
relações com a criança vão se refletir nas condutas e nos tipos de vínculos
que ela exibir nos ambientes sociais. A interlocução constante com os
agentes que organizam, administram e financiam as políticas e as condições
de bem-estar social da criança é a outra maneira de tangenciar as razões e os
meios existentes em cada contexto social, a fim de explicar a respeito da
existência de atos violadores. A conjunção dessas vias possibilita conhecer
os espaços escolares, os agentes educativos, e a dinâmica de funcionamento
das instituições de ensino. Também favorece a identificação de casos de
violação e de obstáculos ao desenvolvimento integral da criança, e o
acompanhamento da dinâmica da sala de aula e das atividades curriculares
mais amplas, incluindo a relação família-escola.

Conhecer os indicadores de violação dos direitos da criança é um dever


cidadão mas pressupõe conhecimento dos marcos legais, das políticas
públicas voltadas para o bem-estar social das famílias, pressupõe ainda o
interesse e a sensibilidade social, a interpretação de situações que à primeira
vista não parecem críveis, tampouco dignas de considerações ponderáveis.
Por fim, será preciso aliar os conhecimentos pré-referidos à apreensão
contextual, livre de pré-conceitos e sob a orientação dos saberes sobre os
processos educativos da pessoa humana.
90 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

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Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 95

A Verdadeira Personalidade Criminal

1
por Franklin Barbosa Bezerra

Os estudos atuais sobre o comportamento criminoso têm corroborado o poder da relação


familiar na construção de uma personalidade criminal. Quando a família não é ajustada
psicologicamente ela perde a capacidade de relação afetiva equilibrada, abrindo espaço
para a insegurança, ódio e o conflito. Nesta dinâmica afetiva familiar deficiente é que
geralmente se desenvolve toda violência e toda insensibilidade do futuro agente criminal.

Se soubéssemos quem sempre está por traz de toda destruição, das inúmeras mazelas, dos
inúmeros genocídios e das inúmeras perversões sádicas que cotidianamente nos enchem de
pavor, possivelmente, acordaríamos para avaliar nosso papel como cidadão e como
responsável por tudo que nos rodeia.

A incapacidade de aprender pelas experiências vividas ou pelas punições


sofridas, a completa ausência de remorso, o caráter exibicionista e a
incapacidade de autocrítica, junto a uma profunda insensibilidade,
caracterizam a verdadeira personalidade criminal.

Quando se fala de personalidade antissocial, deve-se levar em conta que


estes “tipos”, apesar de serem resistentes a cumprirem as normas e
códigos sociais, possuem uma conduta social camuflada e, no mínimo,
aceitável; mesmo apresentando um caráter autoritário e fascista,

1
CRP15 0361 Psicanalista. Professor/Supervisor da Clínica Escola do CESMAC. Professor da Matéria
Psicologia da Personalidade Criminal.
96 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

consegue ser admirado pelos inúmeros “Zés-ninguém” que os rodeiam e


empestam suas vidas. Camuflam-se em todas as profissões, exercendo o
poder e “protegendo” seus vassalos dos castigos da lei. Segundo nossas
observações o grande criminoso é aquele que não consegue se sensibilizar
com a miséria do outro, com a fome e com a desesperança. É aquele que
não consegue lutar por nada que não lhe beneficie diretamente, ou aos
seus protegidos.

As pesquisas sobre o comportamento criminoso têm detectado o poder do


contexto familiar no desenvolvimento de uma personalidade criminal.
Quando a família não é assistida psicologicamente, ela perde a capacidade
de relação afetiva equilibrada, gerando insegurança, ódio e desespero. Nesta
dinâmica afetiva familiar deficiente, é que, geralmente, desenvolve-se toda
violência e toda insensibilidade do futuro agente criminal.

Se soubéssemos quem sempre está por traz de tudo o que não presta,
das inúmeras mazelas, dos inúmeros genocídios e das inúmeras
perversões sádicas/necrofílicas que, cotidianamente, enchem-nos de
medo. Se soubéssemos o que aqueles que, às vezes, idealizamos e
veneramos são capazes de fazer. Possivelmente, acordaríamos para
avaliar nosso papel como cidadão e como responsável por tudo de bom
e de ruim que nos rodeia.

O maior papel do Psicólogo jurídico é o de ser um facilitador para o livre e


soberano exercício da cidadania. Só sabendo e lutando por nossos direitos,
conseguiremos reverter este caos que é a violência em nossa sociedade.

Diariamente, deparamo-nos com notícias sobre abuso sexual infantil. Para


muitos, isso representa dor; para outros, prazer. Ainda encontramos
aqueles que desconfiam dessa cruel estatística e atribuem a culpa à mídia
por expor, de forma dramática, esta triste realidade. A Psicologia sabe que
por trás dessa violência, às vezes, esconde-se a toxicomania, o alcoolismo, a
frustração, o desemprego, algumas psicopatologias etc. O que aterroriza é
saber que o maior gerador de violência contra a criança é a insensibilidade, a
negligência, a falta de maturidade emocional e a ausência parcial ou total de
afeto. Afeto não só pela criança gerada, mas também em relação à criança
que vive dentro de nós. Como posso amar sem ter sido amado? Como
posso ser afetivo com o outro se o que tive do outro foi dor e sofrimento?
A Verdadeira Personalidade Criminal 97

Segundo Sanderson (2004, p.16), ”Não está claro quão difundido é na


verdade o abuso sexual em crianças, ele é encoberto”. Ela sugere que é
“imperativo que pais e professores encontrem maneiras de conversar com as
crianças sobre os perigos do abuso sexual infantil na família e na
comunidade, e não apenas em relação a estranhos”.

