O Problema Da Indução
O Problema Da Indução
O Problema Da Indução
Resumo Abstract
A partir da concepção de David Hume sobre a On the basis of David Hume’s view on the
elaboração de conceitos científicos tendo como elaboration of scientific concepts starting from
ponto de partida os conceitos elaborados a partir concepts elaborated on the basis of sensory
de observações sensíveis, vamos investigar um observations, the article discusses part of his
pouco da sua argumentação sobre a questão da argument on induction as a method for the
indução como método para o desenvolvimento da development of science. Hume creates a whole theory
ciência. Hume cria toda uma teoria sobre a of the acquisition of knowledge based on the method
aquisição de conhecimento tendo por base a of causality and then criticizes the latter because of
causalidade como método, para posteriormente those elements which, in his interpretation, do not
criticá-la naquilo que, na sua interpretação, não a confirm it as a safe and correct method for the
ratifica como um método seguro e certo para a formulation of scientific and physical laws. For Hume,
formulação de conceitos de leis científicas e físicas. rendering a particular law (event) universal is
Transformar em universal uma lei (evento) something that cannot leave any doubt about its
particular é algo que para Hume não deve deixar logical/structural veracity. Through his investigation,
dúvida quanto à sua veracidade lógica/estrutural. he tries to find something that can be a connection
Sua investigação é no sentido de encontrar alguma between an effect and its expected and alleged cause.
coisa que sirva de conexão entre um efeito e sua Thus, the issue of induction becomes the touchstone
esperada e suposta causa. Para Hume, a questão of his philosophy. The article tries to connect the pros
da indução passa a ser a pedra de toque de sua and cons of Hume’s argument with Karl Popper’s
filosofia. Vamos tentar entrelaçar os prós e os theories.
contras de suas argumentações com as teorias de
Karl Popper. As argumentações e tentativas de
validação da indução como método para o Keywords: Hume. Inductivism. Critique. Skepticism.
progresso da ciência ontem e hoje são objeto de
pesquisa constante e ininterrupta.
Para David Hume (1711-1776), filósofo empirista do século XVIII, a construção de uma
teoria do conhecimento passa obrigatoriamente pelo exercício e prática da observação. Entende
ele que é somente através das observações dos fatos e fenômenos naturais que chegamos às
suas causas e, consequentemente, ao conhecimento verdadeiro (possível). Sua teoria parte do
pressuposto de que existem dois tipos de percepção, as impressões e as ideias. As impressões
são os dados percebidos pelos sentidos (audição, visão, paladar, olfato e tato) e pela observação,
e as ideias seriam as representações criadas na memória daquilo que foi captado pelos sentidos,
ou seja, nada mais do que cópias modificadas do apreendido pelos sentidos.
Todos admitirão sem hesitar que existe uma considerável diferença entre as
percepções da mente quando o homem sente a dor de um calor excessivo ou o
prazer de um ar moderadamente tépido e quando relembra mais tarde essa
sensação ou a antecipa pela imaginação. 1
Com essa afirmação Hume começa, a Seção II, denominada Da Origem das Ideias, em
sua Investigação sobre o Entendimento Humano, que irá tratar das formas e do método do
conhecer científico. Começa sua investigação classificando suas observações em dois pontos
opostos, quais sejam, de um lado aquilo que vejo e, de outro lado aquilo que penso. Vai
descaracterizar todo o conhecimento a priori como conhecimento verdadeiro em favor do
conhecimento adquirido pela observação sensível. Para ele, o fato de a metafísica não ter
nenhum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência comprova que a
mesma não contém nada mais do que sofismas e ilusões 2.