Através de inúmeras pesquisas, detectamos que a grande maioria das


personalidades criminosas foi vítima de abuso sexual infantil, de brutalização
e de indiferença. Com isso, não temos a pretensão de generalizar, mas de
provocar reflexões! De apresentar um espelho para que o leitor possa
enxergar a sua própria realidade familiar e analisar como se relacionam e
como integram. Família afetiva é família aberta a diálogo; geradora de
confiança entre pais e filhos. A criança, fruto de uma relação deste tipo,
dificilmente é manipulável; não é a toa que abusadores de criança visam as
mais carentes de afeto e as mais problemáticas, pois elas, infelizmente, são
mais facilmente influenciadas e enganadas para servir a objetivos sórdidos.

A violência contra a criança é cometida, geralmente, por pedófilos ou por


seres que odeiam crianças (alguns pais, alguma mães, vizinhos etc.) Nem
sempre estes “seres” são estranhos ao ambiente familiar e quase nunca são
percebidos pelo discurso; é claro que um profissional experiente terá mais
condições de entender o que está por trás do discurso, de exagerar, nas
entrelinhas, a perversidade e a dissimulação. “O mal é quase sempre gerado,
alimentado e cultivado na própria carência afetiva do agressor, ele está lá ou
para desempenhar um papel secundário ou para ser o ator principal de toda a
destruição e de toda a ruína.”

Segundo Sanderson (2004, p. 88), “Acredita-se que aproximadamente 30%


de todos os abusos sexuais contra crianças são cometidos por adolescente.
As famílias podem ser grandes geradoras de humanos sadios, equilibrados,
criativos, alegres e sensíveis; como também pode ser fonte geradora de
criminosos cruéis, estupradores e abusadores de crianças. Se uma criança
recebe ódio, indiferença, crueldade e sobrevive; alguém vai ter que pagar de
alguma forma por tudo isso. Essa vitima deverá ser alguém que represente
simbolicamente este agressor internalizado, ou toda sociedade. Se eu
(criança) fui agredido pelas figuras mais significativas de minha vida (pais),
talvez, desenvolva a crença de que a agressão é só uma forma, ou a única
forma de relacionamento interpessoal! Se meus pais fizeram comigo, porque
não fazer com os outros”.
98 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Atualmente, a mídia tem se deparado com casos criminais que evidenciam


a existência de “seres humanos” capazes de atrocidades e crueldades
contra seres indefesos ou que jamais viram ou conviveram. Muitas vezes,
são criminosos que, aparentemente, convivem satisfatoriamente em
sociedade, nunca cometeram nada que os desabone ou os coloque como
suspeitos de possuírem uma personalidade cruel e dissimulada.
Encontramos outros que parecem implodir numa fúria cega e desmedida;
tamanha violência e brutalidade que até aos mais próximos fica difícil de
acreditar. Estamos falando da personalidade criminal conhecida como
Serial Killer. Segundo Palomba (1995, p. 223), “geralmente apresentam
deformidade na falta de senso moral, na afetividade subdesenvolvida, na
insensibilidade e no egoísmo, podem apresentar uma mente organizada,
serem loucos ou fronteiriços” difícil de diagnosticar, pois apresenta um
comportamento homicida brutal comumente imotivado. Existem muitas
formas de destruir alguém, formas muito mais cruéis do que o assassinato;
mas o que mais nos choca é a passagem ao ato na forma homicida,quando
isto acontece, necessitamos avaliar se o homicida é organizado mental ou
portador de alguma doença mental.

Existem patologias mentais que podem estar por trás de um serial killer,
Segundo Palomba (1995, p.24), como certos tipos de esquizofrenia, a
psicose paranóide, ou também, para alguns, a eplepsia condutopática; no
entanto, por mais difícil que pareça, a maior parte deles não possui
nenhuma doença mental. Segundo Butcher (1971, p.76), “Não apresentam
o que mais caracteriza as doenças mentais que são as alucinações e os
delírios, apresentam geralmente ausência de afeto e senso moral, um
caráter exibicionista, calculista e manipulador, são verdadeiros mestres da
camuflagem, são meticulosos e ardilosos na execução do crime e na
ocultação de evidências que possam prejudicá-los”. Tudo isto, segundo
Lindner (1972, p.144), “porque não são afetados por algo que sempre nos
denuncia: a ansiedade antecipada,vulgarmente falando, são frios o
suficiente para serem interrogados e acusados por algo que sabem que
cometeram, mas que não manifestam nenhuma ou quase nenhuma
emoção”. O poder da sedução é sentido através da identificação que
muitos sentem por estes tipos. Por que será que muitos serial killer
possuem um fã clube tão apaixonado e fiel? Por que recebe tanta proposta
de casamento? Por que alguns são protegidos e defendidos por cidadãos
acima de qualquer suspeita?
A Verdadeira Personalidade Criminal 99

O importante é que não esqueçamos de que o serial killer, organizado


mentalmente, é um ser antissocial sem, necessariamente, apresentar uma
conduta antissocial. Eles precisam, para serem aceitos, de um
comportamento social que não os denigra, pelo contrário, precisam ser
vistos como educados bons vizinhos, às vezes, até bom pai e um bom
marido, tudo faz parte da camuflagem. Todas as profissões estão cheias
destes seres humanos, eles estão em todo lugar, o que constantemente os
denunciam é a aversão que manifestam contra figuras de autoridade,
códigos sociais e normas de convívio social.

Só são corretamente diagnosticados se passarem por avaliações


psicológicas e psiquiátricas precisas, muitas vezes, necessitando também de
uma análise neurológica.

Embora com as inúmeras tentativas de encontrar sua origem na genética, os


cientistas têm reconhecido que sua origem está muito mais ligada a uma
dinâmica afetiva familiar deficiente, a muita indiferença e muita violência
familiar. Apesar de possuírem, desde que organizados mentalmente, muita
criatividade, muito ritualismo e muita capacidade para ocultar provas,
quando os órgãos de segurança se empenham na sua caça, eles são presos.
Eles só não serão capturados se alguém que se destinou a procurá-los não
conseguir vencer a identificação com eles ou com o que eles fizeram.

No início, a Psicanálise entendia a Perversão como tudo que diferia do


chamado ato sexual normal. Ato sexual normal, na época de Freud,
significava aquilo que acontecia por baixo dos lençóis e que, praticamente,
representava a penetração pênis/vagina. Todos sabiam que existia mais do
que isso, mas, preferiam manter ocultos estes comportamentos do discurso
social. Quando a Psicanálise começa a estudar as histéricas e a sexualidade
infantil, começa a enxergar a presença de outras formas de práticas que
apareciam neste ato sexual normal. Este foi o grande avanço dado por
Freud ao que chamamos de perversões.

O tema perversões é, talvez, o ponto mais crucial de toda teoria


psicanalítica. Explicá-lo, com o pouco espaço que temos, seria impossível.
A meu ver, o mais importante é tentar esclarecer se a pedofilia pertence ao
mundo das perversões ou das psicoses (doenças mentais). A pedofilia é,
para a Psicologia, uma desordem psicológica, principalmente, porque ela
manifesta uma preferência sexual exacerbada de um adulto homem por
100 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

crianças de até 12 anos. Ora, alguém poderia levantar a hipótese de


conhecer uma criança com esta idade, mas que aparenta muito mais, que já
possui uma estrutura mais adulta etc. Não nos esqueçamos do até doze
anos. Na maior parte dos casos, as crianças não chegam a 10 anos!

Sabemos o quanto é negativo para um filho (a) assistir ao ato sexual dos pais.
Imagine a tragédia dele fazer parte de um ato sexual. Por mais madura e
encorpada que seja a criança, sua personalidade não consegue elaborar
positivamente o sexo, como “alguns” adultos conseguem. Se a criança
abusada por estranhos irá apresentar sequelas psíquicas dolorosas e
desestruturantes, avalie este abuso sendo cometido por seus familiares ou
por pessoas próximas a família? As características mais conhecidas destes
agressores são: o interesse exagerado de alguns adultos por crianças; o
agressor, normalmente, tem mais de 30 anos e adora tudo que diz respeito a
crianças, geralmente, usa de presentes e confeitos para atrair a amizade das
crianças; procura atividades profissionais nas quais possa ter um contato
prolongado com crianças; adora visualizar o corpo nu de crianças, muitas
vezes, adora tocar, apalpar e acariciar crianças; adora colecionar coisas
infantis; procura crianças que são tratadas com indiferença e brutalidade,
aquelas que vivem de casa em casa e às oriundas de lares desfeitos, Na
maioria das vezes, são vistos como sociáveis, prestativos e até solidários
pelos vizinhos. Cuidado com eles!!

Estas características citadas podem ajudar a descobrir um pedófilo, como


também ajudará a perceber se o interesse exagerado de um adulto não
camufla um abuso sexual, ou uma tentativa de estupro de uma criança. O
mais importante é que saibamos que esses tipos sempre existiram; e o pior
de tudo, pode morar do nosso lado, até do lado da nossa cama. A Internet
possibilita para eles novos contatos, mesmo com o risco de serem
desmascarados. Eles se sentem atraídos pela possibilidade de transgressão.
Quando são submetidos a testes e entrevistas psicológicas, não apresentam
nada que possa determinar doença mental. Existem crimes contra crianças
praticados por psicóticos fanáticos, mas são mais raros. O crime dos
pedófilos é preferirem, ao invés de adultos, crianças para se satisfazerem
sexualmente. Talvez com algum sentimento de culpa, mas com dolo total.