Uma palavra não corresponderá a uma impressão, se essa impressão já não tiver sido
apreendida pelos sentidos, isto é, uma palavra só terá significação na medida em que se referir a
fatos concretos. Portanto, é na observação de um fenômeno e seu efeito que construímos o
conhecimento. É através da relação causa/efeito, através de inúmeras observações empíricas,
observando os efeitos e inferindo suas causas, observando que repetidas vezes A é seguido de B,
é que posso extrair a sentença de que sempre que houver B, posso afirmar que A é o causador
responsável. Então concluímos que um enunciado universal tem como fundamento um enunciado
particular (que foi concebido com base em algumas observações em um dado período de tempo,
onde se verificou a uniformidade, regularidade e constância de determinados acontecimentos).
Esta é a teoria da causalidade descrita por Hume.
Mas Hume elabora toda uma crítica sobre a causalidade (defendida pelos metafísicos
racionalistas), mais precisamente sobre a conexão necessária para validar a relação causal como
provedora dos conhecimentos científicos. O que Hume descobre nessa relação é a contiguidade,
prioridade e uma conjunção constante, o que significaria o único meio pelo qual se pode
“descobrir” a causa. Segundo ele, não existe nenhuma impressão sensível correspondente a ela
1
HUME, David. Investigação Sobre o Entendimento Humano. 3. ed. Trad. Antonio Sérgio...(et al.). Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984, doravante citado na abreviatura IEH, seguida do número da
parte, seção, parágrafo e página. IEH 2.11:138.
2
IEH 12.3.132:202.
13
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[é] evidente que Adão, com toda a sua ciência, jamais teria sido capaz de
demonstrar que o curso da natureza deve continuar uniformemente o mesmo, e
que o futuro deve ser conforme ao passado. O que é possível nunca pode ser
demonstrado como falso; e é possível que o comportamento da natureza possa
mudar, uma vez que podemos conceber tal modificação. Não é só isto; irei além e
afirmarei que Adão não conseguiria provar, por quaisquer argumentos prováveis,
que o futuro deve ser conforme ao passado. Todos os argumentos prováveis são
construídos sobre a suposição de que há esta conformidade entre o futuro e o
passado, e, por conseguinte, nunca podem provar tal suposição. Tal conformidade é
uma questão de fato, e se deve ser provada, só admitirá prova que resulte da
experiência. Mas nossa experiência no passado nada pode provar para o futuro,
senão na suposição de haver semelhança entre um e outro. Esse é um ponto, pois,
que absolutamente pode ser comprovado e que assumimos como certo sem
qualquer prova. 4
experiência?” 9. Esta é a questão para Hume. Com esta afirmação/conclusão, ele estabelece o que
viria a chamar-se de “problema de Hume” ou, ainda, de o “problema da indução”.
Como sabemos, a questão da indução não é nova; vamos encontrá-la já em Aristóteles,
que afirmava que “nada se acha na inteligência sem que antes se achasse nos sentidos” (nihil est
in intellectu quod prius non fuerit in sensu), em Sexto Empírico, nos estoicos, em Bacon e outros.
Mas é quando as ciências passam a utilizar o método indutivo para a elaboração de suas teorias –
na metade do século XVII – que o problema relativo a este processo toma um novo fôlego, mais
precisamente com a dúvida cética de David Hume, que o introduz no mundo moderno. É nesse
momento que o mesmo toma um rumo diferente do que tinha tomado até então.
Como podemos observar, temos aqui uma questão atemporal, consequentemente,
contemporânea, não ignorada por cientistas, filósofos, estudiosos e leigos de um modo geral.
Todos, em algum momento, se encontraram na situação de inferir de um dado evento (seja físico
ou comportamental) algum conceito em função das percepções apreendidas e o consideraram
como um guia para a vida prática, assim como assegurava Hume. Apesar dos vários
“entendimentos” que se têm acerca do termo e levando em conta as interpretações elaboradas
pelos muitos estudiosos que, em algum momento, se dedicaram a essa questão em particular, é
mais precisamente no campo da ciência, quando a mesma estabelece regras para a aquisição de
conhecimento e elaboração de conceitos, que nos concentraremos.
A indução é o processo pelo qual, a partir de enunciados particulares, inferimos um
enunciado universal. Ela generaliza um acontecimento tornando-o referência e fundamento para a
elaboração de outros enunciados. Podemos dizer que este é um conhecimento que se constrói
tendo em vista a época (tempo) e o lugar, ou seja, pode-se afirmar (de certo modo) que ele é
temporal e local, mas que o aceitamos como atemporal e universal, pois todo conhecimento
adquirido através da indução, isto é, através da observação de uma suposta relação causa/efeito,
foi elaborado tendo em vista algumas observações e em um determinado período de tempo.
Informação não é conhecimento. Diz Hume:
Quanto à experiência passada, pode-se admitir que ela provê informação imediata
e segura apenas acerca dos precisos objetos que lhe foram dados, e apenas
durante aquele período de tempo; mas por que se deveria estender essa
experiência a tempos futuros e a outros objetos que, por tudo que sabemos, podem
ser semelhantes apenas na aparência? Essa é a questão fundamental sobre a qual
gostaria de insistir. 10
Se tenho como verdadeiro um enunciado universal, nesses moldes, posso inferir dessa
verdade que também é verdadeiro o enunciado particular, e que por experiência sabe-se
verdadeiro. Mas Popper, assim como Hume, argumentará que o conhecimento baseado nos
sentidos e na razão (indução) é passível de erros. A regularidade existente na natureza também
não nos fornece base segura para elaborarmos uma teoria, pois bastaria um único caso contrário
9
IEH 4.2.28:144.
10
HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding: a critical edition, 2006. New York: Oxford
University Press Inc, doravante citado com a abreviatura ECH, seguida do número da parte, seção,
parágrafo e página. ECH 2.29:30.
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para derrubar qualquer teoria construída através desse processo, isto é, da observação sensível.
Hume, sobre este ponto, afirma o seguinte:
11
IEH 1.4.29.145.
12
R, p. 53. Grifo do autor.
13
Devemos lembrar que no Ártico e na Antártida há dias em que o sol não se põe. O que resultaria que um
conhecimento construído nesses lugares mostrar-se-ia diferente dos elaborados em outros lugares. Portanto,
não seria uma verdade universal, apenas local.
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E falar desse modo não é uma redundância, pois vemos a natureza agir com uma certa regularidade e,
regularmente exata, isto é, tem uma sequência e a observa sistematicamente.
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indução em Popper: verificar a validade e a verdade dos enunciados universais que derivem de
observações empíricas15.
[...] está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no
inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de
quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo
sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos cisnes brancos
possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são
brancos. 16
Se, com base na observação empírica, eu afirmar que os ipês – assim como acontece hoje
e aconteceu no passado – florescem em agosto e nunca em fevereiro, estarei dizendo que daqui a
10, 50, 100 anos este mesmo acontecimento se repetirá. Mas se, nesse meio tempo, houver
distúrbios climáticos e as estações forem, de alguma forma, prejudicadas, alteradas 17, “[...] toda
experiência torna-se inútil e não pode dar margem a qualquer inferência ou conclusão” 18, o que
nos atesta a fragilidade do argumento advindo da causalidade e as inferências surgidas daí. Então,
nestes termos, uma indução é, no mínimo, duvidosa.
Para Hume, o problema começa exatamente neste ponto, isto é, com o comprometimento
da indução com fatos sobre os quais não temos segurança de repetição. Está relacionado com a
posterior atribuição de uma causa a um já observado efeito conhecido, ou o contrário, a
atribuição de um efeito conhecido a uma suposta causa do mesmo. Não se pode considerar como
certeiro o efeito após o surgimento de sua suposta causa, mas apenas como uma possibilidade,
pois nossos argumentos se espelham na semelhança que constatamos entre os diversos objetos,
seus efeitos e suas causas inferidas. A indução fica comprometida, pois a esperança de que, após
uma causa já conhecida, dê-se o efeito desejado é mera expectativa, ele é probabilístico. É
estatístico. Mas não é certeiro. Essas são questões que se travam ao nível da relação das ideias,
e não encontramos correspondente nas questões de fato. Portanto, não temos como afirmar com
a máxima certeza de que um efeito já conhecido irá se manifestar após o aparecimento de sua
causa; poderá dar-se que, dada uma causa e esperados seus efeitos, os mesmos não venham a
ocorrer, ou que ocorra um outro efeito ainda não conhecido. O que poderíamos esperar é que,
15
POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.