Os atos de violência, como são os assaltos, estupros e os sequestros


relâmpagos, têm um poder nefasto no equilíbrio mental das vítimas.
Existem autores que os comparam a uma espécie de câncer da mente.
A Verdadeira Personalidade Criminal 101

Quando pessoas são atingidas por estes atos, elas, geralmente, vivenciam
uma situação conflituosa de perder a confiança e a segurança naquilo que
faziam. Desenvolvem uma insegurança e um medo exacerbado de
continuar produzindo, trabalhando e, ao mesmo tempo, de viver situações
de prazer que faziam parte do seu cotidiano. Imagine o que representa para
os pais a ida de um filho (a) a uma boate depois daquela onda de violência e
brutalidade que todos assistimos? Imagine as famílias que perderam ou
quase perderam seus filhos em episódios semelhantes?

Para muitos, essa violência é fruto do desemprego, das diferenças sociais,


dos preterimentos e dos preterimentos sociais; para outros, ela é fruto da
impunidade proporcionada pelas ingerências políticas, pelos
apadrinhamentos políticos que protegem seus afilhados de receberem a
penalização devida. Alguns atribuem apenas fatores biológicos à gênese
destes absurdos sociais. Mas, afinal, o que explicaria o fenômeno nefasto da
criminalidade?

Outro aspecto que precisa ser visto é a potencialização da criminalidade no


sistema penitenciário, enquanto não nos conscientizamos de que o preso
um dia cumprirá a pena e voltará para a sociedade, pior do que entrou. E isto
não é proteção a ele, mas a todos nós, se você entende que a criminalidade é
um problema que tem de ser resolvido, não só dentro da família, mas dentro
do sistema prisional. As verdadeiras personalidades criminais devem ser
tratadas como personalidades fabricadoras de servos que, devidamente
manipulados, estarão por trás de rebeliões e uma infinidade de crimes
dentro e fora da prisão. Vamos lutar para que o operador de saúde mental,
no sistema penitenciário, seja devidamente treinado e preparado para lidar
com estes “tipos” que, na maior parte das vezes, estão fora da prisão, mas
quando entram fazem um estrago nefasto na instituição mais despreparada
e brutal que se chama, vulgarmente, de CADEIA.
102 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência 103

Psicologia e Direitos Humanos:


Contradições Geradoras para um Fazer Crítico1

por Marcelo Ribeiro

O surgimento da psicologia, enquanto ciência, coincide com o surgimento


de novas aspirações humanas na modernidade. A crença numa ciência
capaz de iluminar a obscuridade do mundo humano, a razão como suporte
dessa ciência, a produção de conhecimentos e tecnologias para fins de
previsão, controle e reprodução, coincidem com o afã de um mundo mais
justo, mais liberto e realizado.

Embora os avanços, conquistas e o reconhecimento de muito do que


somos seja fruto desse movimento coincidente da ciência com as novas
aspirações da modernidade, não há como negar as contradições intrínsecas
a todo esse processo.

Pensar acerca da psicologia e dos direitos humanos é arriscar-se numa


reflexão que envolve o questionamento da modernidade2. E esta, para nós,
parece estar marcada por uma promessa, por um desencantamento, por um
deslumbramento, por um aumento inimaginável da produção de riquezas, por uma
inconstância e impermanência e por uma abertura à vida híbrida.

1
Este texto é uma versão revisada e atualizada de um trabalho apresentado na mesa redonda sobre Psicologia e
Direitos Humanos, na II UNPSI da Universidade Salvador, em março de 2004.
2
Preferimos utilizar o termo “modernidade” e não “contemporaneidade” ou “pós-modernidade” porque
achamos que as condições básicas do projeto civilizatório que nos marca foi constituído, sobretudo, na era
moderna.
104 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

A partir de agora, iremos desenvolver cada uma dessas marcas, tentando


contextualizá-las enquanto processo do mundo moderno que desemboca
na contemporaneidade, daí ganhando novos contornos. Esse processo,
como veremos, parece ser atravessado pela contradição.

A promessa da modernidade se deu através da crença da ciência que, guiada


pela razão, proporcionaria um mundo melhor. Esta promessa, alicerçada num
sistema capitalista e nas suas múltiplas roupagens de desenvolvimento, instigou
massas humanas ao longo do tempo para produzir certo mundo. Embora os
embates, as divergências e as várias versões da “locomotiva da modernidade”
se dessem de modo, muitas vezes, acirrado, mobilizou e constituiu um tempo.

A promessa da modernidade não se cumpriu plenamente. Pelo menos, não


em termos do que havia prometido. Entretanto, o seu êxito se deu na
capacidade mobilizadora para dar curso a todo um processo de
modernização das relações de poder e dos meios de produção.

Os resultados de uma promessa que não cumpre seus fins, mas sim, a
radicalização e o desenvolvimento dos seus meios, geram algumas
consequências. Não obstante, seria desviar muito querer abarcar todas
estas. Por isto, nos damos por satisfeitos apontar algumas consequências.

A primeira, diz respeito a uma crescente dependência dos meios. Uma


promessa que não cumpre seus fins, mas reafirma seus meios, pode renovar
o acreditar na própria promessa. Isto, por sua vez, tende a gerar
dependência. Parece que não sabemos mais viver sem celular, internet,
televisão, supermercado, forno micro-ondas, descascador de cebolas,
analgésicos ou psicoterapias.