São Paulo: Cultrix Ltda, 1974. p.28. Doravante apenas LPC, ano, página.
16
LPC, 1975, p. 27.
17
Como podemos constatar hoje em dia, em função do aumento do buraco na camada de ozônio.
18
IEH 2.4.32:147.
17
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19
OCQ, p. 37, 1999. “Um exemplo mais interessante embora um tanto medonho é uma elaboração da
história que Bertrand Russel conta do peru indutivista. Esse peru descobrira que, em sua primeira manhã na
fazenda de perus, ele fora alimentado às 9 da manhã. Contudo, sendo um bom indutivista, ele não tirou
conclusões apressadas. Esperou até recolher um grande número de observações do fato de que era
alimentado às 9 da manhã. E fez essas observações sob uma ampla variedade de circunstâncias, às quartas
e quintas-feiras, em dias quentes e dias frios, em dias chuvosos e dias secos. A cada dia acrescentava uma
outra proposição de observação à sua lista. Finalmente, sua consciência indutivista ficou satisfeita e ele
levou a cabo uma inferência indutiva para concluir: ‘Eu sou alimentado sempre às 9 da manhã’. Mas, ai de
mim, essa conclusão demonstrou ser falsa, de modo inequívoco, quando na véspera do Natal, ao invés de
ser alimentado, ele foi degolado. Uma inferência indutiva com premissas verdadeiras levara a uma conclusão
falsa.”
20
IEH 4.2.28:145.
21
IEH 4.2.28:144.
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22
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. 2.ed. trad. Sérgio Bath. Col. Pensamento Científico, 1. Brasília:
Ed. Univ. de Brasília, 1982. Doravante apenas CR, ano, página. p. 66.
23
CR, 1982, p.66.
24
CR, 1982, p.66.
25
CR, 1982, p. 68.
26
LPC, 1975, p. 27.
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Conclusão
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entre cientificidade e racionalidade. Não exclui a metafísica no sentido de tentar unir intelecto e
as coisas do mundo. Para Chalmers (1999, p. 22), o falseacionismo de Popper é uma tentativa de
melhora do indutivismo.
Podemos concluir, então, com base no exposto, que as tentativas de solidificação de
conceitos extraídos de observações sensíveis são, ainda hoje, objeto de estudo e pesquisa por
parte de cientistas e filósofos, no sentido de se achegar um pouco mais à verdade última das
coisas.
Referências
CHALMERS, A.F. 1999. O que é ciência afinal? 3ª ed. Trad. Raul Fiker. São Paulo, Brasiliense.
HUME, David. 1984. Investigação sobre o Entendimento Humano. 3ª ed. Trad. Antonio Sérgio et
al. São Paulo, Abril Cultural. (Os Pensadores).
HUME, D. 1995. Resumo de Um Tratado da Natureza Humana. Trad. Rachel Gutiérrez e José
Sotero Caio. Porto Alegre, Paraula.
HUME, D. 2001. Tratado da Natureza Humana. Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa, Calouste
Gulbenkian.
HUME, D. 2006. An Enquiry Concerning Human Understanding: A critical edition. New York,
Oxford University Press.
MAGEE, Bryan. 1974. As idéias de Popper. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveria da Mota.
São Paulo, Cultrix.
O’HEAR, Anthony (Org.). 1997. Karl Popper: filosofia e problemas. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São
Paulo, UNESP.
POPPER, Karl R. 1974. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota. São Paulo, Cultrix.
POPPER, Karl R. 1982. Conjecturas e Refutações. 2ª ed. Trad. Sérgio Bath. Brasília, Ed. Univ. de
Brasília. (Col. Pensamento Científico, 1).
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