A dependência, nesse caso, indica um controle. Se alguém depende de algo é


porque existe algo subordinando alguém. Somos, ao final das contas, todos
subordinados. Dependemos tanto de tantas coisas e condicionamos muito
das nossas vidas que, dessa forma, somos, muitas vezes, incapazes de
suportar a ideia de romper com todos esses meios que prometem uma vida
melhor. Ao mesmo tempo, necessitamos muito e, cada vez mais, desses
meios. Nesse ritmo dinâmico de depender e necessitar cada vez mais de ter,
o sistema torna-se eficiente. Daí, gera para si um ininterrupto mercado
consumidor que se renova consumindo o próprio consumidor. Este, por
sua vez, para fugir da dor, da sua voracidade dependente, consome a si.
Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico 105

A segunda consequência tem por característica a decepção, o


questionamento, o embate e a busca por outras respostas de existência.
Neste sentido, observa-se a própria contradição, inerente não só à condição
humana em constante “vir a ser”, mas, sobretudo e, particularmente, na
modernidade.

Esta contradição nasce também de uma promessa que não se cumpre, mas,
principalmente, de uma promessa que não se pode cumprir. A contradição
parece ser uma questão muito profunda para se entender a condição
humana da contemporaneidade. Somos forjados pela contradição.
Queremos ser algo que não somos, descobrimo-nos outros em um ritmo
que nos escapa, negamos o que nos constitui e necessitamos buscar algo
que não sabemos. Toda essa problemática faz parte da nossa atual
itinerância e história, empurrando-nos, cada vez mais, para a incredulidade
de um mundo melhor.

Antes de passarmos para a próxima “marca”, é importante salientar a crítica


que um amigo, Zeca Medeiros3, fez em relação à questão da decepção.

A decepção é de cada ser humano, de cada ser psicológico que, quando esteve diante da
promessa, não apenas esperou que ela se cumprisse. A promessa foi, subliminarmente, ou,
inconscientemente, feita por nós, a nós mesmos. Esse, a meu ver, é o grande trunfo do
capitalismo moderno: assumirmos as promessas que não, efetivamente, fizemos.

Ao sermos colocados diante do modo de produção capitalista, não tivemos a exata


dimensão no que nos metíamos. Em sociedade, nada, mesmo nos dias atuais de tanta
informação e ‘conhecimento’ somos capazes de estarmos com a verdade dos processos que
somos envolvidos. Não conhecemos o que nos envolve, apenas sentimos e seguimos em
frente. Assim como no amor, não racionalizamos o que vivemos, apenas vivemos. Assim é
o capitalismo, não existiu alguém de fora nos prometendo nada, nós nos fizemos a
promessa e quando ela não se cumpriu, fomos nós que nos traímos. Penso que daí nascem
as frustrações, as ansiedades e as sensações de incapacidade e impotência por termos nos
traídos, por não termos cumprido a promessa que nós ‘fizemos’. Porém, finalizo
relembrando: NÃO FIZEMOS A PROMESSA, pensamos que nós tivéssemos a
liberdade de fazermos, mas não fizemos.

3
Jornalista e estudioso das ciências sociais. Esta crítica se deu a partir de mensagens via e-mail, em 22 de abril
de 2004, em relação ao texto que aqui se apresenta. Como achei de importância esclarecedora, resolvi
colocar na íntegra.
106 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Acreditando que ficou relativamente relacionada à questão da promessa


não cumprida (em seus fins) com a decepção, já podemos passar para a
próxima marca do momento humano, a saber, o desencantamento.

Para Max Weber (2003), o desencantamento foi imprescindível para o


avanço da ciência e, portanto, para modernidade. Gradativamente, as
relações entre o homem e o sagrado foram mediatizadas. O homem
perdeu a relação com o sagrado e esta perda também danificou uma
relação humana que constrói os (sagrados) direitos humanos.

Mais uma vez, recorrendo às críticas de Zeca Medeiros, em relação à


perda da relação com o sagrado, este nos diz:

(...) direitos humanos (...) não o globalizado, mas aquele que faz com que um ser
humano veja o outro na sua versão individualizada, não homogeneizada para sermos
um grande mercado de consumo. O direito do outro não é, a meu ver, o direito de ser
negro, mulher, homossexual, deficiente, etc, mas o direito de termos o que comer, o que
vestir, onde estudar, morar, não ser assassinado nas ruas. A categorização nasce para
dar uma nova roupagem da discussão do social, discussão (desculpe se o termo é da
década de 60, mas...) essa apenas burguesa. Sempre haverá seres humanos que não
tolerarão o outro, a cor do outro, o aspecto do outro, a opção do outro, mas não que esse
seja um vaticínio da humanidade, mas o é do sistema de produção competitivo, sem
contemplação do belo...

Diante dessa perda da relação com o sagrado, que começou com Deus, e
que seria também uma relação divina entre os próprios homens, abriu-se
espaço para uma relação do homem com o mundo mais
instrumentalizada e mais individualizada. É neste sentido que Max Weber
(2003) nos diz:

O fim precípuo de nossa época, caracterizada pela racionalização, pela


intelectualização e, principalmente, pelo ‘desencantamento do mundo’ levou os homens
a banir da vida pública os valores supremos e mais sublimes (p.57).

O homem soberano, dono de si, conquistador, explorando os limites


insondáveis das sombras, transformando extraordinariamente os
recursos da natureza, enfim, o homem moderno destemido teve que
desencantar o mundo, na compreensão weberiana, para subordiná-lo.
Entretanto, este desencantamento deixou-o vazio.
Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico 107

Vivendo a necessidade do desencanto para fazer valer sua promessa e


vivendo um desencantamento do mundo, o homem redescobriu-se só.
Mais uma vez, entre destinos que se impõem, o homem é chamado a dar
respostas frente à contradição.

Minimamente, duas possibilidades de respostas, numa perspectiva


existencialista, são aqui esboçadas. Uma pode estar relacionada ao homem
que, ao redescobrir-se, só busca a voracidade de novos desencantamentos
para suas últimas conquistas e, consequentemente, satisfações
apaziguadoras de sua angústia. A outra possibilidade é encontrar, na relação
com o outro, um sentido para existência, de um modo que possa assumir e
sustentar a angústia de estar só no mundo. Isto nos parece ser uma das
possíveis inspirações para a reflexão acerca dos direitos humanos. Mas, por
enquanto, falemos um pouco mais sobre as satisfações apaziguadoras, uma
das respostas tipicamente modernas.

Essas satisfações apaziguadoras se tornam possíveis porque há um


deslumbramento em relação ao poder. Nesse sentido, é que o narcisista se
perde e se deslumbra com o próprio reflexo, construindo a sensação e a
relação com a imagem de si mesmo, no disfarce de não estar só, a partir de
um poder heterônomo.

De acordo com Piaget (apud La Taille, 1992), a moral heterônoma está


diretamente ligada à qualidade das relações autoritárias, onde um sujeito
não interage com a alteridade do outro. A relação é espelhada e
alimentada por deslumbramento de si mesmo no outro. Este
deslumbramento se relaciona com a produção, não só de bens, mas
também com a produção humana.

Assim, o deslumbramento da própria imagem põe em andamento um


projeto disseminado de homogeneizar e padronizar a vida. Isto é facilmente
observado no modo de vida que busca as padronizações nas organizações,
nos critérios de qualidade adotados dos diversos espaços sociais, nas
clonagens, nos alimentos geneticamente modificados, no que é
politicamente correto, nos meios de comunicação unívocos e nas demais
tecnologias forjadoras de subjetividades padronizadas (Santos, 2000).

O deslumbramento de si leva o homem a querer ser todo igual. O


deslumbramento do seu poder sobre o outro e o mundo leva a querer
108 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

aniquilar o que denuncia a sua diferença. O deslumbramento irradia no ser


humano uma condição de não ser-sendo4, tentando paralisar ou, no
mínimo, prever e controlar o seu vir a ser.

Portanto, à medida que o homem tenta potencialmente fazer do outro seu


igual, faz também de si um igual para si. Este empobrecimento do múltiplo
e da alteridade cria dificuldades, principalmente, para o campo das relações
humanas. E, no que diz respeito à questão dos direitos humanos, isto parece
ser algo grave. Atualmente, vivemos um acirramento da intolerância entre
as pessoas, entre as culturas e entre as nações. O mundo parece ter se
cindido entre o bem e o mal, entre bons e maus, entre deuses e demônios,
não havendo espaços para interfaces ou diálogos.

Este cindir do mundo não separa apenas valores. A divisão entre pobres e
ricos e entre países centrais e periféricos é também evidente. Embora a
produção da riqueza humana, dos bens de consumo, de alimentos, de
tecnologias e informação seja, extraordinariamente, marcante na
atualidade, como apontado por Eric Hobsbawm (1995), não são
compartilhados por todos e nem pela maioria.

Este aumento da riqueza, dos índices de qualidade de vida, de modo geral, e,


ao mesmo tempo, a desproporcionalidade disso tudo, ou seja, o aumento da
concentração de riqueza ou da distância dos mais ricos para os mais pobres
é algo típico do Brasil, como observado por Minayo (1999), mas também
algo da realidade mundial, principalmente, se calcularmos e localizarmos
toda produção global. Assim, comparando e mensurando também as
distâncias dos países mais ricos para os países pobres, muito provavelmente
observaríamos que, embora haja um aumento da riqueza, em termos
globais, há um aprofundamento ou um distanciamento entre os que mais
têm e os que menos têm.

Coincidência ou não, este aumento global de riqueza e distanciamento entre


os mais ricos e pobres acompanha, historicamente, uma crescente
militarização planetária. Ainda segundo Eric Hobsbawm (1995), o mundo
vive, na modernidade, uma ascendente prática de guerras em massa.
Provavelmente, essa disposição para hecatombe, essa indústria milionária

4
Aqui me refiro a ideia do ser-sendo, desenvolvida por Dante Gallefi, em seu livro “O ser-sendo da
Filosofia”. Salvador: EDUFBA, 2001. Esta ideia indica que ser se dá na relação com o outro no mundo.
Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico 109

de máquinas de matar sustente uma permanente criação do inimigo.


Precisa-se de um inimigo para justificar defesas e um mercado de guerra.
Além disso, objetivamente, num mundo muito cindido e de grandes
distâncias, a ameaça e a imposição bélica parecem ser saídas que asseguram,
pelo menos superficialmente, as posições hegemônicas de poder.

Certamente, esta também é uma das principais marcas que atravessa a


questão dos direitos humanos. A ameaça constante de guerra, um mundo
belicoso, armamentos de grande poder de destruição em massa, as
injustiças sociais, as disparidades de vida, o medo do revide do outro, as
renovações constantes de ideologias totalizadoras e a própria
insuportabilidade dos excluídos geram um mundo onde o homem,
enquanto ser, perde importância.

Os direitos individuais, os direitos coletivos, o direito a dignidade de vida e


todos os demais direitos são atropelados em nome da necessidade de
defesa, de vigilância, de controle e de segurança. As ruas, os prédios, as
casas, as escolas e outros espaços sociais passam a ser vigiados por câmeras,
sensores, patrulhamentos diversos, enfim, pelo olho que tudo vê. Parece
que o poder panóptico tão bem analisado por Foucault (1989; 1993)
ganhou sua versão mais refinada na atualidade.

Tal poder termina oprimindo o ser humano, pois este fica muito mais a
mercê de interesses extrínsecos à própria vida. Sua liberdade passa a ser
tolhida, seus passos mais controlados, sua vida mais previsível e sua
importância, enquanto existente, cada vez mais reduzida a números. O ser
humano perde importância, justamente, naquilo que parece caracterizá-lo,
ou seja, na constante realização de sua humanidade.

Não só o ser humano perde importância enquanto ser. Tudo parece perder
algo, tudo parece estar reduzido à produtividade, à eficiência, ao econômico
e ao deus ex machine do mercado. Essa redução do ser, por sua vez, veio
acompanhada com o tic tac do relógio, com a máquina do tempo. Esse
ritmo acelerado, que teve início na era moderna, ganha mais velocidade no
mundo atual. Agora não são mais as buzinas das fábricas acordando cidades
e nem relógios de bolso marcando a chegada do trem. Agora são os micro
chips em tempo virtual-real transcendendo a sua própria lógica linear. A
produção, com o tempo on line, atinge níveis de velocidade que o homem já
não é mais capaz de acompanhar.
110 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

O controle do tempo e a sua submissão a uma lógica instrumental é uma


marca herdada da modernidade. Nela, o tempo saiu do seu ritmo cíclico,
orientado pelo movimento da natureza, e iniciou sua contagem
emblemática num relógio formado por catracas e engrenagens. Agora, na
atualidade, um novo paradigma é construído: a máquina digital e seu
tempo virtual.

O tempo engole o homem e o mito se faz: Chronos se alimenta do homem


que nasce a cada tempo. Assim, a inconstância e impermanência das coisas
também forjam o homem, mas não de um modo processual e integrador, e
sim de modo esquizofrenizado.

As mudanças são tão rápidas que não há tempo para o homem apreender as
diversas coisas por ele, supostamente, experimentadas. Não só as coisas
materiais que são descartáveis, mas também as próprias pessoas e relações
são dimensionadas nessa perspectiva da inconstância, da impermanência e
da descartabilidade, pois num momento servem e, logo no momento
seguinte, já estão superadas e descartadas.

Em parte, esta velocidade ganhou novo ritmo (mais voraz) com o advento
das novas tecnologias, principalmente, as relacionadas com a informática
e as telecomunicações. Estas tecnologias lançaram o homem numa
vivência muito particular. O homem reinventa o tempo e se reinventa
nesse tempo. E ainda é cedo para se ter uma boa ideia dessa condição, que é
também contraditória.

Podemos constatar que esse tempo tem implicações profundas na questão


dos direitos humanos. Afinal, a qualidade das relações humanas e o contato
da pessoa com ela mesma ou com a outra estão atrevessadas por um tempo.
Por um tempo que não para, por um tempo que devora.

Como podemos perceber, até o momento, a contradição parece ser um item


que se manteve ao longo de nossa reflexão acerca da modernidade e da
relação entre a psicologia e os direitos humanos. Uma dessas sínteses
possíveis da contradição iniciada na modernidade - e que chega até os dias
de hoje -, diz respeito às fronteiras, aos limites, aos territórios e à identidade.

Como alguns apontam (Serres, 2001; Silva, 2000), a compreensão da


identidade tem sido totalmente transformada. Se antes a identidade era vista
Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico 111

de modo estanque, permanente, constante e cristalizadamente classificável,


atualmente, passa a ser concebida enquanto processo. As noções de
fronteira, territorialidade e limites são profundamente alteradas.
Adentramos na era do hibridismo, da mestiçagem, do mundo líquido, do
redesenho internacional das nações, da própria redefinição de nação, de
territórios e limites.

A contradição parece acompanhar também esta marca. É importante


atentar e chamar atenção para a questão dos direitos humanos, no que diz
respeito à construção de novas (híbridas) identidades.

A “hibridade” ou a miscigenação da identidade não parecem garantir os


direitos humanos. Novas composições podem ser elaboradas, novas
desenhos territoriais podem ser articulados, mas enquanto o ser humano
não estiver sendo convocado para discutir ou mesmo ouvir estas tendências
ou posições correrá riscos. Estes, não mais por condenação ou subjugação
de certo grupo humano em nome de uma pureza de raça, mas,
provavelmente, por novas formas (híbridas) de opressão.

Mesmo considerando que nossas exposições tenham resvalado em algo


sobre os direitos humanos, ainda cabe uma pergunta basilar: afinal, o que
vem a ser direitos humanos?

A questão dos direitos humanos parece ser resultado de um amálgama de


condições e que passa, sobretudo, no recorte por nós privilegiado, ou seja,
pela contradição do nosso tempo. As ciências e, concomitantemente, a
modernidade erigiram um mundo repleto de contradições onde as
injustiças, ameaça à vida, a desvalorização da vida humana e desequilíbrios
intensos, nos diversos ecossistemas do planeta, são vividos ao lado de
conquistas nas mais diversas áreas.

São essas conquistas, avanços tecnológicos e científicos, explorações aos


limites insondáveis da vida, exuberância da criação artística e, até mesmo, a
reflexão crítica de tudo que acontece no processo histórico que chama
atenção, mas chama atenção por coincidir com outras marcas do tempo.
Marcas que atingem diretamente os direitos humanos. Aí está a contradição.
Entretanto, a contradição não nos parece ser o problema, ao contrário, esta
tende a impulsionar, a gerar possibilidades de questionamentos, reflexões,
agitações e mudanças.
112 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

As contradições forçam a discussão e, em particular, exigem da psicologia


respostas imediatas. Estas, por sua vez, não estão, necessariamente,
destinadas a reformar ou mesmo aperfeiçoar o sistema que hora vigora no
mundo. Às vezes, as respostas que os seres humanos buscam dar e, mais
precisamente, que a psicologia procura e deve oferecer, ao longo da história,
estão relacionadas com a ruptura do modelo sócio-econômico-político e
com os seus paradigmas norteadores.

A relação da psicologia com os direitos humanos traz algo de resgate.


Resgata o valor humano, não mais etnocêntrico, mas o valor humano situado
entre os diversos seres, numa relação de complentariedade. Esse resgate tem
a ver também com a afirmação de que todas as pessoas têm direitos básicos
inalienáveis e que devem ser garantidos como condição fundante para vida.
Na verdade, é uma postura ética que norteia toda e qualquer relação entre as
pessoas. Ou, como diria o poeta, “gente é para brilhar”.

Esse resgate, ou mesmo essa inauguração, pode ser um dos sentidos da


psicologia para a questão dos direitos humanos. Isto tem a ver com a
compreensão dos aspectos psicológicos presentes na problemática do
homem na atualidade e as suas consequências.

A psicologia pode também ajudar, à medida que proporciona compreensão


da problemática e das consequências, mas, sobretudo, quando contribui para
práticas afirmadoras dos direitos humanos. Estas, por sua vez, têm também
uma relação direta com ações sociais, com uma recuperação da visão coletiva
intrínseca em qualquer relação ou em qualquer atuação do psicólogo. Um
dos primeiros passos para pensar e agir, numa perspectiva dos direitos
humanos, seria compreender que não estamos sozinhos no mundo e que
somos o que somos porque existe um outro, uma história e um contexto.

Certamente, a história é feita não só de eventos particulares que se tornaram


importantes e contagiaram, digamos assim, o universal. Numa visão
dialética, o universal também já estaria presente no particular. De modo que
o particular e o universal fazem parte de um mesmo processo onde um
constitui o outro.

Desse modo, as práticas afirmadoras passam por toda uma política


explicitada nas várias possibilidades do fazer dos direitos humanos
(direito da mulher, do idoso, da criança em situação de risco social, dos
Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico 113

desvalidos etc.), mas, também, estas (e aqui vale especificamente para


psicologia embora não se restrinja apenas a esta área) transmitem uma
perspectiva do fazer psicológico em todas as suas manifestações.

Esta perspectiva dos direitos humanos merece atravessar todas as ações e


perpassar o psicólogo, que se coloca disponível, enquanto ator social, na
relação com o outro. Significa uma compreensão da dimensão do humano
em toda a sua contradição atual geradora de sofrimento, angústia, miséria,
mas também de possibilidades.

A relação da psicologia com os direitos humanos não deve se restringir


apenas às práticas específicas ou aos grupos autodenominados defensores
dos direitos humanos5. Esta deve fazer parte da condição básica de ser
psicólogo em todas as suas formas, no sentido de tentar apreender o outro
em sua singularidade e universalidade histórica e se colocar como parceiro
também imerso na contradição de um mundo, buscando criar e gerar
possibilidades mais realizadoras para um homem em relação.

Para finalizar, vamos nos reportar a Marcos Vinícius de O. Silva (2001),


quando fala da sua preocupação de que a discussão sobre direitos humanos
vire moda. “É preciso pensar globalmente, porém agir localmente”. A
perspectiva nas ações é importante.

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5
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114 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

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